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A PRÁTICA DE PARTEIRAS E O UNIVERSO MULTIFACETADO DA

MATERNIDADE

Claudete Camargo Pereira Basaglia1

Resumo: O texto A atuação de parteiras e o universo multifacetado da maternidade tem como


objetivo reconstituir experiências cotidianas de parteiras. Para ilustrar essas reflexões apresentam-se
algumas experiências cotidianas ligadas a papéis sociais desempenhados por mulheres parteiras,
percorrendo espaços e temporalidades diversas em torno de experiências de vida pessoal, familiar e
social algumas delas recolhidas no município de Batatais-SP mediante relatos orais que
complementam as fontes bibliográficas e contribuem para a reconstitrução do passado
considerando-se o saber constituído e desenvolvido historicamente pelas parteiras nos nascimentos,
nas contracepções, nas interrupções de gravidez, ou seja, nas relações com as múltiplas faces da
maternidade.
Palavras-chave: Parteiras. Partos. Relatos orais. Batatais-SP.

Este texto refere-se a uma perspectiva de Estudos de Gênero desenvolvida junto ao Núcleo
de Estudos de Gênero de Araraquara/SP – NEGAr, um grupo de pesquisas que trata de questões de
gênero de forma abrangente. Seu conteúdo apresenta-se em caráter de reflexões sobre a atuação de
parteiras e de alguns significados da passagem de um saber ancestral transferido de mãe para filha
para o campo da medicina por intermédio do médico com a participação das parteiras cujo
conhecimento, em princípio, não foi dispensado, mas, que aos poucos foi sendo reivindicado pelos
hospitais. Considerar a atuação de parteiras como uma das faces da maternidade contemporânea no
Brasil significa, nesse contexto, entender que a maternidade tem inúmeros ângulos que vão desde as
razões para a concepção até as suas funções sociais ao longo da vida de filhos e de filhas, passando
pelas formas de concepção, pela gestação e pelo parto.
Para ilustrar essas reflexões o objetivo que aqui se apresenta é reconstituir experiências
cotidianas ligadas a papéis sociais desempenhados por parteiras, percorrendo espaços e
temporalidades diversificadas e diversas. As fontes que as subsidiam são os escritos registrados nos
livros e as reconstruções de experiências de vida pessoal, familiar e social, algumas delas
vivenciadas na cidade de Batatais, Estado de São Paulo e expressas por relatos orais femininos. A
Internet também figura como uma fonte porque nela estão depositadas redes de pessoas que aliam a
luta pelo direito da mulher escolher como quer ter o filho com a constituição de um mundo mais
justo, solidário e sustentável.

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Doutoranda em Ciências Sociais – UNESP/Araraquara-SP, Brasil. Participante do Núcleo de Estudos de Gênero de
Araraquara – NEGAr, sob a orientação da profª Drª Lucila Scavone.

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Seminário Internacional Fazendo Gênero 10 (Anais Eletrônicos),Florianópolis, 2013. ISSN2179-510X
A escolha de Batatais-SP para recolher os relatos orais femininos deu-se em virtude de ser
este o local de moradia da autora e das reiteradas conversas ouvidas entre mulheres sobre as
diferenças dos partos no tempo. Trata-se de um Município fundado em 1839, com 56.476 habitantes
distribuídos entre 27.774 homens e 28.732 mulheres segundo os indicadores do Censo de 2010
(Brasil, 2013a).
A utilização do relato oral como recurso deu-se por ser esta uma técnica de coleta de
material que diz respeito à uma transmissão de saber que tanto pode referir-se ao passado mais
longínquo quanto ao passado recente ou mesmo à experiência cotidiana. Ou seja, uma transmissão
do saber que tanto pode relacionar-se a um legado dos antepassados, a um acontecimento próximo
no tempo quanto às noções adquiridas diretamente pela pessoa que narra que pode ser, inclusive, a
agente daquilo que está narrando, como pode também relacionar-se a noções adquiridas por outros
meios que não a experiência direta ou ainda a tradições antigas do grupo ou da coletividade
(Queiroz, 1988).
Há outro viés fundamental a ser considerado no uso do relato oral, sobretudo, nas Ciências
Sociais. Ele está relacionado às bases coletivas da subjetividade presente nos relatos orais, pois, foi
a partir do momento em que se admitiu que os relatos orais assim como as histórias de vida tinham
base coletiva e que não eram um produto essencialmente individual que essas técnicas passaram a
ter relevância na pesquisa e suas possibilidades foram ampliadas por acrescentar ao ponto de vista
objetivo e externo, um outro: "compreender o social não apenas, como o que se realiza por meio dos
homens mas como o que é vivido e agido por eles! Isto é, o estudo do fato social humanizado
encarado na sua matriz que é o indivíduo criador e criatura do grupo" (Queiroz, 1983, p.162).
A técnica do relato oral não se refere apenas às reflexões aqui apresentadas, ela também foi
adotada para a coleta de dados em outro estudo: Parteiras e partos: experiências cotidianas do
universo feminino (Basaglia, 2005) porque permite que um tipo específico de documento seja
construído pelo pesquisador e durante sua construção ocorra uma interação entre o pesquisador e o
depoente que permite o questionamento.
No caso do conteúdo deste texto, o relato oral criou a possibilidade de reconstrução do
passado orientada pela vida atual, pelo lugar social e pela imaginação da pessoa que lembra. São
lembranças com peso documental que alcançam certas generalizações históricas na medida em que
abrangem comportamentos, costumes e hábitos.

Uma perspectiva social do lugar das parteiras

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A tradição das parteiras, tradição transmitida ao longo das gerações por avós, tias, mães, não
existia no Brasil até a chegada dos portugueses. Foi trazida de um Portugal cristianizado e
estabeleceu-se nas tradições da gravidez, do parto, dos 40 dias de resguardo. Diante disso, a questão
que se coloca é: que circunstâncias estão presentes na passagem do saber ancestral das parteiras
transferido de mãe para filha, para o campo da medicina por intermédio do médico-parteiro com a
participação das parteiras cujo conhecimento, em princípio, não foi dispensado?
O primeiro argumento vem de Muraro (1997). Em sentido amplo a autora explica que em
relação às sociedades ocidentais a história registra permanentes conflitos de valores em relação ao
lugar das mulheres, embora, em algumas circunstâncias elas ocupassem lugar de destaque no que
diz respeito às decisões coletivas. No entanto, qualquer condição favorável para a mulher rompe-se
a partir do século XIV até meados do século XVIII, quando ocorre uma repressão sistemática do
feminino, quando há uma “caça as bruxas”.
Para Muraro (1997), esses acontecimentos fundamentam-se no fato de que desde a
antiguidade as mulheres eram as “curadoras populares, as parteiras” e detinham o saber que era
transmitido de geração em geração. A saúde das mulheres era mantida por aquelas que dentre elas
destacavam-se como “anatomistas e cultivadoras ancestrais de ervas”. Na condição de parteiras
viajavam de aldeia em aldeia, iam de casa em casa, eram as “médicas populares”. Como
carregavam esses conhecimentos e formavam confrarias nas quais trocavam entre si os segredos de
cura do corpo e, muitas vezes, da alma, essas mulheres passaram a representar um perigo, uma
ameaça à medicina que avançava como forma de conhecimento científico e à religião católica que
desejava colocar regras de comportamento às massas camponesas e, sobretudo, às mulheres.
O papel da Igreja católica contribuiu decisivamente para essa centralização do poder
mediante a organização dos tribunais da Inquisição que exterminavam todos aqueles que fossem
julgados heréticos ou bruxos. Era uma medida para colocar as massas de camponeses em
consonância com as regras morais do cristianismo para isso os “inquisidores tiveram a sabedoria de
ligar a transgressão sexual”, que circulava entre as camadas populares, “à transgressão da fé” e
punir as mulheres (Muraro,1997).
As orientações que permitiram este “expurgo” estão no Malleus Maleficarum, documento
escrito no ano de 1484 pelos dominicanos e professores de Teologia Kramer e Sprenger (1997),
investidos de inquisidores contra a bruxaria pela bula papal de Inocêncio VIII na qual encontra-se
um trecho da QUESTÃO XI que estabeleceu que as bruxas parteiras matavam de várias maneiras
ou provocavam aborto, ou senão, faziam a oferenda de recém-nascidos aos demônios.

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Cumpre aditar que as bruxas parteiras são as que maiores males nos trazem, pelo que nos
contam outras bruxas penitentes: Não há quem mais malefícios causem à Fé Católica do
que as parteiras. Pois quando não matam as crianças, para atenderem a outros propósitos
tiram-nas do recinto em que se encontram, elevam-nas nos braços e oferecem-nas aos
demônios. (KRAMER e SPRENGER, 1997, p. 156)

Outro trecho do Malleus Maleficarum retirado do Capítulo XIII apresentava o modo pelo
qual, supostamente, as parteiras cometiam o mais “hórrido” dos crimes: o de matar e oferecer aos
demônios crianças da forma mais execrável.
Não podemos deixar de mencionar os males infligidos a crianças recém-nascidas pelas
bruxas parteiras que primeiro as matam e depois as oferecem, em blasfemo rito, aos
demônios.
(...). Quando as bruxas parteiras não matam o recém-nascido, oferecem-no ao diabo em
blasfemo ritual. Assim que a criança nasce, a parteira, quando a mãe não é ela própria uma
bruxa, pega a criança e, sob o pretexto de aquecê-la, leva-a até junto ao fogo da cozinha. Lá
então, erguendo-a nos braços, oferece-a a Lúcifer (...). (KRAMER e SPRENGER, 1997, p.
283-284)

Há ainda nesse documento, na QUESTÃO XXXIV, um método de pronunciar a sentença


contra as bruxas parteiras que eram em grande número conforme se descobria por suas confissões.
Acreditava-se que dificilmente existiria alguma aldeia em que pelo menos uma não fosse
encontrada, portanto, deveriam os magistrados enfrentar esse perigo em certa medida não
permitindo que alguma parteira praticasse o ofício sem antes prestar juramento de boas
católicas.(Kramer e Sprenger, 1997).
O mundo que adveio da ”caça as bruxas” era um mundo no qual a condição feminina via-se
transformada com a normatização da sexualidade, no qual o saber feminino popular cai na
clandestinidade, não sem antes ser apropriado pelo saber médico que se solidificava.
No Brasil Império, Alencastro (1997) aponta um costume de acordo com o qual as frentes
das casas de parteiras, certamente católicas, tinham o sinal da cruz pintado de preto, indicativo de
sua profissão. Esse costume também é registrado por Freyre (1954), mas antes de ser uma cruz
preta, conforme indica Alencastro (1997), se tratava de uma cruz pintada de branco, diferença que
pode ser considerada a partir da regionalidade: Alencastro (1997) pesquisando o Rio de Janeiro
então capital do Brasil, no período imperial, e Freyre (1954) investigando os costumes da região
Nordeste.
A explicação para a presença do sinal da cruz, segundo Alencastro (1997), é que quando
uma “aparadeira” saía para realizar seu ofício sabia-se de antemão da possibilidade de haver um
luto pela morte da mãe ou da criança, condição atribuída ao ambiente epidemiológico das cidades,
sobretudo do Rio de Janeiro.

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No entanto, outra explicação pode ser acrescentada para a presença do sinal da cruz na frente
das casas das parteiras, esta relacionada à exigência estabelecida durante a inquisição: que nenhuma
parteira praticasse o ofício sem antes prestar juramento de boa católica, conforme estabelece a
QUESTÃO XXXIV.

Parteiras, aparadeiras, comadres, curiosas e a transmissão de tradições

A tradição da cultura das parteiras não existia no Brasil anteriormente à chegada dos
portugueses porque as comunidades tribais mantinham concepções muito diferentes sobre o parto.
O relato de um parto tupinambá que se encontra entre os registros de Jean de Léry (1967), viajante
estrangeiro estudioso de teologia que por ser sapateiro embarcou com outros artesãos para colaborar
com de Villegagnon em empreitada colonizadora e que chega ao Brasil em 1557, pode traduzir uma
dimensão dos costumes e hábitos do parto entre aqueles que Léry considerou os “selvagens da
América”.
Pernoitando com outro francês em uma aldeia, certa ocasião, ouvimos, quase à meia-noite,
gritos de mulher e pensamos que estivesse sendo atacada pelo jaguar, essa fera carniceira
que já descrevi. Acudimos imediatamente e verificamos que se tratava apenas de uma
mulher em horas de parto. O pai recebeu a criança nos braços, depois de cortar com os
dentes, o cordão umbelical e amarrá-lo. Em seguida, continuando no seu ofício de parteira,
esmagou com o polegar o nariz do filho como é de praxe entre os selvagens do país. Note-
se que as nossas parteiras, ao contrário, apertam o nariz aos recém-nascidos para dar maior
beleza afilando-o. Apenas sai do ventre materno, é o menino bem lavado e pintado de preto
e vermelho pelo pai, o qual, sem enfaixá-lo, deita-o em uma rêde de algodão. (LÉRY, 1967,
p. 190-191)

Para Cascudo (2000) foi a ausência de tradição das parteiras no Brasil Colônia que tornou a
gravidez e o parto cheios de tabus Para garantir a gravidez tranqüila, facilitar a expulsão da criança
na hora do parto, para evitar que a criança nascesse torta, aleijada ou com manchas, a mulher
grávida não deveria usar nada apertado, inclusive cordões, cintas e ligas. Nenhum objeto deveria ser
colocado sobre o seio porque a criança o traria impresso na carne. Uma chave, por exemplo,
ocasionaria lábio leporino, uma medalha, provocaria uma pinta escura.
Todo desejo da mulher grávida deveria ser satisfeito, devendo comer o que lhe apetecesse,
sob pena de “perder a barriga”. Para que a criança fosse caseira, amiga de sua casa, seu cordão
umbilical deveria ser enterrado sob a soleira da porta. Para não ter mais filhos a mulher deveria
tocar com a mão direita em pedra d´ara no altar, enterrar a placenta de boca para baixo depois do
parto ou por no último filho o nome do pai ou o de São Geraldo. Vestir a ceroula do marido, colocar
na cabeça o chapéu do marido às avessas e soprar em garrafas também podia ajudar, indicam as
pesquisas sobre o folclore realizadas por Cascudo (2000).

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Cultos ligados à proteção do parto, Nossa Senhora do Amparo, da Luz, da Glória, do Bom
Parto, da Boa Hora são reveladores dos perigos que rodeiam o momento do parto, assim como o
mal-de-sete-dias, o tétano umbilical encontram-se entre os perigos eminentes que evidenciavam o
risco de morte no momento do nascimento. Ilustrando essa questão Freyre (1954) apresenta um
trecho do Manual do Fazendeiro ou Tratado Doméstico sobre as Enfermidades dos Negros
registrando que nas senzalas, muitas crianças morriam anjos por ignorância das mães que cortavam
o cordão muito longe do “embigo” colocando pimenta e óleo de rícino para em seguida apertarem o
ventre com faixa.
Assistir partos passou a compor, até meados do século XX, o universo das tarefas femininas.
Era parte do aprendizado e da sabedoria transmitidas de mãe para filha na experiência do dia-a-dia,
embora, em alguns locais do Brasil as parteiras ainda tenham um lugar no cuidado da saúde da
mulher.
Dados de pesquisa coletados por Scavone (2004) no Estado do Maranhão entre 1982 e 1985
indicaram a permanência de uma tradição de parteiras cujo aprendizado concretizou-se
acompanhando partos, conforme o depoimento de Mônica aqui reproduzido:
Foi em ocasião que eu ajudava mamãe, que era parteira velha também, isso no
interior...nesse tempo eu estava com treze anos...ela me botava para ajudar ela...e me dizia:
minha filha, não é a parteira que ensina é Nossa Senhora, não tem ensinamento...comecei
com 30 anos de idade fazer por minha conta e hoje eu faço muita coisa que eu não sabia
mesmo. (SCAVONE, 2004, p. 165)

Este trecho de memórias indica que as memórias autobiográficas, as memórias particulares e


a memória coletiva estão imbricadas e podem revelar o modo pelo qual as pessoas estão inscritas na
sociedade. É pautada por essa compreensão que se apresenta uma perspectiva de experiências
cotidianas em torno da ação das parteiras no município de Batatais, Estado de São Paulo.

A tradição das parteiras em Batatais

A tradição das parteiras que se compôs no Brasil estendeu-se por todo território e em
Batatais não foi diferente. Sendo assim, foi possível compor no campo das tradições, neste caso, das
tradições imateriais, aquelas que estão confinadas nas memórias das pessoas, no interior das casas,
nos baús das recordações, a prática de parteiras e assim constituir uma das múltiplas faces da
maternidade como propõe Scavone (2004).
Relembrar a partir das histórias ouvidas e vividas pela avó, a parteira Maria Ferrari Trovo,
foi o que fizeram as irmãs Maria José e Dalva. Nascida em 1881 Maria Ferrari Trovo morou na
Fazenda Bom Jesus onde iniciou sua prática de parteira. Depois que os filhos ficaram adultos e

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passaram a trabalhar por conta própria mudou-se para a cidade. Na fazenda, para fazer o parto ia a
pé ou na garupa de cavalo chegava ficar dois dias na casa da parturiente enquanto deixava os onze
filhos mais novos por conta da filha mais velha (Basaglia, 2005).
A prática de atender os partos de suas filhas e de suas netas valeu a Maria Ferrari Trovo o
nome de Madrinha e nessa condição foi chamada para fazer o primeiro parto da neta Dalva.
“Quando precisei, chamei minha avó e o parto foi difícil. Ela foi chamada perto de sete horas da
noite, quando ela chegou era oito horas e a criança nasceu quinze para o meio dia do dia seguinte
porque a criança corou e não saiu”.
Na maleta de parteira a Madrinha tinha “tesoura, uma lata
vazia de goiabada, fumo e azeite. Ela queimava um pano para
desinfetar e misturava o fumo de corda com azeite na lata e depois
colocava no umbigo”. Para Dalva a maior exigência estava no
resguardo. Era preciso esperar quarenta dias porque “por quarenta
dias o corpo fica aberto” dizia a Madrinha. Não tomar banho
geral, apenas meio banho, não lavar a cabeça, amarrar lenço e
calçar meia, não “dar” para o marido estavam entre as
recomendações (Basaglia, 2004, p. 122).
Figura 1: Parteira Maria Ferrari Trovo-1948
A segunda filha de Dalva nasceu no Hospital. Esse parto foi rápido e no hospital ela não foi
orientada para o resguardo, sendo atendida na ocasião pela enfermeira e parteira Neuza Mello.
Dalva lembra que “outra parteira da cidade foi a dona Feliciana que atendeu depois da Madrinha.
Ela foi famosa na cidade. Havia outras “curiosas” que tinham liberdade total porque nessa época os
médicos não se opunham” (Basaglia, 2004, p. 123).
A referência à Feliciana levou até uma de suas filhas, Anna Rodrigues Ferreira, que é
reconhecida como Anita que inicia seu depoimento contando: “me formei professora primária em
1946, no Colégio Nossa Senhora Auxiliadora de Batatais. Trabalhei nas fazendas Lajeado, São José
da Fartura, Boa Sorte e Grupo Escolar Rural de Batatais. Casei-me em 1947 e tive quatro filhos,
sendo assistida por minha mãe Feliciana Arias Muniz”.
Anita relata que quando lecionou na Fazenda Boa Sorte fez um parto. Um dia, chegando
para lecionar sua ajuda é solicitada para socorrer uma das moradoras que estava em adiantado
trabalho de parto. Não teve dúvidas, ajudou a criança nascer e, embora, não tenha acompanhado a
trilha de parteira estabelecida por sua mãe, guardou o momento como uma boa lembrança.

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Durante meu período de trabalho na Fazenda Boa Sorte, tive uma experiência que me
deixou marcas. Ao chegar na estação de trem, me deparei com dona Sonia, esposa do
engenheiro responsável pela fazenda que pertencia a Estrada de Ferro Mogiana, hoje
Fepasa. Vinha ela aflita, pois, uma adolescente recém-casada entrara em trabalho de parto e
não havia quem a socorresse.
Chegando à casa da colônia a pobre parturiente usava uma camisa suja do marido e soprava
uma garrafa vazia. Ao redor da cama algumas mulheres aguardavam o nascimento. A moça
se desesperava com aquilo.
Depois de colocar as “assistentes” para fora do quarto, iniciei alguns métodos de higiene e
fiquei auxiliando a futura mamãe na ajuda do parto e no corte do umbigo. Logo nascia
Márcia Amparado, filha de Humberto Amparado e Aparecida Amparado. Nesse ínterim
chegou minha mãe, que retirou a placenta e cuidou da moça.

Ela explica que sua mãe Feliciana Arias Muniz era uma imigrante espanhola nascida em
Madrid que chegou recém-nascida ao Brasil no início do século XX. Veio com a mãe Carmen
Muniz para encontrar-se com o pai João Arias que as esperava na Fazenda Jaguarão, em Franca-SP
onde trabalhava como administrador da lavoura de café juntando dinheiro para trazer a família da
Espanha.
A trajetória de Feliciana como parteira começa com sua mudança, depois de casada, para a
Fazenda Guanabara, município de Franca, de propriedade do
médico Luiz Ramos que a iniciou na arte de partejar para que o
ajudasse nos partos da fazenda. “Foi nessa Fazenda que eu nasci”,
diz Anita. Da Fazenda Guanabara Feliciana muda-se para a
Fazenda Jequitibá, no município de Batatais, onde continua sua
lida de parteira. A família viveu 14 anos na Fazenda Jequitibá e foi
o fato de Feliciana ficar viúva que a levou a mudar-se para a
cidade com seus nove filhos: Thomaz, Carmen, os gêmeos João e
Antônio, Manoel, Luiz Gonzaga, Anna, Luiz e Ercilia.
Figura 2: Parteira Feliciana com a filha Anita.

Em 1942 Feliciana inicia seu exercício de parteira na cidade de Batatais, atividade que
praticará ao longo de 32 anos. Ela morreu em 1975, mas, atendeu partos até 1974.
No depoimento sobre a mãe, Anita revela que ela era exigentíssima com a higiene. Quando
chegava para ajudar no parto “orientava para um banho enquanto trocava as roupas de cama, o
banho poderia ser de chuveiro, ou até de caneca, como era comum”. Após o parto não proibia
banhos ou lavação de cabelos, “achava que isso não tinha importância”, mas, aconselhava canjas e
caldos para os primeiros dias depois do parto e cuidava tanto da criança “até cair o umbigo” quanto
da higiene da mãe, na cama.

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Todas as vezes que fazia um parto não deixava de comentar com os filhos que o que mais a
incomodava era a falta de higiene: “uma de suas parturientes tinha tido uma relação sexual com o
marido pouco antes de entrar em trabalho de parto e não tinha tomado banho, de modos que estava
cheia de ‘bambulinhas’ e seu receio era que a criança tivesse uma infecção”. “Minha mãe ficava
muito brava com a falta de higiene, era exigente com a higiene”, reitera Anita.
A parteira Feliciana recomendava calma quando as mulheres ficavam agitadas, com medo
do parto e fazia campanhas quando a parturiente era muito pobre. Ajudava com o enxoval do bebê,
alimentos e roupas para a família, caso fosse necessário, “todos tinham que ficar preparados porque
minha mãe pedia ajuda, inclusive para nós, seus filhos, que deveríamos ser os primeiros a ajudá-la”,
diz Anita que encerra o relato sobre as práticas de sua mãe revelando que na “caixa de parto” ela
tinha vários tipos de remédios e instrumentos. Carregava um fio, “semelhante ao fio dental”, para
amarrar o umbigo. “Ela recebia orientações do Dr. Ângelo e do Dr. Jorge Nazar. Caso precisasse de
ajuda em um parto complicado ela recorria a estes médicos”.
Mais um nome de parteira amplia a rede de interações. Ele vem da parte de Odete e remete à
Maria José Demonari.
Em Batatais eu me lembro de Dona Sebastiana, era uma preta bonita que morava na rua
Santos Dumont. Lembro-me de um parto de minha amiga Zezé Demonari. Eu era mocinha,
tinha 15 anos e essa vizinha começou passar mal, fiquei tomando conta das crianças e eu
não esqueço porque peguei o nenê recém-nascido. Fazia umas duas horas apenas que o
nenê tinha nascido e a dona Sebastiana me chamou no quarto para carregar. Foi a primeira
vez que eu carreguei um nenezinho que tinha acabado de nascer. (BASAGLIA, 2005, p.
123)

Solicitada para dar seu relato, Maria José Demonari, conhecida como dona Zezé, conta que
teve cinco filhos com a “comadre” Sebastiana. Os dois primeiros filhos, a Joana e o José Antonio
nasceram com a dona Corina na Fazenda Bom Jesus.
Mudei para a cidade e tive o Paulo, a Rita, o Cássio e a Benê com a comadre Sebastiana.
Também foram partos fáceis. Todos eles nasceram nesta casa da rua Santos Dumont. Minha
quarta filha, a Maria, nasceu com a tia Inês Raimundini porque a comadre Sebastiana
estava fazendo um parto na fazenda. Tia Inês era outra parteira famosa de Batatais, era
muito boa também. Morava no bairro Santo Antônio. (BASAGLIA, 2005, p.124)

O parto que está entre as recordações de Odete é o de Manoel Francisco que se tornou seu
afilhado. Ele é o filho mais novo de dona Zezé que conta que havia acabado de jantar, era mais ou
menos seis horas da tarde, e foi sentar-se na calçada quando começou a passar mal, uma hora depois
seu filho já tinha nascido. Dentre as recomendações que dona Sebastiana passou para o resguardo
estavam: “ficar quatro dias de cama, sem levantar. Por quarenta dias não podia lavar a cabeça e
devia usar meias. Comidas como arroz e feijão, só depois de quinze dias, até esse dia, sopa e pouca
carne. Não era bom comer nada frio, não comer fora de hora, não comer comida pesada”.

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O umbigo era curado com óleo e fumo de corda. Enfaixava durante quarenta dias. A parteira
Sebastiana “picava o fumo e misturava com óleo,
queimava um pano e colocava em volta do umbigo. Até
cair o umbigo ela vinha todos os dias dar banho, benzer e
cuidar”, um procedimento similar ao da parteira Maria
Ferrari Trovo que “queimava um pano para desinfetar e
misturava o fumo de corda com azeite na lata e depois
colocava no umbigo”.
Foi Ana Aparecida, a filha mais velha de dona
Sebastiana quem deu sequência às interações. Embora
esse relato conste de estudo anterior ele compõe esse texto
por ter a peculiaridade de ser livre de perguntas ou
direcionamento. Foi organizado por Ana Aparecida a
partir do pedido que falasse sobre sua mãe como parteira.
Figura 1: Parteira Sebastiana de Assis Braz-1973
Minha mãe, Sebastiana de Assis Braz, era filha do Chico Braz e de Francisca de Assis Braz.
Ela era mineira de Sacramento e veio para Batatais, casada e com filhos. Primeiro nós
moramos um pouco para baixo do Colégio São José, mudamos para a rua Santos Dumont e
depois minha mãe morou no Riachuelo. Era casada com Manoel Alves, que era boiadeiro,
mãe de quatorze filhos.
Joaquina de Assis Matos, minha avó, era parteira. Minha mãe veio para Batatais com essa
tradição. Essa era sua missão.
Ela já parterava há muito tempo e num parto muito difícil ela chamou o médico na hora
certa. Ele achou muito importante o que ela fez, por esta razão ela foi chamada por esse
médico, o doutor Ângelo Marcolino. Foi convidada para ser assistente e tinha carta do
doutor Ângelo. Nesse tempo o médico podia ser responsável por uma parteira.
Dois motoristas de táxi iam buscar minha mãe em casa, o Tótinho e o Santinho. Eles
diziam:
―Vim chamar a senhora para ir à fazenda.
Minha mãe foi uma parteira muito boa. Ela falava sempre para mim:
―Cida, você nasceu de bruços, você deveria acompanhar sua mãe para também ser
parteira.
Mas eu dizia que não servia para isso.
Ela punha o ouvido e colocava uma mão de cada lado da barriga e dava o diagnóstico:
―Você ainda vai uns três dias, você precisa andar bastante.
Tinha uma maleta com remédios indicados por receita, pelo doutor Ângelo. O umbigo
curava com fumo e óleo de mamona para cicatrizar. Tinha uma caixinha branca com gases
que ela pegava com uma pinça.
A maior alegria da minha mãe era quando nascia uma criança. Ela saía com o avental
branco na maior felicidade.
Nós recebíamos de tostão e dávamos para minha mãe que fazia partos e não cobrava. Nós
passávamos muita dificuldade. Ela nunca reclamou. Ela dizia para a gente:
―A pessoa me dá alguma coisa se ela puder. Se ela disser não tenho como pagar, eu não
cobro, meu filho.
Ela tinha muitos “netos”, crianças que ela trouxe ao mundo. No velório dela tinha muitos
jovens, muitos a chamavam de vó, mas, nós não sabíamos porque ela nunca dava os nomes.

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Antes de fazer um parto ela fazia uma oração, ela encontrava facilidade em tudo. Se tivesse
que ajudar, ela ajudava. Ela dizia:
―Ser parteira não é para qualquer pessoa, para trazer uma vida é preciso transportar o eu
da outra pessoa que está vindo para a vida.
Ela se comunicava, ela chamava o ser para a vida. Ela tinha uma clareza muito grande do
que era a vida. (BASAGLIA, 2005, p.126)

Os depoimentos e as reflexões em torno das parteiras não se esgotam com este recorte no
espaço tempo. Podemos considerar que se trata de um fragmento de memórias que compõe apenas
um dos múltiplos ângulos do caleidoscópio de experiências cotidianas do universo feminino,
podem, no entanto, suscitar lembranças de outras pessoas que aqui não estão presentes, mas que
vivenciaram experiências análogas e cujos passos ainda ecoam pelos caminhos que cruzam o
município.

Considerações Finais

No Brasil, a partir da chegada dos portugueses instalou-se a tradição das parteiras e a partir
de então essa tradição foi se consolidando e as mulheres passando pela experiência do parto com
ajuda de outras mulheres, ou mesmo, de forma solitária. Ao longo desse tempo algumas mulheres,
sem ter acesso ao ensino formal, sem saber escrever e ler tornaram-se conhecidas pela sua
habilidade em acompanhar as mães e ampará-las no momento delicado do parto.
Com o tempo a prática das parteiras passa a ser visada e com as novas formas de
compreender o ofício de partejar as parteiras, aparadeiras, comadres, curiosas ou assistentes
deixaram de ser solicitadas e esta prática caiu em desuso em quase todo Brasil, sobretudo, nas
regiões que se urbanizaram no decorrer do século XX, em nome da ciência médica.
No entanto, nos primeiros anos do século XXI não apenas é possível reviver esse passado
em Batatais, mediante relatos orais, como também constatar que a prática das parteiras, agora
reconhecidas como tradicionais, mantém-se viva, como o exemplo do bairro chamado Vila Rica, em
Jaboatão dos Guararapes, cidade periférica de Recife.
Um bairro que concentra enorme número de parteiras tradicionais. Mulheres que
aprenderam pela tradição oral a cuidar das mulheres grávidas de suas comunidades desde as
primeiras semanas, num acompanhamento permanente. Usam um pequeno cone de madeira para
escutar o nenê e as mãos para ver se tudo está correndo bem. Elas não cobram pelo parto, e quando
necessário levam comida ou roupa para a parturiente que acompanham. (CAIS DO PARTO, 2005)
Retratar o tema das parteiras e do ato de partejar não é discorrer com saudosismo sobre um
passado remoto e sim relembrar e também projetar para a existência de um significativo número de

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parteiras habitando as regiões Nordeste e Norte do Brasil. Locais em que as parteiras tradicionais
assumem um papel social fundamental de “parir um mundo novo”, ao lado de movimentos urbanos
em favor do Parto Humanizado, respeitando o direito das mulheres de escolherem com desejam ter
seus filhos.

Referências

BASAGLIA, Claudete Camargo Pereira. Parteiras e partos: experiências cotidianas do universo


feminino. In: AMICUS – Batatais-SP, ano VI, nº 12-novembro/2005
BRASIL. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE. IBGE CIDADES@ SÃO
PAULO-BATATAIS. Disponível em
http://www.ibge.gov.br/cidadesat/xtras/perfil.php?codmun=350590. Acesso 28 jun 2013a.
BRASIL. Ministério da Saúde. Maternidade: tipos de parto. Disponível em:
http://www.brasil.gov.br/sobre/saude/maternidade/parto. Acesso 28 jun 2013b.
CAIS DO PARTO. Parteiras de Jaboatão. Disponível em www.tvcultura.com.br. Acesso 15 jun
2013.
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São Paulo: Global, 2000
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Record: Rosa dos Tempos, 1997
MURARO, Rose Marie. Breve introdução histórica. In: KRAMER, H. e SPRENGER, J. O martelo
das feiticeiras. 12. ed. Rio de Janeiro: Record: Rosa dos Tempos, 1997, p. 05-17
QUEIROZ, Maria Isaura Pereira de. Relatos orais: do divizível ao indizível. ln: SIMSON, Olga de
Moraes von (Org.). Experimentos com histórias de vida. São Paulo: Vértice, 1988.
QUEIROZ, Maria Isaura Pereira de. Variações sobre a técnica do gravador no registro da
informação viva. São Paulo: Centro de Estudos Rurais e Urbanos, 1983. (Textos CERU, 4).
SCAVONE, Lucila. Dar a vida e cuidar da vida: feminismo e ciências sociais. São Paulo: Editora
da Unesp, 2004.

The practice midwives and maternity multifaceted universe


Abstract: The text of The practice midwives and maternity multifaceted universe composed a stage
for Gender Studies carried along by denying NEGAr – Núcleo de Estudos de Gênero de
Araraquara/SP. This reflection on the role of midwives at a time when the history of obstetrics and
gynecological care, which began with women, passes into the hands of men and continues its path
by scientific medicine. With this distinction let the midwives to be protagonists and spent the
auxiliary until medical practice gynecology completed the transfer of empirical practice female to

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male medical rationale. To illustrate the reflections presents some experiences of midwives, which
are related to their social role, in different spaces and times. Personal, family and social experiences
lived in the city of Batatais-SP complete the researched sources and contribute to reconstruct the
past considering the historically constituted knowledge and developed by midwives at births, in
contraception, in interruptions of pregnancy, or in relationships with the many faces of motherhood.
Keywords: Midwives. Births. Oral reports. Batatais-SP.

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