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Tema Livre

doi: 10.5212/Uniletras.v.35i1.0010

A Semântica das Preposições nas Gramáticas


Tradicionais em Língua Portuguesa

The Semantic of Prepositions in Tradional


Portuguese Grammars
Ednei de Souza Leal*

Resumo: O que pretendemos neste artigo é mapear as intuições produzidas


em gramáticas tradicionais que se aproximam da noção de primitivos semânticos
postulado na segunda metade do século XX. Juntamente com isso, procuramos
desmistificar o discurso corrente de que as chamadas gramáticas tradicionais
são meras repetições seculares. Ao contrário do próprio discurso normativista,
o qual postula que a preposição não contém significado independente, algumas
gramáticas fazem apontamentos bastante originais acerca dessa classe. Nesse
sentido, apontaremos uma incongruência dentro do sistema teórico da gramática
tradicional, qual seja o de que o discurso normativista contradiz o próprio conteúdo
da obra. Ao contrário, em certas obras a descrição da classe das preposições vai até
além daquilo que caberia a um compêndio dessa natureza.
Palavras-chave: Gramáticas tradicionais. Semântica lexical. Historiografia
linguística.

Abstract: Our aim in this article is to map the insights produced in traditional
grammars approaching the notion of semantic primitives postulated in the second
half of the twentieth century. Along with this, we demystify the current discourse
that calls traditional grammars are secular repetitions merely. Unlike the normative
discourse itself, which postulates that the preposition contains no independent
meaning, some grammar notes are quite unique about this class. Accordingly, we
shown out an inconsistency within the theoretical system of traditional grammar,
which is the normative discourse that contradicts the own content of the work.
Unlike in some works the class description of prepositions goes up beyond what
would fit a traditional grammar.
Keywords: Traditional grammars. Lexical semantics. Linguistics historiography.

* Mestrando do programa de pós-graduação da UFPR.. O Autor é bolsista do programa de fomento CAPES/Reuni vincu-
lado a UFPR, sem o qual a confecção deste artigo não seria possível. Email: edsleal79@gmail.com

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Ednei de souza leal

1.Introdução que devemos levar em conta certas noções


das GT’s, menos pela adoção dessas noções
Sistematicamente, desde praticamente
já em sua grande maioria superadas, e
os estudos comparatistas do século XIX,
mais por percebermos de que modo foram
as chamadas gramáticas normativas ou
construídos por meio delas os diversos
Gramáticas Tradicionais (GT / GT’s daqui
modos de pensar a língua até os dias de hoje.
em diante ou quando pertinente) são objeto
Neste trabalho procuraremos fazer
de ataque constante. Essa situação veio a
uma associação um tanto perigosa entre
se agravar ainda mais com a ascensão do
a moderna noção de primitivos semânticos
Estruturalismo no início do século XX.
– que teria surgido pela primeira vez em
Mais recentemente, no chamado pós-
Katz & Postal (1963), na revista Language
estruturalismo, a situação não se reverteu,
– e as diversas e díspares descrições
embora haja vários estudos dedicados à
presentes nas gramáticas tradicionais.
velha Gramática Tradicional: Moura Neves
Para tal, tomaremos para esta análise
(1976); Borges Neto (1998, 2002, 2012),
apenas a classe gramatical denominada
Mattos e Silva (1989), dentre outros.
preposição, mais particularmente as
Não queremos neste artigo fazer lou-
preposições a, em e para. O critério da
vores descabidos à GT; mas por outro lado,
escolha se dá por diversos fatores, um deles
acreditamos que sua contribuição ainda é,
é estatístico. Segundo Kleppa (1993), estas
de certo modo, válida. Isso para além das
três preposições aparecem com maior
classificações das quais ainda hoje nos va-
frequência no português falado no Brasil
lemos, tais como substantivo, verbo, preposição
atualmente (isso segundo dados retirados
etc., mas ainda por toda sua contribuição
do corpus do projeto NURC). Esse dado nos
milenar, seja mesmo para fins de contra-
leva a outra constatação posta em Ilari et al.
ponto às modernas teorias linguísticas que,
(2005), de que tais preposições são as mais
via de regra, surgiram apenas no século XX
gramaticalizadas na língua portuguesa:
– neste particular, a primeira gramática na
tradição ocidental surge muito antes, por Se considerarmos a classe das
volta do século II a.C., a Tékhne Grammatiké preposições como um todo: algumas
preposições, como a, de, com, em e para, se
de Dionísio. Ou, seguindo Borges (2012),
encontram em um estágio mais avançado
para quem a gramática é a primeira teoria
de gramaticalização do que outras.
linguística a qual nos valemos fortemente. Prova disso é que essas preposições mais
Antes de tudo, numa perspectiva gramaticalizadas são encontradas em
historiográfica, devemos ter cautela ao um número substancialmente maior
investigarmos obras ou noções muito de construções sintáticas do que as
distantes no tempo, tomando em outras preposições; apenas elas podem
consideração as possibilidades das quais “realizar tarefas” mais tipicamente
aqueles teóricos/pensadores tinham em gramaticais, como introduzir
mãos. É por essa razão, principalmente, argumentos dos verbos [...] (p. 633/634).

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A semântica das preposições nas gramáticas tradicionais em língua portuguesa

O que procuraremos demonstrar neste 2.2. Método Gramatical para Todas as


trabalho, então, é que a noção – tomada aqui Línguas de Amaro de Roboredo
de maneira intuitiva – de primitivos semânticos Escolhemos essa obra por duas ra-
já estava, de alguma forma, posta em certas zões básicas – na análise, adiante, se verá
GT’s em língua portuguesa aqui estudadas que dela não se tem nenhuma classificação
e que fazem parte de nosso corpus. Por outro semântica – a primeira é sua importância
lado, o que queremos comprovar com isso é histórica. A segunda, dentro de sua longe-
que há uma disparidade entre o discurso nor- va produção, é o fato de ela ter sido editada
mativista da GT e o conteúdo que nela prefi- em 1661 – cinco anos antes da Gramática de
gura. Mais propriamente, o discurso posto, no Port-Royal, portanto – e de ter já tendências
nosso caso, é o de que a classe das preposições racionalistas bastante claras, conforme o
não teria nenhum significado, mas apenas título já prenuncia. Trata-se de uma gramá-
articularia uma espécie de “relação” entre tica “comparativa” entre latim e português.
dois termos. Procuraremos, então, provar o
contrário. Em várias das GT’s aqui estudadas,
2.3. Gramática Portuguesa de Manoel
as quais se tem intuições bastante originais, a Dias de Souza
classe das preposições apresenta um sentido
para além da mera relação que ela promove. Editada originalmente em 1804,
Ainda, muitas dessas noções, construídas de dentre as obras aqui elencadas, talvez seja
maneira intuitiva, se aproximam da moderna a mais obscura. Produzida por um pároco
noção de primitivos semânticos. enclausurado. De tendências bastante
racionalistas, essa obra aguarda ainda
2.O Corpus
estudos mais pormenorizados.
Faço agora aqui um brevíssimo apa-
nhado de nosso corpus, ou seja, das gramá- 2.4. Gramática Filosófica da Língua
ticas analisadas, e tentarei, na medida do Portuguesa de Jerônimo Soares Bar-
possível, justificar minhas escolhas. bosa

Editada postumamente em 1822,


2.1. A Gramática da Linguagem possivelmente produzida entre as últimas
Portuguesa de Fernão de Oliveira.
décadas do século XVIII e a primeira
É tida como a primeira gramática da do século XIX, é a mais bem acabada
língua portuguesa, de 1536. Dela nos va- obra do chamado período racionalista das
lemos mais pelo registro histórico do que gramáticas em língua portuguesa, dada sua
pelas descrições propriamente, embora ob- inventividade e originalidade na descrição
viamente ela tenha seu valor, para além do dos fatos linguísticos. Clássico exemplo de
histórico, como confirma a coletânea Fernão uma gramática “racional” no sentido estrito
de Oliveira, um gramático na história, organi- do termo, isso porque de tradicional ela só
zado pelo professor Carlos Assumpção. mantém as classificações e nada mais.

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2.5. Gênio da Língua Portuguesa de do texto. No entanto, para uma descrição


Francisco Evaristo Leoni mais acertada do português, com vistas
Embora o título e o subtítulo – causas ao português brasileiro, as contribuições
racionais – denunciem uma orientação ra- foram retiradas principalmente dos estudos
cionalista, é inegável nesta obra a influência de Franchi (1991/2002), Ilari et al. (2005),
dos métodos comparatistas alemães, já em Kleppa (1993) e Castilho (2005).
1849, ano de sua edição. Algo que indica isso Ademais, o trabalho é de cunho quali-
é o fato de essa obra tratar apenas das clas- tativo, de apreciação e análise das gramáti-
cas aqui focalizadas.
ses de palavras e, eventualmente, do estudo
da ortografia, da prosódia e do som. Trata-
4.Por que a “intuição” como parâmetro
-se de uma obra bastante extensa, com dois de pesquisa historiográfica e
tomos, cada um dos quais com cerca de 350 filosófica

páginas, ao tratamento de cada uma das


Neste artigo, fizemos o levantamento
classes de palavras (parte do tomo II) é de-
bibliográfico de seis gramáticas tradicionais,
batido a exaustão.
em seus capítulos concernentes à
Preposição. Isso feito, constatamos que,
2.6. Gramática Expositiva de Carlos diferentemente do próprio discurso
Eduardo Pereira
normativista tradicional, para o qual as
Editada originalmente em 1902 – to- preposições não têm significado próprio, em
mamos aqui a 60a Edição, de 1943 – dada sua algumas dessas gramáticas, ao contrário,
qualidade, foi uma das obras gramaticais o critério de classificação é justamente o
mais editadas e reeditadas no Brasil, até o semântico.
final dos anos de 1950, com o surgimento da Em se tratando de gramáticas
Norma Gramatical Brasileira. prescritivas, assumimos que os critérios de
classificação nelas usados são obviamente
3.Métodos Empregados de natureza intuitiva. Ora, segundo Popper,
a moderna ciência se caracteriza por ser
Com base nos estudos da Filosofia da mais dedutiva do que indutiva; ou seja,
Linguística corrente: Borges Neto (2002) parte de uma premissa e dela toma dados
e Katz (1985), principalmente; também e os experimenta para confirmar essas
com base na Historiografia Linguística, de premissas. Aqui, podemos exemplificar
Koerner (1979, 1989, 1991) e Swiggers (2002), o paradigma estruturalista como mais
calcamos a parte histórica e epistemológica intuitivo; e algumas correntes pós-
de investigação deste trabalho. estruturalistas que tomam seus dados
As investigações de ordem semântica intuitivamente como mais dedutivista. E
foram inicialmente baseadas inteiramente não somente com a linguística, mas com
na chamada Semântica Gerativa, de nomes outros diversos ramos da ciência, os dados
já citados ou que serão citados ao longo são a priori tomados intuitivamente,

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quando não, alguns axiomas devem ser aqui investigadas apresentam em seu con-
tomados de maneira intuitiva. De qualquer teúdo noções autenticamente científicas1.
forma, diferentemente do que pretendia Por outro lado, a moderna linguísti-
radical e ingenuamente o postivismo, a ca, corrente de estudos que há mais de cem
ciência nunca se livrará da metafísica, ou anos tenta firmar-se como modelo científi-
seja, sempre partirá, no limite, da pura fé: ca, vale-se desse preceito popperiano2. Veja-
-se, por exemplo, os modelos encetados pela
[...] não existe um método lógico
de conceber ideias novas ou de
chamada Gramática Gerativa Transforma-
reconstruir logicamente esse processo cional. Os dados de análise tomados para
[…] toda a descoberta encerra um fins experimentais partem, em sua maioria,
“elemento irracional” ou “uma da pura intuição dos falantes. Assim, o cri-
intuição criadora” […] e modo similar, tério de boa ou má formação de uma dada
Einstein fala da “busca daquelas leis sentença se faz intuitivamente pelo pesqui-
universais […] com base nas quais é sador linguista, mesmo assim, o paradigma
possível obter, por dedução pura, uma gerativista não deixa de ser válido. Pelo con-
imagem do universo. Não há caminho
trário, a Gramática Gerativa é uma das mais
lógico”, diz ele, “que leva a essas […]
leis. Elas só poderiam ser alcançadas
representativas e respeitadas correntes teó-
por intuição, alicerçada em algo assim ricas da linguística pós-estruturalista da se-
como amor intelectual (Einfühlung) gunda metade do século XX e que perdura
[...]. (A Lógica da Pesquisa Científica, p. nesse início de século.
32 – grifos nossos. No original, Popper Dentro desse paradigma, até então
retira o citado trecho de Einstein de exclusivamente sintático, surge, em meados
Mein Weltbild, 1934) dos anos 1960 uma Semântica de base
Pode-se dizer, então, que boa parte gerativista. Principalmente representada
do trabalho científico é calcado na intui- pelas figuras de Jackendoff, Katz, Postal,
ção. Por outro lado, também não queremos Pustejovski, dentre outros, essa corrente
afirmar que todo conhecimento obtido dos empresta noções da Sintaxe Gerativa para
métodos científicos sejam intuitivos. Muito apresentar seus argumentos a favor de
pelo contrário, o objetivo dos métodos cien- uma Semântica universal. Ora, da mesma
tíficos é o de “limpar” determinadas intui- forma que Chomsky colhe seus dados da
ções ligeiramente observadas; à intuição, no pura intuição dos falantes, com base em sua
entanto, é reservada boa parte do trabalho crença no inatismo da linguagem; também
científico. Dentro dos estudos da lingua- Jackendoff vai dizer que a construção do
gem, por outro lado, nas GT’s o tipo de ob-
tenção de conhecimento, resguardada suas 1
Sobre a pretensa cientificidade da linguística
novecentista, ver A Revolução tecnológica da
devidas proporções, é parecido com aque- Gramatização, de Sylvian Auroux 1992.
les próprios dos métodos científicos. Não 2
Ressalve-se aí que o chamado Estruturalismo, especial-
queremos dizer com isso que as gramáticas mente o de base europeia, era fortemente influenciado
pelos dados coletados, de base indutivista, portanto.

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sentido das sentenças parte de “primitivos”, certo modo, e resguardando as devidas épo-
os quais são também inatos. Da mesma cas e limitações, em algumas das gramáti-
forma dedutiva, Jackendoff vai postular cas tradicionais aqui analisadas.
traços primitivos semânticos que estariam De outro modo, podemos ainda seguir
presentes na mente/cérebro dos falantes: Borges (2012), para quem as noções “impor-
tadas” das GT’s para a moderna linguística
Corresponding to the indefinitely
large variety of syntactic structures, são, na verdade, uma convenção simplifica-
then, there must be an indefinitely dora. Para Borges, então, quando linguistas
large variety of concepts that can be usam noções como advérbio, preposição ou de-
invoked in the production and com- sinência, eles “[...] estão, na verdade, usando
prehension of sentences. It follows a noção tradicional como um meio prático e
that the repertoire of I-concepts ex- operacional de isolar um conjunto de fenô-
pressed by sentences cannot be men- menos linguísticos, sobre o qual recairá sua
tally encoded as a list, but must be
proposta de teorização. A classe tradicional
characterized in terms of a finite set
é apenas protocolar: é um meio de circuns-
of mental primitives and a finite set of
principles of mental combination that crever, de forma neutra, um conjunto de
collectively describe the set of possible fenômenos.” (p. 96). Protocolar, diríamos,
I-concepts expressed by sentences.3 são noções que há muito estão estabelecidas
(Semantics Structures, p. 7-8) – por exemplo, desde as mais remotas gra-
máticas – e que auxiliam os mais modernos
O mesmo Jackendoff vai também de-
a obterem resultados para além dos velhos
fender que os falantes vão distinguir intuiti-
postulados. É nesse sentido também que
vamente os vários usos de uma mesma pala-
procuraremos aqui associar as classifica-
vra – por exemplo as preposições – de forma
ções tradicionais – e intuitivamente semân-
intuitiva. E é neste sentido que procurare-
ticas – de preposições com a moderna noção
mos demonstrar pelas nossas observações
de primitivos semântica.
e análise que o critério intuitivo (ver ILARI
et al. 2005: 633, nota 12) de classificação dos 5. Das preposições: do que se sabe e
primitivos semânticos postulado por Katz & do que se especula
Postal e Jackendoff, já estava presente, de
A palavra preposição vem do latim pre-
positionem e significava “posicionar-se à
frente”, seu significado justamente marca
3
“Se se corresponde a uma variedade infinita de estru-
turas sintáticas deve haver, então, uma variedade infini- sua função ainda hoje. Etimologicamente,
ta de conceitos que podem ser invocados na produção e as três preposições aqui focalizadas têm
compreensão das sentenças. Disso resulta que o repertó-
rio de n-conceitos expressos verbalmente não pode ser
a seguinte derivação latina: a < ad; para (<
mentalmente codificado como uma lista, mas deve ser pera) < per ad e em (< en) < in.
caracterizado em termos de um conjunto finito de prin-
cípios da mente (ou primitivos mentais) e um conjunto
À medida que o latim ia perdendo seus
finito de princípios mentais combinados que descrevem casos, ou seja, quando o material fonético
coletivamente o conjunto de possíveis de n-conceitos ex-
pressos pelas sentenças.”
que marcava a atribuição de caso ia se

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modificando e, assim, não mais deixando entre sintaxe e semântica, por exemplo, não
claras suas marcações semânticas, ganhava precisam ser necessariamente vinculadas.
preposições para substituir esses casos. Para Franchi e Ilari et al. (2005), as relações
Assim também surgem as preposições nas sintaxe/semântica podem de fato acontecer
línguas neolatinas. de modos completamente separados um do
Hoje sabemos que as preposições outro. E é nesse sentido que conduziremos
nosso trabalho, ainda que nos pareça válida
não só articulam dois “termos” para que
a noção de primitivos semânticos.
esses tenham significado, mas que ela
própria possui significado. É claramente
6.1 A vertente gerativista da semântica
diferente o significado da sentença “Estou
disponível para Luíza” de “Estou disponível Tão logo surge como modelo científico,
com Luíza”; ou seja, ambas as sentenças têm que ficou posteriormente conhecido
exatamente a mesma estrutura sintática, a como modelo padrão, com a obra Semantic
mesma disposição de palavras, inclusive as Structures, de Noam Chomsky, o gerativismo
mesmas palavras, exceto a preposição que enfrenta duras críticas com relação à
justamente muda completamente o sentido sua interpretação do sentido das línguas
de toda a sentença. naturais. Posto neste modelo padrão de
1957 a sintaxe como central à língua, ou
6.Uma classificação semântica das seja, estaria a contraparte sintática situada
preposições
numa região abstrata a que foi chamada
Um dos problemas básicos da de estrutura profunda, este modelo relegaria
Semântica é o de relacionar língua e a contraparte semântica a interpretações
mundo, algo que se torna ainda mais difícil lógicas puramente, e ainda em seu processo
no caso das preposições que, por assim final, o out-put. Dessa forma, e por herança do
dizer, é uma classe de palavras que funciona Estruturalismo norte-americano, Chomsky
apenas dentro do sistema gramatical, relega a semântica a um campo de estudos
não tendo assim uma relação mais direta de competência de outros ramos científicos,
com o mundo. Isso se relaciona, de certo talvez a psicologia, e não à linguística.
modo, àquilo que Jackendoff chamou de Já em 1963, Katz & Postal, partidários
“problema de correspondência”, ou seja, do gerativismo, publicam um artigo
correspondência entre a parte formal da numa revista especializada (Language)
semântica e as relações sintáticas; parece contestando fortemente essa visão
que é esse problema que nos interessa aqui, chomskyana da semântica. Ao contrário,
pois que não se pode desvincular a estrutura esses pesquisadores propuseram que o
sintática e a significação das preposições. que gera significado na língua estaria
Por outro lado, no entanto, justamente nessa entidade abstrata
Franchi (1989) acredita que, embora chamada de estrutura profunda. O próprio
interdependentes, as relações gramaticais, Chomsky viu-se obrigado a reformular

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sua teoria, e em 1965 lança a obra Aspects anteriormente, nos valeremos dessa noção
of the Theory of Syntax, obra que inaugura para tentar mostrar que ela já estava, de al-
o chamado modelo padrão estendido. Nessa guma forma, posta em certas GT’s. Ressal-
obra, ao contrário da primeira, ele assume vando-se, obviamente, que esses mesmos
alguns preceitos semânticos de seus colegas traços serão atribuídos de maneira bastante
e se vê obrigado a incluir a semântica em diferente para as preposições que, segundo
seu modelo. a tradição estruturalista, é uma classe de pa-
Katz, Jackendoff e outros, no entanto, lavras ditas funcionais. Modernamente sabe-
persistem na ideia da centralidade semân- mos que, embora tenham um dado signifi-
tica e, dados os embates metafísicos pro- cado, essa classe de palavra não pode jamais
fundos, faz que esses dois grupos rompam receber o mesmo tratamento que, digamos,
relações definitivamente: um substantivo. A seguir, tentaremos esta-
belecer um padrão de primitivos semânticos
Aqueles que se denominam seman-
ticistas gerativos acreditam que o para as três preposições aqui estudadas,
componente gerativo de uma teoria dentro da tradição linguística brasileira.
linguística não é a sintaxe... mas a
semântica, que a gramática princi- 6.2. A vertente multissistêmica /
pia com a descrição do significado de cognitiva da semântica
uma sentença e gera, em seguida, as
estruturas sintáticas por meio da in- Para termos uma visão mais acertada
trodução de regras sintáticas e regras das preposições em Língua Portuguesa, nos
lexicais. A sintaxe torna-se, então, valemos das noções de Ilari et al. (2005),
uma coleção de regras para expressar Cançado (2000), Kleppa (2003) e Castilho
significado. (BORGES Neto 1991, p.: (2001) e (2009), principalmente. Isso por-
186, grifo meu). que esses linguistas também se valem dos
traços de primitivos semânticos para tentar
Rompimentos à parte, a noção de pri-
uma classificação das preposições vigentes
mitivos semânticos, surgida pela primeira vez
no português brasileiro. Em seguida expo-
no referido artigo de Katz e Postal (1963) (The
remos uma dada classificação ponderada e
Structure of a Semantic Theory) – e melhor de-
pertinente desses linguistas.
senvolvido no modelo de Jackendoff (1972)
– diz que os sentidos não são construídos
6.2.1. Castilho / Ilari
como uma coleção de acepções, tais como
postas num dicionário, mas como um feixe Para Castilho (2000 e 2009), as
de traços com valores positivos ou negativos preposições são “nexos de significado” e
numa espécie de graduante, conforme as le- sua função prototípica é a de “posicionar
xias sinônimas se aproximam. Por exemplo, no espaço os referentes por ela articulados,
entre os sinônimos homem e menino um dos os quais tradicionalmente serviam de
traços que possivelmente os diferencia é o figura e fundo”, ou o que os gramáticos
traço [+ adulto] daquele. Conforme já dito irão chamar de antecedente e consequente.

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O mesmo Castilho ainda diz que tal Desencadeador;


relação é “assimétrica”, pois não pode ser Afetado – Neste, são apenas os comple-
proporcionalmente invertida; segundo o mentos de verbos bitransitivos, o exemplo
exemplo do autor, podemos dizer “o livro que dá é: “Pedro casou-se com a viúva”, vai di-
em cima da mesa”, mas jamais “a mesa em zer que no sintagma (SP/PP) “com a viúva”
baixo do livro”. dirá que há mudança de estado da viúva, e
O mesmo Castilho, em consonância é por essa razão que diz-se que o estado da-
com Ilari et al., faz a seguinte proposta de quele que é acarretado pela preposição é o
classificação para a preposição portuguesa: ente “afetado”;
Preposição do eixo horizontal, dividida Controle – que é compatível, a princí-
em: horizontal de origem e horizontal de meta, pio, com todas as propriedades de todas as
por exemplo, as preposições a e para; preposições; e
Preposição do eixo vertical, dividida em: Estativo – que divide-se em doze sub-
superior e inferior; classes: (ver: Moreira (2000), Silva (2002)):
Preposição do eixo transversal, dividida Estativo-Objeto –“entidade a qual se faz
em: anterior e posterior, por exemplo, a pre- algum tipo de referência”;
posição em; Estativo-locativo – “o lugar em que se en-
Preposição do eixo Continente ~ Conteú- contra o objeto referido”;
do, dividida em: dentro, por exemplo, a pre- Estado-origem – “a origem, ou a fonte, ou
posição em; e fora. a procedência de alguma coisa”. Podem incor-
Preposição do eixo Proximidade ~Dis- porar:
tância, dividida naturalmente em: proximal Origem-locativo; Origem-temporal; Ori-
e distal. gem-objeto referencial;
Conforme pudemos perceber, a preposição Estado-via – “expressam a via (o ambien-
em prefigura em duas classificações distintas: te) por onde se desencadeia o processo”;
as do eixo transversal posterior, e as do eixo Estativo-alvo – “expressam o termo final
continente/conteúdo dentro. As preposições a de uma ação ou processo”. Divide-se em:
e para prefiguram nesta classificação no eixo Alvo-locativo; Alvo-temporal; Alvo-objeto
horizontal de meta; naturalmente, pois seus referencial;
significados são bem próximos, tanto que, Estativo-modo – “expressam o modo de
segundo diversos estudos, a está paulatinamente ser, estar ou atuar de algo ou alguém”;
sendo substituído no PB por para. Estativo-tempo – “tempo em que ocorre
algo”;
6.2.2. Berg / Cançado Estativo-valor – “valor numérico que
se atribui a alguma coisa ou àquilo que se pode
Para Berg (2006), em consonância com
quantifica”;
Cançado (2000) e (2003), baseadas na Teoria de
Estativo-instrumento: “ser instrumento
Papéis Temáticos, a preposição em PB apresenta-
para desencadear o processo”;
ria a seguinte classificação semântica:

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Estativo-material – “substância (mate- Assim como também é pertinente a


rial) usada no processo”; questão dos significados inerentes às pre-
Estado-beneficiário – “entidade favore- posições “irmãs” a e para ao longo do tempo
cida ou desfavorecida de um evento”; na língua portuguesa, constatadas nas mes-
Estativo-companhia – “ser a companhia mas gramáticas. Mas, da mesma maneira,
de algo ou alguém”; também não caberia a esta breve discussão.
Estativo-condição – “ser a condição para
que algo ocorra”; 7. Descrição, apreciação e análise
das preposições nas gramáticas tra-
Estativo-exclusão – “ser a exclusão de
dicionais em língua portuguesa
algo”;
Estativo-finalidade – “expressa o propó- A descrição que se segue, conforme já dito,
sito do processo”. usará o critério cronológico: primeiro serão ex-
Nesta classificação, as preposições para postas as descrições das gramáticas mais antigas.
e a também têm os mesmos significados,
quais sejam: estativo-alvo (Ele andou de 7.1. A Gramática da Linguagem
casa a escola / João jogou a bola para Maria)
Portuguesa – Fernão de Oliveira,
1536.
e estativo-locativo (Fernando falou ao povo /
Fernando falou para o povo). A preposição Esta obra difere bastante do que hoje
em aparece em: estativo-objeto (Roberto chamamos de gramática. Trata-se mais de
confia em sua namorada); estativo-alvo (A casa um compêndio em forma de crônica do que
situa-se na esquina da praia); estativo-modo (O propriamente um manual topicalizado em
orientador numerou os capítulos em ordem assuntos pertinentes.
alfabética); estativo-via (Eu viajei no ônibus da Na verdade não há uma classe exclu-
escola); e estativo-valor (As despesas orçaram siva das preposições, antes, Fernão de Oli-
em muitos reais). veira vai chamá-los de “artigos prepositivos”
Ainda segundo Kleppa (2003) e ou artigos que marcam caso; em oposição
igualmente constatado em Ilari et al. aos artigos nominativos, que são aqueles que
(2005), estatisticamente as preposições fazem flexão de gênero e número: “A dife-
mais usadas no PB atual são, na ordem: de, rença que têm os casos dos artigos é que,
em, para e a. Novamente, esse foi um dos no primeiro caso, a que os Latinos chamam
critérios para a escolha de tais preposições nominativo, nós lhe podemos chamar prepo-
neste trabalho. Tal estatística redunda em sitivo […] (p. 109)”.
dizer que, possivelmente, essas preposições Novamente, esses artigos prepositivos
são as mais usadas por serem as mais vão marcar os casos: genitivo, possessivo
gramaticalizadas ao longo da história da e dativo. Separa, no entanto, como artigos
língua portuguesa. Obviamente tal questão, nominais as contrações, ao e para o e seus
embora altamente pertinente, não cabe plurais. Ademais, segue o registro das
neste trabalho. seguintes preposições sem mais discussões
acerca de sua etimologia, sintaxe ou

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significado: em – e sua contração no; de – e Ainda, a segunda e mais importante, é o fato


sua contração do; pelo, c’o e para. Chamo de que, embora Roboredo não faça distinção
atenção especial para o fato de o gramático semântica, é o único aqui que faz distinção
não descrever a preposição pera, mas apenas entre a preposição para, que seria acusativo
a forma mais nova para. ou acusativo e ablativo; e pera, que além des-
sas funções, pode também reger dativo.
7.2. Método Gramatical para Todas as
Línguas – Amaro de Roboredo, 1661 7.3. Gramática Portuguesa – Manoel
Dias de Souza, 1804
O assunto concernente à preposição situa-
-se na página 42 dessa edição, correspondente ao Nesta gramática, o assunto relativo à
capítulo II, e ocupa pouco mais de duas páginas. preposição ocupa nove páginas (129 a 138)
Embora não haja uma classificação do capítulo VIII, dedicado às palavras infle-
propriamente semântica nesta obra, insis- xionáveis. Tal obra parece guiar-se segundo
timos em descrevê-la por conta de algumas os preceitos das gramáticas filosóficas. De
eventuais intuições que julgamos perti- qualquer forma, resguarda ideias bastante
nentes apontar aqui. A primeira delas é de originais, por exemplo, para além de repe-
cunho etimológico. Após Duarte Nunes de tir o discurso de que as preposições “servem
Leão, muito provavelmente é o primeiro para designar relações que algumas partes
apontamento consistente que se faz sobre do discurso têm uma com a outra” ou ain-
preposições numa obra gramatical portu- da “tem a preposição uma significação vaga
guesa. Diz Roboredo que todas as preposi- e não fazem sentido completo, senão por
ções portuguesas são herdadas do Latim, meio de um complemento, que se lhes ajun-
e que essas mesmas ou “regem” acusativo: ta e lhes fixa o sentido”.
para, junto, até, com, em, por, contra, aquém, ao Por outro lado, como já o dissemos,
redor, fora, per, pera, detrás, abaixo de, segundo, muitas dessas gramáticas originais
sobre, em cima, sem, afora, dentro, além de, ante, contradizem o próprio discurso a que
diante, entre.; ou regem ablativo: de, desde, são tributárias, sendo assim, vai escrever
com, diante, em, em presença, por, ante, sem, Souza logo no parágrafo seguinte:
até. Há ainda, para o autor pré-racionalista, “Contudo, a significação das preposições
uma terceira via, em que algumas preposi- é independente de outra qualquer palavra
ções poderiam reger os dois ao mesmo tem- antecedente ou consequente [...]”, nesse
po, acusativo e ablativo: às escondidas, para particular trata o gramático da preposição
(2), contra (3), pera (2), em (2), debaixo, sobre, de, que, segundo sua concepção, tem um
em cima (encima). Marcamos com um núme- sentido independente. Mais adiante vai
ro entre parêntesis as ocorrências repetidas. fazer uma classificação segundo critérios
Duas observações ainda se fazem per- semânticos: “Aquelas que como Adjetivos
tinentes: uma delas é que o autor não distin- exprimem relações de qualidade das coisas
gue “preposição” de “locução prepositiva”. chamam-se enunciativas; aquelas que como

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os Verbos exprimem relações de ação de 7.4. Gramática Filosófica da Língua


quem obra, chamam-se Preposições de Portuguesa – Jerônimo Soares
Barboza - 1822
ação.” Ainda, vai fazer uma classificação
segundo as funções – novamente semântica. O gramático dedica pouco mais de 26
Das enunciativas, divide-as em: preposições páginas de sua obra às preposições (310 a
relativas à situação (sobre, debaixo, diante, 337). E assim como em quase todas as ou-
detrás, em – notamos que esta não está em sua tras gramáticas aqui analisadas, diz ele que
primeira relação, reproduzida acima – fora, a preposição é uma classe conjuntiva e que
perto, longe, defronte, contra, além, aquém, até, indica relações entre dois termos.
ante, depois e entre); preposições relativas Curiosamente vai dizer que assim
ao lugar (em, para, de, por, desde e junto) como a preposição, os verbos também ligam
; preposições relativas ao tempo (desde, elementos discursivos, no entanto, não são
depois, durante); preposições relativas à termos propriamente, mas os juízos de uma
união (com, sem, exceto, fora) ; e preposições proposição numa relação de identidade entre
relativas à propriedade, dependência e eles – assim, conforme a orientação racio-
origem (de e a). Das circunstanciais ou que ele nalista, o verbo por excelência era o cópula.
chama também de preposições relativas às ações, Além disso, para o gramático, há outras di-
diz que são em número bastante reduzido, ferenças essenciais, por exemplo, o fato de
isso porque “[...] as ações têm muito menos um verbo exprimir tempo e, ainda, ser uma
faces que os objetos físicos, e são menos palavra declinável.
suscetíveis a variações opostas, de sorte que Por meio da pura lógica aristotélica
cada uma destas faces dá um número mais clássica, vai mesmo atribuir dois valores a uma
pequeno de preposições”, dessa forma, elas mesma preposição, fazendo aqui uma espécie
são subdivididas em cinco, a saber: relação de Teoria Temática bastante rudimentar:
de origem (por e de); relação de motivo (visto,
Daqui duas espécies de complementos,
salvo e por); relação do objeto (a, para, para
uns Determinativos, e outros
com, tocante, a respeito, acerca – ou na grafia Terminativos. Quando digo: O livro de
original: a’cerca e após); relação do meio (com, Pedro, a preposição com o nome Pedro
por, mediante, apesar – ou na grafia original: é um complemento determinativo;
a pezar e não obstante) e relação de modelo e porque determina e restringe a
regra (segundo, conforme e contra). significação geral e vaga da palavra
Ainda, há uma classe que ele não havia livro. Porém se digo: O filho de Pedro; o
privilegiado, são elas as chamadas preposições mesmo complemento é já terminativo;
porque serve de termo à significação
iniciais. Estas aparecem em outras obras
relativa da palavra filho. (p. 312).
gramaticais, geralmente com o nome de
posposição, modernamente chamam-nas de Muito embora não escape à classifica-
prefixos. São algumas delas: a em acastelar; ção tradicional ordinária: “[...] por si só não
des em desarmar, desfazer etc. significa ideia alguma” (p. 313).

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Mais adiante divide a seção em dois Limitamo-nos aos espaços deste artigo
artigos. O primeiro vai estabelecer quais são e fazemos, dessa forma, uma análise bastante
as preposições de fato, e quais não o são. Faz abreviada desta gramática que, sem dúvida me-
isso sob um critério até bem ortodoxo: são rece maiores análises, e que de fato as tem.
preposições aquelas que tomam a posição de tal
(critério sintático) nos clássicos portugueses. 7.5. Gênio da Língua Portuguesa –
Francisco Leoni, 1854
Em seguida, vai dizer que uma
preposição pode assumir mais de um De todas as gramáticas aqui analisadas,
“significado”. Na verdade, que uma mesma esta é a que mais se dedica às preposições.
preposição pode vir a desempenhar relações Na verdade, os dois tomos da gramática
diferentes. Assim: no lugar de a pode-se dedicam-se quase que exclusivamente
substituir por para; no lugar de em, pode- aos estudos das palavras. Ou seja, nessa
se substituir por a. Nesse particular, vai gramática não há sintaxe. Contrário
dizer que, em dada medida, a preposição também a todas as obras aqui analisadas,
tem uso arbitrário. Atribui este fenômeno, Leoni diz que a preposição é uma das mais
pelo fato de às vezes o “juízo” exprimir às importantes classes de palavras:
vezes ideias abstratas, às vezes exprimir
São as preposições de que em portu-
ideias concretas. Depois, segue uma longa
guês nos servimos essencialmente
classificação sintática, em que, no final, latinas em sua origem e forma. Não é
há um breve debate sobre os diversos isto, porém, o que nelas consideramos
significados / funções da preposição a. de mais notável. As propriedades que
No segundo artigo, Soares Barboza lhe são inerentes e que produzindo
define as preposições segundo uma pasmosa variedade nas relações dos
espécie de classificação flagrantemente nomes e maravilhoso cambiante na
semântica, dividindo-as em “primeira classe: acepção dos verbos assinalam prin-
preposições de estado e existência”, por cipalmente o gênio da língua, consti-
tuem, por certo, o grande característi-
exemplo, a preposição em, e de “segunda
co que a distingue [...]. (p. 5)
classe: preposições de ação e movimento”; a
e para estão nessa classe, “pertencentes ao Contrário a Amaro de Roboredo e a
lugar para onde”. Dessa forma, o gramático maioria dos gramáticos, Leoni não concor-
português faz sua classificação semântica. da com a correspondência entre as preposi-
Uma distinção bastante interessante que ções portuguesas e os Casos de Acusativo e
faz dentre estas duas preposições é o fato de in- Ablativo do latim.
dicarem “movimentos” diferentes: “A primeira Por fim, para ele, as preposições “indicam
acepção da preposição a é de significar um lugar, ideias”. Leoni dedica-se extensamente a cada
aonde se dirige imediatamente qualquer movi- uma das tradicionais preposições da língua,
mento sem tensão de parar no mesmo lugar: no entanto, investigaremos aqui apenas
Vou a Lisboa e não para Lisboa [...]” (p.: 331-332). aquelas que são nosso objeto: a, em e para.

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A preposição a / ad dentro; lugar onde; atualidade, estado


permanente; tempo e ocasião em que alguma
Diz ele: “Significa movimento”, “[...]
coisa se faz; modo porque alguma coisa se
movimento dirigido a um termo, como o da
faz; força e intensidade; negação.
seta arremessada ao alvo.” (p. 7).
“A ideia de movimento dirigido a um A preposição para / pera
termo indica naturalmente a de direção e
esta a de lugar para onde.” Para Leoni, essa preposição é uma cor-
“Da ideia de direção se depreende tam- ruptela da locução latina per ad, e que no
bém a de referência, tocante, relativo, acerca, português da Idade Média tinha o sentido
quanto. A mesma ideia de direção traz a de: próximo ao de ad, ou seja, a correspondente
destinação, para, afim, bem como a de posi- a do português novecentista. Para ele, esta
ção frontal [...]” preposição pode significar: tendência; dis-
Faz toda essa ginástica para dizer, no posição e propensão; direção; lugar para
final, que esta preposição se filia (apenas) onde; referência, relativo a, acerca, quanto;
com alguns verbos de movimento com sig- destinação, fim; conveniente, oportuno.
nificação estrita de “lançar”, de “dirigir a Como explicar que Leoni encontre tan-
algo ou alguém”. (p. 7) tos significados para a preposição? O que
E insistindo na ideia de projetar-se a, ele faz, na verdade, é literalmente, descrever
ou ideia de “movimento dirigido a um ter- uma lista de palavras com as quais se tem
mo”, identifica o mesmo a como prefixo de a possibilidade de combinar tal preposição.
adjetivos, tais como: afidalgado, amouriscado, Mesmo assim, seu esforço não deixa de ser
afrancesado. E seguindo o mesmo raciocínio, válido, no sentido de que muitos desses
ou seja, tomando o a como prefixo, toma “primitivos” foram, posteriormente, atesta-
como exemplo o verbo acorrer (recorrer a) dos por teorias modernas.
do latim accurrere.
7.6. Gramática Expositiva – Carlos
Eduardo Pereira, edição de 1918
A preposição em
Nesta gramática – única representante
Para o autor, equivale à ideia de
brasileira desta seleção – é dedicada pou-
movimento de fora para dentro, desde
co menos de uma página (163 e 164) para a
o latim também significa “tendência a
descrição das preposições. Apesar disso, é
um ponto anterior”. Parece, então, que o
uma gramática que traz consigo intuições
em gramaticalizou-se bastante. A seguir,
bastante pertinentes, e mesmo para época
mostramos os outros sentidos desta
algumas dessas intuições são bastante ori-
preposição admitidos por Leoni. Direção
ginais. A começar pela afirmação:
a um ponto; lugar para onde; destinação,
para, afim; referência, tocante, relativo a; As preposições, quanto ao sentido,
contrariedade, oposição; situação anterior, classificam-se como os advérbios,
conforme as circunstâncias ou as

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relações que indicam. As primeiras Proximidade~Distância”. Para o mesmo


relações indicadas pelas preposições gramático, a descrição da preposição
são: – tempo, lugar, causa, modo, meio, em, que denota “estado e existência”, se
fim. Elas se diferençam, porém, dos assemelha à noção de Berg/Cançado de
advérbios, em serem conectivos, ao passo
“estativo-objeto” e “estativo-modo”.
que o advérbio é, como o adjetivo, uma
palavra apenas modificadora. (p. 163)
No Gênio da Língua Portuguesa, de Fran-
cisco Leoni, a intuição descrita para a pre-
Embora haja esta divisão, classificada posição a é semelhante à mesma preposi-
por critérios semânticos, o autor não separa ção descrita por Castilho/Ilari: “Preposição
quais são de tempo, lugar, causa, modo, meio e do eixo horizontal: de origem ou de meta,e
fim. No entanto, com algum esforço mental, respectivamente de Preposição do eixo Pro-
podemos nós mesmos, leitores, fazer esta ximidade ~ Distância”. Para o gramático
divisão natural. português, a preposição em teria a noção
de “direção a um ponto, lugar para onde;
8. Confrontando teorias suposta-
destinação, para, afim; referência, tocante,
mente diferentes
relativo a; contrariedade”, o que se semelha
Em seguida, vamos apontar algumas muito tanto com a noção de Castilho/Ilari
semelhanças entre as noções presentes nas para a mesma preposição: “Preposição do
GT’s aqui estudadas e as noções de primitivos eixo Proximidade~Distância, Preposição do
semânticos. Mais propriamente de três dentre eixo transversal”; quanto para Berg/Cança-
as seis gramáticas aqui observadas, as quais do: “estativo-objeto”; “estativo-modo”; “es-
nos pareceram mais relevantes, e das quais tativo-tempo”; “estativo-valor”; “estativo-fi-
as noções de preposição mais se assemelham nalidade”. Ainda, para Leoni, a preposição
às modernas noções aqui apresentadas. para, denota “tendência; disposição e pro-
Na Gramática Portuguesa de Manoel pensão; direção; lugar para onde”, o que es-
Dias de Souza, de 1804, a preposição a é des- taria de acordo com a classificação de Casti-
crita como aquela que conduz a “ação rela- lho/Ilari de “Preposição do eixo horizontal:
tiva a objeto”, noção que se assemelharia a de origem ou de meta” e de Berg/Cançado:
de Berg/Cançado de “estativo-objeto”. Para “estativo-alvo / alvo-locativo”.
este autor, a preposição para indica “lugar”,
o que estaria de acordo com a classificação 9. Conclusões
de Castilho/Ilari de: “Preposição do eixo ho-
rizontal: de origem ou de meta”. Especialmente nas gramáticas de
Para Jerônimo Soares Barbosa em sua Leoni e de Soares Barbosa, conseguimos
Gramática Filosófica da Língua Portuguesa de notar que muitos dos sentidos apontados
1822, as noções contidas nas preposições a às preposições pela noção de primitivos
e para – “movimento” – é muito semelhante semânticos, já estavam presentes nessas obras
à de Castilho/Ilari: “Preposição do eixo gramaticais. Mais uma vez, isso aponta

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Ednei de souza leal

que tanto a noção de primitivos quanto os ______. Ensaios de Filosofia da Linguística. São
significados propostos pelos autores são, em Paulo: Parábola, 2004.
dada medida, concluídos intuitivamente. ______. Gramática Tradicional e Linguística
De qualquer forma, o que conseguimos Contemporânea: continuidade ou ruptura? Revista
apontar com este trabalho é o fato de que as Todas as Letras, n. 14. Ed. UFMG, 2012, p.87-96.
GT’s aqui estudadas, as quais englobam um CANÇADO, M. Uma aplicação da teoria
período bastante considerável na bibliografia generalizada dos papéis temáticos: verbos
em língua portuguesa, de modo geral, apre- psicológicos. Revista do GEL. Número Especial:
sentam intuições bastante originais por parte Em Memória de Carlos Franchi. Eds. Altman C.,
de seus autores, no que concerne à descrição M. Hackerott e E. Viotti. São Paulo: Humanitas/
das preposições diferentemente de muitos Contexto, 2002, p.93-128.
outros modelos – arriscaríamos em dizer, a CASTILHO, A. Diacronia das preposições do
maioria – esses autores em especial, gozam de eixo transversal no português brasileiro. In.
uma liberdade para além das amarras do nor- NEGRI, Lígia, FOLTRAN, Maria José; PIRES
DE OLIVEIRA, Roberta (Orgs.). Sentido e
mativismo das gramáticas tradicionais.
significado: em torno da obra de Rodolfo Ilari.
No limite, procuramos mostrar neste ar-
São Paulo: Contexto, 2004, p.11-47.
tigo que as gramáticas tradicionais não são me-
______. Nova Gramática do português brasileiro.
ras repetições seculares, são antes inventivas e
São Paulo: Contexto, 2010.
exaustivas listas de classificações, na maioria
das vezes, postuladas de maneira intuitiva, mas FRANCHI, C. Linguagem – atividade constitutiva.
Revista do GEL. Número Especial: Em Memória
nem por isso menos – para usarmos um termo
de Carlos Franchi. Eds. Altman C., M. Hackerott e
corrente nos séculos XVIII e XIX – geniosas.
E. Viotti. São Paulo: Humanitas/Contexto, 2002,
p.37-76.
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transitivos indireto: interface sintaxe-
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A semântica das preposições nas gramáticas tradicionais em língua portuguesa

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Recebido para publicação em 30 de abril de 2013


Aceito para publicação em 27 de out. de 2013

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