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LEMOS, Masé. Poética(s) de OVNI. Alguns percursos teóricos da (pós) poesia moderna e contemporânea.

O Percevejo Online, Revista do


Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas PPGAC/ UNIRIO, vol. 06, n. 02, p. 128-150, Julho-Dezembro 2014.

POÉTICA(S) DE OVNI
Alguns percursos teóricos da (pós) poesia moderna e
contemporânea
Masé Lemos, UNIRIO

Resumo | A partir da leitura do ensaio “Para aonde vão os cães?” (2004),


do teórico e poeta francês Jean-Marie Gleize, pretendemos analisar a noção
de pós-poesia criada por Gleize e que questiona a autonomia e a
especificidade genérica. Iremos também apresentar a Revue de Littérature
Générale (RGL) criada nos anos 1990 por Pierre Alferi e Olivier Cadiot, de
onde surgiu a noção de OVNI (objetos verbais não identificáveis) como
releitura da arte minimalista. Tendo em mira esses pressupostos, surge a
seguinte indagação: com quais teorias seria possível pensar a literatura e a
poesia hoje?
Palavras-chave | Jean-Marie Gleize | Pierre Alferi | pós-poesia | OVNI

Abstract | From the reading of the theorist and french poet Jean-Marie
Gleize's essay “Where do the dogs go?” (2004), we intend to analyze the
notion of post-poetry created by Gleize, which questions the autonomy and
the specificities of the linguistics genders. We will also present the Revue de
Littérature Générale (RGL) created in 1990 by Pierre Alferi and Olivier
Cadiot, from where started the notion of UFO (unidentified flying object) as
a rereading of the minimalist art. In view of this assumption, the following
question arises: With which theories would be possible to think literature
and poetry today?
Keywords | Jean-Marie Gleize | Pierre Alferi | post-poetry | UFO

Masé Lemos é professora da Escola de Letras da UNIRIO e


doutora em Letras pela Université Sorbonne Nouvelle - Paris 3. Líder do
Grupo de Pesquisa do CNPq "Literatura e Linguagens: fronteira, espaço,
performance, memória", pesquisa atualmente a poesia contemporânea.

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Poeta e tradutora, é autora de "Marcos Siscar" (Eduerj,


2011) e coorganizou o livro "Estudos de Paisagem: literatura, viagens e
turismo cultural" (2014, Oficina Raquel).

Masé Lemos is a Professor of Letters atUNIRIO School and a PhD in


Literature from the Université Sorbonne Nouvelle - Paris 3. Leader of the
Research Group of CNPq "Literature and Languages: border, space,
performance, memory," currently researching contemporary poetry. Poet
and translator, is the author of "Mark Siscar" (Eduerj, 2011) and co-
organized the book "Landscape Studies: literature, travel and cultural
tourism" (2014, Raquel Workshop).

“Porque existem várias artes e não apenas uma?” pergunta Jean-Luc


Nancy em seu livro As musas publicado na França em 1994, apontando
para a relação paradoxal na qual a singularidade de cada arte se dá pelo
movimento e direção à pluralidade.
Em 1995, a Revue de Litérature Général (RLG) – que teve apenas
dois volumes publicados, um no primeiro semestre de 1995, e outro no
segundo semestre de 1996, e que foi editada pelos poetas franceses Pierre
Alferi e Olivier Cadiot – publicou uma entrevista de Nancy bastante
instigante e provocadora, realizada por Alferi e intitulada “Contar com a
poesia”. Nela, a questão era o declínio da poesia após o romantismo ter
conferido a função federadora da arte em relação às outras, e ainda a
relação entre prosa1 e poesia, pensada como prosaização. A entrevista
ganhou grande repercussão ao ser publicada em um pequeno livro de
Nancy, A resistência da poesia, que chegou por meio de uma edição
portuguesa (2005) para os leitores brasileiros.
Na medida em que Nancy apontava para a diversidade das artes e,
ao mesmo tempo, para um entrelaçamento entre elas, ele continuava a
pensar a poesia, enquanto ideia da arte, como algo que resiste – resistência
como acesso ao devir.

1
Sobre a questão da pós-autonomia e especificidade da poesia, ver o meu ensaio
“Carlito Azevedo e Marcos Siscar: entre prosa e poesia, crise e saídas” (2012).

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No campo brasileiro e norte-americano, nos anos 1990, os chamados


2
“estudos culturais” colocavam, por sua vez, a arte – poesia – em questão.
A partir da negação do cânone, não haveria como conferir valor estético a
um determinado objeto artístico, ou seja, não seria mais possível fazer a
distinção entre o campo artístico e o que estaria fora dele, e entre a alta e a
baixa cultura3. A literatura, e ainda mais a poesia, não poderia mais ser
pensada a partir da literariedade, ou das categorias formais propostas por
Roman Jakobson. O que interessava era um uso culturalista e social do que
ainda se denominava “literatura”, liberando-a da tradição. Exageros e
acertos à parte, é preciso dizer que os estudos culturais tiveram muito
pouca repercussão na França.
Se essa década foi importante para o redimensionamento das noções
de autonomia, especificidade, gêneros literários e artísticos, etc., foi nos
anos 2000 que realmente esses campos pré-determinados entre as artes e
as disciplinas ficaram inviáveis. Como pensar literatura e poesia, hoje, sem
as colocar em relação com as outras artes? Entretanto algo de específico se
manteve – algo próximo ao informe de Bataille,4 ou seja, algo como uma
forma maleável capaz de produzir saídas no mundo, aqui, no rés do chão;
algo que fissure, mas não apague de todo tanto a especificidade quanto a
autonomia da arte. Nesse sentido, Jacques Rancière nos traz uma
contribuição fundamental: ao pensar a “partilha do sensível” e o que ele
5
denomina de “regime estético da arte” na modernidade e que se estende
na contemporaneidade, sua visada é necessariamente política ao articular a
noção de “autonomia imprópria” da arte.

2
A noção de pós-autonomia ganhou força nos EUA a partir dos cultural studies, do
qual é devedor o atual pensamento argentino, principalmente o de Josephina
Ludmer.
3
Ver o ensaio “Limiar” (1998) de Raul Antelo.
4
É preciso lembrar que Bataille recusava a poesia, como sinaliza Nancy na
entrevista acima referida, ao citar Bataille que nos advertia para “a tentação
lamecha da poesia” (Nancy, 2005, p. 30). Interessante perceber que é de 1996 a
exposição "l'Informe: mode d'emploi", organizada por Rosalind Krauss e Yve-Alain
Bois, no Centre Georges Pompidou cujo catálogo é fundamental para os estudos da
pós-autonomia e da noção de informe que pretende desconstruir especificidades,
anular oposições como forma e conteúdo, forma e material, interior e exterior, etc.
5
Ver Jacques Rancière, Asthesis (2011)

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Segundo Rancière, o novo regime estético partilha o sensível de


maneira mais democrática, não apenas por borrar as fronteiras de uma
partição restritiva das ocupações de cada um na comunidade (regime ético)
6
, ou por colocar em xeque a divisão entre as artes (belas artes, belas
letras), mas também por quebrar as relações entre formas (gêneros)
específicas a determinados temas e sujeitos sociais. Essas relações entre
formas, temas e sujeitos aconteceriam no que ele denomina de regime
representativo, onde, por exemplo, a tragédia estaria ligada a um tema e a
um sujeito nobre. A quebra dessas especificidades teria como exemplo o
que faz Flaubert com os temas populares usados em seus romances, ou
ainda Baudelaire em seus sonetos eivados de temas “vulgares”.
A “autonomia imprópria” estaria ligada ao fato de que, para Rancière,
a arte não se desprende do mundo (autonomia), mas, ao mesmo tempo, a
arte não pode ser totalmente inespecífica, já que conduz a uma esfera
exclusiva da experiência do sujeito. Para o autor, “a arte é arte desde que
ela seja também não-arte, outra coisa que arte” (2004, p. 53), o próprio da
arte na modernidade estaria paradoxalmente ligado ao que lhe é impróprio,
ao comum, à vida, sem, entretanto, perder seu estatuto de arte, mesmo
que esse estatuto seja frágil, seja mínimo. Arriscaria dizer que talvez seja
nesse sentido que o poeta e teórico francês Jean-Marie Gleize pensa a sua
noção de pós-poesia, ou seja, como “deslizamento da ‘poesia pura’ para
‘poesia poor’ ou poorpoetry, ou ainda ‘pooesia’, poesia impura” (Gleize,
2013), como desdobramento do “regime estético” apontado por Rancière,
pois, afinal, é com esta modernidade que ele dialoga, como veremos a
seguir.
Preciso dizer que foi a partir de Gleize que entrei em contato pela
primeira vez com a poesia francesa contemporânea, o que ocorreu apenas
em 2003, graças ao pedido de Carlito Azevedo para que eu traduzisse o
ensaio “Para aonde vão os cães?” e que saiu publicado na Inimigo Rumor
número 16, em 2004. Naquele momento, há dez anos atrás, as questões da
autonomia e da especificidade da poesia já estavam sendo recolocadas,
embora ainda timidamente, depois do abalo sofrido nos anos 1870, 1970 e
posteriormente nos 1990 como veremos. Gostaria, assim, de tratar aqui

6
Ver Jacques Rancière, A partilha do sensível. (2007)

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como essa noção de pós-autonomia e a problematização da especificidade


da arte vêm sendo redimensionadas até o presente momento, a partir
principalmente do diálogo entre a RLG, Pierre Alferi, o minimalismo, Jean-
Marie Gleize e o grupo Questions Théoriques.

Para aonde vão os cães? Saídas contemporâneas da poesia.

O texto de Gleize que mencionei acima trazia um panorama da


situação, até aquele momento da poesia francesa, espécie de cartografia
das relações e tensões neste campo artístico. Seu título “Para aonde vão os
cães” faz referência direta a Charles Baudelaire e ao seu poema “Les bons
chiens” que se encontra nos Petits poèmes en prose, e também a Victor
Hugo que, ao se opor à pureza clássica, já propunha lançar os versos
nobres aos “cães negros da prosa”, sugerindo a desestabilização da poesia
pura pela impureza da prosa, exemplo do “regime estético” de Rancière. 7
A partir da constatação do discurso do senso comum, que
nostalgicamente reputava à poesia contemporânea o seu desprezo pela
tradição, ou seja, pelo gênero poesia,8 Gleize divide seu texto em vários polos,
analisando um certo modernismo/modernidade que desestabilizava as
fronteiras entre gêneros e da arte com a vida – questões que ressurgiram nos
anos 1960-70, na contracorrente de uma ideia de modernismo de Clement
Greenberg (especificidade), como veremos a seguir. É preciso ressaltar que
Gleize também apontava nesse seu texto para aquilo que se tornou
fundamental para seu pensamento: a noção de pós-poesia.
No primeiro polo, Gleize colocou o grupo assumidamente de
vanguarda Tel quel, que, ao não assumir que fazia poesia, quebrava as
categorias genéricas. Seus integrantes, empenhados no textualismo,
estavam mais preocupados com a materialidade da escrita, com um
trabalho de langagement, engajamento pela linguagem, em direção oposta

7
Fazer poesia com a língua do uso corrente é um problema que remonta a Dante –
“Da eloquência da língua vulgar” – e que passa pelo romantismo e pelo
modernismo brasileiro.
8
Ressalto que o campo da literatura e da poesia tradicional na França é muito forte
(LaPoésie, como designa Gleize), tendo em vista o modo como é estudada nas
escolas. Também existe uma forte tradição no campo da teoria literária fixada no
específico, como é o caso de Gérard Genette e sua teoria da narratologia, que até o
começo dos anos 2000 ainda era hegemônica na universidade francesa.

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ao engajamento sartriano, sendo sintomático para ele o título do livro de


Julia Kristeva,

“revolução da linguagem poética”, a dos anos 70 do século


dezenove, confirmada e prolongada (e até, declarativamente
ao menos, “terminada”?) por aquela dos anos 70 do século
vinte, tinha como sentido uma perda da autonomia e de
especificidade formal da “poesia” (Gleize, 2004, p. 39).

Poderíamos preencher esse longo período sugerido por Gleize, entre


1870 a 1970, com o trabalho das vanguardas históricas, no seu afã em
trazer a arte para a vida e vice-versa, misturando os campos específicos.
Entre outros numerosos exemplos, preencheríamos o período também com
o trabalho de Georges Bataille com a revista Documents9 (1929-30), e sua
noção de “informe” que, através de diversas leituras, principalmente as de
Michel Foucault, Gilles Deleuze, Yve-Alain Bois e Rosalind Krauss, ganhou
outras potências.
Gleize continua seu ensaio afirmando a existência de um segundo
polo contemporâneo ao Tel quel. Este seria formado por um grupo que
estava em constante experimentação, sem medo da palavra “poesia”, mas
sempre abrindo suas relações com outras práticas, como a poesia sonora e
visual, “uma grande galáxia que vai do Brasil 10 à Itália, passando pela
França” (Gleize, 2004, p. 41).
O terceiro e último polo, surgido também nos anos 1960-70, é ligado
ao objetivismo americano e ao literalismo, e, acrescento, próximo ao
minimalismo. Este polo seria representado pela revista Siècle à mains e
também pela pequena editora Orange Export Ltda, criada em 1969 por

9
A relação com a revista Documents foi feita por Marcelo Jacques de Moraes no
momento do debate com o grupo Questions Théoriques na Casa Rui Barbosa, em
novembro de 2014.
10
Referência, principalmente, à poesia concreta, que, na leitura que faz do ensaio
“Crise do verso” de Mallarmé, insistem exatamente no fim do verso, ou seja de
uma especificidade da poesia. Essa leitura será refeita por Marcos Siscar que
insistirá em uma “especificidade em crise” da poesia, ao propor uma crise de verso,
qual seja, de um verso irritado, para se pensar ainda a poesia. Ver a entrevista que
fiz com Marcos Siscar http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S1517-
106X2011000100010&script=sci_arttext. Consultado em 23/11/2014.

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Emmanuel Hocquard11 e por Rachel Blau DuPlessis. Hocquard, naquele


momento, quer se afastar, no plano institucional, das vanguardas
afirmativas e conquistadoras através da noção genérica de “modernidade
negativa” e, no plano teórico, “por alusão ao tratamento (de resto muito
diversificado) de uma certa herança mallarmeana” (Gleize, 2004, p. 42).
Gleize explica que esse grupo, que entretanto nunca se tomou como grupo,
tem como princípio a “literalidade (o texto diz o que diz dizendo-o)” e, por
isso, não produziu textos teóricos específicos, uma vez que seus escritos
seriam autossuficientes, autoexplicativos, literais e não específicos a um
dado gênero.
Para Gleize, a modernidade apresentada e descrita através destes
três polos ainda não teria sido completamente ultrapassada

“precisamente porque ela é ao mesmo tempo nosso


presente imediato (nada do que ela começou acabou, pois,
salvo alguns casos de renúncia ou de denegação, a maior
parte daqueles que a construíram têm uma obra ainda em
curso, ou seja, em transformação), e alguma coisa como um
passado próximo que começamos a perceber e compreender
em sua complexidade (não sem omitir outras importantes
perspectivas)” (2004, p. 44).

A partir desta constatação, Gleize menciona a importância de terem


surgido tantas revistas na década de 1990, como a Nioques, dirigida por ele
até hoje, e a RLG (incluo aqui a Inimigo rumor12 que também toma a
produção artística brasileira13 dos anos 1960-70 como referência), uma vez
que os novos poetas eram ainda dependentes das questões elencadas por

11
No Brasil indico a tese de Marília Garcia sobre a poesia de Hocquard, realizada
sob orientação de Paula Glenadel, na UFF. Dividi a banca de doutoramento com
Marcelo Jacques de Moraes, Marcos Siscar e Ida Alves. Disponível em
http://www.bdtd.ndc.uff.br/tde_arquivos/23/TDE-2010-12-20T083322Z-
2711/Publico/Maria%20Garcia%20Tese.pdf. Consultado em 23/11/2014.
12
Talvez a Inimigo rumor nesse primeiro momento, como afirma Italo Moriconi,
fazia, aliás como certa geração dos anos 1980-90 no Brasil, um retorno a uma
poesia-poética, ou como diz Italo, uma “literatura-literária”. Ver Italo Moriconi,
“Qualquer coisa fora do tempo e do espaço (poesia, literatura, pedagogia da
barbárie)”, (1999).
13
Seria preciso escrever sobre as relações das artes brasileiras dos anos 1960 e
1970 com a poesia brasileira contemporânea, principalmente a partir do
concretismo e neo-concretismo, Hélio Oiticica e Lygia Clark, dentre outros.

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Gleize nos três polos comentados. As revistas foram espaço de rearticulação


destas questões. Vale dizer que essa “dependência” foi experimentada sem
nenhum apego nostálgico ou de reverência. Mais uma vez, Gleize traça um
panorama do contemporâneo a partir de seus desdobramentos com a
modernidade que ele evoca, e, em detrimento de uma tendência que,
principalmente a partir da década de 1990 até os dias atuais, tenta
reabilitar a poesia como gênero puro e autônomo, renegando justamente a
modernidade trazida à baila por Gleize nesse ensaio que comentamos. No
Brasil, esse apego pela poesia se dá ainda hoje, vigendo uma poética do
belo, da artesania ou do encantamento, como nos trabalhos
respectivamente de Cláudia Roquette-Pinto, Carlito Azevedo, antes de
Monodrama (2009), e de Alice Sant’Anna.
Assim, o surgimento de várias revistas nos anos 199014 está ligado à
necessidade de reflexão e de um redimensionamento das questões dessa
modernidade referida por Gleize. Ele termina seu ensaio explicitando, também
em uma tríade, agora dividida por letras, questões que ainda estariam em
suspenso e que foram rearticuladas por estas revistas, quais sejam, questões
trazidas por esta modernidade, e que ainda estariam em debate.
A primeira questão é sobre “a) a da preservação ou não de uma
especificidade formal da poesia” (Gleize, 2004, p. 45). Esse grupo de poetas
bastante diversos entre si ainda está preocupado com a questão formal,
mesmo que seja para abalar essa especificidade sem destruí-la
completamente. Esse é o caso do trabalho de Jacques Roubaud na França, e
- eu diria - de Paulo Henriques Britto ou Marcos Siscar no Brasil, que, para
Gleize, estariam classificados como neo-poesia, seja pelo uso de restrições
produtivas como é o caso de Roubaud, do grupo Oulipo, e também de Britto
(que usa formas da tradição dissociadas dos temas impositivos, além de
trabalhar de maneira clara com a experimentação material e formal da
tradição poética); seja pela noção de “crise de versos” na leitura que faz
Siscar15 no seu ensaio sobre Mallarmé, e, desta maneira, defendendo uma

14
O caso de Carlito Azevedo é interessante, a partir da Inimigo rumor, que teve um
começo de afirmação tradicional, ligado à noção de paideuma, ele, a partir de um
determinado ponto, irá redimensionar deliberadamente seu projeto poético,
abrindo-se a outras contaminações.
15
Siscar é próximo do poeta francês Michel Deguy que, por sua vez, é visto por
Gleize como “ontologizante”, já que acredita na poesia como lugar do pensamento
pelo como, pela comparação, e nesse sentido está em busca de uma abertura à

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especificidade – embora irritada – da poesia, que seria o verso, colocando-


o, entretanto, em crise.
A segunda questão é “b) a de uma saída possível do gênero (fora do
“carrossel”, como dizia Francis Ponge), de uma solução de esgotamento do
problema do gênero, ou da continuação por todos os meios de sua crítica
radical interna” (Gleize, 2004, p. 46). Aqui pode ser localizado o próprio
projeto de Gleize, a pós-poesia, ou seja, criar poesia sempre pronta para
criar saídas sobre outras coisas ou pela contaminação de diversos gêneros.
Podemos situar neste tópico a atual poesia de Carlito, mas essas
classificações, é preciso dizer, são sempre hipóteses ficcionais.
Para entendermos a terceira e complexa última hipótese, é
necessário citar um trecho mais longo:

c) a da exigência realista – ‘realiste’ (ou ‘réeliste’) – que vai


se expressar de dois modos complementares (ambos
radicalmente não figurativos) mas por vezes notados como
contraditórios:

§ seja pelo modo de intensidade idioletal e pulsional: em


busca de uma verdadeira língua do corpo, de uma língua
“vréelle” – verdadeira e real – que é a vida de uma certa
formalidade paroxística, excessiva, sobre uma linha que vai
do ‘zaoum’ de Khlebnikov, escrita ‘à faca’ de Prigent,
encenando fisicamente as vozes do infigurável, a prosódia
dos (ou como) cortes;

§ seja pelo modo – poderia dizer contrariamente? – da


neutralização sistemática: é a via de um novo ‘objetivismo’
que também vem de longe, que pode referir-se aos poetas
objetivistas Americanos dos anos 30 por um lado (Reznikof,
Zukofski), e à obra muito mal conhecida de Gertrude Stein
por outro, via dos poetas da modernidade dita ‘negativa’
evocada um pouco mais acima. Tentativa literal, recusa da

origem, próximo de Philippe Lacoue-Labarthe. Ver ainda meu livro Marcos Siscar
por Masé Lemos (2011).

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analogia e do canto, vontade de limpeza (a seco) (Gleize,


2004, p. 47).

Esses dois novos polos que são trazidos aqui a partir desta exigência
réaliste, como indica Gleize, irão entrar em grande atrito, “em razão de
muitos mal-entendidos sobre os projetos respectivos” (2004, p. 47).
Aqueles acusando os literais de esterilidade, e estes acusando os outros de
serem poetas do “expressivismo lírico” (como Prigent e Maulpoix), de
“ingenuidade regressiva e infantil” no tratamento com a linguagem.
Entretanto Gleize sinaliza que nestes dois casos, o que estaria em jogo seria
“a mesma consciência aguda do fato de que escrever tem a ver com a
exigência e impossibilidade de se figurar o real” (2004, p. 47).
O ensaio termina mostrando, sobretudo, que, a partir da geração dos
anos 1990, o tratamento com a linguagem se objetiva por meio de práticas
que continuam a incitar a paixão pelo real e pela língua, e que ainda são
“formalistas”, uma vez que “observam a língua, objetivam, parecem
considerar a literatura como uma operação literal, intralinguística” (Gleize,
2004, 48). Como exemplo dessas práticas temos Christophe Tarkos
(materialismo linguístico) e Olivier Cadiot.
Os objetivistas, para Gleize, estão ligados à ação direta através da
prática de experimentalismo formal com “objetos”, não apenas ligados à
literatura. Arrisco dizer que entre estes estaria Pierre Alferi que não pode
ser “classificado” de formalista, pois trabalha não apenas com formas da
literatura, mas também com enunciados da linguagem corrente e com
outras artes. Como, aliás, o novo grupo, surgido nos anos 2000, dentre
eles, poetas que publicam desde os anos 1990, como Christophe Hanna,
poetas que criaram um coletivo que se intitula Questions théoriques16 por
acreditarem que a teoria literária não daria mais conta de pensar esses
novos objetos. Para terminar minha reflexão sobre a leitura de Gleize, cito
um último parágrafo onde ele explica as práticas objetivista e literal que
fazem esses poetas:

16
Esse grupo esteve em novembro de 2014 no Brasil para participar do evento
“Poesia, Ação”, organizado por Flora Süssekind, Carlito Azevedo e Marion Naccache.
Ótima oportunidade para desenvolver meu atual projeto de pesquisas (cadastrado
na UNIRIO) intitulado “Poesia e Prosa: crises e saídas” onde trato das relações
entre a (pós) poesia francesa e brasileira moderna e contemporânea.

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“Eles escrevem a partir de fragmentos ou segmentos de


realidade (inclusive enunciados pré-existente, tirados do
discurso social multipista que faz um alarido ensurdecedor à
nossa volta), que eles reciclam e põem em ação, que eles
paginam (com montagem, colagem, decupagem ou análise
lógica dos elementos, decomposição e recomposição lógica,
desnudamento das articulações, catalogações dos tipos de
enunciados, produção de gramáticas locais, etc.). Tudo isso
friamente, muito friamente, muitas vezes sob a forma de
constatação, ou por apresentação axiomática”. (2004, p. 48)

Estes últimos “poetas” estão interessados em uma concepção


intervencionista da poesia. Assim, descartam a poesia dita essencialista,
separada das práticas cotidianas, e usam como material os objetos
linguageiros do mundo social, materiais da linguagem tanto verbal quanto
visual (jornais, publicidade, internet, jogos, etc.). Eles, então, deslocam,
retorcem e desmontam esses materiais, pois o que lhes interessa não é a
qualidade estética, mas a operação e o desnudamento dos procedimentos
institucionais do poder. Reivindicam para si uma base teórica ligada ao
pragmatismo americano17 e a Wittgenstein.
No caso de Pierre Alferi, que aqui me interessa mais, podemos
aproximá-lo do pensamento literalista, mas não de “uma crítica da
interioridade à maneira de um Wittgenstein – se nos lembrarmos de como
este reduzia ao absurdo a existência da linguagem privada” (Didi-
Huberman, 2010, p. 59), e sim da operação literalista da filosofia de Gilles
Deleuze. 18 Segundo François Zourabichvili, em ensaio sobre esse assunto,
intitulado “A questão da literalidade em Deleuze”, há uma operação de
subjetivação via afecção existente na atividade linguística. É essa operação
que cria o mundo, em ato, o que não deixa de se aproximar de uma visada
pragmática também próxima de Wittgenstein:

17
Para situar minimamente o pragmatismo que lhes interessa, ressalto o
afastamento de Austin e a adesão ao pensamento de Richard Rorty, por exemplo.
18
Se os poetas da Ação Direta, ligados a Questions Théoriques, declaram aderência
ao pragmatismo americano via Wittgenstein, é perceptível a aproximação de Alferi
ao pensamento de Gilles Deleuze. Ver o ensaio de Paula Glenadel, “Poesia, retorno,
recuo: uma leitura da poética de Pierre Alferi” (1998).

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“Aproximamos aqui o que podemos significar “literalidade”:


uma produção literária que não reenvia a nada de exterior,
mesmo que ela não seja mais ‘arte pela arte’, manipulação
divertida da linguagem, precisamente porque a linguagem e
o mundo são dados ao mesmo tempo, não há palavras antes
do mundo ou depois dele, separado dele”. (Zourabichvili,
2005, s.p.).

As palavras não estão separadas do mundo, são coisas do mundo, no


mundo e são colocadas em relação, em agenciamentos entre elas e o
mundo. Se o poeta Emmanuel Hocquart afirma que só trabalha com o que
“provém da letra, da linguagem” (Collot, 2013, p. 194), não com as coisas,
mas com a representação das coisas, ele as coloca em uma superfície,
como uma mesa, por exemplo, ou mesmo como uma página em branco, ou
uma tela, ou o mundo. Essa atitude não tem como objetivo criar uma
imagem das coisas, ou seja, não objetiva conferir “julgamento de atribuição
que relaciona um predicado a um sujeito”, mas, como explica ainda
Zourabichvili, ambiciona, porém, que “a cópula ‘E’ adquira o sentido de ‘E’.
Define-se, assim, a orientação fundamental da filosofia de Deleuze:
extinção do ser em prol da relação (ou, ainda, do devir)” (Zourabichvili,
2005, s.p.).

Nesse sentido, porém mais próximo do pragmatismo


americano do que da literalidade, Christophe Hanna cria uma fórmula para
definir poesia que pode ser lida como essa interação em ato; ou uma
fabricação do real a partir da articulação de uma forma a um determinado
contexto, próxima da noção de arte pública, e também de site specific,
conceitos desenvolvidos a partir dos anos 1960-70, e que têm como
referência o minimalismo. Eis a fórmula de Hanna (2003, p. 122):

doravante, poesia = composição das interações formas/contextos

OVNI: documentos poéticos, práticas teóricas

Uma poesia literalista pode ser relacionada ao termo “mecânica


lírica”, título do editorial-experimentação dos poetas franceses Pierre Alferi
e Olivier Cadiot para o primeiro volume, de 1995, da acima mencionada

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Revue de littérature générale, que foi editada pela P.O.L. (conhecida editora
parisiense de livros de poesia experimental, ou pós-poesia, ou, ainda, de
OVNI). Objetos, é disto que se trata: OVNI (Objets verbaux non identifiés),
noção criada neste editorial, e que será retomada pelos poetas da Questions
théoriques, como Christophe Hanna (2010) que a desdobra em “dispositivos
poéticos”.
Alferi e Cadiot, no seu “manifesto-editorial”, tentam descrever estes
objetos – sem fazer um simples receituário –, e perceber como são criados,
colocados em circulação e como se dá o agenciamento entre eles. Neste texto,
os poetas franceses vão desmontando os diversos objetos, sempre muito
heterogêneos. É preciso, portanto, como o objeu pongiano, entender seu
funcionamento, evidenciar seu material que sempre resiste a uma total
compreensão. Assim, vão elencando e desenvolvendo, ao longo do texto, a
partir de correlações com os ensaios publicados na RLG, alguns destes
mecanismos, tais como: samples, standarts, maquetes, compressão, inscape,
cut-up, entre outros que sempre estão sendo criados e rearticulados.
Dessa maneira, as formas são recriadas pelo contato com a vida
terrena a partir de objetos já existentes, como os fraseados descritivos,
teatrais, narrativos, poéticos, ou seja, dos próprios gêneros, das diversas
tradições literárias e também dos usos correntes da língua, além de
arquivos jurídicos, literários, jornalísticos, históricos, etc., que constituiriam
os materiais desta “mecânica lírica”. São, antes, estes “objetos verbais não
identificados” e não hierárquicos que lhes interessam mais do que “a língua
enquanto tal” e, neste sentido, saem do “formalismo” (Alferi e Cadiot,
1996, p. 49). No segundo editorial, intitulado Digest, que foi publicado em
1996, os poetas explicitam mais detidamente esses procedimentos:

No número precedente, tentamos descrever esses objetos


estranhos com a ajuda de uma série de conceitos provisórios
que eram menos categorias do que aspectos de um mesmo
material. Deveríamos ter colocado entre eles o sinal de
igualdade. óvni = maquetes = inscapes = cut-ups = standarts
= samples = compressões (Alferi e Cadiot, 1996, p. 49).

Nestes dois volumes da RLG, foram publicados diversos “documentos


poéticos” (Lebovici, 2007), ou seja, rearranjos de textos de Faulkner,

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Flaubert ou Eliot, mas também traduções feitas por Jacques Roubaud de


poemas de Charles Reznikof. Reznikof é o poeta objetivista norte-americano
citado no ensaio de Gleize que comentamos na seção anterior e que, por
volta dos anos 1930, começa a publicar sua poesia realizada com material
colhido de arquivos judiciários, ou seja, de documentos públicos e não
literários. Podemos perceber a importância desta revista para o Questions
théoriques, que retoma o uso da denominação OVNI, colocando acento
maior em documentos e formas públicas, em detrimento do literário.
Outra questão que os aproxima da RGL é a prática artística que vai
sendo construída em paralelo a uma prática teórica. Como vimos nos
editoriais da RGL, não existe nenhuma intenção de partir de uma teoria
para executá-la, ou de fixar a prática pela teoria. Aliás, o grupo Question
Théoriques surge exatamente no afã de produzir suas próprias teorias, uma
vez que a teoria literária tradicional não daria mais conta dessas práticas
contemporâneas. Com efeito, para Hanna, é necessário a “produção de uma
teoria aberta, articulando conceitos descritos cujos efeitos não seriam mais
de conservar a arte em suas formas, seus usos e suas definições históricas,
mas, ao contrário, aumentar as possibilidades de novas experiências que
oferece seu estado atual” (2011, s.p.).
Se atualmente os OVNI acabaram por se tornar uma nova etiqueta,
pois o mercado tudo incorpora, Franck Leibovici vem designando de
“documentos poéticos” certas práticas que se utilizam de formas não
apenas literárias, mas daquelas encontradas no mundo midiático, do
capitalismo financeiro, das práticas sociais. A essas formas se acopla – daria
o exemplo da venda de telemarketing, que tenta nos obrigar a comprar
pacotes fechados a partir repetições de fórmulas feitas pelos vendedores –
o trabalho desse material para desmontá-lo, a partir do conhecimento de
técnicas da literatura, da retórica, da arte. Para Franck Leibovici não se
trata apenas de levar os objetos do cotidiano para o campo artístico, como
seria o caso dos ready-mades, mas de trazer a literatura e a arte para o
nosso cotidiano. Nessa prática de intervenção no real estaria situada a
resistência da arte.
Creio que esse procedimento ressaltado por Leibovici se aproxima com
o que tem sido feito no campo da antropologia e da história, onde a escrita se
desmonta para deixar entrever a técnica literária e ficcional usada, como são

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os casos de Michel Foucault, Glifford Geertz, Paul Veyne e Hayden White, para
citar apenas alguns. Também são os casos das prosas e poesias
contemporâneas que se apropriam da etnografia, da cartografia, das provas
periciais, do testemunho, que também visam essa ação direta no mundo.
Se Gleize em “Para aonde vão os cães” cita Charles Reznikoff como
exemplo de prática objetiva – apropriação de coisas do mundo, objetos
públicos que serão retrabalhados a partir de desmontagens – e se Frank
Lebovick denomina o resultado dessas práticas de “documentos poéticos”,
pode-se perceber que algo da especificidade da arte permanece como
questão intrínseca a essa desmontagem e remontagem.
Não poderia deixar de aproximar o termo “documento poético” da
“mecânica lírica”. Aliás, assim sinaliza Fiona MacMahon em seu livro sobre
Reznikoff, no qual enfatiza os procedimentos artísticos que o poeta
americano emprega no seu retrabalho sobre os documentos judiciários,
como o ritmo, criando novas configurações de sentido na materialidade do
documento. Para MacMahon, na poesia de Reznikoff,

“o ‘lirismo’ não é gerado nem pelo conteúdo nem pela forma,


mas pelo mecanismo que determina seu encontro. Assim
como o poema concebido a partir deste jogo de
transferência se aproxima desta ‘energia’, desta abstração
chamada de “lírica”. Em relação ao jogo de deslocamentos
reznikoffianos, esta formulação esclarece na medida em que
ela destaca o encontro do prosaico e do poético. Ao
mobilizar as palavras de testemunhas, ao colocá-las em
novos estados enunciativos, o poeta suscita uma
reaproximação que deslancha uma ‘tensão’, para citar de
novo os poetas Alferi e Cadiot. Essa tensão é gerada por um
movimento literal, ou seja o caminho percorrido da palavra
da testemunha ao poema”. (McMahon, 2011, p. 23).

Seria o caso de pensar, no Brasil, as relações com o projeto


construtivo dos nossos modernistas, com o trabalho que faziam com os
materiais linguageiros do cotidiano, dos jornais e de documentos históricos
– prática do desentranhamento –, como praticava Oswald de Andrade.
Oswald visava sair da poesia pura e autônoma, assim como específica.

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Afinal, como ele mesmo declara no seu “Manifesto Pau-Brasil”, “a poesia


está nos fatos”.
Em Pau Brasil (1925), principalmente na primeira parte intitulada
“História do Brasil”, há uma aproximação clara entre os procedimentos de
Reznikoff e de Oswald. Com efeito, nosso poeta modernista procede por
apropriações de documentos históricos do nosso período colonial e os
reorganiza em versos. Ele coloca títulos, opera montagens, sem acrescentar
nada ao que estava escrito nos documento, apenas subtrai. Estes
documentos são a carta de Caminha, escritos de Gândavo ou de Claude
d’Aubeville – este último, inclusive, permanece na poesia de Oswald no
francês original (Costa Lima, 1991). Nosso poeta modernista vai retirar dos
fatos documentais uma nova cartografia, espécie de filme, de roteiro, sobre
um outro Brasil a ser construído, a partir dos procedimentos de seleção,
corte e montagem. Os diversos quadros estão em série, mas não há
progressão temporal (sequência), já que todos os quadros do livro estão no
presente.19 É o que faz também Reznikoff, que, como um novo Whitman,
atualiza o mapa antropológico, crítico e artístico da América, dividindo em
regiões geográficas – norte, sul, leste e oeste – os Estados Unidos por meio
dos documentos poéticos.

OVNI: relendo o minimalismo

O minimalismo, surgido nos anos 1960, visava construir objetos com


o mínimo conteúdo de arte, ou seja, de ficção, de ilusão referencial, de
representação. Seus objetos específicos – literais – seriam objetos puros,
apenas volumes, em contraposição à busca pela especificidade do meio dos
modernistas,20 em especial dos críticos Clement Greenberg e Michael Fried.
Na França, como já mencionado, os poetas literalistas, objetivistas,
articulam questões próximas da arte minimalista americana e de seu
desdobramento na Land art. Eles também recusam a imagem, a
representação e o sujeito, e se diferenciam do lirismo tradicional – da poesia
pura – pelo afastamento da relação fusional com o mundo, ou da

19
Minha orientada de Pibic, Juliana Travassos, está trabalhando nesse sentido em
seu subprojeto intitulado “Quando prosa é verso: montagem, imagem e memória
em Oswald de Andrade” e que lhe conferiu bolsa Faperj desde março de 2014.
20
É importante sinalizar que essa modernidade de Greenberg está na contramão da
modernidade apontada por Gleize e mencionada anteriormente neste ensaio.

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movimentação ascensional21, própria da metáfora e das subidas da Revelação.


Nesse sentido, segundo Gleize, a poesia poor, direta, literal e
impura está aberta à

pluralidade das prosas "pós-genéricas", objetos novos,


objetos outros, "objetos específicos" (como dizia Donald
Judd), objetos verbais não identificados (como sugeriam
nossos amigos da Revue de littérature générale, no meio dos
anos 1990) (Gleize, 2013, p. 438).

Se os “objetos verbais não identificados” estão em diálogo com os “objetos


específicos” minimalistas, acontece nestes anos 1990 uma releitura, como
veremos. Pierre Alferi, por sua vez, publicou um ano antes da primeira edição da
Revue de littérature générale, o livro intitulado Kub or (1994), emblemático para
pensarmos esta releitura. O livro traz no título a denominação de um produto, o
caldo concentrado vendido nos supermercados. Ele, aliás, é um objeto em forma
de cubo que contém outros cubos, pois os poemas também têm o formato de
cubo. Ao contrário do cubo minimalista, tautológico e literal, ou seja, que evita a
produção de imagens pelo esvaziamento de qualquer conteúdo, Alferi exagera na
produção de imagens, fazendo, entretanto, uma compressão de imagens. Cada
poema é um caldo de imagens concentrado e ao final de cada poema há um
posfácio que funciona como “título” invertido; nas leituras que fez desses poemas,
Alferi sempre lia várias vezes seguidas o mesmo poema e nessa repetição a
inversão entre posfácio e título ficava mais evidente.
Alferi constrói, assim, blocos-sensação em que memórias, percepções,
imagens midiáticas e citações retiradas da tradição poética estão comprimidas.
Ele cria versos com cortes que dobram, desdobram e mergulham rápido,
criando efêmeras revelações pela diluição linear de um fio narrativo que
evidenciam algo que em seguida se dilui “na água quente”. No poema abaixo,
procede, de maneira não apenas irônica, mas também crítica, um trabalho de
desmontagem do fraseamento do prosaico mercadológico. No caso, são as

21
Agradeço as trocas de ideias com Leila Danziger e Luiz Cláudio da Costa a
respeito da “saída” das artes para o espaço [horizontalidade] em detrimento da
verticalidade, da parede, por exemplo. Ver a esse respeito o já citado catálogo
"l'Informe: mode d'emploi".

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instruções de uso do cubo de caldo concentrado, deixando-se entrever,


também, como espécie de alerta aos nossos problemas com a produção de
massa. Como explica Gleize, o “motivo da resistência retorna então, sob a
forma do tratamento crítico das línguas de informação” (2007, p. 174).

antes de mergulhar um cubo


de caldo maggi a gente se coloca
em estado de ebulição
ah é tão ah que é ah
absorvendo essas palavras tampão
periódico a desdobrar
rápido um outro um último rápido
envoi (Alferi, 1994, s.p., tradução minha) 22
Este livro de Alferi contém também sete fotos de Suzanne Doppelt
que entram com legendas feitas pelo próprio poeta, sendo um exemplo
privilegiado da mistura de materiais e de articulação entre artes. Podemos
fazer ao menos dois tipos de leitura sobre as relações entre a foto, que
condensa diversas imagens, e a legenda. A primeira leitura coloca em valor
uma relação de diferenças, pois a imagem não ilustra a legenda, nem a
legenda explica a imagem, mesmo que elas estejam colocadas juntas na
mesma página. Ou seja, não existe subordinação clássica da imagem ao
texto ou vice-versa, num regime da complementaridade. Mas a relação não
é simplesmente disjuntiva, e sim suplementar, pois está sendo questionada
aqui a separação modernista entre as artes – relação estabelecida através
de Greenberg que, a partir de seu código negativo, recusava uma
articulação entre imagem e texto, entre o “sensível e a história” (Rancière,
2003, p. 51).

Retomando Jacques Rancière, é possível fazer uma segunda leitura


que não visa à separação entre os dois tipos de arte, mas que opera uma

22
Este livro de Alferi não é paginado. Envoi é um termo francês para posfácio ou
post scriptum.

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articulação de sentidos entre elas. Como foi dito, as imagens fotografadas


são feitas a partir do condensamento de diversas imagens separadas, mas
também inseparáveis, em movimento de composição e decomposição
constante (como na imagem acima).23 Estas duas leituras podem ser
pensadas como sendo uma montagem dialética e simbólica, realizadas
concomitantemente (Rancière, 2003, p. 66).
Em seu livro sobre o minimalismo, o crítico David Batchelor compara
os cubos minimalistas e aqueles de Damien Hirst assim como os de Rachel
Whiteread, artistas que, como Alferi, começam a produzir nos anos 1990.
Batchelor explica as rearticulações que foram realizadas com o minimalismo
nos anos 1990:

Hirst apossa-se da caixa aberta minimalista, ou da bandeja


rasa, ou do cubo modular e insere aí um tipo de conteúdo
humano ou no mínimo corpóreo. A forma minimalista serve
para esses artistas como uma estrutura ou gramática por
meio da qual temas contemporâneos podem ser articulados
como arte. Hirst surge com um ato balanceador
surpreendente: ao ready-made ou objeto encontrado é
fornecida uma estrutura de referência, enquanto a caixa
‘vazia’ minimalista é simultaneamente abastecida com um
conteúdo. É claro que ver uma caixa de Judd como vazia é
compreender mal a sua arte. Mas a arte é, muitas vezes,
continuada exatamente desta maneira: criativamente
compreendendo mal a arte anterior (1999, p. 78).

Em outros termos, deixando de lado a questão da possibilidade ou


não de uma literalidade absoluta no minimalismo, a sua retomada pelos
artistas e poetas dos anos 1990 visa a introduzir algo da ordem da
experiência, possibilitar processos de subjetivação e criação de sentidos.
Creio que George Didi-Huberman nos traz uma importante contribuição ao
ressaltar a importância, na arte minimalista, da experiência, fazendo uma leitura
da fenomenologia de Merleau-Ponty nessas obras. Se, pretensamente, elas são
unicamente tautológicas, literalistas, Didi-Huberman sinaliza que nelas “há

23
Suzanne Doppelt e Pierre Alferi : [Sans titre], Photographie, 7x 7 cm, in :
Pierre Alferi, Kub Or., op. cit.

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relações que envolvem presenças, logo há sujeitos que são os únicos a conferir
aos objetos minimalistas uma garantia de existência e eficácia” (2010, p. 66).
Segundo Didi-Huberman, seria necessário pensar dialeticamente
tanto a tautologia e a literalidade – e o repúdio à imagem e ao sentido
transcendente –, quanto a imagem e a crença.

Não há que escolher entre o que vemos (com sua


consequência exclusiva num discurso que o fixa, a saber: a
tautologia) e o que nos olha (com seu embargo exclusivo no
discurso que o fixa, a saber: a crença). Há apenas que
tentar dialetizar, ou seja, tentar pensar a oscilação
contraditória em seu movimento de diástole e de sístole a
partir de seu ponto central, que é seu ponto de inquietude,
de suspensão, de entremeio (Didi-Huberman, 2010, p. 77).

Para o teórico francês seria preciso trabalhar não na ausência cínica


de sentido, nem no excesso de sentido, mas com algo da ordem de um
acesso inquietante de sentido e não do sentido. Os cubos de Alferi
produzem sentidos a cada leitura, não visam a alcançar o silêncio que se
confundiria com a origem da linguagem, ou com o vazio literal, e também
não pretendem a revelação que emana da imagem gradiloquente, mas
querem atuar no mundo ao criar sentidos em cintilações. Enfim, se não
podemos reencantar o mundo pela arte, podemos resistir no e com o
mundo, tocá-lo pela abertura fissurada de sentido que somente essa poesia
imprópria deixa entrever.
Afinal por que ainda sentimos tanto espanto quando se fala em pós-
poesia?24 Qual é o motivo que nos faz apegar à poesia pura, esse espaço
autônomo que nunca é contaminado pelas baixezas do aqui e agora? Talvez
a resistência da poesia, como quer Nancy, esteja próxima, não de uma
ontologia – o que ela é – mas de um questionamento: para que serve a
poesia? Velha pergunta que ecoa Hölderlin e que deve ser, a cada
momento, recolocada, para fazê-la atuar no nosso presente. A poesia está

24
No colóquio “A poesia na literatura brasileira contemporânea”, que organizei com
Flora Süssekind, Vera Lins e Jacqueline Penjon, realizado em Paris em outubro de
2014, o debate final foi marcado por esse incômodo quanto a um possível “fim” da
poesia.

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em processo de mudança constante a ponto de não ser muitas vezes


facilmente “reconhecível”, e sua resistência se encontra exatamente nessa
dificuldade. Uma poesia sempre já pronta para sair.

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