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Bolo Diário

Recomendações: Comer uma fatia ao acordar

Faça você mesmo!

Mas antes de comer o bolo você precisa fazê-lo, e como todo bolo não dá para
simplesmente jogar os ingredientes e tacar a massa no forno, você precisa decidir o que vai
usar como ingredientes! Os ingredientes vendem em determinados lugares, padarias,
supermercados, feirinhas, quiosques e outros. Em cada lugar desse existem pessoas que
tocaram esses produtos, que receberam esses produtos de outras pessoas, que os produziram
ou que compraram de outros e assim por diante. Então o produto que você compra não está
da forma que a primeira pessoa tocou, assim como o produto que você irá produzir será
diferente ou com um destino diferente do que a pessoa que vendeu ou produziu pensou. Mas
por que estou falando disso em uma receita de bolo? Por que será que ao fazer um bolo
pensamos em todo esse processo? Eu posso falar por mim, diria que não, geralmente pegava
os produtos jogava no recipiente e fazia o bolo, na maioria das vezes ficava solado. Poderia
dizer que era por causa da rapidez das coisas e da vida. Mas hoje vejo que não, isso acontecia
por não pensar em outras possibilidades de existências…mas como assim? A vida é rápida
mesmo, mas dá para gente ver muita coisa. Eu diria que o meu bolo estava muito preso à
síndrome da Gabriela…uma síndrome que você nasce assim, cresce assim e vai ser sempre
assim…Gabriela. Está tudo posto, basta viver Alanda. Mas nessa receita você cabe? Será que
o viver cabe em uma receita? Vou recorrer a algo que eu aprendi há pouco tempo lendo um
texto do Antonio Bispo, onde ele fala sobre os conceitos de “BEM VIVER” e “VIVER
BEM”. Bem viver seria viver de forma orgânica e o viver bem seria viver de forma sintética.
O Antônio fala que existem dois tipos de saberes, os saberes orgânicos e os saberes sintéticos,
o saber orgânico desenvolver o ser e o saber sintético desenvolver o ter. Por muito tempo eu
vivi a receita do saber sintético que é pautada em produzir coisas, onde ocorre uma
desconexão da vida, mas o ter (como criatura) devora o criador, o ser. E nesse caso as
pessoas ATUAM sempre em função do ter. Não estou livre dessa lógica, só porque li um
texto do Antonio Bispo, mas descobri nesse texto e nas aulas na disciplina
DESCOLONIZAÇÃO, COTIDIANO E PRÁTICAS DE CUIDADO, que ficou para mim,
como a disciplina de CUIDADOS, que existem outras formas de viver. Que existem muito
antes da receita de bolo pronta. E que essas formas de viver não estão dadas, não estão
escritas e muitas vezes não são escritas, são passadas por diversas vias de comunicação, não
somente na academia, não somente por uma livro, um artigo, uma publicação nas redes
sociais, uma matéria na tv e etc. Mas, como Bispo traz, podem ser passadas através do que
ele chama de conceitos de Confluência e Transfluência:

“Trabalho com os conceitos de “confluência” e “transfluência”. Confluência foi um conceito


muito fácil de elaborar porque foi só observar o movimento das águas pelos rios, pela terra.
Transfluência demorou um pouco mais porque tive que observar o movimento das águas pelo
céu. Para entender como um rio que está no Brasil conflui com um rio que está na África eu
demorei muito tempo. E percebi que ele faz isso pela chuva, pelas nuvens. Pelos rios do céu.
Então, se é possível que as águas doces que estão no Brasil cheguem à África pelo céu,
também pelo céu a sabedoria do nosso povo pode chegar até nós no Brasil”.

Mas, a receita do bolo não é de todo ruim, aprendi a fazer um bolo através dela, aprendi a
gostar de bolo solado com café. Mas conheci uma amiga que faz um bolo macio, fofinho e
cheiroso. Ela me ensinou esse bolo e eu fui colocando minhas impressões nele. A receita de
minha amiga, era da avó dela, assim como o pirão que ela me ensinou. Ou seja, essa mulher
não escreveu para Kelly, ela lhe ensinou, deixou ela ver como as comidas eram feitas, assim
como ela fez comigo. E novamente neste momento, recorro a algo que li no texto do Antonio
Bispo quando ele fala sobre a existência de Marx, sua teoria e o quilombo. Para Bispo o
quilombo existia bem antes de Marx! Assim como a avó de Kelly, existia bem antes do Site
“Tudo Gostoso” na internet. Ou seja, o site é importante, assim como Marx também, no
entanto, nós e eu, temos outras pessoas e outras “coisas” aqui, outros modos de vida, de
conhecimento e de receitas. Bisco recorre a um ditado popular que eu conheço como: “Cada
um com seu cada qual”, pode não está correta a pronúncia, mas esse pertence a mim e ao
lugar de onde vim, que não tem receita e que aprendo a fazer todos os dias.
Como diria Clarice Lispector: “ Renda-se, como eu me rendi. Mergulhe no que você não
conhece como eu mergulhei. Não se preocupe em entender, viver ultrapassa qualquer
entendimento.” Já Sayonara diria: Às vezes não precisamos entender ou explicar tudo, o
mistério é necessário. Não foi bem assim que ela disse, mas foi assim que eu escutei e como
diria o Lacan: Você pode saber o que disse, mas nunca o que o outro escutou”.
Assim como, a receita de bolo que aprendi com kelly, aprendi com Saulo, Parra, Regina,
Cristóvão, Sayonara, Roberto, Raul, Paulo, Júlia e Pierra, que existem outras formas de
cuidado, que são praticadas bem antes da psicologia, e que eu tenho uma forma de cuidar do
outro, até então desconhecida, mas praticada, que é fazendo comida, principalmente bolo.
Então essa é a minha forma de cuidado para vocês!

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