QUESTÕES SOBRE A (SEMI)FORMAÇÃO ESTÉTICO-CINEMATOGRÁFICA DE PROFESSORES
Helga Caroline Peres – Universidade Federal de São Carlos/UFSCar
(Programa de Pós-graduação em Educação) helgacperes@gmail.com
Eixo temático: Políticas e Práticas no Ensino Fundamental.
Categoria: comunicação oral.
RESUMO
Objetivamos, no presente trabalho, problematizar a reprodução de filmes no
âmbito das práticas escolares do Ensino Fundamental I, a partir da compreensão da forma com que professores que atuam neste segmento escolar percebem, organizam e se relacionam com o objeto em questão. Antevemos a existência de uma didática do filme, que é inerente e intrínseca à intenção depositada no filme no momento de sua produção; tal didática se diferencia da didática puramente escolar, que se preocupa em atribuir aos filmes o caráter extrínseco de objeto didático, enquanto recurso de apoio aos conteúdos escolares. Para que a didática fílmica seja trazida à tona, é necessário desvelar o caráter contraditório dos filmes – pois ao mesmo tempo em que obliteram a reflexão autônoma por integrar o âmbito das mercadorias da indústria cultural, eles podem vir a integrar o campo da arte, que fundamenta a reflexão crítica. Através de entrevistas semi-estruturadas realizadas com professores do Ensino Fundamental I, buscamos compreender os parâmetros através dos quais o filme é inserido no âmbito escolar; esta análise nos mostrou que a principal tendência naquilo que se refere à apropriação dos filmes na escola reflete o utilitarismo característico da didática escolar moderna, bem como a urgência de que a formação docente abrace uma perspectiva teórico-crítica que se direcione à experiência estética e ao rompimento com o padrão semiformativo da estética cinematográfica hegemônica. Palavras-chave: didática do filme; indústria cultural; formação estética de professores.
1. INTRODUÇÃO
O cinema nasceu como uma forma de registro procedente da aliança
entre arte e ciência e, através dos filmes, veicula um tipo de linguagem que lhe é peculiar. Desde então, é possível compreendê-lo enquanto uma instância formativa que “[...] inaugurou um novo tipo de educação dos sentidos, visto que as pessoas não estavam habituadas à imagem em movimento” (LOUREIRO, 2
1996, p. 40). É possível, deste modo, entende-lo enquanto promotor de um tipo
de formação que acontece por intermédio da vivência e da experiência estética, e que fomenta a edificação não só de valores, crenças e juízos de gosto, mas também da sensibilidade. Já na década de 1920 a educação formal buscou nos filmes uma maneira de tornar o processo de aprendizagem mais atraente; defensores das propostas escolanovistas propuseram, a partir daí, a produção de um cinema educativo, ondem filmes seriam produzidos especificamente para o fim escolar e poderiam, então, ser utilizados como recurso pedagógico. Contemporaneamente, diferente da produção direcionada especificamente para fins escolares, os filmes que adentram a sala de aula possuem formas diversificadas – isto em consonância com as novas diretrizes educacionais que apontam que os mais diversos aparatos audiovisuais tenham lugar cativo em um modelo educacional adequado às tendências imagéticas que se apresentam como nova lei hegemônica. Objetivamos, neste trabalho, apresentar parte da discussão realizada no trabalho de mestrado intitulado “Entre choques, cortes e fissuras – a (semi)formação estética: uma análise crítica da apropriação de filmes na educação escolar” (PERES, 2016), que teve como principal intento problematizar a apropriação e reprodução de filmes no âmbito da educação escolar. Defendemos a hipótese de que, na contramão das principais tendências que dão vazão à utilização dos filmes enquanto recurso pedagógico voltado para a ilustração dos conteúdos escolares, há uma didática do filme que pode vir a potencializar um processo de reeducação de nossos sentidos já sorvidos pelos produtos da indústria cultural. Tal didática diferencia-se da didática escolar moderna que o qualifica enquanto mero recurso. Cogitamos que o caráter contraditório do cinema, desvelado por Theodor W. Adorno (1985; 1991; 1994), pode vir a exprimir não apenas um tipo de reflexão voltada para a compreensão e contestação do caráter ideológico dos produtos da indústria cultural, mas também para a experiência estética propiciada pelos filmes que têm a pretensão de integrar o âmbito da arte autônoma. Segundo Loureiro, “há na recepção do filme fissuras que, apesar de limitadas e pressionadas pela lógica da mercadoria, podem, por exemplo, ser potencializadas por uma reeducação dos sentidos” (2006, p. 178). 3
A partir da análise da forma com que professores do Ensino
Fundamental I planejam a utilizam dos filmes em suas aulas (PERES, 2016), foi possível perceber que, nas práticas escolares rotineiras, a intervenção intencional do docente cai por terra frente aos contrassensos que demarcam o panorama semiformativo no qual as instituições educativas e os sujeitos encontram-se mergulhados. Tal colocação delineia o caráter da própria didática escolar que, em essência, legitima a semiformação (ADORNO, 2010), em oposição à experiência estética que pode ser propiciada pela reflexão crítica circunscrita à linguagem cinematográfica.
2. METODOLOGIA
A opção metodológica escolhida foi a pesquisa qualitativa, através da
realização de entrevistas semi-estruturadas individuais com quatorze professores oriundos de quatro escolas de uma cidade do interior do Estado de São Paulo, para que através destas fosse possível a construção de um corpus consistente que nos permitisse analisar aquilo que havia de imanente em suas falas; para além do comportamento manifesto, é necessário buscar as conexões entre o todo e as partes, para que a relação entre universal e particular seja analisada de forma dialética (PERES, 2016, p. 135). Para subsidiar a reflexão fundamental em nossa análise, buscamos nas produções fundamentadas na tradição da Teoria Crítica da Sociedade o apoio para compreender os dados obtidos através da pesquisa empírica.
3. RESULTADOS E DISCUSSÃO
A partir da análise das falas dos professores entrevistados,
percebemos que a funcionalidade do filme na educação escolar, quando associado aos conteúdos escolares, é ligada à possibilidade de propiciar uma ilustração daquilo que é ensinado – função que acaba por limitar a elaboração das representações e dos conceitos propriamente ditos. Em alguns casos, ainda, os filmes são associados a momentos de lazer que, aos moldes daquilo que ocorre na formação social – o tempo livre propriamente dito –, são 4
marcados pela diversão e pelo entretenimento, sendo estes fundamentais para
a manutenção da indústria cultural. Ao passo que a mercantilização da prática pedagógica torna-se cada vez mais vinculada aos parâmetros da indústria cultural, aquilo que é entendido como didático é apartado de uma real intenção formativa, passando a ter como pressuposto a facilitação dos conteúdos: “Aprender por meio de um tempero mais saboroso” é a definição de Gruschka (2008, p. 180) para aquilo que possui centralidade na didática moderna – os meios. Em detrimento de uma experiência autêntica com os conteúdos escolares e, pensando mais a fundo, com os filmes e a linguagem cinematográfica, há uma relação funcional na qual a reflexão crítica, de fato, é deixada de lado. Deste modo, o cinema e a linguagem cinematográfica não adentram as salas de aula do Ensino Fundamental I; o uso de filmes, neste segmento, é marcado por uma didática pragmática e utilitária, que se restringe ao aproveitamento do conteúdo das narrativas fílmicas e das mensagens veiculadas pelo filme e, articulada a uma concepção pedagógica adaptativa, acaba por formatar de forma apriorística a compreensão dos filmes que são exibidos. Percebe-se que o espaço para uma pedagogia voltada para a significação das visualidades, em sentido amplo, e dos filmes, de modo restrito, é claramente ínfimo – se não inexistente. Outro aspecto delineado nas falas dos professores participantes circunscreve a experiência estética com o cinema. Esta não encontra lugar nos relatos dos professores entrevistados; nota-se, primeiramente, que o arcabouço cinematográfico – em outras palavras, o repertório de filmes que os professores reconhecem como bons ou ruins e com os quais possuem proximidade – é fomentado, quase de forma exclusiva, pelos produtos fílmicos produzidos pela grande indústria cinematográfica hollywoodiana, expressão das ideologias da indústria cultural. Não encontramos em nenhuma fala a presença de estéticas fílmicas alternativas à estética fílmica mainstream. Esse fator é agravado, ainda, pela fusão dos filmes à televisão comercial, que, nos tempos hodiernos, mostra-se como um dos principais suportes para a veiculação de mensagens de cunho ideológico. Aquilo que marca a experiência dos professores com o cinema denota uma leitura unívoca e superficial dos filmes; segundo Adorno (1970), os 5
indivíduos que detém uma formação cultural considerada empobrecida
dificilmente levarão em conta o caráter enigmático das obras de arte. Isso exprime uma relação extrínseca com a arte e, nos termos desta pesquisa, com o cinema. O caráter semiformativo da relação estabelecida com o cinema reside na necrose da autêntica experiência estética, visto que a apreensão sensível é marcada pelos esquemas da indústria cultural – que utiliza a oferta de produtos que se mostram sempre os mesmos, perpetuando uma situação de heteronomia que não é percebida como tal. Tem-se, aí, uma educação estética para o mercado: “A mercantilização da cultura, o monstruoso desenvolvimento da técnica, a miséria da vida humana levaram os indivíduos a substituírem a experiência pela vivência, o passado pelo amanhã, o ‘inútil’ (a formação) pelo ‘funcional’ (a semiformação)” (PUCCI, 2007, p. 46). Entendemos que este aspecto da semiformação não se restringe à formação social, onde o professor – enquanto sujeito – também é semiformado; ela se estende ainda à formação docente, que deixa de abordar a arte, em geral, e o cinema, em particular, sob o escrutínio da crítica. Daí a necessidade de uma tomada de posição decisiva no que tange à relação dos sujeitos com a linguagem cinematográfica, fundamentada em um processo de reeducação do olhar. Quando os professores entrevistados relegam ao segundo plano a própria experiência estética, entendemos que se trata de um reflexo – ou até mesmo uma consequência – da privação de um saber estético que envolve a crítica a partir dos conhecimentos fundamentados dos mecanismos que intensificam a semiformação. Por isso, de acordo com Loureiro (2006), afirmamos que “[...] a educação estética que se compromete com a negatividade em face da realidade social parece essencial na composição de uma agenda de lutas e reivindicações da própria formação docente” (p. 262). A esfera da sensibilidade é um aspecto relevante do saber docente; se tal esfera é mediada pelos produtos veiculados pela indústria cultural, disseminados por uma mídia massiva, ela expressa uma formação inicial e continuada ineficiente, agravada pela inserção precária ou pela falta de inserção na vida cultural: “[...] quanto maior o repertório cultural do professorado, mais numerosas e apropriadas serão as escolhas possíveis para 6
que este medeie a construção dos conhecimentos escolares” (ALMEIDA, 2010,
p. 19). Ao lançarmos mão dos relatos dos professores percebemos que, ao contrário de uma relação pautada na apreciação e na reflexão crítica que pode trazer à tona a tensão constitutiva do cinema, feito que caracteriza a didática fílmica, vemos que a relação dos sujeitos com este aparato restringe-se ao aproveitamento das mensagens veiculadas pelos filmes – fato que nos mostra uma relação cristalizada dentro dos moldes identificados por Adorno e Horkheimer, quando afirmam ser o cinema, enquanto produto da indústria cultural, responsável por habilitar o espectador em direção ao pensamento reificado. Para que as escolas de Educação Básica – instituições socializadoras do saber elaborado – se ocupem da promoção de experiências estéticas, bem como de uma pedagogia das visualidades (GRUSCHKA, 2015) em direção à reeducação dos sentidos, é fundamental que a formação do professor abrace uma perspectiva crítica que tematize a estética e a linguagem cinematográfica de modo amplo e fundamentado, contestando o caráter da relação estabelecida com os aparatos audiovisuais no âmbito da formação social. No entanto, é válido questionar: haveria espaço para a reeducação estética em um contexto de precarização e adequação da formação docente aos parâmetros imputados por políticas voltadas para a subsunção da educação à economia? Seria possível, neste contexto, uma educação estética envolvida com a resistência, pautada na desconstrução das formas já cristalizadas de se relacionar com o cinema e com os aparatos audiovisuais?
4. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Quando lançamos mão da possibilidade de os filmes possuírem um
sentido formativo ligado às suas formas produtivas – em outras palavras, a didática do filme –, cogitamos que seu caráter contraditório, identificado por Adorno (1994), poderia exprimir não apenas um tipo de reflexão voltada para a compreensão e contestação do caráter ideológico dos produtos da indústria cultural, mas também para a experiência estética propiciada pelos filmes que 7
têm a pretensão de integrar o âmbito da arte autônoma – existindo, aí, uma
possível reeducação do olhar. Segundo Loureiro (2006), para que a reeducação dos sentidos, de fato, seja compreendida pelo âmbito da formação escolar, é necessária uma intervenção intencional, “[...] para um projeto que vise abalar o padrão ético e estético dominante no campo artístico-cultural, de forma geral, e do cinema, em particular” (p. 261). No entanto, quando nos deparamos com as falas dos professores, percebemos que esta possibilidade cai por terra frente aos contrassensos que demarcam o panorama semiformativo no qual estamos mergulhados. Temos, para esta pesquisa, que a ampliação do leque da experiência fílmica em direção àquelas cinematografias que contestam o caráter da produção hegemônica e sua estética agradável e familiar aos olhos é um importante elemento para que o processo de reeducação do olhar ocorra. O domínio dessas cinematografias é vasto: desde os cinemas nacionais que se esforçam para colocar em voga um tipo de produção que se diferencie daquela que é amplamente veiculada e os movimentos denominados Novo Cinema, cuja insurgência ocorreu na década de 1960, até o cinema experimental, que busca produzir obras que caminhem na contramão daquilo que é massivamente produzido pela grande indústria hollywoodiana. A experiência com estas estéticas que defendem um modelo produtivo aos moldes do cinema de autor pode vir a constituir um elemento fundamental para a desformatação tão necessária a um projeto de formação social e de formação docente que vise abalar os padrões estéticos já formalizados. O filósofo Jacques Rancière afirma que “A emancipação do espectador é a afirmação de ver o que vê e de saber o que pensar e fazer a respeito” (2012, p. 13). Tal colocação é o que nos provocou a refletir sobre a temática em questão. Quando defendemos a possibilidade de que a experiência estética com o cinema pode vir a constituir um projeto de contestação – especialmente no âmbito da educação escolar e da formação docente –, endossamos seu intrínseco sentido formativo de individualidades, sensibilidade, e, acima de tudo, de um olhar crítico em relação ao papel exercido pelos mecanismos da indústria cultural, que legitima o estado de menoridade dos sujeitos. Esperamos que a análise aqui realizada possa contribuir, minimamente, para 8
que as intervenções e reflexões dos professores do ensino fundamental
tenham como norte uma perspectiva autenticamente formativa, especialmente para que os entraves que nos tomam a visão tornem-se objeto de reflexão crítica.
REFERÊNCIAS
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Industry: selected ensays on mass culture. London: Routledge, 1991, p. 136-153.
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____________. Teoria Estética (Trad. Artur Mourão). São Paulo: Martins
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Guido Antônio de Almeida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editora, 1985.
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A.; VAZ, A.F. (Orgs.) A indústria cultural hoje. São Paulo: Boitempo, 2008.
________________. Criadores de imagens: do reconhecimento visual à
comunicação visual através da pintura renascentista e pós-renascentista. In: MAIA, A.F.; LASTÓRIA, L.A.C.N.; ZUIN, A.A.S. Teoria Crítica da Cultura Digital: aspectos educacionais e psicológicos. SP: Nankin, 2015, p. 63-79.
LOUREIRO, R. Da Teoria Crítica de Adorno ao Cinema Crítico de Kluge:
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PERES, H. C. Entre choques, cortes e fissuras – a (semi)formação
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PUCCI, B. O enfraquecimento da experiência na sala de aula. Piracicaba:
Pro-posições, v. 18, n. 1 (52) - jan./abr. 2007, p. 41-50.
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