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Curso preparatório para ingresso em cursos de Pós-Graduação em Artes Visuais- 2013


Ministrante: Maria Helena Bernardes (texto 02)

Fotografia: entre documento e arte contemporânea (André Rouillé)1

O autor discute os diferentes papeis atribuídos à fotografia e sua prática no contexto


cultural, desde a apresentação do daguerreotipo à Academia de Ciências, em 1939, até a
recente incorporação à prática artística contemporânea. O advento da produção mecânica de
uma imagem do mundo é situado por Rouillé como índice de modernidade [29] produto da
visão de mundo consequente revolução industrial. O desaparecimento da mão, da marca e o
domínio da máquina afastam a fotografia da expressão, do intuitivo e do artístico. A
“fotografia documento” surge como resposta a uma “necessidade” da mesma sociedade que
produzirá o Positivismo na segunda metade do século XIX. O declínio da fotografia sinaliza o
declínio do documento e da própria Era Industrial, assim como uma nova revolução dos meios
de produção de imagem. [30-31]

Ao final do século XIX, o Pictorialismo buscou submeter a fotografia às características


da principal das Belas Artes, a pintura, introduzindo parâmetros neoclássico e românticos
(composição); temáticos (natureza-morta e paisagem), mecânicos ( “flou”) e, especialmente,
manuais (interferência nas cópias fotográficas: colorização com fins de “estetização” e
introdução da marca da mão, da expressão).

A fotografia documento em debate:

À ideia de documento associam-se outros aspectos, tais como, seriação, arquivo e


álbum, associados, por sua vez, à ideia de conformação de discursos. Trata-se de um projeto
de exaustão do real, de redução à escala humana daquilo que existe em escala magnifica (por
ex., a documentação do conjunto dos detalhes arquitetônicos do Palácio do Louvre) ou, então,
dedar visibilidade e arquivar o universo minúsculo, tornando ambos – macro e micro –
acessíveis ao “arquivamento” e ao “enciclopedismo” [97-98].
“A união da fotografia e do álbum constitui a primeira grande máquina moderna a
documentar o mundo”. [98]. “A fotografia fragmenta, o álbum e o arquivo reconstituem os
conjuntos, ordenam e produzem sentido” [101].
Rouillé relembra as missões em viagem a lugares remotos ou “exóticos”, delegadas a
fotógrafos durante o Segundo Império francês com a atribuição de “documentar tudo o que
pudesse interessar às ciências físicas e naturais” [99].
No livro, são revistos sucessivos debates históricos envolvendo a assimilação da
fotografia pelo campo da arte, a defesa desse processo e sua rejeição, como também é
lembrada a tensão no campo dos produtores de imagem representada pelas disputas entre
atores sociais que aí se inscrevem nos papeis de “artistas-fotógrafos” e “fotógrafos-artistas”.

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ROUILLÉ, André. A Fotografia: entre documento e arte contemporânea. São Paulo: SENAC, 2009.
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Rouillé interroga as diversas teses que apresentaram a fotografia como registro,


documento, sequestro do real: seja a ideia de “rastro do real” (Pierce), ou de captura do
passado, o “isso foi” da fotografia e sua “adesão do referente” (Barthes). Afirma Rouillé:
“como qualquer outra crença, a da verdade documental da fotografia encontra-se em período
de estiagem após ter conhecido altos níveis. [Sua validação] certamente se sustenta no fato de
que a fotografia aperfeiçoa, racionaliza e mecaniza a organização imposta ao Ocidente a partir
do século XV a forma simbólica da perspectiva, o hábito perceptivo que ela suscita e o
dispositivo da câmara obscura, A perspectiva é organização fictícia, imaginária, reputada por
imitar a percepção; (...) um enquadramento codificado, convencional. [Tal] hábito perceptivo
(...) é sistematizado pela ótica e pelo emprego obrigatório da câmara escura, que
anteriormente era apenas um acessório facultativo da panóplia dos pintores”. [63] Para
concluir que nenhuma máquina “registra sem transformar” e que “as posturas semiótica e
ontológica ocultaram [esse fato] e acentuaram em demasia as noções de índice, de sinal, de
impressão, isto é, de contato direto e imediato, e mesmo as noções de memória e de vestígio,
isto é de registro. Desse modo, as práticas e as imagens – sempre concretas, singulares e
transformadoras – foram negligenciadas em benefício do dispositivo abstrato, muitas vezes
elevado á categoria de paradigma e misturado com ‘a’ fotografia em sua totalidade. Da coisa à
imagem, o caminho nunca é reto, como queriam os empiristas e como queriam os enunciados
do verdadeiro fotográfico. (...) A imagem constrói-se no decorrer de uma sucessão
estabelecida de etapas (o ponto de vista, o enquadramento, a tomada, o negativo, a tiragem,
etc.), através de um conjunto de códigos de transcrição da realidade empírica: códigos óticos
(a perspectiva), códigos técnicos (inscritos nos produtos e nos aparelhos), códigos estéticos (o
plano e os enquadramentos, o ponto de vista, a luz, etc.), códigos ideológicos, etc. Muitas
sinuosidades que vêm perturbar as premissas tão sumárias do enunciado do verdadeiro
fotográfico” [79].

Participações da fotografia no campo da arte até 1980:


1. Entre 1960 e 1978: fotografia-ferramenta e fotografia-vetor
Fotografia ferramenta: é om uso da câmera fotográfica feito por artistas plásticos desde os
impressionistas (Degas), até Alto Modernismo (Francis Bacon). Contribuem para uma
transformação nos processos artísticos, mas não há transformação ou contribuição para a
própria fotografia e sua teoria.
Fotografia vetor: no contexto do conceitualismo (1960/70) e dos processos artísticos
extramuro, a fotografia ocupa um “lugar artisticamente secundário” evidenciado por
“negligências técnicas e estéticas” que caracterizam a participação da fotografia na arte da era
da desmaterialização: cópias de “pequeno formato, tomadas destituídas de pesquisa e
originalidade formal, composições banais, tiragens rudimentares”. [323]

2. A partir de 1979: fotografia-material (arte fotografia)


Arte-fotografia: aliança que se caracteriza por três grandes linhas:
- pôs fim ao ostracismo da fotografia, incorporando-a finalmente ao campo da arte;
- assegurou a presença da arte-objeto posta em risco pelos processos de desmaterialização;
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- desencadeou um “forte movimento de secularização da arte” [338]


Na qualidade de vetor ou de ferramenta, “a fotografia ficava alheia à arte”. Por outro
lado, utilizada como material “ela se mistura à arte (...) em obras que aliam à matéria
fotográfica uma concepção e uma área de circulação artísticas” [337]. O autor prefere o termo
“material” ao recorrente “medium”, utilizado “indistintamente para designar todos os tipos de
cruzamento entre a fotografia e a arte”. Pela amplidão e novidade que o material-fotografia
aporta ao campo da arte, “tais mudanças traçam os contornos de uma outra arte dentro da
arte”. [337].

A fotografia-material da arte:

O autor postula que, embora os processos artísticos do conceitualismo e da arte


extramuros tenham aberto definitivamente “as portas das galerias e dos museus de arte para
a fotografia” [326], apenas na virada dos anos de 1980 é que a fotografia iria se tornar “um dos
principais materiais da arte contemporânea”. “A diferença entre vetor e material não é de
grau, mas de natureza.” [325]
Na condição de ferramenta ou vetor, a fotografia “era utilizada, sem ser especialmente
trabalhada: o tratamento precário das provas equivaleria a uma rejeição do saber-fazer
fotográfico”. (...) “A partir de 1980 isso muda: os artistas dominam perfeitamente o
procedimento, muitas vezes as imagens são de excelente qualidade técnica e, às vezes, de
tamanho monumental. A fotografia suplantou sua antiga função subalterna de ferramenta ou
vetor para tornar-se um componente central das obras: seu material”. [326]
Como precursores da fotografia-material o autor situa, entre os mestres e estudantes
da Bauhaus, Moholy-Nagy, e entre os artistas Dada, (cuja intenção era quase exclusivamente
iconoclasta), ressalva as experiências em fotomontagem de Raoul Haussmann: o artista não
mais se apresenta na acepção romântica do criador absoluto (gênio), mas assume uma
identidade plenamente moderna, a de “montador”.
A partir de 1980, consoante com as transformações socioculturais, em um contexto
em que se proclama a “falência das antigas oposiçõe3s e exclusões” e “já não é mais
inconcebível ser bissexual (hetero e homo), ou ser plástico, isto é, optar abertamente por uma
combinação sem limites das práticas e dos materiais” é possível que surja uma obra como a de
Boltanski “ao mesmo tempo, plenamente pictórica e totalmente fotográfica”. [340]
É um traço característico da arte-fotografia: “a fotografia passa do status de
documento (ferramenta ou vetor) para o de material artístico quando a representação
produzida é abolida na apresentação dada”. (Ou seja, visa menos à mimese do que à
apresentação do que é em si mesmo, na sequência dos ready-mades de Duchamp, que não
representam o exterior, mas se apresentam diante do espectador sendo exatamente o que
são). “As faculdades de apresentação da fotografia, o fato de ela ser uma impressão luminosa
das coisas e de que nela se entrecruzem o material de registro e o material inscritível,
apontam-na como o material artístico mais apropriado para tal fim”. [342]

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