Você está na página 1de 9

1 - Introdução

O presente trabalho pretende discutir o papel da informação e do conhecimento na


sociedade contemporânea e apontar caminhos possíveis para que as trocas informacionais
contribuam para o empoderamento dos grupos sociais, visando à melhoria de sua qualidade de
vida e de suas relações de trabalho.
Vivemos em plena transição entre a sociedade industrial, cujos valores se recalcam na
produção de bens materiais produzidos em série, e a emergência da sociedade da informação,
caracterizada pela troca de bens imateriais – informação e conhecimento -, troca essa calcada,
sobretudo, nas novas tecnologias da informação e comunicação (TIC), predominantemente a
internet.
Nesse contexto, o advento das TIC traz um paradoxo: se de um lado tornam a informação
mais acessível, uma vez que a apropriação de conhecimento pressupõe um diálogo no espaço
social, seja ele no mundo real ou no virtual, de outro, favorece a manutenção de modelos de
exclusão próprios da sociedade industrial, já que o acesso às novas tecnologias está estreitamente
vinculado a maiores níveis de educação e renda.
Ao lado disto, instrumentos de proteção da propriedade intelectual favorecem a
privatização da informação e do conhecimento, atribuindo ao trabalho imaterial valores do
trabalho material, próprio do modelo industrial.
Neste cenário, a apropriação de informação e conhecimento com vistas ao
desenvolvimento comunitário encontra uma saída nas redes sociais, que possibilitam a
participação dos membros da comunidade na discussão de seus problemas locais, de suas
relações de trabalho, sociais e de lazer.
Desta forma, vamos discutir como se dá a apropriação social da informação e do
conhecimento, de que forma uma cultura de informação em redes de cooperação contribui para a
melhoria das relações de trabalho, e como informação e conhecimento podem promover a
inclusão social e digital, tentando apontar caminhos possíveis para que as trocas informacionais
contribuam para o desenvolvimento social.

1
2 – Apropriação Social da Informação e do Conhecimento
Se o aprendizado e a produção de conhecimento é um processo próprio dos indivíduos, a
apropriação do conhecimento é um processo coletivo.
“Barreto (1999) assinala que a produção de conhecimento consiste em um fato cognitivo
do sujeito, ou seja, é próprio de cada indivíduo (...) Entretanto, cabe destacar que, se a criação de
conhecimento é individual, o aprendizado, que potencialmente gera conhecimentos e
competência, é sem dúvida um processo social, decorrente das interações e vínculos
estabelecidos entre diferentes indivíduos”1.
Para compreender o processo de apropriação social do conhecimento, diz Marteleto
(20009), a epistemologia social, expressão utilizada por Jesse Shera para estudar “como uma
pessoa adquire conhecimento de outra pessoa num contexto social” (SHERA, 1973, apud
MARTELETO, 2009), “deveria se valer das tecnologias e conhecer não apenas o sistema
cognitivo dos indivíduos, mas também a rede comunicacional da sociedade com ênfase nos
seguintes aspectos:
- o problema da cognição: como os sujeitos conhecem;
- o problema da cognição social: como a sociedade conhece a natureza do sistema
psicossocial por meio do qual o conhecimento pessoal transforma-se em
conhecimento social, isto é, em conhecimento apropriado pela sociedade;
- a História e a Filosofia do conhecimento e como ele se desenvolveu ao longo do
tempo numa variedade de culturas;
- os mecanismos e sistemas bibliográficos existentes e em que medida eles se adequam
às realidades do processo comunicacional, às descobertas das pesquisas
epistemológicas e ao conteúdo substantivo do próprio estoque de conhecimentos da
sociedade.” (SHERA apud MARTELETO, 2009)
Considerando este processo social no âmbito das TIC, que permitem a disseminação
horizontal da informação no lugar da verticalidade das mídias tradicionais, Marteleto (2009)
reforça que a apropriação de conhecimento não é unidirecional, mas pressupõe “(...) a instauração
de um diálogo no espaço social entre uma pluralidade de atores, discursos, sabedorias, ideologias
e práticas presentes na esfera de um mercado simbólico (grifo da autora) ambientado pelas novas

1
Issberner, Liz-Rejane. “Informação e conhecimento em redes produtivas: capacitação para o uso sustentado da
biodiversidade”, VII Enancib, Salvador, 2007, págs. 3 e 4.

2
mídias e por relações de domínio e poder, as quais tomam novos matizes na ambientação
contemporânea das sociedades de conhecimento, da comunicação e da informação”.2
Reforçando esta ideia, a autora recorre a Tarcísio Zandonade, cuja tese de doutorado,
intitulada As implicações da epistemologia social para uma teoria da recuperação da
informação, defendida em 2003 na UNB, citando o autor ao destacar que “os modos de produzir,
organizar, gerir e usar o conhecimento têm se alterado de forma expressiva, com a novas
tecnologias de comunicação e informação, na medida em que a informação eletrônica torna-se
mais democrática e acessível” (ZANDONADE apud MARTELETO, 2009).
No entanto, se por um lado, as TIC favorecem a acessibilidade, de outro possibilitam a
manutenção de modelos de exclusão e apropriação próprios da sociedade industrial.
“A codificação e a digitalização crescentes do conhecimento, transformado em
informação, pari passu (grifo das autoras) ao desenvolvimento e difusão das TIC, facilita seu
acesso por um contingente crescente de pessoas, bem como a formação de redes colaborativas
nas plataformas digitais. Por outro lado, contribui também para sua mercantilização e apropriação
privada. Aí se expressa a tensão contemporânea entre: (a) de um lado, o imperativo de produzir
mais conhecimento, informação, cultura e inovação – daí a importância de se promoverem meios
para a sua produção social e interativa; (b) e, de outro, o aumento da concentração, do controle e
da privatização da informação e do conhecimento, considerados estratégicos (concomitantemente
à tendência à concentração de capitais), seja por mecanismos de proteção de direitos de
propriedade intelectual (DPI), seja por outros meios de apropriação do conhecimento público e
socialmente produzido”3, que atribuem ao trabalho imaterial, de natureza cooperativa, valores do
trabalho material, característico do modelo industrial.
Desenha-se aí o paradoxo da apropriação da informação e do conhecimento através das
TIC, ao qual se soma outro elemento, relativo ao potencial de mobilização social:
“(...) Outro aparente paradoxo refere-se ao potencial de mobilização e a participação
social das TIC versus (grifo das autoras) a tendência a maior desigualdade, novas hierarquias,
novas formas de subordinação, subsunção e controle. Daí derivam-se, portanto, implicações
distintas relativamente a possíveis estratégias de fortalecimento e afirmação de segmentos sociais

2
Marteleto, Regina Maria. “Produção e Apropriação social de conhecimento: uma leitura pela ótica informacional”.
X Encontro Nacional de Pesquisa da ANCIB – ENANCIB 2009, pág. 3.
3
Albagli, Sarita; Maciel, Maria Lucia. “Novas condições de circulação e apropriação da informação e do
conhecimento: questões no debate contemporâneo”, X Encontro Nacional de Pesquisa da ANCIB – ENANCIB 2009,
pág. 8.

3
marginalizados, de construção democrática, da cidadania e de desenvolvimento
socioeconômico”. (ALBAGLI e MACIEL, 2009, págs. 3 e 4)
Apesar de ressaltarem o conflito existente entre democratização da informação e as
barreiras impostas à sua socialização pelo modelo industrial, as autoras reconhecem nas redes de
cooperação em ciência e tecnologia, sobretudo “em temas complexos e estratégicos, bem como
em áreas críticas à superação de problemas que afetam a humanidade globalmente” – como no
caso do estudo do genoma humano (Projeto Genoma), alguns sinais de uma nova ética de
conhecimento construído colaborativamente:
“Neste sentido, indica-se, possivelmente, a emergência de uma nova ética na cooperação
internacional em Ciência e Tecnologia, em torno de novas formas de compartilhamento de
informações e conhecimentos, que poderia sinalizar uma transformação paradigmática nos termos
que regem as relações sociais na área”. (ALBAGLI e MACIEL, 2009, págs. 12 e 13).
O fato de estas mudanças se observarem no campo da ciência, “a principal instituição
social da produção de conhecimentos” (MARTELETO, 2009), tanto pode ser exclusivo da área,
como também pode ser o indício de um processo mais amplo de uso das TIC para o trabalho
cooperativo e até mesmo o ativismo, e cuja emergência pode ser observada em iniciativas de
webcidadania (ou cidadania 2.0) no Brasil, como os sites Cidade Democrática
(www.cidadedemocratica.org.br) e Vote na Web (http://www.votenaweb.com.br).
Com 200 municípios brasileiros cadastrados, o Cidade Democrática é uma plataforma
digital que visa a estimular a participação política, onde cidadãos e entidades podem se expressar,
organizar e comunicar, com o intuito de mobilizar a sociedade na discussão e solução de
problemas da comunidade.
O Vote na Web é um site que visa à inserção popular nas decisões políticas, traduzindo a
linguagem técnica de projetos e emendas discutidas no Congresso para o entendimento das
pessoas comuns, possibilitando a elas votarem contra ou a favor tais projetos. Embora seja
simbólico, o voto popular pode servir de ferramenta para aproximar os políticos de seus
representados.
Tais iniciativas, que exigem um estudo mais aprofundado para avaliação de seu potencial
de mobilização com vistas ao desenvolvimento de uma cidadania de fato participativa, foram
tema de um programa veiculado pela emissora Globo News, em abril deste ano, cuja cópia está
disponbilizada em CD anexo a este trabalho.

4
3 –Informação e conhecimento orientados para o desenvolvimento sócioeconômico
sustentável
Na verdade, a ideia de informação e conhecimento disseminado em redes colaborativas
antecede a própria ideia de uso das TIC. É o que demonstra a experiência de colonos de Ouro
Preto D’Oeste, em Rondônia, região amazônica, que pelo desconhecimento das particularidades
da região, provocaram o esgotamento de suas chances de sobrevivência devido à aplicação de
modelos produtivos exógenos, que se revelaram inadequados para aquele local.
Ali, a adoção de uma cultura de informação em redes sociais de cooperação, permitindo a
geração de conhecimento relativo ao uso sustentável da biodiversidade, bem como processos de
hibridização de saberes tradicionais com novos conhecimentos, aplicados a sistemas
agroflorestais, possibilitaram que em 20 anos a comunidade passasse de um ponto de
esgotamento para o de investimentos e expasão em sua própria infra-estrutura produtiva,
resultando no que Furtado chama de “verdadeiro desenvolvimento”:
“Um verdadeiro desenvolvimento é, principalmente, um processo de ativação e
canalização de forças sociais, de melhoria da capacidade associativa, de exercício da iniciativa e
da criatividade. Desse ponto de vista, trata-se de um processo social e cultural e, apenas
secundariamente, econômico”. (FURTADO apud ISSBERNER)4
A informação e o conhecimento transformaram as relações de trabalho e uso do solo em
Ouro Preto D’Oeste, graças a redes associativas que permitiram “a geração de conhecimento
relativo ao uso sustentável da biodiversidade” (ISSBERNER, 2007, pág. 2)
As trocas de informação e conhecimento se deram no meio social, e poderiam ser
implementadas no mundo virtual, através das TIC, sempre e quando entendidas como
ferramentas facilitadoras deste processo e não condicionantes do mesmo.
Como diz a autora, “para reforçar o estímulo ao desenvolvimento do território, o
fortalecimento de uma cultura de informação parece fundamental. Certamente, a iniciativa passa
pela difusão das tecnologias de informação e comunicação, porém essa é uma condição
necessária, mas não suficiente para o aperfeiçoamento da cultura de informação. Esse processo
requer treinamento para acessar informação, produzir conhecimento e disseminar informações,

4
Issberner, Liz-Rejane. “Informação e conhecimento em redes produtivas: capacitação para o uso sustentado da
biodiversidade”, VII Enancib, Salvador, 2007, págs. 2 e 3.

5
num círculo virtuoso que inclui também formas tradicionais de estímulo ao aprendizado em
escolas e bibliotecas públicas e comunitárias”. 5

4 – Bibliotecas públicas e comunitárias como espaços de inclusão social e digital


A inclusão digital, tão propagada e estimulada por políticas públicas no Brasil, por si só,
não promove inclusão social, em parte pelas dificuldades de acesso de grande parte da população,
e pela necessidade de promoção do letramento digital (digital literacy), permitindo aos usuários o
desenvolvimento de habilidades para a apropriação da informação e do conhecimento disponíveis
na web.
Neste sentido, as bibliotecas públicas e comunitárias cumprem a dupla função de
promoverem inclusão social e digital.
Segundo Prado (2010), por serem “espaços abertos à participação democrática de todos”6,
possibilitam a inclusão social.
“Neste sentido, são de extrema importância porque estão criando as condições essenciais
para trazer segmentos sociais que estão fora do processo produtivo moderno a se integrarem nas
discussões sobre o que eles representam no processo de mudanças sociais no contexto da
sociedade da informação no país.” (PRADO, 2010, pág. 141)
No que diz respeito ao paradigma tecnológico, Prado lembra que “a transferência da
informação não existe sem estar no centro das ações dos sujeitos sociais, que certamente
manifestarão as suas emoções no processo da construção e da transmissão do conhecimento sobre
os mais diferentes fenômenos do seu cotidiano, e não simplesmente sobre o domínio de uma
ferramenta tecnológica, embora isto também seja importante”.7
Referindo-se a Alberto Cupani, o autor reforça a importância das redes sociais,
destacando que “são as ações dos homens e não dos instrumentos tecnológicos (incluem-se aqui a
transferência de informação) que irão definir a orientação que o cidadão deve tomar. Porque esses
instrumentos, quando selecionados pelo próprio cidadão, vão lhe facultar um nível de

5
Issberner, Liz-Rejane. “Informação e conhecimento em redes produtivas: capacitação para o uso sustentado da
biodiversidade”, VII Enancib, Salvador, 2007, págs. 8 e 9.
6
Prado, Geraldo. “A biblioteca comunitária como agente de inclusão/integração do cidadão na sociedade da
informação”, Inc. Soc. Brasília, DF, v. 3, n. 2, p. 139-145, jan/jun., 2010, pág. 141.
7
____________________________________________________, pág. 144.

6
inclusão/integração social sustentável, autônoma e não forjada por ingerências de ações
imperativas externas”.8
Além disso, as bibliotecas também são consideradas “facilitadores sociais” para a inclusão
digital:
“As bibliotecas são vistas por analistas como pontes, a única ponte (Schement, 2003), que
pode ser usada por aqueles que são tecnológica e socialmente desconectados para fazer parte da
Sociedade da Informação”. 9 (tradução nossa)
Segundo pesquisa do IBGE, divulgada em 2005, citada por Olinto, menos de 20% da
população adulta brasileira teve qualquer tipo de acesso à internet, enquanto no mesmo ano 70%
dos adultos nos Estados Unidos estavam conectados.
A mesma pesquisa demonstrou que quase a metade das pessoas que acessaram a internet o
fizeram fora de casa e que “a tecnologia tem uma forte base social, com a qual se interrelaciona,
continuando a reproduzir desigualdades” (tradução nossa de WELLMAN et all, 2002,
HORRIGAN, 2008 apud OLINTO, pág. 3) sociais, em primeiro lugar devido a que o acesso às
TIC estão diretamente relacionados com os maiores níveis de estudo e renda e ao baixo
letramento digital dos menos favorecidos.
Para a autora, as bibliotecas públicas são mais indicadas para o letramento digital que
outros facilitadores sociais, como LAN Houses e telecentros, por haver ali uma divisão de gênero
– são mais usados por meninos do que por meninas – e porque já são institucionalizadas,
pertencem a uma rede de bibliotecas e, mais importante, dão um valor mais amplo ao
desenvolvimento comunitário, “procurando coletar e organizar informações sobre a comunidade,
tentando dar voz à produção cultural local através da organização de bases de dados e outras
iniciativas, visando ao desenvolvimento do empoderamento do cidadão através de serviços de
informação, e envolvendo a comunidade no planejamento de suas atividades”. (tradução nossa)
(BETANCUR apud OLINTO, pág. 7)

8
Prado, Geraldo. “A biblioteca comunitária como agente de inclusão/integração do cidadão na sociedade da
informação”, Inc. Soc. Brasília, DF, v. 3, n. 2, p. 139-145, jan/jun., 2010, pág. 144.
9
Olinto, Gilda. “Internet access and use in Brazil: concepts, measures and public libraries as social facilitators”. pág.
1.

7
5 – Conclusões
Conforme demonstrado neste trabalho, vivemos sob influência das novas tecnologias de
informação e comunicação (TIC), no limiar da chamada Sociedade da Informação.
Esta realidade nos coloca diante do paradoxo de uma maior capacidade de comunicação e
acesso à informação, de um lado, e a manutenção – ou até mesmo o agravamento - dos abismos
sociais devido, sobretudo, à privatização/mercantilização da informação e do conhecimento e à
falta de acesso tecnológico e de letramento digital.
Assegurar a apropriação da informação e do conhecimento com vistas a um
desenvolvimento coletivo e igualitário, à melhoria das relações de trabalho, à inclusão social e
digital, passa pelo fortalecimento das redes sociais, permitindo a participação de todos os atores –
inclusive, senão sobretudo os marginalizados – na discussão de temas sensíveis para a sociedade,
seja no mundo real ou no meio virtual.
Por este motivo, antes de priorizar o estímulo à inclusão digital, as políticas públicas
deveriam voltar seus esforços para o reforço e implementação das redes sociais como fóruns de
comunicação e debate democráticos, inspirando-se em experiências da sociedade civil, como as
iniciativas Cidade Democrática e Vote na Web.

8
6 – Referências bibliográficas

ALBAGLI, Sarita; MACIEL, Maria Lucia. “Novas condições de circulação e apropriação da


informação e do conhecimento: questões no debate contemporâneo”, X Encontro Nacional de
Pesquisa da ANCIB – ENANCIB 2009.

ISSBERNER, Liz-Rejane. “Informação e conhecimento em redes produtivas: capacitação para o


uso sustentado da biodiversidade”, VII ENANCIB, 2007.

MARTELETO, Regina Maria. “Produção e Apropriação social de conhecimento: uma leitura


pela ótica informacional”. X Encontro Nacional de Pesquisa da ANCIB – ENANCIB 2009.

OLINTO, Gilda. “Internet access and use in Brazil: concepts, measures and public libraries as
social facilitators”.

PRADO, Geraldo. “A biblioteca comunitária como agente de inclusão/integração do cidadão na


sociedade da informação”, Inc. Soc. Brasília, DF, v. 3, n. 2, p. 139-145, jan/jun., 2010.

Você também pode gostar