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POÉTICA(S) DE OVNI
Alguns percursos teóricos da (pós) poesia moderna e
contemporânea
Masé Lemos, UNIRIO
Abstract | From the reading of the theorist and french poet Jean-Marie
Gleize's essay “Where do the dogs go?” (2004), we intend to analyze the
notion of post-poetry created by Gleize, which questions the autonomy and
the specificities of the linguistics genders. We will also present the Revue de
Littérature Générale (RGL) created in 1990 by Pierre Alferi and Olivier
Cadiot, from where started the notion of UFO (unidentified flying object) as
a rereading of the minimalist art. In view of this assumption, the following
question arises: With which theories would be possible to think literature
and poetry today?
Keywords | Jean-Marie Gleize | Pierre Alferi | post-poetry | UFO
1
Sobre a questão da pós-autonomia e especificidade da poesia, ver o meu ensaio
“Carlito Azevedo e Marcos Siscar: entre prosa e poesia, crise e saídas” (2012).
2
A noção de pós-autonomia ganhou força nos EUA a partir dos cultural studies, do
qual é devedor o atual pensamento argentino, principalmente o de Josephina
Ludmer.
3
Ver o ensaio “Limiar” (1998) de Raul Antelo.
4
É preciso lembrar que Bataille recusava a poesia, como sinaliza Nancy na
entrevista acima referida, ao citar Bataille que nos advertia para “a tentação
lamecha da poesia” (Nancy, 2005, p. 30). Interessante perceber que é de 1996 a
exposição "l'Informe: mode d'emploi", organizada por Rosalind Krauss e Yve-Alain
Bois, no Centre Georges Pompidou cujo catálogo é fundamental para os estudos da
pós-autonomia e da noção de informe que pretende desconstruir especificidades,
anular oposições como forma e conteúdo, forma e material, interior e exterior, etc.
5
Ver Jacques Rancière, Asthesis (2011)
6
Ver Jacques Rancière, A partilha do sensível. (2007)
7
Fazer poesia com a língua do uso corrente é um problema que remonta a Dante –
“Da eloquência da língua vulgar” – e que passa pelo romantismo e pelo
modernismo brasileiro.
8
Ressalto que o campo da literatura e da poesia tradicional na França é muito forte
(LaPoésie, como designa Gleize), tendo em vista o modo como é estudada nas
escolas. Também existe uma forte tradição no campo da teoria literária fixada no
específico, como é o caso de Gérard Genette e sua teoria da narratologia, que até o
começo dos anos 2000 ainda era hegemônica na universidade francesa.
9
A relação com a revista Documents foi feita por Marcelo Jacques de Moraes no
momento do debate com o grupo Questions Théoriques na Casa Rui Barbosa, em
novembro de 2014.
10
Referência, principalmente, à poesia concreta, que, na leitura que faz do ensaio
“Crise do verso” de Mallarmé, insistem exatamente no fim do verso, ou seja de
uma especificidade da poesia. Essa leitura será refeita por Marcos Siscar que
insistirá em uma “especificidade em crise” da poesia, ao propor uma crise de verso,
qual seja, de um verso irritado, para se pensar ainda a poesia. Ver a entrevista que
fiz com Marcos Siscar http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S1517-
106X2011000100010&script=sci_arttext. Consultado em 23/11/2014.
11
No Brasil indico a tese de Marília Garcia sobre a poesia de Hocquard, realizada
sob orientação de Paula Glenadel, na UFF. Dividi a banca de doutoramento com
Marcelo Jacques de Moraes, Marcos Siscar e Ida Alves. Disponível em
http://www.bdtd.ndc.uff.br/tde_arquivos/23/TDE-2010-12-20T083322Z-
2711/Publico/Maria%20Garcia%20Tese.pdf. Consultado em 23/11/2014.
12
Talvez a Inimigo rumor nesse primeiro momento, como afirma Italo Moriconi,
fazia, aliás como certa geração dos anos 1980-90 no Brasil, um retorno a uma
poesia-poética, ou como diz Italo, uma “literatura-literária”. Ver Italo Moriconi,
“Qualquer coisa fora do tempo e do espaço (poesia, literatura, pedagogia da
barbárie)”, (1999).
13
Seria preciso escrever sobre as relações das artes brasileiras dos anos 1960 e
1970 com a poesia brasileira contemporânea, principalmente a partir do
concretismo e neo-concretismo, Hélio Oiticica e Lygia Clark, dentre outros.
14
O caso de Carlito Azevedo é interessante, a partir da Inimigo rumor, que teve um
começo de afirmação tradicional, ligado à noção de paideuma, ele, a partir de um
determinado ponto, irá redimensionar deliberadamente seu projeto poético,
abrindo-se a outras contaminações.
15
Siscar é próximo do poeta francês Michel Deguy que, por sua vez, é visto por
Gleize como “ontologizante”, já que acredita na poesia como lugar do pensamento
pelo como, pela comparação, e nesse sentido está em busca de uma abertura à
origem, próximo de Philippe Lacoue-Labarthe. Ver ainda meu livro Marcos Siscar
por Masé Lemos (2011).
Esses dois novos polos que são trazidos aqui a partir desta exigência
réaliste, como indica Gleize, irão entrar em grande atrito, “em razão de
muitos mal-entendidos sobre os projetos respectivos” (2004, p. 47).
Aqueles acusando os literais de esterilidade, e estes acusando os outros de
serem poetas do “expressivismo lírico” (como Prigent e Maulpoix), de
“ingenuidade regressiva e infantil” no tratamento com a linguagem.
Entretanto Gleize sinaliza que nestes dois casos, o que estaria em jogo seria
“a mesma consciência aguda do fato de que escrever tem a ver com a
exigência e impossibilidade de se figurar o real” (2004, p. 47).
O ensaio termina mostrando, sobretudo, que, a partir da geração dos
anos 1990, o tratamento com a linguagem se objetiva por meio de práticas
que continuam a incitar a paixão pelo real e pela língua, e que ainda são
“formalistas”, uma vez que “observam a língua, objetivam, parecem
considerar a literatura como uma operação literal, intralinguística” (Gleize,
2004, 48). Como exemplo dessas práticas temos Christophe Tarkos
(materialismo linguístico) e Olivier Cadiot.
Os objetivistas, para Gleize, estão ligados à ação direta através da
prática de experimentalismo formal com “objetos”, não apenas ligados à
literatura. Arrisco dizer que entre estes estaria Pierre Alferi que não pode
ser “classificado” de formalista, pois trabalha não apenas com formas da
literatura, mas também com enunciados da linguagem corrente e com
outras artes. Como, aliás, o novo grupo, surgido nos anos 2000, dentre
eles, poetas que publicam desde os anos 1990, como Christophe Hanna,
poetas que criaram um coletivo que se intitula Questions théoriques16 por
acreditarem que a teoria literária não daria mais conta de pensar esses
novos objetos. Para terminar minha reflexão sobre a leitura de Gleize, cito
um último parágrafo onde ele explica as práticas objetivista e literal que
fazem esses poetas:
16
Esse grupo esteve em novembro de 2014 no Brasil para participar do evento
“Poesia, Ação”, organizado por Flora Süssekind, Carlito Azevedo e Marion Naccache.
Ótima oportunidade para desenvolver meu atual projeto de pesquisas (cadastrado
na UNIRIO) intitulado “Poesia e Prosa: crises e saídas” onde trato das relações
entre a (pós) poesia francesa e brasileira moderna e contemporânea.
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Para situar minimamente o pragmatismo que lhes interessa, ressalto o
afastamento de Austin e a adesão ao pensamento de Richard Rorty, por exemplo.
18
Se os poetas da Ação Direta, ligados a Questions Théoriques, declaram aderência
ao pragmatismo americano via Wittgenstein, é perceptível a aproximação de Alferi
ao pensamento de Gilles Deleuze. Ver o ensaio de Paula Glenadel, “Poesia, retorno,
recuo: uma leitura da poética de Pierre Alferi” (1998).
Revue de littérature générale, que foi editada pela P.O.L. (conhecida editora
parisiense de livros de poesia experimental, ou pós-poesia, ou, ainda, de
OVNI). Objetos, é disto que se trata: OVNI (Objets verbaux non identifiés),
noção criada neste editorial, e que será retomada pelos poetas da Questions
théoriques, como Christophe Hanna (2010) que a desdobra em “dispositivos
poéticos”.
Alferi e Cadiot, no seu “manifesto-editorial”, tentam descrever estes
objetos – sem fazer um simples receituário –, e perceber como são criados,
colocados em circulação e como se dá o agenciamento entre eles. Neste texto,
os poetas franceses vão desmontando os diversos objetos, sempre muito
heterogêneos. É preciso, portanto, como o objeu pongiano, entender seu
funcionamento, evidenciar seu material que sempre resiste a uma total
compreensão. Assim, vão elencando e desenvolvendo, ao longo do texto, a
partir de correlações com os ensaios publicados na RLG, alguns destes
mecanismos, tais como: samples, standarts, maquetes, compressão, inscape,
cut-up, entre outros que sempre estão sendo criados e rearticulados.
Dessa maneira, as formas são recriadas pelo contato com a vida
terrena a partir de objetos já existentes, como os fraseados descritivos,
teatrais, narrativos, poéticos, ou seja, dos próprios gêneros, das diversas
tradições literárias e também dos usos correntes da língua, além de
arquivos jurídicos, literários, jornalísticos, históricos, etc., que constituiriam
os materiais desta “mecânica lírica”. São, antes, estes “objetos verbais não
identificados” e não hierárquicos que lhes interessam mais do que “a língua
enquanto tal” e, neste sentido, saem do “formalismo” (Alferi e Cadiot,
1996, p. 49). No segundo editorial, intitulado Digest, que foi publicado em
1996, os poetas explicitam mais detidamente esses procedimentos:
os casos de Michel Foucault, Glifford Geertz, Paul Veyne e Hayden White, para
citar apenas alguns. Também são os casos das prosas e poesias
contemporâneas que se apropriam da etnografia, da cartografia, das provas
periciais, do testemunho, que também visam essa ação direta no mundo.
Se Gleize em “Para aonde vão os cães” cita Charles Reznikoff como
exemplo de prática objetiva – apropriação de coisas do mundo, objetos
públicos que serão retrabalhados a partir de desmontagens – e se Frank
Lebovick denomina o resultado dessas práticas de “documentos poéticos”,
pode-se perceber que algo da especificidade da arte permanece como
questão intrínseca a essa desmontagem e remontagem.
Não poderia deixar de aproximar o termo “documento poético” da
“mecânica lírica”. Aliás, assim sinaliza Fiona MacMahon em seu livro sobre
Reznikoff, no qual enfatiza os procedimentos artísticos que o poeta
americano emprega no seu retrabalho sobre os documentos judiciários,
como o ritmo, criando novas configurações de sentido na materialidade do
documento. Para MacMahon, na poesia de Reznikoff,
19
Minha orientada de Pibic, Juliana Travassos, está trabalhando nesse sentido em
seu subprojeto intitulado “Quando prosa é verso: montagem, imagem e memória
em Oswald de Andrade” e que lhe conferiu bolsa Faperj desde março de 2014.
20
É importante sinalizar que essa modernidade de Greenberg está na contramão da
modernidade apontada por Gleize e mencionada anteriormente neste ensaio.
21
Agradeço as trocas de ideias com Leila Danziger e Luiz Cláudio da Costa a
respeito da “saída” das artes para o espaço [horizontalidade] em detrimento da
verticalidade, da parede, por exemplo. Ver a esse respeito o já citado catálogo
"l'Informe: mode d'emploi".
22
Este livro de Alferi não é paginado. Envoi é um termo francês para posfácio ou
post scriptum.
23
Suzanne Doppelt e Pierre Alferi : [Sans titre], Photographie, 7x 7 cm, in :
Pierre Alferi, Kub Or., op. cit.
relações que envolvem presenças, logo há sujeitos que são os únicos a conferir
aos objetos minimalistas uma garantia de existência e eficácia” (2010, p. 66).
Segundo Didi-Huberman, seria necessário pensar dialeticamente
tanto a tautologia e a literalidade – e o repúdio à imagem e ao sentido
transcendente –, quanto a imagem e a crença.
24
No colóquio “A poesia na literatura brasileira contemporânea”, que organizei com
Flora Süssekind, Vera Lins e Jacqueline Penjon, realizado em Paris em outubro de
2014, o debate final foi marcado por esse incômodo quanto a um possível “fim” da
poesia.
Referências
ANDRADE, Oswald. Poesia Pau Brasil. 2 ed. São Paulo: Globo, 2003. (Obras
completas de Oswald de Andrade).
COSTA LIMA, Luiz. Oswald, poeta. In: ______. Pensando nos Trópicos –
Dispensa demanda II. Rio de Janeiro: Rocco, 1991.
DIDI-HUBERMAN, George. O que vemos, o que nos olha. São Paulo: Editora
34, 2010.
______. Opacité Critique. In: ______. Toi aussi, tu as des armes: poésie &
politique. Paris: La Fabrique, 2011.
GLENADEL, Paula. Poesia, recuo: uma leitura da poética de Pierre Alferi. In:
Congresso Internacional ABRALIC, n. IV, 1998. Revista Brasileira de
Literatura Comparada – Estudos Culturais. Florianópolis: ABRLIC, 1999.
______. Poésies: Théorie des célibataires. Art 21, Paris, n. 31, s.p., verão
2011.
LEMOS, Masé. Carlito Azevedo e Marcos Siscar: entre prosa e poesia, crise e
saídas”. In: SCRAMIM, Susana; et al. (orgs.). Teoria, poesia, critica. 1 ed.
Rio de Janeiro: 7 Letras, p. 231-58, 2012.
______. Marcos Siscar por Masé Lemos. Rio de Janeiro: Eduerj, 2011.
(Coleção Ciranda da Poesia).