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Dramaturgia expandida

e seus rastros:
questões de historio-
grafia teatral

Resumo >
Marina de Oliveira

O presente texto analisa as dis-


tintas acepções de dramaturgia, con-
textualizando como o conceito so-
freu modificações ao longo do tempo,
tornando-se mais complexo e amplo.
Além disso, discute de que forma a
noção de dramaturgia expandida in-
terferiu na compreensão e nas meto-
dologias da historiografia teatral. A
reflexão se apoia em pensadores como
Bernard Dort, Carlo Ginzburg, Stela
Fischer, Patrice Pavis, entre outros.

Palavras-chave:
Dramaturgia; Dramaturgia ex-
pandida; Historiografia Teatral.
Dramaturgia expandida e seus ras-
tros: questões de historiografia
teatral

Marina de Oliveira (UFPel)

Este texto surgiu de uma inquietação a partir de minha


Marina de Oliveira - Pro- condição de professora das disciplinas do eixo das “histórias e
fessora adjunta II do curso dramaturgias do teatro”, no curso de Teatro da Universidade
Teatro-Licenciatura da Uni- Federal de Pelotas. Na tentativa de resgatar estéticas passadas,
versidade Federal de Pelotas sejam rituais do período pré-histórico, encenações da Grécia
(UFPel). Mestrado e Douto-
rado na área de Letras, em Antiga ou de qualquer outro período, entra-se sempre no ter-
Teoria da Literatura, pela reno das especulações, rastros e incertezas. A compreensão das
Pontifícia Universidade Ca- histórias das artes cênicas como parciais, heterogêneas e lacuna-
tólica do Rio Grande do Sul res traz a sensação de que o tema pode ser de difícil apreensão.
(2010). O problema não se restringe à distância temporal em relação
marinadolufpel@gmail.com.
aos acontecimentos cênicos, mas também à espacial. Como falar
acerca da estética do grupo Oficina ou dos espetáculos de Pina
Bausch para ouvintes que não tiveram e nem têm acesso a es-
sas experiências? Como compreender o que não se viu em uma
arte que tem como essência a presença do espectador diante do
evento cênico, efêmero por natureza? E, ainda, em que medida a
noção de dramaturgia expandida transformou o campo da his-
toriografia teatral?
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O surgimento e a posterior legitimação ta sobreviver com seus filhos em meio à misé-


da figura do encenador, a partir do final do sé- ria, a técnica de distanciamento empregada por
culo XIX, foram determinantes para a relativi- Helene Weigel vislumbrou as contradições da
zação da subserviência da encenação ao texto personagem e a responsabilidade de suas ações:
dramático e, por extensão, à pessoa do drama-
turgo. A compreensão de que o diretor não é Após a desfiguração da filha, [Mãe Coragem]
amaldiçoa a guerra com a mesma honestida-
apenas um organizador da cena, mas um ser
de com que, depois, a exalta, na cena subse-
criador, responsável por expressar seu ponto de quente. Helene Weigel modulou, desta forma,
vista através do espetáculo, fez com que o texto os elementos contrastantes, em todos os seus
deixasse de ser visto como uma estrutura rígida aspectos abruptos e inconciliáveis. (BRECHT,
1978, p. 160)
e imutável, para ser entendido como um mate-
rial maleável, aberto a novos horizontes.
O ponto de vista de Brecht deixa claro
Figuras emblemáticas, Artaud e Brecht
que a representação de um mesmo texto pode
propuseram, cada um a seu modo, uma abor-
despertar efeitos distintos no espectador, de-
dagem diferenciada do texto dramático em suas
pendendo da técnica empregada.
concepções cênicas. Contrapondo-se à visão
A partir da década de 1960, entretanto,
textocentrista predominante até meados do sé-
os processos de criação coletiva representaram
culo XX, Artaud defendeu que diretores e atores
uma nova transformação, vinculada não ape-
não deveriam se sujeitarem ao texto, mas sim se
nas a distintas possibilidades de abordagem
apropriarem dele e até mesmo violentá-lo, alte-
do texto teatral, mas à sua gênese. Isto é, essa
rá-lo, caso necessário: “A escravização ao autor,
nova metodologia trouxe a compreensão de que
a submissão ao texto, que barco fúnebre! Mas
a dramaturgia (além dos demais elementos da
cada texto tem possibilidades infinitas. O espí-
encenação), também poderia ser construída
rito e não a letra do texto!” (ARTAUD, 2006, p.
por todos os membros do grupo. A partir disso,
25). A fala do poeta visionário, retirada do ca-
alguns coletivos, ao invés de elegerem uma peça
pítulo “A evolução do cenário”, texto publicado
teatral escrita por um dramaturgo, passaram a
em 1924, já previa o texto escrito apenas como
dialogar entre si até chegarem em um consenso
ponto de partida para o processo criativo, e que
acerca do tema que desejavam abordar, produ-
diretores e atores poderiam investir no poten-
zindo seus próprios textos nas salas de ensaio.
cial imagético das palavras, libertando-se das
Já no processo colaborativo, termino-
amarras trazidas pela sujeição irrestrita ao texto
logia contemporânea que tem raízes na criação
e à figura do autor.
coletiva, o texto é organizado por um drama-
Já Brecht, ao propor a forma épica de
turgista, a partir da colaboração de todos os
atuação, em oposição à dramática, evidenciou
artistas envolvidos na concepção do espetácu-
que toda representação está atrelada a uma vi-
lo. Em Processo colaborativo e experiências de
são política de mundo, capaz de levar o especta-
companhias teatrais brasileiras, Stela Fischer
dor à reflexão crítica e a uma posterior mudan-
lembra que, em linhas gerais, o termo se concei-
ça de paradigma.Como um dos exemplos desse
tua como “procedimento de grupo que integra a
pensamento, há o texto “A Mãe Coragem em
ação direta entre ator, diretor, dramaturgo e de-
duas interpretações”, de 1951, em que o drama-
mais artistas, sob uma perspectiva democrática
turgo alemão exalta a representação da perso-
ao considerar o coletivo como principal agen-
nagem Mãe Coragem feita por Helene Weigel,
te de criação e aglutinação de seus integrantes”
em detrimento do trabalho realizado por atrizes
(FISCHER, 2010, p. 61). Diferentemente da
nos moldes vulgares. Enquanto a interpretação
criação coletiva, em que os membros do grupo
convencional tendia a amenizar a participação
geralmente atuam em todas as áreas, o processo
ativa de Mãe Coragem na guerra, destacando-
colaborativo preserva as funções específicas de
-lhe o aspecto sentimental de uma mãe que ten-

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cada área de trabalho. sença.


A impressão ao se ler uma publicação Ciente dessas transformações que vi-
de autores consagrados como Federico García nham ocorrendo na compreensão do que é dra-
Lorca, Tato Pavlovsky ou Plínio Marcos, é a de maturgia, Patrice Pavis, em Dicionário de teatro,
que a trama, com seu início, desenvolvimento, propõe três acepções possíveis para a palavra.
clímax e desfecho, irá direcionar de modo sig- Na primeira delas, dramaturgia é explicada
nificativo as escolhas de encenação. Por mais em seu sentido original, a partir da definição
distintas que sejam as concepções estéticas de presente em um dicionário de língua francesa:
diretores e atores, os espectadores naturalmente “arte da composição de peças de teatro” (PAVIS,
encontrarão pontos de contato em montagens 2008, p. 113). Essa visão clássica do termo vin-
diferentes de A casa de Bernarda Alba, El señor cula-se à publicação de uma peça teatral (por
Galíndez ou O abajur lilás por exemplo, já que exemplo,Vestido de noiva) ou à produção de
essas peças e suas conhecidas histórias remetem determinado autor teatral (como a dramaturgia
o espectador para determinados horizontes de de Nelson Rodrigues, compreendendo-se aí a
expectativa. Mas, ainda que apresentem cone- totalidade de suas peças) ou ainda a um certo
xões entre si, encenações que utilizam esses tex- conjunto de obras (por exemplo, a dramaturgia
tos teatrais podem produzir resultados estéti- marginal ou a dramaturgia renascentista, ex-
cos bastante diversos. E esta é uma das maiores pressões que abarcam a produção de um con-
belezas do fazer teatral, a potencialidade de se junto de dramaturgos agrupados por alguma
construir novos e inusitados olhares diante de característica em comum).
um mesmo ponto de partida. Ainda segundo Pavis: “A dramaturgia
O registro dramatúrgico elaborado a clássica examina exclusivamente o trabalho do
partir da criação coletiva ou do processo cola- autor e a estrutura narrativa da obra. Ela não se
borativo, por sua vez,apresenta uma estrutura preocupa diretamente com a realização cênica
diferenciada, em que a ênfase não está necessa- do espetáculo” (PAVIS, 2008, p. 113).Assim,
riamente na fábula, mas nas escolhas estéticas considerando-se a visão clássica de dramatur-
para a construção da mise-en-scène. Esta dra- gia, um estudo dramatúrgico terá a construção
maturgia tende a ser exclusiva do grupo, pois dos personagens, a estruturação dos diálogos
sua gênese dá-se, no geral, na relação da equipe em direção ao clímax e o posterior desfecho da
com um espaço cênico específico. Dito de outra trama como os principais focos de análise. Nesse
forma, uma mesma temática construída coleti- caso, a peça escrita é compreendida como uma
vamente por dois grupos teatrais distintos ten- estrutura fechada em si mesma, completa, apta
de a ter resultados bem diferentes em termos de para ser transposta para a cena, tendo o confli-
construção da fábula. O roteiro necessariamen- to como impulsionador das ações, responsável
te se estrutura de modo singular, já que cada pelo aumento gradativo da tensão dramática.
grupo tem a sua sistemática de criação a partir Para Pavis, a intervenção de Brecht, ao
de elementos específicos. propor a forma épica de representação, conferiu
Tantos nas encenações em que se tem um novo sentido à palavra dramaturgia, que se
um texto prévio como referência, quanto nas ampliou, passando a abrigar simultaneamente
propostas cênicas em que o texto é construído duas estruturas da peça, a formal e a ideológica.
no processo dos ensaios, vê-se que as escolhas Na verdade, desde a consolidação do trabalho
estético-ideológicas dos grupos constituem do encenador a partir de nomes como Antoi-
também a sua dramaturgia. ne, Lugne-Pöe e Reinhardt, entre outros, ficou
De todo modo, a ampliação do conceito evidente que o texto encenado tem por objeti-
deixa claro que o texto teatral é, na realidade, vo produzir um certo efeito no espectador. Por
um dos elementos da dramaturgia, sendo pos- essa razão, a concepção do encenador passou a
sível, inclusive, uma dramaturgia sem a sua pre- ser entendida como determinante para a com-

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preensão da dramaturgia do espetáculo. Em significação” (DORT,2013, p. 55).


função do exposto acima, na segunda acepção Ao perceber que outros agentes da cena
de Pavis, a dramaturgia “abrange tanto o texto constroem a dramaturgia, Dort observa, simul-
de origem quanto os meios cênicos empregados taneamente, uma maior divisão do poder. Isto
pela encenação” (PAVIS, 2008, p. 113). é, não se trata mais de conceder o comando ao
Na terceira acepção do Dicionário de ator ou ao diretor, mas de entender que há uma
teatro, tem-se a visão mais recente sobre dra- rede de atuadores que participam e constroem a
maturgia, já que a palavra está vinculada à atu- dramaturgia do grupo.
alização de como é entendida a atividade do Por não remeter necessariamente à pa-
dramaturgo, que passa a compreender o traba- lavra dita e escrita, a noção de dramaturgia ex-
lho em equipe com os demais criadores do es- pandida tornou possível pensar em categorias
petáculo. Nessa acepção, dramaturgia designa: como dramaturgias do corpo, do movimento,
das imagens etc. As experimentações cênicas
O conjunto das escolhas estéticas e ideológi- contemporâneas, envolvendo teatro, dança e
cas que a equipe de realização, desde o ence-
performance, alteraram o significado de drama-
nador até o ator, foi levada a fazer. Este traba-
lho abrange a elaboração e representação da turgia como sinônimo de representação de uma
fábula, a escolha do espaço cênico, a monta- fábula. Além disso, ela não se restringe ao mo-
gem, a interpretação do ator, a representação mento do espetáculo, já que abarca igualmente
ilusionista ou distanciada do espetáculo. (PA-
o processo criativo de elaboração do mesmo.
VIS, 2008, p. 113-114)
Mas a pergunta que impulsiona a refle-
xão do presente texto é: em que medida a per-
Nessa última acepção de dramaturgia
cepção da dramaturgia como um campo expan-
descrita por Pavis, fica claro que a função do
dido modificou a historiografia teatral? Se hoje
dramaturgo deixa de ser compreendida exclu-
entendemos que a dramaturgia existe para além
sivamente como a de alguém que cria o texto
do texto e do espetáculo, o que mudou em nos-
teatral de maneira solitária, sentado em seu
sa percepção quando analisamos dramaturgias
escritório, necessitando tão somente de papel
enquanto registros históricos?
e caneta, máquina de escrever ou computador.
A noção de dramaturgia expandida
A dramaturgia, nesse caso, vincula-se ao traba-
abarca ao menos duas dimensões temporais: a
lho coletivo envolvendo os distintos membros
do momento presente da representação, o aqui
do grupo cênico. Nessa perspectiva, não serão
e o agora do acontecimento cênico, e também
todos os criadores do espetáculo – diretores,
as suas reverberações, o seu antes e o seu de-
atores, sonoplastas, coreógrafos, cenógrafos etc.
pois. Em outras palavras, a dramaturgia pode
– também dramaturgos?
ser analisada no momento em que o espetácu-
Bernard Dort, em “A representação
lo ocorre, e também a partir dos seus registros
emancipada”, aponta justamente para uma
historiográficos, considerando aí o processo de
crescente autonomia dos distintos elemen-
criação e a recepção da obra. Como pensar na
tos que constituem o evento cênico, de modo
dramaturgia do histórico espetáculo de Vestido
que o encenador perde a sua primazia, já que
de noiva, de 1943, sem considerar as críticas de
outros agentes se tornam proeminentes. O es-
Sábato Magaldi e de Décio de Almeida Prado?
paço cênico, os atores e os espectadores, entre
Ou o que restaria em nosso imaginário acerca
outros, passam a ser vistos como importantes
de Rei da vela, de 1967, sem as fotos, os registros
construtores dos signos que podem, inclusive,
fílmicos e depoimentos de artistas e espectado-
se contrapor. Ele ressalta que não se trata mais
res?
de pensar dicotomicamente na união ou na su-
Aqui, abro um parêntese para falar so-
bordinação texto versus cena, mas de entender
bre historiografia. À semelhança do que aconte-
o espetáculo como “uma crítica em processo de
ceu com o conceito de dramaturgia, a compre-

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ensão do que é história também se modificou nar” (GINZBURG, 2007, p. 40).


a partir da segunda metade do século XX. O As ponderações de Ginzburg para a nar-
movimento intelectual francês conhecido como rativa histórica em geral podem ser facilmente
“Escola dos Annales”, durante a década de 1930, transpostas para o campo específico da historio-
foi propulsor da chamada “Nova História”, uma grafia teatral. O acontecimento cênico, que só
corrente historiográfica que, além de heterogê- existe no aqui e no agora, sem a materialidade
nea, passou por distintas fases, desenvolvendo- possível de um quadro, uma escultura ou uma
-se com mais vigor a partir da década de 1970. película, torna a ideia de “completude histórica”
Dentre as principais formulações dessa ainda mais instável.
corrente estão a expansão do campo histórico, Antes de Ginzburg, Walter Benjamim,
que passou a abranger outras áreas, como socio- no notório texto “A obra de arte na era de sua
logia, antropologia, artes e filosofia; a amplia- reprodutibilidade técnica”, já apontava a im-
ção do território da história, que abarcou áreas possibilidade de reprodução da obra de arte,
inesperadas e grupos sociais negligenciados; a mantendo-se a sua aura: “O aqui e agora do ori-
valorização das micro-histórias do cotidiano; a ginal constitui o conteúdo da sua autenticidade”
compreensão de que outros registros, como o (BENJAMIN, 1987, p. 167). Mas o fato de ser
literário, pertencem ao campo da historiografia impossível “remontar”, refazer a aura de um es-
(BURKE, 1997). petáculo acontecido, não significa que não pos-
A Nova História abriu perspectivas no samos especular acerca de sua realização e de
campo da historiografia, contribuindo para a suas dramaturgias.
compreensão de que “a verdade” histórica não A fim de investigar como a noção de
existe. O que existe são distintas visões e leituras uma dramaturgia ampliada pode transformar a
acerca de um mesmo evento ou fato. Essa nova metodologia de ensino na área de história do te-
visão trouxe o entendimento de que as narra- atro, pode-se imaginar as diferenças entre duas
tivas históricas são parciais, fragmentárias, in- abordagens sobre o teatro da Grécia Antiga em
completas, heterogêneas e incertas. aula: uma ministrada na década de 1950 e ou-
Carlo Ginzburg, em O fio e os rastros, tra, nos dias atuais.
comenta, de modo crítico, a tendência da nar- Entendendo-se a dramaturgia como res-
rativa histórica tradicional de ser: trita a um texto, seria possível prever que o pon-
to de partida para a temática do teatro na Gré-
irresistivelmente propensa, muitas vezes, a cia Antiga fosse a leitura de uma peça clássica,
preencher (com um advérbio, uma preposi-
como Édipo rei, de Sófocles.A análise do texto
ção, um adjetivo, um verbo no indicativo em
vez de no condicional…) as lacunas da do- seria respaldada pelo conhecimento da narrati-
cumentação, transformando um torso numa va mítica que precede aos acontecimentos que
estátua completa. (GINZBURG, 2007, p. 332) se dão em Édipo. A triste sina dos labdácidas
seria evocada como forma de se compreender
Na perspectiva do historiador, as pes- a noção de hereditariedade da culpa trágica. A
quisas em torno do passado não devem buscar Poética, de Aristóteles, seria leitura obrigatória
preencher lacunas que são, per si, impreenchí- para a discussão em torno da catarse e do senti-
veis. Não se trata, pois, de transformar um tor- mento de terror e piedade gerado no espectador
so em uma estátua completa, rígida e imóvel, a partir da catástrofe desencadeada involunta-
mas de compreender que os prolongamentos riamente pelo herói, sendo a peça de Sófocles
possíveis do torso são instáveis, plurais, fluidos, o modelo ideal. Imagino que o mito de Dioní-
movediços e falhos. O teórico traz as imagens sio e a criação dos ditirambos que resultaram
de rastros, fragmentos e ruínas para enfatizar o no “canto ao bode”, gênese da tragédia, fossem
quanto nosso conhecimento acerca do passado mencionados de modo ligeiro. Os principais
“é inevitavelmente incerto, descontínuo, lacu- pontos por mim projetados partem da ideia de

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uma história do teatro baseada em textos, em do regramento sexual.


informações mais objetivas e menos lacunares. Uma aula de história do teatro nos mol-
De que maneira uma aula de história do des de hoje não abandona a análise literária,
teatro sobre a Grécia Antiga, ministrada no sé- apenas retira-a do foco. Essas mudanças evi-
culo XXI, difere desta? Acredito que a principal denciam que a dramaturgia como campo ex-
diferença reside na migração de uma aborda- pandido transformou a historiografia teatral e
gem objetiva para outra mais subjetiva, incerta também a sua abordagem em sala de aula.
e complexa. O foco deixa de ser a análise literá- Ademais, a noção de dramaturgia expandida
ria, ênfase da suposta aula da década de 1950, faz com que outros materiais sejam empregados
para ser uma especulação investigativa sobre a pela historiografia teatral. Imagens de espaços
dramaturgia expandida daquele período. cênicos, figurinos, máscaras, acessórios, leitu-
Além das informações objetivas, entram ras de críticas, depoimentos, relatos e diários
as suposições e perguntas, algumas sem respos- ganham nova relevância.Grupos da atualidade
tas. As imagens das ruínas dos espaços cênicos vêm utilizando ferramentas da mídia digital,
da Grécia Antiga trazem indagações: “como era como a criação de sites e blogs, além da con-
a acústica destes espaços?”, “como os espectado- fecção de DVDs com a filmagem e a edição dos
res ouviam e enxergavam os atores de tão lon- espetáculos, acrescidos de material extra com
ge?”, “como o coro se movimentava?”. Dúvidas informações sobre o processo criativo, a histó-
que remetem a vestígios que nos fazem deduzir ria do grupo e depoimentos acerca da recepção
acerca da existência de revestimentos de madei- da obra.
ra nas arquibancadas, máscaras com mecanis- Alargando a terceira acepção de dra-
mos de amplificação sonora, coturnos, movi- maturgia proposta por Pavis, é possível afirmar
mentos articulados coletivamente. que a leitura do espectador acerca do espetáculo
O fato de os papéis femininos serem também compõe a sua dramaturgia. Ou seja, a
representados por atores homens ou, melhor palavra dramaturgia pode abarcar a organização
dizendo, a proibição de mulheres representa- e a publicação de peças teatrais, os processos de
rem personagens no teatro clássico tem quais criação e as escolhas estéticas e ideológicas que
implicações no campo da dramaturgia? Qual o resultam na apresentação, na representação tea-
peso de questões políticas e ideológicas para a tral em si e também na sua recepção.
estética? Sou de uma geração que aprendeu que Tomando como exemplo três grupos te-
a Grécia Antiga é o berço da civilização, um es- atrais brasileiros relevantes – Oficina, Ói Nóis
paço-tempo idealizado que gerou a democracia. Aqui Traveiz e Teatro da Vertigem – é possí-
Mas de que democracia estamos falando, em vel identificar uma preocupação em divulgar
uma sociedade em que mulheres e crianças não e registrar as suas trajetórias cênicas através da
eram consideradas cidadãs, em que a grande Internet e das mídias digitais. Nos respectivos
maioria da população era escrava? Que impor- sites dessas companhias, encontram-se infor-
tância tem para a história do teatro as relações mações que dão conta da origem dos grupos,
de poder que definem, por exemplo, quem pode fichas técnicas e fotos de espetáculos anteriores,
representar papéis na cena? E o que dizer sobre além, é claro, da divulgação de projetos atuais
uma dramaturgia pensada, ensaiada e materia- e propostas cênicas em cartaz.Evidentemente,
lizada apenas por homens? Questões como es- a utilização dessas ferramentas não se restrin-
sas ajudam a explicar por que Lisístrata não se ge aos grupos mencionados, constituindo uma
trata de uma comédia com princípios feminis- ação frequente de vários coletivos teatrais brasi-
tas, como alguns imaginam,mas de uma sátira, leiros preocupados em divulgar o seu trabalho e
um deboche diante da possibilidade remota de registrar a sua história.
mulheres interferirem na política masculina, As informações disponibilizadas nas
ainda que pela via doméstica, com a interdição mídias digitais não são, evidentemente, substi-

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tutivas do acontecimento teatral que, por sua es-


sência, dá-se na efemeridade do aqui e do agora.
Todavia, os elementos presentes nessas mídias
permitem uma visão mais plural e multifaceta-
da dos processos de criação, já que através deles
temos acesso a uma série de informações acerca
do percurso, da recepção e das escolhas estéti-
cas do grupo. Se estamos falando de percurso,
escolhas estéticas e recepção, estamos indelevel-
mente no terreno da dramaturgia.
Por todas as razões elencadas, é possível
afirmar que a noção de dramaturgia expandi-
da modificou a compreensão e as metodolo-
gias da historiografia teatral. Se na atualidade a
noção de dramaturgia expandiu-se, resultando
em propostas estéticas distintas, essa nova per-
cepção reverberou na compreensão que temos
acerca de eventos teatrais passados. Além da
análise das peças teatrais pelo viés do espetá-
culo ou do texto literário, outras informações
como imagens, vídeos, depoimentos, críticas,
relatos de criação e questões político-ideológi-
cas ganham destaque.Junto aos dados objetivos,
há rastros, incompletudes e especulações. Desse
modo, hipóteses, dúvidas e incertezas transfor-
mam-se em premissas básicas para a historio-
grafia teatral, percebida necessariamente como
heterogênea, descontínua e incompleta.

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referências

ARTAUD, Antonin. Linguagem e vida. São Paulo: Perspectiva, 2006.

BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e


história da cultura. São Paulo: Brasiliense, 1987.

BRECHT, Bertolt. Estudos sobre teatro. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1978.

BURKE, Peter. A Escola dos Annales (1929-1989): a revolução francesa da


historiografia. São Paulo: UNESP, 1997.

DORT, Bernard.“A representação emancipada”. Sala Preta, São Paulo, v. 13, n.1,
p. 47-55, jun. 2013.

FISCHER, Stela. Processo colaborativo e experiências de companhias tea-


trais brasileiras. São Paulo: Hucitec, 2010.

GINZBURG, Carlo. O fio e os rastros. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.

PAVIS, Patrice. Dicionário de teatro. São Paulo: Perspectiva, 2008.

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Abstract

This article aims to analyze the different meanings of dramaturgy, contextualizing how
this concept suffered modifications through the time, becoming more complex and bro-
ad. Besides that, this article discusses the way the notion of expanded dramaturgy inter-
fered in the comprehension and in the methodologies of the theatrical historiography.
The reflection is based in researches by Bernard Dort, Carlo Ginzburg, Stela Fischer,
Patrice Pavis, among others.

Keywords

Dramaturgy. Expanded Dramaturgy. Theatrical Historiography.

Resumen

Este texto analiza las distintas acepciones de dramaturgia y contextualiza cómo el con-
cepto sufrió cambios a lo largo del tiempo, volviéndose más complejo y amplio. Además,
discute de qué modo la idea de dramaturgia expandida interfirió en la comprensión y
en las metodologías de la historiografía teatral. La reflexión se basa en pensadores como
Bernard Dort, Carlo Ginzburg, Stela Fischer, Patrice Pavis, y en otros.

Palabras Clave

Dramaturgia. Dramaturgia Expandida. Historiografía Teatral.

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