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Product: OGloboProsaeVerso PubDate: 28-12-2013 Zone: Nacional Edition: 1 Page: PAGINA_B User: Asimon Time: 12-26-2013 20:20 Color: C

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2 l O GLOBO l Prosa l Sábado 28 .12.2013

Natureza e
ALTERNATIVAS
NO DEBATE

política
SOBRE CONFLITOS
DO MUNDO

Antropólogo, sociólogo e filósofo das ciências, Bruno Latour afirma que ‘ecologizar’
é o verbo da vez. Mas destaca que seu sentido é mais amplo do que o defendido
hoje por ativistas : ‘Nenhum partido ecologista conseguiu manter uma prática’, diz

FERNANDO EICHENBERG
Correspondente
eichenberg@oglobo.com.br
FERNANDO EICHENBERG
-PARIS-A modernidade é uma falácia, a ver com a economia e a moderniza- do passado, da conservação. O que é
uma ficção inventada para organizar a ção, com a conservação, será preciso completamente inadaptado a uma re-
vida intelectual. Os chamados “mo- muita inteligência política e científica. volução desta grandeza. Não podemos
dernos” pregam a separação de ciên- Não há muitos países que possuem es- criticá-los. Eles tentaram, mas não in-
cia, política, natureza e cultura, numa ses recursos. Os Estados Unidos pode- vestiram intelectualmente na escala do
teoria distante da realidade do mundo riam, mas os perderam há muito tem- problema. Não se deram conta do que
e inadaptada aos desafios impostos po, saíram da História quando o presi- quer dizer “ecologizar” em vez de “mo-
neste início de século, acusa o pensa- dente George W. Bush disse que o mo- dernizar”. Imagine o pobre do infeliz
dor francês Bruno Latour, de 66 anos. do de vida dos americanos não era ne- responsável pelo transporte público de
“Ecologizar” é verbo da vez, sustenta gociável. Brasil e Índia ainda têm essa São Paulo ou de Los Angeles.
ele, mas num sentido bem mais amplo chance. Mas este é o cenário otimista.
do que o espaço compreendido pela O cenário pessimista talvez seja o mais l A França receberá em 2015 a Con-
ecologia defendida por ativistas e par- provável. ferência Internacional sobre o Cli-
tidos políticos. ma. Como o senhor avalia esses en-
— O desenvolvimento da frente de l Qual a hipótese pessimista? contros?
modernização, como se fala de uma Há os chineses que entram com força Estamos muito mobilizados aqui na
frente pioneira na Amazônia, sempre no Brasil, por exemplo. Meu amigo Cli- Sciences-Po, porque em 2015 ocorrerá
foi, ao contrário, uma extensão de ve Hamilton (pensador australiano) diz em Paris, e trabalhamos bastante sobre
uma quantidade de associações, da que, infelizmente, nada vai acontecer, o fracasso da conferência de Copenha-
marca dos humanos, da intimidade de que se vai fazer uma reengenharia, se gue, em 2009. Estamos muito ativos,
conexões entre as coisas e as pessoas. vai modernizar numa outra escala e tanto aqui como no Palácio do Eliseu.
A modernidade nunca existiu — dis- numa outra versão catastrófica. Prova- Na minha interpretação, o sistema de
para Latour, em entrevista ao GLOBO. velmente, é o que vai ocorrer, já que agregação por nação é demasiado con-
Na sua opinião, o Brasil, com todas as não conseguimos decidir nada, e que vencional para identificar as verdadei-
suas contradições, é fundamental na será preciso ainda assim tomar medi- ras linhas de clivagens sobre os comba-
possibilidade de um futuro de inova- das. Uma hipótese é a de que se vai de- tes e as oposições. Cada país é atraves-
ções que gerem um novo tipo de “civili- legar a Estados ainda mais moderniza- sado em seu interior por múltiplas fac-
zação ecológica”, numa nova “inteli- dores no sentido tradicional e hegemô- ções, e o sistema de negociação perten-
gência política e científica”. nico a tarefa de reparar a situação por ce à geopolítica tradicional. E também
Antropólogo, sociólogo e filósofo das meio de medidas drásticas, sem nada ainda não admitimos de que se tratam
ciências, Bruno Latour, que recebeu em mudar, portanto agravando-a. Mas de conflitos políticos importantes. A
maio passado o prestigiado prêmio meu dever é o de ser otimista. Em todo França aceitou a conferência sem per-
Holberg de Ciências Humanas, é um caso, é preciso inventar novas formas ceber realmente do que se tratava, co-
dos intelectuais franceses contemporâ- para pensar essas questões. mo um tema político maior. Por quê?
neos mais traduzidos no exterior. Além Porque ainda não estamos habituados
de suas originais investigações teóri- l O senhor acompanhou as manifes- a considerar — e aqui outra diferença
cas, também se aventurou no terreno tações de rua no Brasil neste ano que entre “ecologizar” e “modernizar” —
das artes (com as exposições “Icono- passou? que as questões de meio ambiente e da
clash” e “Making things public”) e, em É uma das razões pelas quais o Brasil natureza são questões de conflito, e não
outubro, estreou a peça “Gaïa Global é interessante, porque há ao mesmo questões que vão nos colocar em acor-
Circus”, uma “tragicomédia climática”, tempo um dinamismo de invenção po- do. Vocês têm isso no Brasil em relação
que ele espera um dia poder encenar lítica, ligado a outros dinamismos rela- à Floresta Amazônica. Não é porque se
no Jardim Botânico, no Rio. Professor cionados às ciências, às artes. Há um diz “vamos salvar a Floresta Amazôni-
do Instituto de Estudos Políticos de Pa- potencial no Brasil. E há, hoje, uma ri- ca” que todo mundo vai estar de acor-
ris (Sciences-Po), lançou ainda este queza. Não são temas que se pode do. Há muita discordância. E isso é
ano o ensaio “Enquête sur les modes abordar em uma situação de miséria. É muito complicado de entender na
d’existence — Une anthropologie des preciso algo que se pareça ao bem-es- mentalidade do que é uma negociação.
Modernes” (Investigação sobre os mo- tar. Na Índia, se você tem um milhão de
dos de existência – uma antropologia pessoas morrendo de fome não pode l Poderá haver avanços em 2015?
dos Modernos, ed. La Découverte). fazer muito. O Brasil é hoje muito im- Uma das hipóteses que faço para
portante para a civilização mundial. 2015 é a de que é preciso acentuar o ca-
l Qual a diferença entre “ecologizar” ráter conflituoso antes de entrar em ne-
e “modernizar”, segundo seu pensa- Clima. Bruno Latour participará de colóquio sobre o tema no Rio de Janeiro, em 2014 l Os partidos ecologistas, na sua opi- gociações. Não começar pela reparti-
mento? nião, não souberam assimilar estas ção das tarefas, mas admitindo que se
Modernizar é o argumento que diz l Qual é a situação e o papel do Brasil questões? está em conflito nas questões da natu-
que quanto mais nós separamos as neste contexto? Nenhum partido ecologista conse- reza. Os ecologistas têm um pouco a
questões de natureza e de política, me- Penso que deve haver uma verdadei- guiu manter uma prática. A ecologia se ideia de que no momento em que se fa-
lhor será. Ecologizar é dizer: já que, de ra revolução ecológica, não somente no tornou um domínio, enquanto é uma la de natureza e de fatos científicos as
fato, não separamos tudo isso, já que a sentido de natureza, e o Brasil é um ator outra forma de tudo fazer. A ecologia se pessoas vão se alinhar. Acham que se
História recente dos humanos na Terra importante. A esperança do mundo re- viu encerrada em um tema, e não é vis- falar que o atum está desaparecendo os
foi o embaraçamento cada vez mais im-
portante das questões de natureza e de
“Brasil e Índia são pousa muito sobre o Brasil, país com
uma enormidade de reservas e de re-
ta como uma outra forma de fazer polí-
tica. É uma posição bastante difícil. É
pescadores vão começar a parar de ma-
tá-los. Sabe-se há muito tempo que é
sociedade, se é isso que fazemos na
prática, então que construamos a polí-
os dois países nos cursos. Se fala muito do movimento da
civilização na direção da Ásia, o que
preciso ao mesmo tempo uma posição
revolucionária, pois significa modificar
exatamente o contrário, eles vão rapi-
damente em busca do último atum. A
tica que lhe corresponda em vez de fa-
zer de conta que há uma história sub-
quais podemos não faz muito sentido do ponto de vista
ecológico, pois quando se vai a estes
o conjunto dos elementos do sistema
de produção. Mas é modificar no nível
minha hipótese para 2015 é que se deve
tornar visíveis estes conflitos. O que co-
terrânea, aquela das associações, e
uma história oficial, que é a de emanci-
imaginar inovações países se vê a devastação. Não se pode
imaginar uma civilização ecológica
do detalhe de interconexão de redes
técnico-sociais, para as quais não há
loca vários problemas de teoria políti-
ca, de ecologia, de representação, de
pação dos limites da natureza. Ecologi- de civilização, e não vindo da Ásia. No Brasil — e também tradição política. Sabemos o que é ima- geografia etc. Talvez 2015 já seja um
zar é um verbo como modernizar, exce- na Índia — há um pensamento, não ginar a revolução sem fazê-la, adminis- fracasso como foi 2009. Mas é interes-
to que se trata da prática e não somente simplesmente fazer simplesmente a força nua, num país trar situações estabelecidas melhoran- sante tentar, talvez seja nossa última
da teoria. Mas pode-se dizer “moderni-
dade reflexiva” ou utilizar outros ter- desenvolvimento em que os problemas ecológicos são
colocados em grande escala. Há um
do-as, modernizar livrando-se de coi-
sas do passado, mas não sabemos o que
chance. Tenho muitas ideias. Faremos
um colóquio no Rio de Janeiro em se-
mos. O importante é que haja uma al-
ternativa a modernizar, que não seja ar- sustentável ou verdadeiro pensamento e uma verda-
deira arte, o que é muito importante. Se
é criar um novo sistema de produção
inovador, que obriga a tudo mudar, co-
tembro de 2014, organizado por Eduar-
do Viveiros de Castro, sobre isso. De-
caica, reacionária. Que seja progressis-
ta, mas de uma outra forma, não mo- reciclagem de lixo.” fosse me aposentar, pensaria no Brasil.
Brasil e Índia são os dois países nos
mo numa revolução, mas assimilando
cada vez mais elementos que estão in-
pois faremos um outro, em Toulouse,
para testar os modelos de negociação.
dernista. Um problema complicado quais podemos imaginar verdadeiras terconectados. Não há uma tradição Em 2015 faremos um outro aqui na Sci-
hoje, sobretudo no Brasil. Mas é com- BRUNO LATOUR inovações de civilização, e não simples- política para isso. Não é o socialismo, o ences-Po. A ideia é encontrar alternati-
plicado por todo o lado, na França tam- Antropólogo e filósofo francês mente fazer desenvolvimento sustentá- liberalismo. E é preciso reconhecer que vas no debate sobre conflitos de mun-
bém. Qualquer dúvida sobre a moder- vel ou reciclagem de lixo. Podem mos- os partidos verdes, seja na Alemanha, do. Não é uma questão das pessoas que
nização, se diz que é preciso estancar a trar ao resto do mundo o que a Europa na França, nos EUA não fizeram o tra- são a favor do carvão, os que são contra
frente pioneira, decrescer, voltar ao acreditou por muito tempo poder fazer. balho de reflexão intelectual necessá- os “climacéticos” etc. Não é a mesma
passado. Isso é impossível. É preciso A Europa ainda poderá colaborar com ria. Como os socialistas, no século XIX, conexão, não é a mesma ciência, não é
inovar, descobrir novas formas, e isso seu grão de areia, mas não poderá mais refizeram toda a filosofia, seja marxista a mesma confiança na política. São
se parece com a modernização. Mas é inovar muito em termos de construir ou socialista tradicional, libertária, nas conflitos antropocêntricos. Interessan-
uma modernização que aceita seu pas- um quadro de vida, porque em parte já relações com a ciência, na reinvenção te que as pessoas que assistiram à mi-
sado. E o passado foi uma mistura cada o fez, com cidades ligadas por autoes- da economia. Há uma espécie de ideia nha peça de teatro ficaram contentes
vez mais intensa entre os produtos quí- tradas, com belas paisagens e belos de que a questão ecológica era local, e em ver os conflitos. Na ecologia se faz
micos, as florestas, os peixes, etc. Isso é museus. Já está feito. Mas numa pers- que se podia servir do que chamamos muita pedagogia, se diz como se deve
“ecologizar”. É a instituição da prática e pectiva de inventar novas modas e no- de filosofia da ecologia, que é uma filo- fazer para salvar a Floresta Amazônica.
não da teoria. vas formas de existência que nada têm sofia da natureza, muito impregnada Mas não se fala muito de conflitos. l

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