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No cerne do poema épico de Camões está o mar, espaço percorrido pelas naus de
Vasco da Gama, mas também cenário mítico em que decorrem os vários planos da narração
que complexificam a temática do texto, fazendo da viagem à Índia a jornada simbólica em
que Camões retrata a saga dos Lusíadas. (…)
O mar das navegações é para o autor d’Os Lusíadas o símbolo ambíguo de Portugal
(…). O tempo passado vê-se elevado à categoria simbólica do Bem absoluto, com a glória, a
harmonia e o ideal coletivo por corolários; e o mar é o espaço da viagem aventurosa em busca
de novos mundos, é a possibilidade de partir, levando a outros lugares a energia positiva dos
navegadores e do povo que eles representam.
Uma tal perspetiva que coloca a par a visão épica e positivada do passado com um
presente decetivo e de impasse, tem múltiplos ecos na história literária nacional. Detenhamo-
nos por agora em dois exemplos disso, colhidos em textos de fins de oitocentos, período em
que retorna essa memória do passado histórico, como via da busca de um esteio que sustente
o presente de inquietação e de mudança: tomemos “O Sentimento dum Ocidental” de Cesário
Verde (…).
O poema de Cesário foi publicado no número Portugal a Camões do Jornal de Viagens
de 10 de junho de 1880, uma das edições comemorativas de um centenário que erigira Os
Lusíadas e o épico em porta-bandeiras do nacionalismo; tal perspetiva não atraía o poeta de
“O Sentimento dum Ocidental”, que se situa à margem do tom laudatório e exaltado de
outros seus contemporâneos. Com efeito, Cesário trabalhará a sua homenagem no arame
frágil do paradoxo, tratando os temas da épica (o mar, a viagem, o herói) por um prisma
decetivo.
O mar está presente como elemento espacial, situando desde o título o sujeito do
poema como um ocidental, oriundo das mesmas mas tão mudadas praias que viram partir os
descobridores; na primeira secção, o sujeito desloca-se ao longo dos cais que figuram a
possibilidade de partir, sim, mas para outros – não para o “eu” errante, só, presa de um spleen
[tédio] que lhe faz sentir como fechado um espaço fisicamente aberto. Esse tema estende-se
ao modo como é vista a gare de onde partem os outros, “Felizes!”, para o mundo mítico da
Europa cosmopolita (“Madrid, Paris, Berlim, S. Petesburgo, o mundo!, I, 3”); notemos também
como aos cais do presente, herdeiros daqueles de que partiram as naus das Descobertas, se
atracam agora botes (I, 5),caricaturas dessa grandiosidade perdida, ou como a partir deles se
avista ao largo “o couraçado inglês” (I, 7) que representa o poderio estrangeiro e assinala a
decadência e a impotência da pátria.
8. Indica o antecedente do pronome pessoal presente em “que lhe faz sentir como fechado
um espaço fisicamente aberto.” (ll. 25-26)