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a longa viagem

ao ponto de partida

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DINAH HOISEL

a longa viagem
ao ponto de partida

Salvador | 2008

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©2008, by Dinah Hoisel

Revisão
Baísa Nora

Projeto gráfico, capa e editoração eletrônica


Alana Gonçalves de Carvalho

Ilustrações
Autora

Fotografia da autora
Liane Hoisel G. O. Menezes

Biblioteca Central Reitor Macêdo Costa – UFBA


Hoisel, Dinah.
A longa viagem ao ponto de partida / Dinah
Hoisel. - Salvador : Ed. do Autor, 2008.
176 p. : il.

1. Poesia brasileira. 2. Literatura brasileira. I.


Título.

CDD - 869.1

É permitida a reprodução de trechos e poemas desta obra, por quaisquer meios técnicos,
desde que seja citado o autor – dinah.hoisel@hotmail.com

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Ao Mestre Osvaldo Ramos (in memorian)
e aos meus alunos.

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Sumário

09 | Prefácio | 2 | Você tem um jardim? É preciso ter


49 Desvio
50 Receita para permanecer jovem
11 | Apresentação 53 Poemeto I
54 Meu jardim de um dia
| 1 | Receitas e lições que aprendi 55 Momento da Criação
enquanto passeio por este mundo de
muitas ilusões e poucas certezas | 3 | Um amor que deu certo . . . até
15 Oportunismo certo ponto
16 Receita para fazer poemas 59 Amor sem rumo
17 Mais que nunca 61 Canção para o mar amigo
18 Divulgando 63 Eu, você. . . e água
20 Vivendo 64 Sem título I
21 Meu chão 65 O que é isto??
22 Receita 66 Lembrando Vinícius
23 Lição inesperada 67 Sem título II
24 Nas atuais circunstâncias 69 Segredo
27 Sem mordaça, sem algemas 70 Fim
29 Ética
30 Para não sofrer
32 Metamorfose | 4 | Quando é noite, a aurora vem
33 Historinha vindo
35 Paradoxo 73 Destilando como sssserpente
36 Gaia ferida 75 Influência lunar
38 Ulisses 77 Involução
39 Procura-se 79 Hoje, não!
41 A melhor lição 80 Desconstrução
43 Por uma certa via 82 Tsunami
45 Lição do pega-varetas 84 . . . não assim!

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86 Aflição 134 Ao Leo
87 Indiferença 136 A mulher e o iguana
89 Choque 138 Ali, tão perto. . .
92 Sufoco 139 Confissão
93 Urgente e sem poesia 141 Meu riacho
95 Desistência 144 Anseios
97 Momento crucial 146 Mistério II
98 Shopping 147 Confusão
99 Cegueira 148 Outono em Aranjuez
100 Sombras 149 Relâmpago
150 Maluquice

| 5 | Em contato
103 Rumo à Plenitude | 7 | Testamento
104 Um dia eu volto 153 Piuííí
105 Sonho 154 Um testamento?
106 Órion 156 Quando eu me for
107 Encontro marcado 157 Herança
108 Mistério I
109 Sinal aberto
110 Alma divina | 8 | Poemetos
111 Mahalakshimi, mãe da beleza 161 II
113 Moto contínuo 162 III
115 Meditação 163 IV
117 Beleza, Verdade, Sabedoria 164 V
121 Hora dupla 165 VI
166 VII
167 VIII
| 6 | Quero-te próximo 168 IX
125 Último poema 169 X
127 A ti, que lês meus versos
128 Serena mente
| 9 | Última palavra
130 Vícios
131 Desabafo 173 Solução
133 Natal

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Prefácio
Neste segundo livro a autora continua seu processo. Tendo sua vida
socialmente ativa e produtiva bastante refreada, recebe, e ganha por direito, a
oportunidade de fazer-se cada vez mais observadora e reflexiva em análises
racionais e ou emocionais do universo de si mesma, do universo dos outros e do
universo em si, o que vem a ser tudo a mesma coisa. E a poesia responde.
Seus temas vagueiam na inspiração dos clássicos da mitologia, da literatura
e sobre tudo nos clássicos da música popular brasileira com seus divinos |9|
poetas, músicos e intérpretes.
Por esses filtros, a poesia escorre fazendo-se cristalina ao refletir a vida
nos seus versos.
Boa leitura.
Boa viagem...

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Apresentação
Aqui me escapa o intuito de conhecimento do trabalho literário, próprio
de especialistas. Não me cabe esta presunção. Diria até que estou a improvisar,
não fosse saber de Dinah Hoisel, por anos comigo e em mim, visitando a
filosofia, cultivando a amizade e, no tempo percorrido, falando ao coração.
Neste seu segundo livro, A longa viagem ao ponto de partida, como
no anterior, Canto e contracanto, estão os olhos, a voz da poeta em plenitude
de significados ao dizer-me, pessoalmente, de sua criação poética, explodindo
o seu saber de saber revelar-se. | 11 |
São palavras apaixonadas e inquietas no gosto de cantar os seus poemas
como a libertar a poesia, antes em misteriosa região aprisionada, e agora
exposta em versos. No livro a presença viva e inteira da poeta.
Canto e música na poesia de Dinah que neste livro de nove blocos temáticos
produz poemas que são lidos para permanecerem na emoção, como aquelas
paisagens revividas, jamais esquecidas.
Dinah diz: “a poesia bateu à minha porta” por ela atendida, na abertura
pressentida de também querer e poder poeticamente dizer do seu sensível e
criativo chamado para a compreensão da realidade e do humano que nela habitam.
Nascem o seu compromisso e impulso para a filosofia, para a teologia,
para a educação, para a arte, na expressão da multivisão poética. A síntese
desta exigência se faz.
Poemas que passam pelos encantos e desencantos do existir em seu enfoque
existencial, pelas imagens do nosso cotidiano, pelas dores e alegrias do mundo,
em atenção à imanência, mas em vôo para a transcendência que o seu cuidado
“jardim” lhe permite.

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Os traços dos desenhos, no livro, pintam poemas e são palavras nas
palavras dos versos.
Em minha passageira visão da poesia escapa-me o proceder analítico dos
poemas, guardando na alma o universo poético de Dinah Hoisel, que tem a
graça de se plantar poeta mesmo quando é árido o chão.

Sabem o que fiz?


Transformei
meus desertos e florestas em jardins!
| 12 | [...] (Receita)

[...] Aceito e compreendo as pedras do caminho.


Aceito as curvas tortuosas, os abismos.
Aceito as flores, tanto quanto aceito o espinho
[...] (Por uma certa via)

[...] Tornar-se humano


em mundo desumano
– fragoroso empenho.
[...] (Involução)

Helena dos Anjos Souza

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1
Receitas e lições que aprendi
enquanto passeio por este
mundo de muitas ilusões e
poucas certezas

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Oportunismo
Ai amigo,
cuida-te em não ficar decepcionado.
| 15 |
Não penses ouvir de mim nada original,
palavras virgens, algo não contado.

Apenas sou um eco, tão desgovernado,


nem sei criar, sou cópia, sou carbono,
apenas xerox do que já foi vivido,
sentimentos recolhidos em campo abandonado.

Colhedor de cogumelos, vou guardando


no cofre de mim mesmo, à revelia,
o que outros, por desvalia desprezaram,
sem saber dos tesouros preciosos
que, por negligência, rejeitaram.

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Receita para fazer poemas
Para criar poemas é preciso
se perder em pensamentos.
Não ter medo de estar só.
Não esquecer nunca
de quedar-se triste. . . ou radiante.

Ouvir Vinícius é fundamental


| 16 | (em voz de Bethânia, o ideal).
Banhar-se em Chico, aos borbotões
e ler Fernando até dormir.

Pronto.
Aí o berço em que a criança vai nascer.
E a alma brasileira vem
na madrugada se contar.
– é o momento das musas em ação.

Claro, há receitas mais sofisticadas.


Mas esta é bastante
para deixar a alma enluarada.

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Mais que nunca
É preciso cantar, eu sei.
É preciso cantar
em nome de quem não canta.

Tanta garganta obstruída.


Tanta voz querendo se lançar sem conseguir.
Tanto coral está mudo, sem saída,
desejando em algum momento | 17 |
fazer jorrar alegria (ou lamento)
sobre o mundo.

Já não é possível calar.

Deixem-me cantar
enquanto posso.
Deixem-me levar pelas mãos
– criancinhas que não sabem como andar –
todas as vozes que
temem se expressar.

Não importa se o canto


é triste ou exuberante.
O que importa
é que se cante, cante, cante.

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Divulgando
A mi me gusta
reler o que
| 18 |
em momentos venturosos
escrevi.

Parece-me que suave maestro,


sábio, lúcido, engenhoso,
aproximou-se de mim,
expressou-se,
segredou-me melodias
. . . e, confiante, afastou-se.

Cabe-me a tarefa
de ouvir, elucidar, digerir,
viver, divulgar e expandir
o que me foi confiado.

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Sincrônica orquestra
de harmonia inquietante,
| 19 |
mágico tecido translúcido
entremeado no cotidiano.
Nem longe, nem perto,
mas dentro do momento vivenciado
a cada instante.

***

El corazón puro
es el mejor espejo
para que se refleje
la Verdad.

Solo así puede ser alcanzada


la comprensión
de la Realidade.
Sathya Sai Baba

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Vivendo
Permita-me não ter
opinião alguma sobre coisa nenhuma.
Quero apenas ver.
Ver, apenas, é a maior lição.
Quem sabe, num futuro próximo ou remoto,
o que apenas vi ensine-me algo
sobre a arte do viver.
| 20 |
Mas este passo me ultrapassa.
Me pega de surpresa,
nem sei se o aproveito.
Não vivo para aprender.
Vivo para viver. . . para ver.

Deixando que a vida


escorra entre os dedos.
Ou nas minhas veias
como um rio no seu leito.

Afinal,
não tem portos nem remansos
o rio do Caminho Perfeito.

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Meu chão
Onde me encontro e sou?
Onde piso? Por onde choro e canto?
Quero-me pés versáteis, fortes,
pisando a dor, o espanto,
contudo permanecendo firmes.
Feridos de espinhos. . . de cortes,
mas dançando, em suaves melodias,
doces canções de ninar. | 21 |

Quero-me caminhando sempre.


Olhar preso ao horizonte
da minha própria floresta,
meus desertos,
lá onde a luz
renasce a cada dia
sem que tenha adormecido à noite.

Não temo o campo e seus opostos.


No sombrio da terra
estremece a semente. . .
desperta, se contorce. . . e vive.

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Receita
Sabem o que fiz?
Transformei
meus desertos e florestas em jardins!

Claro, não para todo o sempre.


Só para aqueles momentos
em que me sinto frágil. . .
| 22 | em que, ridículo desertor,
não encontro forças
para enfrentar os moinhos de vento.

Deixo-lhes uma recomendação:


Tenham uma rede e um jardim.
– são excelentes conselheiros.

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Lição inesperada
Não.
Tenho certeza. Minha poesia não é vulgar
. . . nem hermética. Apenas linear.
Não é obscura nem impenetrável
. . . ao contrário, todos a compreendem.

Mas, o que me espanta:


alguns entendem mais do que escrevo. | 23 |
Há os que vêem mais longe.
Para quem minhas poucas palavras
abrem horizontes inesperados.
Para quem a chave da palavra dita
é apenas a chave.
E portas inescrutáveis são abertas.

Porque, na verdade,
a importância do relato
não está na voz que fala
mas no ouvido de quem ouve.

É isso.

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Nas atuais circunstâncias
Se posso, brigo.
Se não posso, emigro.
Rubem Alves

Em que consiste esse emigrar?


Fuga covarde de cão escorraçado,
ganindo, em rumo desordenado?
| 24 |
Abandono temeroso de soldado
que desiste da batalha,
se tornando um foragido,
um condenado, um desertor?

Atitude grotesca de quem


a certa altura desiste de viver,
cansado de estar sempre
sobre o fio da navalha?

Seria o emigrar o recorrer


à alienação do submundo
químico que corrói a mente,
o corpo, as relações,
estraçalhando o ser?

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Ou a conduta desvairada
de quem se envolve
num tornado de ilusões,
entorpecido, alienado | 25 |
no processo de não ver?

“Se posso brigo,


se não posso emigro”. . .
Sabendo que
o recuar é, muitas vezes,
o prenúncio da vitória.

Que a força do não-agir


é grito maior, ecoa mais longe,
mais alto. . . por mais tempo. . .

Que o valor do não


é arma poderosa
diante da prepotência.
A resistência é embate corajoso.

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| 26 |

O “deixa pra lá” é pusilânime.


O “não querer saber” é violência
O “não deixar saber”, pior ainda,
é crime.

O emigrar do poeta
é poderoso.
É assumir o direito de falar
através do silêncio
. . . ou do poema.

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Sem mordaça, sem algemas
O que devo pensar?
O que devo dizer?
| 27 |
O que devo sentir?
O que devo fazer?

Se me dizem que “devo”


é porque alguém já o soube
antes de mim.

Como pode ser isso?


Loucura alguém querer premeditar
aquilo que só a mim pertence..

A minha história
quem a vive sou eu
. . . e mais ninguém!

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Os meus passos se consumam
nas pegadas que eu mesma fiz.
Não quero “dever” nada!

No cotidiano, milhares de opções. . .


Mas o poder de decisão é meu.
E dele não abro mão.
Livre, tal qual o vento,
que rompe sua própria estrada.
| 28 |
Já “devi” muito na vida.
Hoje não devo mais nada!

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Ética
É preciso reconhecer a hora
de fechar a porta
e bater tranqüilamente
em retirada.
Pouco adianta dar murro
em ponta afiada
ou forçar a barra onde já não há consenso.
| 29 |
Pugnar sem perceber vitórias,
melhor é transitar em outras plagas.

Transigir frente à verdade


é algo perigoso.
Conciliar-se com o inconfessável
é abrir mão das próprias convicções.

Ter consciência e não perder o tino


de julgar a ética das próprias ações.

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Para não sofrer
Exigi demais da vida.
Exigi verdades
quando o entorno
era apenas fantasia.

Impossível viver
só de verdades. . .
| 30 | Olhar nos olhos
exige fidelidade
(outra impossibilidade).

Impossível conseguir que sonhos


se tornem realidade.
Há sempre um través
que impede a verdade de fluir.

Verdade.
Coisa terrível
que sufoca
e faz estremecer. . .
Melhor “fazer de conta”,
é mais humano.

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Fragilidade humana,
verdade indiscutível
impedindo a essência
de aflorar à luz do dia.

E fica a impressão:
Melhor teria sido
| 31 |
aceitar a ilusão,
aceitar o desafio da mentira.
Vestir também a fantasia
e deixar correr a vida.

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Metamorfose
Vivemos do “provavelmente”
pois o “certamente” é, certamente,
muito discutível.

Dentro do campo
os pontos de vista
se posicionam
| 32 | em paradoxal conflito.

Se muda o ângulo de observação,


também a inferência
se desloca e o quadro
muda inteiramente de feição.

Conhecimento demais é suicídio,


mata o que de melhor existe
– o direito de mudar.
É quase infanticídio.

A criança que habita em nós


quer ver pela primeira vez,
quer encantar-se e cantar
o novo, com sua própria voz.

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Historinha
Por Deus, quebrem os freios!
Rompam as algemas!
Aniquilem as correntes!
Dissolvam os limites!
Matem o medo!

Há um pé de feijão
querendo brotar, subir, | 33 |
fazer-se escada.
Somos todos Joãozinho
querendo enxergar além.

Não há ogros no futuro!


Nos ensinaram mentiras
e nelas acreditamos.
Evolução. . . mais poder.
Competição fratricida.
O mais apto. . . o mais forte. . .
A vida é luta renhida.

Alguém ganha? Alguém perde.


Não há ogro no futuro,
ou poderia não haver.
Fora o que nos faz cativos.

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O universo é consciente,
compassivo, inteligente,
nunca, nunca vingativo.

Cinco sentidos,
primeiro degrau da escada,
realidade em conflito.
Morta a ave dos ovos de ouro
o olhar adivinha o infinito.
| 34 |
Um horizonte largo,
consciência em expansão,
mais degraus, maior visão.
Energia harmonizada,
berço da percepção.
Introdução no sagrado,
a real evolução.

Por base a suficiência,


Longe, a faminta ambição.

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Paradoxo
Cada vez mais
é preciso saber menos.

O saber nos entorpece,


estranha dormência traz.
Um céu escuro se forma.
Nuvens sombrias dominam
. . . é quando a vaidade cresce. | 35 |

O verdadeiro saber
chega sem pedir licença,
na rapidez de um raio.
Temos visão estupenda
(houve um desvelamento)
de algo que não foi visto.

Visão que faz diferença


e jamais será esquecida.

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Gaia ferida
Lembrando Caetano

Como quisera ser poeta.


Ter feito a fascinante descoberta:
Vivemos imersos no azul do céu
“que vem até onde os pés tocam a terra”.
Respira a Terra o azul que a envolve
| 36 | E, ao espaço, o azul que inspirou devolve.

Mas, horror, vê-se ferida


a glória de que é feita a vida.
Vê-se ferida, maltratada,
por mão submissa à liberdade
(liberdade conseguida, mas pouco merecida).
Vê-se maculada a infinita beleza.

Como ensinar ao ser humano a delicadeza?


Como fazê-lo compreender
o gozo que o contorna?
As cores do arco-íris tocam o chão,
ali apontam o único, o admirável,
o imensurável tesouro
que a luz do Sol revela.

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| 37 |

Somente os pés, as mãos e a vontade


podem criar nova mentalidade.
Abrir novo caminho
à nova realidade, permitindo
que o verdadeiro céu nos mude
e nos devolva a felicidade.

A longa viagem....pmd 37 24/7/2008, 12:14


Ulisses
Deixem-me a sós comigo mesmo. . .
É como encontro o rumo para casa.
Deixar de lado veredas perigosas
ou resistir ao canto da sereia
com ofertas de ilusões e de segredos
que me seduzem com paisagem fascinante.
Para depois. . .
| 38 | ver o meu barco estraçalhado entre rochedos.

A bruma vai sumindo a cada instante


e fico atento
ao que se descortina no horizonte.
Em mar aberto tudo pode acontecer.
Há sempre algo impedindo que o veleiro
prossiga em seu projeto.

Tormentas, procelas, calmarias,


ventos de través testando o timoneiro.
Um pulso forte, seguro,
é fruto da sabedoria.
Quero chegar ao meu porto com certeza.
Discernimento, coragem, paciência,
talvez seja tudo que preciso.

A longa viagem....pmd 38 24/7/2008, 12:14


Procura-se
Procura-se um coração sensível,
alguém que saiba ver. . . ouvir. . . calar-se.
Alguém que queira mergulhar, sem medo,
no poço do prazer ou da loucura.

Alguém que olhe nos olhos


e se derrame em gestos de ternura
sem pensar que perdeu algo de si | 39 |
. . . ou se divide.

Alguém que não se importe


de dançar na praça
e nem perceba que
a multidão aplaude.

Alguém que não duvide.


Que nem falar precise,
pois os olhos e o silêncio dizem tudo.

Alguém que ame envolver-se


na brisa dos domingos
qualquer que seja o dia da semana.
Que se encante ao receber no corpo,
inesperadamente,
as águas do verão de março.

A longa viagem....pmd 39 24/7/2008, 12:14


Que não esconda o rosto
ao soluçar, chorando.
Sim, alguém que chore!
Mas chore de verdade.
Seria pedir muito
em mundo tão fingido?

Procura-se alguém que ame


sem que, necessariamente,
| 40 | esse amor precise acabar na cama.

Alguém com olhos de espanto


ao ver, perto de si, um passarinho.
Que coma, com prazer, o pão de cada dia,
o mesmo prazer que sente num copo de vinho.

E que saiba sorrir a cada instante.


Sorrir de tudo, de nada, de lembranças.
Não. Não precisar gargalhar.
A gargalhada é o abuso do sorriso.

Alguém que queira


ler e apreciar poemas.

(Alguém está precisando é de um amigo. . .)


Se você preenche este perfil, por favor,
venha estar comigo.

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A melhor lição
A vida é um cavalo xucro
que não se pode domar.
Sem sela e sem arreios.
Não se deixa dominar.

Em cada esquina, a surpresa,


um turbilhão sem defesas
que sai varando o destino | 41 |
sem permissão pra opinar.

Quem não treinou ser peão


por certo vai estranhar,
não pode se equilibrar.
Como um boneco mambembe
no chão vai-se estatelar.

Melhor lição vem do junco


que cresce à beira do rio,
resiste a qualquer tufão
pois se dobra humildemente
aceitando o desafio
de não se deixar quebrar.

A longa viagem....pmd 41 24/7/2008, 12:14


Passando a tormenta, o frio,
ele se ergue sorrindo,
sabendo-se vencedor.
Tudo passa. . .
Não há bem que sempre dure
nem dor que nunca termine.

Vence a vida.
Vence o junco.
| 42 | Cada qual no seu querer.
Ela vence por dominar.
Ele, por não se deixar vencer.

A longa viagem....pmd 42 24/7/2008, 12:14


Por uma certa via
É quase inacreditável
que em mundo tão confuso, tão disperso,
ainda haja espaço para a alegria.
Pássaro fugidio, sem pouso certo,
de canto sutil, suave, tranqüilo,
mas atento e acessível
a quem se permita ouvi-lo.
| 43 |
Eu, de ouvido atento, confio,
escuto, aceito e agradeço
esta maravilhosa via
para o encontro com a paz interior.
A certeza de que bem dentro de mim,
há um mundo de harmonia e de beleza,
diante do qual me dobro e me enterneço
e, para o qual, seguro, me encaminho,
oferecendo toda minha força
na conquista paulatina do caminho.

Se há um prometido paraíso,
se dentro de mim encontro a sua pista,
se fora de mim o ímã poderoso,
se dentro de mim a resposta irrecusável
na teimosia incansável do alpinista,
por que não confiar?

A longa viagem....pmd 43 24/7/2008, 12:14


Confio, sim, confio
que minha ânsia de saber, tão aparente,
sugere apenas
o meu intenso amor pela Verdade.

Confio que minha ânsia de viver,


que é tão constante,
é uma centelha do meu canto à Eternidade.

| 44 | Que aquele meu desejo de prazer e de alegria


apenas toca
a confiança na eterna Felicidade.

Aceito e compreendo as pedras do caminho.


Aceito as curvas tortuosas, os abismos.
Aceito as flores, tanto quanto aceito o espinho

. . . fazem parte da aventura, da viagem,


deste rali exigente de coragem
no qual se prova a confiança, a fidelidade,
a esperança, a força, a energia. . .

Passageiro do tempo, vou à lida


fazendo história, realizando eternidade,
agradecendo a paz interna que confirma
a suprema alegria de ser Vida.

A longa viagem....pmd 44 24/7/2008, 12:14


Lição do pega-varetas
O jogo pega-varetas
é muito esclarecedor:
aponta-nos a Unicidade.

Qualquer movimento brusco,


sem cuidado ou reflexão,
provoca desmoronamento,
desvirtua a intenção. | 45 |

Movimento de vareta
ou voejar da borboleta
tem infinita extensão. . .

Todo o campo se transforma,


tudo sofre alteração,
atinge todo o planeta.

Cuidemos de nossa ação.


Dela depende o produto
que leva ao bem ou ao mal.

Nosso agir é poderoso,


exige reflexão pois
tem limite universal.

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A longa viagem....pmd 46 24/7/2008, 12:14
2
Você tem um jardim?
É preciso ter

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Desvio
Ah! ipoméia tão tola
florindo neste jardim,
| 49 |
centenas de botões a abrir,
refreando sua fartura
– pensando poder fingir –
abre uma só flor por dia.

Existe muita gente assim:


tendo tanto amor pra dar,
temendo pelo futuro,
evitando se gastar
e não querendo sofrer,
distribui amor em gotas
numa tola economia.

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Receita para permanecer jovem
Aberta a porta, o podocarpo
apresenta-se altivo, altaneiro,
e a triális aplaude em tons de ouro
o camarão que refloresce inteiro. . .

Superpostas camadas de cores


se derramam de inusitadas flores.
| 50 | Gosto assim.

Um arco-íris perfumado
contorna este pequeno mundo.
Pela janela vejo a íris
e suas folhas grávidas
parindo flores de todos os lilases.
E a lágrima-de-cristo
inundando a grade
em chuva de branco e vinho.

Fora de mim, o mundo,


impossível chão,
chora dores e lamentos
em seu tristonho caminho.

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Bêbada de jardim,
faço as pazes, refaço-me.
. . . E esqueço o que, lá fora,
é pura incompreensão.

Nenhum vazio profano


ocupa minha mente
| 51 |
ou meu horizonte humano.
Flores e música
se apossam de todos os espaços.
No meu possível chão
cultivo o que renova a alma
e o coração.
E me renovo a cada instante.

A palmeira, de um verde escancarado,


tal pássaro cativo, se arremessa
aos céus, agita suas asas,
mas, como o coqueiro do mato,
não consegue em vôo deslanchar.
. . . Seu esplendor, de tal grandiosidade,
dispensa as outras cores do arco-íris.
E ela reina, soberba, no seu verde singular.

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Rosas e hibiscos disputam a riqueza
do espectro solar. (Em silêncio observo. . .)
Da terra escura retiram cores impossíveis
e cantam, cantam e cantam
suaves melodias
em tons quase inadmissíveis.

Quanto ao divino vazio,


habitante indelével do meu ser,
| 52 | este não há que ser preenchido
pois, em si é a Plenitude.

E Ela se expõe
quando a alma fica muda.

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Poemeto I
Ó, Sol,
Tu que és tão forte
| 53 |
por que teimas
em disputar aposta
com tão delicadas flores?
Elas não resistirão.

Uma proposta te faço:


Por que não vais procurar
alguém assim do teu tamanho
para ver qual dos dois resiste
a esta queda de braço?

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Meu jardim de um dia
Se desejo admirar
a beleza do meu jardim,
tenho que estar desperta
e não perder um momento.
Lá, as flores são espertas,
não gostam de envelhecer.
Abrem e fecham num só dia.
| 54 | Enfeitam, encantam,. sorriem
– tudo, tudo, num só dia.

À noite, vem outro grupo,


em nova coreografia,
colorindo outra canção.
Pela manhã se recolhem
cansadas de tal missão.

Nesta dança poderosa,


tão cheia de encantamento,
às vezes dança uma rosa
reinando por mais um tempo.
Mas creio que é no fluir
do rápido enfeitamento
que se encontra a magia
do meu precioso jardim.

Na vida também é assim.

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Momento da Criação
Tivesse eu, agora, a chance de escolha,
sei bem o que me faria feliz:
Um pedacinho de chão
que nem verde precisava ser,
pois verde eu o faria em pouco tempo.

Bastava ter comigo um deus.


Um deus que exerceria | 55 |
a primeira profissão
que este mundo conheceu.

Um cuidadoso jardineiro,
bem grande e forte,
para vencer as pragas
e os riscos que correm as plantas.

Grande e forte, mas cheio de atenção


e de ternura ao tocar as flores.
E em torno de nós dois
iria se estendendo
o Jardim do Paraíso.

Vencendo dores, tristeza, solidão,


o tapete de cores

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iria encantando a natureza
fazendo cantar a vida.

As pessoas, avisando umas às outras,


se aproximariam,
num misto de encantamento e magia,
e – percebendo o incrível acontecimento –
admirando tudo, agradeceriam.

| 56 | . . . E sorrindo voltariam aos seus lugares


para transformá-los, também, em Paraíso.

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3
Um amor que deu certo
. . . até certo ponto

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Amor sem rumo
Se algum amor existe
não é eterno. Nem penses.

Um turbilhão, muitas vezes.


Outras tantas, tão dormente.
Tornado louco, sem rumo,
detonando, desvairado,
o que vier pela frente, | 59 |
em paixão desenfreada.

Amanhã, de tão cansado,


paira num limbo sereno,
sem fazer questão de nada,
nem passado nem presente,
sem projeto de futuro,
somente um sonho acabado.

Também não penses que aí


se encontra o ponto final.
Em movimento contínuo
ele retorna afinal,
refazendo o mesmo ciclo,
a mesma história infernal.

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Nenhum coração suporta
desvario tão freqüente:
Um dia alucinação,

outro dia quase morte.


Melhor vê-lo dissolvido,
fique a lembrança somente.

Pois a saudade dói tanto


| 60 | quanto amor mal-resolvido.

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Canção para o mar amigo
Soberbo mar de Itapuã. . .
Líquida esmeralda.
Cristal de pura beleza.
Branca espuma a borbulhar.
Taça de champanhe, convida.
Em generosa oferenda
se derrama sem reservas,
vestindo de brilho e renda | 61 |
quem nele vem se banhar.

Mar de Itapuã, gentil amante,


em doces canções se espraia. . .
Em sobranceira dança se oferece
. . . depois, tímido se esquiva.
Num vai e vem sensual
avança, recua. . . avança mais e mais
e volta a recuar,
deixando a praia cativa,
inteiramente à mercê do seu ousar.

Mar. . . maravilha,
entre sussurros lambe a terra.
Meigo, carinhoso, acaricia
com ternura a sua amada,

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fazendo-a resplandecer
de infinito prazer.

Terias coragem de um dia,


tomado de rebeldia,
investir descontrolado,
destruindo, devastando
o chão que foi teu encanto,
teu êxtase, teu enlevo,
| 62 | teu leito de amor desmedido?. . . Não creio.

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Eu, você. . . e água
Penso em você,
os olhos enchem d’água.
Não. Não choro.
Apenas vejo-me mergulhada
na tristeza da desistência.

Um vazio. . .
Uma pena. . . | 63 |
Nada há que se fazer.

Na fragilidade, limpidez e transparência


da efêmera bolha de sabão,
a expressão da nossa história.
Houve brilho, houve luz,
um colorido iridescente,
mas, num átimo, tudo some.

Agora,
na fluidez da lágrima que escorre,
um sonho se evapora.

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Sem título I
O teu corpo é água densa?
Oh, Deus! Muito mais densa
é a tua ausência.

Preferia-te sangue e carne.


Corpo colado ao meu corpo. . .
Podia separar-te, ausentar-me.
| 64 |
Agora que já não estás,
estás seguidamente.
És presença constante, persistente.

Persegues-me noite e dia.


Não és gente,
és fantasmagoria.

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O que é isto??
Desisto.
Caem-me os braços
lassos de cansaço.

Fugindo o sonho
envolve-me o vazio
tristonho, medonho.
| 65 |
Parada, à beira da estrada,
vejo no horizonte o nada.

A estrela que tentei alcançar


já nem sequer posso vê-la.
Houve mesmo alguma estrela?

O escuro profundo obscurece o mundo


deixando a sensação
de infinita solidão.

O olhar mudo
diz apenas
– Adeus, tudo.

Corre, tempo,
corre em meu socorro.
Vem depressa destruir
essa imensa dor de amor
que vive a me consumir.

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Lembrando Vinícius
Compreendi.
Até que enfim compreendi
a razão de mergulhar
na tristeza de um amor que existe
mas que foi embora.

O pior
| 66 | é que ele não partiu para sempre
. . . sempre volta
para fazer doer mais,
sofrer mais,
mexer numa ferida aberta.

A cada tentativa,
a dor que se renova.
A grande vantagem
em tudo isto é que
Para fazer poesia com beleza
é preciso um bocado de tristeza
é preciso um bocado de tristeza
senão não se faz poesia não.

E aqui fico
destilando poesia
com tanta inspiração, tanta agonia,
que meu amor até me pede parceria.

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Sem título II
Levanto cedo. Com o Sol.
Momento de ir ao jardim
colher as flores
Ritual cotidiano.
Uma liturgia.
Uma ou duas flores.
Mais que isto
é uma sangria. | 67 |
Com elas enfeito os jarros
sabendo que, à noite,
estarão murchas e sós.

A casa fica linda. . .


Recolho as folhas secas
que estão sobre as cadeiras
da varanda, a noite as trouxe.

Perfeito!
O café cheirando na chaleira.
O pão quentinho no forno.
Tudo pronto.
A rede se embalança
feliz, à brisa da manhã.
Com certeza espera alguém.

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A espera se estende além do tempo.
O tempo escorre feito lágrimas
dos olhos, sem pressa.

O café desiste de cheirar.


O pão esfria.
A rede pára, sob o escaldante sol
do meio-dia.

| 68 | A noite chega, fria.


As flores estão murchas e sós
. . . e eu também.

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Segredo
Sabe o que penso?
Ninguém faz amor como nós dois.
É delicioso o antes, o durante, o depois.
É uma viagem. É febre de sezão.
Há tanto carinho, tanta suavidade,
tanto furor, tanto espanto.
É gostoso, é delicado, é violento,
é sempre repetitivo, mas pleno de novidade. | 69 |

É longo. É criativo.
Parece durar uma eternidade.
Parece haver uma saudade eterna
que nunca é saciada.
É doído. É meio desesperado.
Tem gosto de para sempre,
tem gosto de nunca mais.
Parece que não vai mais nunca acontecer.
Tem gosto de despedida.
O tempo pára. O mundo some.
Somos Adão e Eva em paraíso.
Sós, puros, saciados.

Como comprovar o que penso?


O que me consome é que
só você pode dizer se é engano,
se é verdade.
Mas, por Deus, não diga nada.
Que permaneça a dúvida.

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Fim
Um amor que desmorona
é ave abatida em vôo,
mas que não morre do tiro
– não imediatamente.
Cai no chão e agoniza
a vida esvaindo aos poucos.

| 70 | Se debate, busca o ar,


da garganta gritos roucos.
Já não vê os horizontes
descortinados em vôo.
Perdeu o ar puro dos montes.
Já não encontra saída.

Hemorragia incontida
faz sucumbir o alento.
Tudo vai ensombrecendo
na dor que o martiriza.
As forças se retirando
numa lenta agonia. . .

A desistência chegando
como um anjo que socorre,
trazendo alívio ao tormento.
A ave entende o momento.
Vê que é chegado o tempo,
se acalma. . . suspira. . . e morre.

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4
Quando é noite, a aurora
vem vindo

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Destilando como sssserpente
Já não me satisfazem
as coisas desse mundo.
É tudo tão fugaz, tão sem sentido. . .

Perfumes, voláteis, somem. . .


Sabores, consumidos, também somem. . .
Amores não se assumem. . .
Assoma no horizonte | 73 |
sombria insensatez.

Insiste em sucumbir,
sob sinistra solidão,
aquela sintonia que traz
confortante ressonância
a unir seres dessemelhantes
. . . que lástima!

Sob a superfície dos relacionamentos


nada resta.
Parece-me – só o supérfluo
e a dissimulação se sustentam.

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Surpresa, espanto, só se for
pela presença da sinceridade
. . . é tudo tão suspeito!. . .

Suspiro por ver surgir


novo posicionamento
fazendo subverter essa triste sensação,
sintoma de insatisfação.

| 74 | Mas. . . não leve a sério o que disse


– não merece aprovação –
É tudo pura sandice
de quem somente deseja
suscitar sua atenção.

A longa viagem....pmd 74 24/7/2008, 12:14


Influência lunar
Envelheci.
Meu Deus! Hoje eu envelheci!
Como pude permitir que isto acontecesse?
Que terrível sensação de desconforto.
Olho o futuro
e cansa-me pensar em enfrentá-lo.
Não quero arredar o pé de onde estou.
Cansa-me. | 75 |
Depois, que há no futuro
que mereça o me arriscar?

Até ontem eu não era assim.


Até ontem eu era cheia de vida.

Lembro-me bem.
Dormi cheia de esperanças
esperando o amanhecer
para fazer acontecer
as coisas mais importantes.
Tinha planos, sonhos, fantasias.
Tinha o gosto de viver.

Mas hoje tudo murchou.


Algum bruxo invejoso

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apagou a minha chama
e me vejo em desconsolo
querendo desaparecer.

Cortaram minhas asas,


já não vôo.
Taparam minha garganta,
já não canto.
Que houve, meu Deus? Que houve?
| 76 |
Creio que a lua minguante
minguou o meu aparente ser.
Mas sei:
a lua nova aí está.
Disposta a me renovar
e no seu processo crescente,
certamente,
há de me plenificar.

A longa viagem....pmd 76 24/7/2008, 12:14


Involução
Tornar-se humano
em mundo desumano
– ofício ingrato
relutante e mudo.

Cravar as unhas
em penhasco escuso
para não despencar | 77 |
em poço sem fundo.

Abismo negro
sabotando esforços,
deixando a alma
esfolada e rude.

Tornar-se humano
em mundo desumano
– fragoroso empenho.

O corvo agourento
da infame desistência,
volteando atento,
disposto a atacar,

A longa viagem....pmd 77 24/7/2008, 12:14


à espera do momento
de cravar as garras
e vencer a luta
crocitando alto.

Desânimo, derrota,
fracasso, abatimento
é tudo que restou. . .

| 78 | E então o homem
já não é mais homem,
é só um verme
pronto a rastejar.

A longa viagem....pmd 78 24/7/2008, 12:14


Hoje, não!
Não engula a palavra que consola
Não aborte nenhum gesto solidário
Não destrua as pontes já firmadas
Não insulte quem não sabe se defender
Não provoque os que, fracos, não revidam
Não desafie quem não tem como lutar
Não renegue quem um dia lhe ajudou
Não qualifique pessoas pelo bolso ou pela cor | 79 |
Não sonegue informação relevante
Não segregue ninguém. . . por nada!
Não adule para conquistar vitórias
Não rejeite a idéia bem elaborada
Não calunie, por favor, não calunie
Não consulte, no silêncio, seus demônios
Não se alegre com a tristeza de ninguém
Não abuse dos que lhe são dedicados
Não esqueça o elogio encorajador
E não sufoque a gratidão do coração.

É o que é preciso se dizer,


Cada manhã, frente ao espelho
na esperança de ter/ser um dia melhor.

A longa viagem....pmd 79 24/7/2008, 12:14


Desconstrução
Transitar no submundo da mentira.
Sentir na boca o gosto amargo da desilusão.
| 80 |
Olhar em torno e ver somente brumas. . .
Não conseguir livrar-se da escuridão.
Camisa de força feita de espinhos
deixa sangrar, dilacerada, a carne,
ao menor movimento em busca da verdade.
Já não possuir sequer o próprio chão.
Ver sucumbir um sonho, quase realidade.

Onde encontrar no labirinto da mentira


um mísero ponto de apoio
que permita recomeço?
O pântano de lama
engole o mais supremo esforço
e nada resta
que mereça ser reconstruído. . .

A longa viagem....pmd 80 24/7/2008, 12:14


Reconstruir o quê?
Nada sobrou para ser preservado.
| 81 |
O que ficou é tão desfigurado
que já sufoca o que de bom
havia na lembrança
e mata, sem remorso,
qualquer sombra de esperança.
Adeus sonho acabado, destruído.
Mal-vinda seja cruel desesperança.

De pé, vejo ruir aquilo


em que um dia acreditei.
De pé, eu me despeço
do sonho que sonhei.

A longa viagem....pmd 81 24/7/2008, 12:14


Tsunami
Ainda somos humanos?

O mar atribuiu a si mesmo


o direito de julgar tal controvérsia
e demonstrar, a nível planetário,
sua resposta.

| 82 | A onda que secou a terra,


que dilacerou os lares,
que suprimiu a água,
que fez sumir o chão do paraíso,
a mesma onda acordou o mundo
para a compaixão.

É preciso olhar nos olhos da miséria


para conhecê-la por inteiro.
E a miséria aí está
de olhos arregalados
de espanto, de dor, de sofrimento.

Tem sofrido muito este planeta.


É justo que um dia se rebele.
Quer saber que tipo de gente o habita.

A longa viagem....pmd 82 24/7/2008, 12:14


Quer saber se ainda há tempo de acordar.
Dia da Confraternização Universal
desta vez oportunizou-se em ser real,
e não apenas uma data em calendário.

Em quanto tempo
nossa memória trôpega
| 83 |
apagará a consulta
do oráculo das águas?

Em quanto tempo esmagaremos


a aflição que ora nos sufoca
para voltarmos à vida
de total inconseqüência?

Terá tudo isto sido em vão?

Se for,
melhor acabar de vez
com a humanidade sobre a Terra!

A longa viagem....pmd 83 24/7/2008, 12:14


. . . não assim!
A noite possui garras
e fauces sedentas
| 84 |
de sangue e luto.

Mas a noite não precisa ser assim.

Só no sombrio noturno
soem acontecer
choros abafados, gritos soturnos.

Mas a noite não quer ser assim.

Crianças não deviam sair à noite, os jovens também não.


A noite é o espaço
da maldade adulta,
idade média de capas escusas.

A longa viagem....pmd 84 24/7/2008, 12:14


Mas a noite não concorda em ser assim.

| 85 |
O sinistro não resiste à claridade,
à luz do dia.
A noite, por si, é do silêncio,
do descanso, do reconforto.
Talvez de cantos, preces e sonatas.
A noite é do amor
de onde os corpos saem renascidos.

É uma aberração
corpos estirados na calçada
iluminados pela luz da madrugada.

A noite se recusa a ser assim.

A longa viagem....pmd 85 24/7/2008, 12:14


Aflição
Meu Deus!
Minhas horas oscilam
do jaspe negro
ao cristal translúcido!
Como posso resistir a tal balanço?

Na rapidez do raio viajo


| 86 | do pesadelo à realidade sem promessas.

Sei,
é preciso amar
o que ainda não existe.
Um dia existirá?

É perigoso contar com a esperança.


Ela é mestra em enganar.

Cuidado!
Cuidado!
Cuidado!

“O que é que me tortura?”*

Querer fazer das miragens realidade


pode ser o começo da loucura.

*Fernando Pessoa

A longa viagem....pmd 86 24/7/2008, 12:14


Indiferença
Pobre alma cativa.
Balaio de emoções.
Feixe enorme de vivências.
Tesouro de sensações.
Inviolável cofre
que quanto mais cala
mais sofre.
| 87 |
Enquanto o corpo, sereno,
em silêncio escreve versos,
a alma borbulha,
fervilha, explode que nem vulcão,
ilha que quer dizer-se,
mas sabe-se estar só.
Nem sequer a multidão
– ou aquele ouvido desatento –
desconstroi a solidão.

Fala alma, fala.


Grita, explode,
derrama-te em convulsões,
deixa que a gaiola estale
fazendo libertar a tua inquietação.

A longa viagem....pmd 87 24/7/2008, 12:14


Que o rumor de tuas asas
seja o som mais alto a se escutar.

Mas cuida-te, não te iludas,


não te envolvas em ilusão.
– Mesmo livre, crê,
só o vento te ouvirá.

| 88 |

A longa viagem....pmd 88 24/7/2008, 12:14


Choque
Muito jovem ainda
ela trazia consigo
uma virtual paleta
e, com ela, coloria o mundo
(estranha função de esteta).

No seu mapa interior


pessoas, países, cidades | 89 |
eram definidos pelas cores.
– o cinzento para os tristes,
os amorfos, sem personalidade.

Do amarelo brotavam
os zangados, os sem amor
ou os muito ambiciosos,
os que se achegavam à dor
. . . os que tinham desistido de sorrir.

No extremo oposto, os cor-de-rosa:


superficiais, sem compromisso,
sempre rindo, para quem
a vida é um jogo
cujo interesse é jogar,
não importando o perder ou o ganhar.

A longa viagem....pmd 89 24/7/2008, 12:14


E lá ia colorindo a vida,
o mundo e seus atores,
numa brincadeira muito séria.
Usando a escala das cores
urdia uma perigosa escala de valores.

E separou a perfeição para a Suíça,


– seu ideal de perfeição aqui na Terra –
Que ilusão!
| 90 | Só a Suíça merecia ser azul.
Tinha então a certeza do poeta:
“É bom morar no azul”.

Era jovem demais para saber. . .


Mas não guardou para sempre
a sua ingenuidade.
Não! O céu da Terra
não estava, nem ali está.
E foi cruel o encontro com a verdade.

Foi lá, justo lá, que viu, anos depois


hordas de semi-homens
vestidos de negro, ainda jovens
– ou nem tanto –
(sob um céu escuro, sem estrelas)
em plena praça, caídos pelos bancos.

A longa viagem....pmd 90 24/7/2008, 12:14


Retratos da desesperança,
fugitivos para o nada.

Paraíso da droga liberada,


Triste nau dos desgraçados.

Naquele instante
a iludida inocência juvenil
morreu definitivamente.
| 91 |

A longa viagem....pmd 91 24/7/2008, 12:14


Sufoco
Um cipoal, um labirinto,
Bruma de pântano. . .
Em penumbra tateio
sem encontrar o norte. . .
Um cheiro de vazio. . .
Um desânimo de morte

| 92 | Onde estão minhas certezas?


Onde se encontra
a minha inspiração?
Como viver sem ela
depois de tê-la em minha mão?

O coração sufoca
por não conseguir falar.
Como fantasma vagueio
. . . esqueci a razão de caminhar.

A palavra esconde-se de mim.


Deixa-me estéril, perdida. . .
Sentimentos borbulham,
mas não encontram saída.

Emudeci. . .
Por Deus, emudeci!

A longa viagem....pmd 92 24/7/2008, 12:14


Urgente e sem poesia
. . . e você pensa que reina absoluto.
Tecnologia avançadíssima.
Possibilidade de vencer a fome.
Comunicação imediata.
Distâncias suprimidas.
Entretanto, o contra-senso existe:
Calamidade cada vez mais próxima.
| 93 |
Na contrapartida da História
o contratempo da insanidade.
Malthus já não mete medo,
a fome agora é de compreensão.
Fora de moda a bomba de napalm,
agora o que destrói
é o que corrói a alma.

Intolerância, cobiça, racismo,


xenofobia, desumanidade.
A ética esgarçada em tal dimensão
que já não pode mais ser encontrada.
A prepotência das super-nações
colocando em risco
a sobrevivência das espécies.
O homem cotidiano percebe-se acuado
e o tecido social vê-se dilacerado.

A longa viagem....pmd 93 24/7/2008, 12:14


Como chegar à sinergia?
À compaixão, à empatia,
ao simples ato de estender a mão?
Não para tomar ou dar,
mas para compartilhar.
Não para ferir, mas para contemporizar.
Não para manter distância,
mas para criar ponte de compreensão
. . . e, se possível, se fazer irmão.
| 94 | Isto é urgente.

Não somente entre as pessoas


mas, sobretudo (e urgentemente)
entre as nações.

A longa viagem....pmd 94 24/7/2008, 12:14


Desistência
Ninguém ouviu
o grito de socorro,
e se perdeu no ar
o canto cativo.

Ninguém ouviu
o grito silencioso
rasgando a garganta muda. | 95 |

Ninguém viu. . .
Ninguém se viu
naquele dúplice olhar
misto de dor e complacência
por quem não sabe ver. . .

A lágrima secou
antes de escorrer na face.
E o gesto compassivo, se houve,
de nada adiantou.

O pequeno universo
mergulhado em dores permanece. . .
Espinho na garganta
dilacera a voz
solapando o riso.

A longa viagem....pmd 95 24/7/2008, 12:14


Em tão curta vida
tão grande agonia.

E a alminha cansa
de tanto penar.
Sente que, se pode, briga. . .
Se não pode, emigra.

| 96 |

A longa viagem....pmd 96 24/7/2008, 12:14


Momento crucial
Cecília, empresta-me versos teus
para que eu possa dizer dos fados meus.
Apropriar-me do que sentes
para dizer o que sinto.

Quem me quiser maltratar


maltrate-me agora
pois é tarde, e tão cansada
| 97 |
de trabalhos e de penas,
lucidez se foi embora.

Quem me quiser renegar


renegue-me agora
pois minha dor é tão grande
que tudo aceito – nem sinto
a dor que me manda embora.

Quem me quiser esquecer


esqueça-me agora
que eu não lamento nem sofro,
tonta de tanto espanto,
tão sem força, já não choro
já nem canto.

A longa viagem....pmd 97 24/7/2008, 12:14


Shopping
Luzes. . . Luzes. . .
Brilho histérico.
Olhos devassados, constrangidos.
Curto circuito feérico.

Gente. . . Gente. . .
Por toda parte, gente. . .
| 98 | E em cada um, um sonho diferente.
(Corpo reduzido a mãos – hipertrofia).

Ilusão que se desfaz ao toque.


Toque que dissolve as mãos.
Mãos que ressurgem ávidas
em outra direção, tentando
açambarcar tal universo.

Universo atemporal,
não há noite, não há dia. . .
Templo do artificial.

Sozinha, desperta, ela teme


pela feroz dormência,
por tanto tempo perdido.
Por tanta inconsistência.

A longa viagem....pmd 98 24/7/2008, 12:14


Cegueira
O peixe não vê a água em que navega.
A ave não percebe o espaço em que flutua.
O homem feliz não distingue sua ventura.

Um dia,
por uma fresta qualquer
escapa-lhe a saúde. . .
Esfuma-se o amor. . . | 99 |
Esvai-se a primavera. . .
Derrete-se o sorvete. . .
Ausenta-se o amigo. . .
Foge-lhe o pássaro preto. . .
Roubam-lhe a rosa. . .
Turva-se a água da fonte. . .
Some da sua mente a mais bela canção. . .
Oculta-se o céu em espessas nuvens. . .
Apaga-se o sol.

E o homem desperta em sobressalto:


– Eu era feliz e não sabia.

A longa viagem....pmd 99 24/7/2008, 12:14


Sombras
Pobre poeta, por que
tens que sofrer
a dor do mundo?

Tinhas coração tão puro,


alma leve de criança. . .
Hoje, em coração de chumbo,
| 100 | carregas desesperança.

Sobre o olhar de brilho intenso


cortinas de bruma cinza,
apagando o céu imenso
que finges desconhecer.

Rasga o véu do olhar mortiço,


lava-te em matutino orvalho.
Verás de novo o sentido
por trás do grande mistério.

A longa viagem....pmd 100 24/7/2008, 12:14


5
Em contato

A longa viagem....pmd 101 24/7/2008, 12:14


A longa viagem....pmd 102 24/7/2008, 12:14
Rumo à Plenitude
No horizonte dos acontecimentos
passeia, brinca, canta, dança o Ser.

O despertar desta descoberta


não tem idade nem limite.
É tão eterno e infinito
quanto a Eternidade é uma constante.

Tal como o despertar de todo dia | 103 |


não se restringe a tão somente abrir os olhos
mas reconhecer-se e integrar-se no tempo e no espaço,
o atingimento do Ser
é o integrar-se já, agora, na Eternidade
do Hoje eterno de Deus.

É inserir-se no mundo da Verdade.


No campo de força do Amor.

Esta peregrinação é inevitável,


este processo é irreversível,
dure o tempo que durar.

Algumas pessoas começam cedo.


Outras demoram mais um pouco.
Deixar-se atrair para a Sabedoria
é beber na fonte do Amor de Deus.

Melhor cooperar que resistir.


Este é o segredo da Felicidade.

A longa viagem....pmd 103 24/7/2008, 12:14


Um dia eu volto
Sei que não sou o que pensas,
nem o que penso que sou.
Alguém me pensa mais longe.
Alguém me pensa mais alto.
Basta lembrar-me o caminho
que me leva a tal destino.
E seguir, sem sobressalto.
| 104 |
Viver: contínuo lembrar
que devo voltar pra casa
pois aqui não é meu lar.
O meu lar entre as estrelas
Alguém já o preparou.
Hoje vivo de saudade
daquilo que lá ficou.

Não vi.
Nem sequer sei como é
– e nem preciso saber –
Basta-me aquela certeza
de que vou me conhecer.

A longa viagem....pmd 104 24/7/2008, 12:14


Sonho
. . . e os cometas vêm
e me semeiam.

E os cristais de gelo
me confortam.

A minha alma se abre. . .


somente a solidão é fecunda. | 105 |

E miríades de cores
me transformam. . .

Já não estou só.


Sou um arco-íris
em céu estrelado.

A longa viagem....pmd 105 24/7/2008, 12:14


Órion
No céu, fora do tempo
sugerindo paciente
no hoje eterno de Deus:
Paciência. . . Paciência. . .

Concentração insinua
no seu eterno mirar.
| 106 | Soberbo arqueiro dos céus,
mestre Zen do não agir.

Luzeiro, farol, archote,


na noite escura cintila.
Serenidade é seu mote.
Silencioso o seu canto.

É sorte poder ouvi-lo.

A longa viagem....pmd 106 24/7/2008, 12:14


Encontro marcado
Das estrelas viemos. . .
Não importa o quanto custe
para lá nós voltaremos.

Cada gesto, cada vôo, cada vida


é mais um passo
ao encontro do começo.
| 107 |
O salmão viaja oceanos,
em sua lida.
Leva consigo, por toda sua vida,
a certeza do retorno.

Há um ponto de atração
que o orienta em direção
à sua sina,
ao seu ponto de partida.

Estrelas dentro de nós


ou estrelas no Infinito.
Não importa. . .
É lá o nosso destino.

A longa viagem....pmd 107 24/7/2008, 12:14


Mistério I
. . . e este perfume entranhado no meu ser?
Sabe-me a algo que de mim faz parte.
Cheiro de folhas maceradas.
Talvez a seiva de primitiva árvore.
A árvore que um dia fui.

Árvore ancestral. . . permanece em mim.


| 108 | Um cheiro eterno, impregnado,
faz meu olfato feliz e saciado.

Cheiro que nunca me abandona.


Só eu o sinto.
Vezes forte. . . vezes fraco.
Mistério insondável,
intransferível, inexplicável.
Eu diria, até mesmo improvável.

Existem miragens de olfato?


É sonho acordado?
É fato?
Não saberia dizer
o que sequer sei explicar.
Só sei que aí está.

A longa viagem....pmd 108 24/7/2008, 12:14


Sinal aberto
Desde muito, muito tempo
– nem sequer me lembro quando –
vejo a alma escancarada
consumindo o que é divino.
Esponja absorvendo o bom, o belo,
e os bons ventos que chegam acariciando.

Mas. . . que dor, que desconforto: | 109 |


Vejo também que pelas dobras do destino,
entram o feio, o horrendo, o que é torto,
querendo se aninhar, quase em segredo,
criando involuções, gerando aborto
de sonhos, esperanças destruindo.

Pobre poeta, não vês


que o desgosto que sentes
é apenas um limite
que precisa ser transposto?

A longa viagem....pmd 109 24/7/2008, 12:14


Alma divina
Se foges ou te escondes
um imenso escuro se forma.
Solidão, contigo, é pura luz,
energia que alimenta, que transforma,
que conduz.

Sem ti, a coisa toda muda,


| 110 | Sem ti, frio congela,
calor ressoa em morte. . .
Qualquer luz lesa a retina,
treva sufoca, domina. . .
Cegueira entorpece, embrutece,
desanima.

Alma Divina,
manifestação sublime,
Transcendência impetuosa,
investe como vulcão,
com tal força generosa
que a tudo consome. . . e redime.

Contigo, a coisa toda exulta.

A longa viagem....pmd 110 24/7/2008, 12:14


Mahalakshimi, mãe da beleza
(baseado em texto de Sri Aurobindo)

Ah, graciosa deusa da Beleza,


como és desejada
pela alma capturada
pelo teu maravilhoso enlevo,
pelo teu encantamento.
| 111 |
Mas como és exigente.
Tua presença
não é facilmente conseguida.
Tudo que é feio, mesquinho, sujo e vil,
tudo que é medíocre, brutal e rude
impede teu advento, tua vinda.

Onde o amor e a ternura relutam em nascer


Tu não te aproximas, te recusas.
Se, no coração das pessoas
encontras ódio, inveja, dissenção,
Se egoísmo, maldade, cobiça ou ingratidão
estão presentes na oferenda do cálice cotidiano,
tua ausência é uma certeza.

A longa viagem....pmd 111 24/7/2008, 12:14


É fácil ver no rosto
da delicada deusa da Beleza
o véu ensombrecido
do divino desgosto
que dela se apodera.
E ela se vai
levando consigo a harmonia,
deixando em seu lugar
um vazio, uma agonia.
| 112 |
Mas quando se restaura
a harmonia da alma e da mente,
a harmonia dos pensamentos,
da ação, dos sentimentos,
da vida, do ambiente,
ela retorna trazendo de volta
consigo sua divina compreensão,
a alegria insondável
que advém
do magnífico toque de sua mão.

A longa viagem....pmd 112 24/7/2008, 12:14


Moto contínuo
Estive lá. . .
num parto que não se consuma.
A testa orvalhada de suor.
O corpo tremendo em múltiplos espasmos.

A dor sumindo num torpor


de nuvens de esquecimento
e voltando rápida, para não ser esquecida. | 113 |

Falta pouco. . . pouquíssimo.


Mas a criança não nasce.
A semi-inconsciência anuncia:
Estou na eternidade
e a criança não nasce, para sempre.

É o parto eterno,
não há recuo. . . nem progresso.
Parir eternamente
. . . é quase um pesadelo.
As dores não aumentam. . .
Nem mesmo diminuem. . .
E a criança não nasce.

A longa viagem....pmd 113 24/7/2008, 12:14


Existe maior dor
que um parto interminável?

Sinto-me Deus parindo um mundo.


Um mundo que nunca se completa.
Um mundo que não se consuma.
Um mundo que não sabe sua finalidade.
Um mundo que, perdido, desconhece o seu destino.
Um mundo que não encontra sua porta.
| 114 | Um mundo que é apenas um processo.

Também tu, criança,


és um processo
e precisas descobrir o teu destino,
encontrar o portal que te define
e por ele seguir.

A longa viagem....pmd 114 24/7/2008, 12:14


Meditação
Canal aberto
(três horas da manhã).
Nele vagueia a alma
buscando conhecimento.
A sombra e a luz
dançam suas posições
. . . e a lucidez se espanta
frente a novas intuições. | 115 |

Calma. . .
Serenidade. . .
Nem sempre o que é visto
traz tranqüilidade.
Mas é sempre mais um passo
em direção à Verdade.
Contudo,
a Verdade não vem nua
nem se mostra plena
em sua majestade
– o ser humano não suportaria.

Sendo ela Alma do Mundo


não caberia
em humana dimensão.

A longa viagem....pmd 115 24/7/2008, 12:14


Em parte se oculta,
em parte se revela,
permitindo à alma frágil
que caminha,
lenta e progressiva aproximação.

| 116 |

A longa viagem....pmd 116 24/7/2008, 12:14


Beleza, Verdade, Sabedoria
– AS TRÊS DEUSAS –

“A que religião você pertence?”


É uma questão pertinente
em meu viver.
E me coloco, às vezes, reticente.

É tão grande o meu respeito | 117 |


ao Deus dos outros que,
quase que continuamente,
os faço meus.

E, vejam só, não me sinto inconseqüente,


apenas sinto a Unidade do Deus Só,
que se apresenta em incontáveis aparências,
se manifesta em infinita variedade.

Posso dizer, são três as minhas devoções:


Amo a Beleza, a todo instante,
a cada dia,
com toda a radiância que a envolve.
Dobro-me submissa à Verdade.
Busco enxergar o Sol da Sabedoria.

A longa viagem....pmd 117 24/7/2008, 12:14


Por esses três caminhos
oriento a minha vida
sabendo-me claudicante
(claudicante, sim, mas nunca desistente)
neste exigente caminhar
de todo dia.

A Beleza,
feminina, envolvente,
| 118 | disseminando encanto
ao seu redor.
Nunca recusa ao devoto
suas bênçãos.
Responde generosa a um convite.

Está presente,
sempre pronta a se entregar
. . . no pequenino mal-me-quer do campo,
no beija-flor que surge a revoar.
Em frutos maduros
que recurvam os galhos.
Na criancinha,
que quase beija com o olhar.
Nos belos cabelos brancos da velhice.
Em cada jovem
que consegue se enxergar

A longa viagem....pmd 118 24/7/2008, 12:14


(há sempre algum que se distorce
ao próprio olhar).

Ser um devoto da deusa Beleza


é possuir uma varinha de condão,
é transformar em encantamento
qualquer cantinho
que precise se encantar.
Mas fique certo,
não é dela o primo passo. | 119 |
Ela sugere, mas espera
o estender de nossa mão.
Muito cuidado,
ela é frágil, delicada,
qualquer descuido
ela pode se afastar.

Já a Verdade
é forte, avassaladora.
Costuma ser
constantemente recusada
– provoca muito medo a certa gente.
Não existe mais confiante construtora.
O que é firmado no alicerce da Verdade
não se corrompe
nem desaba em vendavais.

A longa viagem....pmd 119 24/7/2008, 12:14


Se levantada
como escudo ou como arma
faz destruir impérios e catedrais
. . . e plantações cuja semente
é só mentira ou deslealdade.

A Verdade não é sutil


como a Beleza.
No momento certo ela se impõe.
| 120 | Brilhando alto, acima da falsidade.

Por fim, por sobre tudo,


desponta a Sabedoria
que não concorda
em ser, nunca, esquecida.
É meta a ser conquistada
passo a passo, devagar.
Se não se impõe à força
também não se retrai.
E pode ser
maravilhosa companheira de jornada.

A longa viagem....pmd 120 24/7/2008, 12:14


Hora dupla
Alvorada. . . Ocaso. . .
Opostos, complementares.

Primeiro, a promessa, a euforia


da vida que explode,
fazendo nascer a sua cria,
transbordando de luz o novo dia.
Vem a dança das ninfas das fontes. | 121 |
O canto de todas as musas.
A vibração da orquestra cósmica
em sinfonia estonteante.

Vibra, celebra, inunda o ar


de sons, de cores e de vida.

Ao pôr-do-sol
a magia do dia que termina.
Uma saudade dorida.
Há tanta mansidão naquela hora
como se o mar (ou os montes)
recolhesse em contrição
lágrimas sofridas
que a natureza chora.

A longa viagem....pmd 121 24/7/2008, 12:14


A orquestra dá lugar
a um canto mais sentido,
uma flauta. . . uma harpa. . . uma lira.
No silêncio da noite
que lenta se aproxima
fadas, santos, anjos, elfos e duendes
estendem sobre a terra
o manto púrpura da consolação noturna,
profusão de brilhos mais sutis,
| 122 | (não menos belos que o esplendor das madrugadas).

E a poesia se finda
para que nasça o silêncio.

A longa viagem....pmd 122 24/7/2008, 12:14


6
Quero-te próximo

A longa viagem....pmd 123 24/7/2008, 12:14


A longa viagem....pmd 124 24/7/2008, 12:14
Último poema
Suspeito ser este
meu último poema. . .
Já disse muito.
Falei da vida,
de mim (ato corajoso).

Mas, corajosa mesmo


foi a minha vida. | 125 |

Tive tempo de consumir saberes.


Tive tempo de me consumir.
Trilhei veredas que a maioria
não ousaria enfrentar.
Busquei e encontrei a liberdade.
Fui feliz. . . e infeliz.

Fui premiada
com o amor materno,
misto de glória e ansiedade.
Provei do amor humano
em plenitude,
corpo e alma em harmonia,
mas que, aos poucos,

A longa viagem....pmd 125 24/7/2008, 12:14


foi-se estraçalhando
– não cabia nesse mundo.

Olhei com amor o contexto universal,


uma existência tão desconcertante,
tão longe do ideal.
Até onde a vista alcança
um manto de dor recobre o mundo.
Mas descobri que a dor não mata.
| 126 |
Pudesse eu,
tomaria em meus braços
todo o sofrimento humano
e o acalentaria
como quem consola
um filho enfermo e pequenino.
E cantaria baixinho
até ver secar a última lágrima.
E tudo encontraria outro destino.

E, agora, poderia murmurar


no meu último poema:
– Vivi. Valeu a pena.

A longa viagem....pmd 126 24/7/2008, 12:14


A ti, que lês meus versos
Olha-te em meus olhos,
te verás.

Ouve-me em meus sonares,


te ouvirás.

Toca-te em minha pele,


te sentirás. | 127 |

Inteiramente aberta
me ponho ao teu dispor.

Em meu falar
a palavra comum..
Em meu sentir
o senso comum.
Em meu viver
o rio comum que corre em descampado
servindo a qualquer um.

Como um,
que sou, tu és. . . pessoa comum.

Quero-te colada a mim.


Minha pegada é teu passo.
Como um, comum. . .

A longa viagem....pmd 127 24/7/2008, 12:14


Serena mente
Que pena.
A manhã de não fazer nada
está passando.
E logo vai acabar,
(assim me diz o relógio)
É quando estou comigo a sós
e posso ouvir-me. . . calmamente.
| 128 |
Calma a mente
os pensamentos navegam
em mansas águas.
E se encostam às palavras
que fluem livremente,
como juncos.

Parecem nenúfares
boiando em manso lago
ou num quadro de Monet.
Lembram o rio
da minha infância.

A longa viagem....pmd 128 24/7/2008, 12:14


Rio da minha infância,
quando os meus olhos
grudavam-se nas flores
e eu poderia ficar ali há séculos
. . .como agora.

E não haveria o tempo.


Somente a Eternidade. | 129 |

A longa viagem....pmd 129 24/7/2008, 12:14


Vícios
Como bebes, amigo meu.
Jamais te sentes saciado?
Não te importas de perder o prumo?
A aguardente queima-te por dentro
e mesmo assim te sentes confortado.

Acho que te compreendo. . .


| 130 | Também possuo um vício incontrolado.
Costumo beber a vida
em goles sincopados,
saboreando, aos poucos, com cuidado,
buscando distinguir o doce, o amargo, o ardente.
Ruminando lentamente
o mistério que a envolve.
Vivendo vertiginosamente, em paradoxo,
a montanha-russa em que se move.

A longa viagem....pmd 130 24/7/2008, 12:14


Desabafo
Tenho saudade
do selvagem
que já fui um dia.
Andar felino
entre as densas árvores.
Mãos mergulhadas
em regatos virgens
de águas tão frias. | 131 |

Colado à terra,
em pertinente harmonia.
Tendo por céu
as grandes castanheiras.
Luz das estrelas
muitas vezes vista
por entre a espessa cabeleira
da floresta imensa.

Olhar felino
perscrutando a selva.
Ouvido atento
ao menor ruído.
Suave murmúrio
invadindo tudo. . .

A longa viagem....pmd 131 24/7/2008, 12:14


O canto nostálgico
das aves noturnas.

O vento quente
deflorando a mata.
O corpo nu
tranqüilo, intimorato.
Vida vibrando
em rútilas cascatas. . .
| 132 |
Sinto saudade daquele bugre que já fui um dia.
Guardo comigo
toda essa vivência,
já mergulhado
em outra existência,
onde viceja doida hipocrisia.

A longa viagem....pmd 132 24/7/2008, 12:14


Natal
Que posso te desejar neste Natal?

Que haja muita flor


em teu caminho
para compensar, com excelência,
algum espinho?

Que brilhe um belo Sol em tua vida, | 133 |


mesmo que algum dia
te surpreenda, sombrio,
inesperadamente frio?

Que anjos de céus e terras


estejam sempre alertas,
ao teu redor, cuidando
com desvelo da tua caminhada?

Ou que tua história


prossiga baseada
na compreensão e no amor,
na mais fina companhia?

Ou tudo isto
embrulhado pra presente
em bela caixa colorida,
com lindo laço dourado arrematando.

A longa viagem....pmd 133 24/7/2008, 12:14


Ao Leo
Será que tu te cansas
quando estás comigo?
Eu não me canso
quando estou contigo.

Conversa mais maluca


– física quântica?! –
| 134 | idéias exigindo
extrema mente.

Somente entrando em alfa


acompanhar consigo?
Uma viagem. . . uma delícia. . .

E rio muito
na montanha-russa
do teu pensamento

Como astronauta
em vôos siderais
me atiras longe
deste mundo-chão.

A longa viagem....pmd 134 24/7/2008, 12:14


Eu deixo corpo,
viajo só com a mente.
Viagem sem rumo
sem cais ou aeroporto.

Viagem sem chegada


. . . e sem partida.
| 135 |
Sou pluma louca
açoitada pelo vento.

Quando por fim


o tempo corta a fita
resta sempre
um sorriso em minha boca..

A longa viagem....pmd 135 24/7/2008, 12:14


A mulher e o iguana
Que sentimento bom
vem dentro desta notícia:
ter sido princesa um dia.

Na verdade absoluta da poeta


a mulher já foi princesa.
Em oníricas vibrações
| 136 | foi mulher enamorada
e no apogeu da esperança,
encantada, desejava
a transmutação do seu iguana
em súbito príncipe encantado.

Sonho louco,
encobrindo uma realidade desfocada.
Um iguana de verdade
verde esmeralda-azul turquesa,
silencioso, imóvel em sua beleza,
olhando fixamente
(ali de dentro da folhagem)
a mulher envolta em dores,
parada sobre a cama,
hora após hora, dia após dia,
um colhendo do outro paciência,

A longa viagem....pmd 136 24/7/2008, 12:14


no místico desmembramento
de estar só. . . e triste.

Um enorme vidro os separava


. . . e os unia

Presença real, sólida, constante,


| 137 |
convivência abençoada
tornando as dores menos consistentes,
trazendo cores ao sombrio da estrada.

Tem plena razão a poeta:


era uma princesa encantada
vivendo historia de amor com seu iguana.

A longa viagem....pmd 137 24/7/2008, 12:14


Ali, tão perto. . .
À sombra do bambual
a menina conheceu o paraíso.

Pés mergulhados
– inquietos, imitando peixes –
nas frias águas do rio Cachoeira
(não o esgoto, mas o rio)
| 138 |
O vento entre as folhagens
compunha canção japonesa.

O curioso olhar infantil


cercava negros pitus
entre as misteriosas pedras.
Momento glorioso, eterno,
indissolúvel, inesquecível.

Uma voz adulta


(cuidadosa ou insensível?)
rasga o enlevo da criança
– Cuidado, aí tem cobra!

E, mais uma vez,


a serpente põe fim
ao paraíso.

A longa viagem....pmd 138 24/7/2008, 12:14


Confissão
Não posso me eximir
de confessar este pecado:
também já fui seduzida
pelo fascínio envolvente
das ofertas de mercado.

Lembro-me bem. . .
Vinha ele pela estrada | 139 |
trazendo com muito cuidado,
a sua caixa encantada.

Na varanda da fazenda
o mascate ia, aos poucos,
criando clima de magia.
Não falava. . . nem sequer oferecia,
ia apenas abrindo, devagar,
sua mala de madeira.

Como que pequenas asas


pouco a pouco iam surgindo,
em cada uma a oferta variada.
E ele, desfolhando um mundo colorido
enfeitiçava; a criançada em volta,
admirando, em silêncio comovido.

A longa viagem....pmd 139 24/7/2008, 12:14


Pequenos novelos de linha
nas mais variadas cores
(parecia a paleta dos pintores)
Bicos e rendas francesas,
fitas de seda, perfumes,
dedais, douradas tesouras. . .
Creiam, até noz moscada.

E logo chegava ao clímax.


| 140 | Ali se encontrava o âmago
do tesouro – os botões!
Tantas cores e tamanhos. . .
Aos meus olhos eram ouro!

Ah, seu Amaro era amado


pelo êxtase que trazia:
os botões de madrepérola!
Era toda uma euforia
de luz, de cor, de encanto
e os meus olhos se fechavam
pra guardar tanta alegria.

Nenhum shopping fascinante


que freqüento (sem constância)
devolve aquele arrebatamento
que enlevou minha infância.

A longa viagem....pmd 140 24/7/2008, 12:14


Meu riacho
Viver muito é muito adquirir
– sobretudo perdas.

Onde aquela bonequinha?


– linda, linda, linda –
negra, duas trancinhas.
Quebrou-se tão nova ainda.
Nem sequer tive tempo de criá-la | 141 |
enquanto me criava.
Eu era tão pequena, tão pequena,
que acreditava.
E eu chorava
cantando a mágica canção,
pensando resgatá-la
de volta ao meu amor:
“Ah, meu Senhor do Bomfim,
arranje outra neguinha
igualzinha pra mim”. . .
Mas ela não retornou.

Onde encontrar
aquele moço tão bonito
que me ensinou a dançar?
Como esquecê-lo, se ali

A longa viagem....pmd 141 24/7/2008, 12:14


foi despertado o feminino em meu ser?
Ontem o vi. . . pareceu-me tão triste, tão aflito. . .
O meu guapo rapaz
já não existe mais.
Eu o perdi. . .

Meu mestre, grande amigo,


ensinou-me a ser valente,
a enfrentar, com minhas próprias forças, o mundo,
| 142 | mesmo que o mundo
desabasse sobre mim.
Por anos me acompanhou
como um boiadeiro que tange a boiada,
com leves toques,
ia-me delineando o rumo.
E eu o compreendi.

Onde aquele espaço


tão reconfortante?
Ali, o convívio com as crianças
– vendo a inteligência fluir –
como flores, no jardim,
se abrindo ao sol.
Eu não queria perder nada,
atenta às frases surpreendentes,
aos gestos carinhosos, às mordidas.
Era tudo tão estimulante. . .

A longa viagem....pmd 142 24/7/2008, 12:14


Onde estão os meus pequenos hoje?
Mordendo ou afagando a vida?

Naquele espaço
também fui evoluindo
Olhei nos olhos dos jovens alunos
carentes de compreensão e de ternura.
Ouvi queixas, alegrias e apelos,
e eu os amei. . .
Os entendi, nem sempre mansamente. | 143 |
Mas sempre pronta a não perdê-los.
No entanto, deles me perdi.

E na lembrança
a pequenina casa,
que resguardava amor intenso e dedicado.
Um dia, imprudente, descuidada,
deixou-se contaminar,
sem resistir aos preconceitos,
permitiu ao amor se evolar.
Mais uma perda que não pude evitar.

Hoje, olho as minhas mãos. . .


Estão vazias?
Oh, não. . . Repletas de recordações.
Mas nada disso obscurece a esperança
de que ainda há muito e muito
o que viver.

A longa viagem....pmd 143 24/7/2008, 12:14


Anseios
Sim, quero o corpo perfumado,
manter a pele macia.
Saber meus olhos sorrindo.
Provar sabores sensuais,
Sentir, do corpo, a energia.

Mas quero mais, muito mais:


| 144 | perfume em meu pensar,
maciez em algum saber
que por acaso irradio,
quem sabe do eu profundo.

Quero sementes, sorrisos,


em outros desabrochar.
Quero mãos fortes agindo
arrancando a dor do mundo.

Trilhar com os que não desistem


e não desertam da luta.
Estar entre os fortes, que insistem.
Só eles suportam espinhos.
Nada os faz retroceder.

A longa viagem....pmd 144 24/7/2008, 12:14


São o sal, a pureza, o fogo,
irradiação poderosa
que se eleva em espirais,
rompendo os próprios limites
se expandindo mais e mais.

Curtir com gosto o viver


como só o faz a criança | 145 |
que em tudo põe, encantada,
o primeiro olhar da infância.

Será que peço demais?

A longa viagem....pmd 145 24/7/2008, 12:14


Mistério II
Observo o oceano.
Parece flutuar sobre si mesmo.
No entanto, possui
uma profundidade inconcebível.

Como atingir o colossal abismo?


Como romper as sombras
| 146 | que ocultam sua essência?

Como deixar fluir


o não profanado
e revelar o seu real sentido?

Por fim,
fazer transparecer
o oculto significado.

A longa viagem....pmd 146 24/7/2008, 12:14


Confusão
Em que direção corre o tempo?
Para trás ou para a frente?

O tempo não corre, tola.


Tu é que te enganas sempre,
pois o sempre te contorna,
te deixa tonta, sem leme.
| 147 |
Pensando que o tempo se move,
te moves, à toa, no tempo..
Passado, futuro, presente
são uma coisa, somente.

O tempo que vês agora


é pingo de eternidade.
Mudasses tu tua lente
chegarias à verdade
tão clara, tão reluzente,
tão simples, tão evidente.

A longa viagem....pmd 147 24/7/2008, 12:14


Outono em Aranjuez
Música. . .
Folhas. . .
Palavras. . .
Plátano, árvore de outono.

. . . Folhas caem em tons iluminados


aquarelando o chão de puro ouro.
| 148 |
Assim, as palavras que ninguém ouviu.

Chão de Aranjuez,
espesso tapete, acariciando
os pés do raro viajor.

As folhas dançam concerto,


espalham-se no ar
e, aos poucos, em ritmo lento,
definitivamente, se recolhem ao chão.

Pouco importa se ninguém as viu


. . . ou as ouviu.

Voaram, dançaram.
Viveram clima de festa em céu de outono.
Em pleno outono, a primavera, o verão.

É o suficiente para esperar o inverno.

A longa viagem....pmd 148 24/7/2008, 12:14


Relâmpago
Quando o verso se apresenta
fica difícil calar.

É raio que corta a noite,


é céu a relampejar.

Palavras formam sentido


num repente, sem pensar. | 149 |

Algo ilumina a mente,


ela se vê a brilhar

Parece que vai chover. . .


penso até “Vai transbordar!”.

A alma aproveita o vento,


precisa se revelar.

Que pena! O brilho passou. . .


não há mais o que falar.

É momento dolorido
ver o verso se afastar.

A longa viagem....pmd 149 24/7/2008, 12:14


Maluquice
Eu tenho falado em rima.
Isto é meio complicado.

Pessoas ouvem sorrindo


E pensam: “Isso é forçado?”.

Mas o verso vem chegando


| 150 | mesmo sem ser convidado

Será que sou repentista,


– O do verso improvisado?

Acho que isto acontece


por ter um sonho acordado:

Vejo a vida como dança


(Talvez um tango magoado

Quem sabe valsa serena


Ou um rock amalucado).

E a poesia – o suporte
de um viver harmonizado.

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7
Testamento

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Piuííí
. . . tenho pressa
. . . tenho pressa
| 153 |
. . . tenho pressa
. . . tenho pressa

O meu trenzinho
está prestes
a chegar à estação.

Tenho pressa de falar


Tenho pressa de contar
Tenho pressa de dizer
o que do meu peito irrompe
querendo se anunciar
fazendo-se conhecer,
antes que a viagem acabe
e tudo fique por dizer.

A longa viagem....pmd 153 24/7/2008, 12:14


Um testamento?
Parece-me divisar ao longe,
na névoa do fazer-se noite,
| 154 |
a linha de chegada.
Que outro motivo haveria
para o impulso que ora
me faz contar-me?

Desde sempre,
artesã medieval,
não me apercebi
de assinar meus sonhos.

O mais que pude,


como planta sensitiva,
que ao toque se esconde,
ou molusco timorato,
recolhi-me à sombra
do anonimato.

A longa viagem....pmd 154 24/7/2008, 12:14


Escrevi muito.
Em ícones, desenhos e sinais
| 155 |
me expressei
sem me permitir expor
as impressões digitais

Por que o palco agora?


Por que este arrebatamento?
Seria atribuir-me, sem dilemas,
sem evasivas, talvez,
o direito a um testamento?
Talvez.

A longa viagem....pmd 155 24/7/2008, 12:14


Quando eu me for
Quando eu me for
nem tudo que sou
levarei comigo.
Ficarão palavras
que talvez, então,
para alguém façam sentido.

| 156 | Entre o que digo


e o que calo, existo?
Quem é que me vê? *

Quem é que me ouve?


Hoje, ninguém!

Talvez, quando eu me for,


minha palavra se faça
vida, chama, emoção
e sentimento em alguém.
E encontre sua razão de ser.

* Fernando Pessoa

A longa viagem....pmd 156 24/7/2008, 12:14


Herança
. . . de meu pai,
o gosto pela poesia.
. . . de minha mãe
o gosto pelos jardins.
De mais nada sinto falta
para me sentir feliz.

Depois de mim | 157 |


filhos. . . netos. . .
Pouco tenho para deixar.
Riquezas de ouro e prata?
Voam longe do meu pensar.

As minhas duas riquezas


– o jardim e a poesia –
síntese do mais-que-perfeito,
falam bem da Plenitude.
que tenho a oferecer.

Do jardim,
o amor à vida,
às cores, ao arco-íris,
o amor à bela forma,
ao vigor que a terra tem,

A longa viagem....pmd 157 24/7/2008, 12:14


aos perfumes generosos
– são frutos que fazem bem.

Da poesia,
aí se encontra o mais sutil.
É preciso compreender
o valor que a palavra tem.
Saber navegar na vida
em tudo que ela contém.
| 158 |
Saber ver, ouvir, sentir. . .
Cozinhar no coração,
numa tremenda alquimia,
simples acontecimentos
ou absurdos momentos
e deles tirar o sumo,
fazendo-os vibrar em luz,
tornando-os conhecimento
e, se possível, algo mais:
fazê-los sabedoria.

E em sereno recolhimento
transformá-los em poesia.

E não esquecer, jamais,


que a Poesia é, de fato,
a linguagem do Infinito.

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8
Poemetos

A longa viagem....pmd 159 24/7/2008, 12:14


A longa viagem....pmd 160 24/7/2008, 12:14
II
Nenhuma ambição.
A cada dia, o seu tormento e canto.
| 161 |

A sinfonia?
Que outros a componham.

A mim me restam
os sonhos dissonantes.

Pingos de chuva
inspiram melodia.

. . . Mas meus ouvidos


permanecem mudos.

A longa viagem....pmd 161 24/7/2008, 12:14


III
Não me envergonho de ter
os pés no chão
| 162 |
e a cabeça nas nuvens.

Não fosse assim,


como poderia
compreender o tosco e o sublime?

A longa viagem....pmd 162 24/7/2008, 12:14


IV
Feroz, voraz, valente,
o ciúme só consome
| 163 |
o amor que quer proteger.

Resta enfim a cinza fria


de algo que já foi quente.

A longa viagem....pmd 163 24/7/2008, 12:14


V
Alma de artista
acolhendo em si mesma
| 164 |
a grandeza do momento.
A dor?. . . O sofrer?. . . A alegria?. . . O prazer?
Questão de ponto de vista.
Questão de posicionamento.

A longa viagem....pmd 164 24/7/2008, 12:14


VI
– Poeta, não sentes?
Caem gotas do teu cantar. . .
| 165 |
– Ah! São hai-kais, somente.

A longa viagem....pmd 165 24/7/2008, 12:14


VII
Sê confiante.
Tendo Deus como alimento
| 166 |
Até o pouco é bastante.

A longa viagem....pmd 166 24/7/2008, 12:14


VIII
Estar nutrida
é saciar-se com pouco
| 167 |
ao beber a vida.

A longa viagem....pmd 167 24/7/2008, 12:14


IX
Triste inferência:
sem Deus como alimento
| 168 |
tudo é insuficiência.

A longa viagem....pmd 168 24/7/2008, 12:14


X
A fartura existe:
Deus está sempre presente
| 169 |
e te assiste.

A longa viagem....pmd 169 24/7/2008, 12:14


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9
Última palavra

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A longa viagem....pmd 172 24/7/2008, 12:14
Solução
Nem tão longa assim é a vida. . .
Nem sequer temos tempo
| 173 |
de gastar todo amor de que o coração é capaz
de fazer tudo que a inspiração nos diz
de contar todas as histórias que a imaginação produz
de curtir todo desejo que o anseio traz
de ousar toda loucura que faria a hora feliz
de beijar todos os beijos que um olhar traduz
de admirar tudo que a vida generosa fez
de vencer todos os medos que um dia tiveram vez
de enxergar tudo que revela a luz de um relâmpago fugaz
de romper todas as cadeias da sensatez
de superar toda ausência que faz a vida infeliz
de gerar todo bem que à alma satisfaz
de ver surgir definitivamente a Luz
de fazer brotar sobre este mundo a Paz.

Tudo se faz incompleto porque o tempo é voraz


e se consuma e consome numa incrível rapidez.

. . . Vale viver outra vez.

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COLOFÃO
Formato 19 x 19 cm

Tipologia Gatineau 11/15,2

Papel Alcalino 75 g/m2 (miolo)


Cartão Supremo 250 g/m2 (capa)

Impressão Setor de Reprografia da EDUFBA

Capa e Acabamento ESB - Serviços Gráficos

Tiragem 300

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