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Epigenética: conceito, mecanismos e impacto em doenças humanas.

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Maria Rivas Anne Caroline Barbosa Teixeira


University of São Paulo University of São Paulo
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Ana CV Krepischi
University of São Paulo - Institute of Biosciences
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Epigenetics Mechanisms in Hepatoblastoma: Methylation, Hydroxymethylation and development blockade. View project

Chromosomal copy number changes in hepatoblastomas: genomic microarrays and next generation sequencing View project

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Volume 14 • No 1 • 2019 ISSN 1980-3540

• Conceitos em Genética
• Genética e Sociedade
• Materiais Didáticos
• Resenha
• Um Gene
Índice
Conceitos em Genética
Os filhos da mãe - a partenogênese como forma de reprodução em animais...............................................................2
Epigenética: conceito, mecanismos e impacto em doenças humanas..........................................................................14

Genética e Sociedade
Medicina Regenerativa e Engenharia de Tecidos..........................................................................................................26
Aconselhamento genético: será que eu preciso?............................................................................................................34

Materiais Didáticos
Cariogame: inovação tecnológica para o estudo de alterações cromossômicas numéricas e estruturais.................44
Investigando Scoisópolis..................................................................................................................................................54

Resenha
DNA Criminoso - Show de Horrores...........................................................................................................................68

Um Gene
Aquaporina 1: o primeiro gene codificador de um canal de água identificado em humanos....................................70
Gene COMT e sua possível relação com a esquizofrenia.............................................................................................78
CONCEITOS EM GENÉTICA

Os filhos da mãe -
a partenogênese
como forma de
reprodução em
animais

Lorena Ferrari Uceli, Flávia Lage Pessoa da Costa

Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, Instituto de


Educação Continuada, Belo Horizonte, MG

Autor para correspondência - lorena.uceli@gmail.com

2 Genética na Escola | Vol. 14 | Nº 1 | 2019


Genética na Escola – ISSN: 1980-3540

P artenogênese é o termo utilizado para se referir ao desenvolvimento


de um ser vivo a partir do gameta feminino não fecundado. Difere-se
da reprodução assexuada, uma vez que a partenogênese implica, necessa-
riamente, no desenvolvimento do óvulo, enquanto a reprodução assexuada
é caracterizada pela multiplicação das células somáticas de um organismo
pelo processo de mitose. Muito comum em plantas, a partenogênese em ani-
mais costuma ser lembrada apenas como a forma de reprodução das abelhas.
Entretanto, não se restringe a esse grupo, estando presente em diversos filos
do reino Animal. A partenogênese pode ser classificada de acordo com a fre-
quência de sua manifestação em determinada espécie (facultativa ou obriga-
tória), com o sexo da prole gerada (telitoquia, arrenotoquia e deuterotoquia)
e com o mecanismo de reprodução celular envolvido na formação do zigoto
(apomítica ou ameiótica e automítica ou meiótica). Apesar da predominân-
cia da reprodução sexuada na maioria das espécies animais, a partenogênese
constitui um modelo de reprodução estabelecido e pode apresentar vanta-
gens ecológicas e evolutivas para as espécies que assim se reproduzem.

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CONCEITOS EM GENÉTICA
Taxa - Quaisquer unidades
A ocorrência da partenogênese não implica taxonômicas associadas a
A PARTENOGÊNESE um sistema de classificação.
necessariamente em ausência de indivíduos
P
Pode ser usado para indicar
artenogênese é o termo utilizado para do sexo masculino ou mesmo na ausência unidades em qualquer nível da
se referir ao desenvolvimento de um de cópula. Algumas espécies que realizam classificação, como filo, classe,
embrião a partir de gametas femininos sem esse tipo de reprodução necessitam do ato ordem, família, gênero ou
que ocorra a fertilização por gametas mas- copulatório ou do estímulo hormonal do sê-
espécie. Singular: táxon.
culinos. Ou seja, é uma forma de repro- men do macho para que o desenvolvimento
dução na qual fêmeas dão origem a novos embrionário aconteça. O que não ocorre, en-
indivíduos sem a participação genética dos tretanto, é a fecundação do óvulo da fêmea
machos. Mais conhecido por ser o processo pelo espermatozoide do macho. Em algu-
que origina os zangões nas espécies de abe- mas situações, a partenogênese é facultativa
lhas melíferas, a partenogênese, entretanto, ou acidental, sendo a reprodução sexuada a
não se restringe a esse grupo. Ao contrário, condição quase obrigatória da espécie, que
vários são os grupos de animais, invertebra- pode se reproduzir unissexuadamente em
dos e vertebrados, que realizam essa forma casos extremos. Há ainda espécies nas quais
de reprodução. a partenogênese é relacionada à determi-
Segundo Simon et al, 2003, 19 dos 34 filos nação de um dos sexos, como é o caso da
animais existentes apresentam espécies que haplodiploidia em abelhas. Haplodiploidia - Sistema
se reproduzem por partenogênese (veja al- de determinação do sexo em
Apesar das já estabelecidas vantagens da re- que machos se desenvolvem a
guns exemplos na Tabela 1). Entre os verte- produção sexuada, como a possibilidade de partir de óvulos não fertilizados
brados, já foram identificados 70 taxa apre- uma maior variabilidade genética, associada (sendo haploides) e fêmeas
sentando esse tipo de reprodução, sendo o à plasticidade adaptativa da espécie, e tam- se desenvolvem a partir de
grupo dos Mamíferos o único grande grupo óvulos fertilizados (portanto,
bém à capacidade de eliminação de mutações diploides).
de vertebrados no qual a partenogênese não é deletérias, como consequência da atuação da
observada naturalmente. Isso ocorre em fun- seleção natural, a reprodução partenogené-
ção do imprinting genômico, mecanismo de tica também pode ser vantajosa em deter-
regulação da expressão gênica presente em minadas situações, como na colonização de
mamíferos, e também em alguns taxa de in- novos ambientes e na manutenção da espécie
setos e vegetais, no qual apenas um dos alelos em ambientes com baixa disponibilidade de
parentais de determinados genes é expresso, machos ou em cativeiro.
enquanto o outro é inativado. O processo de
imprinting acontece durante a gametogênese, TIPOS DE PARTENOGÊNESE
anterior à fertilização, marcando genes como
A partenogênese pode ocorrer por meio de Partenogênese
tendo origem materna ou paterna e contro-
diversos mecanismos citogenéticos, podendo obrigatória - Ocorre
lando a sua expressão em alguns ou em to- especialmente nas espécies
gerar apenas fêmeas ou apenas machos. Pode
dos os tecidos do embrião. Esse mecanismo híbridas de vertebrados (peixes,
ser obrigatória, facultativa ou ainda cíclica,
impede a ocorrência de partenogênese entre anfíbios e répteis) e em certos
a última caracterizada pela alternância de ge- grupos de invertebrados, como
mamíferos, pois o embrião que herdar ape-
rações entre reprodução sexuada e parteno- algumas espécies de insetos e
nas o conjunto de cromossomos materno
gênese. Esse último caso é o dos afídeos, po- os rotífera da classe Bdelloidea.
apresentará alguns genes de forma inativada,
pularmente conhecidos como pulgões, que
uma vez que estes estariam ativados somente
produzem tanto indivíduos machos como
no conjunto de cromossomos paterno, o que
fêmeas por partenogênese e alternam entre
inviabiliza o seu desenvolvimento.
gerações formadas sexualmente e gerações
A partenogênese difere da reprodução asse- partenogenéticas.
xuada típica pois, nesta última, o indivíduo
Quando a espécie se reproduz majoritaria-
desenvolve-se a partir de células somáticas,
mente de forma sexuada, realizando a parte-
enquanto a partenogênese pressupõe desen-
nogênese em situações específicas, ela é cha-
volvimento a partir de células gaméticas. Os
mada de facultativa. Esse tipo de reprodução
mecanismos citogenéticos que permitem a
é observado em alguns taxa de animais ver-
geração de um embrião a partir de células
tebrados e em uma diversidade muito grande
gaméticas não fecundadas são diversos e se-
de invertebrados, especialmente artrópodes.
rão abordados ao longo deste artigo.

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Genética na Escola – ISSN: 1980-3540

Tabela 1. Filos Classe/Ordem Taxón partenogenético


Alguns filos e taxa do Porifera Demospongiae Algumas espécies
Reino Metazoa nos quais a Cnidaria Anthozoa Porites asteroides
reprodução partenogenética já Platyhelminthes Turbellaria Dugesia polychroa
foi observada.
Nematoda Secernentea Meloidogyne incognita
Meloidogyne javanica
Meloidogyne arenaria
Rotifera Monogonta Bdelloidea (família)
Onychophora Euonychophora Epiperipatus imthurni
Annelida Oligochaeta Octolasion tyrtaeum
Mollusca Bivalvia Lasaea (gênero)
Gastropoda Campeloma (gênero)
Potamopyrgus antipodarum
Arthropoda Ostracoda Darwinulidae (família)
Cyprinotus incongruens
Eucypris virens
Diplostraca/Cladocera Daphnia pulex
Daphnia middendorfiana
Malacostraca/Isopoda Trichoniscus pusillus
Annostraca Artemia (gênero)
Insecta/Hemiptera Rhopalosiphum padi
Aphidoidea (superfamília)
Aleyrodidae (algumas espécies)
Insecta/Coleoptera Aramigus tessellatus
Polydrusus mollis
Otiorhynchus saber
Naupactus cervinus
Insecta/Lepidoptera Solenobia triquetrella
Dahlica triquetrella
Insecta/Hymenoptera Diversos taxa
Insecta/Isoptera Reticulitermes (gênero)
Insecta/Orthoptera Warramba virgo
Insecta/Phasmatodea Bacillus lyceorum
Extatosoma tiaratum
Tinema (gênero)
Arachnida/Scorpiones Tityus serrulatus
Tityus columbianus
Tityus trivittatus
Liocheles australasiae
Chordata Peixes/Chondrichthyes Stegostoma fasciatum
Pristis pectinata
Peixes/Ostheichthyes Poeciliopsis
Phoxinus
Amphibia Ambystoma (gênero)
Pelophylax esculentus
Sauropsida/Squamata Aspidocelis tesselata
Cnemidophorus (gênero)
Darevskia unisexualis
Darevskia armeniaca
Leposoma percarinatum
Boa constrictor
Epicrates maurus
Epicrates cenchria
Python bivittatus
Malopython reticulatus
Thamnophis marcianus
Agkistrodon contortrix
Agkistrodon piscivorus
Bothrops asper
Aves Melegaris (gênero)
Taeniopygia guttata
Gallus gallus domesticus

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CONCEITOS EM GENÉTICA

Um exemplo bem estabelecido de parteno- Os animais partenogênicos podem possuir


gênese facultativa em invertebrados aconte- apenas um tipo de cromossomo sexual,
ce em algumas espécies de cupins, em que como é o caso dos gafanhotos, nos quais a
rainhas internas, ou seja, que não formarão fêmea é XX e os machos são X0; ou ainda
novas colônias, podem ser produzidas de produzirem dois tipos de cromossomos se-
forma partenogenética pela rainha fundado- xuais (sistemas XY e ZW), como é o caso
ra, enquanto todos os outros indivíduos da dos vertebrados, com exceção de alguns rép-
colônia originam-se de reprodução sexuada. teis, como as tartarugas. Nos animais que
Assim, rainhas fundadoras podem “replicar” possuem sistema XY, a fêmea geralmente é
seu material genético completo diversas ve- homogamética, possuindo apenas o cromos-
zes nas rainhas formadas por partenogênese, somo X, presente em dose dupla, e os ma-
que cruzarão com os machos alados para for- chos são heterogaméticos, possuindo os cro-
mar a prole sexuada. Entretanto, uma nova mossomos X e Y. Assim, neste sistema, o que
rainha fundadora será formada apenas por determina o sexo na fecundação é o gameta
reprodução sexuada, o que revela a natureza masculino. Em sistemas ZW (caso das aves,
facultativa desse tipo de partenogênese. alguns répteis, peixes e insetos), por outro
lado, as fêmeas geralmente são heterogamé- Telitoquia - Processo
Em vertebrados, acreditava-se, até há pouco partenogenético que produz
ticas (ZW) e os machos são homogaméti-
tempo, que apenas fêmeas em cativeiro reali- apenas fêmeas.
cos (ZZ). Nesses casos, o que determina o
zavam partenogênese facultativa por conse-
sexo da prole na fecundação são os gametas
quência do isolamento reprodutivo. Entre-
femininos. O sexo da prole partenogenética
tanto, alguns estudos relatam a ocorrência
dependerá, portanto, do tipo de sistema de
de partenogênese em indivíduos sexuados
determinação do sexo da espécie em questão.
de vida livre, tais como o peixe-serra (Pristis
pectinata) e serpentes do gênero Agkistrodon. Quando a partenogênese produz apenas fê-
meas, denominamos telitoquia, que é ob-
Essas evidências suscitam o seguinte ques-
servada em espécies em que as fêmeas são
tionamento: o que pode levar uma espécie
homogaméticas . Entre os invertebrados que
normalmente sexuada a se reproduzir por
apresentam telitoquia obrigatória pode- Telitoquia obrigatória -
partenogênese facultativa, em ambiente na-
-se citar o escorpião-amarelo, Tityus serrula- Acontece quando a espécie se
tural, onde não há isolamento reprodutivo? reproduz exclusivamente por
tus (Figura 1).
A hipótese levantada em estudos é de que a partenogênese, produzindo
reprodução por partenogênese poderia ga- A espécie é originária do estado de Minas apenas fêmeas. O exemplo
rantir a sobrevivência da espécie na ausência Gerais e habitava regiões de Cerrado. Po- citado no texto é o escorpião-
amarelo, Tityus serrulatus,
temporária de machos ou em populações rém, a substituição da vegetação nativa desse espécie em que se desconhece
com baixa densidade populacional, como as bioma pelas monoculturas e a urbanização a existência de machos.
que estão ameaçadas de extinção. permitiram que o escorpião-amarelo se ex-
pandisse para outras regiões do Sudeste e
RELAÇÕES ENTRE Centro-Oeste, sendo hoje uma espécie as-
PARTENOGÊNESE E sociada aos ambientes urbanos e habitações.
OS MECANISMOS DE A reprodução por partenogênese também é
vista como facilitadora desse processo, uma
DETERMINAÇÃO DO SEXO vez que apenas um indivíduo é suficiente
A determinação do sexo em animais pode para iniciar a colonização de um novo am-
estar relacionada ao dimorfismo cromossô- biente. Por possuir veneno de alta toxicidade,
mico, no qual animais de sexos diferentes a espécie é de grande importância médica, e
possuem cromossomos sexuais diferentes conhecer sua forma de reprodução é uma es-
(em mamíferos, por exemplo), ou a fatores tratégia importante para o seu controle.
ambientais, como a temperatura a que estão
Bactérias patogênicas do gênero Wolbachia
submetidos os ovos (como é o caso de alguns
são descritas como responsáveis por indu-
quelônios). Para a compreensão da determi-
zirem a telitoquia, de forma facultativa, em
nação do sexo em animais partenogenéticos
diversas espécies bissexuadas de insetos que
avaliaremos, neste artigo, a influência dos
possuem o sistema de reprodução haplodi-
cromossomos sexuais nesse processo.
ploide. O patógeno também causa duplica-

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Genética na Escola – ISSN: 1980-3540

Figura 1.
Escorpião-amarelo, Tytius
serrulatus. Reproduz-se por ção gamética em ovos não fertilizados, levan- tam telitoquia obrigatória. A espécie Lepo-
partenogênese obrigatória, do ao desenvolvimento de fêmeas ao invés de soma percarinatum (Figura 2), encontrada na
dando origem apenas a fêmeas. machos haploides. Essa situação de parteno- Amazônia, e o calango Cnemidophorus nativo
https://pt.freeimages.com/ gênese, de origem infecciosa, é revertida para (ou calango da restinga), endêmico das ma-
photo/y-scorpion-1528784
(banco de imagens gratuito).
a reprodução sexuada original da espécie, tas do norte do Espírito Santo ao sul da Bah-
caso os indivíduos sejam tratados com anti- ia, são exemplos de lagartos partenogenéti-
biótico. cos cuja prole é composta apenas por fêmeas,
estes últimos ameaçados de extinção. Dentre
Nos vertebrados, lagartos híbridos das famí-
as 5.634 espécies de lagartos já identificadas,
lias Lacertidae e Teiidae também apresen-
cerca de 40 são partenogenéticas.

Figura 2.
Lagarto Leposoma
percarinatum. Espécie híbrida,
realiza partenogênese dando
origem apenas a fêmeas. Autor
da foto: Renato Gaia (foto
cedida pelo autor).

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CONCEITOS EM GENÉTICA

A situação oposta, em que a partenogê- Por fim, a partenogênese pode dar origem
nese leva à produção apenas de machos, é tanto a fêmeas quanto a machos, denomi-
denominada arrenotoquia. Este termo é nando-se deuterotoquia ou anfitoquia. Em Deuterotoquia - Processo
geralmente empregado para designar o sis- espécies cuja determinação do sexo baseia-se partenogenético que dá origem
tema haplodiploide, no qual óvulos não fe- no sistema ZW, em que fêmeas são hetero- a indivíduos de ambos os sexos,
machos e fêmeas.
cundados, portanto haploides, dão origem gaméticas, a partenogênese pode gerar tanto
aos machos, enquanto óvulos fecundados indivíduos ZW, portanto fêmeas, quanto in-
originam as fêmeas. É o caso clássico e mais divíduos ZZ (machos). Os primeiros casos
conhecido de partenogênese em abelhas de deuterotoquia documentados foram ob-
melíferas domesticadas, como as da espécie servados em aves domésticas, como galinhas
Apis mellifera, nas quais os zangões se ori- e perus, em que ovos não fertilizados deram
ginam de ovos não-fecundados, enquanto origem a embriões machos (ZZ). Em diver- Arrenotoquia - Processo
as operárias e as rainhas são originadas de sas espécies de serpentes em que foram ob- partenogenético que origina
ovos fecundados. Em uma colmeia dessas servados casos de partenogênese facultativa, apenas machos.
abelhas, a única fêmea fértil é a rainha. Caso tanto machos (ZZ) quanto fêmeas (ZW)
ela morra e não exista a possibilidade de ser foram observados na prole. Indivíduos WW
substituída por outra rainha, as operárias são geralmente inviáveis, porém existem re-
estéreis podem ovopositar, como resultado gistros de fêmeas WW viáveis em espécies
da falta do feromônio da rainha, que inibe o de serpentes do gênero Boa. Em 2013, um
desenvolvimento dos ovários das outras fê- espécime fêmea de jiboia-vermelha, ou ji-
meas. Entretanto, como não são capazes de boia-arco-íris (Epicrates cenchria) (Figura
copular, os ovos das operárias serão todos 3), espécie típica da Amazônia que vivia em
haploides, desenvolvendo-se em zangões, um zoológico na Califórnia, deu à luz 3 fi-
que só conseguem copular com rainhas. lhotes gerados por partenogênese. Todos os
Com o passar do tempo, as operárias mor- indivíduos da prole eram fêmeas e, pelo grau
rerão, seguidas pelos zangões, levando ao de homozigose apresentado em seu genoma,
colapso da colmeia. acredita-se que possuam cariótipo WW.

Figura 3.
Jiboia-vermelha (Epicrates
cenchria). Foi observada
reprodução partenogenética
em um espécime mantido em
cativeiro. Fonte: shutterstock.
com (banco de dados de
imagens). Autor da foto: Patrick
C. Campbell.

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Genética na Escola – ISSN: 1980-3540

RELAÇÕES ENTRE Caso a meiose ocorra de forma completa,


formando gametas haploides, os embriões
PARTENOGÊNESE E MEIOSE formados a partir do desenvolvimento dos
O desenvolvimento partenogenético pode óvulos não fecundados também serão ha-
acontecer por vários mecanismos citogenéti- ploides. É o caso dos zangões, em abelhas
cos, classificados quanto à ausência ou pre- melíferas, e dos machos em formigas.
sença de meiose na gametogênese. No caso
Os casos em que a diploidia é restabelecida
de partenogênese ameiótica (ou apomítica),
antes, durante ou após o processo de meiose
a meiose é completamente suprimida e os ga-
são chamados, coletivamente, de partenogê-
metas são formados por divisões mitóticas.
nese automítica ou meiótica. Esse processo
Os óvulos formados serão diploides, com
pode ocorrer por diversos mecanismos, sen-
material genético praticamente idêntico ao
do os principais apresentados na figura abai-
materno, excetuando os casos de eventuais
xo (Figura 4, a-d).
mutações gênicas e cromossômicas.

Figura 4.
Mecanismos citogenéticos de restabelecimento da diploidia na partenogênese
apomítica. 4a. Duplicação pós-meiótica é a duplicação do material genético do gameta,
originalmente haploide, ao final do processo de meiose. Se houver crossing-over na
prófase I, ocorre maior variabilidade genética na prole. 4b. Processo de fusão central, na
qual os produtos da primeira divisão meiótica fundem-se (representada na imagem por
uma seta), sofrendo posteriormente uma divisão mitótica, possibilitando a manutenção
da diploidia ao final da meiose II. 4c. Processo de fusão terminal, que ocorre quando o
ovócito II, haploide, se funde ao segundo corpúsculo polar (representada na imagem
por uma seta), também haploide, formando uma célula diploide. 4d. Duplicação pré-
meiótica, na qual o material genético do gameta é duplicado antes do início da divisão
meiótica, possibilitando o desenvolvimento de uma célula 2n ao final da meiose II. Os
corpúsculos polares que se degeneram no processo de ovogênese, em todos os quatro
mecanismos, estão evidenciados por um “X” vermelho.

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CONCEITOS EM GENÉTICA

A duplicação pós-meiótica (4a) é o processo apenas nas cromátides que sofreram cross-
no qual ocorre duplicação dos cromossomos ing-over na prófase I.
ao final da meiose II, nos ovócitos II das
A duplicação celular pré-meiótica (Figura
fêmeas partenogênicas. As fases da meio-
4d) é o processo no qual o material genético
se I ocorrem naturalmente, possibilitando
da ovogônia sofre uma duplicação anterior à
a recombinação gênica entre cromossomos
meiose, iniciando-a com uma quantidade de
homólogos, o que pode levar à variabilidade
DNA 4C. Após a duplicação das cromátides, Valor C - O valor de C
genética na prole. Após a separação do cor-
a quantidade de DNA passa a ser 8C, que é a quantidade de DNA
púsculo polar II, que se desintegra, o núcleo encontrada em um núcleo
será reduzida novamente a 4C após a meio-
do ovócito II sofre um processo de replica- haploide. Portanto, as células
se I. Ao fim da meiose II, com a separação somáticas, diploides, possuem
ção gênica, restaurando a condição diploi-
das 4 células-filhas, cada núcleo possuirá um uma quantidade de DNA 2C.
de, possibilitando o seu desenvolvimento.
número diploide de cromossomos. Este ga- Após a duplicação do material
O embrião herdará apenas um conjunto de genético, a quantidade de DNA
meta se desenvolverá, então, em um embrião
cromossomos, paterno ou materno, em ho- presente no núcleo dessas
diploide.
mozigose. células será 4C.
O mecanismo de duplicação celular pré-
Ao longo do processo meiótico, a diploidia
meiótica pode, ainda, levar a duas situações
pode ser restaurada por dois mecanismos
diferentes, a depender do tipo de pareamen-
distintos: a fusão central ou a fusão termi-
to dos cromossomos, na metáfase I. Caso
nal. A fusão central (4b) compreende a fu-
ocorra o pareamento de cromossomos ho-
são entre o ovócito I e o corpúsculo polar I,
mólogos, poderá ocorrer crossing-over entre
produzido ao final da meiose I. Logo após a
cromátides de cromossomos diferentes, o
ocorrência da fusão, ocorre uma divisão celu-
que poderá acarretar o aparecimento da ho-
lar sem pareamento de cromossomos homó-
mozigose no embrião (Figura 5a).
logos na metáfase, o que leva a um processo
semelhante à mitose. Portanto, a heterozi- Por outro lado, caso ocorra pareamento de
gose é preservada e a constituição genética cromossomos-irmãos (resultantes da dupli-
da prole pode ser idêntica ou aproximada à cação pré-meiótica), os quiasmas do cross-
da mãe, o segundo caso exemplificado pela ing-over ocorrerão entre cromátides-irmãs,
ocorrência de crossing-over. que possuem os mesmos alelos. Sendo assim,
não haverá recombinação gênica, permitindo
Na fusão terminal (4c) o ovócito II e o cor-
a manutenção da heterozigose nas gerações
púsculo polar II fundem-se ao final da meio-
futuras (Figura 5b).
se II. Nessa fase da meiose, apenas metade
do material genético materno inicial está Pode-se perceber que a constituição genética
presente no ovócito II. Ao se fundir com o dos descendentes não será sempre idêntica à
corpúsculo polar II, que apresenta o mesmo da mãe, dependendo do tipo de mecanismo
conjunto de cromossomos, o ovócito II resta- citogenético responsável pela partenogênese
belece a diploidia. Por se tratar de fusão ter- em determinada espécie. Assim, contrarian-
minal, na qual o conjunto de cromossomos do o esperado em uma reprodução sem fe-
2n é a duplicação de um conjunto n presente cundação, uma considerável variabilidade ge-
na célula germinativa inicial, a homozigose é nética pode ser observada na prole originada
bastante preservada, ocorrendo heterozigose em um processo de partenogênese.

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Genética na Escola – ISSN: 1980-3540

Figura 5.
Diferença no genótipo final dos indivíduos originados do processo de duplicação pré-
meiótica, de acordo com o tipo de pareamento na Metáfase I. Caso ocorra pareamento
de cromossomos-homólogos (Figura 5a), poderá haver o aparecimento de homozigose
na prole, em consequência do processo de recombinação gênica, possibilitando o
aumento da variabilidade genética nas gerações seguintes. Em caso de pareamento de
cromossomos-irmãos (Figura 5b), a heterozigose é preservada na prole pois o crossing-
over não gerará recombinação gênica.

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CONCEITOS EM GENÉTICA

ECOLOGIA E EVOLUÇÃO Em ambientes extremos, que apresentam


escassez de água, grandes variações de tem-
O conceito biológico de espécie mais am- peratura ou grandes altitudes, espécies parte-
plamente aceito no meio científico postula nogenéticas são mais comumente encontra-
que espécies são agrupamentos de popula- das que as espécies bissexuadas do mesmo
ções naturais, reprodutivamente isoladas de gênero e evolutivamente mais próximas, o
outros grupos semelhantes que se cruzam. que sugere que a partenogênese apresente
Por “reprodutivamente isoladas” compreen- vantagens adaptativas aos indivíduos que
demos que espécies diferentes não seriam colonizam esses ambientes. Esse fenômeno,
capazes de realizar cruzamento ou produ- conhecido como partenogênese geográfica,
ziriam indivíduos inférteis. Entretanto, esse geralmente é visto como uma forma da es-
conceito não pode ser generalizado para pécie partenogenética “escapar” da competi-
todos os grupos de seres vivos. Como visto ção com as espécies bissexuadas que teriam
anteriormente, o processo de hibridização melhor capacidade adaptativa. Entretanto,
em diversos taxa pode gerar indivíduos fér- essa hipótese não considera as primeiras in-
teis que se reproduzem, em sua maioria, por terações competitivas com antepassados bis-
partenogênese. sexuados imediatos dos quais essas espécies
Segundo Ridley, 2008, os híbridos seriam se originaram, responsáveis pelo estabeleci-
geralmente estéreis ou possuiriam aptidão mento dos caminhos biogeográficos que as
reduzida. Os fatos que compilamos nesta mesmas seguiram. Espécies híbridas - Espécies
revisão, entretanto, sugerem um novo olhar No processo de colonização de novos am-
originadas do cruzamento
evolutivo sobre o processo de hibridização, entre duas espécies diferentes.
bientes, a partenogênese pode ser vantajosa Para que o híbrido seja
uma vez que algumas espécies híbridas, sobre a reprodução sexuada, pois permite a considerado numa nova
originadas há milhões de anos, possuem multiplicação da espécie a partir de um único espécie, é necessário que
populações estáveis atualmente, reprodu- indivíduo sexualmente maduro do sexo fe- consiga se reproduzir, deixando
zindo-se por partenogênese. É o caso do descendentes férteis.
minino. Além disso, na ausência de machos,
lagarto Leposoma percarinatum. Estima-se seja em ambiente natural ou em cativeiro,
que a diversificação das linhagens diploide e reproduzir-se partenogeneticamente garante
triploide dessa espécie aconteceu entre 5,7 a a manutenção da espécie por algumas gera-
2,8 milhões de anos, e por não haver registro ções, revelando-se, assim, uma vantagem re-
da sua linhagem ancestral, os pesquisadores produtiva importante que também deve ser
acreditam que ela já esteja extinta. considerada. Coevolução - Evolução
Linhagens partenogenéticas também são interdependente de duas ou
vistas pelos evolucionistas como “becos sem CONSIDERAÇÕES FINAIS mais espécies, possibilitada
pelas interações ecológicas
saída”, pois a ausência de recombinação e A partenogênese é mais um modo de repro- existentes entre elas.
fluxo gênico entre os indivíduos interferiria dução em animais, tão bem estabelecida em
no processo biológico de eliminação de mu- algumas espécies quanto os tipos mais con-
tações deletérias, bem como restringiria se- vencionais de reprodução sexual e assexual, e
veramente a plasticidade fenotípica, essencial é consequência de mecanismos citogenéticos
na adaptação às mudanças ambientais. En- diversificados. A discussão sobre as implica-
tretanto, diversas espécies partenogenéticas ções ecológicas e evolutivas da partenogênese
possuem populações numerosas, distribui- permitem um novo olhar sobre a importân-
ções geográficas mais abrangentes do que as cia desse tipo de reprodução. Apesar das co-
espécies bissexuadas mais próximas e fenó- nhecidas vantagens da reprodução sexuada,
tipos generalistas que permitem a adaptação espécies que se reproduzem por partenogê-
em ambientes diversos. A ameaça de extinção nese aparentam estar adaptadas. Algumas
em certas espécies partenogenéticas deve-se delas (como alguns ácaros exclusivamente
muito mais a perturbações genéticas prove- partenogenéticos) estão estabelecidas há
nientes do cruzamento das fêmeas dessas es- mais de 100 milhões de anos, o que contra-
pécies com machos de espécies bissexuadas diz a hipótese comum de que o aparecimen-
do que de menor adaptação ou ausência de to desse tipo de reprodução seria apenas um
habilidades coevolutivas. “acidente” genético.

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Genética na Escola – ISSN: 1980-3540

REFERÊNCIAS
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2003.

Sociedade Brasileira de Genética 13


CONCEITOS EM GENÉTICA

Epigenética:
conceito,
mecanismos
e impacto
em doenças
humanas

Maria Prates Rivas1,2, Anne Caroline Barbosa Teixeira1,


Ana Cristina Victorino Krepischi1
1
Universidade de São Paulo, Instituto de Biociências, Departamento de Genética e
Biologia Evolutiva, São Paulo, SP
2
Programa de pós-graduação, Departamento de Genética e Biologia Evolutiva, IBUSP,
Universidade de São Paulo. Rua do Matão, 14, CEP 05508-090, São Paulo, SP.

Autor para correspondência - ana.krepischi@ib.usp.br

14 Genética na Escola | Vol. 14 | Nº 1 | 2019


Genética na Escola – ISSN: 1980-3540

O genoma é a base a partir da qual as dife-


renças de características entre organis-
mos se estabelecem. Entretanto, nem todas
as diferenças dentro de uma mesma espécie e
indivíduo podem ser explicadas apenas pela
combinação de variantes genéticas. Anali-
sando um mesmo indivíduo, por que células
que carregam genoma idêntico, são diferen-
tes morfológica e funcionalmente? Para res-
ponder algumas questões como essas, apre-
sentamos aqui o conceito de Epigenética e
seus mecanismos, explorando seu papel no
desenvolvimento embrionário e na regulação
da expressão gênica Está em foco neste es-
tudo a associação entre exposição ambiental,
alterações epigenéticas e doenças humanas.

Sociedade Brasileira de Genética 15


CONCEITOS EM GENÉTICA
Fenótipo é a característica

A vida é caracterizada por imensa diversi-


dade. Existem diferenças evidentes das
características de diferentes espécies, mas
“o estudo das alterações na função do gene que
podem ser herdadas por mitose ou meiose e que
não envolvem mudança na sequência de nucleo-
observável de um organismo;
resulta da interação entre a
expressão do genótipo e fatores
ambientais.
também entre indivíduos de uma mesma tídeos do DNA” (WU; MORRIS, 2001). É
espécie, como, por exemplo, as variações na importante salientar que faz parte do concei-
altura, cor dos olhos e peso em seres huma- to de epigenética a reversibilidade; ou seja,
nos. Na atual era pós-genômica, as diferentes os fenótipos diferentes produzidos a partir
manifestações de uma mesma característica da mesma sequência de DNA por meio de
(fenótipo) são frequentemente atribuídas modificações epigenéticas são potencialmen-
a variações na sequência de nucleotídeos da te reversíveis, uma vez que não há mudança
molécula de DNA (genótipo), com contri- na sequência dos nucleotídeos do DNA. Genótipo é a composição
buição de fatores ambientais em diferentes Portanto, as marcas epigenéticas não são genética de um indivíduo; em
níveis. De fato, o genoma humano em suas fixas e podem ser modificadas. geral, referindo a um gene
específico.
diferentes versões, que resultam de eventos
Essas marcas epigenéticas são modificações
de mutação e de recombinação, é a base a
bioquímicas nos nucleotídeos da molécula
partir da qual as diferenças fenotípicas entre Marcas epigenéticas são
de DNA ou em outros elementos que com- modificações bioquímicas na
seres humanos se estabelecem. Entretanto,
põem a cromatina. As marcas epigenéticas molécula de DNA ou em outros
nem todas as diferenças podem ser explica-
principais compreendem modificações de elementos que compõem a
das apenas pela combinação de variantes cromatina.
aminoácidos localizados nas proteínas histo-
genéticas. Por exemplo, se todas as células
nas (que fazem parte da cromatina) e modi-
de um mesmo indivíduo carregam genoma
ficações covalentes nos nucleotídeos. De ma- Cromatina é uma estrutura
idêntico, como podem existir os diferentes
neira geral, essas marcas regulam o acesso da formada principalmente por
tipos celulares que constituem o corpo hu- uma molécula de DNA e
maquinaria de transcrição de RNA à sequên-
mano, com fenótipos tão distintos quanto o proteínas associadas.
cia dos genes, promovendo ou impedindo o
de uma célula de retina e uma de fígado?
processo. O conjunto de marcas epigenéticas
O processo de aquisição de um fenótipo de uma célula é chamado de epigenoma. Esse Variantes genéticas são
específico por cada tipo celular chama-se epigenoma estabelece diferentes formas de diferenças na sequência de
diferenciação celular. Esse fenótipo ou iden- acesso à informação contida no DNA, pos- nucleotídeos entre indivíduos.
tidade celular deve ser mantido durante a sibilitando que, após a fertilização, o zigoto
vida útil da célula e também ser transmiti- com um único genoma dê origem aos mais
do às suas células-filhas durante as divisões de 200 tipos celulares do corpo de um ser
celulares subsequentes. O estabelecimento e humano. Outro nível de modulação das mar-
manutenção dessa diversidade de fenótipos cas epigenéticas decorre da interação do ge-
são alcançados de maneira independente noma de um organismo com o meio ambien-
da sequência de DNA, por meio de marcas te interno e externo ao longo da vida, levando
no genoma que modificam sua expressão. ao estabelecimento de epigenomas diversos e
Essa identidade celular estável, transmitida em constante adaptação. Um exemplo des-
através das divisões celulares, sem altera- se nível de atuação da epigenética pode ser
ção na sequência de DNA, bem como suas observado em gêmeos monozigóticos, que
modificações em resposta ao ambiente e a carregam genomas idênticos e, no entanto,
estados patológicos, é o objeto de estudo da exibem algumas diferenças fenotípicas, que
epigenética. se acentuam com o passar dos anos; gêmeos Epigenética é o estudo das
monozigóticos têm genomas idênticos, mas alterações na expressão do
Conrad Waddington introduziu o termo gene que podem ser herdadas
seus epigenomas são diferentes.
epigenética em 1942, tendo definido como por mitose ou meiose e que
“ramo da biologia que estuda as interações ca- 1. MECANISMOS não envolvem mudança na
suais entre genes e seus produtos que trazem o sequência de nucleotídeos do
fenótipo ao ser” (WADDINGTON, 1942).
EPIGENÉTICOS DNA, sendo potencialmente
reversíveis.
No sentido original desta definição, epigené- MAIS ESTUDADOS
tica se refere ao estudo de todas as vias mole- 1.1. Metilação de DNA Metilação de DNA é a
culares que modulam a expressão dos genes reação química que consiste
para resultarem num determinado fenótipo. A metilação de DNA é uma das modifica- na adição de um grupo metila
Atualmente, a epigenética é definida como ções epigenéticas mais estudadas em orga- (-CH3) a um nucleotídeo da
molécula de DNA.

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Genética na Escola – ISSN: 1980-3540

Heterocromatina -
segmentos de cromatina nismos uni e multicelulares. Nos eucariotos, histonas (H2A, H2B, H3 e H4) associado
altamente condensada. a metilação do DNA ocorre principalmente a uma sequência de DNA de cerca de 147
nas bases do tipo citosina, as quais são con- pares de bases, que está enrolada sobre esse
vertidas em 5-metilcitosina (5mC) pelas octâmero (figura 1B). A molécula de DNA
enzimas DNA-metiltransferases (DNMT). organizada em nucleossomos forma a cro-
As citosinas metiladas (5-metil-citosinas) matina, que não é uniforme em estrutura,
usualmente (mas não exclusivamente) estão apresentando segmentos altamente conden-
adjacentes a um nucleotídeo de guanina (di- sados (heterocromatina) e outros menos
Dinucleotídeos CpG - nucleotídeos CpG), resultando em duas ci- compactados, na eucromatina. Esse grau
sequência de DNA na qual tosinas metiladas localizadas diagonalmente de compactação da cromatina é dinâmico e
um nucleotídeo de citosina é uma à outra (figura 1A), uma em cada fita da sua conformação pode ser alterada em res-
seguido por um nucleotídeo
guanina, linearmente na direção
molécula de DNA. Os membros da família posta a sinais endógenos e exógenos.
5 '→ 3'. CpG é a abreviatura de enzimas DNMT agem de duas manei-
As histonas têm uma cauda terminal de ami-
de 5'-C-fosfato-G-3 ', isto é, ras principais: adicionando grupos metil na
citosina e guanina adjacentes
noácidos que fica exposta nos nucleossomos
sequência de DNA onde antes não havia
na mesma fita, unidas por um (figura 1B). As caudas têm aproximadamen-
metilação (metilação de novo), ou copiando
grupo fosfato. te 20-35 aminoácidos e são sujeitas a modi-
a metilação da fita de DNA molde para uma
ficações bioquímicas que afetam a atividade
nova fita complementar durante a replicação
transcricional dos genes associados. As di-
(metilação de manutenção), o que possibilita
ferentes modificações das histonas podem
a transmissão do padrão de metilação duran-
afrouxar ou estreitar a associação entre his-
Eucromatina - segmentos de te as divisões celulares. A metilação de DNA
tonas e DNA, facilitando ou restringindo o
cromatina menos compactados. é uma marca epigenética que pode ser reti-
acesso ao DNA dos fatores de transcrição
rada por enzimas específicas e também pode
e da maquinaria transcricional. Metilação,
ser perdida pela inibição da enzima DNMT
acetilação e fosforilação de histonas são
de manutenção.
algumas das modificações descritas como
Em mamíferos, a metilação pode estar con- marcas ativadoras ou silenciadoras da ex-
centrada em regiões do genoma nas quais há pressão gênica. Por exemplo, trimetilação
uma maior densidade relativa de dinucleo- da lisina 27 na histona H3 é encontrada nos
Ilhas CpGs - regiões do tídeos CpGs (ilhas CpGs), ou em CpGs nucleossomos que compõem a cromatina de
genoma nas quais há uma isolados distribuídos pelo genoma. A locali- genes inativos, enquanto a mesma modifica-
maior densidade relativa de zação da metilação na sequência de um gene ção em outra lisina (na posição 36) marca a
dinucleotídeos CpGs.
influencia o controle de sua expressão. Por cromatina associada a genes ativos.
exemplo, a metilação em região promotora
Cada marca isoladamente não confere ao
da transcrição bloqueia a transcrição e, por-
gene um estado de transcrição ativo ou ina-
tanto, reprime a expressão do gene; já a meti-
tivo; as modificações nas histonas compõem
lação no corpo do gene não tem esse efeito e,
um painel de marcas que é “lido” em conjun-
em alguns casos, pode até estimular a trans-
to por enzimas específicas (readers). A in-
crição e ter efeito na recomposição do RNA
trodução dessas modificações é efetuada por
Acetilação - reação que mensageiro daquele gene.
enzimas chamadas de “escritoras” (writers),
introduz um grupo funcional
acetila em resíduos de lisina 1.2. Modificações de que incluem metiltransferases (HMTs) e
na ramificação N-terminal das proteínas histonas acetiltransferases (HATs), responsáveis pela
histonas. metilação e acetilação de caudas de histonas,
Fosforilação - adição de um O conteúdo de DNA do genoma humano respectivamente. Da mesma forma que a me-
fósforo que pode ocorrer em encontra-se distribuído por 24 diferentes tilação de DNA, tais marcas epigenéticas de
todas as classes das histonas, cromossomos, os 22 autossomos acrescidos
em resíduos de serina e histonas são estáveis, mas podem ser rever-
dos cromossomos X e Y. Cada cromossomo síveis, e sua remoção é efetuada por enzimas
treonina.
contém uma única e longa molécula de DNA também específicas (erasers), como histona
que está associada a grupos de proteínas his- desmetiltransferases (HDMTs) e desacetila-
tonas, em estruturas chamadas nucleosso- ses (HDACs).
mos. Cada nucleossomo é constituído por
um octâmero de proteínas formado por duas Existem formas variantes de histonas que
cópias de cada um dos tipos de proteínas diferem em um ou poucos aminoácidos em

Sociedade Brasileira de Genética 17


CONCEITOS EM GENÉTICA

Figura 1.
Mecanismos de modificação
B epigenética: metilação de
DNA e modificações da cauda
de proteínas histonas. (A)
Metilação de nucleotídeos
citosina na molécula de DNA.
As citosinas (C) metiladas (Me)
usualmente estão adjacentes
a um nucleotídeo de guanina
(dinucleotídeo CpG), resultando
em duas citosinas metiladas
localizadas diagonalmente
uma à outra, uma em cada
fita da molécula de DNA. (B)
A molécula de DNA de cada
cromossomo está associada a
grupos de proteínas histonas,
formando estruturas chamadas
nucleossomos. O nucleossomo
é formado por uma sequência
de DNA de 147 pares de
bases (fita preta) que envolve
um octâmero de proteínas
formado por duas cópias de
cada uma das histonas H2A,
H2B, H3 e H4. A histona tem
uma cauda terminal (indicada
pelas fitas em azul) de 20-35
aminoácidos que fica exposta
no nucleossomo e é sujeita a
modificações bioquímicas, como
relação às histonas-padrão e que estão em em genes com alta atividade transcricional. metilação (verde) e acetilação
frequência muito menor na cromatina. Em Além desses processos universais, variantes (vermelho), entre outras. As
algumas regiões especiais da cromatina, as de histonas também estão relacionadas a diferentes modificações das
histonas podem afrouxar ou
histonas regulares são substituídas por essas fenômenos epigenéticos particulares, como estreitar a associação entre as
variantes mais raras. Essas variantes de his- a inativação de um dos cromossomos X em histonas e o DNA, facilitando
tonas fornecem um nível mais fundamental fêmeas de mamíferos. ou restringindo o acesso ao
de diferenciação da cromatina, fornecendo a DNA dos fatores de transcrição
base para processos epigenéticos, incluindo 2. EPIGENÉTICA E e da maquinaria transcricional;
dessa maneira, as modificações
segregação de cromossomos. A substituição DIFERENCIAÇÃO CELULAR de histonas afetam diretamente
da histona-padrão por uma variante é espe- Como os diferentes tipos celulares de um a atividade transcricional dos
cialmente importante nos centrômeros, nos genes associados.
mesmo indivíduo, com um genoma idên-
quais a histona H3 é substituída por sua va- tico, conseguem ser tão distintos? E como
riante CENP-A. Adicionalmente, as varian- essa memória celular é mantida ao longo Memória celular é o
tes de histonas também estão envolvidas nas das divisões celulares? Para responder essas conjunto de informações
propriedades epigenéticas de genes ativos; as questões é preciso considerar a combinação epigenéticas de uma célula
histonas H3.3 e H2A.Z (variantes de H3 e entre genoma e epigenoma.
que pode ser transmitido por
H2A, respectivamente) estão enriquecidas sucessivas divisões mitóticas.

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Genética na Escola – ISSN: 1980-3540

Nosso genoma carrega cerca de 20.000 genes sões celulares, indicando que a diferenciação
codificadores de proteína. Um tipo celular é celular é um processo unidirecional, em geral
definido pelo subconjunto de genes que es- não reversível. É importante mencionar que
tão ativos. Esse grupo de genes ativos e seus os tecidos mantêm uma espécie de reserva-
transcritos (RNA mensageiros) codificam os tório de células-tronco, ou seja, células não
componentes físicos e as proteínas necessá- diferenciadas que retêm a capacidade de se
rias para que cada célula execute sua função diferenciar nos diferentes tipos celulares da-
especializada. Os diferentes tipos celulares quele tecido, para reposição celular.
são estabelecidos durante o desenvolvimento
embrionário e mantidos através dos ciclos de 3. REGULAÇÃO E
divisão celular, perpetuando padrões espe- REPROGRAMAÇÃO
cializados de expressão gênica. EPIGENÉTICA NO
Dentre os diversos tipos celulares do corpo DESENVOLVIMENTO
humano há as células-tronco, caracterizadas
As marcas epigenéticas compõem a memó-
pela capacidade de auto-renovação, ou seja,
ria celular de modo a manter o padrão de
podem se multiplicar gerando células iguais
expressão gênica em células especializadas,
a si e, pelo potencial de diferenciação, são
preservando a identidade da linhagem ce-
capazes de originar diversos tipos celulares.
lular após consecutivas divisões mitóticas.
Em geral, as células-tronco são classificadas
Contudo, em dois momentos ao longo do
em embrionárias ou adultas. As primeiras
desenvolvimento o epigenoma é alterado de
são capazes de gerar qualquer tipo de célula
forma radical: após a formação do zigoto e na
do organismo e possuem alta capacidade de
formação dos gametas.
diferenciação (pluripotência). Já as células-
-tronco adultas são encontradas em maior Após a fusão dos gametas materno e pater-
quantidade na medula óssea e sangue do cor- no, os genomas de ambos permanecem fi-
dão umbilical, assim como em locais espe- sicamente separados no zigoto (pró-núcleo
cíficos dos órgãos, e apresentam capacidade masculino e feminino), submetidos a distin-
limitada de diferenciação, dando origem so- tas alterações no DNA e cromatina. Como
mente aos subtipos celulares de tecidos dos exemplo, o genoma de origem paterna sofre
Mórula é o primeiro estágio quais derivam. desmetilação de DNA ativa nas primeiras
da embriogênese, logo após a 24 horas pós fertilização, enquanto que o
fertilização, no qual o zigoto
Em geral, no início do desenvolvimento, há
genoma materno é desmetilado lentamente
sofre sucessivas clivagens até a a diminuição do nível global de metilação do
por mecanismo passivo, após sucessivas re-
formação do blastocisto. Este DNA nestas células, permitindo a expressão
estágio caracteriza-se por uma plicações. Este processo de desmetilação do
de genes associados à pluripotência, como
massa sólida com cerca de 12 a genoma ocorre entre os estágios de zigoto e
NANOG e POU5F1 (ou OCT4). Poste-
32 células. mórula, permitindo que as células mante-
riormente, os genes que são responsáveis por
nham características de totipotência. Já na
manter a pluripotência são reprimidos como
fase de blastocisto há o primeiro sinal de
resultado de um aumento da metilação do
diferenciação celular: a camada interna das
DNA, assim como há o aumento da expres-
células constitui o embrioblasto ou massa
são dos genes específicos de desenvolvimen-
celular interna, o qual dará origem ao em-
to em resposta à promoção da metilação da
brião propriamente dito, e a camada externa
H3K4 nos nucleossomos. Em consequência,
constitui o trofoblasto, que origina membra-
as células-tronco iniciam o processo de dife-
nas fetais e o saco vitelínico. A diferenciação
renciação celular, que culminará no acúmulo
entre esses dois tecidos na fase de blastocisto,
progressivo de marcas epigenéticas que pro-
compreende distintos eventos epigenéticos,
duzirão um padrão específico de expressão
que incluem diferenças no padrão de aceti-
Blastocisto é o segundo gênica para cada tipo celular.
lação e metilação e disponibilidade de fatores
estágio da embriogênese; esfera
oca de células embrionárias,
Ao final desse processo de estabelecimento de transcrição. Com o decorrer do desenvol-
conhecidas como blastômeros, da identidade funcional de cada tipo celular, vimento, marcas epigenéticas são subsequen-
em torno de uma cavidade a célula é referida como diferenciada. O pa- temente estabelecidas à medida que ocorrem
interna com fluido chamada drão de expressão gênica de uma célula dife- os processos de diferenciação e formação das
blastocele. renciada é mantido estável através das divi- linhagens que compõem o indivíduo.

Sociedade Brasileira de Genética 19


CONCEITOS EM GENÉTICA

Nas primeiras fases embrionárias são tam- do indivíduo, em decorrência da interação


bém formadas as células germinativas pri- com fatores ambientais. Durante o processo
mordiais, que darão origem aos gametas. A de maturação, os gametas adquirirão marcas
provável finalidade da reprogramação do epi- epigenéticas diferenciais, características do
genoma de gametas é a remoção de modifica- sexo feminino ou do sexo masculino, chama-
ções epigenéticas adquiridas durante a vida das de imprinting (figura 2).

Figura 2.
Regulação epigenética durante o desenvolvimento de mamíferos. O nível das marcas epigenéticas está
indicado pela gradação de cores das barras, sendo o tom mais escuro correspondente à maior quantidade da
marca; em vermelho, metilação de DNA, em azul, metilação da lisina 27 da histona 3 (H3K27) e em cinza,
metilação da lisina 4 da histona 3 (H3K4). No início da embriogênese (zigoto/mórula), ocorre grande perda
de metilação de DNA e os genes de diferenciação e desenvolvimento são reprimidos pela metilação da lisina
27 da histona 3 (H3K27 – marca de silenciamento gênico). Quando se inicia a diferenciação das células,
os genes associados à pluripotência são reprimidos por metilação de DNA. Ao mesmo tempo, os genes do
desenvolvimento começam a ser expressos e há um aumento na metilação da lisina 4 da histona 3 (H3K4 –
marca de atividade gênica). O desenvolvimento das células germinativas se inicia com ganho de metilação
de DNA; apenas os genes sujeitos a imprinting sofrem desmetilação, com consequente apagamento das
marcas dos genitores. Marcas como a metilação do H3K27 permitem que os genes de diferenciação e
Transposons - sequências de
DNA que tem capacidade de
desenvolvimento sejam silenciados por um curto período de tempo nas células germinativas primordiais.
autoreplicação e inserção em
Posteriormente, a metilação de DNA nas células germinativas permite o silenciamento estável de genes de
outros sítios do genoma, em
imprinting, transposons e alguns genes associados à pluripotência.
geral com atividade reprimida
por metilação de DNA.

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Genética na Escola – ISSN: 1980-3540

4. MECANISMOS cional até o silenciamento completo de um


dos cromossomos sexuais, como é o caso dos
EPIGENÉTICOS CLÁSSICOS humanos e todos os outros mamíferos pla-
DE REGULAÇÃO GÊNICA centários.
EM MAMÍFEROS: A inativação do cromossomo X é um fenô-
INATIVAÇÃO DO meno que ocorre no início do desenvolvi-
CROMOSSOMO X E mento embrionário em todas as células so-
máticas de fêmeas de mamíferos, no qual um
IMPRINTING
Inativação do dos cromossomos X é inativado de maneira
cromossomo X é o 4.1. Inativação do cromossomo X aleatória em cada célula; ou seja, as fêmeas
mecanismo epigenético de
Durante a evolução dos organismos, a aqui- são um mosaico formado por células com um
compensação de dosagem cromossomo X inativo, de origem materna
gênica entre os sexos feminino sição de um gene determinante do sexo em
e masculino de mamíferos. apenas um dos cromossomos de um par de ou de origem paterna. A metilação de DNA
homólogos resultou no surgimento de cro- é um fator crucial para a manutenção do es-
mossomos sexuais. Com o passar do tempo, tado inativo dos cromossomos X que foram
os cromossomos sexuais ficaram amplamen- silenciados aleatoriamente. Adicionalmente,
te diferentes um do outro. Esta dissimilari- a inativação do cromossomo X é também
dade entre os cromossomos sexuais origina mantida por modificações nas histonas que
uma desigualdade da dosagem gênica entre estão associadas ao silenciamento transcri-
os dois sexos. Diminuindo esse desequilíbrio cional.
Figura 3. entre a quantidade dos produtos gênicos en- A escolha de qual dos dois cromossomos
Corpúsculo de Barr. A
inativação do cromossomo X tre os dois sexos, muitas espécies têm meca- será inativado em cada célula ainda é objeto
é um fenômeno que ocorre nismos de compensação de dosagem de ge- de intenso estudo. O cromossomo X inati-
no início do desenvolvimento nes, com base epigenética. Esses mecanismos vo (Xi) pode ser visualizado ao microscópio
embrionário em todas as epigenéticos de compensação da dosagem como uma massa heterocromática (muito
células somáticas de fêmeas de
mamíferos (XX). Nas fêmeas,
dos genes localizados nos cromossomos se- corada) chamada de corpúsculo de Barr, lo-
apenas um cromossomo X xuais variam dentre as espécies, desde a sim- calizado na periferia do núcleo de células de
permanece ativo em cada ples regulação do nível da atividade transcri- fêmeas de mamíferos (figura 3).
célula e, portanto, um dos
cromossomos X é inativado
por meio da metilação do
DNA, de maneira aleatória
(X paterno ou materno). O
cromossomo X inativo (Xi)
pode ser visualizado ao
microscópio como uma massa
heterocromática (apontada
pelas setas nas células XX,
painel à direita), chamada de
corpúsculo de Barr, localizada
na periferia do núcleo celular.
As células somáticas de machos
de mamíferos (XY) carregam
apenas um cromossomo X
ativo em todas as células e não
possuem corpúsculo de Barr
(Figura adaptada de http:// 4.2. Imprinting genômico somos de origem paterna. Esse padrão de
www.mun.ca/biology/scarr/
expressão diferencial deste grupo particular
Barr_Bodies.html. Créditos: O imprinting genômico é um fenômeno que
© Steven M Carr, Terra Nova de genes, de acordo com a origem parental,
afeta aproximadamente 100 genes do geno-
Genomics, Inc.). decorre da existência de marcas epigenéticas
ma humano e resulta na expressão diferen-
que são estabelecidas nas células germinati-
cial destes genes de acordo com a origem
vas parentais. A diferença mais consistente
Imprinting genômico é o parental: apenas um dos alelos dos genes
padrão de expressão diferencial entre os alelos de um gene que sofre imprin-
que sofrem imprinting é expresso, alguns são
de um grupo particular de ting é na metilação do DNA, mas também
ativos apenas nos cromossomos de origem
genes de acordo com a origem ocorrem diferenças na conformação da cro-
parental do alelo. materna e outros ativos apenas em cromos-

Sociedade Brasileira de Genética 21


CONCEITOS EM GENÉTICA

matina, modificação das histonas, tempo de Além das síndromes conhecidas de defeitos
replicação e taxa de recombinação na meiose. de imprinting, há evidências crescentes de
Sabe-se que os genes que sofrem imprinting que existe expressão alterada dos genes de
têm atuação importante no desenvolvimento imprinting em uma ampla gama de doen-
pré-natal e também na biologia placentária, ças comuns, como restrição do crescimento
assim como também exercem efeitos im- intrauterino, obesidade, diabetes mellitus, Síndrome de Beckwith-
portantes no desenvolvimento, crescimen- transtornos psiquiátricos e câncer. Quanto Wiedemann - doença
to e sobrevivência pós-natal. Esse grupo de a essas doenças não-congênitas, em geral de caracterizada por aumento de
crescimento, predisposição
genes de imprinting está emergindo como manifestação tardia, é importante sempre tumoral e malformações
regulador-chave de processos metabólicos relembrar que qualquer característica (fenó- congênitas.
em bebês e adultos; podem influenciar a ma- tipo) é resultado da interação entre variantes Síndrome de Prader-Willi
nutenção da temperatura corporal, ingestão genéticas (genótipo) e o ambiente. Atual- - hipotonia grave e dificuldades
de alimentos e adiposidade, agindo em vários mente, há um considerável interesse em sa- alimentares no início da
tecidos e vias. ber como os fatores ambientais atuam no infância, seguidos de ingestão
excessiva de alimentos,
genoma para influenciar o fenótipo por meio
5. DOENÇAS HUMANAS da modulação de marcas epigenéticas. Nos
obesidade mórbida e atraso
cognitivo, em geral moderado.
E ALTERAÇÕES últimos anos, várias pesquisas examinaram a Síndrome de Angelman
EPIGENÉTICAS relação entre exposição a fatores ambientais e - deficiência intelectual grave,
mudanças do epigenoma, incluindo poluen- convulsões, microcefalia
Distúrbios no epigenoma podem resultar tes químicos, nutrição, alterações de tempe- pós-natal e características
na ativação ou inibição de genes de maneira ratura, estresse, nível de atividade física, ciclo dismórficas faciais distintas.
inapropriada; deste modo, a fisiologia celu- circadiano, tabagismo e consumo de álcool,
lar normal é alterada, o que pode ocasionar entre outros.
o desenvolvimento de patologias, congênitas
ou adquiridas. Evidências crescentes mostram que as mar-
cas epigenéticas conhecidas, como metilação
Defeitos de imprinting genômico são causa de DNA e modificações de histonas, são in-
de condições congênitas que afetam o cres- fluenciadas por fatores exógenos. A relação
cimento e desenvolvimento, como as síndro- entre a fumaça do tabaco e a alteração da me-
mes de Beckwith-Wiedemann, Prader- tilação do DNA parece particularmente re-
-Willi e Angelman, por exemplo. Em casos levante, dado que vários genes supressores de Hipometilação - nível de
como a síndrome de Beckwith-Wiedemann, tumor mostram um aumento de metilação metilação diminuído em relação
a hipometilação do gene IGF2 por causa de em células normais de pulmão de fumantes ao tecido controle.
um defeito de imprinting resulta no aumento e ex-fumantes, o que poderia levar a uma di- Síndrome de Silver-
da expressão deste gene durante o período minuição de sua expressão. Os mecanismos Russell - baixa estatura
pré-natal, ocasionando o hipercrescimento subjacentes permanecem amplamente des- proporcional, dismorfismos
característico dos pacientes. Por outro lado, conhecidos, mas se espera que a epigenética faciais, assimetria de membros,
na síndrome de Silver-Russell, caracteriza- ajude a trazer uma compreensão mais com-
risco significativo de atraso no
da por crescimento diminuído, há alterações desenvolvimento (tanto motor
pleta das respostas individuais ao ambiente quanto cognitivo) e dificuldades
no perfil de metilação, também decorrentes e a fatores de risco, em combinação com as de aprendizagem.
de defeitos de imprinting, que resultam na diferenças genéticas. Síndrome ICF
diminuição da expressão do gene IGF2 no (imunodeficiência, instabilidade
período pré-natal. Modificações epigenéti- Um perfil epigenético específico foi obser-
da região centromêrica e
cas congênitas também podem ocorrer por vado em pacientes com doenças neurodege- anomalias faciais): doença
alterações em genes relacionados à maqui- nerativas, como a hipometilação e alteração autossômica recessiva
naria epigenética, como exemplo a hipome- na expressão gênica em Alzheimer e Par- rara caracterizada por
kinson; outros estudos também evidenciam imunodeficiência e anomalias
tilação global observada na Síndrome ICF faciais.
(imunodeficiência, instabilidade da região modificações no perfil epigenético em pes-
centromêrica e anomalias faciais), que é cau- soas com esquizofrenia e com doença de
sada por mutação em um gene que codifica Huntington, dentre outras doenças. Alte- Doença de Huntington
rações epigenéticas também são descritas em - doença neurodegenerativa
uma das enzimas que adicionam metilação
diabetes, doenças autoimunes como lúpus progressiva rara do sistema
ao DNA (DNMT3B). nervoso central caracterizada
por movimentos coreicos,
alterações comportamentais e
psiquiátricas e demência.

22 Genética na Escola | Vol. 14 | Nº 1 | 2019


Genética na Escola – ISSN: 1980-3540

e artrite reumatoide, doenças pulmonares e acessibilidade da cromatina, que são defini-


como asma, assim como no desenvolvimen- das por mecanismos epigenéticos como mo-
to de doenças cardiovasculares e obesidade. dificações de histonas, metilação de DNA e
Em todas essas doenças de desenvolvimen- reposicionamento de nucleossomos.
to lento e gradual, com manifestação tardia,
Aberrações epigenéticas foram descritas em
muito provavelmente os fatores de risco já
praticamente todos os tipos tumorais, entre
conhecidos, como alimentação, sedentaris-
eles, câncer hepático, de mama, de cólon,
mo, tabagismo, poluição e estresse, atuam
endométrio, do sistema nervoso, de pele,
em conjunto para produzir alterações das
esôfago, bexiga, leucemias etc. Em relação à
marcas epigenéticas que contribuirão para o
metilação de DNA, o padrão em células de
Instabilidade genômica desenvolvimento do fenótipo.
câncer, quando comparadas às células oriun-
- alta frequência de mutações
no genoma, que podem incluir 5.1. Epigenética do câncer das de tecidos normais, é bastante caracte-
alterações nas sequências de rístico e bem documentado, sendo descrito
O câncer se desenvolve a partir do acúmulo
ácidos nucleicos, rearranjos de forma resumida como aumento de meti-
cromossômicos e aneuploidias. de mutações genéticas em células somáticas,
lação em regiões promotoras da expressão
ao longo de um período extenso de tempo,
de genes supressores tumorais, levando ao
em geral décadas. Atualmente, a interação
silenciamento gênico, e perda de metilação
entre processos genéticos e alterações epi-
em sequências repetitivas (hipometilação
genéticas é considerada a chave para o de-
global do genoma) (figura 4), o que ocasiona
senvolvimento tumoral, resultando em ex-
instabilidade genômica. Alterações nas
pressão anormal de genes importantes para
histonas também são prevalentes em câncer,
proliferação celular (proto-oncogenes) e
como perda ou modificação dos marcadores
controle do ciclo celular (supressores tumo-
de repressão e ativação gênica. Assim, modi-
rais). Além de mutações em proto-oncoge-
ficações do perfil epigenético do DNA em
nes e supressores tumorais, a tumorigênese é
células neoplásicas é de grande relevância na
modulada por modificações na compactação
gênese e progressão tumoral.

Figura 4.
Epigenética e câncer. O painel superior indica a situação em células normais e, abaixo,
as modificações epigenéticas identificadas em células tumorais. Genes supressores de
tumor estão ativos (retângulo verde) em células normais; no câncer, estes genes podem
ser silenciados pelo ganho de metilação em citosinas localizadas em ilhas CpG na sua
região promotora (pirulitos brancos denotam citosinas não metiladas, pirulitos vermelhos,
citosinas metiladas) e essa hipermetilação de promotor gênico ocasiona silenciamento da
transcrição do gene associado (retângulo vermelho). Em sequências repetitivas de DNA
(retângulos em azul), que normalmente estão metiladas em células normais, ocorre perda
de metilação em células tumorais (hipometilação global do genoma).

Sociedade Brasileira de Genética 23


CONCEITOS EM GENÉTICA

6. HERANÇA EPIGENÉTICA estresse. Sessenta anos depois, descobriu-se


que o gene do fator de crescimento 2 (IGF2),
Como discutido até agora, as marcas epige- semelhante à insulina, apresentava perda de
néticas contribuem para a memória celular metilação nesses indivíduos (filhos), em con-
de modo a manter o padrão de expressão traste com seus irmãos do mesmo sexo que
gênica em células especializadas, preservan- não foram expostos a essa privação nutricio-
do a identidade da linhagem celular após nal durante a gestação. Essa exposição pe-
consecutivas divisões mitóticas. Um mo- ri-concepcional reforça o importante papel
mento primordial de mudança programada do ambiente na modulação do epigenoma e
do epigenoma ocorre na formação das cé- suas consequências na saúde humana. Ain-
lulas germinativas (gametas). A reprogra- da mais interessante foi a observação de que
mação epigenética em gametas ocorre para filhos desses filhos de mulheres desnutridas
apagamento de marcas de imprinting pré- durante os três primeiros meses de gesta-
-existentes e estabelecimento das marcas de ção também sofreram alguns desses efeitos,
imprinting de acordo com o sexo do indiví- como suscetibilidade a diabetes e obesidade.
duo. Adicionalmente, muito provavelmente Isto poderia ser explicado pela exposição das
a reprogramação é importante para remoção células germinativas (gametas) dos fetos das
de modificações epigenéticas adquiridas pelo mulheres que sofreram desnutrição logo no
indivíduo, em decorrência da interação com início da gestação. Dessa forma três gerações
fatores ambientais. são expostas e afetadas pela mesma condição
A pergunta fundamental entre os pesqui- ambiental, seja dieta, toxinas, hormônios,
sadores é: será que, ocasionalmente, marcas entre outros (figura 5). Herança epigenética
epigenéticas adquiridas ao longo da vida de transgeracional: transmissão
A fim de analisar efeitos na prole associados
um indivíduo podem ser transmitidas atra- de algumas marcas epigenéticas
a comportamentos paternos, estudo realiza- adquiridas ao longo da
vés das células germinativas, como resultado do na Inglaterra com 116 homens fumantes vida através das células
de um apagamento incompleto? Existiria a desde os 11 anos observou que seus filhos germinativas.
chamada herança epigenética transge- são mais propensos a ter aumento de massa
racional? corporal aos nove anos, em relação a filhos
Durante o século XX, uma subpopulação de pais que começaram a fumar com idade
europeia foi submetida a grave restrição caló- mais avançada (PEMBREY et al., 2006).
rica por razões históricas. Esse evento repre- Ainda no mesmo estudo, ao investigar re-
sentou um modelo para estudar em huma- gistros de colheitas de uma população isola-
nos o impacto transgeracional do ambiente da no norte da Suécia (Överkalix) do século
externo: a relação entre dieta, epigenética e XIX e comparar com os dados dos mora-
expressão gênica (RAVELLI et al., 1976). A dores, foi observado que indivíduos com
chamada fome holandesa ou Hongerwinter avós paternos com maior ingestão calórica
(inverno da fome) começou em 1944, após na adolescência tinham risco aumentado de
a Segunda Guerra Mundial, devido ao for- mortalidade comparado aos indivíduos com
necimento limitado de alimentos a algumas avós paternos submetidos a restrição de ali-
regiões da Holanda ocupadas pelos nazis- mentos.
tas. Como consequência, até maio de 1945, Embora a manutenção, assim como o apa-
quando o país foi libertado, uma grave res- gamento de marcas epigenéticas adquiridas,
trição de ingestão calórica afetou essas po- possa ter efeitos benéficos e deletérios, não se
pulações, incluindo mulheres grávidas e seus sabe ainda até que ponto tais marcas podem
filhos no útero em diferentes estágios da ges- ser mantidas entre gerações nos mamíferos.
tação. As crianças nascidas durante ou logo Por causa dos eventos de reprogramação
após a fome holandesa apresentaram baixo epigenética durante o desenvolvimento das
peso e propensão a intolerância à glicose ao células germinativas e embriogênese preco-
nascer; na fase adulta, esses indivíduos eram ce, acredita-se que os estados epigenéticos
mais suscetíveis a diabetes, obesidade, doen- adquiridos raramente são passados para a
ça coronariana, coagulação sanguínea altera- progênie. Entretanto, o fato de que as marcas
da, doença renal e aumento da resposta ao de imprinting materno e paterno são reco-

24 Genética na Escola | Vol. 14 | Nº 1 | 2019


Genética na Escola – ISSN: 1980-3540

nhecidamente mantidas durante a embriogê-


nese inicial destaca que algumas sequências
podem escapar dos eventos de reprograma-
ção epigenética. Em todas as observações já
documentadas de possível transmissão de in-
formação epigenética pelos gametas, os me-
canismos são ainda pouco compreendidos.
Evidências científicas robustas acerca dessa
herança epigenética em humanos ainda estão
sendo coletadas.

Figura 5.
Herança epigenética
transgeracional em humanos.
Evidências crescentes mostram
que as marcas epigenéticas
conhecidas, como metilação
de DNA e modificações de
histonas, são fortemente
influenciadas por fatores
exógenos. O efeito da
exposição peri-concepcional
a fatores que podem modular
o epigenoma vem sendo
estudado nas últimas décadas.
As condições ambientais a que
mulheres grávidas são expostas
podem modificar não apenas
o epigenoma da gestante
(1ª geração), como também REFERÊNCIAS WU, C. T., MORRIS, J. R. Genes, genetics, and epi-
genetics: A correspondence. Science v. 293, n.
o epigenoma do feto (2ª
PEMBREY, M. E., BYGREN, L. O., KAATI, G., 5532, p.1103-1105, 2001.
geração), incluindo suas células
EDVINSSON, S., NORTHSTONE, K.,
germinativas (que darão origem
à 3ª geração). Desta forma,
SJÖSTRÖM, M., GOLDING, J. Sex-specific, PARA SABER MAIS
male-line transgenerational responses in humans.
três gerações seriam expostas MESSERSHMIDT, D. M., KNOWLES, B. B.,
European Journal of Human Genetics v. 14, p. 159-
à mesma condição ambiental SOLTER, D. DNA methylation dynamics
166, 2006.
(tabaco, dieta, toxinas, during epigenetic reprogramming in teh germline
hormônios, medicamentos, RAVELLI, G.-P., STEIN, Z. A., SUSSER, M. W. and preimplantation embryos. Genes and Devel-
nível de atividade física, entre Obesity in Young Men after Famine Exposure in opment v. 28, p. 812-828, 2014.
outros), mudando o epigenoma Utero and Early Infancy. New England Journal of
e com potencial impacto na Medicine v. 295, n. 7, p. 349-353, 1976.
saúde (Figura adaptada de
WADDINGTON, C. H. (1942). The epigenotype.
https://learn.genetics.utah.
1942. International Journal of Epidemiology, 41(1),
edu/content/epigenetics/
10–13, 1942.
inheritance/).

Sociedade Brasileira de Genética 25


GENÉTICA E SOCIEDADE

Medicina
Regenerativa
e Engenharia
de Tecidos

Gabriel Levin1, Gustavo Gross Belchior2, Mari Cleide Sogayar1, Ana Claudia O. Carreira1,3
1
Universidade de São Paulo, Faculdade de Medicina, NUCEL (Núcleo de Terapia Celular e Molecular),
Departamento de Clínica Médica, São Paulo, SP
2
Core-Us Comunicação Científica, SP
3
Universidade de São Paulo, Faculdade de Medicina Veterinária e Zootecnia, Departamento de Anatomia
dos Animais Domésticos e Silvestres, São Paulo, SP

Autor para correspondência - ancoc@iq.usp.br

26 Genética na Escola | Vol. 14 | Nº 1 | 2019


Genética na Escola – ISSN: 1980-3540

A Medicina Regenerativa é uma área que vem se de-


senvolvendo cada vez mais no contexto da Biome-
dicina, baseando-se na utilização de células vivas para
a regeneração ou reposição de tecidos e órgãos lesados
com o objetivo de restabelecer as funções normais do
organismo. Esta área vem tendo um impacto enorme na
Medicina Humana e Veterinária e certamente merece
ser melhor compreendida. Dessa forma, neste artigo o
tema Medicina Regenerativa será analisado, sendo abor-
dado desde o surgimento e histórico do desenvolvimento
da área aos princípios básicos da Engenharia de Tecidos
para a construção de órgãos e as aplicações destas novas
tecnologias para o tratamento de doenças e injúrias.

Sociedade Brasileira de Genética 27


GENÉTICA E SOCIEDADE

ENGENHARIA TECIDUAL: - A orelha engenheirada crescida sobre o


dorso de um camundongo, em 1997, foi
HISTÓRICO um experimento conduzido pelo grupo

D evido à escassez de órgãos para doação,


a Engenharia Tecidual tem um papel
fundamental no desenvolvimento de novos
do Dr. Charles Vacanti, considerado um
dos pais da Engenharia Tecidual. Esse
episódio teve um grande impacto quan-
tecidos e órgãos para serem utilizados em do de sua divulgação, pelo forte apelo da
transplantes, diminuindo assim o tempo de imagem do camundongo portando uma
espera dos pacientes pelos órgãos doados e orelha humana em seu dorso, amplamente
contribuindo para um aumento de sobrevida noticiado na época. A orelha em questão
e qualidade de vida dos pacientes. foi produzida a partir de células cartila-
Apesar dos primeiros relatos históricos da- ginosas, obtidas de vaca, crescidas sobre
tarem de meados do século XV, as primeiras uma matriz artificial no formato de orelha
tentativas realmente significativas de recons- e implantada sobre a pele do camundongo
trução de novos tecidos foram feitas na dé- para maturação.
cada de 1970. Nessa iniciativa, o objetivo foi
gerar uma nova cartilagem a partir de células CONSTRUINDO
cartilaginosas colocadas sobre uma matriz ós- TECIDOS E ÓRGÃOS
sea, implantando o tecido em camundongos,
O objetivo final de um tecido engenheirado é
porém sem sucesso. Entretanto, a Engenharia
reparar, manter ou melhorar a função de um
Tecidual como uma área científica moderna
tecido (ou órgão) que se encontra danifica-
só passou a existir a partir de meados da dé-
do por uma doença, que pode ser congêni-
cada de 1980 e teve a região de Boston, EUA,
ta (manifestada durante o desenvolvimento
como epicentro. Na ocasião, pesquisadores
do embrião ou nascimento), como estenose
passaram a ter a compreensão de que células
traqueal (estreitamento da traqueia), ou ad-
viáveis poderiam ser semeadas em estruturas
quirida, como valvopatias (problemas nas
artificiais biodegradáveis e biocompatíveis –
válvulas cardíacas), ou mesmo quando hou-
denominadas arcabouços, que poderiam ser
ve a ocorrência de algum tipo de trauma,
manipulados e confeccionados de acordo com
como queimaduras ou amputações. Trata-
as necessidades específicas de cada tratamen-
-se de uma engenharia pois o novo tecido é
to. Já nos anos 1990, o número de centros de
literalmente construído e implantado a fim
pesquisa nos EUA e Europa, trabalhando na
de ter, idealmente, a mesma forma e função
área, aumentou consideravelmente; em se-
do tecido original que não mais executa sua
guida, disseminou-se também para o Japão e
função biológica como deveria. Esse proces-
a China. Por fim, a ampliação da área culmi-
so de construção não é nada simples e exige
nou, em 1994, na criação de uma sociedade
a convergência de conhecimentos de diversas
internacional dedicada ao tema, a Sociedade
áreas. Engenheirado - tecido
de Engenharia Tecidual e Medicina Regene-
biológico produzido
rativa (TES – do inglês Tissue Engineering A construção de uma nova parte do corpo, artificialmente a partir de
Society) e no jornal Tissue Engineering. para substituir um tecido ou órgão lesado, células vivas.
começa com a identificação precisa do lo-
Outros marcos importantes na história da
cal da lesão, bem como sua extensão. Com-
Engenharia Tecidual foram:
preender perfeitamente a biologia do tecido
- O primeiro implante de tecido biológico sadio é essencial para que o produto final
produzido artificialmente a partir de célu- engenheirado desempenhe suas funções da
las vivas, “engenheirado”, em um pacien- forma mais fiel àquela de um organismo sau-
te humano, ocorreu em 1991. Naquela dável. A partir dessas informações, três com-
ocasião, o paciente, que era portador da ponentes principais, considerados os pilares
Síndrome de Polands (uma malformação da Engenharia de Tecidos, são necessários
congênita da caixa torácica e ausência de para produzir um novo tecido: as células, o
esterno) recebeu um novo esterno enge- arcabouço que sustentará essas células e os
nheirado, composto de um arcabouço sin- fatores necessários para promover o cresci-
tético semeado com as próprias células. mento do novo tecido (Figura1). Entretanto,

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Genética na Escola – ISSN: 1980-3540

alguns pontos devem ser levados em conta embrião humano e, portanto, exigem a ma-
para a escolha desses componentes: os tipos nipulação do mesmo para serem obtidas. Por
de células a serem utilizados no processo: este motivo, novas pesquisas foram conduzi-
a anatomia e estrutura tridimensional do das a fim de se contornar este dilema ético e
tecido e os fatores de crescimento necessá- permitir assim o avanço da Engenharia Te-
rios para que o órgão seja funcional e viável. cidual e Medicina Regenerativa. Neste con-
Componentes do processo: texto, foram descobertas as células-tronco
de pluripotência induzida, conhecidas como
1. Células
iPSs ou iPSCs (do inglês Induced Pluripotent
Células adultas que se proliferam pouco e Stem Cells), que nada mais são do que células
que já são diferenciadas em tipos celulares es- adultas reprogramadas geneticamente para
pecíficos podem ser utilizadas na Engenharia readquirir a capacidade de se diferenciarem
Tecidual, mas as células-tronco permanecem em todos os tipos celulares presentes no or-
como uma das fontes de maior interesse nes- ganismo (BOX 2 - iPSs). Tais células foram
sa e em outras áreas da Medicina (BOX 1 - geradas pela primeira vez em 2006, a partir
Células-Tronco adultas e embrionárias - toti, de células de camundongo e, um ano depois,
multi e pluripotentes). Células-tronco são em células humanas, representando um mar-
células total ou parcialmente indiferenciadas co no processo de eliminação dos problemas
e com alto poder proliferativo, capazes de se éticos relacionados ao uso de células-tronco
diferenciar em outros tipos celulares e for- embrionárias. Isso porque as iPSs dispen-
mar diferentes tecidos corpóreos. Entre elas, sam o uso de embriões, uma vez que são ob-
as células-tronco embrionárias, aquelas com tidas a partir de células adultas do próprio
maior potencial de diferenciação em outros paciente. Além disso, as iPSs ainda oferecem
tecidos do corpo humano, seriam aquelas mais uma vantagem: evitam a rejeição imu-
com maior potencial terapêutico. Entretan- nológica, que é o processo através do qual o
to, sua utilização esbarra em questões éticas sistema imune do paciente rejeita as células
importantes, uma vez que, como o próprio estranhas e as combate, sempre ocorrendo,
nome já diz, são células provenientes de um quando se faz uso de células que não perten-

BOX 1
Células-Tronco Adultas X Embrionárias: potencialidade
As chamadas células-tronco são as células que ainda não entraram em processo de diferenciação celular ou que passaram
apenas por diferenciação parcial, mantendo-se parcialmente indiferenciadas. Essas células têm como características um alto
poder proliferativo e a capacidade de se diferenciar em outros tipos celulares e formar diferentes tecidos corpóreos. Apesar
destas características em comum, as células-tronco possuem algumas diferenças entre si, sendo classificadas de acordo com
sua capacidade de diferenciação (potencialidade) e sua origem:
Potencialidade:
- Células Totipotentes: células capazes de diferenciarem-se em todos os tecidos do corpo humano, incluindo a placenta
e anexos embrionários;
- Células Pluripotentes: células capazes de se diferenciarem em todos os tecidos do corpo humano, com exceção da
placenta e anexos embrionários;
- Células Multipotentes: células capazes de se diferenciarem em vários tecidos do corpo humano, mas não todos.
Origem
- Células-tronco adultas: células parcialmente indiferenciadas encontradas em vários tecidos e órgãos adultos, principal-
mente na medula óssea e no cordão umbilical, responsáveis pela renovação das células do tecido. São células capazes
de gerar somente alguns tecidos do corpo humano, ou seja, são multipotentes.
- Células-tronco embrionárias: células provenientes do embrião até o estágio denominado de blastocisto (4-5 dias após
a fecundação). São células capazes de gerar todos os tecidos do corpo humano, logo, são pluripotentes.

Sociedade Brasileira de Genética 29


GENÉTICA E SOCIEDADE

cem ao indivíduo que as recebe. Dotadas de dos no mundo (clinicaltrial.org) que fazem
alta potencialidade e capazes de suprimir a uso dessas células. Independentemente da
necessidade de uso de drogas imunossupres- fonte, as células a serem utilizadas depende-
soras, o uso de iPSs no campo de Engenharia rão do caso específico de cada paciente, mas
Tecidual é extremamente promissor. No mo- elas não são os únicos componentes na gera-
mento, existem 25 estudos clínicos registra- ção do novo tecido.

Figura 1.
Componentes essenciais
para a construção de um
tecido engenheirado (Pilares
da Engenharia de Tecidos):
células, arcabouços e fatores de
crescimento.

Figura 2.
Tipos de células-tronco adultas.

30 Genética na Escola | Vol. 14 | Nº 1 | 2019


Genética na Escola – ISSN: 1980-3540

BOX 2
iPSs
As Células-Tronco de Pluripotência Induzida (iPSs), cujo desenvolvimento foi primeiramente
publicado pelo grupo do pesquisador japonês Shinya Yamanaka, são células que apresentam
a capacidade de se diferenciar em todos os tecidos do organismo (pluripotentes) e são gera-
das em laboratório a partir da reprogramação genética de uma célula adulta. A reprograma-
ção de uma célula consiste na restauração de um estágio celular indiferenciado, semelhante
àquele observado em células-tronco embrionárias. Para reprogramar uma célula adulta, é
necessária a ativação interna de genes conhecidos como fatores de reprogramação. A forma
mais comum envolve quatro genes: Oct4, Sox2, c-Myc e Klf4. Para isso, as sequências co-
dificadoras destes genes são introduzidas na célula a ser reprogramada utilizando partículas
virais capazes de infectar as células e transferir o material genético de interesse para dentro
destas em um processo chamado de transdução viral. Uma vez dentro das células, os fatores
de reprogramação são ativados e iniciam uma cascata de eventos intracelulares que têm
como resultado o restabelecimento do estado indiferenciado, retomando assim a pluripo-
tência. Atualmente, os pesquisadores têm buscado métodos alternativos para obtenção das
iPSs, uma vez que o método envolvendo os quatro genes mencionados é muito dispendioso
e apresenta um baixo rendimento.

Figura 3.
Reprogramação de célula
adulta com alguns fatores para
obtenção de Células-Tronco de
Pluripotência Induzida (iPSs). 2. Arcabouços disso, o arcabouço deve prover um ambiente
que seja o menos hostil possível para a célula,
Todos os tecidos do corpo humano precisam
o que significa que o polímero deve ter uma
de sustentação. Na Engenharia Tecidual esta
porosidade adequada tanto para o alojamen-
regra é obedecida pelo uso, na maioria das
to das células quanto para o crescimento de
vezes, de polímeros biocompatíveis e biode-
vasos sanguíneos, entre outras características.
gradáveis que formam os chamados arcabou-
ços (em inglês, scaffolds) (Figura 4). Esses são Nos processos de isolamento e semeadura
compostos por longas cadeias de moléculas das células selecionadas e de transplante do
que causam pouca ou nenhuma reação inde- novo tecido muitas dessas células morrem.
sejada no organismo, podendo ser absorvi- Sabe-se, contudo, que um ambiente bem vas-
dos pelo próprio corpo sem deixar vestígios cularizado tem um papel crucial na sobrevi-
depois de algum tempo da implantação do vência dessas células uma vez que é através
tecido. As células selecionadas são semeadas do sangue que nutrientes e oxigênio chega-
sobre o polímero biocompatível de forma que rão a elas. Um aporte sanguíneo adequado
encontrem um local para se aderirem e não resulta em um tecido engenheirado que cres-
simplesmente se dispersarem pelo organis- ce melhor e mais rápido, podendo melhorar
mo. Para tanto o arcabouço deve ser molda- consideravelmente o quadro do paciente que
do para ter um formato desejado, de acordo recebeu o implante em um menor período de
com o tecido ou órgão que substituirá. Além tempo.

Sociedade Brasileira de Genética 31


GENÉTICA E SOCIEDADE

Figura 4.
O uso de scaffolds/arcabouços
(feitos de biopolímeros
compatíveis), células e
3. Fatores de crescimento por Engenharia Genética e adicionadas para
proteínas para a formação
auxiliar no crescimento do tecido desejado. de tecido engenheirado já é
Outros elementos também podem ser
uma realidade na Medicina
acrescentados para ajudar no crescimento
dos tecidos, como é o caso dos fatores de PERSPECTIVAS FUTURAS moderna. Há um futuro muito
promissor para corrigir ou curar
crescimento. Essas biomoléculas, em sua DA ENGENHARIA DE TECIDOS diversas doenças ainda sem
maioria proteicas, são responsáveis pela co- Como visto até aqui, a Engenharia de Teci- um tratamento adequado. Na
municação celular e são essenciais à vida, parte superior da figura são
dos tem um grande potencial para o trata- observados os arcabouços. Na
executando um grande número de funções mento de doenças e injúrias, podendo trazer parte inferior é observado um
no organismo. Esses fatores estimulam, por alternativas para uma melhora na qualidade tecido de intestino, gerado
exemplo, a proliferação celular, a migração e de vida e bem estar dos pacientes. Mas, em por Engenharia Tecidual,
diferenciação de células, além de evitar, tam- cultivado em animal em
termos práticos, o que já se usa desta tec-
diferentes condições (1 a 4)
bém, a morte das mesmas. No contexto da nologia na clínica? Quais são os últimos para reconstituição intestinal.
Engenharia Tecidual, proteínas podem ser avanços da área e o quão perto realmente (Realizado em colaboração
adicionadas aos arcabouços de sustentação está a Engenharia de Tecidos de tratar os entre o grupo NUCEL e The
de modo a contribuir para as interações cé- pacientes? Este potencial terapêutico tem Saban Research Insitute).
lula-célula e célula-arcabouço, contribuindo atraído muitos investimentos e esperanças
assim para a formação do novo tecido. Por que movem o seu desenvolvimento. Vários
exemplo, as proteínas que atuam como fa- estudos clínicos têm sido realizados nos úl-
tores de crescimento podem colaborar para timos anos, e alguns produtos já foram au-
a proliferação das células semeadas e dife- torizados para uso humano nos EUA, como
renciação destas nos diferentes tipos celu- substitutos musculoesqueléticos e de pele,
lares necessários ou, podem ainda, induzir válvulas cardíacas e cartilagem, mas ainda
o crescimento de vasos sanguíneos ao redor são aplicados de forma limitada. Outras
do arcabouço para irrigar e nutrir as células tecnologias de ponta na área de Engenha-
do novo tecido em formação. Além disso, ria de Tecidos são apresentadas no BOX
algumas proteínas podem ainda atrair al- 3. Agora, com todas essas informações em
guns tipos celulares especiais que ajudarão mente sobre o potencial terapêutico, as téc-
no processo de recuperação da região afeta- nicas utilizadas e as novidades da Engenha-
da pela agressão da cirurgia de transplante, ria Tecidual, vale ficar de olho e acompanhar
melhorando quadros inflamatórios e auxi- as notícias da área pra saber quais serão os
liando no reparo de lesões. Vale mencionar benefícios que esta tecnologia trará para a
que estas proteínas podem ser produzidas sociedade.

32 Genética na Escola | Vol. 14 | Nº 1 | 2019


Genética na Escola – ISSN: 1980-3540

BOX 3
Últimos avanços
Entre os últimos avanços na Medicina Regenerativa e Engenharia de Tecidos estão:
- Bioimpressão de órgãos e tecidos com uso de impressoras em 3D: Desenvolvida para
a construção de órgãos engenheirados e que combinam materiais sintéticos e diferentes
tipos celulares, de forma extremamente precisa, para formar o novo tecido tridimensional.
- Órgãos descelularizados: Outra abordagem muito promissora que vem sendo utiliza-
da na tentativa de se obter o arcabouço ideal para o processo de Engenharia Tecidual.
Os órgãos descelularizados consistem em matrizes naturais provenientes de órgãos cujas
células foram retiradas por meio de infusões com detergentes ou outras substâncias. O
resultando desse processo é um “esqueleto” sem células, composto por colágeno, gela-
tina e outras proteínas que compõem a chamada matriz extracelular. A vantagem no uso
dessa abordagem reside no fato de que esses órgãos descelularizados mantêm integral-
mente a arquitetura do órgão original, assim como os fatores de crescimento específicos
necessários para uma boa colonização do novo órgão pelas novas células bem como um
funcionamento adequado.

SUGESTÃO DE VÍDEO ISSN 2056-3418. Disponível em https://www.


ncbi.nlm.nih.gov/pubmed/26816650.
https://www.ted.com/talks/anthony_atala_growing_
organs_engineering_tissue - Anthony Atala: Growing MURPHY, S. V.; ATALA, A. 3D bioprinting of
new organs TED TALKS tissues and organs. Nat Biotechnol, v. 32, n. 8,
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Sociedade Brasileira de Genética 33


GENÉTICA E SOCIEDADE

Aconselhamento
genético:
será que
eu preciso?
Regina Célia Mingroni Netto

Departamento de Genética e Biologia Evolutiva,


Instituto de Biociências, Universidade de São Paulo, SP

Autor para correspondência - renetto@ib.usp.br

34 Genética na Escola | Vol. 14 | Nº 1 | 2019


Genética na Escola – ISSN: 1980-3540

O artigo apresenta a história e as


definições de aconselhamento ge-
nético, incluindo explicações sobre suas
etapas principais. Também indica quais
são as famílias que devem ser encami-
nhadas para um serviço de aconselha-
mento genético e o porquê, a importân-
cia desse serviço na saúde e na sociedade
e quem são os profissionais que se dedi-
cam a essa atividade.

Sociedade Brasileira de Genética 35


GENÉTICA E SOCIEDADE

E mbora o aconselhamento genético como


atividade profissional relacionada à saú-
de exista há pelo menos cinco décadas, sua
des centros de atenção à saúde a ideia de divi-
são de trabalho, por meio da qual um biólo-
go, geralmente com doutorado em genética,
importância cresceu recentemente em vir- funcionava como um assessor de uma equipe
tude do assombroso desenvolvimento das com vários profissionais de saúde com pou-
tecnologias de análises genômicas. À medida cos conhecimentos de genética. Tal situação
que melhoram as condições de saneamento chamou a atenção para a necessidade de se
e nutrição, acompanhadas de melhorias nas treinar uma classe específica de profissionais
estratégias preventivas relacionadas à saúde, de saúde muito bem formados em genética,
cresce na população a fração das doenças que capazes de assumir essa tarefa de dar apoio
são atribuíveis às causas genéticas. Além dis- aos demais profissionais e também às famí-
so, a redução dos custos dos testes genéticos lias com doenças genéticas. Essa necessidade
para doenças específicas e também dos cus- levou a Dra. Melissa Richter a instalar, em
tos das técnicas de sequenciamento massivo 1969, no Sarah Lawrence College, em Nova
de milhares de genes trouxe a possibilidade Iorque, onde ensinava biologia, um curso
da realização desses exames mais próxima ao de pós-graduação de dois anos para for-
dia a dia das pessoas, com profundas impli- mar geneticistas aconselhadores. Centenas
cações em tomadas de decisões reprodutivas de pessoas formaram-se nesse curso e logo
e de saúde. Ainda, atualmente, existem mui- surgiram outros semelhantes nos Estados
tos tipos de análises genômicas complexas, Unidos, que acabaram por inspirar iniciati-
porém já acessíveis à população, cujos resul- vas semelhantes em outros países. O modelo
tados vão direto ao consumidor que pode de aconselhamento genético executado por
pagar por esses exames, sem a necessidade equipes multiprofissionais, iniciado nos Es-
de solicitação ou interpretação conduzidas tados Unidos, serviu de inspiração e é aplica-
por profissional de saúde. Essa prática infe- do até os dias de hoje em muitas instituições
lizmente pode causar imprevisíveis prejuízos de saúde em vários países.
emocionais e afetar decisões sobre plane-
jamento de vida. A necessidade de profis- O QUE É ACONSELHAMENTO
sionais de saúde bem treinados, capazes de GENÉTICO, AFINAL?
compreender os resultados de exames com-
plexos e de traduzir o mundo da genética à Há muitas definições correntes para o termo
população geral, aumenta a cada dia. Aconselhamento Genético. Como na ativi-
dade de aconselhamento genético existem
muitas etapas, como entrevistas, realização
AS RAÍZES (ORIGENS) de exames, explicações sobre resultados de
DO ACONSELHAMENTO exames e provimento de orientações, as me-
GENÉTICO lhores definições costumam utilizar o termo
A expressão aconselhamento genético foi “processo” para descrevê-la. De acordo com a
introduzida pela primeira vez em 1947 por definição mais difundida, proposta em 1975
Sheldon C. Reed, um zoólogo e também pela Associação Americana de Genética Hu-
geneticista. Foi ele o primeiro a publicar um mana, aconselhamento genético é um pro-
livro sobre o assunto chamado Counseling in cesso de comunicação que aborda os proble-
Human Genetics, nos Estados Unidos. Cien- mas humanos relacionados com a ocorrência
tistas ligados à pesquisa básica em genética e a recorrência de doenças genéticas em uma
foram de fato os primeiros a se interessarem família.
por essas questões. A partir de 1959, pode- Nesse processo, profissionais de saúde devi-
-se dizer que a genética clínica desabrochou damente treinados procuram ajudar a famí-
na medicina norte-americana, em virtude de lia a:
desenvolvimentos na bioquímica, na imuno-
1) compreender fatos sobre sua saúde, como
logia e na ciência da citogenética, e passou a
diagnóstico, curso provável da doença e
ser praticada por pediatras, ginecologistas e
tratamentos disponíveis;
obstetras. Começou a se difundir nos gran-

36 Genética na Escola | Vol. 14 | Nº 1 | 2019


Genética na Escola – ISSN: 1980-3540

2) compreender de que modo a hereditarie- 1) realizar o levantamento e a interpretação


dade contribui para a origem da doença e da história familiar;
os riscos de repetição; 2) elaborar e analisar o heredograma da fa-
3) compreender todas as alternativas para mília em estudo;
enfrentar os problemas relacionados ao 3) interpretar resultados de exames cromos-
risco de recorrência; sômicos, moleculares e cromossômico-
4) escolher uma ação apropriada em vista de -moleculares;
seus padrões éticos e religiosos; 4) realizar o cálculo dos riscos de ocorrência
5) adaptar-se à presença da doença ou ao e recorrência das doenças, com base nos
risco de recorrência da doença na família. heredogramas construídos, no diagnósti-
[American Society of Human Genetics , co clínico da doença, nos resultados dos
Ad Hoc Commitee on Genetic Counse- exames e na pesquisa bibliográfica;
ling, 1975]. 5) transmitir informações de modo educati-
Embora o termo traduzido da língua inglesa vo sobre mecanismos de herança, exames
Genetic Counseling possa sugerir que os con- e seus resultados, estimativas de riscos,
sulentes recebam conselhos dos profissionais possíveis condutas, prevenção e fontes
que o executam, o processo de aconselha- adequadas de consulta sobre as doenças
mento genético tem, como premissa, que em questão;
os consulentes sejam capazes de tomar suas 6) prover aconselhamento genético e dar su-
próprias decisões com consciência e liberda- porte psicológico adequado que propicie
de a partir das informações fornecidas pela a realização de escolhas informadas e a
equipe que executa o aconselhamento gené- adaptação às condições de risco;
tico. Em outras palavras, trata-se de proces-
so essencialmente não diretivo, pois é dado 7) traduzir a complexa linguagem da gené-
o suporte para que as famílias tomem suas tica humana para termos compreensíveis
próprias decisões com base em informações para o público leigo, para outros profissio-
precisas e bem compreendidas. O respeito à nais de saúde e, principalmente, para os
autonomia das famílias é o pilar desse tipo de consulentes.
trabalho. O profissional deve ser um facilita-
dor e não um tomador de decisões. A QUEM SE DESTINAM
Alguns termos são frequentemente utiliza- OS SERVIÇOS DE
dos no dia a dia de um serviço de aconselha- ACONSELHAMENTO
mento genético. Um deles é consulente, termo GENÉTICO?
usado para se referir à pessoa que procura
Uma indagação frequente a respeito de acon-
um serviço de aconselhamento genético e faz
selhamento genético é se ele é necessário para
uma indagação sobre o risco de ocorrência
todos os casais que desejam ter ou já tiveram
ou de recorrência de uma doença. Usa-se o
filhos. Será que todas as pessoas deveriam
termo probando para designar em uma ge-
consultar um geneticista antes de pensar em
nealogia aquele indivíduo por meio do qual
se reproduzir? Em teoria, um casal jovem,
se averiguou a família. Muitas vezes ele é o
sem antecedentes na família de doenças que
indivíduo afetado pela doença que foi o pri-
se suspeitem ser genéticas, com hábitos sau-
meiro a ser examinado pela equipe.
dáveis, livres de doenças infecciosas e com
Para que o processo de aconselhamento suas vacinas em dia, tem risco relativamente
genético seja eficaz, é fundamental que o pequeno de ter uma criança com malforma-
profissional de saúde que o executa seja de- ções ou deficiências. Esses casais não preci-
vidamente treinado a realizar um conjunto sam ser encaminhados para serviços de ge-
de tarefas fundamentais à boa condução do nética e o acompanhamento que deve se dar
serviço, como: à gestação é o que se oferece rotineiramente

Sociedade Brasileira de Genética 37


GENÉTICA E SOCIEDADE

em serviços de pré-natal de boa qualidade. divíduo que tem um desses alelos raros vir
No entanto, há situações especiais em que a se casar com alguém com o mesmo tipo
casais ou famílias devem ser encaminhados de alelo raro é muito baixa. No entanto,
a serviços de aconselhamento genético para quando um indivíduo vem a se casar com
receber orientação específica, algumas das um primo, há uma chance alta de que seu
quais estão listadas a seguir: primo tenha herdado o mesmo alelo mu-
tado de um ancestral que eles têm em co-
• Casais consanguíneos – casais em que
mum. Por isso, esse tipo de casal tem risco
os cônjuges são parentes, geralmente ca-
aumentado de gerar crianças homozigotas
sais de primos, têm risco aumentado em
com doença e devem ser alertados sobre
relação à população geral de gerar crian-
essa possibilidade. Esses riscos podem ser
ças com doenças genéticas de herança
ainda maiores se já tiver ocorrido na famí-
autossômica recessiva. Alelos recessivos
lia do casal alguma doença hereditária ou
que causam doenças que surgem espon-
se o próprio casal já tiver tido previamente
taneamente por mutação são raros na
uma criança com doença genética.
população em geral. A chance de um in-

• Casais com história reprodutiva insa- Essas alterações, presentes em embriões


tisfatória – (esterilidade, abortos, óbitos que resultam desses zigotos, podem acar-
fetais, crianças falecidas malformadas) retar abortamento precoce, óbitos fetais
– Casais em que um dos cônjuges tenha ou gerar crianças com malformações di-
uma alteração cromossômica em estado versas, acompanhadas muitas vezes por
equilibrado (sem perda ou ganho de ma- deficiência intelectual. O estudo cromos-
terial genético) podem gerar gametas com sômico desses casais é recomendado para
alterações cromossômicas em estado dese- que ser pesquise por meio de exame a
quilibrado, que podem dar origem a zigo- ocorrência de, por exemplo, translocações
tos com graves alterações cromossômicas. equilibradas ou inversões cromossômicas.

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Genética na Escola – ISSN: 1980-3540

• Cônjuges relativamente idosos – É co- casal a possibilidade de realização de exa-


nhecido que a idade dos pais acarreta mes pré-natais específicos.
elevação do risco de nascer criança com
• História familial de doenças que se sus-
defeitos genéticos. Casais nessa situação
peitem ser hereditárias, incluindo cân-
devem receber orientação sobre o assun-
cer – É frequente que se observe em uma
to. Existe correlação bem documentada
família a repetição de casos de uma dada
entre a idade da mãe e a probabilidade de
doença, por exemplo, uma doença muscu-
nascer crianças com alterações numéri-
lar ou neurodegenerativa, situação em que
cas dos cromossomos. Gera preocupação
uma consulta com geneticista deve ser
principalmente o aumento da frequência
indicada. O câncer ocorre de forma espo-
de casos de trissomia do cromossomo 21
rádica em várias famílias e, quando ocor-
(síndrome de Down, trissomia do cro-
re mais de um caso na mesma família, é
mossomo 13 (síndrome de Patau) e a
possível que se trate de tipos diferentes de
trissomia do 18 (síndrome de Edwards).
tumor. No entanto, casos repetidos de um
Nessas situações, deve ser discutida com o

mesmo tipo de tumor na mesma família, malformações diversas, deficiência intelec-


por exemplo, tumores de mama e de ová- tual, deficiência visual ou deficiência auditi-
rio, merecem atenção especial. Os indiví- va, sem causas aparentes, deve ser encorajado
duos dessas famílias devem ser orientados a buscar serviço de genética na tentativa de
a procurar serviço especializado em onco- esclarecer se se trata de caso atribuível a fato-
genética, ou seja, em genética do câncer, res ambientais somente ou se pode se tratar
para realizar exames e receber orientação de caso com causa genética. Nessa segunda
a adequada. situação, exames específicos podem ser re-
Além dessas indicações, qualquer casal que comendados e as estimativas de risco serão
tenha tido ao menos uma criança afetada por então realizadas.

Sociedade Brasileira de Genética 39


GENÉTICA E SOCIEDADE

AS ETAPAS DO
ACONSELHAMENTO
GENÉTICO
Definimos anteriormente o aconselhamento
genético como um processo, ou seja, um con-
junto de atividades da área da saúde. Como
se trata de um conjunto de atividades diver-
sas, é frequente que essas atividades sejam
descritas como as etapas do aconselhamento
genético. A ordem em que essas etapas serão
aqui listadas nem sempre corresponde à or-
dem exata pela qual as ações ocorrerão, pois
existem, com certeza, algumas adaptações
em virtude do tipo de doença que se tem em
investigação. Segue a descrição das etapas
mais frequentes:
• Diagnóstico correto da doença – Para
que se possa oferecer a uma família esti-
mativas precisas sobre o risco de repetição
de uma doença genética, é fundamental
que a doença genética seja corretamente
diagnosticada. Diagnósticos imprecisos
ou confusão entre doenças semelhantes
podem levar a estimativas de risco erradas,
o que pode acarretar consequências muito
graves para as famílias, emocionalmente
danosas ou mesmo prejudiciais ao manejo
correto da doença. Além disso, do diag-
nóstico clínico resultam orientações sobre
a história natural e sobre tratamento. O
diagnóstico da doença genética depende,
em primeiro lugar, de um cuidadoso exa-
me físico do afetado, com especial atenção
a sinais clínicos e sintomas que podem
indicar uma síndrome genética específica
ou a necessidade de se realizarem exames
genéticos especializados. Além disso, é da família. A construção de genealogia
necessário avaliar exames já previamente com informações corretas é muito impor-
realizados pelo afetado, como por exem- tante pois é a partir da análise da genealo-
plo, exames laboratoriais e de imagem. gia que se pode deduzir qual o mecanismo
Para isso, é fundamental a figura do médi- de herança da doença. Saber o mecanis-
co especializado em genética clínica, capaz mo de herança da doença, além de poder
de formular as hipóteses para o diagnós- contribuir, ajudando no diagnóstico dife-
tico que virão a nortear a necessidade e a rencial, é imprescindível para a etapa de
escolha dos exames genéticos adequados. cálculo de riscos genéticos.
• Levantamento da história familial – Por • Solicitação de exames laboratoriais
meio de entrevistas, o geneticista indaga (cromossômicos ou moleculares) – Em
sobre todos os casos de doenças presen- virtude do tipo de doença que já ocorreu
tes na família dos consulentes e, com base ou que pode ocorrer na família do consu-
nessas informações, desenha a genealogia lente, pode ser necessária a execução de

40 Genética na Escola | Vol. 14 | Nº 1 | 2019


Genética na Escola – ISSN: 1980-3540

permitiram diagnóstico de uma síndrome


também pode ser recomendado o exame
do cariótipo, mas muitas vezes também
o estudo cromossômico-molecular, que
pode ser feito, por exemplo, pela técnica
de array-CGH.
• Consultas à bibliografia e a bancos de
dados – Existem milhares de doenças ge-
néticas diferentes e muitas doenças genéti-
cas tão raras na população que mesmo um
geneticista muito experiente pode passar
toda a sua vida sem ter visto muitas delas.
Dada à raridade, o geneticista clínico não
consegue contar somente com a memória
para fazer diagnósticos clínicos. É mui-
to importante que o geneticista consulte
sistematicamente bancos de dados sobre
as características das síndromes genéticas
e sobre os genes que as determinam. Ele
deve recorrer a revisões bibliográficas toda
a vez que encontrar um caso incomum. O
banco de dados sobre as características
das doenças genéticas mais consultado é o
OMIM (On line Mendelian Inheritance in
Man). Mediante a entrada de alguns dos
sinais clínicos presentes no paciente como
palavras-chave para pesquisa, após a con-
sulta surgem listas das síndromes que in-
cluem os sinais clínicos pesquisados. Cada
doença genética está depositada no banco
de dados do OMIM (https://www.omim.
org/) com um número que a identifica.
A descrição da doença frequentemente
inclui todos os sinais clínicos que podem
ocorrer e todos os genes já conhecidos
que podem estar relacionados à sua causa.
Uma revisão bibliográfica completa sobre
exames genéticos específicos, que são cru- a descoberta da síndrome, sua caracteri-
ciais para confirmar as hipóteses de diag- zação clínica e molecular também é apre-
nóstico levantadas pelos clínicos. Esses sentada aos leitores. Um banco de dados
exames também são fundamentais para bibliográfico muito útil na área da saúde
evidenciar nas famílias se indivíduos não e, com certeza, o mais popular, é o PUB-
afetados pela doença em estudo são porta- MED (https://www.ncbi.nlm.nih.gov/
dores de alterações genéticas que lhes pos- pubmed/). Mediante a introdução de al-
sam conferir risco aumentado de ter filhos gumas palavras-chave são listadas ao leitor
com essas doenças. Por exemplo, para ca- referências bibliográficas de dezenas ou
sais que tiveram gestações sucessivas e que centenas de artigos científicos correlacio-
resultaram em abortamento espontâneos nados ao tema. Esse estudo bibliográfico
deve ser recomendado o estudo cromos- ajuda muito o clínico na tarefa de concluir
sômico, ou seja, a realização do exame do o diagnóstico e o aconselhador genético a
cariótipo. Para uma criança com deficiên- se manter sempre atualizado para fornecer
cia intelectual e sinais clínicos que não informações relevantes aos consulentes.

Sociedade Brasileira de Genética 41


GENÉTICA E SOCIEDADE

• Cálculo de Riscos – Após a conclusão do


processo de diagnóstico da doença gené-
tica, torna-se possível calcular os riscos
de ocorrência da doença na descendência
de cada indivíduo da família que deseja
receber orientação. Por exemplo, doenças
dominantes são transmitidas a 50% dos
descendentes de um afetado; um casal que
teve uma criança com doença certamente
de herança recessiva tem um risco de 25%
de repetição da doença em futuras crian-
ças que venha a ter. Quando houver um
diagnóstico de doença, acompanhado do
resultado de um teste de DNA que tenha
revelado qual é exatamente a mutação que ONDE ESTÃO OS SERVIÇOS
acarretou a doença na família, o mesmo
teste de DNA pode ser aplicado em ou- DE ACONSELHAMENTO
tros membros da família. Isso pode indi- GENÉTICO?
car diretamente quem na família é por- Os primeiros serviços de aconselhamento
tador da alteração genética, dispensando genético no Brasil surgiram, nas décadas de
vários cálculos de risco probabilísticos. 60 e 70, principalmente em universidades e
• Sessões de aconselhamento genético em outras entidades de ensino superior onde
não diretivo – Nessas sessões são desen- se ministravam cursos de Ciências Biológi-
volvidas as principais etapas do aconse- cas, Ciências Biomédicas e Medicina. Esses
lhamento genético propriamente dito. São serviços se desenvolveram em íntima relação
passadas, nesse momento, as informações com cursos de pós-graduação acadêmicos
sobre a origem da doença genética, tais com linhas de pesquisa ligadas à Genética
como: – qual a relação entre a alteração Humana e Genética Médica. São exemplos
genética detectada e o quadro clínico; o Instituto de Biociências na Universidade
– qual o mecanismo de transmissão da de São Paulo, a Universidade Federal do Pa-
doença e quais os riscos futuros para a fa- raná, a Universidade Federal do Rio Grande
mília. Orientações sobre o possível mane- do Sul, a Universidade de Campinas, a Uni-
jo dos quadros clínicos e busca de serviços versidade Federal de São Paulo, a Universi-
especializados também são transmitidas. dade de São Paulo no campus de Ribeirão
Passa-se então à discussão das opções re- Preto e a Universidade Estadual Paulista em
produtivas: prevenção da natalidade ou, São José do Rio Preto.
no caso de decisão de futura gestação, Esses centros universitários, muitas vezes
quais exames pré-concepcionais são reco- associados a hospitais universitários, lança-
mendados ou se o diagnóstico pré-natal ram as bases para a pesquisa acadêmica em
é aconselhável. O aconselhador genético genética humana e médica no Brasil, com
deve promover essas discussões com res- conquistas científicas importantes que foram
peito à autonomia dos consulentes e com continuamente transferidas às famílias com
respeito também às convicções de cunho doenças em investigação, por meio da prática
ético, moral e religioso dos consulentes. O do aconselhamento genético. Com o passar
restrito repertório de conhecimentos da do tempo, esses serviços disseminaram-se
população geral sobre genética pode exigir pelo país, associados a importantes serviços
do aconselhador muito talento e criativi- de saúde, vinculados muitas vezes ao serviço
dade para explicar conceitos de genética, público de saúde. Mas, hoje, é visível a ex-
como DNA, cromossomos, mutação e pansão dos serviços pela rede particular de
genoma, importantes para que os consu- saúde, como consequência da grande expan-
lentes absorvam corretamente as informa- são de laboratórios privados que passaram a
ções que lhes são apresentadas. oferecer exames genéticos.

42 Genética na Escola | Vol. 14 | Nº 1 | 2019


Genética na Escola – ISSN: 1980-3540

Um marco importante para o presente e para podem se especializar no assunto, como os


o futuro do aconselhamento genético no enfermeiros, psicólogos e assistentes sociais.
Brasil foi a publicação de uma portaria que Esses profissionais, desde que tenham trei-
dispõe sobre o atendimento do SUS aos pa- namento adequado, podem executar várias
cientes com doenças raras (Portaria no 981 das diversas etapas do aconselhamento gené-
do Ministério da Saúde, publicada no Diário tico descritas acima.
Oficial da União no 97, em 23 de maio de
Mais recentemente, o Instituto de Bio-
2014). A partir da publicação dessa portaria,
ciências da USP criou o primeiro curso de
passou a ser possível credenciar serviços de
mestrado profissional em Aconselhamento
saúde para receber recursos do SUS direta-
Genético, visando especificamente a forma-
mente destinados à aplicação em consultas
ção de pessoal para o setor. Em outros paí-
genéticas, sessões de aconselhamento gené-
ses é por meio do mestrado profissional que
tico e exames laboratoriais como, por exem-
se formam os profissionais de saúde para
plo, sequenciamento de DNA e cariótipo.
atuar em aconselhamento genético como,
Desde 2014, data da publicação da portaria,
por exemplo, nos Estados Unidos e em vá-
sete serviços de saúde da rede pública foram
rios outros situados na Europa. Atualmente,
credenciados como centros de referência em
existem 39 programas que oferecem forma-
genética das doenças raras. Resta-nos espe-
ção em aconselhamento genético em nível de
rar que, gradativamente, mais serviços simi-
mestrado nos Estados Unidos. O credencia-
lares sejam credenciados pelo SUS e que seja
mento desses profissionais é feito posterior-
viabilizado que o aconselhamento genético
mente por meio de exames e os indivíduos
atinja um número crescente de pessoas que
aprovados recebem certificados ou títulos de
dele necessitam e que não podem pagar por
especialista no assunto. Por exemplo, nos Es-
serviços privados.
tados Unidos, o American Board of Medical
Genetics certifica diferentes tipos de profis-
QUAIS SÃO OS sionais, os geneticistas clínicos, os geneticis-
PROFISSIONAIS QUE tas humanos e os aconselhadores genéticos.
PARTICIPAM DO PROCESSO No Brasil, a Sociedade Brasileira de Genética
DE ACONSELHAMENTO é responsável por conferir títulos de especia-
GENÉTICO? lista nas áreas de Aconselhamento Genético,
Citogenética Humana ou Genética Molecu-
O diagnóstico clínico das doenças genéticas e
lar Humana aos indivíduos aprovados nos
a prescrição e tratamentos específicos é feito
exames por ela organizados e aplicados. O
por médicos especialistas em genética clínica.
credenciamento dos profissionais que atuam
Esses médicos, após conclusão da graduação,
na área é muito importante para garantir aos
têm geralmente como trajetória a realização
consulentes o acesso a serviços de boa qua-
de residência médica em genética clínica em
lidade.
serviços de saúde que ofereçam essa moda-
lidade de residência. Após esse período, eles
realizam os exames necessários para obter o
PARA SABER MAIS
ABACAN, A., ALSUBALE L., BARLOW-STEW-
título de especialista em Genética Médica, ART K. et al., The Global state of the Genetic
concedido pela SBGM, Sociedade Brasileira Couseling Profession. European Journal of Medi-
de Genética Médica e Genômica. cal Genetics, Oct 5, 2018, doi: 10.1038/s41431-
018-0252-x.
Nas demais etapas do aconselhamento gené-
tico é frequente que atuem outros profissio- JORDE L. B., CAREY J. C., BAMSHAD M. J. Gené-
tica Médica, tradução da 4a edição americana, Rio
nais de saúde, como por exemplo, biólogos e de Janeiro, Elsevier, 2010.
biomédicos, geralmente dedicados a essa área
OPITZ J. M. Tópicos recentes de Genética Clínica. So-
após a conclusão de mestrado ou doutorado ciedade Brasileira de Genética, Ribeirão Preto,
acadêmicos voltados para genética humana e São Paulo, 1984. Brasil.
médica e após terem adquirido experiência
OTTO, P. A., MINGRONI-NETTO R. C.; OTTO
por meio de estágios em serviços de genética. P. G. Genética Médica, Editora Roca, São Paulo,
Vários outros profissionais de saúde também 2013.

Sociedade Brasileira de Genética 43


MATERIAIS DIDÁTICOS

Cariogame:
inovação tecnológica
para o estudo
de alterações
cromossômicas
numéricas e
estruturais
Maria da Conceição Freitas dos Santos1, Lucivana Prata de Souza Mourão1,
Felipe Getúlio Laranjeira do Nascimento2, Juliany Rodrigues Raiol2,
John Maycon Correa e Silva2

Universidade do Estado do Amazonas, Escola Superior de Ciências da Saúde, Manaus, AM


1

Universidade do Estado do Amazonas, Escola Superior de Tecnologia. Manaus, AM


2

Autor para correspondência - mdcsantos@uea.edu.br

44 Genética na Escola | Vol. 14 | Nº 1 | 2019


Genética na Escola – ISSN: 1980-3540

P ara dinamizar e incentivar a aprendizagem em Genética Humana, foi


idealizado e desenvolvido o Cariogame, um aplicativo usado para estudo
de cariótipo humano com alterações cromossômicas numéricas e estruturais
que resultam em síndromes genéticas. O jogo foi validado a partir de testes
realizados com 100 alunos que mostraram a preferência pelo Cariogame como
um recurso didático que desperta o interesse pelo assunto estudado. A utilização
do Cariogame em sala de aula configura-se como um exercício didático para a
futura prática profissional dos estudantes.

Sociedade Brasileira de Genética 45


MATERIAIS DIDÁTICOS

POR QUE UM JOGO VIRTUAL correta ou errada, implicaria em um acrésci-


mo ou decréscimo de pontuação e tempo de
FOI IDEALIZADO PARA execução, ou seja, uma funcionalidade bem
ESTUDAR O CARIÓTIPO pertinente para um público-alvo jovem, que
HUMANO E SUAS geralmente é atraído por competição.
ALTERAÇÕES EM NÚMERO Adicionalmente, o Cariogame foi submetido
E EM ESTRUTURA? a testes de validação para posteriormente ser
implementado em sala de aula. É importan-
E ntre os conteúdos abordados na disci-
plina Genética Humana, ministrada nos
cursos de Medicina, Odontologia e Enfer-
te ressaltar que, neste processo, este projeto
possibilitou a interação de unidades acadê-
magem da Universidade do Estado do Ama- micas diferentes (área da saúde e tecnologia)
zonas, está o estudo dos cromossomos e suas da mesma Universidade, onde acadêmicos
alterações. Anteriormente, a aula prática de do curso de Engenharia da Computação e
montagem e análise de cariótipo consistia Sistema de Informação atuaram com desen-
em realizá-la de forma manual, quando se volvedores de um produto a ser utilizado por
disponibilizava para os alunos uma fotocó- colegas dos cursos de Medicina, Odontolo-
pia em preto e branco de uma metáfase cro- gia e Enfermagem.
mossômica com alteração no número, a fim
de que os cromossomos fossem recortados AS BASES TECNOLÓGICAS
e fosse feito o pareamento dos homólogos e PARA CONSTRUÇÃO DO
ordenação do cariótipo (ver anexo 1). Nessa CARIOGAME
análise, a alteração numérica era identificada
O Cariogame foi idealizado para ser utiliza-
e indicava-se a nomenclatura para tal carió-
do para um público-alvo formado por aca-
tipo, apontando o diagnóstico de uma sín-
dêmicos dos cursos de Enfermagem, Odon-
drome genética específica causada por aque-
tologia e Medicina, com uma média de 200
la alteração. No entanto, frequentemente,
alunos por semestre, podendo ser aplicado
durante o manuseio, os estudantes perdiam
também a alunos do curso de Licenciatura
os cromossomos cortados em papel e isso in-
em Ciências Biológicas.
terferia no diagnóstico correto. Muitos deles
também levavam tempo superior ao da aula Para o desenvolvimento do jogo, foi primei-
para finalizar o trabalho, não podendo dis- ramente construído o GDD (Game Develop-
cutir pessoalmente com a professora os seus er Document), que é um documento instruti-
resultados. Além disso, tal método tradicio- vo, como uma receita, que indica tudo o que
nal dificulta a prática do estudo de alterações existe dentro do jogo e a forma como foi es-
estruturais, de difícil avaliação apenas através truturado. O jogo, desenvolvido foi por meio
de fotocópias. da metodologia Ágil, planejada para desen-
volvimento de software, mas com algumas
Diante destas evidências e limitações, asso-
modificações para desenvolvimento de jogos.
ciadas com a intenção pujante de inserir o
Também foi utilizado a Game Engine Unity,
uso de tecnologia no ensino da disciplina,
que consiste em um ambiente de desenvolvi-
idealizamos o jogo virtual Cariogame (Ca-
mento de jogos 3D e 2D para diversas plata-
rio = relacionado a cariótipo e Game = jogo)
formas e pode ser encontrado gratuitamente
que reúne diversos recursos tais como: visua-
no site: http://unity3d.com/pt/.
lização colorida, o que permitiria trabalhar-
mos também as alterações cromossômicas Para compor o desenho gráfico da tela de
estruturais, mobilidade digital e dispositivo montagem do cariótipo no Cariogame, foram
para associar o diagnóstico encontrado com utilizadas como base as figuras dos cromos-
as características clínicas das diferentes sín- somos virtuais disponíveis em BORGES-
dromes. Além disso, a moldagem do produto -OSÓRIO e ROBINSON (2013), como
em forma de jogo permitiria que cada deslo- modelos para que fossem criados os cromos-
camento de um cromossomo, durante a mon- somos presentes no aplicativo. Por uma ques-
tagem do cariótipo ou escolha de respostas tão de praticidade, o Cariogame foi montado

46 Genética na Escola | Vol. 14 | Nº 1 | 2019


Genética na Escola – ISSN: 1980-3540
O arquivo a ser baixado
está compactado. Utilize o com ideograma, ou seja, uma montagem vir- dor/aluno, é recomendado o uso em tablet. O
aplicativo de sua preferência tual de cariótipo e não com base em imagens arquivo encontra-se disponível em formato
e/ou confiança para efetuar
a descompactação e abra cromossômicas reais que compreende um APK de 48,948 MBytes, no link: https://dri-
o arquivo "Leia-me.txt" cariótipo por definição. Para as alterações ve.google.com/file/d/1wW6Px6SFlqoPLnX
para prosseguir. O jogo cromossômicas numéricas, os cromossomos doKVE5vGw2V4joSP0/view?usp=sharing.
roda exclusivamente em apresentam bandas transversais ao longo do
smartphones ou tablets com
sistema operacional Android
seu comprimento, devido à técnica de bande- CONSTITUIÇÃO DO
e em PCs com sistema amento G, que permite ao aluno a identifica- CARIOGAME.
operacional Windows 64 bits. ção de cada par cromossômico. Foi dada uma
cor específica para cada par cromossômico E, COMO JOGAR?
para as alterações cromossômicas estruturais. O Cariogame compreende 12 metáfases
O Cariogame foi desenvolvido para sistema cromossômicas, sendo sete com alterações
Android para smartphone ou tablet. Devido numéricas e cinco com alterações estruturais
à melhor visualização e ao conforto do joga- (Tabela 1).

Tabela 1.
Alterações cromossômicas presentes no Cariogame.

Alterações cromossômicas numéricas Alterações cromossômicas estruturais


Trissomia de 21 (síndrome de Down) Deleção 5p (Síndrome de Cri du Chat)
Trissomia do 18 (síndrome de Edwards) Deleção 4p (Síndrome de Wolf-Hirschhorn)
Trissomia do 13 (síndrome de Patau) Translocação recíproca entre os cromossomos 9 e 22 (Cromossomo Philadelphia)
Monossomia do X (Síndrome de Turner) Translocação recíproca entre os cromossomos 8 e 14 (Linfoma de Burkitt)
XXY (Síndrome de Klinefelter) Trissomia de 21 com translocação entre os cromossomos 14 e 21 (síndrome de Down)
Trissomia do X (síndrome do triplo X)

As diferentes alterações cromossômicas têm Etapas a seguir:


entrada aleatória para a prática de cada estu-
1. Ao abrir o aplicativo (jogo), tem-se aces-
dante em prática, a partir do módulo escolhido
so à tela de apresentação (Figura 1), onde
que infere o tipo de alteração a estudar. Apre-
há botões para saber sobre instruções do
senta um fluxo de tela no qual cada uma apre-
jogo, curiosidades da genética e optar por
senta uma etapa da atividade a ser realizada.

Figura 1.
Tela de apresentação do
Cariogame.

Sociedade Brasileira de Genética 47


MATERIAIS DIDÁTICOS

realizar a atividade com um áudio padrão para escolha do tipo de alteração cromos-
do jogo, além de dar acesso à próxima tela, sômica a ser estudada (Figura 2);

Figura 2.
Tela de identificação do jogador
e escolha do tipo de alteração
cromossômica a ser estudada.

2. Em seguida, o aluno é levado à tela Game- para os locais destinados a eles no esque-
play que, de acordo com a escolha dele, ma padrão citogenético de organização do
pode ser com alteração numérica (Figura cariótipo (ao lado esquerdo). Esta configu-
3) ou alteração estrutural (Figura 4), para ração aplica-se aos dois tipos de alterações
a ocorrência da montagem do cariótipo. cromossômicas em atividade. Uma vez
Para tanto, os cromossomos embaralhados arrastado o cromossomo para o esquema,
(como uma metáfase cromossômica) e em este pode retornar para a metáfase cromos-
movimento devem ser arrastados um a um sômica, quantas vezes o aluno quiser;

Figura 3.
Tela gameplay com alteração
cromossômica numérica para
montagem do Cariótipo.

Figura 4.
Tela gameplay com alteração
cromossômica estrutural para
montagem do Cariótipo.

48 Genética na Escola | Vol. 14 | Nº 1 | 2019


Genética na Escola – ISSN: 1980-3540

3. Depois de realizada a montagem do ca- terá que descobrir o erro de posição ou


riótipo (Figura 5), o aluno verifica qual a pareamento de cromossomo e corrigi-lo.
alteração cromossômica e respectiva sín- Nesta tela há um botão de “ajuda”, que
drome ou alteração genética foi observa- mostra quantos cromossomos estão pos-
da e aperta o botão para prosseguir. Caso tados erroneamente. O acesso à próxima
tenha montado corretamente o cariótipo, tela só é possível após concluir esta mon-
terá acesso à fase seguinte, caso contrário tagem corretamente;

Figura 5.
Tela gameplay com alteração
cromossômica numérica após
montagem correta do Cariótipo
em estudo.

4. Em seguida, o aluno passa para as telas trário, o estudante deverá escolher outra
Quiz. A primeira (Figura 6) corresponde opção que seja a correta. A segunda tela
à escolha da nomenclatura citogenética Quiz (Figura 7) refere-se ao diagnóstico
referente ao cariótipo montado. O fluxo e corresponde à escolha da síndrome ou
de telas, nesta fase, é automático se a ta- condição genética correspondente ao ca-
refa for cumprida corretamente, caso con- riótipo montado;

Figura 6.
Tela quiz para a escolha da
nomenclatura citogenética do
Cariótipo em estudo.

Figura 7.
Tela quiz para a escolha da
síndrome ou condição genética
do Cariótipo em estudo.

Sociedade Brasileira de Genética 49


MATERIAIS DIDÁTICOS

5. Finalmente, o aluno acessa a tela de fe- colhendo os fenótipos, estes vão aparecen-
nótipos (Figura 8), quando então poderá do ao redor da figura humana. Depois de
escolher as principais características clí- concluída a tarefa, o aluno aciona o botão
nicas relacionadas ao diagnóstico encon- de término e automaticamente são mos-
trado. O jogo dispõe de uma lista dessas trados quais das escolhas foram corretas
características e sinaliza ao aluno quantas (estarão em verde) e quais as erradas (es-
eles deve marcar. À medida que se vai es- tarão em vermelho).

Figura 8.
Tela para a escolha dos
fenótipos relacionados com a
síndrome ou condição genética
em estudo.

O sistema foi programado para pontuação e errada também implicará perda de pontua-
contabilização de tempo para finalizar a ati- ção. Desse modo, o Cariogame é finalizada,
vidade, o que significa que, na fase de mon- mostrando ao aluno a tela de pontuação (Fi-
tagem do cariótipo, se o aluno ultrapassar gura 9), na qual ele mesmo pode visualizar
25 minutos, começa a perder pontos, assim seu desempenho com relação ao tempo e aos
como solicitar pedido de ajuda a partir da pontos computados. Esta pontuação é utili-
terceira vez. Nas demais fases cada escolha zada como avaliação parcial na disciplina.

Figura 9.
Tela final mostrando o
desempenho do acadêmico.

As doenças cromossômicas são aquelas que me em sala de aula configura-se um exercício


envolvem alterações nos cromossomos, tanto divertido e incentivador ao ensino das princi-
em seu número quanto na estrutura. O diag- pais alterações cromossômicas para a futura
nóstico dessas doenças ocorre de forma clínica, prática profissional dos acadêmicos que atua-
com confirmação associada a exames genéticos rão na área da saúde, uma vez que foi construí-
que, nos casos apresentados, é a análise do Ca- do dentro de uma proposta tecnológica que se
riótipo. Desse modo, a utilização do Carioga- mostrou eficaz e de fácil aplicabilidade.

50 Genética na Escola | Vol. 14 | Nº 1 | 2019


Genética na Escola – ISSN: 1980-3540

A VALIDAÇÃO Comitê de Ética e Pesquisa da Universidade


do Estado do Amazonas, aprovado sob o pa-
DO CARIOGAME recer CAAE 61535916.2.0000.5016.
Para colocar o sistema em produção foram
realizados testes de usuários (SOMMER- De modo geral, quanto à ordem do que são
VILLE, 2014), para os quais são fornecidas mais atrativos na estrutura e funcionalidade
entradas e conselhos para melhor utilização do Cariogame, 60% dos alunos apontaram
do sistema. Assim, o teste Alfa, foi feito, a animação do jogo na tela de montagem do
para o qual foram escolhidos cinco alunos Cariótipo, seguida de 15% de poder associar
aprovados na disciplina Genética Humana, o diagnóstico com as características fenotípi-
para testar a funcionalidade do jogo. Já o tes- cas, 10% tanto para os dispositivos de mudar
te Beta teve o objetivo de comparar as duas de fase apenas quando se executa correta-
formas de montagem e análise do cariótipo mente a tarefa, quanto para receber uma pon-
(forma manual e o Cariogame). Para tanto, tuação final para o desempenho e 5% de ter
foi aplicado um questionário ao fim do teste, uma lista para escolha da nomenclatura cito-
realizado com 100 alunos escolhidos aleato- genética e o diagnóstico. Com relação à com-
riamente. As respostas dos questionários fo- paração entre os dois recursos pedagógicos
ram tabuladas e os dados foram trabalhados (forma manual e o Cariogame), a preferência
em estatística simples. Para realização dos pelo Cariogame se consolida na avaliação dos
testes, o projeto foi submetido à análise de alunos conforme pode ser visto na Tabela 2.

Tabela 2.
Resultado da comparação entre os dois recursos pedagógicos pelos acadêmicos.

Respostas
Questionamentos aos acadêmicos
Forma Manual Cariogame As duas formas
Qual forma é mais interessante e dinâmica de realizar
– 90% 10%
a montagem do cariótipo humano?
Você considera que acrescentou conhecimento sobre o assunto em
– 65% 35%
questão, realizando a atividade com qual recurso pedagógico?
Qual forma de montagem e análise de cariótipo é mais divertida? – 94% 6%
Qual forma de montagem e análise de cariótipo considera adequada
– 73% 27%
ao nível acadêmico em que você se encontra?
Qual forma de montagem e análise de cariótipo despertou
1,6% 91% 7,4%
mais a sua atenção?

A partir do momento que se utiliza esse tipo um processo educacional inovador usando
de ferramenta, forma-se uma base de profes- recursos tecnológicos (Figura 10), auxilian-
sores que começa a pensar como melhorar do a prática docente tão desafiadora que é o
a construção do conhecimento por meio de ensino da Genética.

Figura 10.
Acadêmicos em prática
utilizando o Cariogame.

Sociedade Brasileira de Genética 51


MATERIAIS DIDÁTICOS

ANEXO 1 tem a identificação de cada par cromossômico


e avaliação de sua estrutura.
Cariótipo e as alterações cromossômicas
numéricas e estruturais A estabilidade do número e da estrutura dos
cromossomos são fundamentais para a ex-
A maioria de nossas células tem 46 cromos- pressão apropriada do genoma. Sendo assim,
somos. Os cromossomos humanos são clas- em geral, a ocorrência de alterações cromossô-
sificados de acordo com o tamanho e a mor- micas está associada a manifestações clínicas.
fologia, considerando em especial a posição As alterações cromossômicas numéricas cor-
do centrômero de cada par cromossômico respondem ao acréscimo ou à perda de um ou
(metacêntricos, submetacêntricos e acrocên- mais cromossomos (aneuploidias). Dentre es-
tricos). Assim, os 46 cromossomos são orga- tas, as alterações numéricas de maior incidên-
nizados em sete grupos que compreendem cia e compatíveis com gestações a termo afe-
uma nomeação de A a G, incluindo o par de tam os cromossomos autossômicos 13, 18, 21
cromossomos sexuais XY, que é heteromórfi- e os cromossomos sexuais (X e Y) e, na maior
co na nossa espécie (o cromossomo X perten- parte destes casos, são trissomias (presença de
ce ao grupo C e o Y, ao grupo G). Cariótipo um cópia adicional do cromossomo). As alte-
ou Cariograma é o conjunto de cromossomos rações na estrutura dos cromossomos podem
de um indivíduo, característico da espécie, ser balanceadas, ou seja, sem perda nem ga-
apresentado com imagens de cromossomos nho de material genético, ou não balanceadas;
ordenados segundo essa classificação padrão, estas últimas comumente acarretam conse-
isto é, de acordo com o tamanho e a posição quências clínicas. Os principais tipos de alte-
do centrômero de cada par cromossômico. O rações estruturais não balanceadas são:
conjunto é denominado de Ideograma quan-
do se realiza a representação diagramática da a) Deleção, perda de um segmento genômico;
morfologia cromossômica. b) Duplicação, segmento genômico presente
A cariotipagem pela análise citogenética pa- em três cópias;
drão envolve em geral uma cultura temporária c) Isocromossomos, deleção de um dos bra-
de células, seguida do preparo de uma lâmina ços cromossômicos e duplicação do outro.
contendo tais células enriquecidas em uma
fase específica da divisão celular, a metáfase. As alteraçõe estruturais balanceadas são:
Durante o procedimento da técnica citogené- a) Inversão, duas quebras no mesmo cromos-
tica, a divisão celular é interrompida na fase somo com posterior ligação dos segmentos
de metáfase, na qual os cromossomos estão no genômicos de forma invertida;
máximo da compactação e podem ser identifi-
b) Translocação, troca de segmentos genômi-
cados individualmente ao microscópio de luz.
cos entre dois cromossomos.
Após a preparação dessas lâminas com as me-
táfases, uma análise citogenética mais simples A ocorrência de uma determinada alteração
pode ser feita utilizando coloração conven- cromossômica pode resultar na manifestação
cional (que “pinta” por igual todo o cromos- de um conjunto de alterações fenotípicas con-
somo), para contagem e avaliação morfológica gênitas, como malformações, atraso de desen-
básica, com classificação dos cromossomos volvimento e deficiência intelectual. Algumas
nos grupos acima mencionados de A-G. As alterações cromossômicas levam a malforma-
técnicas citogenéticas, baseadas em colorações ções tão graves que são incompatíveis com a
que produzem bandas ao longo de todo o cro- vida, ocasionando abortamentos espontâneos
mossomo, permitem a identificação precisa ou óbito nos primeiros meses de vida. A investi-
de cada cromossomo, bem como a análise da gação cromossômica está indicada como exame
estrutura de cada cromossomo pela presença genético diagnóstico em casos de malformações
e posicionamento de cada banda, sempre em congênitas, problemas precoces de crescimento
comparação com o padrão normal. Uma das e desenvolvimento, abortamentos múltiplos,
técnicas mais utilizadas é o bandeamento G, natimortos e morte neonatal, infertilidade,
método de análise citogenética, rotineiramen- história familiar de alterações cromossômicas,
te usado nos laboratórios. Tal técnica produz gestação em mulheres com idade avançada e em
bandas escuras e claras alteradas que permi- tumores (NUSSBAUM et al., 2016).

52 Genética na Escola | Vol. 14 | Nº 1 | 2019


Genética na Escola – ISSN: 1980-3540

AGRADECIMENTOS MALUF, S.W., RIEGEL, M., SCHINZEL, A. Cito-


genética Humana. Porto Alegre, Artmed. 2011,
À Universidade do Estado do Amazonas - 336p.
UEA; Ao Laboratório Samsung Ocean e à NUSSBAUM, R. M.; MCINNES, R. R.; WIL-
Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado LARD, H. F. Thompson & Thompson Genetica
do Amazonas – FAPEAM. Médica. 8º ed. Rio de Janeiro: Elsevier; 2016,
546p.
REFERÊNCIAS SOMMERVILLE, I. Engenharia de Software. 9º ed.
BORGES-OSÓRIO, M. R. e ROBINSON. Genéti- Pearson, 2014, 544p.
ca Humana. 3º ed. Porto Alegre: Artmed, 2013,
776p.

Sociedade Brasileira de Genética 53


MATERIAIS DIDÁTICOS

Investigando
Scoisópolis*

Ursula Simonetti Lovaglio1,2, Isabela Pinho Gomes Assêncio1


1
Graduadas em Ciências Biológicas no Instituto de Biociências,
Universidade de São Paulo, São Paulo, SP
2
Professora na Rede Municipal de São Paulo, SP

Autor para correspondência - ursula.lovaglio@usp.br

* Esta sequência didática foi adaptada da atividade “Filho de Scoisos, Scoisinhos é”, com o propósito de torná-la uma atividade com abordagem investigativa
na disciplina de graduação Ensino por Investigação e Natureza da Ciência, do Instituto de Biociências da Universidade de São Paulo em 2016.

54 Genética na Escola | Vol. 14 | Nº 1 | 2019


Genética na Escola – ISSN: 1980-3540

E ste material aborda os mecanismos genéticos gera-


dores da variabilidade de características em seres
vivos, propondo aos estudantes que acessem noções de
diversidade contidas nos fenótipos e genótipos de seres
imaginários e procurem responder a questões, como: "de
onde vêm as semelhanças entre pessoas de uma mesma
família? E, por que elas não são todas iguais?". A ativida-
de proposta segue a abordagem do Ensino por Investiga-
ção, a qual possibilita análises e possíveis respostas para
um problema a ser estudado e investigado, organizando
informações e se baseando em explicações e conclusões a
partir de dados obtidos através de pesquisas.

Sociedade Brasileira de Genética 55


MATERIAIS DIDÁTICOS

A GENÉTICA CONTEXTO E OBJETIVOS


E A DIVERSIDADE DE APRENDIZAGEM

A diversidade é um conceito muito im-


portante para a biologia e, portanto,
necessário para seu pleno entendimento.
A proposta desta sequência didática é traba-
lhar, no Ensino Fundamental II, o tema de
genética. Sugere-se que ela seja aplicada nos
Mas, antes mesmo que os estudantes pos- 9ºs anos ou de acordo com o currículo de
sam entender como essa diversidade influi cada escola. Estima-se que são necessárias de
no potencial adaptativo de uma espécie duas a três aulas de 45 minutos para realiza-
frente a mudanças ambientais, é preciso ção das atividades propostas.
que aprendam a localizar e identificar a
A sequência tem como objetivos que os es-
ocorrência da variabilidade. Como é perce-
tudantes:
bida a diversidade no dia a dia? A genética
apresenta-se, então, como uma forma de se - construam tabelas para organizar a coleta
olhar para a diversidade em outra perspec- de dados a partir de informações forneci-
tiva e pode ajudar a mostrar a origem da das;
diversidade percebida. A atividade descrita - elaborem explicações escritas e orais em
procura acessar as noções de diversidade grupo com base nos dados, utilizando
contidas nos fenótipos e genótipos de seres conceitos-chave (fenótipo e genótipo);
imaginários para que se busquem respos-
tas para questões como: "de onde vêm as - utilizem para as explicações os mecanis-
semelhanças entre pessoas de uma mes- mos genéticos que geram variabilidade de
ma família? E, por que elas não são todas características em seres vivos (herança ge-
iguais?". nética).
Para isto, serão abordados os seguintes con-
UMA ABORDAGEM teúdos:
INVESTIGATIVA - conteúdos conceituais: herança genética,
A atividade proposta segue a abordagem fenótipo (características físicas), genótipo
do Ensino por Investigação. O Ensino por (fatores);
Investigação possibilita que os estudantes
- conteúdos procedimentais: coleta de da-
respondam a um problema, organizando
dos, construção e interpretação de tabelas,
informações e se baseando em explicações
elaboração escrita e oral de explicação, in-
e conclusões a partir dos dados obtidos.
terpretação de texto, comunicação;
Dessa forma, é possível trabalhar os eixos
da Alfabetização Científica, considerada - conteúdos atitudinais: trabalho em equi-
um objetivo central do Ensino de Ciências pe e respeito aos pares.
(SCARPA, SILVA, 2013).
Além disso, o Ensino por Investigação per-
PROBLEMA PROPOSTO
mite que os estudantes tenham uma pos- Ao sistematizar as informações fenotípicas
tura autônoma, aprendendo os conteúdos e genotípicas das personagens imaginárias,
conceituais juntamente com os conteúdos os estudantes são convidados a descobrir se
procedimentais e atitudinais de uma in- algumas delas podem ser consideradas irmãs
vestigação. Nessa abordagem, o papel dos e selecionar quais as informações poderiam
professores é orientar a investigação e sub- fundamentar tais conclusões. E, assim, cons-
sidiar a aprendizagem. Na presente ativi- truir respostas para a questão central da se-
dade são apresentados os procedimentos quência didática: "Como irmãos podem ser
da investigação e a pergunta norteadora. A tão diversos e semelhantes ao mesmo tem-
organização dos dados e a conclusão ficam po?" Essa pergunta motivadora, uma carac-
por conta dos estudantes. terística importante do Ensino por Investi-
gação, integra, portanto, todas as atividades
pensadas para esta sequência de aulas.

56 Genética na Escola | Vol. 14 | Nº 1 | 2019


Genética na Escola – ISSN: 1980-3540
Os Scoisos são organismos
imaginários da atividade História: 'O desafio dos Scoisinhos' e apre-
“Filho de Scoiso, Scoisinho é!
INSTRUÇÕES
sentação da pergunta norteadora
Uma atividade para ensinar PARA EDUCADORES
e aprender Genética” (ver A atividade começa com a apresentação
referências). Descrição das atividades
das personagens e da história relativa à in-
AULA 1 vestigação a seguir. Como as atividades de
Materiais necessários construção das tabelas e da resposta e refor-
mulação à pergunta motivadora serão reali-
- Parte 1 da história (anexo I) impressa zadas em grupo, pode-se organizar a turma
para cada grupo; em agrupamentos de 3-5 alunos. Neste pri-
- Parte 2 da história (anexo II) impressa meiro momento, é entregue o anexo I e se
para cada grupo; introduz a história do modo preferido, por
exemplo, uma contação ou leitura para os
- Caderno Caderneta de Viagem;
estudantes.
- Lousa e giz.

Parte 1 da história

Boas vindas! O desafio.


Boas vindas!
Scoisópolis é uma cidade que fica escondida no alto das montanhas. Lá vivem incríveis
criaturas, os Scoisos. Poucas pessoas conseguiram chegar até a cidade, portanto, ainda
não se sabe muito sobre elas. Como são? Como vivem? O que comem no café da
manhã?
O desafio é adentrar neste novo mundo e interagir com essas criaturas.
Vocês estão preparados para esse desafio?

Dizer aos estudantes que eles investigarão os as informações coletadas. Explicar que, assim
Scoisos. Para isso, eles podem utilizar a Ca- como os cientistas, eles deverão se basear em
derneta de Viagem, na qual anotarão todas dados para formular explicações.

Continuação da parte 1 da história

Logo na entrada da cidade, três Scoisinhos estão correndo pela grama. Os pequenos vêm
correndo, muito curiosos, na direção de vocês. Eles brincam, pulam e dão muita risada.
Depois do primeiro reconhecimento eles propõem um desafio a vocês:
- Adivinhem se puder, quem aqui é irmão de quem?
Os Scoisinhos são muito parecidos entre si, mas cada um possui características únicas.
Como saber quem é irmão de quem? Durante essa visita, a partir do desafio dos Scoisinhos,
tem-se a seguinte questão para investigar: Como irmãos podem ser tão diversos e
semelhantes ao mesmo tempo?

Olhar com os estudantes as imagens dos e crina). Essas características servirão como
As imagens dos Scoisos Scoisinhos disponíveis no anexo I e listar base para as tabelas construídas a seguir.
utilizadas ao longo da juntos, as características físicas visíveis (sexo,
sequência foram criadas por Entregar o anexo II e continuar a história.
cor da antena, cauda, pinta nas asas, dedos
Mônica Akemi Otake e são
inspiradas na material original
da atividade "Filho de Scoisos
Scoisinho é! Uma atividade para
ensinar e aprender Genética"
(ver referências).

Sociedade Brasileira de Genética 57


MATERIAIS DIDÁTICOS

Parte 2 da história

Olha-se ao redor à procura de pistas para resolver o desafio. Percebe-se, então, que perto
do gramado, duas figuras observam a brincadeira. São Scoisões adultos. Os Scoisinhos
acenam para os Scoisões.
Sabe-se que os Scoisinhos devem ter herdado algumas características de seus progenitores,
afinal, filho de Scoiso, Scoisinho é! Então, para organizar o raciocínio, você lista as
características dos Scoisinhos e dos Scoisões.

Nesse momento, apresentar as imagens dos uma tabela com as características físicas lista-
Scoisões (anexo II) e apontar como suas ca- das anteriormente de cada Scoiso na Cader-
racterísticas físicas apresentam-se de forma neta de Viagem. A tabela deve se assemelhar
similar aos Scoisos filhotes. à Tabela 1 abaixo. Com base nesses dados,
pedir para que os estudantes respondam ao
Nesta etapa, os estudantes já conhecem os
enigma proposto pelos Scoisinhos. É interes-
Scoisinhos e os Scoisões e como eles são fi-
sante que eles apresentem o raciocínio para
sicamente. Pedir aos grupos, que construam
os demais colegas de classe.

Scoisinho 1 Scoisinho 2 Scoisinho 3 Scoisão A Scoisão B Tabela 1.


Evidência I: características
Sexo fêmea fêmea macho macho fêmea físicas de Scoisinhos e Scoisões.
Cor da antena vermelha preta vermelha preta vermelha
Cauda alongada alongada alongada alongada esférica
Pintas nas asas ausentes presentes ausentes ausentes ausentes
Dedos ausentes ausentes presentes presentes ausentes
Crina curta longa longa curta longa

AULA 2 Retomada e sistematização


das anotações da Caderneta de Viagem
Materiais necessários
É interessante que se retomem as atividades
- Parte 3 da história (anexo III) impressa
realizadas na aula anterior, perguntando aos
para cada grupo;
estudantes o que eles lembram daquela in-
trodução. Repassar o desafio proposto pelos
Scoisinhos e anotar novamente o enunciado
na lousa.
Apresentação de novas informações
Parte 3 da história

Todo Scoiso tem a sua carteirinha!


Ao organizar o raciocínio percebe-se que os Scoisinhos são muito parecidos entre si,
porém, com algumas diferenças.
Propondo sua explicação para os Scoisinhos, eles te informam que na cidade de
Scoisópolis cada Scoiso possui uma carteirinha de identificação. Essa carteirinha
contém o conjunto de fatores responsáveis pelas características físicas. Ou seja, cada
característica está relacionada a uma "receita", que está dentro do organismo e esses
fatores podem ser visualizados nas carteirinhas. Para os Scoisos, cada característica é
determinada por uma dupla de fatores: um proveniente do pai e outro, da mãe. Por
exemplo, numa situação em que os pais têm fatores duplo a (aa) para cor de antena,
não seria possível que o filho tivesse na carteirinha um dos fatores A, já que esse fator
não está em nenhum dos parentais correspondentes.

58 Genética na Escola | Vol. 14 | Nº 1 | 2019


Genética na Escola – ISSN: 1980-3540

Apresentar o trecho da história que conta das. Perceber que, nesse passo, os alunos ex-
que, na cidade de Scoisópolis, cada um possui ploram o genótipo dos Scoisos (Scoisinhos e
a própria identificação, na qual consta o con- Scoisões) a fim de estimar o parentesco entre
junto de fatores responsáveis pelas caracterís- as criaturas. Essas novas evidências deverão
ticas físicas de cada criatura. Para introduzir ser adicionadas às anteriores de modo que os
a temática, entregar uma cópia do trecho da educandos a utilizem na busca da resposta ao
história para cada grupo; junto dela estarão as desafio. Para tanto deixar claro que é neces-
carteirinhas dos Scoisinhos e Scoisões (ane- sário comparar a Tabela 1, de fenótipos, com
xo III). Pedir aos estudantes que construam a Tabela 2, de genótipos, para que o enten-
uma tabela com as mesmas características dimento sobre a determinação genética seja
físicas da tabela anterior, listando, especifi- adequado. Vale destacar que não se almeja
camente, os fatores genéticos que as deter- uma resposta única ao desafio, e sim, o acom-
minam na Caderneta de Viagem (ela deve se panhamento das mudanças de raciocínio que
assemelhar à Tabela 2, abaixo). Em seguida, cada nova informação traz. Pode ser que os
fazer juntos um quadro de relações entre as alunos encontrem alguma dificuldade em
características e as possíveis duplas de fatores. entender como os fatores relacionam-se com
Nesse momento, pode-se incluir as noções as características físicas vistas anteriormente.
de dominância e recessividade, homozigose e Nesse caso, é interessante utilizar um mate-
heterozigose. Depois, disponibilizar um tem- rial complementar sobre o assunto, como um
po para que respondam novamente a respei- texto, um vídeo ou uma exposição breve na
to dos Scoisinhos, isto é, quais são irmãos e lousa. Essas intervenções podem ser feitas em
para que reformulem a explicação para esta qualquer momento, conforme a necessidade
resposta a partir das novas informações obti- detectada.

Tabela 2. Scoisinho 1 Scoisinho 2 Scoisinho 3 Scoisão A Scoisão B


Evidência II: fatores de
hereditariedade de Scoisinhos e Sexo XX XX XY XY XX
Scoisões.
Cor da antena Aa aa Aa aa Aa
Cauda Cc Cc Cc CC cc
Pintas nas asas Pp pp PP Pp Pp
Dedos Dd Dd dd dd Dd
Crina Nn nn nn Nn nn

Segunda explicação e comunicação melhantes entre si, já que os fatores dos pais
são limitados. Todavia, com a mistura dos
A próxima etapa é o momento de contar
fatores parentais, há também a possibilidade
para a classe quais são as explicações pro-
de aparecerem características que não exis-
postas pelos grupos s, de forma que finali-
tiam anteriormente.
zem a história de investigação de Scoisópo-
lis. Organizar uma maneira dos educandos
exporem raciocínios e respostas adequadas SUGESTÃO
à pergunta proposta no início da atividade. Caso desejar aprofundamento do tema, uma
É possível que surja mais de uma resposta, sugestão é realizar a atividade original, isto
então deixe espaço para que essas diferenças é, aquele em que se usa inicialmente os per-
sejam comentadas e discutidas. sonagens "Scoisos" (vide referências). Na
atividade original, os estudantes fazem uma
Espera-se que as respostas dos estudantes
simulação de reprodução de um casal de
apresentem a relação entre genótipo e fe-
Scoisos e, assim, podem compreender me-
nótipo, mesmo que não usem esses termos
lhor como as características são passadas de
em um primeiro momento. Assim, os alunos
uma geração para a outra. A atividade é ini-
devem explicar que os mesmos pais podem
ciada com a manipulação dos cromossomos
produzir filhos com características bem se-

Sociedade Brasileira de Genética 59


MATERIAIS DIDÁTICOS

parentais em uma divisão meiótica, seguida objetivos propostos foram cumpridos por
da união dos cromossomos maternos e pa- seus membros. É possível também conside-
ternos para formar descendentes. Dessa for- rar a participação dos estudantes tanto nas
ma, os alunos podem observar a formação de discussões nos grupos, assim como com o
indivíduos diferentes a partir dos parentais e restante da sala na etapa de comunicação. É
refletir ainda mais sobre a pergunta motiva- importante destacar que os instrumentos e
dora da sequência, ou seja, podem olhar para critérios de avaliação escolhidos pelo profes-
a descendência e verificar o quanto irmãos sor devem ser previamente apresentados aos
são parecidos e/ou diferentes entre si. Vale estudantes.
também acessar a atividade para conferir as
seções "Aprendendo a terminologia" e "Notas AGRADECIMENTOS
para o professor" para retomar alguns termos Agradecimentos especiais às nossas colegas
importantes. E também, a seção "Entenden- Mônica A. Otake e Sara A. Watanabe pela
do a atividade" que contém várias questões parceria na elaboração inicial desta sequên-
formuladas para que o estudante aproveite cia. Também à equipe da disciplina Ensino
ao máximo a atividade. por Investigação e Natureza da Ciência, mi-
Como a atividade original usa um material nistrada no Instituto de Biociências da USP
específico a ser emprestado pelo Instituto (IB-USP), na qual nos foi dada a oportuni-
de Biociências, também é disponibilizada dade e o suporte para pensar este trabalho. E,
uma versão adaptada para papel de modo a aos colegas educadores, que fizeram a leitura
diminuir os impedimentos para a realização final da versão do texto.
do procedimento (anexo IV). O anexo traz
os procedimentos, uma tabela de correspon- REFERÊNCIAS
dência entre característica física e fatores de OYAKAWA, J.; DESSEN, E. M. B.; PEREIRA, M.
hereditariedade, os cromossomos dos pais A. Q. Filho de Scoiso Scoisinho é! Uma atividade
(Scoisões) e uma placa com características para ensinar e aprender Genética. Disponível em:
<http://www.ib.usp.br/microgene/files/ma-
para montagem dos filhotes. nuais-9-PDF.pdf>. Acessado em 02/11/2018.
SCARPA, D. L.; SILVA, M. B. A Biologia e o ensino
AVALIAÇÃO de Ciências por investigação: dificuldades e pos-
Os registros feitos na "Caderneta de Via- sibilidades. In: CARVALHO, A. M. P. Ensino de
gem" podem ser utilizados para acompanhar Ciências por investigação: condições para implemen-
tação em sala de aula. São Paulo: Cengange Lear-
a investigação de cada grupo ao longo da ning, p. 129-152, 2013.
sequência e, portanto, avaliar se e como os

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Genética na Escola – ISSN: 1980-3540

ANEXO I
Parte 1 da história

Boas vindas! O desafio.


Boas vindas!
Scoisópolis é uma cidade que fica escondida no alto das montanhas. Lá vivem incríveis criaturas, os Scoisos. Poucas
pessoas conseguiram chegar até a cidade, portanto, ainda não se sabe muito sobre elas. Como são? Como vivem? O que
comem no café da manhã?
O desafio é adentrar neste novo mundo e interagir com tais criaturas.
Vocês estão preparados para o desafio?!
Logo na entrada da cidade, três Scoisinhos estão correndo pela grama. Os pequenos vêm correndo, muito curiosos, na
direção de vocês. Eles brincam, pulam e dão muita risada. Depois do primeiro reconhecimento eles propõem um desafio a
vocês:
- Adivinhem se puder, quem aqui é irmão de quem?
Os Scoisinhos são muito parecidos entre si, mas cada um possui características únicas. Como saber quem é irmão de
quem? Durante essa visita, a partir do desafio dos Scoisinhos, tem-se a seguinte questão para investigar: Como irmãos
podem ser tão diversos e semelhantes ao mesmo tempo?

Figura 1.
Scoisinho 1.

Sociedade Brasileira de Genética 61


MATERIAIS DIDÁTICOS

Figura 2.
Scoisinho 2.

Figura 3.
Scoisinho 3.

62 Genética na Escola | Vol. 14 | Nº 1 | 2019


Genética na Escola – ISSN: 1980-3540

ANEXO II
Parte 2 da história

Olha-se ao redor à procura de pistas para resolver o desafio. Percebe-se, então, que perto do gramado, duas figuras
observam a brincadeira. São Scoisões adultos. Os Scoisinhos acenam para os Scoisões.
Sabe-se que os Scoisinhos devem ter herdado algumas características de seus progenitores, afinal, filho de Scoiso, Scoisinho
é! Então, para organizar o raciocínio, você lista as características dos Scoisinhos e dos Scoisões.

Figura 1.
Scoisão A.

Figura 2.
Scoisão B.

Sociedade Brasileira de Genética 63


MATERIAIS DIDÁTICOS

ANEXO III
Parte 3 da história

Todo Scoiso tem a sua carteirinha!


Ao organizar o raciocínio percebe-se que os Scoisinhos são muito parecidos entre si, porém, com algumas diferenças.
Propondo sua explicação para os Scoisinhos, eles te informam que na cidade de Scoisópolis, cada Scoiso possui uma
carteirinha de identificação. Essa carteirinha contém o conjunto de fatores responsáveis pelas características físicas.
Ou seja, cada característica está relacionada a uma "receita", que está dentro do organismo e esses fatores podem
ser visualizados nas carteirinhas. Para os Scoisos, cada característica é determinada por uma dupla de fatores: um
proveniente do pai e outro, da mãe. Por exemplo, numa situação em que os pais têm fatores duplo a (aa) para cor de
antena, não seria possível que o filho tivesse na carteirinha um dos fatores A, já que esse fator não está em nenhum dos
parentais correspondentes.

Figura 1.
Carteirinhas dos Scoisinhos e Scoisões.

64 Genética na Escola | Vol. 14 | Nº 1 | 2019


Genética na Escola – ISSN: 1980-3540

ANEXO IV
Atividade “Filho de Scoisos, Scoisinho é”, modificada para impressão.

MATERIAIS DA ATIVIDADE
1) Tabela de correspondência dos fatores [Figura 2];
2) Pacote com cromossomos do Scoisão A (cromossomos verdes) [Figura 3];
3) Pacote com cromossomos do Scoisão B (cromossomos laranjas) [Figura 3];
4) Placa com moldes das características para montagem dos Scoisinhos [Figura 4];
5) Três envelopes nomeados ÓVULO; outro, ESPERMATOZOIDE; e outro ZIGOTO.

PROCEDIMENTOS
1) Colocar os cromossomos laranjas virados com a letra para baixo, pegar um cromossomo de cada tamanho e colocar no
envelope ÓVULOS;
2) Em seguida fazer o mesmo com os cromossomos verdes, mas dessa vez colocá-los no envelope ESPERMATOZOIDES;
3) Juntar dois envelopes no envelope ZIGOTO;
4) Retirar cromossomos do envelope ZIGOTO e formar pares de cromossomos de acordo com o tamanho;
5) Utilizando a tabela de correspondência dos fatores, interpretar o código das letras dos cromossomos e montar o filho
dos Scoisos, o Scoisinho, com os moldes de características.

Figura 1.
Materiais e procedimentos.

Características Letras Aparência das características

XX Fêmea (laço)
Sexo
XY Macho (gravata)

AA vermelha
Antena
Aa vermelha
(cor) aa preta
CC alongada
Cauda
Cc alongada
(forma) cc esférica
PP ausentes
Pinta nas asas Pp ausentes
pp presentes
DD ausentes
Dedos Dd ausentes
dd presentes
NN curta
Crina
Nn curta
(comprimento) nn longa
Figura 2.
Tabela de correspondência dos fatores (modificada de OYAKAWA et al.).

Sociedade Brasileira de Genética 65


MATERIAIS DIDÁTICOS

Figura 3.
Cromossomos dos Scoisões.

66 Genética na Escola | Vol. 14 | Nº 1 | 2019


Genética na Escola – ISSN: 1980-3540

Figura 4.
Placa com moldes das características para montagem dos Scoisinhos (modificada de OYAKAWA et al.).

Sociedade Brasileira de Genética 67


RESENHAS

DNA Criminoso -
Show de
Horrores
Lucas Trentin Larentis1, Nédia de Castilhos Ghisi2
1
Graduando em Ciências Biológicas, Universidade Tecnológica Federal do
Paraná, Dois Vizinhos, PR
2
Universidade Tecnológica Federal do Paraná, Campus Dois Vizinhos, PR

Autor para correspondência - llarentis@alunos.utfpr.edu.br

O episódio em análise faz parte da série de televisão DNA Criminoso*.


Os 35 episódios originais, distribuídos em 4 temporadas, foram ao ar
pelo canal pago Investigation Discovery de 2013 a 2016. Show de Horrores,
terceiro episódio da 2ª temporada, conta a história da família Stiles, que são
portadores de uma doença congênita hereditária, a ectrodactilia. Essa doença
é caracterizada por um tipo de malformação das mãos que faz com que elas
fiquem com formato de pinças, similares às de uma lagosta. Muitas gerações
da família Stiles apresentam essa característica há longo tempo.

* MCCARTHY, C. (Produtor),
MORRISON, S. (Editor). DNA

O filme relata a história de vida de Gra-


dy Franklin Stiles, Jr. (1937-1992),
performer de show de horrores em parques
filhas, Dona e Cathy – a última também afe-
tada pela ectrodactilia. Grady Jr. era levado a
tais comportamentos pelo uso excessivo do
Criminoso (série televisiva),
2ª Temporada, Episódio 3.
“Show de Horrores”. Sirens
Media, LLC. Discovery
de diversão durante toda a sua vida. O pai álcool e pelo ressentimento que tinha pelo Communications, LLC. 2014.
dele o arrastou para os palcos quando tinha próprio corpo.
cerca de 5 anos de idade e a partir daí ele fi-
Sem o conhecimento de Teresa, Grady Jr.
cou conhecido como o garoto lagosta. Grady
pede o divórcio e se casa novamente. Com
Jr. cresceu e montou seu próprio espetáculo,
a nova esposa, Barbara, ele tem mais um fi-
incluindo seus filhos afetados pela mesma
lho, Grady Stiles III, também afetado pela
doença. A família lagosta, como eram co-
doença. Na mesma época, Teresa, a primeira
nhecidos, passava por bons momentos, até
esposa de Grady Jr., casa-se com Harry, tam-
Grady Jr. começar a praticar abusos físicos e
bém artista de parques, que era afetado por
psicológicos contra a esposa, Teresa, e suas
um tipo de nanismo, que não foi transmitido

68 Genética na Escola | Vol. 14 | Nº 1 | 2019


Genética na Escola – ISSN: 1980-3540

a Glenny, filho que tiveram. Dona, por não terceiros e incapaz. Bárbara, assim como Te-
aguentar mais os abusos do pai, decide se resa, sofria agressões regularmente, e decide
casar e ir embora, fato que desagrada Grady se separar, fazendo Grady Jr. se reaproximar
Jr., que mata o noivo da filha no dia do ca- de sua antiga esposa, que também estava em
samento e, mesmo com provas, consegue se crise conjugal com seu marido Harry. Assim,
livrar da prisão, alegando ser dependente de os dois voltam a se casar.
“Show de Horrores”. Sirens Media, LLC. Discovery Communications, LLC. 2014.

Figura 1.
Heredograma da família Stiles e
seus possíveis genótipos. Fonte:
Assim viviam em trailers Grady Jr., Teresa e essa conclusão é uma atividade interessante
o autor, 2018. seu filho Glenny, Cathy e uma filha de Cathy. na sala de aula. Trata-se de uma abordagem
Certo dia, Grady Jr., Teresa e Glenny estão pedagógica simples, que engloba vários as-
em casa, vendo TV, quando os dois últimos pectos relacionados ao ensino de genética. A
decidem ir ao trailer dos fundos, onde Cathy atividade pode se destinar tanto a alunos do
mora com a sua filha. Minutos depois, ou- Ensino médio, nas aulas de Biologia, quanto
ve-se barulho de tiros no trailer principal. a acadêmicos do Ensino Superior. A classifi-
Constata-se que Grady Stiles Jr., o garoto cação indicativa do filme é de 14 anos, pois
lagosta, fora assassinado. Após anos de vio- contém cenas de violência. A construção do
lência e inescrupulosidade, os suspeitos do heredograma familiar, como visto na Figura
crime são muitos. As investigações seguem 1, pode ser feita através do software online
e ao final, Glenny confessa que ele e a mãe, Free Online Pedigree Tool Application (FREE,
Teresa, armaram a trama para matar Grady 2016).
Jr. e se vingar dos abusos do passado.
Por meio do filme, podem ser entendidas as REFERÊNCIAS
características básicas dos padrões de heran- FREE Online Pedigree Tool Application. [S.l.]:
Progeny Genetics, LLC. 2016. Disponível em:
ça monogênica, as interações alélicas em um <http://www.progenygenetics.com/online-pedi-
mesmo gene, possibilitando a construção de gree/>.>. Acesso em: 03 set. 2018.
heredogramas. Por exemplo, a construção da
MCCARTHY, C. (Produtor), MORRISON, S. (Edi-
genealogia nesse caso indica claramente que tor). DNA Criminoso (série televisiva), 2ª Tem-
o padrão de herança da ectrodactilia é o au- porada, Episódio 3. “Show de Horrores”. Sirens
tossômico dominante. Evidenciar quais ca- Media, LLC. Discovery Communications, LLC.
racterísticas do heredograma que permitem 2014.

Sociedade Brasileira de Genética 69


UM GENE

Aquaporina 1:
o primeiro gene
codificador de um canal
de água identificado
em humanos

Gabriel José de Carli1, Tiago Campos Pereira1,2


1
Programa de Pós-Graduação em Genética, FMRP, Universidade de São Paulo,
Monte Alegre, Ribeirão Preto, SP
2
Departamento de Biologia, Faculdade de Ciências e Letras de Ribeirão Preto,
Universidade de São Paulo

Autor para correspondência - tiagocampospereira@ffclrp.usp.br

70 Genética na Escola | Vol. 14 | Nº 1 | 2019


Genética na Escola – ISSN: 1980-3540

A molécula de água é essencial para vida, não apenas por


ser um solvente orgânico, mas também por participar
em diversos processos fisiológicos tanto celulares como
sistêmicos. Em processos como filtração renal, manutenção
da temperatura corpórea e controle osmótico celular, o
movimento de moléculas de H2O através de membranas
biológicas é central. Devido à natureza anfipática de
membranas biológicas, o movimento de moléculas de H2O
Anfipático: que possui é desfavorecido, nesse sentido a existência de um canal em
tanto domínios polares quanto
apolares.
membranas que seja permeável à água, como as aquaporinas,
torna esse rápido movimento viável e permite que processos
fisiológicos como os citados acima ocorram eficientemente.

Sociedade Brasileira de Genética 71


UM GENE

O GENE AQP1 braço menor do cromossomo 7, banda 14, e


possui 13 kpb de comprimento, comportan-
N o começo de 1990, o grupo de Peter
Agre e Gregory Preston isolou o DNA
complementar (cDNA) de uma proteína
do 4 éxons (figura 1).
Segundo informações do GeneBank no
KDa: unidade de massa
molecular, mil Daltons.

inicialmente identificada em hemácias hu- NCBI, o gene AQP1 de humanos (Gene


manas. Tal proteína era a CHIP28 ou “pro- ID: 358) pode ser transcrito em até cin-
teína integral formadora de canal de 28kDa”, co formas alternativas de RNA, dos quais
atualmente nomeada Aquaporina 1 [ JUNG, quatro codificam o mesmo tipo de proteí-
1994]. Posteriormente, a localização e a es- na. A isoforma mais abundante da proteína
trutura do gene AQP1 (Aquaporina 1) foi possui 269 resíduos de aminoácidos, com
determinada; tal gene possui uma única có- seu respectivo RNA mensageiro contendo
pia no genoma humano e está localizado no 2914 nucleotídeos (figura 1).

Figura 1.
A estrutura do gene AQP1.
O gene codificador da
aquaporina 1 possui quatro
possui uma forma semelhante a de uma éxons (caixas) e três íntrons
ESTRUTURA PROTEICA (linhas mais finas). O RNA
ampulheta; nesta conformação, o domínio
E O CANAL DE ÁGUA transmembrana 6 se aproxima dos domí-
mensageiro mais abundante
possui aproximadamente
Assim como outras aquaporinas, a aquapo- nios 1 e 2 (ver figura 2A e 2B). Além dis- 3.000 nucleotídeos (nt),
rina 1 pertence a uma superfamília de pro- so, o domínio 3 aproxima-se dos domínios desconsiderando-se a cauda de
teínas chamadas MIP (a sigla do inglês pode 4 e 5. Esta interação entre os domínios poliadenosinas (indicada como
ser traduzida como ‘principais proteínas in- linha horizontal mais espessa
transmembrana permite que as alças B e E na extremidade 3’). As áreas
trínsecas da membrana’) a qual possui uma aproximem-se (ver figura 2A e 2B). Ambas pretas dos éxons compreendem
estrutura característica entre seus membros. possuem um motivo composto por três as regiões não traduzidas no
A estrutura é composta por seis domínios aminoácidos: asparagina, prolina e alanina mRNA; as brancas constituem
que passam pela membrana (transmembra- a região traduzida que codifica
(asn-pro-ala), nesta ordem. Esses dois mo- um polipeptídeo de 269
na) e, ligando tais domínios uns aos outros, tivos unidos formam uma constrição (um resíduos de aminoácidos.
existem cinco alças (figura 2A). pequeno orifício) pelo qual passa apenas Observação: os tamanhos dos
A conformação da aquaporina 1 na mem- uma molécula de água por vez (figura 2B) íntrons estão fora de escala.
brana está demonstrada na figura 2B e [ JUNG et al., 1994].
Motivo: sequência
nucleotídica ou proteica que é
conservada.

72 Genética na Escola | Vol. 14 | Nº 1 | 2019


Genética na Escola – ISSN: 1980-3540

O canal (ou poro) propriamente dito é for- cada motivo NPA-NPA são orientadas para o
Homotetrâmero: complexo mado por um homotetrâmero do polipep- centro, formando assim um canal constituído
formado por quatro unidades tídeo de aquaporina 1. Em tal conformação de por quatro poros pelos quais há a passagem
iguais. homotetrâmero, as constrições formadas por passiva e facilitada das moléculas de água.

Figura 2.
O diagrama da proteína
aquaporina 1. (A) A proteína
em membranas biológicas com
os seis domínios transmembrana
e as 5 alças. (B) Conformação FUNÇÃO FISIOLÓGICA centrada. Essa perda excessiva de água pela
funcional da aquaporina urina pode, eventualmente, levar a uma de-
O movimento de moléculas de água para
1 segundo o modelo da sidratação em algumas situações [KING et
ampulheta (C). Reparar na
dentro/fora das células/tecidos pode ocor-
al., 2001].
formação do poro a partir rer por difusão, mas devido à natureza das
da aproximação dos motivos membranas biológicas (bicamada lipídica) Além dos rins, AQP1 também é considera-
NPAs das alças B e E, cuja este processo é desfavorecido e ocorre a uma velmente expresso no tecido pulmonar, mais
representação está demarcada velocidade limitada. Em situações nas quais precisamente no epitélio endotelial (tecido
pelo círculo descontínuo em
“C”. um fluxo mais rápido e eficiente de água é que reveste internamente as vias aéreas). No
necessário, a simples difusão pode não ser tecido pulmonar, aquaporina 1 tem relação
suficiente diante da demanda. Nesses casos, com a permeabilidade de líquidos entre a
o transporte de água pode ser amplamente superfície do tecido aéreo e o tecido vascu-
favorecido por meio das aquaporinas. Mes- lar. Fisiologicamente, essa permeabilidade é
mo que esse seja um transporte passivo, o importante para a manutenção do volume
fluxo é muito mais ágil do que a simples di- ideal de lubrificação do local onde ocorrem
fusão (figura 3). trocas gasosas e escoamento do excesso de
líquido originado de eventuais edemas (in-
Segundo dados de expressão gênica, AQP1
chaço) [KING et al., 2002].
é majoritariamente expresso nos rins de se-
res humanos, mais precisamente no epitélio Camundongos mutantes para AQP1 de-
do túbulo proximal e na porção descenden- monstraram sintomas semelhantes a hu-
te da alça de Henle de cada néfron. Tanto manos, isto é, dificuldade em produzir uma
o epitélio como a porção descendente da urina concentrada e desidratação após pe-
alça de Henle são locais de intenso fluxo de ríodos de escassez de água. Entretanto, não
líquidos durante a formação da urina. Por- foram observadas alterações morfológicas
tanto, pessoas com deficiência da proteína nos rins ou uma menor viabilidade. Altera-
aquaporina 1 não conseguem reabsorver ções morfológicas renais foram observadas
água durante a produção da urina nessas apenas em camundongos mutantes para
regiões, gerando, assim, uma urina não con- AQP1 e AQP3.

Sociedade Brasileira de Genética 73


UM GENE

Figura 3.
Difusão versus transporte
passivo via aquaporinas.
As moléculas de água podem
res nos rins e sua permeabilidade à água é entrar ou sair das células
GRUPO SANGUÍNEO COLTON por difusão simples, porém
regulada pelo hormônio vasopressina (ou
Em 1968, os autores Race e Sanger des- esse fluxo tem velocidade
hormônio antidiurético, ADH). Na pre- limitada. Em tecidos nos quais
creveram um antígeno em hemácias ade-
sença deste hormônio a urina fica mais con- a passagem de água deve ser
quado para ser utilizado como um grupo mais rápida ou maior, isto pode
centrada devido à maior reabsorção de água
sanguíneo (assim como o sistema ABO ser mediado pelos canais de
através da proteína aquaporina 2. Mutações
e Rh) e o chamaram de antígeno Colton. água (aquaporinas).
neste gene estão associadas ao desenvolvi-
Posteriormente, em 1990 o lócus genômi-
mento de diabetes insipidus.
co CO foi identificado no cromossomo 7
e em 1994 notou-se que o gene AQP1 era O gene AQP3 está localizado no braço me-
responsável pelo antígeno Colton presente nor do cromossomo 9 sendo expresso em
nas hemácias. hemácias, mas com maior expressão no esô-
fago e na pele. Assim como AQP1, sua ex-
O grupo sanguíneo Colton apresenta duas
pressão em hemácias caracteriza um grupo
variações, uma determinada Co(a) e outra
sanguíneo denominado GIL. Em tal grupo
determinada Co(b) (figura 4A). O contras-
sanguíneo, indivíduos com uma mutação
te molecular entre os dois alelos está no resí-
que impede a expressão de AQP3 em suas
duo de aminoácido na posição 45 da proteí-
hemácias possuem a chance de desenvolver
na aquaporina 1: enquanto o grupo Co(a)
anticorpos anti-GIL. Portanto, caso um
possui uma alanina nesta posição, o grupo
paciente, GIL-positivo (expressa AQP3),
Co(b) possui uma valina. Um terceiro e
receba uma doação de sangue de um indi-
mais raro variante deste grupo sanguíneo
víduo GIL-negativo, (não expressa AQP3)
é o Co(a-b-), ou seja, hemácias nas quais
e que possua anticorpos anti-GIL em seu
não há proteína aquaporina 1 (figura 4B)
sangue, terá a ocorrência de uma reação de
[SMITH et al., 1994].
aglutinação. Antígeno: molécula capaz de
desencadear a síntese de um
OUTRAS AQUAPORINAS O gene AQP4 está localizado no braço anticorpo específico.
maior do cromossomo 18 e é a principal
HUMANAS
aquaporina expressa no sistema nervoso
Além de AQP1, a espécie humana possui de humanos. Neste tecido, AQP4 parece
mais 11 genes codificadores de aquaporinas, ter um papel importante na manutenção
brevemente descritas a seguir. do controle osmótico, importante em pro-
O gene AQP2 está localizado no braço cessos de polarização e despolarização de
maior do cromossomo 12, sua proteína é neurônios, isto é, condução de impulsos
exclusivamente expressa nos tubos coleto- nervosos.

74 Genética na Escola | Vol. 14 | Nº 1 | 2019


Genética na Escola – ISSN: 1980-3540

O gene AQP5 está localizado no braço maior da Queratodermia Palmoplantar (PPK) do


do cromossomo 12 e é majoritariamente ex- tipo Bothniana. Neste tipo de doença ocorre
presso em glândulas salivares e lacrimais, o espessamento anormal do tecido devido
onde parece ter papel importante na secre- ao grande acúmulo de queratina na cama-
ção em ambos os tecidos. Diferentes muta- da mais externa da pele (camada córnea), é
ções no gene AQP5 estão associadas com a chamada tipo Bothniana pois foi descrita na
doença autossômica dominante denomina- Suécia, próximo ao golfo de Bótnia.

Figura 4.
Grupos sanguíneos Colton.
A expressão da aquaporina
1 em hemácias caracteriza o
grupo sanguíneo Colton. (A)
Polimorfismos do sistema
Colton: o alelo Co(a+) expressa
O gene AQP6 está localizado no braço maior dade a obesidade uma vez que a liberação de
aquaporina 1 contendo do cromossomo 12 e é majoritariamente ex- metabólitos de lipídeos, como o glicerol, dos
uma alanina na posição presso nos rins. Entretanto, diferentemen- adipócitos fica prejudicado. Além disso, o
45. Indivíduos que não te de AQP1 e AQP2, sua localização é em gene AQP7 de humanos é o único a possuir
apresentarem esse alelo (isto membranas internas da célula, principal- pseudogenes (4 no total), isto é, duplicações
é, Co(a-)) poderão produzir
anticorpos anti-Co(a) se mente de vesículas e sua função está rela- destes genes que perderam a capacidade de
expostos ao antígeno Co(a). cionada com o movimento de ânions entre desempenhar o papel biológico devido a
O alelo Co(b+) expressa compartimentos celulares. mutações acumuladas.
aquaporina 1 contendo uma
valina na posição 45. Indivíduos O gene AQP7 está localizado no braço me- O gene AQP8 está localizado no braço
que não apresentarem esse nor do cromossomo 9 e é majoritariamente menor do cromossomo 16 e sua expressão
alelo (isto é, Co(b-)) poderão expresso em adipócitos (células de gordura). ocorre apenas no cólon (intestino grosso) e
produzir anticorpos anti-Co(b)
Esta aquaporina é uma aquagliceroporina, no pâncreas. Ainda não se tem muitas infor-
se expostos ao antígeno Co(b).
(B) Indivíduos com o genótipo isto é, permite o transporte de glicerol de mações sobre um papel fisiológico da proteí-
Co(a-b-) ou Colton-null dentro de adipócitos para o sistema circula- na aquaporina 8, apenas que este canal pa-
possuem alelos com mutações tório durante metabolismo energético. Mu- rece transportar, exclusivamente, moléculas
no gene AQP1 que resultam em tações neste gene podem levar à suscetibili- de água.
não expressão de uma proteína
funcional. Este grupo pode
possuir ambos anticorpos anti-
Co(a) e anti-Co(b), se expostos
a esses antígenos.

Sociedade Brasileira de Genética 75


UM GENE

O gene AQP9 está localizado no braço Os genes AQP11 e AQP12 estão localiza-
maior do cromossomo 15 e sua expressão dos no braço maior do cromossomo 11 e no
ocorre principalmente no fígado. Assim braço maior do cromossomo 2, respectiva-
como a AQP7, AQP9 é uma aquagliceropo- mente. As aquaporinas 11 e 12 são chama-
rina, relacionada com o movimento de glice- das de super-aquaporinas por possuírem
rol da corrente sanguínea para os hepatóci- uma particularidade: um resíduo de cisteí-
tos. Em cenários de jejum, no qual o nível de na 9 posições após o segundo motivo NPA.
glicose sanguíneo é baixo, há o transporte e Enquanto AQP11 possui uma expressão em
o uso de glicerol pelo fígado para um proces- vários tecidos como intestino delgado, rins,
so chamado gliconeogênese (produção de fígado e testículos, AQP12 é quase que ex- Gliconeogênese: produção
glicose a partir de glicerol). clusivamente expresso nos ácinos pancreá- de glicose a partir de
ticos (também há uma baixa expressão na precursores que não sejam
O gene AQP10 está localizado no braço hexoses, tal como o glicerol.
retina). A proteína aquaporina 11, assim
maior do cromossomo 1 e é abundante-
como a aquaporina 6, possui localização
mente expresso no intestino delgado. Assim
intracelular, mais precisamente no retículo
como outra aquaporina expressa no intestino
endoplasmático rugoso, sua disfunção gera
(AQP8), não há muitas informações funcio-
vacúolos nessa organela originados de apop-
nais sobre este canal, contudo análises com-
tose, autofagia ou de problemas de endoci-
parativas sugerem que a AQP10 pode ser
tose ou exocitose. A proteína aquaporina 12
uma aquagliceroporina.
também se localiza intracelularmente e está
relacionada com a exocitose de grânulos de
proenzima (precursor inativo de enzimas)
que atuam na digestão.

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Genética na Escola – ISSN: 1980-3540

CONCLUSÃO A passagem de moléculas de água de den-


tro para fora da célula, além de compar-
O primeiro gene codificador de aquapori-
timentos celulares para o citoplasma (ou
na em humanos a ser descoberto e caracte-
vice-versa) é central em processos celulares
rizado foi AQP1, por volta de 1990; quase
e fisiológicos como filtração renal, manu-
30 anos depois, o número de aquapori-
tenção da osmolaridade e até controle de
nas descobertas em humanos subiu para
temperatura. Devido à natureza de mem-
12. Enquanto algumas proteínas, como
branas biológicas (bicamada lipídica), tal
aquaporina 1 e aquaporina 2, possuem
movimento da molécula de água é desfa-
uma função fisiológica bem estabelecida,
vorecido, desse modo a existência de ca-
outras como aquaporinas 8, 10, 11 e 12
nais que permitem um rápido transporte
ainda necessitam de uma maior elucidação.
de água e outros solutos (como glicerol e
Para tal, o meio científico vem se utilizan-
ureia) tornam viáveis vários dos processos
do de animais modelos, geralmente ca-
citados.
mundongos mutantes que não expressam
uma aquaporina específica.

REFERÊNCIAS
JUNG, J. S., PRESTON, G. M., SMITH, B. L., KING, L. S., NIELSEN, S., AGRE, P., BROWN, R.
GUGGINO, W. B., AGRE, P. Molecular struc- H. Decreased pulmonary vascular permeability
ture of the water channel trough aquaporin in aquaporin-1-null humans. Proc. Nat. Acad. Sci.
CHIP: the hourglass model. J Biol Chem v. 269, v. 99, p. 1059-1063, 2002.
n. 20, p. 14648-14654, 1994.
SMITH, B. L., PRESTON, G. M., SPRING, F.,
KING, L. S., CHOI, M., FERNANDEZ, P. C., ANSTEE, D. J., AGRE, P. Human red blood cell
CARTRON, J.-P., AGRE, P. Defective urinary aquaporin CHIP: I. Molecular characterization
concentrating ability due to a complete deficiency of ABH and Colton blood group antigens. J. Clin.
of aquaporin-1. New Eng. J. Med. v. 345, p. 175- Invest. v. 94, p. 1043-1049, 1994.
179, 2001.

Sociedade Brasileira de Genética 77


UM GENE

Gene COMT
e sua possível relação
com a esquizofrenia

Leopoldo Silva de Moraes1, Marcelina Ribeiro da Silva2, Lorena Araújo da Cunha3,


Simone Machado da Rocha4, Carlos Alberto Machado da Rocha5
1
Professor da Faculdade Metropolitana da Amazônia (FAMAZ), Belém, PA
2
Acadêmica de Enfermagem da Faculdade Metropolitana da Amazônia (FAMAZ), Belém, PA
3
Doutoranda do Programa de Pós-graduação em Neurociência e Biologia Celular, Universidade Federal do Pará (UFPA), Belém, PA
4
Licenciada em Ciências Biológicas, Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Pará (IFPA), Belém, PA
5
Professor do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Pará (IFPA), Campus Belém, Belém, PA

Autor para correspondência - camrocha@hotmail.com; carlos.rocha@ifpa.edu.br

78 Genética na Escola | Vol. 14 | Nº 1 | 2019


Genética na Escola – ISSN: 1980-3540

A esquizofrenia é um transtorno psiquiátrico grave


e acomete pessoas de todas as classes sociais.
Caracterizado por sintomas positivos como psicose,
delírios e alucinações, e sintomas negativos como
retraimento social e distanciamento afetivo, que são
causados por diversos fatores biopsicossociais; fatores
genéticos podem estar intimamente relacionados
ao desenvolvimento desta doença. Neste artigo é
abordada uma possível relação do gene COMT com
o aparecimento de alterações cerebrais envolvidas no
surgimento da esquizofrenia. O gene COMT localiza-
se no braço longo do cromossomo 22, codifica a
enzima COMT (catecol-O-metiltransferase) que está
envolvida na via de degradação de neurotransmissores
catecolaminérgicos como a dopamina. O artigo também
mostra um polimorfismo funcional deste gene, que
afeta a disponibilidade da enzima e, consequentemente,
altera importantes vias dopaminérgicas. Uma hipótese
interessante considera estas alterações como possíveis
causas de esquizofrenia.

Sociedade Brasileira de Genética 79


UM GENE

UMA APRESENTAÇÃO dos desordenadamente, podem desenvolver


o quadro patológico da doença.
DA ESQUIZOFRENIA

A esquizofrenia é um transtorno mental É possível que vários genes em combina-


de evolução crônica e desenvolvimen- ção sejam os responsáveis biológicos por
to heterogêneo, o que levou pesquisadores alterações no funcionamento cerebral. O
a classificá-la como uma síndrome clínica ambiente, ou seja, as relações vitais que a
complexa que acomete pessoas de todas as pessoa estabelece podem funcionar como
classes sociais. Considerada como o mais fatores psicossociais estressores que afetam
grave dos transtornos psiquiátricos e um a expressão desses genes, fazendo com que a
grande problema de saúde pública, a esqui- doença apareça. Assim, os fatores psicológi-
zofrenia apresenta um risco de morbidade cos ou ambientais não seriam precisamente
de 7,2/1000 pessoas na população mundial, causadores da esquizofrenia, mas sim fatores
embora ocorram diferenças entre as estima- de vida que atuariam como gatilhos para o
tivas de prevalência de países desenvolvidos início das alterações cerebrais da doença. Anedonia é a perda do
para países em desenvolvimento (3,3 vs. 2,6 interesse e afastamento de
por 1000, respectivamente). Por outro lado, ESQUIZOFRENIA E GENÉTICA todas as atividades prazerosas.

a esquizofrenia é mais incidente nos homens, A observação de maior número de casos de


estimando-se em 1,4:1 a proporção de inci- esquizofrenia em certas famílias levou os pes-
dência entre homens e mulheres. quisadores a sugerirem que os componentes
O portador desta desordem mental apresen- genéticos estão intimamente relacionados à
ta diversos sintomas, que podem ser dividi- etiopatogenia da doença. Em estudo re- Etiopatogenia é a análise
cente, divulgado na revista Nature (KAHN das causas ou do processo
dos em três categorias: os sintomas positivos de desenvolvimento de uma
manifestam-se como psicose recorrente, que et al., 2015), os pesquisadores compararam
doença.
é a "perda de contato com a realidade", con- o genoma de 37 mil pessoas com a patologia
sistindo em delírios, alucinações, além de e outras 113 mil sem o transtorno. Nessas
fala e comportamento desorganizados; os análises, as variações genéticas que aparecem
sintomas negativos caracterizam a síndrome significativamente mais vezes nas pessoas
amotivacional, que inclui retraimento social, com o transtorno são consideradas “associa-
distanciamento afetivo e anedonia, além de das” ao distúrbio.
iniciativa e energia diminuídas; finalmente, Os estudos nessa área já permitiram a iden-
os sintomas cognitivos são expressos como tificação de numerosas regiões do genoma
um amplo conjunto de disfunções cognitivas, humano que mantêm alguma relação com a
incluindo prejuízos na atenção, na velocidade esquizofrenia. Embora ainda sejam lentos,
de processamento, no raciocínio, no aprendi- o maior valor desses avanços refere-se à es-
zado e na memória. Estudos epidemiológi- perança de que venham a ajudar no desen-
cos indicam o risco de suicídio e apontam volvimento de tratamentos mais bem dire-
que a expectativa de vida para pacientes com cionados e, com isso, mais eficazes. Uma das
esquizofrenia é cerca de 20% mais curta em regiões já identificadas no genoma é a banda
relação à da população em geral. 22q11.2, ou seja, um pequeno trecho do bra-
Em relação às causas, a esquizofrenia é mul- ço longo do cromossomo 22 (Figura 1). Os
tifatorial, ou seja, um transtorno causado genes localizados nesta região, que poten-
por diversos fatores: biológicos, emocionais cialmente podem estar envolvidos na gênese
ou psíquicos e ambientais ou sociais. Os fa- da esquizofrenia, são relacionados ao neuro-
tores psicossociais estão ligados ao estado de desenvolvimento e à maturação cerebral. A
estresse elevado, situações sociais e emocio- deleção de 22q11.2 representa o principal Deleção é a perda de um
nais intensas. Os fatores biológicos incluem fator de risco conhecido para o desenvolvi- segmento do material genético
mento da esquizofrenia. Estima-se que 25% de um cromossomo. O tamanho
genética e também aqueles que são devidos da deleção pode variar de um
a uma lesão ou anormalidade de estruturas das crianças que apresentem esta deleção de- único nucleotídeo a seções
cerebrais. Enfim, fatores como biológicos, senvolverão esquizofrenia na adolescência ou maiores que um gene.
ambientais ou emocionais quando estimula- na idade adulta.

80 Genética na Escola | Vol. 14 | Nº 1 | 2019


Genética na Escola – ISSN: 1980-3540

Figura 1.
A Banda 22q11.2. Em (A)
são mostradas as bandas do
cromossomo 22 com a seta
indicando a localização da
banda 22q11.2. Em (B) um
idiograma do cromossomo 22,
apresentado o COMT e outros O GENE COMT das duas formas da enzima: COMT ligada
genes da banda 22q11.2. à membrana (Membrane-bound COMT
E A ENZIMA COMT = MB-COMT) e COMT solúvel (Soluble
O gene COMT é um dos principais candi- COMT = S-COMT). Assim, o gene ex-
datos a fenótipos psiquiátricos. Ele codifica pressa duas espécies de mRNA, cujos trans-
uma enzima envolvida na via da degradação critos primários medem 1,6 e 1,9 kb e apre-
Transmissores de transmissores catecolaminérgicos sentam distribuição diferente nos tecidos.
catecolaminérgicos são ou catecolaminas de forma que a variação na A expressão dos transcritos é regulada por
substâncias químicas do grupo sua atividade pode ter efeitos específicos no
das catecolaminas, que atuam dois promotores. O promotor P1 expressa o
córtex pré-frontal (como, por exemplo, no transcrito menor de um modo tecido-especí-
na comunicação entre células
do sistema nervoso. mecanismo de transmissão da dopamina) e fico e o mRNA, mais curto, produz apenas
na memória de trabalho (memória de curto o polipeptídeo S-COMT. O promotor P2
prazo). é responsável pela expressão do transcrito
A sigla COMT para o gene (COMT para a mais longo (MB-COMT) e capaz de sinte-
enzima) refere-se ao nome da enzima: cate- tizar ambas as isoformas da enzima.
col-O-metiltransferase. Localizado no braço Portanto, duas versões da enzima COMT
longo do cromossomo 22, o gene COMT é são feitas a partir do gene COMT. A for-
constituído por cerca de 28.369 kb (entre ma mais longa, chamada de catecol-O-
os pares 19.941.607 e 19.969.975). O gene -metiltransferase ligada à membrana (MB-
contém seis éxons, dos quais os éxons 1 e -COMT), é produzida principalmente por
2 são não-codificantes (Figura 2). No éxon células nervosas no cérebro. Essa isoforma
3 localizam-se os códons MB-ATG e S- apresenta peso molecular de ~30 kDa, com
-ATG, responsáveis pelo início da tradução 271 resíduos de aminoácidos e foi escolhida

Sociedade Brasileira de Genética 81


UM GENE

como a sequência canônica. Outros tecidos e chamada catecol-O-metiltransferase solúvel


órgãos, incluindo o sangue, o fígado e os rins, (S-COMT), com 221 resíduos de aminoáci-
produzem uma forma mais curta da enzima dos e peso molecular de ~25 kDa.

Figura 2.
Gene COMT e seus
transcritos. (A) Representação
As catecolaminas são aminas derivadas do A inativação das catecolaminas ocorre por da organização de éxons
aminoácido tirosina. Seu nome refere-se à dois tipos de reação: desaminação oxidativa, e íntrons do gene (sem
presença de um grupo catecol (grupo ben- catalisada pela monoaminoxidase (MAO); obediência de escala). As linhas
representam íntrons e as caixas
zeno com duas hidroxilas laterais). As mais O-metilação, catalisada pela COMT. A representam éxons. (B) As duas
conhecidas são a dopamina, noradrenalina COMT tem como cofator o íon Mg++ e ca- espécies de mRNA.
e adrenalina (ou epinefrina), consideradas talisa um processo de degradação extraneu-
aminas biogênicas, ou seja, aminas biologi- ronal pela transferência de um grupo metil
camente ativas. Dopamina e noradrenalina de S-adenosilmetionina (SAM) para um
funcionam como neurotransmissores no en- grupo hidroxila em um núcleo de catecol
céfalo. Além disso, a medula adrenal também (Figura 3).
sintetiza noradrenalina e adrenalina.

Figura 3.
Reação de O-metilação de
As reações catalisadas pelas enzimas MAO (HVA), produzido a partir da dopamina, catecolamina. A enzima COMT
e COMT podem ocorrer em qualquer se- e ácido vanilmandélico (VMA), produzi- catalisa a transferência de
quência e seus produtos finais são excre- um metil da SAM para uma
do a partir da noradrenalina e adrenalina
hidroxila do núcleo catecol.
tados na urina como ácido homovanílico (Figura 4).

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Genética na Escola – ISSN: 1980-3540

Figura 4.
Síntese e degradação de
catecolaminas. Os catabólitos
ácido homovanílico (HVA) e
ácido vanilmandélico (VMA) são
excretados na urina. RELAÇÃO DE COMT O nível de dopamina na área pré-frontal
está intimamente associado à ação da en-
COM A ESQUIZOFRENIA zima COMT. Alterações genéticas, lesões
Uma vez que a enzima COMT desempenha ou anormalidades de estruturas cerebrais
um importante papel no catabolismo de neu- podem afetar a disponibilidade da enzima.
rotransmissores catecolaminérgicos ao nível Com a redução de COMT surgem efeitos
dos terminais sinápticos, o desequilíbrio em hiperdopaminérgicos; o excesso de COMT
suas taxas pode levar a uma desordem hor- promove os efeitos hipodopaminérgicos
monal e fisiológica capaz de dificultar a dis- (Figura 5).
criminação ideal dos dados da realidade.

Figura 5.
Atividade e degradação
da dopamina. Variações na
disponibilidade da enzima
COMT afetam o nível de
atividade da dopamina.

Sociedade Brasileira de Genética 83


UM GENE
A via dopaminérgica
Uma hipótese interessante considera que desordenado); enquanto que as alterações na mesolímbica, uma das quatro
maiores vias dopaminérgicas
uma das possíveis causas da esquizofrenia via dopaminérgica mesocortical podem
do cérebro, também chamada
envolve o metabolismo e neurotransmis- estar relacionadas aos sintomas negativos via de recompensa, é uma
são de dopamina por comprometimento de (redução do afeto, anedonia, iniciativa dimi- via que se inicia na área
certas vias dopaminérgicas (Figura 6). O nuída) e cognitivos. Os sintomas positivos tegmental ventral (no centro do
mal funcionamento da via dopaminérgica parecem estar associados ao excesso de do- mesencéfalo) e forma conexão
com o sistema límbico através
mesolímbica pode estar vinculado ao apa- pamina e os sintomas negativos e cognitivos do núcleo accumbens.
recimento dos sintomas positivos da esqui- a uma redução.
zofrenia (delírios, alucinações, pensamento
A via dopaminérgica
mesocortical é uma via
neuronal que conecta a área
tegmental ventral (no centro
do mesencéfalo) ao córtex
cerebral, em particular aos
lobos frontais. É essencial para
a função cognitiva do córtex
pré-frontal dorsolateral e
provavelmente está envolvida
em aspectos de motivação e
resposta emocional.

Figura 6.
Vias dopaminérgicas
O gene COMT contém um polimorfismo com a esquizofrenia. A etiologia multifato- relevantes para os sintomas
da esquizofrenia. ATV = área
que causa, na posição 158 do polipeptídeo rial, aliada à complexidade fenotípica dentro tegmental ventral; NA = núcleo
(enzima COMT), a mudança de aminoáci- do quadro clínico, dificulta a obtenção de accumbens.
dos valina (Val) por metionina (Met), que fortes conclusões sobre a COMT na esqui-
promove modificação da atividade enzimá- zofrenia. No entanto, pesquisas emergentes
tica: a COMT com valina na posição 158 que levam mais em conta todos esses níveis
(COMT-Val) mostra uma capacidade de de complexidade estão começando a fornecer
degradação pós-sináptica de dopamina cerca um apoio promissor, mas longe de definiti- Polimorfismo é a existência
de 4 vezes maior que COMT-Met. Assim, vo, para a visão de que a COMT influencia a de duas ou mais variantes
o polimorfismo funcional Val158Met no suscetibilidade a pelo menos algumas formas genéticas em uma população de
indivíduos em que, no mínimo,
gene COMT afeta a regulação de dopami- de psicose.
duas delas têm frequências
na, pois nos indivíduos homozigotos para o Além de um possível papel na gênese da es- acima de 1%.
alelo Val (Val-Val), chamados inativadores quizofrenia, tem sido demonstrada grande
rápidos, a enzima é eficaz no catabolismo da probabilidade de relação entre polimorfis-
dopamina. Em contraste, a homozigose para mos do gene COMT e a susceptibilidade ao
o o alelo Met (Met-Met), nos indivíduos transtorno obsessivo-compulsivo, depressão
chamados de inativadores lentos, favorece a e transtorno bipolar. Finalmente, o cenário Polimorfismo funcional
ocorrência de efeitos hiperdopaminérgicos, mais provável pode ser assim resumido: o corresponde ao tipo
possivelmente relacionados a sintomas po- gene COMT mantém alguma relação com de polimorfismo que
sitivos da esquizofrenia. Finalmente, indiví- certas desordens psiquiátricas, como a esqui- comprovadamente influencia as
duos heterozigóticos (Val-Met) têm catabo- funções dos genes.
zofrenia, e tudo indica que na patogênese da
lismo intermediário entre os dois primeiros. esquizofrenia, além do gene COMT, ocor-
Ainda hoje, são controversos os resultados rem contribuições variáveis de alguns outros
dos estudos abordando a relação de COMT genes envolvidos.

84 Genética na Escola | Vol. 14 | Nº 1 | 2019


Genética na Escola – ISSN: 1980-3540

REFERÊNCIAS KAHN, R. S.; SOMMER, I. E.; MURRAY, R. M.;


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da. 5a edição. Porto Alegre: Artmed, 2012.

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