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Herbert Marcuse e Lacey:um paralelo

Isabel Loureiro

Comunicação apresentada na 1ª Jornada de Educação, ciência e tecnologia, Faculdade de Educação, USP,


maio de 2004

Herbert Marcuse se defende da possível suposição de querer ressuscitar uma “física


qualitativa”, em outros termos, de querer voltar ao paradigma aristotélico:
“(...) a ciência contemporânea tem uma validade objetiva imensamente maior que as
suas predecessoras. Poderíamos mesmo acrescentar que, no presente, o método científico é
o único método que pode reivindicar tal validade; a interrelação entre as hipóteses e os
fatos observáveis confirma as hipóteses e estabelece os fatos. O que eu procuro mostrar é
que a ciência, em virtude de seu próprio método e de seus conceitos, projetou e promoveu
um universo em que a dominação da natureza permaneceu ligada à dominação do homem –
um vínculo que tende a ser fatal para esse universo no seu conjunto. (...) Assim, a
hierarquia da razão e a hierarquia da sociedade se interpenetram. Desse modo, se houvesse
uma mudança na direção do progresso que pudesse romper esse vínculo, isso afetaria a
própria estrutura da ciência – o projeto científico. As hipóteses da ciência, sem perder seu
caráter racional, se desenvolveriam em um contexto experimental essencialmente diferente
(o de um mundo pacificado); conseqüentemente, a ciência chegaria a conceitos de natureza
essencialmente diferentes e estabeleceria fatos essencialmente diferentes. A sociedade
racional subverte a idéia de Razão.” (Herbert Marcuse, One Dimensional Man, Londres,
Abacus, 1972, p.136)

Marcuse é ambíguo: primeiro afirma que a ciência contemporânea “tem uma


validade objetiva imensamente maior que as suas predecessoras”, e que “o método
científico é o único método que pode reivindicar tal validade”, o que significa que o
conhecimento que se obtém através desse método é objetivo, ou seja, universal e
verdadeiro.
Mas logo em seguida ele diz que “a ciência, em virtude de seu próprio método e de
seus conceitos” é um projeto em que “a dominação da natureza permaneceu ligada à
dominação do homem”. Nesse sentido, o conhecimento científico não é objetivo,
universal/verdadeiro. A razão científica já é ideologia, não é neutra, e se o vínculo entre a
“hierarquia da razão e a hierarquia da sociedade” (ou seja, entre “racionalidade
tecnológica” e dominação) fosse rompido mudaria a própria estrutura da ciência, mudariam
as hipóteses da ciência, “sem perder seu caráter racional”. Em resumo, Marcuse não quer
ressuscitar uma ciência qualitativa, mas ao mesmo tempo não tem idéia de como seria uma
ciência desvinculada de um projeto de dominação da natureza – daí as ambigüidades.
Uma solução para este impasse pode ser dada pelas reflexões de Lacey sobre o
método científico. Ao refutar a tese de que a ciência é livre de valores, Lacey distingue
valores cognitivos (como adequação empírica, consistência interna, poder explicativo,
simplicidade, etc.) de valores sociais/morais. Quando se afirma que a ciência é neutra isso
significa que ela é livre de valores sociais/morais. Para Lacey, a tese de que a ciência é livre
de valores se divide em três subteses: da imparcialidade, da neutralidade e da autonomia.
Para Lacey a ciência não é neutra, nem autônoma (com o que Marcuse concordaria), mas
deve ser imparcial, ou seja, ater-se aos valores cognitivos – daí provém sua objetividade e
universalidade.
Porém, há uma fase prévia, a da escolha de teorias e seleção dos dados que Lacey
caracteriza como estratégia materialista de restrição de teorias e seleção de dados a qual é
regida por valores sociais, e por um em especial – o do controle da natureza. É o que
Marcuse chama de a priori tecnológico: uma visão de mundo instrumental, que aborda a
natureza como material a ser manipulado, visando a produção/reprodução material da vida.
E esse “a priori tecnológico” restringe a escolha das teorias científicas e a seleção dos
dados empíricos. Daí o reducionismo da ciência e sua afinidade com um projeto social em
que a matéria (tanto natural quanto humana) é vista como apropriada a todo tipo de
manipulação.
Há um outro ponto, entretanto, que me parece mais complicado e que os
comentadores de Marcuse apontam como o centro das ambigüidades de One Dimensional
Man: a caracterização da ciência e tecnologia como forças produtivas “neutras” e ao
mesmo tempo como ideologia. É como se ele dissesse que a CT são e não são neutras. Mais
uma vez, se Marcuse tivesse a clareza analítica de Lacey e distinguisse na tese da ciência
livre de valores as três sub-teses mencionadas, ele poderia ficar com a imparcialidade (que
o impediria de cair no relativismo, que justamente ele não quer) e rejeitar a
neutralidade/autonomia (que lhe permitiria conservar o vínculo entre ciência e sociedade, e
por conseguinte, entre ciência e valores).
Senão vejamos. Quando Marcuse quer preservar a ciência contemporânea e o
método científico por serem os únicos que podem garantir o conhecimento verdadeiro ele
tem em mente o ideal de imparcialidade, assentado nos valores cognitivos: “a interrelação
entre as hipóteses e os fatos observáveis confirma as hipóteses e estabelece os fatos” – esta
é a formulação de Marcuse para o valor cognitivo da adequação empírica. Ou seja
(correndo o risco de ser repetitiva), Marcuse concordaria com a distinção de Lacey entre
valores cognitivos e não-cognitivos e com a subdivisão da tese de que a ciência é livre de
valores em imparcialidade, neutralidade e autonomia. A ciência não é neutra, nem
autônoma, mas é imparcial (ainda que não de modo absoluto). E nesse sentido, também
para Marcuse, a ciência não se reduz à ideologia.

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