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ENSAIOS (MARGINAIS) SOBRE A CONFIANÇA

ENSAIOS (MARGINAIS)
SOBRE A CONFIANÇA

Organizadora
Fernanda Canavêz
Diagramação: Marcelo A. S. Alves
Capa: Lucas Margoni
Fotografia / Imagem de Capa: Daniel Guimarães

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Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


CANAVÊZ, Fernanda (Org.)

Ensaios (marginais) sobre a confiança [recurso eletrônico] / Fernanda Canavêz (Org.) -- Porto
Alegre, RS: Editora Fi, 2022.

69 p.

ISBN: 978-65-5917-548-2
DOI: 10.22350/9786559175482

Disponível em: http://www.editorafi.org

1. Ensaios; 2. Psicanálise; 3. Confiança; 4. Interpretação; 5. Análise; I. Título.

CDD: 150.195
Índices para catálogo sistemático:
1. Psicanálise 150.195
SUMÁRIO

1 9
PARA ABRIR A GIRA
Fernanda Canavêz

2 12
CONFIANÇA É FOGO
Caio Riscado

3 16
CONFIANÇA EM DOIS ATOS
Camila Peixoto Farias
Giovana Fagundes

4 23
CONFIAR NA ORIGEM/ORIGEM DA CONFIANÇA
Daniel Mograbi

5 27
O INTERVALO DA CONFIANÇA
Francisco Teixeira Portugal

6 33
ESSE TEXTO PODE NÃO SER CONFIÁVEL
Laura Conceição

7 36
CONFIANÇA: SEMENTE ATIRADA
Ludmila Frateschi

8 41
ERA PRIMEIRO A BOCA
Miro Spinelli
9 44
UM CAUSO SOBRE A CONFIANÇA
Philippe Oliveira de Almeida

10 48
A APOSTA NESSE RITMO NOSSO QUE CONSTRÓI UMA PERIFANÁLISE
Coletivo PERIFaNÁLISE

11 54
CONFIANÇA NA ESCUTA DAS RUAS
Coletivo Psicanálise na Rua

12 59
CONFIAR, TESSITURAS DA VIDA COMUNAL
Saulo Luders Fernandes

13 64
A CONFIANÇA NOS TEMPOS DA CÓLERA
Tania Rivera

SOBRE AS AUTORAS E OS AUTORES 67


1
PARA ABRIR A GIRA
Fernanda Canavêz

"Confiança é uma postura", dispararam como uma flecha no en-


contro do marginália Laboratório 1 em que discutimos os ensaios aqui
reunidos.
A proposta de trocar ideias/afetos sobre a confiança tinha surgido
da constatação de que nós, trabalhadoras e trabalhadores da Universi-
dade e do campo psi, temos a prática de coletivizar diagnósticos sobre o
mal-estar que nos assola, muito embora sejamos marcadamente indivi-
dualistas ao procurar destinos menos mortíferos em resposta às nossas
análises de conjuntura.
Em foro íntimo, trocamos figurinhas sobre nossas dificuldades
para amar, frustrações e a sensação de desamparo diante de certa nos-
talgia das instituições: do casamento ao Estado de bem-estar social que
ainda parecem povoar, com força, nosso imaginário. O individualismo
que nos especializamos em criticar parecer ser exatamente a tônica de
que lançamos mão para nos desembaraçar dos dilemas colocados pelo
neoliberalismo. E assim permanecemos na circularidade da mistura ex-
plosiva entre propriedade privada, familialismo, amor romântico,
produtivismo, combinação a repousar em banho-maria no caldo da des-
confiança. É com pesar que nos sentimos mais próximos do sujeito

1
marginália - Laboratório de Psicanálise e Estudos sobre o Contemporâneo, sob minha coordenação no
Instituto de Psicologia da UFRJ. Atualmente, a equipe é composta por Beatriz Adler, Giuliana Lucas, Hirne
Peçanha, Juliana Garcia, Luciano Dias, Michelle Simões, Roberta Teixeira e Vanessa Correia. Agradecemos
ainda ao colega Mateus Reis pela interlocução e confiança.
10 • Ensaios (marginais) sobre a confiança

empreendedor de si, desconfiado e arredio, do que nossos livros e arti-


gos podem fazer acreditar. Haja ato de fé, "na fé firmão" 2.
Conhecemos muitos dos motivos que nos levam a não confiar no
outro, de forma que para o mal do individualismo buscamos... mais in-
dividualismo! Fazendo eco à formulação de Donna Haraway 3, fiquemos
por um momento com esse problema (por nós criado) e deixemos de
lado as expectativas de salvação. Ocorre que, não raras vezes, sentimos
falta da tal da confiança. Em uma conversa de elevador, ao assinar um
contrato, nas juras de amor ao pé do ouvido, na confirmação de um nú-
mero na urna eletrônica, na comunicação de uma pesquisa acadêmica,
ao atravessar a rua da esquina, no ato de organizar uma coletânea. Qual
é o fiel da balança da confiança, que pode pender tanto para um encon-
tro efetivo, com suas dores e delícias, quanto para um tropeço no outro
– quase escrevi espelhamento – de cujas marcas buscamos nos desem-
baraçar?
Na tentativa de deslocamento dos centros de onde emanam hege-
monias, os ensaios (marginais) sobre a confiança buscam ser menos um
tratado academicista sobre o tema e mais o convite a um exercício pra-
zeroso de fabulação em que se pode confiar no outro e descansar na
prática da criatividade. E que assim a Universidade possa se contaminar
de afetos, da intimidade e do imponderável dos encontros.
Afinal de contas, "tudo é desse mundo, a surpresa também" 4, de
acordo com o precioso ensinamento de Sérgio Sampaio, incluindo a
aposta em um mundo mais plural, perpassado pela confiança e pela

2
Racionais MC's. (2002). Na fé firmão. In Nada como um dia após outro dia [CD]. Boogie Naipe.
3
Haraway, D. (2016). Staying with the trouble: Making Kin in the Chthulucene. Durham: Duke University
Press.
4
Sampaio, S. (1994). Cruel. In Cruel [CD]. Saravá Discos.
Fernanda Canavêz • 11

aposta nas relações. Ou ainda, como lembra o samba: "a vida não é só
isso que se vê, é um pouco mais" 5. Vida que, aliás, pode ser muito boa, ao
contrário da retórica trágica que aprendemos a estudar e aplaudir. Na
minha trajetória como estudante de Psicologia, tive a sorte de contras-
tar essa apologia com os ensinamentos do mestre Faíscca 6, responsável
por me ensinar a tocar percussão, sentir o pertencimento a uma bateria
de escola de samba e, de quebra, imprimir ao corpo a marra necessária
para me fazer notar a partir da alegria incendiária. "Filho de Faíscca é
fogo, se entra no jogo é pra incendiar!" 7.
Se a confiança é mesmo uma postura, então que possamos assumi-
la para abrir mão da melancolia caricata e em tons de cinza para nos
lançar ao som dos corpos que pulsam na cadência de uma bateria, na
tarefa de criar (e enxergar) a surpresa de um novo jeito de viver, de pen-
sar, de sonhar, de sofrer. Incendiemos!

5
Viola, P. & Carvalho, H.B. (1974). Sei lá, Mangueira. In Sei lá [LP]. Odeon.
6
Marco Antônio Pereira Guimarães, mestre de bateria do G.R.E.S. Império Serrano, escola de samba
tradicional do Rio de Janeiro. Em 2022, a bateria imperiana desfilou sob a batuta do mestre Vitinho, filho
do mestre Faíscca.
7
Feital, P.C. et. al. (2022). Mangangá. In Sambas de enredo 2022 [CD]. Universal Music Group.
2
CONFIANÇA É FOGO
Caio Riscado

Uma penumbra cobre a sala. Algumas pessoas correm e outras es-


tão deitadas. Além da meia-luz, o chão também as conecta. De certa
forma, estão todas em movimento, fazendo conviver diferentes vibra-
ções, temperaturas e desejos. Apesar da pouca claridade, ninguém se
esbarra, ninguém invade o espaço da outra. Há um cheiro específico de
suor misturado com maquiagem e garrafinhas com água dispersas pelo
ambiente. Além do burburinho das pequenas conversas, o som que pre-
enche o lugar resulta da respiração dos corpos que se aquecem. Faz
calor. Quase sempre, faz calor.
Descrita assim, de lembrança, a cena pode soar relaxada. Mas é
fundamental não perder de vista que essa é uma cena ocupada e que as
suas participantes estão em trabalho. Afirmar o trabalho artístico se faz
necessário para que possamos avançar na conversa sobre o que enten-
demos e defendemos como atividade laboral. As matérias partilhadas
nesse tipo de processo são mais finas, frágeis, e, por isso, altamente poé-
ticas e, consequentemente, políticas. Não há relação de exploração, os
vínculos criados buscam outros modos de organização que não o hie-
rárquico e, embora exista a necessidade do retorno financeiro, afinal,
estamos todas inseridas na lógica capitalista, o acúmulo de dinheiro
passa longe de ser um objetivo pois, por mais que as vozes boçais insis-
tam em classificar as artistas como “mamadoras das tetas do estado”,
Caio Riscado • 13

não possuímos estrutura e nem incentivo suficiente para falar de um


mercado das artes da cena independentes.
Dito isso, a noção de trabalho que perseguimos se aproxima da
ideia de uma “arte da existência” que, nas palavras de Cassiano Quilici,
“nos inspira aqui a falar de algo que se realiza nas mínimas ações, e que
não se identifica necessariamente com os espaços consagrados e previ-
síveis para a realização das atividades artísticas” 1. Nesse sentido, o
trabalho em arte seria uma maneira de investigar as ações humanas, ou
seja, um “modo de criar e cuidar das nossas formas de relação com o
mundo e conosco mesmos” 2. Essa perspectiva revela a emergência do
trabalho em arte, ou arte-vida, porque o coloca como indispensável para
as negociações com a precariedade que é inerente ao viver. Dessas ne-
gociações, o trabalho em arte se apresenta não como resposta, mas,
sobretudo, como questão.
Em um movimento de retorno para a cena brevemente narrada, se
entendemos que as matérias e valores trocados são outros, concluímos
que a sua manutenção também ocorre por vias opostas das tradicionais.
O que vibra entre as presentes se estabelece na metodologia de criação
que mira a construção de um chão comum e compartilhado, sustentado
pela confiança. Independentemente da maneira como diferentes coleti-
vos e grupos de trabalho em arte se organizam, arrisco dizer que sem
um plano de colaboração, cooperação e parceria fica complicado esta-
belecer um ambiente propício para o desenvolvimento da criação. Não
sem motivo, uma boa parte da literatura das artes da cena, no que diz
respeito ao ensino e à prática de modo continuado, discorre sobre a

1
Quilici, C.S. (2015). O ator-performer e as poéticas da transformação de si. São Paulo: Annablume, p. 143.
2
Quilici, 2015, p. 143.
14 • Ensaios (marginais) sobre a confiança

importância da ativação de um espaço de partilha em que, mais do que


falar, é imperativo aprender a ouvir.
É através da escuta, uma escuta ampliada, com o corpo todo enga-
jado e não só o aparelho auditivo, que podemos praticar a construção
desse chão. Uma construção que nunca chegará ao fim, que se apresenta
como lenta e processual, cheia de camadas e espaços abertos. A infini-
tude do processo revela que percorrer um caminho de criação ensina
mais do que a ideia de “resultado esperado”. Ou seja, uma construção
que se aproveita dos acidentes da paisagem para indagar a si mesma:
em suas fraturas, questões, impasses, no dissenso. É na diferença que a
construção do chão se torna possível. Uma construção que está sempre
desmoronando, mas que não cai no vazio. Ela habita a sua própria ruína.
Não há vazio, pois o espaço está cheio de pistas de trabalho. São
conversas, diálogos, pontes, encontros que buscam fortalecer a ideia de
um corpo-chão que vibra em coletivo, mas sem apagar as singularidades
que o sustentam. O chão só pode vibrar em comum se entendemos o
comum como um conjunto formado por diferentes. Mais uma vez, é no
tranco com a outra, na faísca que surge dos nossos contatos, que apren-
demos que confiança nada tem a ver com estabilidade ou conforto. A
ideia de confiança que aqui buscamos, esse corpo-chão que sustenta e,
ao mesmo tempo, explode o trabalho, é mais próxima da criação de um
ambiente seguro para o conflito, o erro, o fracasso e a desistência.
Saber desistir é uma constante nos trabalhos em arte. Especifica-
mente no teatro, acredito que só estreamos porque, antes, exercitamos
a desistência como possibilidade para nascer de novo. Vamos desistindo
e renascendo, desistindo e renascendo, acumulando os entulhos da
nossa própria ruína/existência. Quando compartilhamos uma criação
com a plateia estamos em frangalhos, estamos no limite de um processo
Caio Riscado • 15

que precisa ampliar sua coletividade, ganhar a arena pública e conhecer


novos horizontes de conflito.
Cada audiência funciona como uma espécie de coletividade provi-
sória que se movimenta na disputa dos imaginários. São nesses embates
que renovamos nossa disposição para a exposição e as relações que dela
surgem. Criamos um espaço para falhar junto e, depois, tornamos essa
falha pública. Na arena da fabulação coletiva, onde confiamos a pre-
sença dos nossos corpos porque não sabemos e não podemos ser
sozinhas, faço eco das palavras cantadas por Marília Mendonça: “nin-
guém vai sofrer sozinho, todo mundo vai sofrer” 3.
A ideia de confiança no trabalho em arte une quem faz e quem ob-
serva numa mesma postura ativa. Então, por mais efêmera que seja a
experiência, ocupamos um mesmo espaço-tempo que nos permite fabu-
lar sobre outros modos de existência, logo, de trabalho em arte. No
palco, na galeria, na rua, em esquinas e nas mínimas ações a certeza do
contato funciona como estímulo para a continuidade do fazer. Assim
sendo, confiar é também saber encontrar; é saber da imprevisibilidade
do encontro e, mesmo assim, não fugir dele. Confiança é vontade de
atrito. Confiança é fogo.

3
Silveira, D. et al. (2019). Todo mundo vai sofrer. In Todos os cantos, vol. 2 [CD]. Som Livre.
3
CONFIANÇA EM DOIS ATOS

ATO 1 - SOBRE A TRANSMISSÃO DA (CON)FIANÇA

Camila Peixoto Farias

Para celebrar a vida de Nilza Izabel Peixoto – a Mima

Confiar
Con - fiar
Fiar: Compor com fios
Eu fio
Tu fias
Ela fia
Nós fiamos
Vós fiais
Elas fiam

Minha tia Nilza, carinhosamente apelidada de Mima, fiava agasa-


lhos para as sobrinhas enfrentarem o frio rigoroso do inverno gaúcho.
Todas as noites ela fiava um pouco, aquecendo as próprias mãos com o
calor que iria presentear a geração seguinte. Ela fiava, compunha com
os fios possibilidades de sobrevivência, mas não só: compunha acon-
chego, beleza e satisfação para si mesma e para suas descendentes.
A alegria, o orgulho e a satisfação que transbordavam quando ela
finalizava um agasalho contagiavam quem estivesse por perto e perce-
bíamos que aqueles agasalhos eram feitos não só para quem os vestiria,
mas também para ela e para aquelas que a antecederam e haviam
Camila Peixoto Farias; Giovana Fagundes • 17

transmitido a arte da (con)fiança. Mima dizia que fiar era um momento


de descanso, de prazer. Através dessa cena que marcou minha infância,
ela me contava que (con)fiar é poder descansar, poder sentir prazer am-
parada pela trama do passado, fiando o presente e apostando no futuro.
Aprendi com ela que (con)fiar tem a ver com vínculo, com descanso e
satisfação, tem a ver, primeiramente, com amor de si, mas também com
amor pelo outro. Mima (con)fiava e o seu fiar cuidava: cuidava de si e do
outro.
Mima é uma mulher que rompeu com os padrões da sua época na
zona rural do interior do Rio Grande do Sul: estudou, trabalhou fora e
optou por não se casar – e por isso ouvia e ouve até hoje dos homens
machistas da família piadas cruéis e violentas. Mas eles não consegui-
ram tirar a capacidade dela de (con)fiar. Ela segue criando as próprias
composições com os fios que chegam até ela, escolhendo quais utilizar
e como.
Apesar da imposição compulsória do cuidado como tarefa das mu-
lheres em nossa sociedade, Mima construiu um espaço de existência
próprio, criava suas próprias composições com os fios da vida e sabia
que isso tecia o amparo da (con)fiança para as gerações seguintes, que
isso fiava para nós que viemos depois a possibilidade de construção das
nossas próprias composições. Ela fiava para ela, por ela, para mim, por
mim tramando fios que vinham de passados pouco contados.
O momento da entrega dos agasalhos era momento de grande ale-
gria e comemoração para a Mima e para quem recebia o presente.
Momento de celebrar o fiar, a composição de fios que unia as gerações,
que unia passado, presente e futuro. Mima, que é também minha ma-
drinha, me presenteou com várias peças que me aqueceram em muitos
invernos, mas, principalmente, me presentou com a (con)fiança, com a
18 • Ensaios (marginais) sobre a confiança

arte de fiar, de compor com os fios da vida um tempo/espaço de des-


canso, satisfação e celebração ancorado no que recebi de quem me
antecedeu, mas transformando, criando e apostando no futuro, (con)fi-
ando em quem virá depois.
Isso representa um pouco do que a Mima é para a minha família,
mas mostra apenas uma pequena faceta do tanto que ela nos possibilita
(con)fiar e, portanto, ser. Talvez isso explique um pouco meu amor pelo
inverno, pelo frio: a alegria, o aconchego e a possibilidade de tecer mi-
nha própria vida.
Mima é uma (con)fiadora de futuros! Fia até hoje futuros para si
mesma e para nós que viemos depois a partir de fios trazidos pelas que
a antecederam. Eu fico pensando que a confiança talvez esteja alicer-
çada no vínculo com alguém que (con)fie por si e por nós, que seja nossa
fiadora na aposta do viver, transmitindo assim a arte da (con)fiança. E
isso torna possível agradecer, celebrar, descansar e sonhar!
Mima é uma mulher que, apesar de todas as violências de gênero e
de classe sofridas, fiou a própria vida e construiu lastro para que outras
mulheres como eu criassem o próprio fiar, sentindo que o (con)fiar não
é solitário: é poder ser uma, mas não ser só 1 – como nos lembra Sued
Nunes. É sentir-se parte da trama fiada desde muito antes de nós e que
seguirá depois nós! É sentir que a (con)fiança é povoada e povoa de pos-
sibilidades a vida!
Esse (con)fiar é um dos principais alicerces para o meu trabalho na
universidade, especialmente para construção de parcerias de (con)fi-
ança com outras mulheres, parcerias para fiar e resistir ao dia a dia do
contexto universitário – por vezes tão violento e árido. A possibilidade

1
Nunes, S. (2021). Povoada. In Travessia [CD]. Mugunzá Records.
Camila Peixoto Farias; Giovana Fagundes • 19

de confiar que me foi transmitida pela Mima (que também era profes-
sora) tem possibilitado (con)fiar com outras mulheres, construir
projetos, escutas, espaços, tempos de (con)fiança na universidade. Des-
taco a parceria com a querida colega Giovana Fagundes que tem
compartilhado comigo novas possibilidades de fiar e também de produ-
zir novos fios. E assim o (con)fiar segue tecendo possibilidades de vida
e alicerçando presentes e futuros colaborativos, amorosos e revolucio-
nários.

ATO 2 - SOBRE CO-LABORAR A PARTIR DA CONFIANÇA

Giovana Fagundes

Para celebrar as parcerias genuinamente colaborativas

Ao ler o relato sobre tia Mima, com sua força ético-estética, me


emociono e sou imediatamente convocada a filosofar. Todo objeto tem
uma história e toda palavra também, a qual, geralmente, remete a tem-
pos muitos distantes dos nossos, carregando fios do contexto e da
intencionalidade que a criou.
O verbo confiar, em nossa língua, tem origem no latim antigo: con
fides. A palavra fides significa fé, remetendo ao ato de acreditar em algo
ou alguém. Ou seja, ao confiar, cremos em algo, mesmo que invisível,
permitindo seguir por um caminho ou investir em uma relação. A fé,
questão marginal na universidade, delegada à teologia, tem sido desva-
lorizada contemporaneamente, principalmente no âmbito da
psicologia, reduzida a um aspecto do psiquismo. No entanto, trata-se de
uma temática existencial constantemente retomada pela filosofia como
20 • Ensaios (marginais) sobre a confiança

um aspecto da experiência coletiva cotidiana, não apenas como dimen-


são transcendental. O filósofo Merleau-Ponty 2, por exemplo, denomina
de fé perceptiva a faculdade de confiar no mundo através de percepções
prévias, algo que acontece a partir do corpo vivo, situado, que percebe o
contexto a partir da materialidade, no encontro com a alteridade. Tudo
nos chega através dos sentidos, num plano em que mente e corpo não
existem separadamente.
O sentir e o pensar só se separam e antagonizam no pensamento
cartesiano ocidental, branco, masculinizado, eurocentrado. Nessa tra-
dição, à mulher foi delegado o sentir, considerado como uma dimensão
inferior, corporal, visceral. O homem, ser racional e objetivo, buscou do-
minar o mundo, os corpos e os pensamentos numa lógica que semeou a
competitividade e a desconfiança. Herdamos este modo de existir. Po-
rém, não competimos entre iguais, posto que a mulher tem sido
historicamente objetificada 3 – desqualificação que se amplia a depender
da raça, da classe, da idade e da orientação sexual. Vemos meninas que
crescem e aprendem a ver mulheres como rivais, comparam-se, criti-
cam-se, cobram umas das outras a adequação aos padrões hegemônicos.
Sem perceber, criam hierarquias e reproduzem a lógica do patriarcado,
o racismo e os estereótipos de gênero, restringindo a pluralidade dos
modos de existir. Com isso, a raiva e a competição voltam-se contra si
mesmas e contra as demais.
Trata-se de um processo histórico no qual aprendemos a descon-
fiar das mulheres, colocadas sempre como intensas e instáveis: la donna

2
Merleau-Ponty, M. (1999). Fenomenologia da Percepção. São Paulo: Martins Fontes.
3
Simone de Beauvoir denuncia essa lógica ao nos considerar o “segundo sexo”.
Camila Peixoto Farias; Giovana Fagundes • 21

è mobile 4! Aos poucos, não confiamos sequer em nós mesmas. Desconfi-


amos da nossa própria percepção, das sensações intuitivas – expressões
do corpo – e das nossas experiências. Negamos a sabedoria ancestral e
visceral, rompendo a conexão com a fé perceptiva, com a sabedoria de
nossa corporeidade.
Mas sempre podemos reencontrar o fio que nos leva de volta ao
sentir – como mostra a trajetória de Mima, que seguiu em seu fiar... se-
guida por Camila, que chegou então a mim no contexto da universidade.
Um dia, Camila me convidou a pesquisar tendo o sentir como ponto de
partida. E isso abriu um horizonte estético no qual nos ampliamos como
mulheres e como profissionais. Ela me convidou a tecer com ela, dia
após dia, a entrelaçar os fios num bordado, numa manta de crochê que
pudesse aquecer e se fazer chão, criando um espaço de trabalho e de
descanso em nossa trajetória universitária: um espaço potencial.
Aprendemos, juntas, a tecer novas redes de confiança, que alcan-
çaram outras mulheres. Seja com a pesquisa Agora é que são elas: a
pandemia de Covid-19 narrada por mulheres 5, seja em nossos grupos de
estudo, aulas, textos, vamos esticando os fios e fazendo uma trama am-
pla e complexa – uma cama de gato. Essa imagem, invocada por Donna
Haraway 6 como uma figura potente para o campo da pesquisa e da in-
tervenção tem muito a nos ensinar. Estamos sempre em uma trama que
convida outros a participarem, de forma deliberada ou não, pois toda
ação tem consequências, fios que se espraiam de forma tentacular. Faz

4
Famosa ária da ópera Rigoletto, de Giusepe Verdi, traduzida por "a mulher é volúvel (como pluma ao
vento)".
5
Pesquisa interinstitucional em desenvolvimento desde 2020 e coordenada por Camila Peixoto Farias
(UFPel), Giovana Fagundes (UFPel) e Fernanda Canavêz (UFRJ).
6
Haraway, D. (2016). Staying with the trouble: Making Kin in the Chthulucene. Durham: Duke University
Press.
22 • Ensaios (marginais) sobre a confiança

parte do processo rastrear as figuras e seus efeitos, nos lugares onde se


produzem, transformando-as em narrativas. Com quem narramos nos-
sas histórias?
Tenho narrado a mim mesma na companhia de muitas mulheres.
É preciso confiar para construir parcerias de vida e de trabalho, con(fi-
ando) para tecer colaborações verdadeiras. Co-laborar é laborar junto:
criar, trabalhar para fiar algo belo e forte (estético e ético), que dure no
tempo. Algo que permaneça para as próximas gerações, como os agasa-
lhos da tia Mima. Eles têm uma função prática, são fruto de trabalho,
mas são também abraços afetuosos no clima duro do inverno.
Queremos que nossas parcerias de trabalho e de vida, como as tra-
mas de tricot, possam aquecer e ajudar nossas estudantes a enfrentar o
clima árido na academia quando ele se impuser. Que elas também pos-
sam construir parcerias potentes para produzir, intervir e transformar
o mundo. Que possam confiar na potência do encontro e na generosi-
dade das partilhas. Enquanto a lógica produtivista e individualista nos
instiga a competir, a fazer mais, a nos destacar quantitativamente, as
parcerias genuínas nos ensinam a caminhar lado a lado, a compartilhar,
amparar e criar. Resultados inimaginados surgem daí, provenientes de
uma nova lógica na qual o inesperado é acolhido e se transforma em
algo surpreendente. Abandonar o controle e poder confiar no processo
e no encontro é uma ética possível, que escolhemos seguir.
4
CONFIAR NA ORIGEM/ORIGEM DA CONFIANÇA
Daniel Mograbi

Quando recebi o convite para escrever esse ensaio, a ideia de que a


confiança seria uma forma de ultrapassar uma dimensão individualista
na resolução de nossos problemas foi explicitamente colocada. A pro-
posta do marginália Laboratório implicava, então, uma tentativa de
endereçar nossas dificuldades coletivas com resoluções que também
fossem conjuntas. Isso convocou em mim uma reflexão, a partir da mi-
nha disciplina, a neurociência, sobre aquilo que nos é comum. Alguns
campos me parecem particularmente relevantes. Reconhecer essas es-
feras compartilhadas é não apenas uma forma de ir além do
individualismo, como também perceber que há, intrinsicamente, algo
em que confiar.
Confie no seu corpo. Nenhuma instituição ou entidade está tão in-
vestida na sua sobrevivência quanto o seu corpo. Ele te avisa quando
você precisa de comida, água, oxigênio, afeto, informação, movimento,
estimulação. Hormônios, células, tecidos, órgãos em concerto. Uma má-
quina linda e poética para tentar manter um imbecil vivo. E o que o
idiota faz? Abusa do corpo, não escutando suas dores e limites, tentando
impor-lhe narrativas e discursos, ou meramente silenciá-lo. Crime
maior, achamos que nossa mente é uma entidade separada e hierarqui-
camente superior ao corpo. A nossa mente é nosso corpo, não há
distinção. Abandonemos nossos preconceitos dualistas, arraigados,
porque estão factualmente equivocados e revelam uma fantasia de
24 • Ensaios (marginais) sobre a confiança

auto-importância. “O cérebro secreta ideias como o fígado secreta bile”,


escreveu Huxley 1. Cuide do seu corpo, respeite-o, escute-o. Não há qual-
quer ação coletiva que possa ser eficaz se as pessoas estiverem
participando pela metade.
Confie na biologia. Não há assunção mais profunda de coletividade
do que entender que a vida tem uma origem comum, que todos descen-
demos de um mesmo antepassado e que, por isso, somos todos parentes.
O processo evolutivo é gerador de diferença, e não de progresso. Acolher
essa ideia elimina a base de qualquer preconceito, nos aproximando dos
outros seres humanos e da vida que nos cerca. Achar que o ser humano
é feito à imagem e semelhança de uma entidade superior, que havia um
plano prévio para evolução que desembocou em nossa espécie ou acre-
ditar que a linguagem nos transforma em um ser distanciado dos
outros, em resumo, achar que somos especiais, é, novamente, estar
equivocado e ensimesmado. Olhe para um bebê respirando pelo dia-
fragma, um gato ou cachorro que se estica todo se espreguiçando, a
planta que busca o sol, e reconheça o que há de comum com eles.
Confie na natureza. É a nossa casa, é onde conseguimos nos curar.
Não acredite em mim, vá para um lugar com mato, respire ar puro ou
tome banho de água gelada (“a cachoeira purifica, o mar revigora”, dizia
o sensei). A natureza não apenas é uma fonte de regulação para nós,
como também, diferente do capitalismo, ela de fato se autorregula. Ou
bem entendemos que nosso destino depende de preservarmos nossas
condições de sobrevivência e saúde ou a natureza, amoral, vai sem culpa
eliminar-nos. “The planet is fine, the people are fucked”, vaticinou

1
Huxley, A.L. (1967). A ilha. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira.
Daniel Mograbi • 25

Carlin 2 em sua genialidade, com Raul décadas antes já tendo cantado:


“Buliram muito com o planeta, o planeta como um cachorro eu vejo, se
ele já não guenta mais as pulgas, se livra delas num sacolejo” 3. Nos re-
conectar com a natureza talvez seja uma das mais diretas soluções para
alguns dos principais problemas que nos afligem.
Em última instância, confie na física. “Vai passar” não é apenas
uma platitude criada para consolar/irritar os outros, grafitada nos mu-
ros da cidade e tatuada na pele de pessoas com mais dinheiro do que
senso. “Vai passar” é a Morte Térmica do Universo, é a Segunda Lei da
Termodinâmica garantindo que a entropia vai aumentar em um sistema
isolado, que eventualmente todas as coisas vão deixar de ser. Nada é
mais coletivo do que morrer, sobretudo se o universo inteiro está mor-
rendo junto. Não me diga que você está preocupado mesmo é com o seu
legado, a historinha da sua vida, o que você conta na terapia, como os
outros te veem, etc. Não temos importância alguma para o universo, e
independente de nossas tentativas de impor ordem, eventualmente a
entropia vence. Esse processo já começou, não tenhamos pressa. Vai de-
morar, mas vai passar. Mesmo.
Há uma oposição óbvia a ser feita a essas ideias. Nosso corpo nos
faz odiar, traz a resposta visceral que esgarça o tecido social. A biologia
evolutiva é competição, rivalidade, disputa, a natureza vermelha em
presa e garra de Tennyson. A física não está plenamente preparada se-
quer para lidar com fenômenos orgânicos simples e o estado de
natureza não tem a moralidade necessária para vida em sociedade.

2
Carlin, G. (1992, 24 a 25 de abril). Jammin' in New York [Apresentação do Especial George Carlin].
Paramount Theatre, Nova York, EUA.
3
Seixas, R. (1974). As aventuras de Raul Seixas na cidade de Thor. In Gita [LP]. Philips.
26 • Ensaios (marginais) sobre a confiança

Deixados à mercê de disposições naturais, que mundo conseguiremos


construir?
Confie, então, na nossa natureza. Nossa cultura não emergiu ex ni-
hilo, a sua base é nossa estrutura biológica. Somos membros de uma
espécie que assumiu essa configuração a partir de pressões seletivas
particulares, notadamente a vida coletiva. Somos animais da coopera-
ção, primatas de cérebros grandes e capacidade de empatia. Criamos e
habitamos uma realidade interpessoal. A esclera de nosso olho é branca
para que percebamos melhor para onde olham nossos companheiros,
para que possamos olhar para mesma direção. E a gente vai para direção
em que está olhando. Nossas melhores invenções, incluindo a democra-
cia e os direitos humanos, só foram possíveis porque somos essa espécie
sociável, cuja arquitetura do cérebro, sua estrutura física, permite acu-
mulação de cultura e grandes ideias. Nossa natureza possibilitou que
fôssemos seres da confiança, da aposta no outro, do pacto coletivo.
Enquanto estivermos enamorados do fantasma na máquina, repu-
diarmos nossa biologia, nos afastarmos de nossa origem natural, e
alimentarmos fantasias de superação da estrutura física do corpo, da
realidade e do universo, não há solução possível. O corpo volta, a biolo-
gia volta, a natureza volta, a física volta, porque eles não se dobram a
discursos. Reconhecer e confiar nessa base é acolher nossa origem, pos-
sibilitando a criação de narrativas mais realistas, com mais lastro, e
soluções palpáveis, hoje.
5
O INTERVALO DA CONFIANÇA 1
Francisco Teixeira Portugal

“É preciso abandonar o medo de ser enganado”, disse minha colega


tomando um café embaixo do flamboyant florido no bar do seu Asterius,
em frente ao Instituto de Psicologia.
“Na maior parte de nossas vidas é preciso destruir todas as
condições que criamos de produzir medo, algo vivido tão
cotidianamente nas últimas décadas”, respondi com alguma indignação
que ainda sentia dos tempos de militância política e ainda imbuído da
emoção disparei. “Vimos o medo surgir como um articulador de uma
política, como política do medo associada a uma produção da
insegurança, da hierarquia, do empobrecimento, do ódio”.
E, após pequena pausa para escutar as palavras ditas, provoquei:
“Sua frase parece ter um certo grau de ingenuidade. Fica parecendo que
se trata de uma decisão pessoal: alguém abandona o medo de ser
enganado e pronto. Não é o engano que evocamos para falar da própria
instituição do humano? Digo ainda, para além das evidentes relações
comerciais de querer ganhar sempre mais não apenas enganando os
outros mas tendo prazer em enganar, pois bem, para além disso, não foi
o medo de ser enganado que está na fundação de distinções
academicamente tão presentes entre ciência e crença, entre o objetivo
e o subjetivo, não é esse medo que faz com que elas habitem o próprio

1
Este texto foi elaborado como uma transposição livre do artigo Debaise, D. & Stengers, I. (2021). Résister
à l’amincissement du monde. Multitudes, 85(4), 129-137.
28 • Ensaios (marginais) sobre a confiança

coração do fazer acadêmico e, talvez, outros corações? Como abrir mão


desta precaução negativa?”
“Instituição do humano não – embora não veja nessa valorização
do humano senão o caminho para o desastre ecológico que vivemos –
mas dos modernos,” respondeu minha amiga e seguiu: “mas a pergunta
que fica, a pergunta que vale a pena pensar é que mundo é esse que é
fabricado pela desconfiança subjacente ao medo de ser enganado. Indo
lá no fundo a gente acaba simplificando os mundos em um mundo,
reduzindo a heterogeneidade dos saberes a uma lógica geral,
produzindo um único modo de existência para todos os viventes e tudo
isso para combater esse medo. Pois bem, devemos verter toda
heterogeneidade das coisas e toda exuberante diversidade da vida em
contratos e princípios transcendentais para regular nossas relações,
para silenciar o rumor da política, para viver um mundo sem conflito?
Serão o acinzentamento e empobrecimento do mundo nossos caminhos
preferenciais?”
“É bem verdade que isso está acontecendo e que já vem
acontecendo tem um tempo. Na real, tem muita gente que em nome do
rigor, da ciência, da luta verdadeira e da militância só consegue ver e se
relacionar com um único e mesmo instrumento, uma única e mesma
lógica. E a pluralidade dos mundos, dos saberes, dos seres que se dane”,
refleti após breve inquérito das experiências vividas com colegas na
universidade.
“Tem ainda um efeito mais destruidor: aquela teoria, aquele
conceito que serviram para adensar nossas relações, podem também ser
usados para empobrecê-las. Aliás, a distinção entre adensamento e
empobrecimento pode ser útil neste debate. Se a tal teoria ou conceito
que adensou nossas relações for usada indiscriminadamente, se ela se
Francisco Teixeira Portugal • 29

tornar uma chave geral a abrir todas as portas, isso acaba por aplainar
e empobrecer a exuberância do real e esse uso indiscriminado vai
tornando tudo igual e todo lugar o mesmo lugar. Lembrei daquele
poema do Manoel de Barros que diz que a ciência corre o risco de perder
o condão da adivinhação 2: ‘divinare’”, insistiu ela um pouco
tragicamente.
Disfarçando a digressão que viria afirmei: “Seguindo seu
argumento acho que dá para ver outra coisa aí, dá para perceber que o
uso indiscriminado de uma teoria ou de um conceito para tudo é tam-
bém indiscriminador. Ele não só deixa de ver outros mundos possíveis
como acaba por destruí-los. Algo assim como tem sido feito no Brasil
com a destruição generalizada, com o empobrecimento generalizado
dessa política do ódio. Aí tudo vai ficando igual sobre a terra, o
agronegócio transforma o solo em ativo ou insumo e as minhocas e suas
histórias são uniformizadas ou hierarquizadas em algo mais ou menos
rentável. O velho sonho do uno vai sendo implementado.”
“Isso que você falou de empobrecimento está parecendo essas
teorias do sucesso, essas paradas de mudar o mindset, de desestressar
sem tocar nos estressores, enfim, um aplainamento subjetivo pela
disseminação do indivíduo como medida de todas coisas. Que fazer
contra esses sistemas de equivalência generalizada, contra esses
processos em que tudo se relaciona a tudo por meio de equivalentes
gerais como a concorrência, a avaliação e a hierarquização?” Disse ela e
emendou: “Fico pensando que há um plano subjetivo nisso tudo, que
nesse plano o resgate da confiança nos modos de existência variados
vão sendo debelados pelo medo.”

2
Barros, M. (1996). Livro sobre nada. Rio de Janeiro: Record.
30 • Ensaios (marginais) sobre a confiança

“Mas aí voltamos ao início. Como confiar, como construir uma


cultura da confiança em meio a tanta desconfiança, a tanto medo –
justificado – de ser enganado? Trata-se tão somente de uma aposta, ou
devemos positivar a aposta como algo com um que de messiânico?”,
cutuquei lembrando dos grupos universitários com suas palavras e
pessoas sagradas.
“Cara, penso que não se trata de uma análise ou uma decisão
puramente individual nem de cair numa espécie de grupismo fechado
em si, autossuficiente. Não se trata de alguém que pense e decida se
desalienar, acho que o processo funciona mais na participação, no
envolvimento, na entrada daquilo que Guattari chamou territórios
existenciais 3 que inauguram novas relações de dependência e
interdependência, novos modos de afetar e de ser afetado. Taí algo que
pode nos ajudar muito, a gente pode consentir (no sentido de sentir
junto) ser afetado por aquilo mesmo que as teorias planetárias
invisibilizam e destroem.”
“Isso tá meio solto. Como assim?” Instei com alguma sofreguidão.
“É que os mundos empobrecidos são mundos em que é bom
desconfiar, é necessário desconfiar. Basta ver as relações entre grupos
profundamente explorados e seus exploradores. Há nestes casos
relações fundadas na desconfiança, em relações de dependência. Mas
pensemos, ainda que abstratamente, em relações de interdependência
para além das decisões individuais, dispensemos, evidentemente, a
banalidade de um eu que acredita, que confia e na medida mesmo que
acredita e confia, que acredita na confiança faz acontecer. Ninguém vai
cair neste conto do vigário ou de uma psicologia empreendedora.”

3
Guattari, F. (2012). Caosmose: um novo paradigma estético. São Paulo: Editora 34.
Francisco Teixeira Portugal • 31

Deslocando um pouco a reflexão, continuou minha amiga após uma


pequena pausa para o café. “Pensemos, então, nas relações de
interdependência que garantem a existência de nosso corpo como as
relações interdependentes com as bactérias. Trata-se aqui de relações
de interdependência vivida e efetivadas por coletivos propriamente
ditos, acho que é de coletivos que estamos falando quando evocamos as
variadas e diversas relações entre as bactérias existentes em nosso
corpo e nosso próprio corpo vivo. Mas e a confiança, você deve estar se
perguntando. Bem, distintamente da liberdade idealizada pelos liberais
individualistas que repetem o bordão supostamente democrático em
que cada um decide por si, na recôndita sala privada, e de sua única
propriedade, com que concebe sua consciência e distante também do
abafamento das divergências, dos conflitos em nome de um benefício
geral ou de uma mesa diretora, podemos nos engajar em processos de
interdependência, processos mutualistas em que nova confiança é
produzida na criação de novos territórios existenciais.” Expôs ela com
brilho nos olhos.
“Mais devagar”, repliquei obtusamente. “Qual a vantagem disso?”
“Ora, assim nos livramos da centralidade da decisão
individualizada, não precisamos escapar ao problema evocando uma
decisão prévia do indivíduo, mas engajamos uma participação
mutualizada, uma interdependência que conjuga diferentes na
produção de comum. Isso pode parecer estranho, isso de pensar a
confiança fora daquele indivíduo que confia, de pensar a confiança sem
situá-la em algo derivado de uma ação individual.”
“Mas o que pode ser proposto a partir daí?” Insisti.
“Abandonar o medo de ser enganado não significa certamente
entrar numa relação de certeza. Certeza que os contratos como meios
32 • Ensaios (marginais) sobre a confiança

de regular individualidades visam produzir. Há algo de indefinido e de


necessário, de político, na produção desses comuns, desses coletivos que
estava falando ainda a pouco. Existem muitos coletivos como as
ocupações de residências, coletivos de produção de alimentos sem
pesticida e sem uso de equipamentos e técnicas de produção serializada
e em massa, aqueles que estão envolvidos na diversificação e
densificação da vida, coletivos que instauram confiança, mutualidade,
criação.”
“Pois bem,” disse ela para fechar temporariamente nossa conversa
e voltar às ansiadas aulas presenciais após mais de dois anos de
pandemia, “esses coletivos funcionam como dispositivos geradores de
territórios existenciais. Convém insistir que neles os componentes se
relacionam entre si porque são heterogêneos, na verdade eles
combatem a simplificação instaurada por um princípio geral que
preside ou ordena suas articulações. Nada de ordenamento serializado,
nada de Lattes a moldar nossas carreiras. Os dispositivos geradores
atuam na interdependência, na mutualidade, eles correspondem aos
territórios existenciais que na heterogeneidade estão sempre abertos a
novas relações de interdependência com outros coletivos. É neste
momento que podemos voltar à confiança, e não, certamente, como uma
decisão voluntarista e abstrata, mas como produzida em coletivos que
adensam a experiência, os modos de vida.” E correu, já atrasada, para a
sala de aula me deixando com o flamboyant e as flores vermelhas que
caíam.
6
ESSE TEXTO PODE NÃO SER CONFIÁVEL

TODA VEZ QUE O MUNDO PARA

Laura Conceição

Toda vez que eu entro no mar, ou ela entra em mim (mar deveria
ser substantivo feminino), peço licença e confio. Confio muito nas
águas, nas ideias que tenho na cabeça quando estou submersa. Confio
muito no mundo toda vez que ele para, ou seja: nunca.
A vida cotidiana de uma poeta marginal (se é que posso dizer assim
sem que caia pejorativamente em um lugar que não desejo na cabeça de
quem está lendo) me impulsiona a desconfiar de tudo, desconfiar dos
olhares, dos andares, das risadas, das piadas de mal gosto que envolvem
minha sexualidade, meu cabelo e minha forma de me vestir. Confio
muito no mundo toda vez que ele para.
Não é possível confiar em uma sociedade que coloca homens bran-
cos misóginos em evidência e não explica pras crianças quem é Carolina
Maria de Jesus. Não confio em quem não rezou a novena de Dona Canô
e muito menos em quem exerce de forma criminosa seus podres pode-
res. Somos uns boçais.
Minha mãe era a pessoa em quem eu mais confiava e talvez a única
a ganhar esse posto, esse lugar na minha vida. A confiança é um lugar
pra onde a gente pode voltar quando as coisas dão certo, e, mais ainda,
quando dão errado, isso também é a definição de mãe.
34 • Ensaios (marginais) sobre a confiança

Depois que minha mãe desencarnou comecei a entender que o lu-


gar para onde eu precisaria voltar seria eu. Difícil isso. Por que será que
é tão difícil esse diálogo com nós mesmos, a prática de confiar em nosso
querer e defender nossas vontades? A gente se doa a tantas pessoas que
sobra pouco para nós mesmos, quem se doa a nós, doa a quem doer?
Praticar a autoconfiança é fácil toda vez que o mundo para, ou
seja....
Nós mulheres lésbicas estereotipadas temos nossos corpos fetichi-
zados, desconsiderados e objetificados através de nossa existência. Na
sociedade do “outro”, das redes sociais, da falsa felicidade eterna, das
relações superficiais, das aparências, do julgamento, do preconceito ra-
cial, da violência doméstica, da carnificina, da estupidez, da caretice, do
genocídio e muito pouco do amor, nós temos apoio e oportunidades
grandiosas toda vez que o mundo para, ou seja: nunca.
Quando a gente é criança a gente acredita mais, acredita em tudo,
acredita demais em tudo e é por isso que eu acredito nas crianças, essas
que estão em estado de potência, pureza e bondade, essas sim podem
mudar o mundo. O nosso erro enquanto adultos é desconsiderar a sabe-
doria das crianças e dos jovens, suas vontades e suas individualidades,
eles são o futuro, mas também o presente. Eu acredito nas crianças en-
quanto o mundo não para, ou seja: Sempre.
Em minhas experiências como poeta, arte educadora e pesquisa-
dora da educação, da escola e da poesia periférica fui observando a
tendência da citação em excesso e da vivência em escassez. Difícil con-
fiar nas pesquisas que não abraçam as vivências, com isso a academia é
pra mim por muitas vezes um ambiente desconfiável. Quem entende sua
pesquisa? Como ela muda o mundo? Por fé na periferia pra mudar isso.
Laura Conceição • 35

A academia é nossa. Na periferia eu confio independente do movimento


do mundo.
Em um contexto onde a gente aprende a não confiar em nós mes-
mas o que a gente precisa é se olhar no espelho e dizer bem alto: Eu
confio em você.
7
CONFIANÇA: SEMENTE ATIRADA
Ludmila Frateschi

em entrevista com Florisvaldo Bispo dos Santos

Florisvaldo Bispo dos Santos, o Flor, é guia na Chapada Diamantina,


especializado na trilha do Vale do Pati – lugar onde não entram carros
e a comunicação por telefone e internet é escassa. Eu o conheci quando
confiei nele para me levar a um passeio de cinco dias ali, na virada de
2019 para 2020. A propósito desta publicação, conversamos sobre a con-
fiança, de modo online, em abril de 2022. Ele de sua casa em Lençóis (BA)
e eu de São Paulo.
Foi uma conversa longa, cheia de precisões e detalhes. Pedi que me
contasse sua história, ele falou pouco de sua infância e rapidamente es-
tava falando já de sua primeira profissão, o trabalho no garimpo:
“Quando eu tinha meus dezenove anos, as pessoas comentavam muito
que trabalhar no garimpo era bom, que dava renda, que era melhor que
trabalhar de servente ou na construção civil (o que eu já havia feito tam-
bém). Eu andava os nove quilômetros de Lençóis até o garimpo para
trabalhar. A gente trabalhava ali desmontando o barranco com uma má-
quina de água forte, abria aquelas crateras com dez, doze, quinze metros
de profundidade. Variava, cheguei a passar três meses sem encontrar
nada e a encontrar 200, 300 diamantes por dia, você ganha do que você
produz. (...) São crateras que você abre e não tem mais como repor da
maneira como era antes, de fazer aquilo voltar ao normal. Quando você
cava um buraco, por menor que ele seja, a terra que você tira dele a seco,
Ludmila Frateschi • 37

se você voltar pro buraco ela supostamente até sobra mais, a não ser que
você pile. Mas se você tira a terra com água, quando você tenta voltar a
terra pro buraco, ela não é mais suficiente para fechar. É uma devasta-
ção gigantesca quando se trabalha garimpo. ”
Eu tentava não metaforizar o que ele me contava, mas pensava na
confiança e na quebra de confiança, nas crateras que se abrem que não
podem mais ser refeitas.
“Onde rola muito dinheiro acontecem essas coisas. Tinha uma re-
lação bacana, muitos amigos ali, mas você confiava, só que ao mesmo
tempo não. Morria muita gente, como na Serra Pelada. (...) Não conto as
vezes em que os garimpeiros foram colocados em fila pela Polícia Fede-
ral, a primeira vez que eu vi aquelas armas gigantescas, e a gente tratado
igual bandido na frente deles. No dia 25 de março de 1995, o garimpo
fechou e nunca mais abriu. E aquilo demonstrou que o governo não tá
nem aí para o pequeno. O que mais me machucou é que o governo na-
quela época – ali eu já tinha família – pensou em fechar um trabalho
que muita gente dependia daquilo, mas não pensou em nenhuma con-
dição para que as pessoas não sofressem tanto as consequências. Eu não
saí do garimpo de livre e espontânea vontade.” Conhecendo o Flor e sua
habilidade de observar, imagino-o trabalhando por necessidade, atento
a seus colegas em volta, aprendendo o jogo de cintura necessário para
não morrer. Retraído o suficiente para poder olhar, mas dançando con-
forme a música. Ele, aliás, adora um forró.
Perguntei o que ele fez depois que saiu do garimpo: “Eu tinha fa-
mília já. Aparecia sempre gente oferecendo à gente trabalho no Goiás e
você ouvia deles que pelo menos você garantia o pão de cada dia de uma
maneira suave. Aqui de Lençóis saíram alguns ônibus lotados de peão
para ir trabalhar lá. Quando a gente chegou, viu que era um trabalho
38 • Ensaios (marginais) sobre a confiança

escravizado. Você não podia sair. Você trabalha ali com capataz ao redor,
armado, sempre dando um jeito para você ver que ele está armado. Acho
que fiquei uns dez dias. A gente combinava como fazer pra sair dali. A
gente combinou de sair três horas da manhã, mas na hora só eu mais
um amigo tivemos coragem. Chamava Paulo, a gente saiu de madrugada.
Andamos até Rio Verde e lá de uma certa forma a gente conseguiu al-
guém para ajudar. Lembro claramente que quando eu e meu amigo
saímos da fazenda nós tínhamos exatamente dois reais [ele se emoci-
ona], compramos um real de pão e um de laranja e passamos o dia. (...)
Graças a Deus ninguém daqui de Lençóis morreu lá, não.”
Falou do turismo como uma grande virada. Trabalhou primeiro
numa pousada, fazendo pequenos trajetos em Lençóis. Depois, começou
a acompanhar Trajano, “um grande colega de trabalho”, na trilha da Fu-
maça, a mais difícil da Chapada. Disse que, no início, achava as trilhas
pesadas, mas aos poucos foi tomando gosto pela coisa e que hoje guiar é
“como um momento de lazer tomando cerveja na piscina”. Leva o tra-
balho a sério, a ponto de ter que explicar para sua esposa, Lu, que muitas
vezes o acompanha, que sua doação aos clientes exige atenção integral
e que quando está na trilha todo o resto fica em segundo plano. Me disse
que o guia precisa ser atento, “ter quatro olhos”. Precisa também de um
misto de inteligência e honestidade: “Eu conheço o turista falando com
ele para saber que tipo de dormida posso oferecer para ele. Tem gente
que quer hotel cinco estrelas embrenhado no Vale. E gente muito sim-
ples. Eu preparo o meu cliente para que ele não espere encontrar outra
coisa diferente do que vai realmente encontrar.”
O guia conheceu o Pati por conta da “moça do papagaio”, que de-
sapareceu na Chapada. A mãe dela pagava os guias locais para fazerem
buscas no Vale até que seu dinheiro acabou, mas eles seguiram
Ludmila Frateschi • 39

procurando. Anos mais tarde, encontraram o assassino, um serial killer


da região, e o corpo. “Foi muito triste essa parte. Foi assim que fui parar
no Pati. Achei o Vale muito bonito, quis ficar ali e primeiro conhecer
sozinho, para depois levar turistas. E foi assim que, anos depois, você
fez o Pati comigo.” Contou então da história dramática do salvamento
de uma médica que sofreu uma queda num grupo com outro guia e como
foi que todos se organizaram para resgatá-la, acionando todas as redes
de contato dentro e fora do Vale, mesmo achando que ela tinha poucas
chances de sobreviver. Ela ficou bem. Também contou do dia em que
faleceu seu pai – ele não quis passar seu grupo a outro guia num pri-
meiro momento, mas pediu à sua rede de amigos que desse um jeito de
avisá-lo se algo acontecesse e foi o que fizeram. Flor me explicou tam-
bém como ajudou Agnaldo, um dos moradores do Pati, a construir sua
casa, combinando com ele de levar para seu terreno turistas mais sim-
ples e dispostos a acampar enquanto a estrutura ali ainda era mínima.
Flor hoje atua na política local – assunto de que preferiu não falar
diretamente, já que é ano eleitoral e não seria correto. Reclamou da des-
confiança sobre a política e os políticos. Disse que aprendeu que o mais
importante é mostrar-se correto. “Nós temos muito mais pessoas boas
no mundo do que pessoas que não são confiáveis (...) É ruim para a ca-
beça da gente quando você sabe que é confiável e as pessoas não confiam
em você.” E então me contou de um episódio de desconfiança e racismo
que sofreu, quando, ao carregar uma bagagem de um grupo de turistas,
uma senhora francesa começou a gritar e acusá-lo de roubo. “Ela não
falava português, mas era claro que ela estava me chamando de ladrão,
na frente de todo mundo na rodoviária (...) As poucas pessoas ruins fi-
zeram a gente pensar hoje que todo mundo é ladrão.” Conta, por fim, do
prazer de, depois, o mesmo grupo de turistas ter esquecido uma bolsa
40 • Ensaios (marginais) sobre a confiança

de euros no carro e ele poder devolvê-la intacta, comprovando sua in-


tegridade.
Terminei a entrevista com um aperto de saudades no peito. Pen-
sando que o garimpo (ou a escravidão e o racismo) devastam a natureza
e também a natureza das relações, quebrando tudo. Ao mesmo tempo,
há em Flor a busca insistente de achar o terreno em que outras coisas
florescem. “Se o garimpo hoje voltasse a funcionar, por mais que ele
desse para mim, eu não voltaria para o garimpo. A gente vem apren-
dendo como cuidar, como tratar da natureza. Você trabalha com muitas
coisas que você acha que não condiz com como você quer cuidar da na-
tureza.”
Não deve ser à toa que o lugar que encontrou é um onde todos so-
mos vulneráveis ao tempo e às intempéries, onde somos mais iguais,
onde “tudo que nóis tem é nóis” 1. Aprendo com ele esse modo de pensar
a confiança: como uma escolha. Há alguém que, em primeiro lugar e
num ato de vontade, assume fazer o que estiver a seu alcance para te
proteger: da tempestade, do precipício, do vácuo da ausência de escuta.
Nas suas palavras: “confiança para mim é assim... É como se fazer con-
fiável”. Nas de Paulinho da Viola: “Uma semente atirada num solo fértil
não deve morrer” 2.

1
Emicida. (2019). Principia. In Amarelo [CD]. Laboratório Fantasma.
2
Viola, P. (1975). Amor à natureza. In Paulinho da Viola - 1975 [LP]. EMI.
8
ERA PRIMEIRO A BOCA
Miro Spinelli

era primeiro a boca


que falava
mesmo sozinha
terna entristecida
ela molhava

depois os olhos
afundados brilhosos
lançando suas flechas
frontais e sem retorno
que não fornecem
do outro
o olhar

em seguida os martelos
sobre as bigornas
a sensibilidade extrema
no interior da cabeça
foram eles os primeiros
a suspeitar

(o eu
mais que
uma operação
imaginária
uma armadilha
especular)
42 • Ensaios (marginais) sobre a confiança

com o nariz já escorria


o rosto
suas feições morrendo
na dureza do crânio
pedra pó e tumulto

veio então a cabeça


pastosa zunindo
massa flácida
enxame multidão

roçando e fazendo
emergem as mãos
do extremo oposto
da paranoia
puxando o fio
enozado
da confiança
háptico rápido
intuitivo o caos

sempre iminente a falha


é por fim acolhida
no tronco
quase oco já inflado
o fio de incontáveis
extremidades
embaraçado úmido
macio inflamável
envolve por inteiro
o único órgão
que bate
Miro Spinelli • 43

termina nas pernas


que eram muitas
e corriam
para todos os lados
apertando os nós
do emaranhamento quântico
quanto mais distante
mais incalculável
o vínculo

são elas também


peludas e rígidas
em seu instável
balanço triangular
que reiniciam
desde o colapso
do corpo
um novo
viscoso
descentrado
amor
9
UM CAUSO SOBRE A CONFIANÇA
Philippe Oliveira de Almeida

Sou mineiro – logo, desconfiado por natureza. O escritor Otto Lara


Resende disse, certa feita: “O mineiro só é solidário no câncer” 1. As Ge-
rais são terras de confidências e inconfidências, de mandarins exímios
na arte de falar através de silêncios. Sopesamos palavras, como garim-
peiros colocando metais na balança (temendo que a língua traia a
localização de nossas minas). Um querido professor de Ética, já falecido,
gostava de narrar, a seus alunos, o seguinte causo:

O filho, de aproximadamente três anos, já queria explorar 'o mundo' (que,


no seu caso, correspondia ao quintal) longe da vigilância dos genitores, dar
seus primeiros passos sem tutela. O zeloso pai, então, colocou a criança, ca-
rinhosamente, em cima de uma cômoda alta, e disse a ela: 'Feche os olhos e
salte, papai vai te segurar!'. Depois de alguma insistência, o menino fez o
que o pai pedia... e se esborrachou no chão. Então, com firmeza, o pai falou,
para o filho que se lamuriava a seus pés: 'Isso é pra você aprender a não
confiar em NINGUÉM, nem no seu próprio pai'.

Meu professor era espanhol, mas vivia há muitas décadas em Mi-


nas. A aridez do sertão reflete-se na aridez das almas – pessoas
rarefeitas, como o ar das montanhas. A política – conciliar o inconciliá-
vel, acender uma vela para Deus e outra para o diabo – é a vocação de
todo mineiro. Somos radicais de centro, que, machadianamente,

1
Frase atribuída a Otto Lara Resende por Nelson Rodrigues. In Castro, R. (1992). O anjo pornográfico. São
Paulo: Companhia das Letras.
Philippe Oliveira de Almeida • 45

desconfiam que por trás de discursos sinceros e passionais (os nossos


próprios, inclusive) há sempre interesses escusos. Quantas pulsões in-
conscientes não devem se imiscuir nos nossos gestos mais singelos...? O
mineiro, saiba disso ou não, é adepto da psicanálise freudiana. Nesse
cenário, só nos resta o teatro, a performance. Mais que ser honesto, é
preciso parecer: a Etiqueta precede a Ética. Ou ainda: só há uma coisa
que pode ser tida, sem restrições, como absolutamente imoral, a desele-
gância.
A despeito do que muitos possam dizer, Belo Horizonte também é
Minas. E o belorizontino carrega os vícios e as virtudes, a dor e a delícia
da mineiridade. Nasci em BH, criei-me em BH, aprendendo sobre a im-
portância de construir relações baseadas na desconfiança. Aos dezoito
anos, tornei-me calouro em uma vetusta instituição de ensino superior,
pela qual passaram muitas figuras notáveis das Gerais. Como tantas ou-
tras faculdades de Minas, assemelhava-se a uma corte bizantina. Alunos
e professores engajados, ao longo das décadas, em conspirações palaci-
anas, entre gritos e sussurros, sexo, mentiras e videotape. Contexto
propício à formação de uma elite autocentrada, cruel e ressentida.
Nesse espaço, de educação pela pedra, era quase impossível esta-
belecer uma relação horizontal, dialógica, com os docentes – que, salvo
raras exceções, não viam nos estudantes sujeitos responsivos e respon-
sáveis, mas coisas, peças decorativas nas salas de aula. A desconfiança –
a cisma, no bom e velho mineirês – era o mais apropriado sentimento,
face a um corpo docente distanciado, “cheio de não-me-toques”.
Mas, no convívio com alguns colegas, encontrei uma rede de afetos.
Pretos, pobres, periféricos, excluídos, formamos, cedo, um grupo, que
batizamos de “feudo”. Os membros do feudo – rebotalho dos outros gru-
pos da faculdade, todos os que não se encaixavam nos clãs que
46 • Ensaios (marginais) sobre a confiança

compunham a ecologia do alunato, em uma instituição tradicional – ti-


nham em comum suas profundas diferenças, sua inadequação àquele
espaço. Eram similarmente estranhos. Uma amizade sedimentada pela
existência de inimigos em comum. Adam, Yuri, Mateus, Thiago, Luci-
ana, Rachel, Vanda, Fabíola, Pâmela, Marta... Por não se reduzirem às
caricaturas nas quais, rapidamente, se convertem os discentes que fre-
quentam esses centros, tiveram de acantonar-se por trás das muralhas
de uma gleba, um grupo monolítico forjado do refugo.
Foram eles os meus verdadeiros educadores. Não é possível – como
bell hooks bem evidencia – dissociar razão e emoções, mente e corpo 2.
E foram os vínculos de solidariedade que construímos, no feudo, que me
instruíram e me edificaram. Teria dificuldades em reconhecer boa parte
dos meus professores (rostos que já se tornaram borrões na minha me-
mória, mesclados uns aos outros, replicantes anônimos, uma função
logarítmica sem identidade própria). Mas recordo-me de detalhes dos
mais banais encontros que o feudo teve. Não há ensino-aprendizagem
sem confiança. A faculdade, em minhas lembranças, não é a pedra ou o
tablado, as fotocópias de cadernos ou os exames finais, mas a malha de
enredamentos – cerzida em causos e fofocas, mentiras sinceras e ver-
dades secretas – que minha turma de desajustados criou.
Após a formatura, muitos estudantes do feudo sumiram no mundo,
se perderam no tempo. Como Clarice Lispector intuiu, amizades since-
ras – a riqueza da relação entre dois indivíduos que não tem nada a
oferecer um ao outro – também são feitas de separações 3. Mas, quando
preciso orientar-me, e recorrer às lições que recebi em minha

2
hooks, bell. (2019). Teoria feminista: da margem ao centro. São Paulo: Perspectiva.
3
Lispector, C. (1998). Felicidade clandestina. Rio de Janeiro: Rocco.
Philippe Oliveira de Almeida • 47

graduação, é a eles que volto, é a voz deles que ouço. Rubem Alves já
dizia que só aprendemos o que é ferramenta ou brinquedo, o que é útil
ou divertido 4. A alegria compartilhada pelo feudo, nos cinco anos do
meu período formativo, é o mapa que me orienta, no mundo, a verda-
deira biblioteca de que disponho, hoje.

4
Alves, R. A caixa de brinquedos. Folha Online, 24 jul. 2004. Disponível em
<https://www1.folha.uol.com.br/folha/sinapse/ult1063u877.shtml>.
10
A APOSTA NESSE RITMO NOSSO QUE CONSTRÓI
UMA PERIFANÁLISE
Coletivo PERIFaNÁLISE 1

confiança sendo um subjetivo feminino, foi assim que começou o


texto da verônica, uma das membras da PERIFaNÁLISE. isso diz muito
da construção desse espaço – outro – que chamamos de PERIFaNÁLISE.
quando pensamos na PERIFaNÁLISE, pensamos em esperança e
esse foi o mais próximo que pudemos chegar sobre confiar. confiança
esta que anteriormente apareceu como uma pergunta – o que é confiar?
como confiar? – e, portanto, como um desconhecimento, um não-saber;
já que o não pertencimento é um lugar comum, como habitar neste lu-
gar de confiança desconhecido, incomum, infamiliar? chamamos de
esperança algo que não se sabe que nome dar. àquele momento que está
tudo tão nebuloso e precário em que a mínima luz nos faz acreditar em
algo que ainda não sabemos o que está vendo, não sabemos do que se
trata, nem o que esperar, mas sabemos que por mais nebuloso que esteja
no entorno algo está lá. podemos ver, sentir, nos movimentamos, então
podemos construir um caminho até lá. colo, rap, favela e agora PERIFa-
NÁLISE são o que ilumina esse novo outro trilhar.
na PERIFaNÁLISE partimos de um horizonte local, com forte liga-
ção com a trajetória de pessoas. com os olhares direcionados para a
circulação territorial, em sua superfície vívida e pulsante e ao mesmo

1
Texto construído por Paula Jameli, Rosimeire Bussola, Thainá Aroca e Verônica Rosa, em
horizontalidade com Emília Ramos, Jefferson Santos, Kleber Albuquerque e Reine Rodrigues, todes
membres do Coletivo.
Coletivo PERIFaNÁLISE • 49

tempo em sua profundidade oprimida e desvalidada. na contingência


das políticas públicas, a caminho de um desmonte, nos debruçamos a
articular o que nossos quatro corpos femininos poderiam tecer NA,
COM E PARA a periferia. de um pequeno e potente grupo de estudos, em
agosto de 2018, encadeamos elos, numa cadeia de significantes a serem
elaborados, a parir uma psicanálise outra, adjacente à nossa realidade,
vizinha da vivência periférica.
analistas periféricas tem identidade fertilizante e não alienante:
somos perifanalistas! e acreditamos que a periferia é sua própria cen-
tralidade, a caminhar com as próprias pernas, numa crescente criação
de espaços de pertencimento, a nos vincular aos nossos pares e a nos
potencializar. num tipo de encontro que cria passos como numa dança,
uma coreografia nova, no qual cada movimento vem carregado de his-
tórias singulares no encontro com o ritmo das psicanálises. e como em
um ensaio a preparação nos exigiu a escuta, o sentir e o confiar.
nesse som tem as viela, os beco, os mano, os grafite. tem quem te-
nha ouvido falar que a psicanálise é um método de hipnose. tem quem
se põe a falar na sala da galeria de artes, de porta aberta, enquanto há a
movimentação de pessoas a uma visita monitorada ou à gravação de um
clipe musical. tem quem não se importe com o carro do ovo passando na
sua rua, nem com o funk batendo nas nave dos cria. se as paredes têm
ouvidos, aqui é possível que os ouvidos suplantem as quatro paredes, e
os ruídos diminuem quando o/a analista se põe a escutar.
há quem pense que favela é lugar de mazelas, de misérias, dissoci-
ada da urbanidade e da sociabilidade, e chega nela com intenções
messiânicas de salvá-la, na prepotência narcísica de oferecer supostos
recursos intelectuais que venham a modificar os sujeitos que nela vivem
e sobrevivem. o colonizador coloniza a dor e está sempre a postos para
50 • Ensaios (marginais) sobre a confiança

formar até mesmo os perifanalistas ou para extrair-lhes pesquisas, ca-


sos clínicos, levá-las para as centralidades, para suas produções
acadêmicas, para seus currículos lattes, restando-lhes a pura individu-
alização de um saber que não circula, não se distribui, não se comunga,
não se comunitariza. então, se é para falar de confiança, aqui não. como
disse criolo: “cientista social, casas bahia e tragédia gosta de favelado mais
que nutella” 2. ou emicida: “eles querem que alguém que vem de onde nós
vem seja mais humilde, baixe a cabeça nunca revide, finja que esqueceu
a coisa toda eu quero é que eles se!” 3.
essas são as músicas que dançamos, que embalam nosso movi-
mento, que organizam nosso passinho, que nos orienta na construção
rítmica de um espaço de confiança, que primeiro foi em uma teoria da
subjetividade, depois em nós, diferentes nas raças e nos gêneros, mas
similares nessa vida vivida nas periferias.
pensar a confiança pela via da psicanálise, pode nos remeter facil-
mente a pensar o conceito de transferência, como um motor
terapêutico, o modos operandi da situação analítica, para que o encontro
da fala e da escuta aconteça.
a transferência, que acontece na junção de duas pessoas desconhe-
cidas, essa descoberta feita por freud que anda de mãos dadas com o
inconsciente, com a pulsão e com a repetição.
a transferência, a qual lacan conferiu como sendo a confiança de-
positada no/a analista, que gira em torno do desejo do psicanalista, já
que o desejo do homem é o desejo do Outro, e que é no desejo do Outro
que o desejo do sujeito se constitui. e que, neste sentido, o sujeito entra

2
Criolo. (2011). Sucrilhos. In Nó Na Orelha [CD]. Oloko Records.
3
Emicida. (2015). Mandume. In Sobre crianças, quadris, pesadelos e lições de casa... [CD]. Laboratório
Fantasma.
Coletivo PERIFaNÁLISE • 51

no jogo a partir deste suporte fundamental, em que o/a analista é sujeito


suposto saber, justamente por ser sujeito de desejo. este efeito transfe-
rencial passa pela vertente do amor e lacan nos indica que “amar, é
essencialmente querer ser amado” 4.
seria então neste encontro, entre o desejo do analista e o desejo do
analisante, que acontece o amor de transferência. portanto, a transfe-
rência seria esse fenômeno ligado ao desejo. desde que haja sujeito
suposto saber, há transferência. de onde o sujeito se baliza para se diri-
gir ao laço transferencial diz respeito ao analista estar no lugar de
objeto da transferência.
radmila zygouris traz outra perspectiva 5, que tira o analista deste
lugar verticalizado de suposto saber que faz o sujeito desejar, levando-
o à horizontalidade, dentro de uma relação menos desigual, com mani-
festações que dizem de uma interdependência psíquica dos dois
protagonistas. ela traz a noção de vínculo, que não pertence especifica-
mente à psicanálise, mas que nasce no campo da experiência analítica,
colocando a transferência em outra esfera: no sentido de um vínculo
inédito.
tal vínculo não estaria desenhado em um mapa que roteiriza as di-
ferenças geográficas, mas sim pode ser assimilada ao território, que
permite a passagem de um para o outro, numa infinidade de possibili-
dades.
nesse encontro que faz vínculo, pudemos nos autorizar analistas
nesse processo de reconhecimento testemunhado no coletivo, quando
colocamos nossas palavras na dança, nos encontros de roda ao ler as

4
Lacan, J. (1988). O Seminário, livro 11: os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Rio de Janeiro:
Jorge Zahar, p. 239.
5
Zygouris, R. (2003). O vínculo inédito. São Paulo: Escuta.
52 • Ensaios (marginais) sobre a confiança

palavras freudianas, quilombanas, lacanianas, winnicotianas, junguia-


nas, tantas anas, mas que nem sempre deram conta de fazer sincronia,
por si só diferentes, e nós também, radicalmente diferentes, como bair-
ros, mas com ruas que nos atravessam. nós construímos pontes
indestrutíveis, creio que ao seu lado tudo posso, com você sinto coisas indes-
critíveis, fica comigo. leal, leal, eu quero ser leal enquanto nosso lance for
real 6. djonga.
todos os lugares fora de nós parecem difíceis de habitar, mas nos
lançamos ao mundo, em busca de trazer para nossa dança novos ritmos,
novos corpos e palavras para que quem quiser possa dançar.
e como pode ser complexo dançar junto, confiar num espaço, com
predominância de pessoas brancas ou com a pele clara, que se propõe a
ouvir pessoas negres. nos faz questionar a quem a PERIFaNÁLISE é con-
vidativa? o que se idealiza na PERIFaNÁLISE? que fantasiam carregam
os que esperam de nós um ritmo único? quem direciona seus olhares a
este grupo com desconfiança? esperam que tropecemos? erremos pas-
sos? quem pode dizer que não dançamos? que nosso fazer não é
psicanálise?
pensamos confiança daquilo que faz “voltar amanhã”, e na descon-
fiança que, embora seu oposto, dança junto, ora mais presente, ora
menos.
neste sentido, pensamos também nas relações dentro do coletivo,
e o que nossos encontros produzem de efeitos singulares. como reco-
nhecimento racial que é singular e tem a ver com o processo de cada
um. na mesma linhagem nos damos conta do atravessamento de gênero

6
Djonga. (2019). Leal. In Ladrão [CD]. Ceia.
Coletivo PERIFaNÁLISE • 53

e de classe, e a nossa desconfiança em ocupar determinados espaços


onde nossos corpos não são desejades.
corpo, ritmo, palavra que toca, atinge e circula, se em uma análise
o inconsciente entra em cena, que na PERIFaNÁLISE ele também possa
dançar.
11
CONFIANÇA NA ESCUTA DAS RUAS
Coletivo Psicanálise na Rua

Desde seu nascimento, a psicanálise se valeu de outros saberes que


a cercavam para se constituir. A mitologia grega, as ciências naturais, a
literatura e as artes em geral lhe fornecem ferramentas básicas. Depois,
alguma filosofia europeia moderna, sua linguística, o movimento sur-
realista, e até mesmo a topologia lhe serviram como andaime
epistemológico. No Brasil, hoje, temos mobilizado debates de teoria crí-
tica e ciências sociais dentro da psicanálise.
Sintoma da ciência moderna, a psicanálise nasce com o talento me-
todológico de tratar de um dejeto do experimento científico: a
subjetividade, a singularidade. O irrepetível! A psicanálise cria – tenta
criar a cada vez – as condições de emergência da verdade subjetiva. De-
terminações inconscientes daquela vida falante são investigadas em
uma estranha parceria. Dá-se a alguém (ou a algo) o poder (ou o truque)
de saber mais que si sobre si mesmo. A psicanálise circunscreve a cons-
ciência iluminista. O Eu desalojado de sua própria casa é o primeiro
golpe da psicanálise na branquitude. Como seguir fazendo da psicaná-
lise uma ferramenta de recuperação da singularidade numa sociedade
marcada pela ode à alienação?
Segue posta a tarefa de subverter sujeites da ordem racional e da
lógica colonial. Já que a psicanálise, desde o início, se constituiu dialeti-
camente com o conjunto de outros campos de saber, valemo-nos de sua
Coletivo Psicanálise na Rua • 55

hibridez epistemológica 1 constitutiva para nos interrogarmos sobre...


quais os saberes, quais as práticas e povos da vez da psicanálise? Em
quais campos embaraçar? A quais pessoas confiá-la? Pois ela está em
disputa.
Reluz cada vez mais um furo claro no saber psicanalítico: seu ideal
patriarcal, neoliberal, branco. Seu compromisso de classe. Ela tem pon-
tos cegos e surdos, preço que a psicanálise deve pagar ao reconhecer sua
historicidade; ora, a psicanálise tem limitações dadas pela própria his-
tória. Limitações que incidem na nossa escuta, já que ela está
impregnada de Outro. Como mostram Dunker et al. 2, em seu processo
de desenvolvimento e instalação no Brasil, a psicanálise não deixou de
ser atingida e transformada pelos efeitos da implantação no país do ne-
oliberalismo, que, enquanto formação discursiva, configurou um novo
pacto social e novos modos de subjetivação.
Na contramão desses ideais neoliberais e de um encastelamento da
psicanálise nas posições mais favorecidas e privilegiadas do campo so-
cial, vem surgindo, em diferentes pontos do Brasil, iniciativas que,
assim como o Psicanálise na Rua de Brasília, buscam levar a escuta psi-
canalítica ao espaço público, aos becos, buracos e marquises onde vivem
sujeites mais violades pelo pacto social, marcades pelo sofrimento soci-
opolítico 3. Essa clínica, ao movimentar e perturbar nossos saberes,
modelos e conceitos teórico-clínicos, levanta importantes questiona-
mentos sobre a confiança.

1
Ayouch, T. (2019). Psicanálise e hibridez. Gênero, colonialidade e subjetivações. Curitiba: Calligraphie.
2
Dunker, C. et. al. (2020). Para uma arqueologia da psicologia neoliberal brasileira. In V. Safatle, N. Silva
Júnior & C. Dunker (Orgs.), Neoliberalismo como gestão do sofrimento psíquico (pp. 215-254). Belo
Horizonte: Autêntica.
3
Rosa, M.D. (2016). A clínica psicanalítica em face da dimensão sociopolítica do sofrimento. São Paulo:
Escuta/Fapesp.
56 • Ensaios (marginais) sobre a confiança

Como a confiança comparece e se declina nesses dispositivos de


escuta que promovem encontros entre grupos antagônicos da organi-
zação social, marcados por brutais desigualdades e assimetrias de
poder, acesso a direitos, processos de reconhecimento e humanização?
Somos psicanalistas que se colocam ao “rés do chão, com passos” 4
em direção a situações de acentuada precariedade, sofrimento, desam-
paro e humilhação, promovidas pela própria estruturação social da qual
usufruímos. Conseguimos “levantar o recalque que promove a distância
social e permite-nos “conviver, alegres, surdos, indiferentes ou para-
noicos, com o outro miserável”? Conseguimos possibilitar a emergência
da confiança mútua? Conseguimos romper com o “pacto do grupo social
que os exclui” e nos privilegia 5? Como construir confiança em uma re-
lação que busca aproximar os polos de um campo político marcado pelo
que Mbembe denominou de “políticas da inimizade” 6? Como romper
com a herança do processo de expansão colonial que, diante da política
de extermínio de pessoas negras e indígenas, instaurou, no lado do co-
lono, o medo de insurgências e retaliações, a conflitualidade destrutiva
e os dispositivos paranoicos? Gestada pela escravização e sobre a pele
negra, a figura no inimigo resiste na contemporaneidade e ainda tem o
corpo negro como alvo, embora assuma novas performances e novos
nomes – “o islão, o muçulmano, o árabe, o estrangeiro, o imigrante, o
refugiado” 7, aos quais acrescentamos: os pobres; a puta, o mendigo, a
travesti, o noia. Como psicanalisar nas ruas de forma a subverter as ló-
gicas de inimizade e o desejo de extermínio e separação, que, segundo

4
Certeau, M. (1998). A invenção do cotidiano – artes de fazer. Petrópolis: Editora Vozes, p. 176.
5
Rosa, 2016, pp. 48-49.
6
Mbembe, A. (2017). Políticas da inimizade. Lisboa: Antígona Editores Refractários.
7
Mbembe, 2017, p. 72.
Coletivo Psicanálise na Rua • 57

Mbembe 8, tornaram-se a liga das relações públicas e sociais, a disposi-


ção afetiva fundamental do nosso tempo?
Da perspectiva daqueles a quem oferecemos nossa escuta: o que os
leva a confiarem (quando o fazem) e acreditarem que sua voz será ou-
vida como humana? Como romper com o esse projeto secular de
silenciamento, representado pela máscara de ferro sobre a boca da “Es-
crava Anastácia”, em que “aquela/es que são ouvidas/os são também
aquelas/es que ‘pertencem’. E aquelas/es que não são ouvida/os se tor-
nam aquelas/es que ‘não pertencem’” 9?
Atuamos em espaços onde a resistência é à morte. Mas há também
resistência à psicanálise, pois ela é um distintivo de classe. Então ouvi-
mos. Chegamos de manhã, depois da longa noite. Trazemos um café
porque confiamos num francês que disse que é no leito da demanda que
corre o desejo. Ou estamos inventando isso agora.
Nosso grupo partilha algumas horas da rua, comunga da rua, do
café, do pão. Até do cuscuz ou... de uma prosa. Ali onde a luta de classes
joga seus entulhos, confiamos desconfiando. Somente podemos trans-
mitir muito pouco, o pouco possibilitado pela nossa história de vida
limitada, determinada, privilegiada, interminavelmente analisada. Mas
nos encontramos e vamos partilhando essas manhãs.
Numa delas, alguém conta que matou um polícia. Na outra, outro
conta de uma recente batalha com garrafas. Na outra, lançaram um ini-
migo da janela do segundo andar do prédio abandonado. Na seguinte,
alguém teve uma overdose e precisa que levemos uma coberta pois
passa frio no hospital público.

8
Mbembe, 2017.
9
Kilomba, G. (2019). Memórias da plantação – Episódios de racismo cotidiano. Rio de Janeiro: Cobogó, pp.
42-43.
58 • Ensaios (marginais) sobre a confiança

Confiamos, nem-tudo, nem-sempre, mas confiamos. Abre-se uma


roda de capoeira. Um menino vira mestre. Outro rodopia pelos ares e
explica que vem da Bahia. Outro inverte o berimbau e toca com a cabaça
para cima, tirando onda na frente do batalhão da PM.
Alguém mangueia. Alguém mente. Alguém cai. Alguém come. Al-
guém oferece um cigarro. Devagar vamos deixando os ouvidos à vontade
com essas vidas, essas gentes presas à existência por um fiapo de saúde
ou sorte, impressionantes sobreviventes da selva de pedra.
Uma zona franca de desamparos eventualmente acontece quando,
por exemplo, uma psicanalista de classe média se despede e se afasta de
um noia muito sujo e um pouco machucado, envolto num lençol fino.
Ele tenta gritar um rouco “Me adota!”, fazendo graça do que talvez in-
terprete como um benefício secundário assistencialista de sua ouvinte.
É quando ela lhe confia mais do que uma psicanálise pura permitiria ao
rebater: “Me adota você.”
12
CONFIAR, TESSITURAS DA VIDA COMUNAL
Saulo Luders Fernandes

Em um debate junto as(os) alunas(os) na disciplina “Psicologia, na-


tureza e outras humanidades”, ofertada na graduação em psicologia na
Universidade Federal de Alagoas, discutíamos a dificuldade de viver as
experiências comunais nos dias de hoje. Não por acaso estas questões
são levantadas em uma aula que debatemos as experiências de projetos
de felicidade de outras humanidades não antropocentradas, experiên-
cias vividas junto aos povos tradicionais. Humanidades que não se
compreendem como o centro do mundo, mas fazem do seu viver lugar
de habitação comum como sujeitos terrestres, integrados à terra e ao
território, estes partilhados com outros seres: vegetais, animais, espiri-
tuais, encantos, biomas, paisagens.
Os povos tradicionais apontam o comum como parte de sua onto-
logia relacional, apesar de tantas violências e tentativas de ruptura de
suas produções ontológicas e éticas de mundo impostas pelas lógicas do
colonialismo. Diante destas violências eles se aterram à vida comunal,
como esfera de reexistências, como possibilidade de dar continuidade
às políticas de vida, que afirmam o viver compartilhado como horizonte
à tessitura de suas relações. Estar com os outros entes e viventes do ter-
ritório é base para a vida seguir seu curso, contra o extrativismo que
assola historicamente suas terras, seus corpos e suas existências. Eles
tecem na confiança a sua capacidade de manter as vidas do lugar,
60 • Ensaios (marginais) sobre a confiança

enquanto os fios alinhavam a redes de existências que não podem ser


fiadas sozinhas. Como nos fala Antônio Bispo dos Santos:

Nosso pensamento é um pensamento que nos permite dimensionar melhor


as coisas, os movimentos e os espaços. Nos espaços circulares cabe muito
mais do que nos espaços retangulares. E isso nos permite conviver bem com
a diversidade e nos permite sempre achar que o outro é importante, que a
outra é importante. A gente sempre compreende a necessidade de existirem
as outras pessoas 1.

Nestes territórios há a necessidade do(a) outro(a) para que a exis-


tência faça sentido. A condição de existir está na ligação do viver à vida
terrestre, como em muitas falas que já ouvi de diversas vozes quilom-
bolas, indígenas, campesinas, ribeirinhas: sou terra, sou natureza, sou
rio, sou comunidade, sou pássaro, sou as plantas do lugar. Falas que nar-
ram a possibilidade da vida comunal e a emergência dos(as) outros(as)
como forma de afirmar o existir. Este giro ontológico é de difícil com-
preensão aos ouvidos colonizados, que por vezes ouvem estas narrativas
como uma mera metáfora da vida humana, ou as coloca como uma fala
da ignorância, um pensamento mágico, um pensar do atraso. Por que
ser a terra, o outro, existir coextensivamente nas plantas, nos animais
e juntar-se ao cosmos é um pensamento do atraso? Tenho dificuldade
de entender este atraso, principalmente após as convivências nos terri-
tórios tradicionais, que me auxiliam a quebrar diariamente as lógicas
desenvolvimentistas que ainda passam por mim.
A vida na ruptura com as lógicas extrativistas se expressam em
uma ampliação da experiência do viver que a racionalidade moderna
não consegue alcançar, talvez porque nos querem precários(as), vidas

1
Santos, A.B. (2018). Somos da terra. PISEAGRAMA, 12, Belo Horizonte, p 4.
Saulo Luders Fernandes • 61

mórbidas e dependentes de um horizonte fadado ao consumo e à pro-


dução, desconectadas do corpo, do mundo e dos(as) outros(as). Caso
exista algo que nos ligue, na forma ocidental de existir, este algo é a
barganha, a transação: “o que você tem para me dar?”, “você vale a
pena?”, “prove que você pode estar comigo?”, “a amizade hoje é só inte-
resse”, frases que ouvi por aí. Diante destas formas perversas, busco me
inundar pela experiência comunal, me avizinhar a Frantz Fanon:

Caso-me com o mundo! Eu sou o mundo! O branco nunca compreendeu esta


substituição mágica. O branco quer o mundo; ele o quer só para si. Ele se
considera o senhor predestinado deste mundo; ele o submete, estabelece-
se entre ele e o mundo uma relação de apropriação 2.

Nas experiências que tive nas comunidades tradicionais nunca me


senti cobrado a provar algo, ou obrigado a mostrar o que tinha para bar-
ganhar, mas o que é tecido com as pessoas, com o lugar e com a vida do
território é a necessidade de ser responsável por aquilo que propomos a
fazer juntos(as). Não se trata do que você tem para dar, qual seu valor
de troca, mas sim de se tornar responsável junto com o(a) outro(a), com
as vidas que habitam aquele lugar. Há aqui uma tessitura ética do viver,
não se trata do eu, do meu, mas do buscar cuidarmos juntos(as) daquilo
que vemos como importante, explicitando as diferenças e, ao mesmo
tempo, trazendo aquilo que podemos contribuir. Estas relações estão
dispostas às experimentações em laços de confiança que não se pren-
dem a contratos, estes o atestado da desconfiança entre as pessoas. Ao
contrário, aqui fia-se a produção de um viver em diálogo, em construção
com as forças que habitam o lugar. Na realização de arranjos, encaixes,

2
Fanon, F. (2008). Pele negra, máscaras brancas. Salvador: EDUFBA, p. 117.
62 • Ensaios (marginais) sobre a confiança

dissonâncias, em uma forma experimental de estar com os(as) ou-


tros(as) à elaboração do comum. Estas experimentações permitem uma
artesania do viver que busca na elaboração ética uma estética também
da existência. A relação de confiança necessita do espaço das emergên-
cias, dos devires, do fazer conjunto para existir. Ela não se encontra nas
leis, nos contratos e nas prescrições modernas, estas amarradas a uma
vida aprendida ao convívio da desconfiança, que buscam mais garantir
as propriedades do que os laços das relações trançadas entre nós na vida
diária. Já a confiança é uma arte de produzir juntos(as) uma vida que se
deseja com os(as) outros(as). Na experiência do comum nos tornarmos
artesões(ãs) da existência.
O comum não deve ser confundido com o lugar do igual ou do ho-
mogêneo, ao contrário, ele é espaço vivido por partilhas, convivências e
habitações que nos levam a deslocamentos e à necessidade de diálogos
e tensões. Não se trata de ocupar o lugar do(a) outro(a), ou ficar sem
lugar, trata-se da afirmação das diferenças postas e o que podemos fa-
zer com elas juntos(as), como afirma Silvia Federici, “Partilhar comuns
é retomar o poder de tomar, coletivamente, decisões básicas sobre as
nossas vidas” 3. Um dos processos que amparam a tessitura destes co-
muns é a confiança, a responsabilidade coletiva que não passa por
campos de atuação representativa de nossos desejos, mas na atuação di-
reta de nossas vontades alinhavadas pelos nossos compromissos
políticos. Confiar é tornar-se responsável com os(as) outros(as), ter um
lugar para voltar, um território de amparo, um viver em comunidade.
A confiança passa a ser um ato político insurgente que tem em seu
fiar uma força para curar as dores da solidão, do esvaziamento e das

3
Federici, S. (2022). Reencantando o mundo e a política dos comuns. São Paulo: Elefante, p. 168.
Saulo Luders Fernandes • 63

morbidades da modernidade. São forças restaurativas pois nos mostram


que nunca estamos sozinhos(as), somos comunidades, seres possíveis
aos comuns. Como canta Sued Nunes, “Eu sou uma, mas não sou só” 4 ou
Maria Bethânia: “Não mexe comigo que eu não ando só, eu não ando só,
eu não ando só” 5. Proliferar a desconfiança é uma estratégia política da
dominação que nos desenraiza, nos faz distantes, nos enfraquece. A po-
lítica da desconfiança tira de nós o que temos de mais forte: nós
mesmos, nossos laços, nossas histórias, nossos territórios. Contra o de-
sencanto do mundo descubro e busco a vida comunal, que tem no
confiar um exercício que dispende ação e energia às construções coleti-
vas. Caso contrário, você pode assinar um contrato e ficar tranquilo com
a desconfiança.

4
Nunes, S. (2021). Povoada. In Travessia [CD]. Mugunzá Records.
5
Bethânia, M. & Pinheiro, P.C. (2012). Carta de amor. In Oásis de Bethânia [CD]. Biscoito Fino.
13
A CONFIANÇA NOS TEMPOS DA CÓLERA
Tania Rivera

Vou falar um pouco de psicanálise, mas para chegar a algo mais


vasto e muito urgente, e que se inscreve no domínio da política – da
micro e macropolítica, na Universidade e na clínica, assim como na vida,
hoje: a necessidade de repensarmos a lógica que guia os laços sociais ao
mesmo tempo em que neles nos (re)posicionamos, assumidamente.
Uma palavra me vem de Fernanda Canavêz: confiança. Seria o termo
capaz de indicar uma forma de enlaçamento que hoje faria a diferença?
Percebo então que transferência pode ser, em psicanálise, um
nome para confiança. A gente fia que uma pessoa pode nos escutar e
sabe algo sobre nosso inconsciente, ou seja, supomos que ela detém um
saber, mas além disso – de modo único e nunca garantido de saída, mas
tecido ao longo de um tempo de gestos de corpo e, sobretudo, de
palavras – acreditamos que ela tenha cordura ética e disponibilidade
afetiva para nos acompanhar.
De maneira complementar mas não simétrica, no lugar do/a
analista confiamos, também, enquanto fiamos (tecendo fios de palavras)
e acreditamos (no sentido do engajamento mais do que da crença prévia,
da fé), se me permito levar adiante esse jogo de palavras que é um pouco
como as palavras cruzadas que se fazem em cada trabalho clínico. Mais
fundamentalmente, porém, devo dizer que no processo de uma análise
a gente se torna fiador/a daquele trabalho, daquelas palavras, sonhos,
lapsos e atos que alguém nos confia, quer dizer, nos transmite como algo
Tania Rivera • 65

precioso, a revelar-se na medida em que nos é endereçado. Trata-se de


uma espécie de aposta na qual nos empenhamos, ou seja: emprestamos
a nós mesmos/as em compromisso, como um penhor. Isso pressupõe
certa confiança, também, no processo analítico e em seu motor
fundamental, ao qual Freud chama simplesmente – porém de maneira
tão forte! – amor. Neste, de fato, deposita-se algo de si em outrem – e
neste sentido "amar é mudar a alma de casa" 1, como diz um verso de
Mário Quintana, a ecoar a sentença freudiana de que “o eu não é mais
senhor em sua própria casa” 2.
Dispor-se a ser depositário de um pedaço de alguém não é pouco
nem banal. Me ocorre a ideia, agora, de que tem a ver com maternidade
e também com certa monstruosidade. Emprestar-se a outrem: gesto
extremo, louco e belo. Acolher em seu corpo um pedaço de alguém: pele
a romper-se, carne a entranhar-se, estranha. O compromisso ético
fundamental é, aí, o de não absorver o estranho de modo a fazê-lo
inteiramente familiar. Não colonizá-lo, mas sim, ao contrário, deixar-
se conduzir por ele. Não ser comandante mas, antes, barco.
Seria possível pensar um modo de enlaçamento social que teria tal
(ou tais) estrutura(s) ética(s) e alteritária(s)? Longe da ideia de que a
psicanálise se poderia aplicar como modelo para as práticas sociais em
geral – justo ela, que se define por um dispositivo tão sui generis! –,
quero lembrar que ela ativa e explicita um tipo de relação que não deixa
de existir em muitas outras formações sociais. A maioria delas limita-
se à reafirmação de seu ponto de partida, o da suposição de saber que
reafirma a autoridade e impulsiona a sugestão (no domínio da medicina,

1
Quintana, M. (2005). Sapato Florido. São Paulo: Globo, p. 58.
2
Freud, S. (1917). Vorlesungen zur Einführung in die Psychoanalyse (Conferências introdutórias sobre
psicanálise). Gesammelte Werke, v. XI. Londres: Imago, 1944, p. 295 - tradução nossa.
66 • Ensaios (marginais) sobre a confiança

como sabemos, isso segue notório e praticamente imutável desde a


época de Freud), mas algumas implicam uma operação de subversão de
si em prol da transformação de outrem. Elas são justamente aquelas que
Freud aponta como “profissões impossíveis”, ao lado daquela do
analista: educar e governar (e devo sublinhar assim Freud liga a
psicanálise, de maneira "visceral", digamos, à educação e à política).
Talvez essas três formações sociais convoquem essa lógica
alteritária e ética que eu aproximaria também da posição do/a artista
como aquele/a que se torna, em sua obra, lugar de subversão,
convidando em ato o “espectador” a entrar em um circuito de
transformação delirante do mundo. E quiçá tais dispositivos armem
estratégias não-fálicas que podem ser associadas a posições quanto ao
gênero: aquela(s) das mulheres e aquelas, plurais e dissidentes, que hoje
ganham significantes reconhecidos socialmente, finalmente, como não
binários, transgêneros etc.
Seja como for, estou convencida de que psicanálise, educação e
política estão irremediavelmente entrelaçadas, especialmente na
Universidade, e que para fazer jus a isso devemos falar em nome próprio
e encarnadamente, em nosso lugar geopolítico e quanto ao gênero, de
modo a fazer de nossa singularidade uma potência de questionamento
do colonialismo e do falocentrismo hoje colericamente reinantes.
SOBRE AS AUTORAS E OS AUTORES

Caio Riscado - Diretor teatral e artístico, artista pesquisador e performer. Professor


colaborador e pós-doutorando do Programa de Pós-Graduação em Artes da Cena da
UFRJ (PPGAC/UFRJ), integrante de MIÚDA - núcleo de pesquisa continuada em artes.

Camila Peixoto Farias - Psicanalista e Doutora em Teoria Psicanalítica pela UFRJ. Pro-
fessora do curso de Psicologia da UFPel. Coordenadora do Pulsional - Núcleo de Estudos
e Pesquisas em Psicanálise (UFPel).

Daniel Guimarães - Psicanalista e artista. Membro da Clínica da Cidade - psicanálise


pública (SP), editor do site TarifaZero.org e ex-militante do Movimento Passe Livre.

Daniel Mograbi - Psicólogo e PhD em Psicologia e Neurociências (Institute of Psychiatry


- King's College London). Professor do Departamento de Psicologia da PUC-Rio, do Pro-
grama de Pós-Graduação em Psiquiatria e Saúde Mental do Instituto de Psiquiatria da
UFRJ e pesquisador visitante do Institute of Psychiatry - King's College London.

Fernanda Canavêz - Psicóloga e Doutora em Teoria Psicanalítica pela UFRJ. Professora


do Instituto de Psicologia da UFRJ e do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da
UFRRJ. Coordenadora do marginália - Laboratório de Psicanálise e Estudos sobre o Con-
temporâneo (IP/UFRJ).

Florisvaldo Bispo dos Santos - Guia turístico na Chapada Diamantina (BA), ex-garim-
peiro e ex-prefeito de Lençóis (BA).

Francisco Teixeira Portugal - Psicólogo. Professor do Instituto de Psicologia da UFRJ e


do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da UFRJ.
68 • Ensaios (marginais) sobre a confiança

Giovana Fagundes - Psicóloga, Mestre em Psicologia Clínica pela PUC-USP e Doutora


em Psicologia Social pela UERJ. Professora de Psicologia da UFPel. Coordenadora do
Epochè - Laboratório de Pesquisas em Fenomenologia e Psicologia Existencial (UFPel).

Laura Conceição - Poeta, jornalista independente e arte educadora. Mestranda pelo


Programa de Pós-Graduação em Educação da UFJF. Foi vice-campeã mineira de poesia
falada, classificando-se para o Campeonato Brasileiro de Slam nos anos de 2017 e 2021.
Lançou seu primeiro CD de RAP, intitulado Tempos Efêmeros, em 2019 e atualmente
trabalha na produção do seu segundo disco.

Ludmila Frateschi - Psicóloga e Psicanalista. Atua no consultório, integra a comissão


editorial do Jornal de Psicanálise e a equipe do Serviço de Psicoterapia do Instituto de
Psiquiatria do Hospital das Clínicas (HC-FMUSP).

Miro Spinelli - Artista e Pesquisador. Vive entre o Brasil e Nova York. É doutorando em
Estudos da Performance pela NYU, mesmo departamento onde completou seu segundo
mestrado. Também é mestre em Artes da Cena pela UFRJ.

Philippe Oliveira de Almeida - Professor de Filosofia do Direito da Faculdade Nacional


de Direito (UFRJ). Coordenador do Grupo de Pesquisa CERCO - Controle Estatal, Racismo
e Colonialidade (UFRJ).

PERIFaNÁLISE - Coletivo de PERIFaNALISTAS que atendem na e para a Periferia de São


Mateus - SP. Atualmente, é composto por Emília Ramos, Jefferson Santos, Kleber Albu-
querque, Paula Jameli, Reine Rodrigues, Rosimeire Bussola, Thainá Aroca e Verônica
Rosa.

Psicanálise na Rua - Coletivo de psicanalistas que oferece atendimento gratuito nas


ruas de Brasília - DF.

Saulo Luders Fernandes - Professor do curso de Psicologia e do Programa de Pós Gra-


duação em Psicologia da UFAL. Atua na área de Psicologia Social com ênfase na luta e
Sobre as autoras e os autores • 69

garantia de direitos de comunidades tradicionais, quilombolas, indígenas e movimentos


de luta pela terra da região do agreste de Alagoas.

Tania Rivera - Psicanalista, Ensaísta e Curadora. Professora do Departamento de Arte


e do Programa de Pós-Graduação em Estudos Contemporâneos das Artes da UFF e do
Programa de Pós-Graduação em Teoria Psicanalítica da UFRJ.
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ciências humanas, distribuída exclusivamente sob acesso aberto,
com parceria das mais diversas instituições de ensino superior no
Brasil e exterior, assim como monografias, dissertações, teses,
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