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OS CONFLITOS SUBSTANCIAIS EM MATÉRIA NORMATIVA SOB O

PONTO DE VISTA DAS DECISÕES JUDICIAIS

A questão dos conflitos em matéria normativa, também conhecida por


antinomia jurídica, pode ser vista sob dois pontos de vista, sendo um macro e
outro micro.

A doutrina, comumente, tem se ocupado tão somente com o primeiro


aspecto, o qual é representado justamente pelo conflito de normas gerais. Neste
estudo tentaremos analisar o problema sob o ponto de vista micro, ou seja, das
decisões judiciais.

A bem do esclarecimento, por normas gerais, deve ser entendido como


sendo aquelas de eficácia irrestrita, ou seja, dirigida a todos indistintamente. Este
conceito, neste trabalho, opõe-se ao de normas individuais e não ao de normas
especiais.

Melhor esclarecendo. Dentro da categoria das normas gerais podemos


destacar espécies de natureza substantiva, ou material, e adjetiva, ou formal.

Conforme nos ensina KELSEN, “A constituição material determina


sobretudo por meio de quais órgãos e através de quais processos as normas
gerais devem ser criadas.” 1

Em seguida continua: “As normas gerais criadas por legislação ou costume


de acordo com a Constituição, em especial os estatutos, determinam, porém, não
apenas os órgãos judiciais e administrativos e o processo judicial e administrativo,
mas também os conteúdos das normas individuais, as decisões individuais e os
atos administrativos"

Dos ensinamentos de KELSEN, podemos extrair uma conclusão de suma


importância para o desenvolvimento do presente estudo, qual seja: o processo de
desenvolvimento do Direito deve ser contínuo e imprescindivelmente coerente,
desde o nível constitucional, onde tem sua origem, até a execução judicial, onde
tem seu fim.

Este processo tem início com o estabelecimento da constituição,


desenvolve-se com a criação legislativa e consuetudinária, que por sua vez é
seguida pelas decisões judiciais e que finda, se for o caso, na execução forçada
da referida decisão.

1
A nossa constituição foge um pouco a essa regra e foi mais além, trazendo ao longo de seu corpo normativo
um grande teor de conteúdo material.
Vale relembrar que, segundo a teoria do ordenamento jurídico, uma de suas
características marcante é a unidade. Ser uno, significa que todas as suas formas
de expressão fazem parte de uma mesma estrutura. Assim tanto a Constituição
Federal, quanto uma decisão judicial, que são formas de expressão do
ordenamento jurídico, fazem parte de uma única estrutura jurídica.

Para que se possa admitir esta unidade jurídica, deve-se previamente


conceber que esta estrutura seja, necessariamente, juridicamente organizada. O
critério adotado para esta organização foi o da hierarquia. Desta forma, o
ordenamento jurídico deve ser entendido como uma estrutura una e
hierarquicamente organizada.

Em decorrência desta hierarquia jurídica, o processo de desenvolvimento


do Direito, para que seja considerado válido, deve ocorrer de forma absolutamente
coerente e quando esta regra é desrespeitada dá-se origem ao que chamamos de
antinomia jurídica, ou seja, uma incompatibilidade entre duas normas jurídicas.

Esta incompatibilidade pode ser aparente ou real. Se aparente, resolve-se


por meio da utilização de critérios de solução de conflitos normativos, os quais
iremos estudar a seguir, porém, se real, uma das duas normas deve ser excluída
do ordenamento jurídico, de forma a recompor sua original coerência.

Neste mesmo sentido podemos mencionar Bobbio (O positivismo jurídico,


1995, p. 203):

"O princípio, sustentado pelo positivismo jurídico, da


coerência do ordenamento jurídico, consiste em negar que
nele possa haver antinomias, isto é, normas incompatíveis
entre si. Tal princípio é garantido por uma norma implícita em
todo ordenamento, segundo a qual duas normas
incompatíveis ( ou antinômicas ) não podem ser ambas
válidas, mas somente uma delas pode ( mas não
necessariamente deve ) fazer parte do referido ordenamento;
ou, dito de outra forma, a compatibilidade de uma norma
com seu ordenamento ( isto é, com todas as outras normas )
é condição necessária para a sua validade."

Como mencionamos acima, para as antinomias aparentes, a doutrina


elencou critérios e metacritérios solucionadores do conflito. Assim três são os
critérios de solução de conflitos normativos, quais sejam, o critério cronológico, o
hierárquico e o da especialidade.

Pelo critério cronológico, num conflito entre duas normas gerais e de


mesma hierarquia, a posterior prevalece sobre a anterior. Interessante observar
que a comparação pelo critério cronológico leva em consideração a data de
promulgação da norma. Desta forma, imaginemos que duas leis, gerais e de
mesma hierarquia, estejam em conflito normativo, sendo que a primeira foi
promulgada e publicada em 01/03/2002, com vigência prevista para 90 dias a
partir de sua publicação. A segunda foi promulgada e publicada em 01/04/2002,
com vigência imediata. Pergunta-se: qual das duas deve prevalecer em detrimento
da outra, para um fato ocorrido após a vacatio legis da primeira lei? A resposta
correta é a segunda lei, pois apesar de ter começado a viger anteriormente à
primeira, teve sua promulgação posterior a esta. Tal solução dá-se desta forma,
tendo em vista que a promulgação é considerada o marco que atesta a existência
da norma e, assim, determina o conhecimento de seu ingresso no ordenamento
jurídico.

O segundo critério é o da hierarquia. Por este critério, a norma de hierarquia


superior deve prevalecer sobre a de hierarquia inferior. A hierarquia de normas é
um assunto que encontra certa divergência na doutrina. Assim pode ser
observado em Alexandre de Morais ( Direito Constitucional, Nova Edição, 2001, p.
533), quando menciona: "Discussão eternizada na doutrina, a eventual existência
ou não de hierarquia entre lei complementar e lei ordinária obteve de ambos os
lados grandes juristas e brilhantes argumentações."

Entre os argumentos apresentados pela corrente que defende a hierarquia


entre a lei complementar e a lei ordinária está a questão do quórum qualificado,
maioria absoluta, exigido para a aprovação da lei complementar, em relação à
maioria simples necessária para a aprovação da lei ordinária.

Já para a corrente contrária, não há que se falar em hierarquia entre a lei


complementar e a lei ordinária, simplesmente porque a cada uma delas são
atribuídos campos materiais de competência distintos. Desta forma, enquanto a
primeira tem suas matérias expressamente reservadas no texto constitucional, a
segunda possui um campo residual de conteúdo, ou seja, pode disciplinar tudo
aquilo que não esteja expressamente afeta a matéria de lei complementar.

Apesar da existência de tal polêmica, um ponto é pacífico sobre o tema, as


normas individuais, ou seja, as decisões judiciais, possuem hierarquia normativa
inferior à norma legal. Assim devem estar em harmonia com a mesma.

O terceiro critério é o da especialidade. Por ele, entre duas normas de


mesma hierarquia e mesma cronologia, deve prevalecer a norma especial em
detrimento da norma geral.

Quanto aos três critérios isoladamente considerados, não há grande


complexidade. Todavia o problema torna-se um pouco mais complexo quando se
está diante de um conflito de critérios. Nestes casos, como determinar a norma
que deve prevalecer? Vejamos as hipóteses.

Conflito entre o critério cronológico e o critério hierárquico: é o caso,


por exemplo, do conflito entre duas normas gerais, sendo uma de hierarquia
superior e a outra criada posteriormente, porém de hierarquia inferior. Nesta
situação a doutrina é pacífica quanto à prevalência do critério hierárquico. Vale
observar, inclusive, que este é o fundamento para a invalidação de uma norma por
vício de inconstitucionalidade, por meio do controle concreto de
constitucionalidade.

Conflito entre o critério cronológico e o da especialidade: é o caso, por


exemplo, do conflito entre duas normas de mesma hierarquia, porém uma geral e
criada posteriormente e a outra especial e criada anteriormente. O entendimento
consolidado é o de que deve prevalecer a norma especial sobre a geral, mesmo
que aquela seja cronologicamente anterior.

Conflito entre o critério hierárquico e o da especialidade: é o caso, por


exemplo, do conflito entre duas normas de cronologia idêntica, porém sendo a de
maior hierarquia de natureza geral e a de menor hierarquia de natureza especial.
Neste caso a doutrina não é unânime. A nosso ver a solução para esse
metaconflito não pode ser outra, senão pela prevalência do critério hierárquico.
Pensar diferente é admitir um absurdo, senão vejamos: imaginemos duas normas,
sendo a primeira uma sentença judicial, criada no mesmo dia da edição de uma
emenda constitucional. Imaginemos, ainda, que a sentença infringiu
expressamente texto da Constituição. Segundo a teoria Kelseniana, sentenças
judiciais são consideradas normas individuais e, por isso, podem também ser
consideradas normas especiais, visto que regulamentam uma situação específica
determinada pelo caso concreto em julgamento.

Isto posto, considerar como prevalente o princípio da especialidade é


admitir a possibilidade de um único magistrado contrariar disposições
estabelecidas por toda uma assembléia constituinte. É de se convir que esta
hipótese vai de encontro com toda a lógica jurídica do razoável.

Poder-se-ia, ainda, admitir que a solução para este metaconflito estar-se-ia


a depender da análise de cada caso concreto. A nosso ver, este raciocínio
também não nos parece correto, pois estar-se-ia abrindo oportunidades à
infringência ao princípio da isonomia, justamente pela falta de uma matacritério
previamente definido, ainda que a nível doutrinário.

Assim sendo, somos pela adoção incontinente do princípio da hierarquia em


face ao da especialidade quando da ocorrência de um conflito de segundo grau
entre esses dois critérios.

Como vimos, os conflitos substanciais em matéria normativa sob o aspecto


das decisões judiciais apresentam-se justamente pela existência de
incompatibilidades entre o conteúdo destas e o das leis.

Pergunta-se, então; e se o magistrado considera que a lei possui natureza


injusta, pode abster-se de aplicá-la e dá ao caso a solução que considera mais
justa?

A resposta é não. A justiça é um valor altamente subjetivo e varia de


indivíduo para indivíduo. Admitir positiva a resposta ao questionamento acima, é
admitir a quebra da unidade do ordenamento jurídico acima mencionada, assim
como possibilitar a desestruturação de sua organização coerente.

Todavia, há quer ser lembrado que, por exceção, o juiz pode deixar de
aplicar determinada lei ao caso concreto, desde que a considere inconstitucional.
Nestes casos, apesar de decidir contra legem estrito sensu, estará decidindo em
consonância com a Lei Maior e, assim, em harmonia com todo o ordenamento
jurídico.

Pergunta-se, ainda: aonde encontra-se, então, a autonomia do juiz ao julgar


o caso concreto?

A autonomia do magistrado encontra-se justamente, quando, da análise do


caso concreto, identifica das particularidades deste e posteriormente define qual a
hipótese legal melhor se aplica ao mesmo. Mas não é só isso. O juiz deve,
também, interpretar a norma para identificar qual o seu verdadeiro alcance e qual
a sua real finalidade, afinal, conforme o art. 5º da Lei de Introdução ao Código Civil
- LICC, "na aplicação da lei, o juiz atenderá aos fins sociais a que ela se dirige e
às exigências do bem comum."

Nesta última função é que se encontra a maior amplitude e autonomia da


função jurisdicional, pois a interpretação da lei é algo de natureza extremamente
fértil.

E se a lei for omissa? Pode o juiz decidir o caso concreto de acordo com
suas próprias convicções? A resposta mais uma vez é negativa, pois o próprio
ordenamento jurídico, por meio do art. 4º da LICC, assim dispõe: "quando a lei for
omissa, o juiz decidirá o caso de acordo com a analogia, os costumes e os
princípios gerais de direito."

Percebe-se, assim, que as decisões judiciais, para que possam ser


consideradas juridicamente válidas, devem estar em consonância com o
ordenamento jurídico como um todo e, principalmente, com o texto constitucional,
para que, assim, se possa garantir o respeito ao princípio da isonomia, assim
como ao princípio da unidade do ordenamento jurídico.

Conclui-se, portanto, que uma sentença judicial não pode ser considerada
válida quando dela emanar disposições expressamente contrárias ao
ordenamento jurídico ou à Constituição Federal. Primeiro, porque não é fonte
formal normativa apta a tal feito e, ainda que assim fosse considerada, pela
prevalência do critério da hierarquia sobre o da especialidade, estar-se-ia afastada
qualquer possível validade a ela atribuída.

Marcelo Cerveira Gurgel


Aluno concluinte do curso de Direito da UFRN

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