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A Crise Do Discurso Do Direito Privado D
A Crise Do Discurso Do Direito Privado D
quantitativa reclama a superação hermenêutica que seja capaz de fundamentar uma nova
perspectiva de legitimação do discurso científico do direito privado em razão da estrutura da
sociedade hodierna, de modo que, pelo processo de redirecionamento dos conceitos e enunciados
jurídicos, se alcance a atualização constante do direito privado enquanto expressão ‘qualitativa’ da
sociedade que o produz, com todas as contradições que a sociedade de classe expressa. Certamente,
o ubi societas não designa o enquadramento espacial das sociedades humanas, nem o ibi jus esposa
um ‘predicado quantitativo’ do fenômeno jurídico, como se este realmente fosse uma decorrência
mecânica da vida social.
Acontece que o ‘sentido’ que se manifesta através do brocardo, isto é, que emerge das suas
representações no processo de hermenêutica filosófica, embora ele efetivamente não seja uma
construção característica da metodologia do discurso científico, denota que a questão predicativa
que se apresenta não é ‘quantitativa’, mas ‘correlacional’. Reside na ‘categoria correlacional’ que se
elabora entre a sociedade considerada como ‘sujeito’ e o direito percebido como ‘predicado
qualitativo’ seu, no seio da tessitura existencial de onde brota o ‘sentido’ do legítimo e do justo.
Portanto, naquele aforismo, o direito não se reduz às normas positivadas pelo Estado, mas engloba
também (e principalmente) o conjunto das representações sociais do ideal de Justiça, em termos
semelhantes ao esposado na teoria do “direito pressuposto” do professor Eros Roberto Grau, e na
medida em que, naquela pressuposição “O povo – digo – produz o direito pressuposto: o Estado
produz o direito posto, que conhecemos como direito moderno ou direito formal; apenas o direito
produzido pelo povo é comprometido com a justiça” (GRAU, 2000: 55).
Dessume-se então, dessa observação, que não é só pela inevitável relação implicativa do
‘sujeito’ (a sociedade) com o ‘predicado qualitativo’ (o direito) que põe adiante, mas também em
razão da ‘base existencial’ (horizonte histórico) onde se processa esta relação, que o direito se
apresenta como um nível de ‘representação social’ das experiências históricas que a sociedade
experimenta, carregando os substratos valorativos desde as relações primárias do modo de produção
da sociedade, inclusive. Assim, leciona no mesmo sentido a professora Jeannette Maman, in verbis:
Nesse sentido é que podemos dizer que o direito está mergulhado nas condições
existenciais, na produção da vida material e espiritual, na situação em que o homem
pode atuar sobre e com a natureza para subsistir. O direito não é somente fenômeno
normativo, isolado, abstrato, arrancado da vida, mas é ela mesma enquanto
convivência humana, co-existência, compreensão compartida. (MAMAN, 2003:
78)
desde a filosofia, passando pela teoria científica e desembarcando na prática judiciária, isto é, da
‘abstração sistemática’ ao ‘decisionismo tópico’, deve se fundamentar em bases epistemológicas
que lhe permitam acompanhar o desenvolvimento histórico que a sociedade correspondente
experimenta, de modo a formular um juízo crítico a respeito da realidade socialmente construída,
seja para ao final lhe dar chancela ou para, explicitando suas aporias, propor novos rumos.
Acontece que por conta do paradigma epistemológico da modernidade, principalmente do
Iluminismo e do Idealismo Alemão, a teoria jurídica se desenvolveu como se o direito fosse um
‘ente’ apartado da sociedade, produto de uma suposta razão metafísica a-histórica, puro e isolado,
perfeitamente sistematizado e imune às contingências históricas. Nessa dimensão idealista surgiram
os dois mais reconhecidos trabalhos de filosofia do direito, vetores de corações e mentes até os dias
atuais: a “Grundlegung zur Metaphysik der Sitten” de Immanuel Kant (1785), que fundamenta o
direito no ‘imperativo categórico’, e o “Grundlinien der Philosophie der Rechts” de G. W. F. Hegel
(1821), que entende o direito como manifestação do ‘espírito absoluto em si, e para si’.
Em comum, as filosofias do direito de Kant e de Hegel, são idealistas e partem da noção
metafísica iluminista de homem. O direito é defendido como um ‘ente’ autônomo frente ao
desenvolvimento histórico da sociedade, do mesmo modo que o homem é descrito como um ser
individualizado, intangível, isolado e dotado de vontade absolutamente livre. Essa condução das
razões do direito para uma dimensão idealista permitiu, equivocadamente, o desenvolvimento
teórico do direito como se este não fosse um predicado qualitativo das sociedades, e como se as
condições históricas dos homens nessas mesmas sociedades não participassem da sua determinação.
Numa crítica efetivamente fundada, Karl Marx na sua “Zur Kritik der Hegelschen
Rechtsphilosophie” (1843), e como um dos precursores da epistemologia pós-moderna (e, portanto,
também ‘fundante’), consignou que o procedimento filosófico que permitiu o desenvolvimento da
teoria jurídica numa esfera metafísica dissociada das condições sociais historicamente configuradas
foi a arbitrária transformação do ‘predicado’ em ‘sujeito’, isto é, o direito, enquanto ‘predicado’ de
uma sociedade estruturada, foi tomado como ‘sujeito’ autônomo, como ‘espírito absoluto’
indiferente ao processo histórico que lhe deu causa, produzindo a ‘mistificação’ e ‘alienação’ do
mesmo.
Com efeito, deve-se considerar que houve um desenvolvimento da teoria jurídica em
relativa dicotomia das condições históricas e sociais dos povos, mesmo se reconhecendo a postura
ideológica determinante e subjacente a esta pretensão. O que é essencial considerar para os fins da
presente articulação, é que grande parte dos problemas teóricos que o direito privado não consegue
justificar nos dias atuais (v. g. o contrato de compra e venda de pacote acionário e a sindicância de
XXI Encontro Regional de Estudantes de Direito e Encontro Regional de Assessoria Jurídica Universitária
“20 anos de Constituição. Parabéns! Por quê?”
ISBN 978-85-61681-00-5
ações nas Sociedades Anônimas), resulta do distanciamento da teoria do direito privado em relação
ao momento histórico pelo qual passam as sociedades que experimentam o desenvolvimento
tecnológico e informático iniciado na segunda metade do século XX. Há uma deficiência conceitual
e metodológica instaurada tanto no jusnaturalismo quanto no juspositivismo, ambos frutos do
paradigma epistemológico da modernidade, e que imprime ao cientista do direito a seguinte
questão: é possível teorizar eficientemente o direto da sociedade do avanço tecnológico acelerado,
da cibernética, da globalização da economia, da informática e internet, da bomba atômica, da
emergência da degradação ambiental, por instrumentos metodológicos medievais (naturalismus) ou
do fisicalismo modernista (positivismus)?
A sociedade hodierna vem empreendendo um avanço tecnológico sem precedentes na
história da humanidade. A divisão do trabalho social, que fundamenta sua estrutura produtiva, tem
sofrido uma aceleração tão radical que destruiu a percepção quotidiana das classes sociais (que até o
início do século XX era um ‘juízo de evidência’ das teses sociológicas, bastando que fizessem
referência a Karl Marx), inaugurou a era da insegurança institucionalizada, e ameaça as identidades
nacionais em nome de uma globalização da exploração capitalista (a “imposição a todo o globo de
uma mais-valia mundial” nas palavras do professor Milton Santos (2001: 27)). Essa é a sociedade
da automação da indústria, das atividades sócio-estruturais arriscadas e inseguras, da explosão do
setor de serviços, da valorização do conhecimento como mercadoria, cuja conceituação ainda é
deficiente, mas até então identificada na sociologia como “Sociedade Pós-industrial” por Alain
Touraine (“Société Post-industrielle”, em 1969) e Daniel Bell (“The Coming of Post-industrial
Society”, em 1973), e como “Sociedade de Riscos” por Ulrich Beck (“Risikogesellschaft: auf dem
Weg in eine andere Moderne”, em 1986), já amplamente debatidas no discurso jurídico-penal, mas
ainda não consideradas nos meandros da ‘dogmática’ da teoria do direito privado.
Esta situação histórica configurada através do ‘risco sócio-estrutural’, de relações sociais
‘não-lineares’, fragmentárias e multiformes, desenvolvidas sob o signo do ‘tempo real’ (real time)
como expressão do artificialmente instantâneo, cobra da teoria do direito privado uma nova
estrutura epistemológica que pressuponha sua ‘não-regularidade’, ‘interdisciplinaridade’ e ‘abertura
axiológica’. A teoria das obrigações e contratos do liberalismo clássico do século XIX, por conta do
seu aparado metodológico linear, abstrato, de homogeneidade lógico-formal, sistematicamente
isolado, não se mostra capaz de justificar teoricamente a ‘sociedade do contrato atípico’ (expressão
da não-linearidade sócio-estrutural), do contrato internacional, e do contrato por meio eletrônico
(internet). A ‘atipicidade’ antes vista como ‘anomalia’ é, doravante, tão presente e quotidiana, que
não pode mais ocupar o lugar de excrescência na racionalidade jurídica pós-moderna, daí a
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