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REVISTA DA ACADEMIA SERGIPANA DE LETRAS

O Homem Medíocre

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Marcos Almeida*

Quase tudo já se falou sobre os gênios, as pessoas realmente


extraordinárias, os talentos excepcionais. Muito se sabe sobre retardo
mental e imbecilidade. Entretanto, poucos pesquisadores abordaram
com profundidade a questão do ser humano medíocre, aqui não
entendido de modo depreciativo, mas como o indivíduo que se situa
entre essas díspares fronteiras: de hábito conservador, irreflexivo,
contrário às inovações e quebras de paradigmas, prefere nortear-
se, sobretudo, pelo senso comum, que é coletivo, eminentemente
retrógrado e dogmático.
Se olharmos do ponto de vista estatístico, a carência de estudos
acerca desse subgrupo é injustificável. Afinal, raros são os extremos
do intelecto (genialidade e estupidez), em contraste com a esmagadora
maioria restante. E isso não é recente, pois o filósofo Cícero já
reclamava, há 2000 anos, que todas as coisas se encontram repletas
de tolos (“stultorum plena sunt omnia”). Nem também pode se dizer
que esse axioma foi ultrapassado na contemporaneidade, haja vista a
declaração peremptória de Popper: a parcela mais representativa dos
seres humanos possui uma “frágil dotação intelectual”.
Em linhas gerais, temos explicitada a perspectiva que levaria
um singular intelectual argentino a escrever uma das únicas
obras sobre o tema, cujo título é o mesmo deste artigo. Médico,
psiquiatra, catedrático, homem de vasta cultura, José Ingenieros
(1887-1925) se dedicou com igual afinco à pesquisa sociológica,
filosófica e psicológica.
Em “O Homem Medíocre”, seguindo a tradição dos grandes
estudiosos de costumes – os “moralistas” – que remonta a Plutarco
(sem falar em Platão e Aristóteles), entre outros “antigos” e alcança La
Rochefoucauld (não sem perpassar La Bruyere, De Maistre, La Boetie
etc.), Ingenieros teve em mente a titânica tarefa de cotejar o “status quo”
com um lado negligenciado da psicologia do caráter: a mediocridade.
Conforme o próprio autor fez questão de sublinhar, ele que viveu de
acordo com os mais altivos princípios estoicos, tendo renunciado a todo
tipo de privilégios e honrarias vãs, “só uns poucos moralistas poderiam
escrever o mesmo livro sem que tremessem as mãos”.
Decerto, Ingenieros se inspirou em teorias evolucionistas em
moda à época (1913), e logrou costurá-las ao cabedal filosófico da
civilização ocidental, mesclando-as habilmente com o pensamento de
Nietzsche, que, por sinal, era contrário ao darwinismo. Não bastasse
o tema insólito de sua pesquisa, este é mais um mérito a seu favor.
Mas de que trata, afinal, o livro? Em poucas palavras, visa
radiografar o “modus cogitandi” de pessoas que, simplesmente, se
mantêm indiferentes a assuntos que envolvam a aventura intelectual
de decifrar os mistérios do universo ou debater sobre a condição

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Ocupante da cadeira de nº 40 da ASL

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humana. Sensualistas, a experiência do mundo conforme lhes chega


aos olhos, ouvidos, narinas e boca já lhes satisfaz por completo.
“Revoluções” conceituais não lhes encantam: os nomes
Botticelli, Shakespeare, Cervantes, Galileu e Einstein sequer lhes
produzem o mais tênue palpitar na atualidade, talvez até certo
alívio, que seja, pois já se encontram devidamente incorporados
ao “establishment”. Domesticados, esses próceres não mais
oferecem incertezas ou ameaças de rupturas com as tradições. Se
algo de transformador trouxeram, é coisa do passado. Se detalhes
inquietantes ainda poderiam ser identificados em suas obras, basta
simplesmente omiti-los.
A rotina, “esqueleto fóssil” de descobertas anteriores, ou
ainda, “caricatura da experiência” os deleita: “em sua órbita giram
os espíritos medíocres. Evitam sair dela e atravessar espaços novos;
repetem que é preferível o mal conhecido do que o bem a ser conhecido.
Ocupados em aproveitar o que existe, têm horror a toda inovação que
perturbar sua tranquilidade e lhes trouxer desassossego. As ciências,
o heroísmo, a originalidade, os inventos, a própria virtude, parecem
instrumentos do mal [...]”.
A fortaleza do homem medíocre, portanto, reside na
indiferenciação da maioria. “Considerada individualmente,
a mediocridade poderá ser definida como uma ausência de
características pessoais que permitam distinguir o indivíduo em
sua sociedade”. Preferindo comodamente raciocinar por intermédio
da lógica dos outros, “disciplinados pelo desejo alheio, encerram-
se em seu ficheiro social e catalogam-se como recrutas nas filas de
um regimento. São dóceis à pressão do conjunto, maleáveis sob o
peso da opinião pública que os amolda como um bom ceramista.
Reduzidos a simples sombras, vivem da opinião alheia; ignoram a si
mesmos, limitando-se a acreditar no que os outros acreditam [...].
Sua incapacidade de meditar acaba convencendo-os de que não há
problemas difíceis e qualquer reflexão lhes parece um sarcasmo”.
E como a única maneira de não errar seria não pensar,
Ingenieros vislumbra a caixa cerebral do homem rotineiro como
um estojo vazio, onde a cabeça seria mero adorno do corpo: “seus
cérebros são casas de hospedagem, mas sem dono; os outros pensam
por eles, que no íntimo agradecem esse favor. Onde não houver
preconceitos definitivamente consolidados, os rotineiros carecem de
opinião”. Para estes, pontua o autor da obra, “a leitura produz efeitos
de envenenamento” e “a originalidade no pensar produz calafrios”.
A solução que permite manter as aparências no mundo civilizado é
“encher a sua memória com máximas de almanaque e os ressuscitar
de vez em quando, como se fossem sentenças”. Entretanto,
trabalham mal com a ironia, uma vez que ela exige leveza de espírito,
complexidade de concatenações e sutileza nos duplos sentidos.
E posto que jamais se arvoram a firmar compromisso com
algo novo, “podem chegar a sentir a beleza de um manuscrito que
leem, mas não ousam declarar em seu favor até que não tenham
visto seu curso no mundo e escutado a opinião de supostos
competentes; não arriscam seu voto, querem ser arrastados

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pela multidão [...]. A mediocridade intelectual torna o homem


solene, modesto, indeciso e obtuso. Quando a vaidade e a inveja
o envenenam, poderia se dizer que dorme sem sonhar. Passeia
sua vida pelas planícies; evita olhar do alto das montanhas que
os videntes escalam e debruçar-se aos precipícios que os eleitos
sondam. Vive entre as engrenagens da rotina”.
Capazes de renegar a verdade e a virtude se elas demonstrarem
o erro de seus preconceitos, costumam tornar-se intolerantes ao
pressentirem em toda nova ideia um perigo: “sua escassa cultura
condena-os a ser assim. Defendem o que é anacrônico e o que é
absurdo, não permitem que suas opiniões sejam censuradas pela
experiência. Chamam de herege aquele que busca uma verdade ou
persegue um ideal”. Por outro lado, é sabido que “a tolerância das
ideias alheias é a virtude dos que pensam”.
Para Ingenieros, os não criativos “rotineiros” possuem forte
inclinação à hipocrisia e maledicência. “Os piores são aqueles que
maldizem elogiando: afinam seu aplauso com reservas mais graves
que as piores acusações. Essa baixeza no pensar é uma maneira
insidiosa de praticar o mal, de efetuá-lo potencialmente, sem o valor
da ação retilínea. [...] Disfarça-se de condolência discreta o ódio de
sua inferioridade humilhada. O maledicente nada teme ao semear
seus artifícios sujos; sabe que tem atrás dele um numeroso enxame
de cúmplices contentes cada vez que um espírito omisso articula
com eles contra uma estrela [...] Poder-se-ia dizer que mancham a
reputação alheia para diminuir o contraste com a sua própria”. Isso
faz imaginar a risível situação do pescador que, tendo fisgado um
tubarão de três metros e meio, ouve do interlocutor: que pena, mais
alguns centímetros e você bateria o recorde, apesar de seu peixe estar
com a cauda levemente lesada. Tivessem lido atentamente “O Velho
e o Mar” de Hemingway, entenderiam em que consiste a virtude de
uma pesca singular.
Ao lerem livros, o gênio literário possuidor de estilo inconfundível
lhes é perturbador: “aborrecem-se com os escritores que deixam rastro
onde põem a mão, denunciando uma personalidade em cada frase,
principalmente se tentam subordinar o estilo das ideias; preferem as
desbotadas elucubrações dos autores estéreis, isentas das arestas
que dão relevo a toda forma e cujo mérito consiste em transfigurar
vulgaridades mediante adjetivos ocos”. Não é à toa, portanto, o
rasante patamar do que hoje “qualitativamente” se lê...
Engana-se, porém, quem pensa que Ingenieros propõe uma
sociedade desprovida de elementos medíocres. Bem ao contrário,
eles são reconhecidamente necessários ao equilíbrio social, uma vez
que se transformam, de certa forma, em protetores do conhecimento
até então acumulado. Resistindo às mudanças, “desempenham na
história humana o mesmo papel que a herança tem na evolução
biológica: conservam e transmitem as variações úteis para a
continuidade do grupo social”.
Se confrontados os indivíduos “criativos” ou idealistas versus
os rotineiros, Ingenieros acredita que o resultado é auspicioso:
“complementam-se na evolução social, ainda que se olhem tortos.

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Se os primeiros fazem mais pelo futuro, os segundos interpretam


melhor o passado. A evolução de uma sociedade, estimulada pelo
afã de perfeição e contida por tradições dificilmente removíveis, se
deteria para sempre sem aqueles e sofreria sobressaltos bruscos
sem esses”. Apropriada, a interessante metáfora do veleiro, onde os
idealistas representam a energia de içar velas, inflá-las e deixar-se
levar mar adentro, e a mediocridade se traduziria pela resistência dos
ventos: “o progresso humano é o resultado desse contraste perpétuo
entre a massa inerte e a energia propulsora”.
Finalizando, e independente da veracidade de suas reflexões,
o livro “O Homem Medíocre” é com efeito surpreendente, por pelo
menos três motivos. O primeiro, por tratar-se de tema rarissimamente
abordado em toda a história da filosofia. O segundo, devido colimar o
ponto de vista de pesquisador latino-americano possuidor de imensa
cultura, o que envaidece a todos nós que habitamos o Terceiro
Mundo. O terceiro motivo, e não menos importante, decorre do fato
de simbolizar autêntico desejo de “ressureição” de subtipo de filosofia
que outrora trouxe a lume emblemáticos “moralistas”, os quais por
sua vez inspiraram diversas correntes filosóficas. Raros foram os
filósofos da pós-modernidade que ficaram alheios a tudo isso.
Certamente, para os que não se habituaram ao estilo direto e
sem firulas inerente ao gênero, assim como à franqueza e assertividade
desses “psicólogos avant la lettre”, a experiência de ler uma matéria
“moral” pode configurar-se em empresa impactante, ou, em alguns
casos, até decepcionar. Deveras, nunca seria demais lembrar que
não se trata de concordar absolutamente com Ingenieros. Eu mesmo
discordo em certos pontos!
Não obstante, a obra nos instiga a pensar, e muito. Ela nos
remete a outra maneira de refletir sobre questões humanas, e resgata
um panorama filosófico praticamente extinto nos meios acadêmicos.
No prólogo do livro, já se anunciava que teríamos matéria que se
afasta, em termos de discurso e estilo literário, da disciplina científica
hodierna. Quem ler Plutarco, Epicteto, Sêneca ou Cícero reconhece o
quanto hoje nos distinguimos da antiguidade em termos de estruturas
narrativas. Mas isso é apenas divergência de forma, e não invalida o
conteúdo, em ambos os casos.
Ao fim e ao cabo, a leitura de “O Homem Medíocre” parece
demonstrar, queiramos ou não, que, se consideramos valoroso que
Bobbio e Gramsci (entre outros) realizem seminais pesquisas sobre
importantes instâncias da intelectualidade, por que não o seria de
igual modo para pensadores que optem por uma ligeira alteração de
escopo, e resolvam nos brindar com reflexões sobre a mediocridade,
se ela de fato faz parte das características humanas?
Mas o postulado de um conhecimento sem limites ou
preconceitos, grosso modo, já havia sido apregoado pelo dramaturgo
Terêncio há 22 séculos, numa sentença que se tornou lapidar: “sou
um ser humano e nada do que é humano me é estranho”.

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