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Elena Ferrante - Série Napolitana Vol. 03 - Historia de Quem Foge e Quem Fica
Elena Ferrante - Série Napolitana Vol. 03 - Historia de Quem Foge e Quem Fica
Sobre a obra:
Sobre nós:
Tradução
Maurício Santana Dias
Storia di chi fugge e di chi resta © 2013 Edizioni e/o
Published by arrangement with The Ella Sher Literary Agency
Copyright da tradução © 2016 by Editora Globo . .
Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta edição pode ser utilizada ou reproduzida — em
qualquer meio ou forma, seja mecânico ou eletrônico, fotocópia, gravação etc. — nem apropriada ou
estocada em sistema de banco de dados sem a expressa autorização da editora.
Texto fixado conforme as regras do Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa (Decreto Legislativo no
54, de 1995).
cip-brasil. catalogação-na-fonte
sindicato nacional dos editores de livros, rj
F423h
Ferrante, Elena
História de quem foge e de quem fica / Elena Ferrante ; tradução Maurício Santana Dias. - 1. ed. - São
Paulo : Biblioteca Azul, 2016.
1a edição, 2016
Direitos exclusivos de edição em língua portuguesa, para o Brasil, adquiridos por Editora Globo s.a.
Av. Nove de Julho, 5229
São Paulo-sp 01407-907
www.globolivros.com.br
Table of Content
Capa
Índice geral da obra
Folha de rosto
Créditos
Lista dos personagens
TEMPO INTERMÉDIO
1.
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123.
Notas
LISTA DOS PERSONAGENS
Encontrei Lila pela última vez cinco anos atrás, no inverno de 2005.
Estávamos passeando de manhã cedo pelo estradão e, como há anos vinha
acontecendo, não conseguíamos nos sentir à vontade. Lembro que apenas eu
falava; ela cantarolava, cumprimentava gente que nem respondia, e nas raras
vezes que me interrompia só pronunciava frases exclamativas, sem um nexo
evidente com o que eu dizia. Ao longo dos anos, muita coisa ruim tinha
ocorrido, algumas horríveis, e para retomar a via da intimidade teríamos de
nos fazer confidências secretas, mas eu não tinha a força para encontrar as
palavras, e ela — a quem talvez não faltasse força — não tinha a vontade,
nem via utilidade nisso.
De todo modo eu gostava muito dela e sempre que ia a Nápoles
procurava encontrá-la, ainda que — devo dizer — sentisse um certo medo.
Ela estava muito mudada. A velhice já tinha levado a melhor sobre nós duas,
mas, enquanto eu combatia a tendência a ganhar peso, ela se estabilizara
numa magreza só pele e ossos. Tinha cabelos curtos, que ela mesma cortava,
e muito brancos: não por escolha, mas por desleixo. O rosto, bastante
marcado, lembrava cada vez mais o do pai. Ria de nervoso, quase um
guincho, e falava altíssimo. Gesticulava sem parar, dando ao gesto uma
determinação tão feroz que parecia querer cortar em dois os edifícios, a rua,
os passantes, a mim.
Estávamos na altura da escola fundamental quando um homem jovem,
que eu não conhecia, correu para nós e gritou para ela que, em um canteiro
ao lado da igreja, tinha sido encontrado o cadáver de uma mulher. Fomos
depressa para os jardinzinhos, Lila me arrastou em meio ao círculo de
curiosos abrindo caminho com maus modos. A mulher jazia de lado, era
extraordinariamente gorda, vestia um impermeável verde escuro e fora de
moda. Lila a reconheceu num instante, eu, não: era nossa amiga de infância
Gigliola Spagnuolo, ex-mulher de Michele Solara.
Eu não a encontrava havia décadas. O rosto bonito se estragara, os
tornozelos estavam enormes. Os cabelos, antigamente castanhos, eram agora
de um vermelho fogo, longo como quando era uma garota, mas ralos,
espalhados sobre o humo revolvido. Apenas um dos pés calçava um sapato
de salto baixo, muito gasto; o outro estava metido numa meia de lã cinza,
furada no dedão, ao passo que o sapato estava um metro e meio mais à
frente, como se tivesse se desprendido depois de um chute provocado por
dor ou por espanto. Caí no choro, e Lila me olhou com fastio.
Sentadas em um banco perto dali, aguardamos em silêncio que Gigliola
fosse levada embora. O que havia acontecido com ela, como tinha morrido,
por ora não se sabia. Depois fomos para a casa de Lila, o velho e pequeno
apartamento dos pais, onde agora ela morava com o filho Rino.
Conversamos sobre nossa amiga, ela me falou mal dela, da vida que tinha
levado, das pretensões, das deslealdades. Mas neste momento era eu quem
não conseguia ouvir, pensava naquele rosto de perfil na terra, em como eram
ralos os cabelos compridos, nas manchas esbranquiçadas do crânio. Quantas
pessoas que tinham sido crianças com a gente e não estavam mais vivas,
desaparecidas da face da terra por doença, porque os nervos não tinham
resistido à lixa dos tormentos, porque seu sangue tinha sido derramado. Por
um tempo ficamos absortas na cozinha, sem que nenhuma das duas se
decidisse a tirar a mesa, e então saímos de novo.
O sol do belo dia de inverno conferia às coisas um aspecto sereno. O
bairro velho, diferentemente de nós, permanecera idêntico. Resistiam as
casas baixas e cinzentas, o pátio de nossas brincadeiras, o estradão, as bocas
escuras do túnel e a violência. No entanto a paisagem em torno mudara. A
extensão esverdeada dos pântanos não existia mais, a velha fábrica de
conservas desaparecera. Em seu lugar havia o brilho dos espigões de vidro,
noutros tempos sinais de um futuro radiante no qual ninguém nunca acreditou.
Com o passar dos anos todos registraram as mudanças, às vezes com
curiosidade, quase sempre distraidamente. Quando menina eu imaginava que,
para além do bairro, Nápoles oferecesse maravilhas. O arranha-céu da
estação central, por exemplo, me fascinara muito, décadas atrás, por sua
elevação andar a andar, um esqueleto de edifício que então nos parecia
altíssimo, ao lado da arrojada estação ferroviária. Como eu me surpreendia
quando passava pela piazza Garibaldi: olha só como é alto, dizia a Lila, a
Carmen, a Pasquale, a Ada, a Antonio, a todos os colegas daquela época,
com os quais eu caminhava até o mar, margeando os bairros ricos. Lá no alto
— pensava — moram os anjos, e certamente usufruem toda a cidade. Como
eu gostaria de subir até lá, escalar até o topo. Era o nosso arranha-céu,
mesmo estando fora do bairro, uma coisa que víamos crescer dia a dia. Mas
a obra foi interrompida. Quando eu voltava de Pisa para casa, o arranha-céu
da estação, em vez de símbolo de uma comunidade que estava se renovando,
me parecia mais um nicho da ineficiência.
Naquele período me convenci de que não havia grande diferença entre
o bairro e Nápoles, o mal-estar escoava de um para o outro sem
interrupções. A cada retorno encontrava uma cidade cada vez mais de
estuque, que não resistia às mudanças de estação, ao calor, ao frio, sobretudo
aos temporais. E logo a estação da piazza Garibaldi se alagava, logo vinha
abaixo a Galeria em frente ao Museu, logo havia um deslizamento de terra, e
a luz elétrica não voltava mais. Guardava na memória ruas escuras e cheias
de perigo, um trânsito cada vez mais caótico, a pavimentação irregular,
poças enormes. Os bueiros entupidos transbordavam, regurgitavam. Lavas de
água, esgoto, lixo e bactérias se despejavam no mar vindas das colinas
repletas de construções novíssimas e frágeis, ou erodiam o mundo de baixo.
As pessoas morriam por incúria, corrupção, opressão e, apesar de tudo, a
cada turno eleitoral, dava seu consenso entusiástico aos políticos que
tornavam sua vida insuportável. Assim que descia do trem, movia-me com
cautela nos lugares onde eu tinha crescido, atenta para falar sempre em
dialeto, como para assinalar sou um de vocês, não me façam mal.
Quando me formei, quando escrevi de jato uma história que, de modo
totalmente inesperado, em poucos meses se transformou em um livro, os
elementos do mundo de onde eu vinha me pareceram ainda mais
deteriorados. Enquanto em Pisa ou Milão eu me sentia bem, às vezes até
feliz, em minha cidade natal temia a cada retorno que algum imprevisto me
impedisse de fugir dali, que as coisas que eu tinha conquistado fossem
tiradas de mim. Não poderia mais ir encontrar Pietro, com quem deveria me
casar em breve; o espaço impecável da editora me seria vetado; não poderia
mais usufruir as gentilezas de Adele, minha futura sogra, uma mãe como
nunca tive. Já no passado a cidade me parecera lotada, uma única multidão
que se estendia da piazza Garibaldi até Forcella, Duchesca, Lavinaio,
Rettifilo. No final dos anos 1960, tive a impressão de que a multidão
aumentara, de que a intolerância e a agressividade estavam se espalhando de
modo incontrolável. Numa manhã fui até a via Mezzocannone, onde anos
antes eu tinha trabalhado como atendente numa livraria. Fui por curiosidade,
para ver o lugar em que passara horas de trabalho, especialmente para dar
uma olhada na universidade, onde eu nunca tinha entrado. Queria compará-la
com a de Pisa, com a Normal, esperava até cruzar com os filhos da
professora Galiani — Armando, Nadia — e me gabar do que eu tinha sido
capaz de fazer. Mas a rua, os espaços universitários me deram angústia,
estavam cheios de estudantes napolitanos, da província e de todo o Sul,
jovens bem-vestidos, barulhentos, seguros de si, e de rapazes de modos
grosseiros e ao mesmo tempo subalternos. Aglomeravam-se nas entradas,
dentro das salas, em frente às secretarias onde havia longas filas, onde
frequentemente surgiam animosidades. Três ou quatro trocaram socos sem
aviso prévio a poucos passos de mim, como se tivesse bastado se verem
para chegar a uma explosão de insultos e agressões físicas, uma fúria de
homem berrando sua vontade de sangue num dialeto que eu mesma tinha
dificuldade de entender. Fui embora depressa, como se algo ameaçador me
tivesse atingido em um local que eu imaginava seguro, habitado apenas por
boas razões.
Enfim, cada ano me parecia pior. Naquele período de chuvas, a cidade
estava mais uma vez colapsada, um prédio inteiro pendera de lado como uma
pessoa que se apoia no braço carcomido de uma velha poltrona e o braço
cede. Mortos, feridos. E gritos, massacres, bombas caseiras. Parecia que a
cidade gestava nas vísceras uma fúria que não conseguia extravasar e por
isso mesmo a corroía, ou irrompia em pústulas epidérmicas, inchadas de
veneno contra todos, crianças, adultos, velhos, gente de outras cidades,
americanos da Otan, turistas de qualquer nacionalidade, os próprios
napolitanos. Como era possível resistir naquele lugar de desordem e perigo,
na periferia, no centro, nas colinas, sob o Vesúvio? Que impressão horrível
me causara San Giovanni a Teduccio, a viagem para chegar até lá. Que
impressão horrível me deu a fábrica em que Lila trabalhava, e a própria
Lila, Lila com o filho pequeno, Lila que, num edifício miserável, vivia com
Enzo embora não dormissem juntos. Tinha dito que ele queria estudar o
funcionamento das calculadoras eletrônicas e que ela estava tentando ajudá-
lo. Ficou em minha memória a voz dela tentando apagar San Giovanni, os
embutidos, o cheiro da fábrica, sua condição, citando com fingida
competência siglas do tipo: Centro de cibernética da Estatal de Milão,
Centro soviético para a aplicação dos computadores nas ciências sociais.
Queria me fazer acreditar que em breve surgiria um centro daquele gênero
também em Nápoles. Aí pensei: em Milão talvez sim, com certeza na União
Soviética, mas aqui não, aqui são delírios de sua cabeça incontrolável, para
dentro dos quais você também está arrastando o pobre e devotíssimo Enzo.
Em vez disso, ir embora. Escapar definitivamente, para longe da vida que
tínhamos experimentado desde o nascimento. Fixar-se em territórios bem
organizados, onde realmente tudo era possível. E de fato foi o que eu fiz.
Mas só para descobrir, nas décadas seguintes, que eu tinha me enganado, que
se tratava de uma corrente com anéis cada vez maiores: o bairro remetia à
cidade, a cidade, à Itália, a Itália, à Europa, a Europa, a todo o planeta. E
hoje eu vejo assim: não é o bairro que está doente, não é Nápoles, é o globo
terrestre, é o universo, ou os universos. E a habilidade consiste em ocultar e
esconder para si o real estado das coisas.
Falei a respeito disso com Lila naquela tarde, no inverno de 2005,
como para fazer uma reparação. Queria reconhecer que ela havia
compreendido tudo desde pequena, sem jamais ter saído de Nápoles. Mas
me envergonhei quase imediatamente, senti em minhas palavras o
pessimismo rabugento de quem envelhece, o tom que — eu sabia — ela
detestava. De fato, me mostrou os dentes envelhecidos num sorriso que era
uma careta nervosa e disse:
“Agora vai bancar a sábia, proferir sentenças? Quais são suas
intenções? Quer escrever sobre nós? Quer escrever sobre mim?”.
“Não.”
“Diga a verdade.”
“Seria muito complicado.”
“Mas pensou nisso, e continua pensando.”
“Um pouco, sim.”
“Me deixe em meu canto, Lenu. Deixe todo mundo pra lá. Nós devemos
desaparecer, não merecemos nada, nem Gigliola nem eu, ninguém.”
“Isso não é verdade.”
Fez uma feia expressão de descontentamento e me perscrutou com
pupilas que mal se viam, a boca entreaberta.
“Tudo bem”, disse, “escreva, se faz tanta questão, escreva sobre
Gigliola, sobre quem quiser. Mas não sobre mim, nem tente, me prometa.”
“Não vou escrever sobre ninguém, nem sobre você.”
“Olha lá, estou de olho em você.”
“É mesmo?”
“Vou vasculhar seu computador, ler seus arquivos, apagar um por um.”
“Que nada.”
“Acha que não sou capaz?”
“Eu sei que você é capaz. Mas sei me proteger.”
Riu com seu velho jeito maldoso.
“De mim, não.”
2.
Nunca mais esqueci aquelas três palavras, foi a última coisa que ela me
disse: de mim, não. Agora já faz semanas que escrevo num bom ritmo, sem
perder tempo relendo o que escrevi. Se Lila ainda estiver viva — fico
fantasiando sobre isso enquanto sorvo um café e vejo o rio Pó se chocando
contra as pilastras da ponte Principessa Isabella, ela não vai resistir, virá
xeretar meu computador, vai ler e, velha lunática que é, ficará furiosa com
minha desobediência, vai se intrometer, corrigir, fazer acréscimos, deixando
pra lá o desejo de desaparecer. Depois lavo a xícara, vou à escrivaninha,
volto a escrever a partir daquela primavera fria em Milão, uma noite
passada mais de quarenta anos atrás, na livraria, quando o homem de óculos
grossos falou com sarcasmo de mim e de meu livro diante de todos, e eu
repliquei de modo confuso, trêmulo. Até que de repente Nino Sarratore se
ergueu, quase irreconhecível com a barba inculta, pretíssima, e atacou com
dureza quem tinha me atacado. A partir daquele momento, comecei por
inteiro a gritar seu nome em silêncio — há quanto tempo não o via, quatro,
cinco anos — e, embora estivesse gelada por causa da tensão, me senti
queimar.
Assim que Nino terminou sua fala, o homem pediu o direito de réplica
com um gesto contido. Era óbvio que ele sentira o golpe, mas eu estava
muito envolvida em emoções violentas para entender imediatamente o
porquê. Tinha percebido, naturalmente, que a intervenção de Nino deslocara
a discussão da literatura para a política, de modo agressivo e quase
desrespeitoso. Porém, naquele momento dei pouco peso ao fato, não
conseguia me perdoar por não ter sido capaz de enfrentar o debate, de ter
sido inconsequente diante de um público muito culto. No entanto eu sabia
reagir. No liceu, tinha reagido a uma condição de desvantagem tentando
imitar a professora Galiani, apropriando-me de seus tons e de sua linguagem.
Em Pisa aquele modelo de mulher não bastara, tive de me haver com gente
muito aguerrida. Franco, Pietro, todos os estudantes que se destacavam, e
naturalmente os professores prestigiosos da Normal, se expressavam de
maneira complexa, escreviam com calculadíssimo artifício, tinham uma
habilidade em categorizar, uma nitidez lógica, que Galiani não possuía. Mas
eu me exercitara para ser como eles. E frequentemente consegui, tive a
impressão de dominar as palavras a ponto de varrer para sempre as
incongruências do estar no mundo, a insurgência das emoções e os discursos
trôpegos. Em suma, agora eu sabia recorrer a um modo de falar e de
escrever que, por meio de um vocabulário selecionadíssimo, um andamento
amplo e meditado, a disposição implacável dos argumentos e a clareza
formal que jamais podia faltar, visava a aniquilar o interlocutor a ponto de
lhe tirar a vontade de rebater. Mas naquela noite as coisas não correram
como deveriam. Primeiro Adele e seus amigos, que eu imaginava de
finíssimas leituras, depois o homem de óculos grossos acabaram por me
intimidar. Eu me tornara a mulherzinha voluntariosa que vinha do bairro, a
filha do contínuo com a cadência dialetal do Sul, ela mesma assustada por
ter ido parar naquele lugar, recitando o papel da escritora jovem e culta. Por
isso perdi confiança e me expressei sem convicção, atabalhoadamente. Sem
falar de Nino. Sua aparição me tirara qualquer resto de controle, e a própria
qualidade de sua fala em minha defesa confirmara que eu havia perdido
subitamente minhas habilidades. Vínhamos de ambientes semelhantes, ambos
nos esforçáramos para adquirir aquela linguagem. Entretanto ele não só a
tinha usado com naturalidade, direcionando-a facilmente contra seu
interlocutor, mas também, nos momentos em que lhe pareceu necessário, até
se permitiu inserir programaticamente alguma desordem em seu italiano
elegante com uma negligência ostensiva, que logo fez soar antiquada e talvez
até um pouco ridícula a impostação professoral do homem de óculos
grossos. Consequentemente, quando notei que este último queria retomar a
palavra, pensei: deve estar furioso e, se antes falou mal de meu livro, agora
vai falar ainda pior, só para humilhar Nino, que o defendeu.
Mas o homem pareceu preocupado com outras coisas: não voltou ao
meu romance, não fez mais nenhuma menção a mim. Concentrou-se, em vez
disso, em certas fórmulas que Nino usara marginalmente, mas repetindo-as
com insistência; coisas do tipo arrogância oligárquica, literatura
antiautoritária. Só então compreendi que sua raiva derivava da inflexão
política do debate. Não apreciara aquele léxico, e o sublinhou escandindo a
voz profunda com um repentino falsete sarcástico (portanto a altivez do
conhecimento hoje é definida arrogância, então até a literatura tornou-se
antiautoritária?). Depois passou a jogar sutilmente com a palavra
autoridade, graças a Deus — disse — uma barreira contra os jovenzinhos
incultos que se pronunciam a esmo sobre qualquer coisa, recorrendo às
platitudes de sabe-se lá que curso livre da Estatal de Milão. E falou
demoradamente sobre esse tema, dirigindo-se ao público, jamais diretamente
a Nino ou a mim. No entanto, ao final, concentrou-se primeiro no velho
crítico que estava sentado a meu lado e, depois, diretamente em Adele,
talvez seu verdadeiro alvo polêmico desde o início. Não tenho nada contra
os jovens — disse em síntese —, mas contra os adultos estudados que estão
sempre prontos, por interesse, a cavalgar a última moda da estupidez. Neste
ponto finalmente se calou e fez menção de sair com abafados mas enérgicos
me desculpem, com licença, obrigado.
Os presentes se levantaram para deixá-lo passar, todos hostis, mas
respeitosos. Então pude confirmar definitivamente que se tratava de um
homem de prestígio, de tanto prestígio que até Adele respondeu ao seu
cumprimento raivoso com um cordial: obrigada, até logo. Talvez tenha sido
por isso que Nino surpreendeu a todos quando, de modo imperativo e ao
mesmo tempo zombeteiro, mostrando saber com quem estava falando, o
chamou com o título de professor — professor, aonde vai, não fuja — e
então, graças à agilidade das pernas compridas, bloqueou sua passagem, o
enfrentou, lhe disse frases naquela sua nova língua que, de onde eu estava,
mal pude ouvir e entender, mas que deviam ser como cabos de aço sob o sol
forte. O homem escutou imóvel, sem impaciência, depois fez um gesto com a
mão que significava afaste-se e rumou para a saída.
3.
Meu noivo se levantou e me abraçou. Eu nunca tinha dito nada a ele sobre
Nino. Tinha mencionado Antonio, poucas palavras, e lhe dissera algo sobre
minha relação com Franco, que aliás era bem conhecida no ambiente
estudantil de Pisa. Mas nunca nem aludira ao nome de Nino. Era uma história
que me fazia mal, com momentos penosos dos quais eu me envergonhava.
Revelá-la significaria confessar que sempre amei uma pessoa como jamais o
amaria. E conferir-lhe uma ordem, um sentido, implicava falar de Lila, de
Ischia, avançar quem sabe até o ponto de admitir que o episódio de sexo com
um homem maduro, tal como era narrado em meu livro, se inspirava em uma
experiência verdadeira nos Maronti, em minha escolha de garotinha
desesperada que agora, depois de tanto tempo, me parecia uma coisa
repugnante. Assunto meu, portanto, e preservei meus segredos. Se Pietro
tivesse sabido, compreenderia facilmente a razão de meu descontentamento
com que o estava recebendo.
Ele tornou a se sentar na cabeceira da mesa, entre a mãe e Nino.
Devorou uma bisteca e bebeu vinho, mas me olhava assustado, percebendo
meu mau humor. Com certeza se sentia em culpa por não ter chegado a tempo
e perdido um acontecimento importante em minha vida, porque seu descuido
podia ser interpretado como um sinal de que não me amava, porque me
deixara com estranhos, sem o conforto de seu afeto. Difícil dizer a ele que
minha cara amarrada e meu mutismo se explicavam justamente pelo fato de
ele não ter permanecido ausente até o final, por ter se intrometido entre mim
e Nino.
De resto, Nino estava me infligindo uma infelicidade ainda maior.
Estava sentado a meu lado, mas nunca me dirigia a palavra. Parecia contente
com a chegada de Pietro. Servia-lhe vinho, oferecia seus cigarros, acendia
um, e agora os dois sopravam fumaça de lábios estreitos, falando da viagem
cansativa de carro entre Pisa e Milão e do prazer de dirigir. Fiquei
espantada com a diferença entre eles: Nino era enxuto, flexível, a voz alta e
cordial; Pietro atarracado, com uma bizarra massa emaranhada de cabelos
sobre a testa enorme, as bochechas cheias raspadas pela lâmina, a voz
sempre baixa. Pareciam alegres por terem se conhecido, algo bastante
anômalo para Pietro, sempre na dele. Nino o incitava, mostrava um real
interesse por seus estudos (li em algum lugar um artigo em que você
contrapõe o leite e o mel ao vinho e a qualquer forma de embriaguez), o
solicitava a falar sobre o assunto, e meu noivo, que em geral tendia a não
dizer nada sobre aqueles temas, acabava cedendo, corrigia com bom humor,
se abria. Porém, justo quando Pietro começava a ficar íntimo, Adele
interveio.
“Chega de conversa”, disse ao filho. “E a surpresa para Elena?”
Olhei para ela, incerta. Havia outras surpresas? Não bastava que Pietro
tivesse guiado por oito horas, sem fazer nenhuma parada, só para chegar a
tempo de pelo menos jantar em minha homenagem? Pensei em meu noivo
com curiosidade, estava assumindo um ar circunspecto que eu conhecia bem,
e que se estampava em seu rosto quando as circunstâncias o forçavam a falar
bem de si em público. Anunciou-me, mas quase em um sussurro, que se
tornara professor titular, um precocíssimo professor titular com uma cátedra
em Florença. Assim, por magia, segundo seu costume. Nunca se gabava de
sua excelência, eu não sabia quase nada sobre quanto era apreciado como
estudioso, submetia-se a provas duríssimas sem me dizer palavra. E agora lá
estava ele, dando aquela notícia com negligência, como se tivesse sido
obrigado pela mãe, como se para ele não significasse grande coisa. No
entanto significava um prestígio notável para alguém de sua idade,
significava segurança econômica, significava sair de Pisa, significava
subtrair-se a um clima político e cultural que há meses, não sei por que, o
exasperava. Significava acima de tudo que no outono, ou no máximo no
início do próximo ano, nós nos casaríamos e eu deixaria Nápoles. Ninguém
fez menção a este último fato, mas todos se congratularam tanto com Pietro
quanto comigo. Nino, que logo em seguida olhou o relógio, disse uma frase
azeda sobre a carreira universitária e exclamou que estava desolado, mas
precisava ir embora.
Todos nos levantamos. Eu não sabia o que fazer, busquei inutilmente o
olhar dele, e uma grande dor cresceu em meu peito. Fim da noite, ocasião
perdida, desejos abortados. Uma vez na rua, esperei que me desse um
número de telefone, um endereço. Limitou-se a apertar minha mão e a me
desejar todo o bem possível. A partir dali me pareceu que cada movimento
dele me excluísse de propósito. Num gesto de despedida, fiz-lhe um meio
sorriso agitando a mão no ar, como se empunhasse uma caneta. Era uma
súplica e significava: você sabe onde moro, me escreva, por favor. Mas ele
já tinha virado as costas.
7.
Agradeci a Adele e a seu amigo por todo o esforço que tinham feito por mim
e por meu livro. Ambos elogiaram muito Nino, com sinceridade, falando
como se eu tivesse contribuído para torná-lo um jovem tão simpático e
inteligente. Pietro não disse nada, fez apenas um gesto meio nervoso quando
a mãe lhe recomendou que voltasse logo, ambos eram hóspedes de
Mariarosa. Eu disse imediatamente: não precisa me acompanhar, vá com sua
mãe. Ninguém achou que eu estivesse falando sério, que eu estava infeliz e
preferia ficar sozinha.
Durante todo o percurso me mostrei intratável. Exclamei que não
gostava de Florença, o que não era verdade. Exclamei que não queria mais
escrever, queria ensinar, e não era verdade. Exclamei que estava cansada,
que tinha muito sono, e não era verdade. Não só: quando Pietro me anunciou
sem preâmbulos que queria conhecer meus pais, gritei: está maluco, deixe
minha família em paz, você não é adequado para eles e eles não são
adequados a você. Naquela altura ele me perguntou espantado:
“Não quer mais se casar comigo?”
Estive a ponto de dizer: é, não quero, mas me controlei a tempo, sabia
que nem isso era verdade. Disse sem forças: desculpe, estou deprimida,
claro que quero me casar com você — então peguei sua mão e entrelacei
meus dedos nos dele. Era um homem inteligente, extraordinariamente culto e
bom. Eu gostava dele, não queria que sofresse. No entanto, enquanto
segurava sua mão, justamente enquanto confirmava que queria me casar,
compreendi com clareza que, se ele não tivesse aparecido aquela noite no
restaurante, eu teria tentado ficar com Nino.
Foi difícil admitir isso. Com certeza era uma má ação, que Pietro não
merecia, mas eu a cometeria com prazer e talvez até sem remorsos.
Encontraria um modo de atrair Nino para mim depois de todos aqueles anos,
desde a escola fundamental até o liceu, até o período de Ischia e da piazza
dei Martiri. Eu o tomaria para mim, ainda que aquela frase dele sobre Lila
me incomodasse e angustiasse. Eu o tomaria para mim e nunca diria nada a
Pietro. Talvez pudesse contar a Lila, mas quem sabe quando, talvez na
velhice, quando imaginava que nada mais importaria nem a ela, nem a mim.
O tempo, como em todas as coisas, era decisivo. Nino duraria apenas uma
noite, me deixaria na manhã seguinte. Mesmo o conhecendo desde sempre,
era feito de fantasias, ficar com ele para sempre teria sido impossível, ele
vinha da infância, era construído de desejos infantis, não tinha concretude,
não apontava para o futuro. Já Pietro era de agora, maciço, um marco de
fronteira. Delimitava uma terra novíssima para mim, uma terra de boas
razões, governada por regras que derivavam de sua família e que conferiam
um sentido a cada coisa. Vigiam grandes ideais, o culto do bom nome,
questões de princípio. Nada, entre os Airota, era aproximativo. O
casamento, por exemplo, participava de sua contribuição a uma batalha
laica. Os pais de Pietro eram casados apenas no civil, e Pietro, mesmo tendo
uma vasta cultura religiosa — aliás, talvez justamente por isso —, nunca se
casaria na igreja, preferiria renunciar a mim. O mesmo valia para o batismo.
Pietro não tinha sido batizado, nem Mariarosa, portanto nossos eventuais
filhos não seriam batizados. Tudo nele seguia aquele andamento, parecia
sempre guiado por uma ordem superior que, embora não tendo uma origem
divina, mas familiar, dava-lhe igualmente a certeza de estar do lado da
verdade e da justiça. Quanto ao sexo, não sei, ele era reservado. Conhecia
bem minha história com Franco Mari para deduzir que eu não era virgem,
mas nunca tocara nesse assunto, nem uma meia frase recriminatória, uma
piada pesada, uma risadinha. Não me constava que ele tivesse tido outras
namoradas, era difícil imaginá-lo com uma prostituta, e excluía que ele
tivesse passado um minuto sequer de sua vida falando de mulheres com
outros homens. Detestava anedotas picantes. Detestava fofocas, tons
exaltados, festas, toda forma de desperdício. Mesmo sendo de condição
abastada, tendia — nesse ponto em polêmica com os pais e a irmã — a uma
espécie de ascetismo na abundância. E tinha um senso agudo do dever, nunca
faltaria a seus compromissos comigo, nunca me trairia.
Portanto, claro, eu não queria perdê-lo. Paciência se minha natureza,
rude apesar dos estudos que fiz, estava longe de seu rigor, se eu não sabia
honestamente até que ponto seria capaz de suportar toda aquela geometria.
Ele me dava a certeza de escapar à maleabilidade oportunista de meu pai e à
grosseria de minha mãe. Por isso reprimi à força a ideia de Nino, peguei
Pietro pelo braço e murmurei: sim, vamos nos casar o mais rápido possível,
quero ir embora de casa, quero tirar minha habilitação, quero viajar, quero
ter um telefone, uma televisão, nunca tive nada. E naquele momento ele ficou
alegre, riu, disse sim a tudo o que eu confusamente pretendia. A poucos
passos do hotel ele parou e murmurou, rouco: posso dormir com você? Foi a
última surpresa da noite. Olhei para ele perplexa: estive propensa muitas
vezes a fazer amor, ele sempre evitara; mas me deitar com ele ali, em Milão,
no hotel, depois da discussão traumática na livraria, depois de Nino, não me
agradava. Respondi: já esperamos tanto, podemos esperar um pouco mais.
Beijei-o numa esquina escura e o observei da entrada do hotel, enquanto ele
se afastava pelo corso Garibaldi e de vez em quando se virava e dava tchau
com um gesto tímido. Seu andar atrapalhado, os pés chatos, o alto
emaranhado dos cabelos me enterneceram.
8.
Parti, mas não para Paris. Após as eleições daquele ano turbulento, Gina
marcou para mim uma série de viagens para promover o livro. Comecei por
Florença. Tinha sido convidada à escola de magistério por uma professora
amiga de um amigo dos Airota, e acabei em um daqueles cursos abertos
bastante difundidos nas universidades em agitação, falando para uns trinta
alunos e alunas. O que imediatamente me espantou é que muitas das jovens
eram até piores do que as descritas por meu sogro na revista Ponte:
malvestidas, mal maquiadas, confusas na exposição demasiado emocional,
indignadas com os exames, com os professores. Incentivada pela professora,
me pronunciei sobre as manifestações estudantis com evidente entusiasmo,
especialmente sobre aquelas em curso na França. Exibi o que eu estava
aprendendo, fiquei satisfeita comigo. Senti que me expressava com
convicção e clareza, que principalmente as garotas admiravam a maneira
como eu falava, as coisas que eu sabia, o modo como tangenciava
habilmente os complicados problemas do mundo, organizando-os em um
quadro coerente. Mas logo me dei conta de que tendia a evitar qualquer
menção ao livro. Falar sobre ele me causava incômodo, temia reações como
as do bairro, preferia resumir com minhas palavras certas ideias dos
Quaderni piacentini ou da Monthly Review. Por outro lado, tinha sido
convidada para aquilo, e alguns já pediam a palavra. As primeiras perguntas
foram todas sobre os esforços da personagem feminina para escapar do
ambiente em que nascera. Somente mais para o final uma garota, que recordo
muito alta e magérrima, me pediu que explicasse — cortando as frases com
risinhos nervosos — por que eu considerara necessário escrever, dentro de
uma história toda suavidades, um trecho escabroso.
Fiquei confusa, talvez até vermelha, alinhavei motivações sociológicas.
Só no fim falei da necessidade de narrar com franqueza qualquer experiência
humana, até mesmo — sublinhei — o que parece impronunciável e por isso
mesmo calamos a nós mesmas. Essas últimas palavras agradaram, voltei a
respirar. A professora que me convidara fez um elogio, disse que refletiria
sobre aquilo, que escreveria para mim.
Sua aprovação estabilizou em minha cabeça aqueles poucos conceitos
que logo se transformaram numa espécie de refrão. Usei-os frequentemente
em público, ora de maneira divertida, ora com um tom dramático, ora
sinteticamente, ora desenvolvendo-os com elaborados torneios verbais. Me
senti especialmente à vontade certa noite, em uma livraria de Turim, diante
de um público bastante numeroso, que abordei com crescente desenvoltura.
Começava a me parecer natural que alguém me interrogasse com simpatia ou
de modo provocador sobre o episódio de sexo na praia, tanto mais que
minha resposta pronta, reelaborada de maneira cada vez mais agradável,
obtinha algum sucesso.
A pedido da editora, quem me acompanhou a Turim foi Tarratano, o
velho amigo de Adele. Declarou-se orgulhoso de ter sido o primeiro a intuir
as potencialidades de meu romance e me apresentou ao público com as
mesmas fórmulas entusiásticas que usara tempos atrás em Milão. Ao final da
noite, se congratulou comigo pelos grandes progressos que eu tinha feito em
pouco tempo. Depois me perguntou com seu habitual tom afável: por que
você aceita tão de bom grado que suas páginas eróticas sejam definidas
como escabrosas, por que você mesma as define assim em público? E me
explicou que eu não devia fazê-lo: primeiro, porque meu romance não se
esgotava no episódio da praia, havia outros mais interessantes e melhores;
segundo, se aqui e ali ele soava com certa audácia, isso ocorria sobretudo
porque tinha sido escrito por uma garota; a obscenidade, concluiu, não é
estranha à boa literatura e à verdadeira arte da narrativa, e, ainda que
ultrapasse o limite da decência, não é nunca escabrosa.
Fiquei desnorteada. Aquele homem cultíssimo estava me explicando
com tato que os pecados de meu livro eram veniais, e que eu me equivocava
ao falar sempre sobre eles como se fossem mortais. Ou seja, eu exagerava.
Submetia-me à miopia do público, a sua superficialidade. Disse a mim
mesma: chega, devo ser menos subalterna, preciso aprender a discordar de
meus leitores, não devo descer ao nível deles. E decidi que na primeira
ocasião seria mais dura com quem tirasse aquelas páginas da cartola.
Durante o jantar, no restaurante do hotel que a assessoria de imprensa
reservara para nós, meio embaraçada e meio divertida, escutei Tarratano
citando — como a provar que eu era uma escritora substancialmente casta —
Henry Miller, ou me explicando — e chamando de querida menina — que
muitas escritoras talentosíssimas dos anos 1920 e 1930 sabiam e escreviam
sobre sexo de uma maneira que eu, no momento, nem sequer imaginava.
Anotei seus nomes em meu caderninho, mas enquanto isso comecei a pensar:
este homem, apesar dos elogios, não me tem em grande conta; aos olhos dele
eu sou uma garotinha a quem coube um sucesso imerecido; até as páginas que
mais atraem os leitores, ele não as considera relevantes: podem escandalizar
os ingênuos ou ignorantes, mas não gente como ele.
Disse que eu estava um pouco cansada e ajudei meu comensal, que
bebera bastante, a se levantar. Era um homem pequeno, mas com uma
proeminente barriga de gourmet. Tufos de cabelos brancos despontavam das
orelhas grandes, tinha um rosto todo vermelho, vazado por uma boca estreita,
um grande nariz e olhos vivacíssimos; fumava muito, os dedos eram
amarelados. No elevador, tentou me abraçar e me beijar. Embora eu me
esquivasse, foi difícil afastá-lo de mim, ele não desistia. Ficaram gravados
em minha memória o contato com sua barriga, o hálito de vinho. Na época
nunca me ocorreria que um homem de idade, tão educado, tão culto, aquele
homem tão amigo de minha futura sogra, pudesse comportar-se de modo
indecoroso. Uma vez no corredor, apressou-se em me pedir desculpas,
atribuiu a culpa ao vinho e trancou-se depressa em seu quarto.
14.
No dia seguinte, durante o café da manhã e na viagem de carro que nos levou
até Milão, ele falou com muito entusiasmo do que considerava o período
mais vibrante de sua vida, os anos entre 1945 e 1948. Percebi em sua voz
uma melancolia autêntica, mas que esmoreceu quando passou a esboçar com
envolvimento igualmente autêntico o novo clima de revolução, a energia —
disse — que estava tomando jovens e velhos. Fiz sinais de concordância o
tempo todo, tocada pelo modo como ele tentava me convencer de que meu
presente era de fato como seu entusiasmante passado que estava voltando.
Senti um pouco de pena. A certa altura, uma distraída menção biográfica me
levou a fazer cálculos rápidos: a pessoa que estava diante de mim tinha
cinquenta e oito anos.
Uma vez em Milão, pedi que me deixassem a poucos passos da editora
e me despedi de meu acompanhante. Estava um tanto zonza, tinha dormido
mal. Na rua tentei livrar-me definitivamente do incômodo do contato físico
com Tarratano, mas continuei sentindo sua nódoa e uma confusa contiguidade
com certa indecência do bairro. Na editora fui muito paparicada. Não era a
cortesia de poucos meses antes, mas uma espécie de regozijo generalizado
que significava: como fomos excelentes ao intuir que você era excelente. Até
a telefonista, a única naquele ambiente que me tratara com desinteresse, saiu
da cabine e veio me abraçar. E o redator que tempos atrás fizera um
copidesque caviloso em meu texto me convidou para almoçar pela primeira
vez.
Assim que nos acomodamos em um pequeno restaurante semivazio, a
poucos passos dali, voltou a enfatizar que minha escrita guardava um
segredo fascinante e, entre um prato e outro, me sugeriu que — com calma,
mas sem descansar demais sobre os louros — seria bom se eu começasse a
planejar um novo romance. Depois disso, recordou que eu tinha um
compromisso na Estatal às três da tarde. Nada a ver com Mariarosa, tinha
sido a própria editora que, por meio de seus canais, agendara algo para mim
com um grupo de estudantes. Chegando lá — indaguei — devo procurar por
quem? Meu influente comensal me disse com orgulho: meu filho estará
esperando por você na entrada.
Peguei minha bagagem na editora e fui para o hotel. Fiquei lá poucos
minutos e saí em seguida para a universidade. Fazia um calor insuportável,
me vi contra um fundo de cartazes cheios de dizeres, bandeiras vermelhas e
povos em luta, pôsteres que anunciavam iniciativas, tudo tomado por um
forte vozerio, risadas e um alarme difuso. Circulei um pouco por ali,
buscando sinais que se referissem a mim. Lembro-me de um jovem moreno
que, correndo, se chocou com força contra mim, perdeu o equilíbrio, se
recuperou e escapou pela rua como se estivesse sendo perseguido, embora
atrás não houvesse ninguém. Lembro-me do som solitário de uma trombeta,
puríssimo, que perfurava o ar sufocante. Lembro-me de uma garota loura,
miúda, que arrastava com barulho uma corrente com um grande cadeado na
ponta e gritava solícita a não sei quem: estou chegando. Lembro-me disso
porque, à espera de que alguém me reconhecesse e se aproximasse, peguei
meu caderninho e anotei tudo aquilo, para entrar no clima. Mas passou meia
hora e ninguém veio. Então passei a examinar folhas e cartazes mais
atentamente, esperando encontrar meu nome e o título do romance. Inútil. Um
tanto nervosa, desisti de parar algum dos estudantes, tinha vergonha de citar
meu livro como objeto de discussão em um ambiente onde as folhas coladas
nos muros anunciavam temas bem mais relevantes. Percebi-me oscilando
irritantemente entre sentimentos opostos: uma forte simpatia por todos
aqueles rapazes e moças que exibiam, naquele local, movimentos e vozes de
absoluta indisciplina, e o medo de que a desordem da qual eu fugia desde
menina, agora, justamente ali, pudesse relançar-me e impelir-me ao centro
daquela algazarra, onde em breve um poder inexpugnável — um Bedel, um
Professor, o Reitor, a Polícia — me flagraria em erro — eu, que sempre fui
cordata — e me puniria.
Pensei em escapar, que me importava um punhado de rapazes pouco
mais jovens que eu, a quem eu diria as bobagens habituais? Queria voltar
para o hotel, gozar minha condição de autora de algum sucesso que viajava
muito, comia em restaurantes e dormia em hotéis. Mas passaram cinco ou
seis garotas de ar atarefado, carregadas de bolsas, e quase sem querer segui
atrás delas, de suas vozes, dos gritos, até do som de trombeta. Assim,
caminhando sem pensar, acabei em frente a uma sala lotada de onde, justo
naquele momento, começava a crescer um clamor raivoso. E, como as
garotas que eu tinha seguido até ali entraram, entrei também, cautelosamente.
Estava em curso um conflito muito duro entre facções diversas, tanto na
sala lotada quanto entre a pequena multidão que assediava a cátedra. Fiquei
perto da porta, pronta para ir embora, afugentada por uma névoa escaldante
de fumos e sopros, um forte cheiro de excitação.
Tentei me orientar. Discutia-se, acho, sobre questões de procedimento,
mas num clima em que ninguém — havia gente gritando, gente calada, gente
debochando, rindo, se movimentando rapidamente como estafetas em um
campo de batalha, gente que não prestava nenhuma atenção, gente que
estudava — parecia considerar possível um acordo qualquer. Esperei que
Mariarosa estivesse em algum lugar ali. Enquanto isso, estava me habituando
ao clamor, aos cheiros. Quanta gente: os homens estavam em maioria,
bonitos, feios, elegantes, desleixados, violentos, amedrontados, zombeteiros.
Observei com curiosidade as mulheres, tive a impressão de ser a única que
estivesse ali sozinha. Algumas — as que eu tinha acompanhado até lá, por
exemplo — se mantinham compactamente juntas até mesmo agora, enquanto
distribuíam panfletos pela sala apinhada: gritavam juntas, riam juntas e,
quando se afastavam uns poucos metros, olhavam-se umas às outras para não
se perderem. Amigas há tempos ou talvez conhecidas ocasionais, pareciam
extrair do grupo a autorização para estar naquele lugar caótico, seduzidas
pelo clima desregrado, sim, mas dispostas àquela experiência desde que não
se separassem, como se tivessem estabelecido previamente, em locais mais
seguros, que, se uma delas fosse embora, todas se retirariam juntas. Já
outras, sozinhas ou no máximo em dupla, se infiltraram nas fileiras
masculinas e demonstravam uma intimidade provocadora, uma alegre
dissolução das distâncias de segurança, e me pareceram as mais felizes, as
mais agressivas, as mais orgulhosas.
Me senti diferente, uma presença abusiva, sem os requisitos para gritar
o que quer que fosse, para permanecer dentro daqueles vapores e cheiros
que, agora, me faziam lembrar os cheiros e os vapores que emanavam do
corpo de Antonio, de seu hálito, de quando nos amassávamos nos pântanos.
Eu tinha sido miserável demais, pressionada demais pela obrigação de
brilhar nos estudos. Tinha ido pouco ou quase nada ao cinema. Nunca tinha
comprado discos, como gostaria. Não me tornara fã de cantores, não correra
para assistir a shows, não colecionara autógrafos, nunca fiquei bêbada, o
pouco sexo que pratiquei o fiz com incômodo, entre subterfúgios,
amedrontada. Já aquelas garotas, umas mais, outras menos, deviam ter
crescido com maior liberdade, e chegaram à atual mudança de pele mais
preparadas que eu; talvez sentissem sua presença naquele local, naquele
clima, não como um descarrilamento, mas como uma escolha justa e urgente.
Agora que tenho algum dinheiro — pensei —, agora que vou ganhar sabe-se
lá quanto mais, posso recuperar algumas das coisas que perdi. Ou talvez não,
eu já era culta demais, ignorante demais, controlada demais, habituada
demais a esfriar a vida estocando ideias e dados, próxima demais do
casamento e da acomodação definitiva, enfim, encerrada obtusamente demais
dentro de uma ordem que, ali, parecia ultrapassada. Aquele último
pensamento me assustou. Saia logo deste lugar — disse a mim mesma —,
cada gesto ou palavra é uma afronta ao esforço que eu fiz. Em vez disso,
deslizei para dentro da sala lotada.
Logo me chamou a atenção uma garota muito bonita, de traços
delicados, cabelos pretíssimos e longos sobre os ombros, com certeza mais
nova que eu. Depois que a vi não consegui tirar os olhos dela. Estava em pé
no meio de jovens muito combativos, e atrás dela, como um guarda-costas,
um homem moreno de seus trinta anos, fumando um charuto. O que a
distinguia naquele ambiente, além da beleza, era que trazia nos braços um
menino de poucos meses e o amamentava, enquanto seguia atentamente o
conflito em ato, às vezes gritando também. Quando o menino, uma mancha
azul com perninhas e pezinhos descobertos de uma cor avermelhada,
descolava a boca do mamilo, ela não recolocava o seio no sutiã, mas
continuava assim, exposta, a camisa branca desabotoada, o peito túrgido, de
cenho franzido, a boca semicerrada, até que se dava conta de que o filho já
não estava mamando e, mecanicamente, tentava fazê-lo voltar.
Aquela garota me perturbou. Na sala barulhenta e carregada de fumaça,
ela era um ícone de maternidade fora dos esquemas. Era mais nova que eu,
tinha um aspecto fino, a responsabilidade de um filho. Mas parecia
empenhada sobretudo em rejeitar os traços da jovem mulher placidamente
absorta nos cuidados com o filho. Gritava, gesticulava, pedia a palavra, ria
de raiva, apontava alguém com desprezo. E no entanto o filho era parte dela,
buscava seu peito, o perdia. Juntos compunham uma imagem trêmula, em
risco, prestes a despedaçar-se como se pintada em vidro: o menino cairia de
seus braços ou algo bateria em sua cabeça, um cotovelo, um gesto
descontrolado. Fiquei alegre quando de repente Mariarosa surgiu ao seu
lado. Lá estava ela, finalmente. Como era viva, como era radiante e cordial:
me pareceu muito íntima da jovem mãe. Agitei uma mão, não me viu. Falou
algo no ouvido da garota, desapareceu, reapareceu entre os que se
empurravam em torno da cátedra. Nesse meio-tempo, de uma porta lateral,
irrompeu um grupinho que, apenas com sua presença, acalmou um pouco os
ânimos. Mariarosa fez um sinal, esperou um aceno em resposta, segurou o
megafone e disse poucas palavras que aquietaram definitivamente a sala
lotada. Naquela altura, por alguns segundos, tive a impressão de que Milão,
as tensões daquele período, minha própria excitação tivessem a força de
permitir que as sombras que eu trazia na cabeça evadissem. Quantas vezes
tinha pensado naqueles dias em minha primeira educação política?
Mariarosa passou o megafone a um jovem que se postara a seu lado e que
reconheci imediatamente. Era Franco Mari, meu namorado nos primeiros
anos de Pisa.
15.
Mariarosa voltou justo naquele momento, trazendo com Juan e Silvia toalhas
de banho limpas e roupa de cama. Seguramente escutou aquela última frase e
com certeza entendeu que se falava de meu livro, mas não disse uma palavra.
Podia dizer que tinha gostado do livro, que é possível escrever romances em
qualquer momento, mas não o fez. Então deduzi que, para além das
declarações de simpatia e de afeto, naqueles ambientes tão cultos e
absorvidos pela paixão política meu livro era considerado uma coisinha
insignificante, e as páginas que estavam ajudando sua difusão eram
consideradas um subproduto de textos bem mais explosivos — que, aliás, eu
nunca tinha lido — ou merecedoras daquele rótulo depreciativo de Franco:
uma história de paixõezinhas.
Minha cunhada indicou-me o banheiro e o quarto com uma cortesia
esquiva. Me despedi de Franco, que partiria de manhã cedo. Limitei-me a
apertar sua mão, nem ele por sua vez acenou me abraçar. Pude vê-lo
desaparecer em um quarto com Mariarosa e, pela expressão carregada de
Juan, pelo olhar infeliz de Silvia, entendi que o hóspede e a dona da casa
dormiriam juntos.
Recolhi-me ao quarto que me fora indicado. Havia nele um forte cheiro
de fumo rançoso, uma caminha desfeita, nenhum criado-mudo, nenhuma
lâmpada além daquela, fraca, no centro do teto, jornais amontoados no piso,
alguns números do Menabò, do Nuovo impegno, de Marcatré, livros de arte
caros, alguns surrados, outros evidentemente nunca folheados. Debaixo da
cama achei um cinzeiro cheio de bitucas, abri a janela, deixei-o no batente.
Tirei a roupa. A camisola que Mariarosa me dera era muito comprida, muito
apertada. Fui ao banheiro de pés descalços, pelo corredor em penumbra. A
falta de escova de dentes não me incomodou: ninguém me educara a escovar
os dentes, era um hábito recente, adquirido em Pisa.
Uma vez na cama, tentei apagar o Franco que eu tinha encontrado
naquela noite com o Franco de anos antes, o rapaz rico e generoso que me
amara, que me ajudara, que me comprara de tudo, que me instruíra, que me
levara a Paris para suas reuniões políticas e a Versilia para férias, na casa
de seus parentes. Mas não consegui. O presente, com suas turbulências, os
berros na sala lotada, o fraseado político que zumbia em minha cabeça e se
abatia sobre meu livro, vilipendiando-o, levou a melhor. Estava me iludindo
quanto a meu futuro literário? Franco tinha razão, havia coisas bem mais
importantes que escrever romances? Que impressão eu lhe causara? Que
memória conservava de nosso amor, supondo-se que conservasse alguma?
Estava se queixando de mim com Mariarosa tal como Nino se queixara de
Lila comigo? Eu estava sofrendo, abatida. Com certeza o que eu imaginara
como uma noitada amena e talvez um pouco melancólica me pareceu triste.
Não via a hora de que a noite passasse e eu pudesse voltar para Nápoles.
Precisei me levantar para apagar a luz. Voltei para a cama no escuro.
Foi difícil pegar no sono. Virava de um lado para o outro, a cama e o
quarto conservavam os cheiros de outros corpos, uma intimidade semelhante
à de minha casa, mas neste caso feita de rastros de desconhecidos, quem
sabe repugnantes. Depois adormeci, mas despertei de repente, alguém tinha
entrado no quarto. Murmurei: quem é. Respondeu Juan, disse sem
preâmbulos e com uma voz suplicante, como se me pedisse um sério favor,
quase uma forma de pronto-socorro:
“Posso dormir com você?”
A solicitação me pareceu tão absurda que, para acordar inteiramente,
para entender aquilo, perguntei:
“Dormir?”
“Sim, eu me deito a seu lado e não a incomodo, só quero evitar ficar
sozinho.”
“Absolutamente não.”
“Por quê?”
Não soube o que responder, murmurei:
“Estou noiva.”
“E daí? Vamos só dormir.”
“Vá embora, por favor, eu nem te conheço.”
“Sou Juan, lhe mostrei minhas obras, o que mais você quer?”
Percebi que estava se sentando na cama, vi sua silhueta escura, senti
sua respiração cheirando a charuto.
“Por favor”, murmurei, “estou com sono.”
“Você é uma escritora, escreve sobre o amor. Tudo o que nos acontece
alimenta a imaginação e nos ajuda a criar. Me deixe ficar com você, é algo
que você vai poder contar.”
Roçou meu pé com a ponta dos dedos. Eu não o suportava, escapei em
direção ao interruptor e acendi a luz. Ainda estava sentado na cama, de
cueca e regata.
“Fora”, sibilei para ele, e o fiz de modo tão peremptório, tão
visivelmente próxima do grito, tão determinada a agredi-lo e a brigar com
todas as minhas energias, que ele se ergueu lentamente e falou desgostoso:
“Você é uma carola.”
Saiu. Fechei a porta atrás dele, não havia chave.
Estava estarrecida, furiosa, assustada, um dialeto sanguinário revoava
em minha cabeça. Esperei um pouco antes de voltar para a cama, mas não
apaguei a luz. O que eu dava a pensar de mim, que pessoa parecia ser, o que
legitimava a demanda de Juan? Dependia da fama de mulher livre que meu
livro estava me dando? Dependia das palavras políticas que eu tinha
expressado, as quais evidentemente não eram apenas um torneio dialético,
um jogo para mostrar que eu era tão hábil quantos os homens, mas definiam
toda a pessoa, disponibilidade sexual incluída? Era uma espécie de
pertencimento à mesma coalizão que induzira aquele homem a introduzir-se
sem hesitações em meu quarto, ou Mariarosa, igualmente sem hesitações, a
conduzir Franco ao dela? Ou eu mesma me contaminara por aquela difusa
excitação erótica que tinha percebido na sala da universidade e a exalava
sem me dar conta? Também em Milão eu me sentira pronta a fazer amor com
Nino, traindo Pietro. Mas aquela paixão era de velha data, justificava o
desejo sexual e a traição, ao passo que o sexo em si, aquela solicitação não
mediada de orgasmo, não, não conseguia me envolver, não estava preparada
para isso, me repugnava. Por que me deixar tocar pelo amigo de Adele em
Turim, por que me deixar tocar nesta casa por Juan, o que eu precisava
demonstrar, o que eles queriam demonstrar? De repente me voltou à memória
o episódio com Donato Sarratore. Não tanto a noite na praia em Ischia, a que
eu transformara em cena romanesca, mas a vez em que ele aparecera na
cozinha de Nella quando eu tinha acabado de deitar e me beijara, me
bolinara, provocando em mim um fluxo de prazer contra minha própria
vontade. Entre a menina de então, assustada, estarrecida, e a mulher atacada
no elevador, a mulher que sofrera aquele assédio, agora, havia algum nexo?
O cultíssimo Tarratano, amigo de Adele, e o artista venezuelano, Juan, eram
da mesma estirpe do pai de Nino, ferroviário, poetastro, pena de aluguel?
19.
Fui embora de manhã cedo, deixei Silvia dormindo com o menino no peito.
Não vi sombra do pintor. Só consegui me despedir de Mariarosa, que
acordara cedíssimo para acompanhar Franco à estação e tinha acabado de
voltar. Tinha um ar sonolento, me pareceu incomodada. Perguntou:
“Dormiu bem?”
“Conversei muito com Silvia.”
“Ela lhe falou de Sarratore?”
“Falou.”
“Sei que vocês são amigos.”
“Foi ele quem disse?”
“Foi. Fofocamos um pouco sobre você.”
“É verdade que Mirko é filho dele?”
“É.” Reprimiu um bocejo, sorriu. “Nino é fascinante, as meninas vivem
atrás dele, o disputam, o puxam pra cá e pra lá. E — ainda bem — passam
dias felizes, fazem o que querem, tanto mais que ele emana uma força que
transmite alegria e vontade de agir.”
Disse que o movimento tinha grande necessidade de pessoas como ele.
Mas acrescentou que era preciso cuidar dele, fazê-lo amadurecer, orientá-lo.
Pessoas muito capazes — disse — devem ser guiadas, nelas está sempre à
espreita o democrata burguês, o técnico empresarial, o modernizador. Ambas
lamentamos o fato de termos tido pouco tempo para estar juntas e nos
prometemos que faríamos melhor na próxima oportunidade. Retirei a
bagagem no hotel e parti.
Somente no trem, durante a longa viagem até Nápoles, assimilei aquela
segunda paternidade de Nino. Um cinza esquálido se estendeu de Silvia a
Lila, de Mirko a Gennaro. Pareceu-me que a paixão de Ischia, a noite de
amor em Forio, a relação secreta na piazza dei Martiri, a gravidez, tudo
desbotasse e se reduzisse a um dispositivo mecânico que, ao sair de
Nápoles, Nino reativara com Silvia e sabe-se lá com quantas outras. A coisa
me ofendeu, quase como se eu tivesse Lila escondida num canto de minha
cabeça e experimentasse seus próprios sentimentos. Senti uma amargura
como se ela mesma sentiria se tivesse sabido, fiquei furiosa como se tivesse
sofrido a mesma injustiça que ela. Nino tinha traído Lila e a mim.
Estávamos, ela e eu, dentro da mesma humilhação, o amávamos sem nunca
termos de fato sido amadas. Portanto ele era, apesar de suas qualidades, um
homem frívolo, superficial, um organismo animal que exalava suores e
fluidos e deixava para trás, como resíduo de um prazer distraído, matéria
viva concebida, nutrida e formada em ventres femininos. Lembrei-me de
quando viera me encontrar no bairro, anos antes, e tínhamos ficado
conversando no pátio e Melina o avistara da janela e o confundira com o pai.
A ex-amante de Donato tinha captado semelhanças que a mim pareceram
inexistentes. Mas agora era claro, ela estava certa e eu, errada. Nino não
fugia do pai por medo de se tornar como ele, Nino já era o pai e não queria
admitir isso.
Contudo não consegui odiá-lo. No trem trincando de calor, não só me
lembrei de quando o tinha revisto na livraria, mas também o inseri nos
acontecimentos, palavras e frases daqueles dias. O sexo me perseguia,
agarrava, torpe e atraente, obsessivamente presente nos gestos, nas falas, nos
livros. As paredes divisórias estavam desabando, as correntes das relações
estavam despedaçando. E Nino vivia intensamente aquela época. Era parte
da assembleia barulhenta da Estatal com seu cheiro intenso, era adequado à
desordem da casa de Mariarosa, de quem certamente tinha sido amante. Com
sua inteligência, com seus desejos, com sua capacidade de sedução, movia-
se com segurança e curiosidade dentro daqueles tempos. Talvez eu tenha me
enganado ao associá-lo às vontades abjetas do pai, seu comportamento já
pertencia a outra cultura, e Silvia e Mariarosa haviam deixado isso claro: as
garotas o queriam, ele ficava com elas, não havia opressão, não havia culpa,
somente os direitos do desejo. Talvez, quem sabe, quando Nino me dissera
que Lila tinha problemas também com o sexo, quisesse me comunicar que o
tempo das obrigações tinha acabado, que sobrecarregar o prazer com a
responsabilidade era uma distorção. Se ele também tinha a mesma natureza
do pai, com certeza sua paixão pelas mulheres apontava em outro sentido.
Com espanto, com desaponto, cheguei a Nápoles no instante em que
uma parte de mim, ao pensar em quanto Nino era amado e em quanto amava,
tinha cedido e chegava a admitir: que mal há, goza-se a vida com quem sabe
gozá-la. E, enquanto regressava ao bairro, percebi que justamente porque
todas o queriam, e ele pegava todas, eu, que gostava dele desde sempre,
agora gostava mais ainda. Por isso decidi que evitaria ao máximo encontrá-
lo de novo. Quanto a Lila, não sabia como me comportar. Não dizer nada,
contar tudo? Quando a reencontrasse, decidiria no momento.
21.
Em casa não tive ou não quis ter tempo de voltar ao assunto. Pietro telefonou
dizendo que viria conhecer meus pais na semana seguinte. Aceitei o fato
como uma desgraça inevitável, fui logo procurar um hotel para ele, limpar a
casa e atenuar a ansiedade de minha família. Esforço inútil, este último: a
situação tinha piorado. No bairro a falação malévola sobre meu livro tinha
aumentado, e também sobre mim, sobre minhas constantes viagens sozinha.
Minha mãe se defendera vangloriando-se de que eu estava prestes a casar,
mas, para evitar que minhas escolhas contra Deus complicassem a situação,
tinha inventado que não me casaria em Nápoles, mas em Gênova.
Consequentemente as maledicências aumentaram, o que a exasperara.
Numa noite ela me interpelou com extrema dureza, disse que as pessoas
estavam lendo meu livro, que se escandalizavam e lhe falavam pelas costas.
Meus irmãos — gritou para mim — tiveram de dar porrada nos filhos do
açougueiro, que me trataram de vagabunda, e não só: quebraram a cara de
um colega de escola de Elisa que lhe pedira para fazer as mesmas coisas
sujas que a irmã mais velha fazia.
“O que foi que você escreveu?”, berrou comigo.
“Nada, mãe.”
“Escreveu as nojeiras que tem feito por aí?”
“Nojeira coisa nenhuma, leia o livro.”
“Não tenho tempo a perder com suas cretinices.”
“Então me deixe em paz.”
“Se seu pai sabe o que andam dizendo, te expulsa de casa.”
“Não é preciso, eu mesma vou embora.”
Era noite, e fui caminhar para não ter que dizer coisas das quais me
arrependeria depois. Na rua, nos jardins, ao longo do estradão, tive a
impressão de que a gente me olhava com insistência, sombras irascíveis de
um mundo que eu já não habitava. A certa altura topei com Gigliola, que
estava voltando do trabalho. Morávamos no mesmo prédio, fizemos o
caminho juntas, mas temi que mais cedo ou mais tarde ela achasse um meio
de me dizer algo irritante. No entanto, para minha surpresa, ela se expressou
com timidez — ela, que sempre fora agressiva, às vezes, pérfida:
“Li seu livro, é bonito, que coragem você teve de escrever aquelas
coisas.”
Enrijeci.
“Que coisas?”
“Aquelas que você faz na praia.”
“Eu não faço nada, quem faz é a personagem.”
“Sim, mas você as escreveu muito bem, Lenu, exatamente como
acontece, com a mesma imundície. São segredos que se sabem só quando se
é mulher.” Então me puxou pelo braço, me forçou a parar, murmurou: “Diga
a Lina, se a encontrar, que ela tinha razão, reconheço. Fez bem em se foder
do marido, da mãe, do pai, do irmão, de Marcello, de Michele, de toda essa
merda. Eu também deveria escapar daqui, seguir o exemplo de vocês duas,
que são inteligentes. Mas nasci estúpida e não posso fazer nada”.
Não nos dissemos mais nada de relevante, eu parei em meu andar, ela
seguiu para a casa dela. Mas aquelas frases ficaram em minha cabeça.
Surpreendeu-me que ela tivesse posto arbitrariamente juntas a queda de Lila
e minha ascensão, como se, comparadas à condição dela, tivessem o mesmo
grau de positividade. Mas o que mais ficou marcado em minha memória foi o
modo como reconhecera, na imundície de meu romance, sua própria
experiência de imundície. Era um fato novo, não soube como avaliá-lo.
Tanto mais que logo em seguida chegou Pietro, e por um tempo me esqueci
disso.
22.
Pietro ficou três dias. Meu pai e meus irmãos rapidamente se afeiçoaram a
ele. Especialmente Peppe e Gianni estavam contentes por ele não ser
arrogante e se interessar pelos dois, mesmo a escola os tendo julgado
incapazes. Já minha mãe continuou a tratá-lo sem amizade, e só na véspera
da partida ficou mais terna. Era domingo, meu pai disse que queria mostrar
ao genro como Nápoles era linda. O genro concordou e propôs que
almoçássemos fora.
“No restaurante?”, perguntou minha mãe preocupada.
“Sim, senhora, precisamos comemorar.”
“Melhor que eu cozinhe, eu tinha dito que faríamos o gâteau de novo.”
“Não, obrigado, a senhora já trabalhou bastante.”
Enquanto nos preparávamos, minha mãe me puxou de lado e perguntou:
“Ele vai pagar?”
“Vai.”
“Tem certeza?”
“Claro, mãe, foi ele quem nos convidou.”
Fomos ao centro de manhã cedo, vestidos de festa. E aconteceu uma
coisa que me surpreendeu acima de tudo. Meu pai assumiu a tarefa de servir
de guia. Mostrou ao forasteiro o Maschio Angioino, o Palácio Real, as
estátuas dos reis, Castel dell’Ovo, via Caracciolo e o mar. Pietro ficou
ouvindo com uma expressão muito atenta. Mas depois de certo tempo, ele,
que vinha à cidade pela primeira vez, passou a falar sobre ela discretamente,
revelando-a a nós. Foi lindo. Eu nunca tinha demonstrado um especial
interesse pelo cenário de minha infância e adolescência, me espantei que
Pietro soubesse discorrer sobre ele com tão admirável conhecimento. Ele
demonstrou conhecer a história de Nápoles, sua literatura, as fábulas, as
lendas, muitas anedotas, os monumentos visíveis e os escondidos pela
incúria. Imaginei que em parte ele conhecesse a cidade porque era um
homem que sabia tudo, em parte porque a estudara a fundo, com o rigor
costumeiro, porque era a minha cidade, porque minha voz, meus gestos e
todo meu corpo tinham sofrido sua influência. Naturalmente meu pai se
sentiu logo destituído, e meus irmãos se entediaram. Percebi e fiz gestos a
Pietro para que parasse. Ele enrubesceu e se calou imediatamente. Mas
minha mãe, com uma de suas repentinas reviravoltas, se pendurou em seu
braço e lhe disse:
“Continue, estou gostando, ninguém nunca me falou essas coisas.”
Fomos comer num restaurante em Santa Lucia, que, segundo meu pai
(nunca tinha estado lá, mas lhe indicaram), era ótimo.
“Posso pedir o que eu quiser?”, me perguntou Elisa no ouvido.
“Pode.”
O tempo passou agradavelmente. Minha mãe bebeu demais e disse
algumas indecências, enquanto meu pai e meus irmãos recomeçaram a
brincar com Pietro e entre si. Não perdi de vista meu futuro marido, tive a
certeza de que gostava dele, era uma pessoa que conhecia seu valor e no
entanto, se necessário, se esquecia de si com naturalidade. Notei pela
primeira vez sua propensão à escuta, o tom de voz compreensivo como o de
um confessor laico, e gostei disso. Talvez devesse convencê-lo a ficar mais
um dia e apresentá-lo a Lila, dizer a ela: vou me casar com este homem,
estou prestes a deixar Nápoles com ele, o que você diz, estou agindo bem? E
estava avaliando aquela possibilidade quando aconteceu que, numa mesa não
distante da nossa, cinco ou seis estudantes que estavam comemorando não
sei o quê com uma pizza começaram a nos observar com insistência, aos
risos. Compreendi imediatamente que achavam Pietro engraçado por causa
das sobrancelhas muito espessas e a moita de cabelos na cabeça. No
intervalo de poucos minutos meus irmãos se levantaram da mesa ao mesmo
tempo, se dirigiram à mesa dos estudantes e provocaram uma briga com a
violência de sempre. Houve um escarcéu, gritos, pancadaria. Minha mãe
gritou insultos em defesa dos filhos, meu pai e Pietro correram para apartá-
los. Pietro estava quase achando graça, não tinha entendido nada do motivo
da briga. Uma vez na rua, ele disse irônico: é um costume local, vocês se
levantam de repente e vão bater nos que estão na mesa vizinha? Acabou que
ele e meus irmãos ficaram mais alegres e entrosados que antes. No entanto,
assim que pôde, meu pai puxou os filhos para um canto e os recriminou pelo
papel de mal-educados que tinham feito na frente do professor. Ouvi que
Peppe se justificava, quase sussurrando: estavam zombando de Pietro, papai,
que merda a gente devia fazer? Gostei que dissesse Pietro, e não o
professor: isso queria dizer que ele já era considerado parte da família,
alguém de casa, um amigo de grandes qualidades, e que, embora de aspecto
um tanto anômalo, ninguém podia debochar dele em sua presença. Entretanto
aquele incidente me convenceu de que eu não deveria apresentar Pietro a
Lila: eu a conhecia, ela era maldosa, o teria achado ridículo e zombaria dele
assim como os rapazes do restaurante.
À noite, cansados do dia passado ao ar livre, comemos algo em casa e
depois saímos todos de novo, para acompanhar meu noivo até o hotel. No
momento da separação, minha mãe, já alta, lhe deu dois beijos estalados nas
bochechas. Mas, quando voltamos ao bairro fazendo os maiores elogios a
Pietro, ela ficou na dela durante todo o percurso, sem dar um pio. Antes de
se retirar para o quarto, porém, ela disse rancorosa:
“Você tem sorte demais, não merece esse pobre garoto.”
24.
Não via Pasquale nem Enzo fazia muito tempo, mas não houve preâmbulos,
tinham vindo por causa de Lila e me falaram imediatamente sobre ela.
Pasquale deixara a barba como a de Che Guevara, e tive a impressão de que
aquela mudança o deixou melhor. Os olhos pareciam maiores e mais
intensos, os bigodes espessos cobriam seus dentes estragados até quando ria.
Já Enzo não tinha mudado, sempre silencioso, sempre concentrado. Somente
quando já estávamos no velho carro de Pasquale me dei conta de como era
surpreendente vê-los juntos. Estava certa de que ninguém no bairro quisesse
ter mais nada a ver com Lila e com Enzo. No entanto as coisas não eram bem
assim: Pasquale frequentava a casa deles, tinha acompanhado Enzo até mim,
Lila os mandara me procurar juntos.
Foi Enzo quem me contou com seu jeito seco e ordenado o que tinha
acontecido: depois do trabalho em um canteiro de obras nos arredores de
San Giovanni a Teduccio, estava combinado que Pasquale iria jantar com
eles. Mas Lila, que normalmente voltava às quatro e meia da fábrica, às sete,
quando Enzo e Pasquale chegaram, ainda não tinha retornado. O apartamento
estava vazio, Gennaro estava com a vizinha. Os dois começaram a cozinhar,
Enzo deu de comer ao menino. Lila só apareceu por volta das nove,
palidíssima, muito nervosa. Não respondeu às perguntas de Enzo e Pasquale.
A única frase que disse, com um tom apavorado, foi: minhas unhas estão se
soltando. Coisa falsa, Enzo pegara suas mãos e tinha checado, estava tudo
certo com as unhas. Então ela ficou furiosa e foi se trancar no quarto com
Gennaro. Depois de um tempo gritou que fossem ver se eu estava no bairro,
precisava falar urgentemente comigo.
Perguntei a Enzo:
“Vocês brigaram?”
“Não.”
“Ela se sentiu mal, se feriu no trabalho?”
“Não me parece, não sei.”
Pasquale me disse:
“Agora não vamos ficar ansiosos. Querem apostar que Lina se acalma
assim que você chegar? Estou tão contente por termos achado você, agora
você é uma pessoa importante, deve ter muitos compromissos.”
Como eu me esquivava, ele citou como prova o velho artigo do Unità,
e Enzo fez sinais de concordância, ele também tinha lido.
“Lina também viu”, ele disse.
“E o que ela falou?”
“Estava muito contente com a foto.”
“No entanto”, resmungou Pasquale, “eles davam a entender que você
ainda era uma estudante. Você deveria escrever uma carta ao jornal
explicando que já é formada.”
Queixou-se do grande espaço que até o Unità concedia aos estudantes.
Enzo lhe deu razão, e os dois falaram coisas não muito distantes daquelas
que ouvi em Milão, apenas o fraseado era mais rude. Estava claro que
sobretudo Pasquale queria me entreter com assuntos dignos de alguém que,
mesmo sendo amiga deles, aparecia no Unità com uma foto daquelas. Mas
talvez também o fizessem para espantar a ansiedade, a deles e a minha.
Fiquei escutando. Logo entendi que a relação entre eles se reforçara
justamente graças à paixão política. Viam-se com frequência depois do
trabalho, em reuniões do partido ou de não sei qual comitê. Eu os ouvi,
intervim por gentileza, eles replicaram, mas enquanto isso não conseguia
tirar Lila da cabeça, devorada sabe-se lá por que angústia, ela, que era
sempre tão resistente. Quando chegamos a San Giovanni eles me pareceram
orgulhosos de mim, especialmente Pasquale não tinha perdido nada do que
eu dissera e várias vezes me observara pelo espelhinho do retrovisor.
Embora tivesse o mesmo tom sabido de sempre — era secretário da seção
de bairro do partido comunista —, na verdade atribuía à minha concordância
política o poder de sancionar que ele estava certo. Tanto é que, quando se
sentiu claramente apoiado, me explicou com algum mal-estar que estava
empenhado com Enzo e outros companheiros num duro combate dentro do
partido, o qual — disse enfezado, batendo as mãos no volante — preferia
esperar um assobio de Aldo Moro, como o que se dá a um cão obediente, em
vez de acabar com a espera e partir para a luta.
“O que você acha?”, perguntou.
“É isso mesmo”, respondi.
“Você é excelente”, me elogiou então com solenidade enquanto
subíamos as escadas sujas, “sempre foi. Não é verdade, Enzo?”
Enzo fez sinal que sim, mas compreendi que a preocupação dele por
Lila aumentava a cada degrau — assim como aumentava a minha —,
sentindo-se em culpa por ter se distraído com aquelas conversas. Abriu a
porta, falou em voz alta estamos aqui e me indicou uma porta com vidro
esmerilhado no meio, de onde vinha uma claridade de poucos watts. Bati
levemente e entrei.
26.
Lila estava deitada numa caminha, toda vestida. Gennaro dormia a seu lado.
Entre, me disse, eu sabia que você viria, me dê um beijo. Beijei-a nas
bochechas, sentei no colchãozinho vazio que devia ser de seu filho. Quanto
tempo passara desde a última vez em que a tinha visto? Achei-a ainda mais
magra, ainda mais pálida, os olhos vermelhos, as fossas nasais feridas, as
mãos longas marcadas por cortes. Continuou quase sem pausas, em voz baixa
para não acordar o menino: vi sua foto nos jornais, como você está bem, que
belos cabelos, sei tudo de você, sei que vai se casar, que ele é um professor,
muito bem, vai morar em Florença, desculpe se a fiz vir a esta hora, minha
cabeça não me ajuda, se descola que nem papel de parede, ainda bem que
você está aqui.
“O que houve?”, perguntei, e fiz que ia acariciar sua mão.
Bastaram aquela pergunta e aquele gesto. Arregalou os olhos, se agitou,
retraiu a mão bruscamente.
“Não estou bem”, disse, “mas espere, não se assuste, já me acalmo.”
Acalmou-se. Disse devagar, quase escandindo as palavras:
“Eu a incomodei, Lenu, porque você precisa me fazer uma promessa, eu
só confio em você: se me acontecer alguma coisa, se eu acabar num hospital,
se me levarem a um manicômio, se não me acharem mais, você deve cuidar
de Gennaro, deve ficar com ele, deve criá-lo em sua casa. Enzo é bom, uma
ótima pessoa, confio nele, mas não pode dar ao menino as coisas que você
poderia.”
“Por que você está me dizendo essas coisas? O que você tem? Se não
me explicar, não vou entender.”
“Antes prometa.”
“Tudo bem.”
Debateu-se de novo, a ponto de me assustar.
“Não, você não deve me dizer tudo bem; deve dizer aqui, agora, que
você fica com o menino. E, se precisar de dinheiro, procure Nino, diga que
ele tem de ajudar você. Mas prometa: eu vou criar o menino.”
Olhei para ela insegura, prometi. Prometi e fiquei ouvindo o que me
dizia, por toda a noite.
27.
Talvez esta seja a última vez que falo de Lila com riqueza de detalhes.
Depois ela se tornou cada vez mais fugidia, e o material à minha disposição
se empobreceu. Culpa da divergência de nossas vidas, culpa da distância.
No entanto, mesmo quando morei em outras cidades e não nos
encontrávamos quase nunca e ela como sempre não me dava notícias suas e
eu me esforçava para não saber dela, sua sombra me espicaçava, me
deprimia, me inchava de orgulho, me desinchava, sem nunca me dar sossego.
Aquele acicate, hoje que escrevo, me é ainda mais necessário. Quero
que ela esteja aqui, escrevo para isso. Quero que apague, que acrescente,
que colabore com nossa história despejando dentro dela, segundo seu estro,
as coisas que sabe, que disse ou que pensou: a vez em que se viu diante de
Gino, o fascista; a vez em que encontrou Nadia, a filha da professora
Galiani; a vez em que retornou à casa no corso Vittorio Emanuele, onde
tempos antes se sentira fora de lugar; a vez em que examinou com crueza sua
experiência sexual. Quanto aos constrangimentos que senti enquanto a
escutava, aos sofrimentos, às poucas coisas que lhe disse durante sua longa
narrativa, pensarei depois.
28.
Ao despertar, descobriu que estava com febre, tomou uma aspirina e foi
trabalhar mesmo assim. No céu ainda noturno havia uma luz tênue, azulada,
que roçava construções baixas, campos lamacentos e destroços. Já na
embocadura do trecho descampado que levava à fábrica, enquanto evitava as
poças, notou que os estudantes agora eram quatro, os dois do dia anterior, um
terceiro da mesma idade e um gordo, decididamente obeso, de seus vinte
anos. Estavam colando no muro cartazes que convocavam para a luta e
começavam a distribuir um folhetinho com o mesmo teor. Porém, se no dia
anterior, por curiosidade, por gentileza, operários e operárias tinham
aceitado receber o panfleto, agora a maior parte ou seguia em frente de
cabeça baixa, ou pegava o papel e imediatamente o amassava para jogar no
lixo.
Tão logo viu que os rapazes já estavam ali, pontuais como se o que
chamavam de trabalho político tivesse horários mais rígidos que o dela, Lila
sentiu antipatia. A antipatia se transformou em hostilidade quando o
jovenzinho do dia anterior a reconheceu e foi a seu encontro correndo, com
ar cordial e um bom número de folhetos na mão.
“Tudo certo, companheira?”
Lila não lhe deu bola, estava com a garganta inflamada, as têmporas
latejando. O rapaz insistiu, falou inseguro:
“Sou Dario, talvez não se lembre, nos vimos na via dei Tribunali.”
“Já sei quem você é, caralho”, explodiu Lila, “mas não quero conversa
nem com você nem com seus amigos.”
Dario ficou sem palavras, diminuiu o passo, falou quase para si:
“Não quer o folheto?”
Lila não respondeu para evitar ofendê-lo ainda mais. Mas guardou na
memória a cara desorientada do rapaz, aquela expressão que as pessoas
fazem quando se sentem do lado certo e não entendem como é que os outros
não compartilham sua opinião. Pensou que deveria ter lhe explicado direito
por que tinha dito as coisas que disse no comitê, e por que achara
insuportável que tudo aquilo fosse parar no texto mimeografado, e por que
motivo julgava inútil e estúpido que eles quatro, em vez de ainda estarem na
cama ou se preparando para entrar numa sala de aula, estivessem ali, no frio,
distribuindo um folheto apinhado de frases a pessoas que mal sabiam ler e,
pior, não tinham razões para se submeter àquele esforço, uma vez que elas já
conheciam aquelas coisas, as viviam todos os dias, e podiam contar outras
ainda piores, sons impronunciáveis que ninguém jamais teria dito, escrito,
lido, e que no entanto custodiavam em potência as verdadeiras razões de sua
subalternidade. Mas estava com febre, cansada de tudo, seria muito
extenuante para ela. De todo modo, já tinha chegado ao portão, e ali o
cenário estava se complicando.
O vigia esbravejava com o rapaz mais velho, o obeso, gritando-lhe em
dialeto: passe dessa linha, passe, strunz, assim você entra sem permissão
numa propriedade privada e eu lhe dou um tiro. O estudante, igualmente
agitado, replicava rindo, uma risada larga, agressiva, que acompanhava de
insultos: chamava-o de servo, berrava em italiano atire, me mostre se você
sabe atirar, isto aqui não é propriedade privada, tudo o que há aqui dentro
pertence ao povo. Lila passou ao lado de ambos — quantas vezes assistira a
patacoadas como aquelas: Rino, Antonio, Pasquale, até Enzo, todos eram
mestres naquelas patifarias — e disse a Filippo, séria: faça a vontade dele,
não perca tempo com conversas, alguém que poderia estar dormindo ou
estudando e em vez disso está aqui, enchendo o saco, merece levar um tiro.
O vigia olhou para ela, ouviu e ficou de boca aberta, tentando entender se
estava realmente o encorajando a fazer uma loucura ou se debochava dele. Já
o estudante não teve dúvidas, a mirou com raiva e gritou: vá, entre, vá
lamber o saco do patrão, e recuou alguns passos balançando a cabeça;
depois, continuou distribuindo folhetos a dois metros do portão.
Lila avançou pelo pátio. Já estava cansada às sete da manhã, sentiu os
olhos queimando, oito horas de trabalho lhe pareceram uma eternidade.
Nesse momento, surgiu atrás de si um barulho de freios e gritos de homens, e
ela se virou. Dois carros tinham chegado, um cinza e um azul. Alguém
desceu do primeiro e começou a arrancar os cartazes recém-colados no
muro. A coisa vai ficar feia, pensou Lila, e instintivamente fez o caminho
inverso, mesmo sabendo que devia agir como os outros, se apressar, entrar e
começar o trabalho.
Deu poucos passos, o suficiente para distinguir com clareza o jovem
que estava ao volante do carro cinza: era Gino. Pôde vê-lo abrir a porta e,
alto, a massa de músculos em que se transformara, sair do automóvel
empunhando um bastão. Os outros, os que estavam arrancando os cartazes,
os que mais preguiçosamente estavam ainda deslizando para fora do carro,
sete ou oito ao todo, seguravam correntes e barras de ferro. Quase todos
fascistas do bairro, e Lila reconheceu alguns. Fascistas como tinha sido o pai
de Stefano, dom Achille, e como se revelara o próprio Stefano, fascistas
como os Solara, avô, pai, netos, ainda que às vezes posassem de
monarquistas, às vezes de democratas-cristãos, segundo a conveniência.
Detestava-os desde que, garotinha, imaginara cada detalhe de suas abjeções,
desde que teve a impressão de descobrir que não havia modo de se livrar
deles, de começar tudo do zero. A ligação entre passado e presente nunca
cedera de fato, o bairro os amava em sua larga maioria, os bajulava, e eles
surgiam com seu negrume a cada ocasião de violência.
Dario, o rapazinho da via dei Tribunali, foi o primeiro a reagir: correu
para protestar contra os cartazes arrancados. Levava na mão o maço de
folhetos, e Lila pensou: jogue fora, cretino, mas ele não fez isso. Ouviu que
ele falava em italiano frases inúteis, do tipo parem com isso, vocês não têm
o direito, e enquanto isso viu que se virava para os companheiros em busca
de ajuda. Não sabe nada sobre como se luta: nunca perder de vista o
adversário, no bairro não havia blá-blá-blá, no máximo se lançavam gritos
com olhos esbugalhados de meter medo e, nesse meio tempo, se golpeava
primeiro, fazendo o maior estrago possível, sem parar, e eram os outros que
deviam detê-lo se fossem capazes. Um dos que estavam arrancando os
cartazes se comportou justamente desse modo: atingiu Dario na cara sem
preâmbulos, com um soco, derrubando-o entre os folhetos que tinham caído,
e então foi para cima dele e continuou a golpeá-lo, enquanto os papéis
esvoaçavam em torno como se houvesse uma excitação feroz nas próprias
coisas. A essa altura o estudante obeso se deu conta do rapaz no chão e
correu em seu socorro de mãos vazias, mas foi parado no meio do caminho
por um sujeito armado de corrente, que o acertou em um braço. O jovem
então agarrou furioso a corrente e começou a puxar para arrancá-la do
agressor, e os dois passaram a disputá-la por alguns segundos, aos insultos.
Até que Gino chegou pelas costas do estudante gordo e o abateu com uma
paulada.
Lila se esqueceu da febre, do cansaço e correu para o portão, mas sem
um propósito definido. Não sabia se queria ter uma visão mais clara, se
queria ajudar os estudantes, se simplesmente era movida por um instinto que
sempre tivera e em virtude do qual as pancadas não a atemorizavam, ao
contrário, acendiam sua fúria. Mas não fez a tempo de voltar para a rua,
precisou esquivar-se para não ser arrastada por um grupinho de operários
que estava passando às carreiras pelo portão. Alguns tinham tentado conter
os espancadores, certamente Edo e mais uns outros, mas não conseguiram e
agora estavam fugindo. Fugiam homens e mulheres, todos perseguidos por
dois jovens com barras de ferro. Uma que se chamava Isa, uma funcionária,
gritou correndo para Filippo: intervenha, faça alguma coisa, chame os
guardas; e Edo, que estava com uma mão sangrando, disse em voz alta para
si: vou buscar o machado e depois veremos. Assim, quando Lila chegou à
estrada de terra, o carro azul já havia partido e Gino estava entrando no
cinza; mas ele a reconheceu, parou estupefato e disse: Lina, você veio parar
aqui? Então, puxado para dentro pelos camaradas, deu a partida e arrancou,
gritando pela janela: você bancava a madame, cretina, e olha em que merda
se transformou.
35.
Galiani também deve ter percebido algo que lhe agradou, talvez uma
franqueza no limite da descortesia. Porém, quando Lila mencionou nossa
amizade, a professora se mostrou contente e exclamou: ah, sim, Greco, ela
nunca mais deu notícias, o sucesso deve ter subido à cabeça. Então convidou
mãe e filho a se acomodarem na sala de estar, onde tinha deixado o neto
brincando, um menino louro a quem quase ordenou: Marco, cumprimente seu
novo amigo. Lila, por sua vez, fez o filho dar um passo à frente e disse: vá,
Gennaro, brinque com Marco, e se sentou numa antiga e confortável poltrona
verde, continuando a falar sobre a festa de anos atrás. A professora lamentou
não ter nenhuma lembrança dela, mas Lila se recordava de tudo. Disse que
tinha sido uma das piores noites de sua vida. Contou como se sentira fora de
lugar, ironizou pesadamente as conversas que escutara sem entender nada. Eu
era muito ignorante, exclamou com alegria excessiva, e hoje sou ainda mais.
Galiani ficou ouvindo e se espantou com sua sinceridade, com o tom
desconcertante, as frases ditas num italiano muito intenso, a ironia
habilmente controlada. Deve ter sentido em Lila, suponho, aquele algo de
inapreensível que seduzia e ao mesmo tempo alarmava, uma potência de
sereia: acontecia com qualquer um, aconteceu também com ela, e a conversa
só se interrompeu quando Gennaro deu um tapa em Marco e gritou um insulto
em dialeto, arrancando um carrinho verde das mãos dele. Lila se levantou
furiosa, agarrou o filho pelo braço, deu vários tapas vigorosos na mão que
tinha batido no outro menino e, embora Galiani lhe dissesse, branda: deixe
pra lá, são crianças, o censurou com dureza e o obrigou a devolver o
brinquedo. Marco chorava, Gennaro não derramou uma lágrima, ao
contrário, arremessou contra o outro o brinquedo com desprezo. Lila bateu
nele de novo, muito forte, na cabeça.
“Vamos embora”, disse então, nervosa.
“Não, fique mais um pouco.”
Lila voltou a se sentar.
“Ele não é sempre assim.”
“É um menino lindo. Não é verdade, Gennaro, que você é bonito e
bonzinho?”
“Ele não é nada bonzinho, não é mesmo. Mas é inteligente. Apesar de
pequeno, sabe ler e escrever todas as letras, maiúsculas e cursivas. E então,
Gennà, quer mostrar à professora como você sabe ler?”
Pegou uma revista sobre uma bela mesinha de cristal, indicou ao acaso
uma palavra na capa e disse: vamos, leia. Gennaro se recusou, Lila lhe deu
um tapinha no ombro e repetiu ameaçadora: leia, Gennà. O menino decifrou
de má vontade: d-e-s-t, e então parou, fixando com raiva o carrinho de
Marco. Marco o apertou forte contra o peito, deu um sorrisinho e leu com
desenvoltura: destinação.
Lila ficou mal, fechou o cenho, olhou o neto de Galiani com antipatia.
“Ele lê bem.”
“Porque lhe dedico muito tempo. Já os pais andam sempre por aí.”
“Quantos anos ele tem?”
“Três anos e meio.”
“Parece mais velho.”
“É verdade, ele é bem desenvolvido. Seu filho tem que idade?”
“Vai fazer cinco anos”, admitiu Lila contrariada.
A professora fez um carinho em Gennaro e lhe disse:
“Mamãe o fez ler uma palavra difícil, mas você é excelente, vê-se
perfeitamente que sabe ler.”
Naquele instante houve uma agitação, a porta da escada se abriu e se
fechou, rumor de passos pela casa, vozes masculinas, vozes femininas. Meus
filhos chegaram, disse Galiani, e chamou: Nadia. Mas não foi Nadia quem
apareceu na sala, em vez dela surgiu ruidosamente uma garota magra, muito
pálida, louríssima e com olhos de um azul tão azul que parecia falso. A
jovem abriu os braços e gritou para Marco: quem vai dar um beijo na
mamãe? O menino correu em sua direção e ela o abraçou e encheu de
beijinhos, enquanto Armando, o filho mais velho de Galiani, se aproximava.
Lila também se lembrou dele imediatamente e o observou enquanto quase
arrancava Marco dos braços da mãe, gritando: vamos, pelo menos trinta
beijos também no papai. Então Marco passou a beijar o pai na bochecha,
contando: um, dois, três, quatro.
“Nadia”, chamou de novo Galiani com um tom subitamente irritado,
“está surda? Venha aqui, há uma visita para você.”
Finalmente Nadia entrou na sala. Atrás dela apareceu Pasquale.
37.
No carro ela atacou Pasquale (você virou o escravo dessa gente?), e ele a
deixou desabafar. Somente quando lhe pareceu que ela havia esgotado todas
as recriminações, ele começou com seu repertório político: a condição
operária no Sul, o estado de servidão que predominava ali, a chantagem
permanente, a fraqueza ou até mesmo a ausência de sindicatos, a necessidade
de forçar as situações e chegar à luta. Lila — disse a ela em dialeto, com um
tom comovido —, você tem medo de perder essa miséria que lhe pagam, e
tem razão, Gennaro precisa crescer. Mas eu sei que você é uma companheira
de verdade, sei que você compreende: nós aqui, trabalhadores, nunca
estivemos nem mesmo dentro do piso salarial, estamos fora de todas as
regras, estamos abaixo de zero. Por isso é uma blasfêmia dizer: me deixe em
paz, eu tenho meus problemas e vou me virar sozinha. Cada um tem de fazer,
no lugar que lhe couber, tudo o que for possível.
Lila estava exausta, ainda bem que Gennaro dormia no banco de trás
com o carrinho apertado na mão direita. Escutou o falatório de Pasquale em
ondas. De vez em quando lhe vinha à mente a bela casa do corso Vittorio
Emanuele, e a professora, e Armando, e Isabella, e Nino, que a abandonara
para encontrar em algum lugar uma mulher do tipo de Nadia, e Marco, que
tinha três anos e sabia ler bem melhor que seu filho. Que esforço inútil tentar
que Gennaro se tornasse inteligente. O menino já estava se perdendo, era
arrastado para trás, e ela não conseguia segurá-lo. Quando chegaram ao
portão de casa e ela se viu obrigada a convidar Pasquale a subir, disse a ele:
não sei o que Enzo cozinhou, ele cozinha muito mal, talvez não seja bom
para você — e esperou que ele fosse embora. Mas Pasquale respondeu: fico
só dez minutos e depois saio — de modo que ela tocou seu braço com a
ponta dos dedos e murmurou:
“Não diga nada a seu amigo.”
“Nada sobre o quê?”
“Sobre os fascistas. Se ele souber, vai esta noite mesmo quebrar a cara
de Gino.”
“Você gosta dele?”
“Não gostaria de fazer mal a ele.”
“Ah.”
“É isso mesmo.”
“Olhe que Enzo sabe melhor que eu e você o que é preciso ser feito.”
“Sim, mas de todo modo não diga nada a ele.”
Pasquale concordou com uma expressão preocupada. Carregou
Gennaro, que se recusava a acordar, e o levou escada acima, seguido por
Lila, que resmungava descontente: que droga de dia, estou morta de cansaço,
você e seus amigos me meteram numa enrascada enorme. Contaram a Enzo
que tinham estado na casa de Nadia para uma reunião, e Pasquale não lhe
deu espaço para fazer perguntas, conversou sem parar até meia-noite. Disse
que Nápoles, assim como o mundo inteiro, era um caldeirão fervendo de
vida nova, elogiou muito Armando, que, como bom médico que era, em vez
de pensar na carreira, tratava de graça quem não tinha dinheiro, cuidava dos
meninos dos Bairros e, com Nadia e Isabella, estava metido em mil projetos
a serviço do povo, uma escola infantil, um ambulatório. Disse que ninguém
estava mais só, os companheiros ajudavam os companheiros, a cidade vivia
momentos maravilhosos. Vocês, disse, não devem ficar trancados em casa,
precisam sair, precisamos estar mais tempo juntos. E por fim anunciou que,
para ele, não dava para continuar no partido comunista: muita coisa ruim,
muitos compromissos nacionais e internacionais, não aguentava mais aquele
marasmo. Enzo ficou bastante perturbado com aquela decisão, o debate entre
eles se acendeu e estendeu noite adentro, o partido é o partido, não, sim, não,
chega de políticas de estabilização, é preciso atacar o sistema em suas
estruturas. Lila se aborreceu depressa, foi pôr Gennaro na cama, que tinha
jantado queixoso por causa do sono, e não voltou mais.
Mas permaneceu acordada mesmo quando Pasquale foi embora e os
sinais da presença de Enzo pela casa se apagaram. Mediu a febre, estava
com trinta e oito. Tornou a lembrar o momento em que Gennaro teve
dificuldade de ler. Mas que espécie de palavra ela pusera diante dos olhos
do menino: destinação. Com certeza Gennaro nunca a escutara. Não basta
conhecer o alfabeto, pensou, as dificuldades são muitas. Se Nino o tivesse
gerado com Nadia, aquele filho teria um destino totalmente diverso. Sentiu-
se uma mãe falhada. No entanto fui eu quem o quis, pensou, era de Stefano
que eu não desejava filhos; de Nino, sim. De Nino ela gostara de verdade.
Desejara-o intensamente, desejara dar prazer a ele e, pelo prazer dele, fizera
de bom grado tudo o que, para seu marido, tinha tido que fazer à força,
vencendo o asco, só para não ser morta. Mas o que se dizia que ela deveria
experimentar ao se sentir penetrada, isso ela nunca experimentara, era certo,
e não só com Stefano, mas também com Nino. Os homens eram fixados
demais nele, no pau, tinham um enorme orgulho dele e estavam convencidos
de que você devia admirá-lo ainda mais que eles. Também Gennaro não
parava de brincar com sua coisinha, às vezes era embaraçoso como ele o
girava entre as mãos, o puxava. Lila temia que se machucasse, e até para
lavá-lo e fazê-lo urinar tivera de esforçar-se, habituar-se. Enzo era tão
discreto, nunca de cueca pela casa, nunca uma palavra vulgar. Essa era a
razão por que sentia um intenso afeto por ele e lhe era agradecida por sua
espera devotada no outro cômodo, que nunca resultara em um movimento
equivocado. O controle que ele exercia sobre as coisas e sobre si lhe
pareceu o único consolo. Mas depois o sentimento de culpa aflorou: o que a
consolava com certeza o fazia sofrer. E o pensamento de que Enzo sofresse
por sua causa se somou a todas as coisas ruins daquele dia. Os fatos e as
falas lhe voltearam desordenadamente na cabeça por muito tempo. Tons de
voz, palavras isoladas. Como se comportar amanhã na fábrica? Realmente
havia todo aquele fervor em Nápoles e no mundo ou eram Pasquale, Nadia e
Armando que o imaginavam para sedar suas próprias ânsias, por tédio, para
criar coragem? Devia confiar nisso, com o risco de cair prisioneira de
fantasias? Ou era melhor tentar falar de novo com Bruno para evitar
problemas? Mas de fato seria útil buscar amansá-lo, com o risco de que ele
a atacasse de novo? Servia de alguma coisa dobrar-se à prepotência de
Filippo e dos chefetes? Não avançou muito. Por fim, sonolenta, chegou a um
velho princípio que nós duas tínhamos assimilado desde pequenas. Chegou à
conclusão de que, para se salvar, para salvar Gennaro, deveria intimidar
aqueles que a mantinham sob intimidação, deveria meter medo em quem
queria amedrontá-la. Adormeceu com a intenção de causar estragos: a
Nadia, demonstrando que ela era apenas uma garotinha de boa família, cheia
de conversas melosas; a Soccavo, lhe estragando o prazer de farejar salames
e mulheres na câmara de maturação.
39.
Lila sabia desde o início que a tarefa caberia a ela. Ganhou tempo, deixou
Gennaro com a vizinha, foi com Pasquale a uma reunião do comitê na via dei
Tribunali convocada para discutir também a situação na Soccavo. Dessa vez
eram doze pessoas, incluindo Nadia, Armando, Isabella e Pasquale. Lila fez
circular a cópia que tinha preparado para Capone, já que, naquela primeira
versão, cada demanda estava mais bem argumentada. Nadia leu com atenção.
Por fim, disse: Pasquale tinha razão, você é daquelas que não se omitem, em
pouquíssimo tempo fez um trabalho excelente. E elogiou com um tom
sinceramente admirado não só a substância política e sindical do documento,
mas também a escrita: como você é talentosa, disse, quando já se viu que se
pode escrever sobre esse assunto desta maneira? No entanto, depois dessa
premissa, desaconselhou que ela partisse logo para um confronto direto com
Soccavo. E Armando expressou a mesma opinião.
“Vamos esperar para nos reforçar e crescer”, disse, “a fabriqueta de
Soccavo é uma realidade que precisa ser amadurecida. Nós colocamos um
pé lá, e isso já é um grande resultado, não podemos nos arriscar a sermos
varridos por pura imprudência.”
Dario perguntou:
“O que vocês propõem?”
Nadia respondeu, mas se dirigindo a Lila:
“Vamos fazer uma reunião mais ampla. Vamos nos encontrar o mais
rapidamente possível com seus companheiros, consolidamos a estrutura de
vocês e, se for o caso, com o seu material, preparamos outro panfleto
mimeografado.”
Diante daquelas cautelas inesperadas, Lila sentiu uma grande e
agressiva satisfação. Disse arrogante:
“Então vocês acham que eu fiz todo esse esforço e estou pondo meu
emprego em risco para permitir que vocês façam uma reunião ampliada e
preparem um outro texto?”
Mas não conseguiu gozar plenamente aquela sensação de revanche. De
repente Nadia, que estava bem à sua frente, começou a vibrar como um vidro
mal fixado e se despedaçou. Sem um motivo aparente, a garganta de Lila se
fechou, e os mínimos gestos dos presentes, até um bater de cílios, se
aceleraram. Ela fechou os olhos, apoiou as costas no espaldar da cadeira
bamba em que estava sentada e se sentiu sufocar.
“Você está bem?”, perguntou Armando.
Pasquale se agitou:
“Ela se cansa demais”, disse. “Lina, o que foi, quer um copo d’água?”
Dario correu para buscar a água, enquanto Armando checava seu pulso
e Pasquale, nervoso, insistia:
“O que você está sentindo? Alongue as pernas, respire.”
Lila sussurrou que estava bem, tirou bruscamente o pulso das mãos de
Armando, disse que só queria ser deixada um minuto em paz. Mas, depois
que Dario voltou com a água e ela deu um pequeno gole, murmurou que não
era nada, só um pouco de gripe.
“Está com febre?”, perguntou Armando com tranquilidade.
“Hoje não.”
“Tosse, tem dificuldade de respirar?”
“Um pouco, sinto o coração batendo na garganta.”
“Agora está um pouco melhor?”
“Sim.”
“Venha para a outra sala.”
Lila relutava e, no entanto, sentia uma grande angústia por dentro. Por
fim obedeceu, ergueu-se com dificuldade e acompanhou Armando, que nesse
meio-tempo pegara uma bolsa de couro preto com fivelas douradas. Foram
para um cômodo que Lila ainda não tinha visto, espaçoso, frio, três camas de
campanha sobre as quais havia velhos colchões de aparência imunda, um
armário com um espelho rachado, um gaveteiro. Sentou-se exausta em uma
das camas, não se submetia a uma consulta médica desde a época da
gravidez. Quando ele a indagou sobre os sintomas, omitiu tudo, só
mencionou o peso no peito, mas acrescentou: é uma bobagem.
Armando a examinou em silêncio, e ela imediatamente odiou aquele
silêncio, pareceu-lhe um silêncio pérfido. Aquele homem distante, limpo,
mesmo durante as perguntas parecia não confiar nem um pouco nas
respostas; submetia-a a análises como se somente seu corpo, potencializado
por instrumentos e competências, fosse um dispositivo confiável. Ele a
auscultava, apalpava, perscrutava e ao mesmo tempo lhe impunha uma
espera de palavras definitivas sobre o que estava acontecendo em seu peito,
na barriga, na garganta, locais aparentemente bem conhecidos que agora ela
sentia como totalmente estranhos. Por fim Armando perguntou:
“Você dorme bem?”
“Muito bem.”
“Quanto?”
“Depende.”
“De quê?”
“Dos pensamentos.”
“Come bem?”
“Quanto tenho vontade.”
“Às vezes tem dificuldade de respirar?”
“Não.”
“Dores no tórax?”
“Um peso, mas leve.”
“Suores frios?”
“Não.”
“Já aconteceu de desmaiar ou se sentir tonta?”
“Não.”
“Você é regular?”
“Em quê?”
“Nas menstruações.”
“Não.”
“Quando menstruou pela última vez?”
“Não sei.”
“Você não registra?”
“É preciso registrar?”
“É melhor. Usa anticoncepcionais?”
“O que você quer dizer?”
“Preservativos, diu, pílula?”
“Que pílula?”
“Um medicamento novo: você toma e impede a gravidez.”
“É verdade?”
“Com certeza que sim. Seu marido nunca usou um preservativo?”
“Não tenho mais marido.”
“Ele a deixou?”
“Eu o deixei.”
“Quando estavam juntos, ele usava?”
“Não sei nem como é um preservativo.”
“Você tem uma vida sexual regular?”
“Qual a necessidade de falar sobre essas coisas?”
“Se não quiser, não falamos.”
“Não quero.”
Armando recolocou seus instrumentos na bolsa, sentou-se numa cadeira
meio destroçada, deu um suspiro.
“Você precisa ir mais devagar, Lina: você forçou seu corpo demais.”
“O que isso significa?”
“Você está desnutrida, debilitada, você se descuidou muito.”
“E o que mais?”
“Tem um pouco de catarro, vou lhe dar um xarope.”
“E o que mais?”
“Você deveria fazer uma série de exames, o fígado está um pouco
inchado.”
“Não tenho tempo para exames, me dê um remédio.”
Armando balançou a cabeça, descontente.
“Escute”, disse, “já entendi que com você é melhor ser direto: você tem
um sopro.”
“O que é isso?”
“Um problema no coração, e poderia ser algo não benigno.”
Lila fez uma expressão de ansiedade.
“O que você quer dizer? Que eu vou morrer?”
Ele sorriu e disse:
“Não, você só precisa fazer um exame com um cardiologista. Venha me
ver amanhã no hospital e eu mando você a um bom especialista.”
Lila franziu o cenho, se levantou e disse fria:
“Amanhã tenho compromisso, vou ver Soccavo.”
42.
Sabia desde sempre que, mais cedo ou mais tarde, Michele reapareceria em
sua vida, mas encontrá-lo no escritório de Bruno a assustou tanto quanto, na
infância, os espíritos nos recantos escuros da casa. O que ele está fazendo
aqui dentro, pensou, preciso ir embora. Mas, ao vê-la, Solara ficou de pé,
abriu os braços, pareceu realmente emocionado. Disse em italiano: Lina, que
prazer, como estou contente. Queria abraçá-la, e o teria feito se ela não o
tivesse interrompido com um gesto irrefletido de repulsa. Michele ficou por
alguns segundos de braços abertos e então, desordenadamente, tocou com
uma mão a maçã do rosto, a nuca, e com a outra indicou Lila a Soccavo,
dessa vez falando de modo fingido:
“Mas olha só, nem posso acreditar: quer dizer que, no meio dos
salames, você realmente mantinha a senhora Carracci escondida?”
Lila se dirigiu a Bruno bruscamente:
“Volto mais tarde.”
“Sente-se”, disse ele, soturno.
“Prefiro ficar de pé.”
“Sente-se que assim você se cansa.”
Ela sacudiu a cabeça, permaneceu de pé, e Michele lançou um sorriso
cúmplice a Soccavo:
“Ela é assim mesmo, desista, não obedece nunca.”
Lila teve a impressão de que a voz de Michele estava mais potente que
no passado, pronunciava as sílabas finais de cada palavra como se naqueles
últimos anos tivesse feito exercícios de pronúncia. Talvez para poupar as
forças, talvez apenas para contradizê-lo, mudou de ideia e se sentou.
Michele também se reacomodou, mas todo voltado na direção dela, quase
como se a partir daquele momento Bruno não estivesse mais na sala. Ele a
esquadrinhou bem, com simpatia, e falou demonstrando amargura: suas mãos
estão destruídas, que pena, quando garotinha eram tão lindas. Então
desandou a falar da loja na piazza dei Martiri com um tom informativo, como
se Lila ainda fosse sua funcionária e eles estivessem tendo um encontro de
trabalho. Fez menção a novas estantes, a novos pontos de iluminação e disse
que tinha mandado murar de novo a porta do banheiro que dava para o pátio.
Lila se lembrou daquela porta e disse devagar, em dialeto:
“Estou cagando para sua loja.”
“Você quer dizer nossa: nós a inventamos juntos.”
“Nunca inventei nada com você.”
Michele sorriu mais uma vez, balançando a cabeça em sinal de suave
discordância. Quem põe dinheiro, disse, faz e desfaz exatamente como quem
trabalha com as mãos e com a cabeça. O dinheiro inventa os panoramas, as
situações, a vida das pessoas. Você não sabe quanta gente eu posso fazer
feliz ou arruinar somente assinando um cheque. Em seguida, voltou a
conversar com tranquilidade, parecia contente por contar as últimas notícias,
como se faz entre amigos. Começou com Alfonso, que tinha feito bem seu
trabalho na piazza dei Martiri e agora ganhava o suficiente para poder
constituir família. Mas não tinha vontade de se casar, preferia manter a pobre
Marisa na condição de noiva eterna e continuar fazendo o que bem quisesse.
Então ele, como empregador, o encorajara, uma vida regular faz bem aos
funcionários, oferecera-se para pagar a festa de núpcias, de modo que,
finalmente, em junho haveria o casamento. Está vendo, lhe disse, se você
tivesse continuado a trabalhar para mim, muito mais que Alfonso, eu lhe
daria tudo o que me pedisse, você seria uma rainha. Depois, sem lhe dar
tempo de replicar, bateu a cinza do cigarro num velho cinzeiro de bronze e
anunciou que ele também estava se casando, também em junho, naturalmente
com Gigliola, o grande amor de sua vida. Pena que não posso convidá-la,
lamentou, eu gostaria, mas não quero constranger seu marido. E passou a
falar de Stefano, de Ada e da filha deles, ora falando muito bem dos três, ora
sublinhando que as duas charcutarias não iam tão bem como antigamente.
Enquanto o dinheiro do pai durou — disse —, Carracci conseguiu se manter,
mas o comércio hoje é um mar agitado, há um bom tempo os negócios de
Stefano estão afundando, ele não aguenta mais. A concorrência — explicou
— tinha crescido, abriam-se continuamente novas lojas. O próprio Marcello,
por exemplo, metera na cabeça de ampliar o velho armazém de dom Carlo,
que Deus o tenha, e transformá-lo num desses locais onde se vendia de tudo,
de sabonetes a lâmpadas, de mortadelas a doces. E acabou fazendo, o
negócio ia de vento em popa, o batizara de Tutto per tutti.
“Está me dizendo que você e seu irmão conseguiram arruinar Stefano
também?”
“Que arruinar, Lina: nós apenas fazemos nosso trabalho, só isso. Aliás,
quando podemos ajudar os amigos, ajudamos de bom grado. Adivinhe quem
Marcello pôs para trabalhar na nova loja?”
“Não sei.”
“Seu irmão.”
“Reduziram Rino a funcionário de vocês?”
“Bem, você o abandonou, e aquele rapaz carrega nas costas seu pai, sua
mãe, um filho e Pinuccia, que está grávida de novo. O que ele podia fazer?
Procurou Marcello pedindo ajuda, e Marcello o ajudou. Não gostou da
notícia?”
Lila respondeu gélida:
“Não, não gostei, não gosto de nada do que vocês fazem.”
Michele fez um ar descontente, lembrou-se de Bruno:
“Está vendo? É como eu lhe dizia, o problema dela é que tem um
caráter ruim.”
Bruno esboçou um sorriso embaraçado, que pretendia ser cúmplice.
“É verdade.”
“Ela também lhe fez mal?”
“Um pouco.”
“Sabe que ela ainda era uma menina quando pôs um trinchete na
garganta de meu irmão, que era o dobro dela? E não estava brincando, se via
que estava pronta para usá-lo.”
“Está falando sério?”
“Estou. Essa aí tem coragem, é determinada.”
Lila cerrou os punhos com força, detestava a fraqueza que sentia no
corpo. A sala ondejava, os corpos das coisas mortas e das pessoas vivas se
dilatavam. Observou Michele apagar o toco do cigarro no cinzeiro. Estava
pondo muita energia naquilo, como se ele também, apesar do tom pacato,
estivesse buscando dar vazão a um mal-estar. Lila fixou seus dedos, que não
paravam de amassar o cigarro, as unhas brancas. Tempos atrás, pensou, me
pediu que eu me tornasse sua amante. Mas não é isso que ele realmente quer,
há algo mais aí, algo que não tem a ver com trepar e que nem ele mesmo
sabe explicar. Ficou fixado, é como uma superstição. Talvez acredite que eu
tenha algum poder, e que esse poder lhe é indispensável. Ele o deseja, mas
não consegue tomá-lo, e sofre com isso, é uma coisa que não pode tirar de
mim à força. Sim, talvez seja isso. Se não fosse assim, já teria me esmagado.
Mas por que justamente eu? O que identificou em mim que serviria a ele?
Não devo continuar aqui, sob os olhos dele, não devo ouvi-lo, me dá medo o
que ele vê e o que quer. Lila disse a Soccavo:
“Deixo uma coisa com você e estou indo.”
Ficou de pé, pronta a lhe entregar a lista das reivindicações, um gesto
que lhe pareceu cada vez mais desprovido de sentido e, no entanto,
necessário. Queria pôr a folha sobre a mesa, ao lado do cinzeiro, e sair
daquela sala. Mas a voz de Michele a deteve. Agora era decididamente
afetuosa, quase acariciante, como se tivesse intuído que ela tentava escapar-
lhe e ele quisesse apostar tudo para encantá-la e mantê-la ali. Continuou
falando a Soccavo:
“Está vendo? Ela tem mesmo um caráter ruim. Estou falando, e ela não
está nem aí, saca uma folha de papel, diz que quer ir embora. Mas por favor
a perdoe, porque o caráter ruim é compensado por enormes qualidades. Você
acha que contratou uma operária? Não é verdade. Esta senhora é muito,
muito mais que isso. Se você a deixar agir, ela transforma merda em ouro, é
capaz de reorganizar todo este barraco e levá-lo a níveis que você nem
sequer imagina. Por quê? Porque tem uma cabeça que normalmente não só
nenhuma mulher tem, mas nem nós, homens, temos. Estou de olho nela desde
que era quase uma menina, e é justamente assim. Ela desenhou sapatos que
até hoje eu vendo em Nápoles e fora da cidade, e ganho um monte de
dinheiro com isso. E me reformou uma loja na piazza dei Martiri com tanta
fantasia que a transformou num salão de encontro para os senhores de via
Chiaia, de Posillipo, do Vomero. E poderia fazer muitas, muitíssimas outras
coisas. Mas tem uma cabeça doida, acredita que sempre pode fazer o que lhe
dá na telha. Vai, vem, conserta, quebra. Você acha que eu a demiti? Não, um
belo dia, como se nada fosse, não veio mais trabalhar. Sumiu, assim. E, se
você torna a capturá-la, ela escapa de novo, é uma enguia. O problema dela
está aí: mesmo sendo muito inteligente, não consegue entender o que pode e
o que não pode fazer. Isso porque ainda não encontrou um homem de
verdade. Um homem de verdade sabe colocar a mulher nos trilhos. Não é
capaz de cozinhar? Aprende. Deixa a casa suja? Limpa. Um homem de
verdade pode fazer com que uma mulher faça tudo. Só para lhe dizer,
conheci recentemente uma fulana que não sabia assoviar. Bem, ficamos
juntos apenas duas horas — horas de fogo —, e depois disse a ela: vai,
assovia. E ela — você não vai acreditar — assoviou. Se você sabe educar
uma mulher, bem. Se não sabe, melhor desistir, que lhe faz mal.” Pronunciou
essas últimas palavras com um tom seriíssimo, como se condensassem um
mandamento imprescindível. Mas, enquanto falava, deve ter percebido que
ele não tinha sido e ainda não era capaz de respeitar sua própria lei. Então
mudou de cara, mudou de voz de repente, sentiu a urgência de humilhá-la.
Virou-se para Lila com um impulso de intolerância e sublinhou num
crescendo de vulgaridades dialetais: “Mas com essa aqui é difícil, não é
nada fácil tirá-la do pé. No entanto, olhe só pra ela, os olhos miúdos, as tetas
pequenas, a bunda pequena, reduzida a um cabo de vassoura. Com uma assim
o que se pode fazer? Nem dá pra ficar duro. Mas basta um instante, um
instante só: você olha pra ela e tem vontade de fodê-la”.
Foi nesse ponto que Lila sentiu um baque violentíssimo na cabeça,
como se seu coração, em vez de martelar na garganta, explodisse na calota
craniana. Gritou-lhe um insulto não menos pesado que as palavras ditas por
ele, agarrou o cinzeiro de bronze da escrivaninha derrubando cinzas e
guimbas, tentou acertá-lo. Mas o gesto, apesar da fúria, veio lento,
desprovido de força. E mesmo a voz de Bruno — Lina, por favor, o que é
que você está fazendo — atravessou-a desinteressada. Talvez por isso
Solara a tenha bloqueado facilmente e facilmente lhe tirou o cinzeiro das
mãos, dizendo raivoso:
“Você pensa que depende do doutor Soccavo? Pensa que não sou
ninguém aqui? Você se engana. Há algum tempo o doutor Soccavo está no
livro vermelho de minha mãe, que é um livro muito mais importante que o
livrinho de Mao. Por isso você não depende dele, depende de mim, depende
sempre e apenas de mim. E eu até agora a deixei agir, queria ver até onde
você ia parar, você e aquele merda com quem fode. Mas a partir de agora
lembre-se de que estou de olho em você, e se eu quiser você tem de correr,
está claro?”
Só então Bruno saltou de pé nervosíssimo e exclamou:
“Deixe-a em paz, Michè, agora você está exagerando.”
Solara soltou aos poucos o pulso de Lila e então balbuciou, dirigindo-
se a Soccavo novamente em italiano:
“Você tem razão, me desculpe. Mas a senhora Carracci tem esse dom:
de um modo ou de outro, sempre força você a exagerar.”
Lila reprimiu a fúria, esfregou com cuidado o pulso, tirou com a ponta
dos dedos um pouco de cinza que caíra sobre ela. Depois desdobrou a folha
de reivindicações, colocou-a diante de Bruno e, enquanto se dirigia para a
porta, virou-se para Solara e disse:
“Sei assoviar desde os cinco anos de idade.”
45.
Quando voltou para baixo, palidíssima, Edo perguntou como tinha sido, mas
Lila não respondeu, o afastou com a mão e foi se fechar no banheiro. Temia
ser imediatamente reconvocada por Bruno, temia ser obrigada a um
confronto na presença de Michele, temia a fragilidade incomum do corpo,
não conseguia se habituar. Pelo basculante manteve o olho no pátio e deu um
suspiro de alívio quando viu Michele, alto, o passo nervoso, a fronte com
entradas, o belo rosto barbeado com cuidado, uma jaqueta de couro preto
sobre calças escuras, chegar até seu carro e partir. Nessa altura voltou à
descarnagem, e Edo lhe perguntou de novo:
“E então?”
“Foi. Mas a partir de agora vocês cuidam disso.”
“Em que sentido?”
Não pôde responder, a secretária de Bruno chegou ofegante, o patrão
queria vê-la imediatamente. Seguiu como aquela santa que, mesmo tendo a
cabeça ainda sobre o pescoço, a carrega nas mãos, como se já a tivessem
cortado. Assim que a viu na sua frente, Bruno quase gritou:
“Querem que de manhã lhes sirva até o café na cama? O que é esta
novidade aqui, Lina? Você se dá conta? Sente-se e explique. Nem posso
acreditar.”
Lila explicou as reivindicações uma a uma, com o tom que usava com
Gennaro quando ele não queria entender. Enfatizou que era conveniente a ele
tomar aquela lista a sério e enfrentar os vários pontos com espírito
construtivo, porque, se ele se comportasse de modo imponderado, logo a
inspetoria do trabalho cairia em cima dele. Por fim perguntou em que tipo de
problema se metera para cair nas mãos de gente perigosa como os Solara.
Nesse instante Bruno perdeu totalmente a calma. Sua tez avermelhada ficou
roxa, os olhos se injetaram, gritou que acabaria com ela, que bastaria dar
poucas liras por fora aos quatro cretinos que lhe faziam oposição para
arranjar tudo. Berrou que há anos seu pai dava regalias à inspetoria do
trabalho, e imagine se ele ia ter medo de inspeções. Gritou que os Solara
fariam que ela perdesse a vontade de bancar a sindicalista e concluiu com
voz engasgada: pra fora, pra fora imediatamente, fora.
Lila andou até a porta. Somente na soleira lhe disse:
“É a última vez que você me vê: a partir deste momento paro de
trabalhar aqui dentro.”
Diante dessas palavras, Soccavo voltou bruscamente a si. Fez uma
careta alarmada, devia ter prometido a Michele que não a demitiria. Disse:
“Agora você se ofende? Agora banca a caprichosa? Deixe de bobagem,
venha cá, vamos pensar juntos, sou eu quem decido se devo demiti-la ou não.
Idiota, já disse, venha cá.”
Por uma fração de segundo, Ischia lhe voltou à mente de novo, as
manhãs em que esperávamos que chegassem Nino e seu amigo rico, que tinha
casa em Forio, o rapaz cheio de gentilezas e sempre paciente. Saiu e fechou
a porta atrás de si. Logo em seguida sentiu um tremor violentíssimo,
recobriu-se de suor. Não foi para a descarnagem, não se despediu de Edo e
de Teresa, passou diante de Filippo, que a olhou com estranheza, gritando:
Cerù, aonde você vai, volte aqui. Mas ela seguiu pela estrada de terra
correndo, pegou o primeiro ônibus para a Marina, chegou ao mar.
Perambulou muito. Havia um vento frio, subiu ao Vomero no funicular,
passeou por piazza Vanvitelli, por via Scarlatti, por via Cimarosa, tomou de
novo o funicular e tornou para baixo. Já tarde se deu conta de que se
esquecera de Gennaro. Chegou em casa às nove, pediu a Enzo e a Pasquale
— que lhe faziam perguntas ansiosas para entender o que havia ocorrido —
que fossem me procurar no bairro.
E agora estou aqui, em plena noite, neste cômodo esquálido de San
Giovanni a Teduccio. Gennaro dorme, Lila fala e fala em voz baixa, Enzo e
Pasquale estão à espera na cozinha. Eu me sinto como o cavaleiro de um
romance medieval que, fechado em sua armadura reluzente, depois de ter
cumprido mil prodigiosas empresas a girar pelo mundo, topa com um pastor
esfarrapado e desnutrido que, sem jamais ter se afastado do pasto, comanda
e governa de mãos nuas feras horríveis com uma coragem portentosa.
46.
Naquela mesma noite, fiz da casa de meus pais uma longa ligação a Pietro,
contando-lhe tim-tim por tim-tim todos os problemas de Lila e como eu
queria ajudá-la. Ficou me escutando com paciência. A certa altura até
mostrou espírito de colaboração, lembrou-se de um jovem helenista de Pisa
que estava fixado em calculadores[1] e fantasiava que eles revolucionariam a
filologia. Me deu ternura que, mesmo sendo alguém que estava sempre com a
cabeça no trabalho, naquela ocasião, por amor a mim, se esforçasse para ser
útil.
“Tente localizá-lo”, pedi, “fale de Enzo com ele, nunca se sabe,
poderia surgir uma possibilidade de trabalho.”
Prometeu que o faria e acrescentou que, pelo que se lembrava,
Mariarosa tinha tido um breve caso amoroso com um jovem advogado de
Nápoles: talvez pudesse localizá-lo e perguntar se poderia me ajudar.
“Ajudar em quê?”
“Recuperar o dinheiro de sua amiga.”
Me entusiasmei.
“Ligue para Mariarosa.”
“Tudo bem.”
Insisti:
“Não prometa apenas, ligue mesmo, por favor.”
Ficou em silêncio por um segundo e então disse:
“Você acabou de usar o tom de minha mãe.”
“Em que sentido?”
“Parecia ela quando está muito empenhada numa coisa.”
“Sou diferente demais dela, pena.”
Calou-se de novo.
“Ainda bem que é diferente. De todo modo, nessas coisas ela é
incomparável. Conte a ela sobre sua amiga e pode ter certeza de que vai
ajudar.”
Telefonei para Adele. Estava um tanto embaraçada, mas venci a
vergonha ao recordar todas as vezes em que a vi em ação, seja por meu
livro, seja pela procura da casa em Florença. Era uma mulher que gostava de
se ocupar das coisas. Se precisava de algo, pegava o telefone e, peça por
peça, montava uma corrente que alcançava seu objetivo. Sabia pedir de um
jeito que era impossível de negar. E superava com desenvoltura fronteiras
ideológicas, não respeitava hierarquias, ia atrás de faxineiras, empregados,
industriais, intelectuais, ministros, a todos se dirigindo com cordial
distanciamento, como se o favor que estava prestes a pedir na realidade ela
mesma o estivesse fazendo a eles. Entre mil desculpas envergonhadas pelo
incômodo que lhe estava causando, contei também a Adele sobre minha
amiga, detalhadamente, e ela ficou curiosa, se entusiasmou, se indignou. Por
fim me disse:
“Deixe-me pensar.”
“Claro.”
“Enquanto isso, posso lhe dar um conselho?”
“Claro.”
“Não seja tímida. Você é uma escritora, use seu papel, experimente-o,
lhe dê peso. Estamos vivendo tempos decisivos, tudo está indo pelos ares.
Participe, esteja presente. E comece por essa gentalha de suas bandas,
coloque-os contra a parede.”
“Como?”
“Escrevendo. Deixe Soccavo e gente como ele morrendo de medo.
Promete que vai fazer isso?”
“Vou tentar.”
E me passou o nome de um redator do Unità.
49.
Dei o dinheiro a Lila, que o contou por duas vezes com satisfação e quis
imediatamente me devolver a quantia que eu lhe emprestara. Pouco depois
Enzo chegou, tinha acabado de encontrar a pessoa especialista em
calculadores. Parecia contente, naturalmente dentro dos limites daquela sua
impassibilidade que, talvez até contra seus próprios desejos, estrangulava
emoções e palavras. Lila e eu penamos para tirar informações de sua boca,
mas por fim acabamos tendo um quadro bastante claro. O especialista tinha
sido de grande gentileza. De início reiterara que as apostilas de Zurique
eram dinheiro jogado fora, mas depois se deu conta de que Enzo era bom, a
despeito da inutilidade do curso. Dissera-lhe que a ibm estava prestes a
produzir na Itália, no estabelecimento de Vimercate, um computador
novíssimo, e que a filial de Nápoles tinha urgente necessidade de
perfuradores-verificadores, de operadores, de programadores-analistas.
Garantiu-lhe que, tão logo a empresa começasse os cursos de formação, ele
entraria em contato. Tomara nota de todos os seus dados.
“Parecia uma pessoa séria?”, quis saber Lila.
Para testemunhar a seriedade de seu interlocutor, Enzo apontou para
mim e disse:
“Sabia tudo sobre o noivo de Lila.”
“Como assim?”
“Falou que era filho de uma pessoa importante.”
Lila fez uma expressão de fastio. Obviamente sabia que o encontro
tinha sido arranjado por Pietro e que o sobrenome Airota tinha um peso no
bom êxito daquele encontro, mas me pareceu contrariada com o fato de que
Enzo precisasse saber disso. Pensei que o que a perturbava era a ideia de
que ele também me devesse alguma coisa, como se aquela dívida — que
entre mim e ela não podia ter nenhuma consequência, nem mesmo a
subalternidade da gratidão — pudesse, ao contrário, fazer mal a Enzo.
Apressei-me a dizer que o prestígio de meu sogro importava pouco, que o
especialista em computadores tinha deixado claro, inclusive para mim, que
só o ajudaria se ele fosse bom. Lila fez um gesto um tanto excessivo de
aprovação e exclamou:
“Ele é excelente.”
“Nunca vi um computador na vida”, disse Enzo.
“E daí? Mesmo assim aquele sujeito deve ter notado que você sabe
fazer as coisas.”
Ele pensou e por fim se dirigiu a Lila com uma admiração que, por um
instante, me causou inveja:
“Ficou impressionado com os exercícios que você me estimulou a
fazer.”
“É mesmo?”
“Sim. Especialmente o esquema de coisas do tipo passar roupa, bater
um prego.”
A partir daquele momento, os dois começaram a brincar recorrendo a
fórmulas que eu não entendia e que me excluíam. E de repetente me
pareceram um casal de apaixonados, muito felizes, com um segredo tão
secreto que era desconhecido até para eles mesmos. Revi o pátio de quando
éramos pequenas. Revi Enzo e ela enquanto combatiam pelo primado em
aritmética sob os olhos do diretor e da professora Oliviero. Revi-os
enquanto ele, que nunca chorava, se desesperava por a ter ferido com uma
pedra. Pensei: o modo de eles estarem juntos vem da parte melhor do bairro.
Talvez Lila tenha razão em querer voltar.
54.
Comecei a prestar atenção aos aluga-se, aos cartazes afixados aos portões
que anunciavam casas para locação. Enquanto isso, chegou — endereçado
não a minha família, mas a mim — o convite para a festa de casamento de
Gigliola Spagnuolo e Michele Solara. E, poucas horas depois, me veio
trazido em mãos outro convite: dessa vez se casavam Marisa Sarratore e
Alfonso Carracci, e tanto a família Solara quanto a Carracci se dirigiam a
mim com deferência: egrégia doutora Greco Elena. Os dois convites de
casamento me pareceram quase imediatamente uma boa ocasião para tentar
entender se era bom apoiar o retorno de Lila ao bairro. Planejei ir encontrar
Michele, Alfonso, Gigliola, Marisa, aparentemente só para lhes desejar
felicidades e explicar que os casamentos se realizariam quando eu já estaria
longe de Nápoles; mas, de fato, especialmente para descobrir se os Solara e
os Carracci ainda estavam querendo atazanar Lila. Alfonso me parecia a
única pessoa capaz de me falar de modo desapaixonado em que medida o
rancor de Stefano pela esposa ainda estava vivo. Quanto a Michele, apesar
de o detestar — ou talvez justamente por detestá-lo —, eu queria conversar
com ele calmamente sobre os problemas de saúde de Lila e fazê-lo entender
que, se ele se achava sabe-se lá o quê e zombava de mim como se eu fosse a
menininha de antigamente, agora eu tinha força suficiente para lhe complicar
a vida e os negócios, caso continuasse perseguindo minha amiga. Pus ambos
os convites na bolsa, não queria que minha mãe os visse e se ofendesse pela
reverência com que eu, e não ela e meu pai, era tratada. Tirei um dia inteiro
para me dedicar àqueles encontros.
O tempo não prometia boa coisa, levei o guarda-chuva, mas eu estava
de bom humor, queria caminhar, refletir, fazer uma espécie de saudação ao
bairro e à cidade. Por um hábito de estudante diligente, comecei pelo
encontro mais difícil, com Solara. Fui ao bar, mas não encontrei nem ele,
nem Gigliola, nem mesmo Marcello; me disseram que talvez estivessem na
nova loja do estradão. Dei uma passada lá com o passo da desocupada que
olha ao redor sem pressa. Tinha sido definitivamente apagada a memória da
gruta escura e profunda de dom Carlo aonde, quando pequena, eu ia comprar
sabão líquido e outras coisas para a casa. Das janelas do terceiro andar
descia um letreiro enorme, disposto na vertical, Tutto per tutti, que chegava
até a entrada ampla. A loja estava cheia de luzes, apesar de ser dia, e
dispunha de todo tipo de mercadoria, o triunfo da abundância. Achei o irmão
de Lila, Rino, muito mais gordo. Ele me tratou com frieza, disse que ali
dentro o patrão era ele, que não sabia nada dos Solara. Se está procurando
Michele, vá à casa dele — disse hostil, virando-me as costas como se
tivesse algo urgente a fazer.
De novo caminhei pelas ruas e fui até o bairro novo, onde eu sabia que
toda a família Solara tinha comprado anos antes uma casa enorme. Quem
abriu a porta foi a mãe, Manuela, a agiota, que eu não via desde os tempos
do casamento de Lila. Senti que estava me observando pelo postigo.
Espreitou demoradamente e então puxou o trinco e surgiu na moldura da
porta, em parte imersa no breu da casa, em parte corroída pela luz que vinha
do janelão das escadas. Tinha como que secado. A pele estava repuxada
sobre os ossos grandes, tinha uma pupila luminosíssima e a outra quase
apagada. Nas orelhas, no pescoço, na roupa escura que dançava sobre seu
corpo cintilavam ouros, como se estivesse preparada para uma festa. Tratou-
me com polidez, quis que eu entrasse, que tomasse um café. Michele não
estava, soube que tinha outra casa, em Posillipo, onde passaria a viver
definitivamente depois do casamento. Estava lá com Gigliola, decorando a
casa.
“Vão deixar o bairro?”, perguntei.
“Claro.”
“Por Posillipo?”
“Seis quartos, Lenu, três com vista para o mar. Eu teria preferido o
Vomero, mas Michele quis fazer tudo da própria cabeça. De todo modo, tem
um ar pela manhã, tem uma luz, que você não pode imaginar.”
Fiquei surpresa. Jamais pensei que os Solara se afastariam da zona de
suas transações, da toca onde escondiam o butim. No entanto, justamente
Michele, o mais esperto, o mais ávido da família, ia morar em outro local,
no alto, em Posillipo, de frente para o mar e o Vesúvio. A mania de grandeza
dos dois irmãos realmente crescera, o advogado tinha razão. Mas naquele
momento a notícia me alegrou, fiquei contente de que Michele saísse do
bairro. Achei que isso favoreceria um eventual retorno de Lila.
55.
Assim passou aquele dia longo, sem chuva, mas escuro. E nesse ponto
começou uma inversão de tendência que rapidamente converteu uma fase de
aparente crescimento da relação entre mim e Lila em desejo de abreviar e
voltar a cuidar de minha vida. Ou talvez já tivesse começado antes, em
minúsculos detalhes que, ao me atingirem, eu mal notara, mas agora
começavam a acumular-se. O périplo tinha sido útil, e no entanto voltei
descontente para casa. Que amizade era essa minha e de Lila, se ela por
tantos anos não me dissera nada sobre Alfonso, com quem sabia que eu tinha
uma ligação importante? Será possível que não se dera conta da dependência
absoluta de Michele quanto a ela, ou por motivos seus tinha decidido me
omitir isso também? Por outro lado, eu, quantas coisa eu lhe havia ocultado?
Passei o resto do dia imersa num caos de lugares, tempos, pessoas
várias: a inquieta dona Manuela, o vazio Rino, Gigliola na primeira
fundamental, Gigliola na segunda fundamental, Gigliola seduzida pela beleza
potente dos jovens Solara, Gigliola encantada com a Millecento, e Michele,
que atraía as mulheres tanto quanto Nino, com a diferença de que ele era
capaz de uma paixão absoluta, e Lila, Lila, que soubera suscitar aquela
paixão, um arrebatamento que não era nutrido apenas por ânsia de posse,
bravatas de periferia, vingança, vontade baixa, como ela tendia a afirmar,
mas era uma forma obsessiva de valorização da mulher, não devoção, não
subalternidade, mas sobretudo um amor masculino entre os mais refinados,
um sentimento complicado que sabia fazer de uma mulher, com
determinação, em certo sentido com ferocidade, a eleita entre as mulheres.
Me senti próxima de Gigliola, compreendi sua humilhação.
À noite encontrei Lila e Enzo. Não falei nada a respeito daquela
incursão que eu fizera por amor a ela e também para proteger o homem com
quem vivia. Mas aproveitei um momento em que Lila estava na cozinha
dando de comer ao menino para dizer a Enzo que ela pretendia voltar ao
bairro. Decidi não lhe esconder minha opinião. Falei que não me parecia
uma boa ideia, mas achava que tudo o que pudesse ajudá-la a estabilizar-se
— era saudável, tinha necessidade apenas de recuperar um equilíbrio —, ou
que ela julgasse que a ajudaria, devia ser encorajado. Tanto mais que o
tempo passara e, pelo que eu sabia, no bairro eles não estariam pior do que
em San Giovanni a Teduccio. Enzo deu de ombros.
“Não tenho nada contra. Vou acordar mais cedo de manhã e voltar um
pouco mais tarde à noite.”
“Vi que a velha casa de dom Carlo está para alugar. Os filhos foram
embora para Caserta e agora a viúva também quer ir morar com eles.”
“Quanto ela está pedindo?”
Disse a ele: no bairro os aluguéis eram mais baixos que em San
Giovanni a Teduccio.
“Tudo bem”, assentiu Enzo.
“De todo modo, vocês sabem que terão problemas.”
“Aqui também temos.”
“As dificuldades serão maiores, e as demandas também.”
“Vamos ver.”
“Vai ficar ao lado dela?”
“Enquanto ela quiser, sim.”
Fomos ver Lila na cozinha, falamos da casa de dom Carlo. Ela acabara
de brigar com Gennaro. Agora que o menino ficava mais com a mãe e menos
com a vizinha, estava desorientado, tinha menos liberdade, era forçado a
perder uma série de hábitos e se rebelava, exigindo aos cinco anos que a
mãe lhe desse de comer na boca. Lila começou a gritar, ele atirou longe o
prato que se espatifou no chão. Quando entramos na cozinha, ela já tinha lhe
dado um tapa. Disse-me de modo agressivo:
“Foi você que deu comida a ele fazendo aviãozinho com a colher?”
“Só uma vez.”
“Não devia.”
Respondi:
“Não vai acontecer mais.”
“Sim, nunca mais, porque depois você leva sua vida de escritora e eu
tenho que desperdiçar meu tempo com isso.”
Aos poucos se acalmou, enquanto eu limpava o piso. Enzo disse que,
para ele, procurar casa no bairro estava bem; eu falei do apartamento de
dom Carlo, sufocando minha mágoa. Ela ficou escutando sem vontade,
enquanto consolava o menino, e então reagiu como se fosse Enzo que
quisesse se mudar, como se fosse eu que pressionasse por aquela escolha.
Por fim nos disse: tudo bem, faço o que vocês quiserem.
No dia seguinte fomos todos ver a casa. Estava em péssimas condições,
mas Lila se entusiasmou: gostava dela por estar nas margens do bairro,
quase em frente ao túnel, e que das janelas se visse a bomba de gasolina do
noivo de Carmen. Enzo observou que, de noite, seriam incomodados pelos
caminhões que passavam no estradão e pelos trens do entroncamento. Porém,
como ela achou que os barulhos de nossa infância também eram bonitos, os
dois entraram em acordo com a viúva por um preço conveniente. A partir
daquele momento, todas as noites, em vez de voltar para San Giovanni a
Teduccio, Enzo se dirigia ao bairro para dedicar-se a uma série de trabalhos
que deviam transformar o apartamento numa habitação digna.
Já tínhamos chegado às vésperas de maio, a data de meu casamento se
aproximava, eu ia e vinha de Florença. Mas Lila, como se não levasse
minimamente em conta aquele prazo, me envolvia em compras para dar uma
arrumada definitiva na casa. Compramos uma cama de casal, uma caminha
para Gennaro, fizemos juntas o pedido de instalação do telefone. As pessoas
nos observavam nas ruas, alguns só cumprimentavam a mim, outros, a ambas,
outros fingiam não ver nenhuma das duas. Em todos os casos Lila parecia à
vontade. Uma vez encontramos Ada; estava sozinha, fez acenos cordiais e
seguiu adiante, como se tivesse pressa. Uma vez cruzamos com Maria, mãe
de Stefano: eu e Lila a cumprimentamos, ela virou a cara. Uma vez Stefano
em pessoa passou de carro e parou; saiu do automóvel, conversou
alegremente apenas comigo, perguntou sobre meu casamento, elogiou
Florença — onde tinha estado recentemente com Ada e a menina — e por
fim deu uma palmadinha em Gennaro, cumprimentou Lila com um gesto de
cabeça e foi embora. Uma vez vimos Fernando, pai de Lila: encurvado,
muito envelhecido, estava parado na frente da escola fundamental, e Lila se
agitou, disse a Gennaro que queria lhe apresentar o avô, e eu tentei detê-la,
mas ela quis ir mesmo assim, e Fernando fez como se a filha não estivesse
presente, mirou o neto por alguns segundos e escandiu: se encontrar sua mãe,
diga a ela que é uma puta, e foi embora.
Mas o encontro mais perturbador, ainda que no momento tenha parecido
o menos significativo, aconteceu dias antes de ela se transferir
definitivamente para o novo apartamento. Justo quando estávamos saindo de
casa topamos com Melina, que levava pela mão a neta Maria, filha de
Stefano e Ada. Estava com o ar alheado de sempre, mas bem-vestida, os
cabelos oxigenados, o rosto muito maquiado. Ela me reconheceu, mas não a
Lila, ou talvez de início tenha preferido falar apenas comigo. Dirigiu-se a
mim como se eu ainda fosse a namorada de seu filho, Antonio: disse que ele
voltaria logo da Alemanha e que sempre perguntava por mim nas cartas. Fiz-
lhe muitos elogios pelo vestido e pelo cabelo, me pareceu contente. Mas se
mostrou ainda mais contente quando elogiei sua neta, que, tímida, se
encolheu na saia da avó. Naquela altura, deve ter se sentido na obrigação de
elogiar Gennaro e se dirigiu a Lila: é seu filho? Só então pareceu recordar-
se dela, que até aquele momento a fixara sem dizer uma palavra, e deve ter
se lembrado de que era a mulher de quem sua filha Ada tirara o marido. Seus
olhos afundaram nas grandes olheiras, e ela disse, muito séria: Lina, como
você ficou feia e seca, é claro que Stefano tinha de deixá-la, os homens
querem carne sobre os ossos, senão não sabem onde meter as mãos e vão
embora. Então, com um movimento muito veloz da cabeça, dirigiu-se a
Gennaro e quase gritou, apontando a menina: sabe que esta aqui é sua irmã?
Deem um beijo um no outro, vamos, meu Deus, como vocês são lindos.
Gennaro beijou imediatamente a irmã, que se deixou beijar sem protestos, e
Melina, ao ver os dois rostos unidos, exclamou: os dois puxaram ao pai,
são idênticos. Depois daquela constatação, como se tivesse coisas urgentes
a fazer, sacudiu a neta e foi embora sem se despedir.
Durante todo aquele tempo Lila permaneceu muda. Mas entendi que lhe
ocorrera algo de muito violento, como na vez em que, ainda criança, tinha
visto Melina passar pelo estradão comendo uma barra de sabão. Assim que a
mulher e a menina se afastaram, ela teve um estremecimento, despenteou-se
freneticamente com uma mão, bateu as pálpebras e disse: vou ficar assim.
Depois tentou rearranjar os cabelos e murmurou:
“Escutou o que ela disse?”
“Não é verdade que você está feia e seca.”
“Quem está se lixando se sou feia ou seca, estou falando da
semelhança.”
“Que semelhança?”
“Entre as duas crianças: Melina tem razão, os dois são idênticos a
Stefano.”
“Que nada: a pequena, sim, mas Gennaro é diferente.”
Ela caiu na risada, depois de tanto tempo recuperou o riso malvado de
sempre. Reconfirmou:
“São como duas gotas d’água.”
58.
Torci para que a professora não tivesse me ouvido gritar. Entretanto esperei
que Nadia pulasse do colo de Pasquale e corresse para se sentar no sofá,
desejava ver ambos humilhados pela necessidade de fingir uma ausência de
intimidade. Notei que Lila também os observava irônica. Mas os dois
continuaram como estavam, Nadia até passou um braço no pescoço de
Pasquale como se temesse cair, dizendo à mãe, que tinha acabado de
aparecer na soleira: na próxima vez que tiver visitas, me avise. A professora
não respondeu e dirigiu-se a nós, fria: desculpem, me atrasei, vamos ao meu
escritório. Seguimos atrás dela, enquanto Pasquale afastava Nadia de si
murmurando com um tom que de repente me pareceu deprimido: vamos,
vamos pra lá.
Galiani abriu caminho pelo corredor murmurando irritada: o que
realmente me irrita é a cafonice. Depois nos fez entrar em um aposento
arejado com uma antiga escrivaninha, muitos livros, austeras cadeiras
estofadas. Assumiu um tom gentil, mas era evidente que estava lutando
contra o mau humor. Disse que estava feliz de me ver e de reencontrar Lila;
no entanto, a cada palavra, e entre as palavras, senti que ela estava cada vez
mais furiosa e desejei ir embora o mais depressa possível. Desculpei-me
pelo meu sumiço, falei de modo um tanto apressado sobre o esforço nos
estudos, sobre o livro, sobre as mil coisas que me assoberbaram, o noivado,
o casamento já próximo.
“Você vai se casar na igreja ou só no civil?”
“Só no civil.”
“Muito bem.”
Dirigiu-se a Lila, queria atraí-la para a conversa:
“Você se casou na igreja?”
“Sim.”
“É religiosa?”
“Não.”
“Então por que se casou na igreja?”
“Era assim que se fazia.”
“Não precisaríamos fazer as coisas só porque são feitas de certo jeito.”
“Fazemos tantas.”
“Vai ao casamento de Elena?”
“Ela não me convidou.”
Estremeci e falei imediatamente:
“Não é verdade.”
Lila deu um risinho:
“É verdade, ela tem vergonha de mim.”
O ar era irônico, mas me senti igualmente ferida. O que estava
acontecendo com ela? Por que antes dissera que eu estava errada na frente
de Nadia e Pasquale e agora falava aquela coisa antipática diante da
professora?
“Bobagem”, emendei e, para me acalmar, tirei meu livro da bolsa e o
entreguei a Galiani, dizendo: queria lhe dar isto. Ela o olhou por um instante
sem o enxergar, seguindo talvez um pensamento seu, e então me agradeceu,
disse que já o tinha, me devolveu o exemplar perguntando:
“Seu marido faz o quê?”
“Tem uma cátedra de literatura latina em Florença.”
“É bem mais velho que você?”
“Tem vinte e sete anos.”
“Tão jovem, e já com uma cátedra?”
“Ele é excelente.”
“Como se chama?”
“Pietro Airota.”
Galiani me olhou atentamente, como no colégio, quando eu era
sabatinada e dava uma resposta que ela considerava incompleta.
“Parente de Guido Airota?”
“Filho dele.”
Sorriu com explícita malícia.
“Belo casamento.”
“A gente se gosta.”
“Já começou a escrever outro livro?”
“Estou tentando.”
“Vi que você colabora com o Unità.”
“Poucas coisas.”
“Não escrevo mais para eles, é um jornal de burocratas.”
Passou de novo a Lila, pareceu que queria lhe demonstrar de todos os
modos sua simpatia. Disse:
“O que você fez na fábrica é notável.”
Lila fez uma expressão contrariada.
“Eu não fiz nada.”
“Não é verdade.”
Galiani se levantou, remexeu em uns papéis na escrivaninha, mostrou-
lhe umas folhas como se fossem uma prova irrefutável.
“Nadia deixou esse seu texto pela casa, e eu me permiti lê-lo. É um
trabalho corajoso, novo, muito bem escrito. Queria reencontrá-la para lhe
dizer isso pessoalmente.”
Segurava nas mãos as páginas de Lila de onde eu tinha tirado meu
primeiro artigo para o Unità.
60.
Na noite anterior à minha partida para Florença não consegui dormir. Dentre
todos os pensamentos dolorosos, o mais resistente dizia respeito a Pasquale.
As críticas dele me queimavam. Num primeiro momento as rejeitei em
bloco, mas agora oscilava entre a convicção de que não as merecia e a ideia
de que, se Lila dera razão a ele, talvez eu tivesse errado de fato. Por fim, fiz
algo que nunca havia feito: levantei da cama às quatro da manhã e saí de
casa sozinha, antes que amanhecesse. Estava muito infeliz, queria que me
acontecesse algo ruim, um evento que, punindo-me por minhas ações
equivocadas e meus maus pensamentos, também punisse Lila por reflexo. No
entanto nada me aconteceu. Caminhei longamente pelas ruas desertas, bem
mais seguras do que quando estavam lotadas. O céu ficou violeta. Cheguei
ao mar, uma folha acinzentada sob o céu pálido com raras nuvens de bordas
rosadas. A massa do Castel dell’Ovo estava nitidamente cortada em duas
pela luz, uma forma ocre resplandecente do lado do Vesúvio, uma mancha
marrom do lado de Mergellina e Posillipo. A rua ao longo do arrecife estava
vazia, o mar não tinha som, mas emanava um cheiro intenso. Quem sabe que
sentimento eu teria de Nápoles, de mim, se acordasse todas as manhãs não
no bairro, mas num daqueles edifícios à beira-mar. O que estou buscando?
Mudar meu nascimento? Mudar a mim mesma e também aos outros?
Repovoar esta cidade agora deserta de cidadãos sem o suplício da miséria
ou da avidez, sem rancor e sem fúrias, cidadãos capazes de gozar o
esplendor da paisagem como as divindades que um dia a habitaram?
Favorecer meu demônio, dar a ele uma boa vida e me sentir feliz? Eu tinha
usado o poder dos Airota, gente que há gerações lutava pelo socialismo,
gente que estava ao lado de pessoas como Pasquale e Lila, não porque eu
pensasse em consertar os problemas do mundo, mas porque estava em
condições de ajudar uma pessoa que eu amava e me parecera indesculpável
não o fazer. Tinha agido mal? Devia ter deixado Lila se virar? Nunca mais,
nunca mais moveria uma palha por ninguém. Parti, fui me casar.
62.
Me senti abandonada, mas com a impressão de que merecia aquilo: não era
capaz de garantir serenidade a minha filha. No entanto segui firme, embora
estivesse cada vez mais assustada. Meu organismo recusava o papel de mãe.
E por mais que eu rechaçasse a dor na perna, fazendo de tudo para ignorá-la,
a dor tinha voltado e crescia. Mas eu insistia, me esgotava cuidando de tudo.
Como o prédio não tinha elevador, eu subia e descia com a pequena dentro
do carrinho, ia fazer as compras, voltava carregada de sacolas, limpava a
casa, cozinhava, pensava: estou ficando feia e velha antes da hora, que nem
as mulheres do bairro. E, claro, sempre que estava particularmente
desesperada, telefonava para Lila.
Assim que ouvia a voz dela me vinha de gritar: mas o que foi que você
fez, estava indo tudo bem e agora, de uma hora para outra, está acontecendo
justamente o que você dizia, a menina está mal, eu estou mancando, como é
possível, não aguento mais. Mas conseguia me segurar a tempo e murmurara:
está tudo bem, a pequena dá um certo trabalho e por ora cresce pouco, mas é
maravilhosa, estou muito contente. Então, com falso interesse, passava a
perguntar por Enzo, por Gennaro, pelas relações dela com Stefano, com o
irmão, o bairro, se tinha tido outros problemas com Bruno Soccavo ou com
Michele. Ela respondia num dialeto pesado e agressivo, mas em geral sem
raiva. Soccavo — dizia — precisa se ferrar. E Michele, se eu topar com ele,
cuspo na cara. Quanto a Gennaro, agora se referia a ele explicitamente como
o filho de Stefano e dizia: é quadrado que nem o pai. E ria quando eu falava
é um menino tão agradável, disparava: você é uma mamãezinha tão boa,
fique com ele. Naquelas frases eu sentia o sarcasmo de quem conhecia,
graças quem sabe a que força oculta, o que de fato estava ocorrendo comigo,
e isso me dava rancor, mas eu redobrava a carga, insistia com meu teatrinho
— escute que vozinha linda a Dede tem, aqui em Florença é uma beleza,
estou lendo um livro interessante de Baran — e prosseguia assim até que ela
me forçava a terminar a encenação para me falar do curso que Enzo tinha
começado na ibm.
Falava com respeito apenas sobre ele, demoradamente, e logo em
seguida me perguntava de Pietro.
“Tudo bem com seu marido?”
“Tudo ótimo.”
“Eu também com Enzo.”
Quando desligava, sua voz deixava um rastro de imagens e de sons do
passado que durava horas em minha cabeça: o pátio, as brincadeiras
perigosas, a minha boneca que ela jogara no porão, as escadas escuras que
subimos para buscá-la com dom Achille, o casamento dela, sua generosidade
e sua maldade, como ela se apossara de Nino. Não tolera minha sorte, eu
pensava amedrontada, me quer ao lado dela, abaixo dela, ajudando-a em
suas coisas, em suas miseráveis guerras de bairro. Depois dizia a mim
mesma: como sou estúpida, de que me serviu estudar — e fazia de conta que
tudo estava sob controle. Para minha irmã Elisa, que me ligava
frequentemente, eu dizia que ser mãe era lindo. Para Carmen Peluso, que me
falava de seu casamento com o frentista do estradão, eu respondia: ah, que
bela notícia, desejo-lhe muitas felicidades, mande lembranças a Pasquale,
como ele está. Com minha mãe, que raramente telefonava, fingi estar
radiante, e somente numa ocasião acabei cedendo e lhe perguntando: o que
aconteceu com sua perna, por que você manca?; e ela respondeu: que te
importa, cuide de suas coisas.
Lutei durante meses, mantive sob vigilância as partes mais opacas de
mim. Às vezes me surpreendia rezando para Nossa Senhora, apesar de me
considerar ateia — e me envergonhava. Mais frequentemente, quando estava
sozinha em casa com a menina, lançava gritos terríveis, não palavras, apenas
sopro expelido com o desespero. Mas aquele período ruim não queria
passar, foi um tempo longo e atormentado. À noite, mancando, eu levava a
menina para lá e para cá pelo corredor e já não lhe sussurrava palavrinhas
sem sentido, a ignorava e tentava pensar em mim, sempre com um livro na
mão ou uma revista, mesmo sem conseguir ler quase nada. De dia, quando
Adele dormia placidamente — no início, tinha começado a chamá-la de
Ade[2], sem me dar conta do inferno concentrado naquelas duas sílabas, tanto
que, quando Pietro chamou minha atenção para isso, fiquei perturbada e
mudei para Dede —, eu tentava escrever para o jornal. Mas não tinha mais
tempo — e com certeza nem sequer vontade — de andar viajando por conta
do Unità. Assim, as coisas que eu escrevia perderam energia, tentava apenas
exibir minha habilidade formal e acabava em arabescos desprovidos de
substância. Uma vez rabisquei um artigo e o li a Pietro antes de ditá-lo para
a redação. Ele disse:
“É vazio.”
“Em que sentido?”
“São palavras, só isso.”
Me senti ofendida, ditei o artigo mesmo assim. Não o publicaram. E a
partir daquele momento, com um certo mal-estar, tanto a redação local
quanto a nacional começaram a recusar meus textos alegando problemas de
espaço. Sofri, me dei conta de que, como por violentos abalos provenientes
de profundezas inacessíveis, estava desmoronando rapidamente ao meu
redor tudo o que até pouco tempo atrás eu considerara uma condição de vida
e de trabalho já conquistada. Lia apenas para manter os olhos fixos num
livro ou revista, mas era como se eu parasse nos caracteres e não tivesse
mais acesso aos significados. Duas ou três vezes topei por acaso com artigos
de Nino, mas o fato de lê-los não me deu o prazer habitual de imaginá-lo, de
ouvir sua voz, de usufruir seus pensamentos. Fiquei contente por ele, claro:
se escrevia, isso queria dizer que estava bem, vivia a vida dele quem sabe
onde, quem sabe com quem. Mas eu olhava a assinatura, lia poucas linhas e
me retraía, sempre como se cada frase dele, preto no branco, tornasse minha
situação ainda mais insuportável. Não tinha mais curiosidade, não conseguia
me cuidar nem mesmo no aspecto. De resto, me cuidar para quê? Não
encontrava ninguém, somente Pietro, que me tratava com uma gentileza
convencional, mas eu percebia que, para ele, eu era uma sombra. Às vezes
tinha a impressão de pensar com a cabeça dele e quase sentia seu
descontentamento. O casamento só tinha complicado sua existência de
estudioso, e isso justamente quando sua fama estava crescendo,
especialmente na Inglaterra e nos Estados Unidos. Eu o admirava, mas ao
mesmo tempo me ressentia. E conversava com ele sempre com uma mistura
de rancor e subalternidade.
Um dia eu impus a mim mesma: chega, esqueça o Unità, já é muito se
eu conseguir achar o caminho certo para um novo livro; assim que ele estiver
pronto, tudo vai se arranjar. Mas que livro? Eu garantia à minha sogra, à
editora, que já estava num bom ponto, mas era mentira; e eu mentia em cada
ocasião com tons cordialíssimos. Na verdade, eu só tinha cadernos cheios de
apontamentos frouxos, nada mais. Quando resolvia abri-los — de noite ou de
dia, a depender dos ritmos que Dede me impunha —, dormia em cima deles
sem nem perceber. Num final de tarde, Pietro voltou da universidade e me
encontrou em um estado pior do que aquele em que o flagrara tempos atrás:
eu estava na cozinha, mergulhada no sono, a cabeça apoiada na mesa; a
menina não tinha comido nada e gritava no quarto. O pai a encontrou no
berço, seminua, esquecida. Quando Dede se acalmou, agarrando-se
vorazmente à mamadeira, Pietro disse desolado:
“Será que você não teria ninguém que pudesse ajudar?”
“Nesta cidade, não, e você sabe muito bem.”
“Traga sua mãe para cá, sua irmã.”
“Não quero.”
“Então peça àquela sua amiga de Nápoles: você fez tudo por ela, e ela
vai fazer o mesmo por você.”
Senti um calafrio. Percebi com clareza, por uma fração de segundo, que
uma parte de mim tinha certeza de que Lila já estava em casa, presente: se
antes ela ficava à espreita dentro de mim, agora se infiltrava por dentro de
Dede, os olhos semicerrados, o cenho franzido. Sacudi a cabeça com
energia. Era preciso espantar aquelas imagens, aquela possibilidade: de que
eu estava me aproximando?
Pietro se conformou e telefonou para a mãe. Perguntou a ela, muito a
contragosto, se poderia passar um tempo com a gente.
66.
Agora estava claro para mim que, em seu ambiente de trabalho, Pietro era
considerado um homem maçante, totalmente alheio ao ativismo entusiástico
de sua família, um Airota falhado. E eu tinha aquela mesma opinião, o que
não favorecia nem um pouco nossa convivência e intimidade. Quando Dede
finalmente se aquietara e passara a dormir com regularidade, ele voltou à
nossa cama, mas assim que se encostava em mim eu me sentia incomodada,
tinha medo de engravidar de novo, queria que me deixasse dormir. Então o
afastava sem dizer uma palavra, bastava lhe dar as costas e, se ele insistisse
e pressionasse o sexo contra a camisola, lhe dava pancadinhas de leve na
perna com o calcanhar, um sinal para deixar claro: não quero, estou com
sono. Pietro se retraía insatisfeito, se levantava, ia estudar.
Uma noite nos desentendemos pela enésima vez sobre Clelia. Havia
sempre uma certa tensão quando era preciso pagar a ela, mas naquela
ocasião ficou evidente que Clelia era uma desculpa. Ele murmurou taciturno:
Elena, precisamos examinar nossa relação e fazer um balanço. Concordei
imediatamente. Falei que adorava sua inteligência e boa educação, que Dede
era maravilhosa, mas acrescentei que não queria mais filhos, que achava
insuportável o isolamento em que eu vivia, que desejava voltar a uma vida
ativa, que não tinha penado desde a infância para acabar encarcerada no
papel de esposa e de mãe. Discutimos, eu com dureza, ele com polidez. Não
protestou mais por causa de Clelia e finalmente capitulou. Resolveu comprar
preservativos, começou a convidar amigos para o jantar — ou melhor,
conhecidos, já que não tinha amigos —, resignou-se a permitir que eu fosse
de vez em quando com Dede a assembleias e manifestações, apesar do
sangue cada vez mais frequente nas ruas.
Entretanto, em vez de melhorar minha vida, aquele novo arranjo me
trouxe complicações. Dede se apegou cada vez mais a Clelia e, quando eu a
levava para fora, se aborrecia, ficava nervosa, puxava minhas orelhas, os
cabelos, o nariz, chamava por ela chorando. Convenci-me de que ela se
sentia melhor com a garota de Maremma do que comigo, e isso fez reemergir
a suspeita de que, por eu não a ter amamentado e por seu primeiro ano de
vida ter sido muito difícil, a seus olhos eu era uma figura sombria, a mulher
infame que a censurava em todas as ocasiões e enquanto isso maltratava, por
ciúmes, sua tia solar, a amiga de brincadeiras, a contadora de fábulas. Ela
me repelia até quando, com um gesto mecânico, eu limpava com um lenço o
ranho do seu nariz ou a boca dos restos de comida. Chorava e dizia que eu a
estava machucando.
Quanto a Pietro, os preservativos arrefeciam ainda mais sua
sensibilidade, para chegar ao orgasmo precisava de um tempo ainda maior
do que em geral lhe era necessário, causando-lhe sofrimento e me fazendo
sofrer. Às vezes deixava que ele me pegasse de lado, tinha a impressão de
sentir menos dor assim, e enquanto ele me assestava aqueles golpes
violentos, eu agarrava sua mão e a levava até meu sexo, esperando que
entendesse que eu queria ser tocada. Mas ele parecia incapaz de fazer ambas
as coisas e, como preferia a primeira, esquecia-se quase imediatamente da
segunda, e, uma vez satisfeito, não parecia intuir que eu desejava uma parte
qualquer de seu corpo para, por minha vez, saciar o desejo. Depois que
obtinha seu prazer, fazia um carinho em meus cabelos e murmurava: vou
trabalhar um pouco. Quando se retirava, a solidão me parecia um prêmio de
consolo.
Às vezes, nas passeatas, observava com curiosidade os homens jovens
que se expunham, impávidos, a qualquer perigo, cheios de uma energia
alegre mesmo quando se sentiam ameaçados e se tornavam ameaçadores. Eu
sucumbia a seu fascínio, me sentia atraída por aquele calor febril. Mas me
considerava totalmente distante das garotas coloridas que estavam à volta
deles, eu era culta demais, usava óculos, era casada, sempre com o tempo
curto. Então voltava para casa descontente, tratava meu marido com frieza,
me sentia já velha. Somente em duas ocasiões sonhei de olhos abertos que
um daqueles jovens, conhecidíssimo em Florença, muito querido, se dava
conta de mim e me levava embora com ele, como acontecia quando,
garotinha, eu ficava constrangida e me negava a dançar, mas Antonio ou
Pasquale me pegavam pelo braço e me obrigavam mesmo assim.
Naturalmente isso nunca ocorreu. Ao contrário, foram os conhecidos que
Pietro começou a trazer para casa que complicaram as coisas. Eu penava
para preparar os jantares, bancava a mulher que sabe manter a conversa
animada e não me queixava, fui eu quem pedira a meu marido que
convidasse um pouco de gente. Mas logo percebi, incomodada, que aquele
ritual não se exauria em si mesmo: eu era atraída por qualquer homem que
me desse um pouco de corda. Alto, baixo, magro, gordo, feio, bonito, velho,
casado ou solteiro, se o hóspede elogiava uma observação minha, se
recordava meu livro com belas palavras, se chegava a entusiasmar-se com
minha inteligência, eu imediatamente o olhava com simpatia e em poucas
frases e olhares essa minha boa disposição se comunicava a ele. Então, se de
início se mostrava entediado, o homem se transformava em espirituoso,
acabava ignorando Pietro totalmente e multiplicava as atenções a mim. Cada
palavra dele se tornava cada vez mais alusiva e, ao longo da conversa, os
gestos e as atitudes se faziam mais íntimas. Tocava-me o ombro com a ponta
dos dedos, roçava minha mão, punha os olhos nos meus formulando frases
suspirosas, batia os joelhos nos meus, chocava a ponta dos sapatos contra os
meus.
Naqueles momentos eu me sentia bem, me esquecia da existência de
Pietro e de Dede, o rastro das obrigações insuportáveis que arrastavam atrás
de si. Temia apenas o momento em que o convidado fosse embora e eu
recaísse na esqualidez da casa: dias inúteis, preguiça, raivas disfarçadas
pela docilidade. Por isso mesmo eu me excedia: a excitação me levava a
falar muito e em voz alta, cruzava as pernas buscando descobri-las o mais
possível, desabotoava num gesto irrefletido um botão da blusa. Era eu
mesma quem encurtava as distâncias, como se uma parte de mim estivesse
certa de que, aderindo de algum modo àquele estranho, um pouco do bem-
estar que eu sentia naquele momento permaneceria em meu corpo e, quando
ele deixasse o apartamento, sozinho, com a mulher ou uma companheira, eu
sentiria menos a depressão, o vazio por trás da exibição de sentimentos e de
ideias, a angústia do fracasso.
Na realidade, depois, sozinha na cama enquanto Pietro estudava, me
sentia simplesmente estúpida e me desprezava. Porém, por mais que eu
resistisse, não conseguia mudar. Tanto mais que aqueles homens saíam
convencidos de terem me fisgado e, em geral, ligavam no dia seguinte,
inventando desculpas para me encontrar. Eu aceitava. Mas, assim que
chegava ao encontro, ficava assustada. O simples fato de estarem excitados
— mesmo tendo, digamos, trinta anos a mais que eu ou sendo casados —
apagava sua autoridade, anulava o papel de salvador que eu lhes atribuíra, e
o próprio prazer que sentira durante o jogo de sedução resultava num
equívoco infame. Perguntava a mim mesma, perdida: por que me comportei
daquela maneira, o que está acontecendo comigo? E passava a dar mais
atenção a Dede e a Pietro.
Mas na primeira oportunidade tudo recomeçava. Eu devaneava,
escutava em alto volume músicas que ignorara quando mocinha, não lia, não
escrevia. Sobretudo lamentava cada vez mais o fato de, por culpa da minha
autodisciplina em tudo, eu ter perdido a alegria de me desregrar, que, ao
contrário, as mulheres de minha idade e do ambiente que agora frequentava
davam mostras de ter usufruído e estarem usufruindo. Nas vezes, por
exemplo, em que Mariarosa aparecia em Florença, ora por razões de estudo,
ora por reuniões políticas, vinha dormir conosco com homens sempre
diferentes, às vezes com amigas, e usava drogas, as oferecia a seus
companheiros e a nós e, se Pietro se irritava e ia se fechar no quarto, eu ao
contrário ficava fascinada, me recusava insegura a provar fumo ou ácido —
tinha medo de passar mal —, mas continuava conversando com ela e seus
amigos até tarde da noite.
Falava-se de tudo, as discussões eram frequentemente violentas, eu
tinha a impressão de que a boa língua que me esforçara para adquirir tivesse
se tornado inadequada. Preciosa demais, limpa demais. Olha como a
linguagem de Mariarosa se modificou — eu pensava —, ela quebrou as
pontes com a educação que teve, é desbocada. Agora a irmã de Pietro se
expressava pior do que eu e Lila na infância. Não pronunciava um
substantivo que não fosse precedido de “porra”. Onde eu coloquei a porra
do isqueiro, onde está a porra do cigarro? Lila nunca deixou de falar assim;
e eu, o que devia fazer, voltar a ser que nem ela, voltar ao ponto de partida?
Então por que me esforçara tanto?
Ficava observando minha cunhada. Gostava de como ostentava
solidariedade a mim e de como, ao contrário, deixava em apuros o irmão, os
homens que trazia para casa. Uma noite interrompeu bruscamente a conversa
para dizer ao jovem que a acompanhava: chega, vamos trepar. Trepar. Pietro
tinha inventado um vocabulário infantil de boa família para coisas
relacionadas ao sexo, eu o assimilara e o usava em lugar do sórdido
vocabulário dialetal que conhecia desde a primeira infância. Mas agora,
para se sentir de fato no mundo em mutação, era preciso repor as palavras
obscenas em circulação e dizer: quero que me coma, que me foda assim e
assado? Inimaginável com meu marido. No entanto os poucos homens que eu
frequentava, todos cultíssimos, se travestiam à vontade de populacho, se
divertiam com mulheres que se fingiam de vadias, pareciam gozar ao lidar
com uma senhora como se ela fosse uma prostituta. A princípio eram muito
formais, contidos. Mas não viam a hora de se lançar a uma escaramuça que
passasse do implícito ao explícito, ao cada vez mais explícito, num jogo de
liberdades em que o recato feminino era considerado um sinal de bom-
mocismo hipócrita. Em vez disso, franqueza, naturalidade. Essas eram as
qualidades da mulher liberada, e eu me esforçava para me adequar. Mas,
quanto mais me adequava, mais me sentia seduzida pelo meu interlocutor.
Em dois casos, tive a impressão de estar apaixonada.
69.
Sobre aborto, com Pietro, nem ousei falar — estava muito feliz que eu lhe
desse outro filho —, e de resto eu também tinha medo de tentar aquela via,
só a palavra me dava dor de estômago. Quem mencionou o aborto foi Adele,
por telefone, mas logo saí pela tangente com frases do tipo: Dede precisa de
companhia, crescer sozinho é ruim, é melhor dar um irmãozinho ou irmãzinha
a ela.
“E o livro?”
“Estou num bom ponto”, menti.
“Vai me deixar ler?”
“Claro.”
“Estamos todos esperando.”
“Eu sei.”
Eu estava em pânico e, quase sem refletir, tive uma iniciativa que
espantou muito Pietro, talvez até a mim. Telefonei para minha mãe, disse que
estava esperando outro filho, perguntei se ela gostaria de passar um tempo
em Florença. Resmungou que não podia, que precisava cuidar de meu pai, de
meus irmãos. Gritei para ela: isso quer dizer que, por culpa sua, não vou
mais escrever. E quem se importa, respondeu ela, já não lhe basta levar uma
vida de madame? E pôs o fone no gancho. Mas cinco minutos depois Elisa
telefonou. Eu cuido da casa, ela disse, mamãe viaja amanhã.
Pietro foi buscar minha mãe de carro na estação, o que a deixou
orgulhosa, a fez se sentir amada. Assim que colocou os pés dentro de casa,
listei a ela uma série de regras: não mudar a ordem das coisas em meu
quarto e no de Pietro; não mimar Dede; nunca se intrometer em minha
relação com Pietro; ficar de olho em Clelia, mas sem entrar em conflito com
ela; considerar-me uma estranha e não me perturbar em hipótese nenhuma;
ficar na cozinha ou em seu quarto se eu recebesse hóspedes. Eu já estava
resignada à ideia de que ela não respeitaria nenhuma dessas regras, mas,
como se o medo de estar longe tivesse modificado sua natureza, no intervalo
de poucos dias ela se reduziu a uma serva dedicada, que acudia todas as
necessidades da casa e resolvia qualquer problema com decisão e
eficiência, sem jamais incomodar Pietro ou a mim.
De quando em quando ia a Nápoles, e logo sua ausência me fazia sentir
exposta à casualidade, com medo de que não voltasse mais. Mas ela sempre
voltou. Me contava as novidades do bairro (Carmen estava grávida, Marisa
tinha tido um menino, Gigliola estava dando um segundo filho a Michele
Solara, não falava nada de Lila para evitar conflitos) e depois se tornava
uma espécie de espírito da casa que, invisível, garantia a todos nós a roupa
de cama limpa e bem passada, refeições com os sabores da infância, um
apartamento sempre brilhando, uma ordem que, apenas perturbada, se
recompunha com uma pontualidade maníaca. Pietro pensou em tentar mais
uma vez se ver livre de Clelia, e minha mãe se mostrou de acordo. Fiquei
furiosa, mas em vez de atacar meu marido fiz um escândalo com ela, que se
retirou para o quarto sem reclamar. Pietro me recriminou e fez tudo para que
eu me reconciliasse com minha mãe, o que ocorreu logo e fez bem a todos.
Ele a adorava, dizia que era uma mulher muito inteligente, muitas vezes
ficava na cozinha com ela, depois do jantar, conversando. Dede a chamava
de vovó e se ligou a tal ponto a ela que se incomodava quando Clelia
aparecia. Pronto, me disse, está tudo em ordem, agora você não tem
desculpas. E me forçou a me concentrar no livro.
Revi os apontamentos. Definitivamente me convenci de que devia
mudar de rumo. Queria deixar para trás o que Franco tinha considerado uma
história de paixõezinhas e escrever algo mais adequado ao tempo de
manifestações de rua, mortes violentas, repressão policial, temores de golpe
de estado. Não achei nada que fosse além de umas dez paginazinhas
desinteressantes. Então o que me faltava? Difícil dizer. Talvez Nápoles, o
bairro. Ou uma imagem como a da Fada azul. Ou um amor. Ou uma voz a
quem atribuir autoridade e que me desse um rumo. Passava horas inutilmente
na escrivaninha, lia uns romances, nunca saía do quarto com medo de ser
capturada por Dede. Como eu era infeliz. Ouvia a voz da menina no
corredor, a de Clelia, o passo manco de minha mãe. Levantava a saia, olhava
a barriga que já começava a crescer, expandindo por todo o organismo um
bem-estar indesejado. Pela segunda vez estava grávida e, no entanto, vazia.
71.
Foi então que comecei a telefonar para Lila não esporadicamente, como
tinha ocorrido até aquele momento, mas quase todos os dias. Fazia caras
ligações interurbanas com o único objetivo de me aninhar em sua sombra,
fazer passar o tempo da gravidez, esperar que, segundo um velho costume,
ela pusesse minha fantasia em movimento. Naturalmente eu tomava cuidado
para não dizer coisas erradas, e esperava que ela fizesse o mesmo. Agora
sabia com clareza que só era possível cultivar nossa amizade com a
condição de frearmos nossa língua. Por exemplo, eu não podia confessar a
ela que uma parte sombria de mim temera que ela tivesse feito malefícios
contra mim a distância, que essa parte ainda esperava que ela de fato
estivesse doente e morresse. Por exemplo, ela não podia revelar os reais
motivos que a levavam a me tratar de modo áspero, frequentemente ofensivo.
Por isso nos limitávamos a falar de Gennaro, que era um dos melhores
alunos da escola fundamental, de Dede, que já sabia ler — e o fazíamos
como duas mães, com as normais gabolices de mãe. Ou então mencionava
minhas tentativas de escrever, mas sem dramatizar, dizendo apenas: estou
trabalhando, não é fácil, a gravidez me consome um pouco. Ou tentava
entender se Michele continuava lhe fazendo o cerco, para prendê-la de algum
modo e se apossar dela. Ou às vezes tentava saber se ela gostava de certos
atores do cinema ou da tv, levá-la a me dizer se era atraída por homens
diferentes de Enzo, e se fosse o caso confessar que também eu desejava
outros homens que não Pietro. Mas parecia que esse último assunto não lhe
interessava. Sobre os atores, dizia quase sempre: quem é? Nunca vi nem no
cinema, nem na televisão. Mas bastava que eu mencionasse o nome de Enzo,
e ela desandava a falar sobre a história dos computadores, confundindo-me
com um jargão incompreensível.
Eram relatos entusiásticos, e às vezes, na hipótese de que pudessem ser
úteis no futuro, eu tomava nota enquanto ela falava. Enzo tinha conseguido,
agora trabalhava numa pequena fábrica de tecidos a cinquenta quilômetros
de Nápoles. A empresa havia alugado uma máquina da ibm, e ele era o
analista de sistemas. Sabe que trabalho é esse? Ele esquematiza os
processos manuais, transformando-os em diagramas de fluxo. A unidade
central da máquina é do tamanho de um armário de três portas, e a memória é
de 8 KByte. Que calor que faz, Lenu, você não pode imaginar: o computador
é pior que uma estufa. Máxima abstração misturada a suor e muito fedor. Me
falava de núcleos de ferrita, de anéis atravessados por um cabo elétrico cuja
tensão determinava sua rotação, 0 ou 1, e um anel era um bit, e o conjunto de
oito anéis podia representar um byte, isto é, um caractere. Enzo era o
protagonista absoluto da verborragia de Lila. Dominava como um deus toda
aquela matéria, manipulava aquele vocabulário e sua substância dentro de
uma grande sala com grandes condicionadores de ar, um gigante que
conseguia que a máquina fizesse tudo o que as pessoas faziam. Estou sendo
clara?, me perguntava de vez em quando. Eu respondia vacilante que sim,
mas não tinha ideia do que ela estava falando. Percebia apenas que ela
notava quão obscuro era tudo aquilo para mim, e isso me envergonhava.
O entusiasmo dela cresceu de interurbano em interurbano. Enzo agora
ganhava 148 mil liras por mês, precisamente, cento e quarenta e oito.
Porque era excepcional, o homem mais inteligente que já tinha conhecido.
Tão competente, tão rápido, que logo se tornou indispensável e encontrou um
modo de a contratarem também, como ajudante. Sim, esta era a novidade:
Lila estava trabalhando de novo, e dessa vez estava gostando. Ele é o chefe,
Lenu, e eu, a subchefe. Deixo Gennaro com minha mãe — às vezes até com
Stefano — e vou para a fábrica todas as manhãs. Eu e Enzo estudamos a
empresa ponto por ponto. Fazemos o que os funcionários fazem para
entender bem o que devemos inserir no computador. Assinalamos, por
exemplo, os movimentos contábeis, colamos os registros nas faturas,
verificamos as cadernetas dos aprendizes, os cartões de presença, e depois
transformamos tudo em diagramas e furos nas fichas. Sim, sim, também
trabalho como perfuradora: fico lá com outras três mulheres, e me pagam 80
mil liras. Cento e quarenta e oito mais oitenta dá duzentas e vinte e oito,
Lenu. Eu e Enzo estamos ricos, e vai ficar ainda melhor daqui a uns meses,
porque o patrão se deu conta de que sou capaz e quer que eu faça um curso.
Viu a vida que estou levando? Está contente?
72.
Uma noite foi ela quem me ligou, disse que tinha acabado de receber uma
péssima notícia: tinham assassinado a pauladas, bem na saída da escola, na
piazza del Gesù, Dario, o estudante sobre quem ela tinha me falado tempos
atrás, o garoto do comitê que distribuía panfletos na frente da Soccavo.
Ela me pareceu preocupada. Passou a me falar da capa de chumbo que
pesava sobre o bairro e em toda a cidade, agressões e mais agressões. Por
trás de muitos daqueles massacres — falou — estavam os fascistas de Gino
e, por trás de Gino, estava Michele Solara, nomes que, ao pronunciá-los,
carregou com a velha repulsa e com uma raiva nova, como se por trás do que
dizia houvesse muito mais coisa que silenciava. Pensei: como é que está tão
certa da responsabilidade deles? Talvez tenha mantido contato com os
estudantes de via dei Tribunali, talvez não dedicasse a vida apenas aos
computadores de Enzo. Escutei sem a interromper, enquanto ela fazia as
palavras escorrerem com seu modo cativante. Narrou com riqueza de
detalhes sobre um certo número de expedições de milicianos que partiam da
seção do Movimento Social Italiano em frente à escola fundamental,
espalhavam-se pelo Rettifilo, pela piazza Municipio, subiam pelo Vomero e
atacavam companheiros com barras de ferro e facadas. Até Pasquale tinha
sido espancado duas vezes, arrebentaram-lhe os dentes da frente. E certa
noite Enzo saiu na mão com o próprio Gino, bem na entrada de nosso prédio.
Então parou, mudou de tom. Você se lembra — perguntou — do clima
do bairro quando a gente era pequena? Está pior, ou melhor, é igual. E citou
o sogro, dom Achille Carracci, o agiota, o fascista, e Peluso, o marceneiro, o
comunista, e a guerra que tinha acontecido bem diante dos nossos olhos. A
partir daquele momento deslizamos lentamente para dentro daquela época,
eu recordava um detalhe, ela acrescentava outro. Até que Lila acentuou a
qualidade visionária das frases e começou a me narrar o assassinato de dom
Achille tal como fazia na infância, com fragmentos de realidade e muitas
fantasias. A facada no pescoço, o longo esguicho de sangue que manchara a
panela de cobre. Excluiu, como já fizera na época, que o assassino fosse o
marceneiro. Disse com convicção adulta: a justiça de então, como aliás a de
hoje, logo se contentou com a pista mais óbvia, a que levava ao comunista.
Então exclamou: mas quem disse que foi realmente o pai de Carmen e de
Pasquale? E quem disse que foi um homem, e não uma mulher? Eu, como
numa brincadeira de infância, quando parecíamos em tudo complementares,
a acompanhei passo a passo, sobrepondo minha voz excitada à dela, e tive a
impressão de que juntas — as meninas de então e as adultas de hoje —
estávamos chegando a uma verdade deixada por duas décadas
impronunciável. Pense um pouco, me disse, quem realmente ganhou com
aquele homicídio, com quem terminou o controle da agiotagem que era
comandado por dom Achille? Sim, com quem? Encontramos a resposta em
uníssono: quem ganhou foi a mulher do caderninho vermelho, Manuela
Solara, a mãe de Marcello e de Michele. Foi ela quem matou dom Achille,
dissemos exaltadas, e então murmuramos, primeiro eu, depois ela, com
tristeza: mas o que é que estamos falando, chega, ainda somos duas meninas,
não vamos crescer nunca.
73.
Então começou a espera, uma espera que se revelou bem mais ansiosa do
que a do bebê que chutava minha barriga. Contei cinco dias seguidos, Adele
não deu notícias. No sexto dia, durante o jantar, enquanto Dede se esforçava
para comer sozinha, querendo me agradar, e a avó morria de vontade de
ajudá-la, mas não o fazia, Pietro me perguntou:
“Você terminou seu livro?”
“Terminei.”
“E por que o deu para ler à minha mãe, e não a mim?”
“Você está muito ocupado, não queria incomodar. Mas, se quiser ler,
tem uma cópia em minha escrivaninha.”
Não respondeu. Esperei um pouco e perguntei:
“Adele lhe disse que mandei o texto para ela?”
“Quem você acha que poderia ter sido?”
“Ela já leu?”
“Sim.”
“E o que achou?”
“Ela mesma vai lhe dizer, é assunto de vocês.”
Ele reagira mal. Depois do jantar, transferi o datiloscrito de minha
escrivaninha para a dele, pus Dede para dormir, assisti a televisão sem ver
nem ouvir nada e por fim fui deitar. Não consegui pregar o olho: por que
Adele falara do livro com Pietro, mas ainda não tinha telefonado para mim?
No dia seguinte — 30 de julho de 1973 — fui checar se meu marido tinha
começado a ler: o texto tinha ido parar sob a pilha de livros nos quais ele
trabalhara grande parte da noite, era evidente que não o tinha nem mesmo
folheado. Fiquei nervosa, gritei para Clelia que cuidasse de Dede, que não
ficasse de braços cruzados deixando tudo por conta de minha mãe. Fui muito
dura, e minha mãe evidentemente tomou aquilo como um sinal de afeto.
Tocou minha barriga para me acalmar, perguntou:
“Se for outra menina, que nome você vai dar?”
Eu estava pensando em outras coisas, a perna estava doendo, respondi
sem pensar:
“Elsa.”
Ela se anuviou, me dei conta tarde demais que esperava outra resposta:
demos o nome da mãe de Pietro a Dede, e se dessa vez também nascer uma
menina vamos dar a ela o seu nome. Tentei me justificar, mas sem empenho.
Disse: mãe, tente entender, você se chama Immacolata, não posso dar um
nome assim à minha filha, eu não gostaria. Ela resmungou: e por quê? Elsa
por acaso é mais bonito? Repliquei: Elsa é que nem Elisa, nesse caso posso
pôr o nome de minha irmã, assim você deve ficar contente. Não me dirigiu
mais a palavra. Ah, como eu estava cansada de tudo. Fazia cada vez mais
calor, eu suava em bicas, não suportava minha barriga pesada, não suportava
meu passo manco, não suportava nada, nada, nada.
Finalmente, pouco antes da hora do almoço, Adele telefonou. A voz não
tinha a costumeira inflexão irônica. Falou com lentidão e gravidade, senti
que cada palavra lhe custava um grande esforço, disse com um largo rodeio
de frases e muitas ressalvas que o livro não era bom. Porém, quando tentei
defender o texto, ela parou de buscar fórmulas que não me ferissem e se
tornou explícita. A protagonista era antipática. Não havia personagens, só
marionetes. Situações e diálogos eram amaneirados. A escrita queria ser
moderna, mas era apenas confusa. Todo aquele ódio se tornava
desagradável. O final era grosseiro, de western à italiana, não estava à altura
de minha inteligência, minha cultura, meu talento. Conformei-me ao silêncio
e escutei suas críticas até o fim. Concluiu dizendo: o romance anterior era
vivo, novíssimo, já este é velho nos conteúdos e escrito de modo tão
pretensioso que as palavras parecem vazias. Respondi baixinho: talvez na
editora eles sejam mais benevolentes. Ela recrudesceu e replicou: se quiser
mandar para eles, faça isso, mas tenho certeza de que vão considerá-lo
impublicável. Eu não soube o que responder, apenas murmurei: tudo bem,
vou pensar, tchau. Mas ela me deteve, mudou de registro rapidamente,
passou a falar com afeto de Dede, de minha mãe, de minha gravidez, de
Mariarosa, que a estava deixando furiosa. Então me perguntou:
“Por que você não deu o romance a Pietro?”
“Não sei.”
“Ele poderia ter lhe dado uns conselhos.”
“Duvido.”
“Você não tem nenhum apreço por ele?”
“Não.”
Depois, trancada em meu quarto, me desesperei. Tinha sido humilhante,
eu não conseguia tolerar. Não comi quase nada, dormi com a janela fechada
apesar do calor. Às quatro da tarde senti as primeiras dores. Não disse nada
a minha mãe, peguei a bolsa que tinha preparado havia tempos, entrei no
carro e dirigi até a clínica, esperando morrer no caminho, eu e meu segundo
filho. Mas tudo deu certo. Senti dores terríveis e em poucas horas tive outra
menina. Já na manhã seguinte Pietro fez de tudo para dar à nossa segunda
filha o nome de minha mãe, que lhe parecia uma homenagem necessária. De
péssimo humor, rebati que estava cansada de seguir a tradição, reiterei que
ela devia se chamar Elsa. Quando voltei da clínica para casa, a primeira
coisa que fiz foi ligar para Lila. Não disse que tinha acabado de dar à luz,
perguntei apenas se podia mandar o romance para ela.
Por alguns segundos ouvi sua respiração leve, até que murmurou:
“Leio quando sair.”
“Preciso de seu parecer o mais rápido possível.”
“Não abro um livro há séculos, Lenu, não sei mais ler, não sou capaz.”
“Por favor, estou pedindo.”
“Você publicou o outro sem problemas: por que este não?”
“Porque o outro nem me parecia um livro.”
“Só posso lhe dizer se gostei ou não.”
“Tudo bem, é suficiente.”
75.
Enquanto aguardava que Lila fizesse sua leitura, soube-se que em Nápoles
havia uma epidemia de cólera. Minha mãe se agitou exageradamente, depois
ficou absorta, acabou quebrando uma sopeira de que eu gostava muito,
anunciou que precisava voltar para casa. Logo intuí que, se a cólera tinha
algum peso em sua decisão, o fato de eu ter recusado dar o nome dela a
minha segunda filha não era algo secundário. Tentei segurá-la, mas ela me
abandonou mesmo assim, quando eu ainda não havia me recuperado do parto
e a perna continuava doendo. Não suportava mais sacrificar meses e meses
da vida por minha causa, uma criatura que nascera dela sem nenhum respeito
ou reconhecimento: preferia ir correndo morrer de vibrião com o marido e
os filhos bons. No entanto, até a despedida, manteve a impassibilidade que
eu exigira: não se lamentou, não resmungou, não me jogou nada na cara.
Aceitou de bom grado que Pietro a acompanhasse de carro à estação. Sentia
que o genro gostava dela e provavelmente — pensei — sempre se controlara
não para me agradar, mas para não fazer feio diante dele. Só se comoveu
quando precisou se separar de Dede. No patamar da escada, perguntou à
menina em seu italiano forçado: está triste que vovó vai embora? Dede, que
estava vivendo aquela partida como uma traição, respondeu enfezada: não.
Fiquei com mais raiva de mim do que dela. Depois fui tomada de uma
fúria autodestrutiva e, poucas horas depois, demiti Clelia. Pietro ficou
espantado, se assustou. Disse-lhe irritada que não aguentava mais lutar ora
com o sotaque maremmano de Dede, ora com o napolitano de minha mãe:
queria voltar a ser dona de minha casa e de meus filhos. Na verdade, me
sentia culpada e tinha uma enorme necessidade de me punir. Com um prazer
desesperado, me abandonei à ideia de que seria esmagada pelas duas
meninas, pelos afazeres domésticos, pela perna doente.
Não tinha dúvida de que Elsa me submeteria a um ano não menos
terrível do que aquele vivido com Dede. No entanto, talvez porque tivesse
mais prática com recém-nascidos, talvez porque estivesse resignada a ser
uma mãe ruim e abandonara a ânsia de perfeição, a menina grudou em meu
peito sem problemas, entregando-se a longas mamadas e sonos
intermináveis. Consequentemente também dormi bastante naqueles primeiros
dias em casa, e para minha surpresa Pietro tratou de manter o apartamento
limpo, fez as compras, cozinhou, deu banho em Elsa e brincou com Dede,
que estava atordoada com o surgimento da irmãzinha e a partida da avó. A
dor na perna cessou de repente. E no fim das contas eu estava tranquila, até
que, num fim de tarde, enquanto cochilava, meu marido veio me acordar: sua
amiga de Nápoles está no telefone, disse. Corri para atender.
Lila tinha conversado bastante com Pietro, disse que não via a hora de
conhecê-lo pessoalmente. Ouvi sem vontade o que ela me dizia — Pietro era
sempre afável com quem não pertencia ao mundo de seus pais — e, como ela
se demorava em frases que me pareceram de uma alegria nervosa, estive a
ponto de gritar: dei a você a possibilidade de me fazer todo o mal possível,
vamos logo, fale, você ficou treze dias com o livro, me diga o que você
pensa sobre ele. Em vez disso, limitei-me a interrompê-la bruscamente:
“Você leu ou não?”
Ficou séria.
“Li.”
“E então?”
“É bom.”
“Bom como? O livro lhe pareceu interessante, divertido, tedioso?”
“Interessante.”
“Quanto? Muito, pouco?”
“Muito.”
“E por quê?”
“Pela história: dá vontade de ler.”
“E o que mais?”
“O que mais o quê?”
Fui dura, falei:
“Lila, eu preciso absolutamente saber como é esse troço que escrevi e
não tenho mais ninguém que me possa dizer isso, somente você.”
“É o que estou fazendo.”
“Não, não é verdade, você está me enrolando: você nunca falou de
modo tão superficial quanto agora.”
Houve um longo silêncio. Imaginei-a sentada de pernas cruzadas, ao
lado de uma feia mesinha onde estava apoiado o telefone. Talvez ela e Enzo
tivessem acabado de voltar do trabalho, talvez Gennaro estivesse brincando
ali por perto. Falou:
“Eu tinha dito a você que não sei mais ler.”
“Não é este o ponto: a questão é que preciso de você, e você não está
nem aí.”
Outro silêncio. Então resmungou algo que não entendi, talvez um
insulto. Disse com dureza, ressentida: eu faço um tipo de trabalho, você faz
outro, o que quer de mim, foi você que estudou, é você quem sabe como os
livros devem ser. Depois sua voz se rompeu e ela quase gritou: você não
deve escrever essas coisas, Lenu, você não é isso, nada do que li se parece
com você, é um livro feio, feio, feio — e o anterior também era.
Assim. Frases velozes e entrecortadas, como se a respiração suave de
repente se tornasse sólida e não conseguisse mais entrar e sair da garganta.
Senti dor de estômago, uma dor forte acima do ventre, que cresceu, mas não
pelo que ela dissera, e sim por como o dissera. Estava soluçando? Exclamei
ansiosa: Lila, o que foi, se acalme, vamos, respire. Não se acalmou. De fato,
eram soluços, pude ouvi-los nitidamente tão carregados de sofrimento que
não consegui sentir a ferida daquele feio, Lenu, feio, feio, nem me ofendi por
ter reduzido meu primeiro livro — o livro que vendera tanto, o livro do meu
sucesso, sobre o qual ela nunca se pronunciara de verdade — a um fracasso.
O que me fez mal foi seu choro. Eu não estava preparada, não esperava
aquilo. Teria preferido a Lila cruel, teria preferido seu tom pérfido. Mas
não, ela soluçava e não conseguia parar.
Me senti perdida. Tudo bem, pensei, escrevi dois livros ruins, mas e
daí?, esse sofrimento é bem mais grave. Então murmurei: Lila, por que esse
choro, eu é que devia estar chorando, pare com isso. Mas ela estrilou: por
que você me forçou a ler, por que me obrigou a dizer o que penso? Eu devia
guardar para mim. E eu: não, estou contente por você ter falado, lhe juro.
Queria que sossegasse, mas ela não conseguia, e continuou despejando em
mim frases desconexas: não me faça ler mais nada, não sou capaz, espero o
máximo de você, tenho certeza de que sabe fazer melhor, quero que você
faça melhor, é a coisa que mais desejo, pois quem sou eu se você não for
excelente, quem sou eu? Murmurei: não se preocupe, me diga sempre o que
pensa, só assim você pode me ajudar, e me ajudou desde que éramos
pequenas, eu sem você não sou capaz de nada. Ela finalmente sufocou os
soluços e sussurrou, fungando o nariz: não sei por que comecei a chorar, sou
mesmo uma cretina. Riu: não queria lhe dar um desgosto, tinha preparado
todo um discurso positivo, imagine que até o escrevi, queria dar uma boa
impressão. Insisti para que me mandasse o texto, disse: pode ser que você
saiba melhor que eu o que devo escrever. Nessa altura deixamos o livro de
lado, anunciei que Elsa tinha nascido, falamos de Florença, de Nápoles, da
cólera. Que cólera — ironizou —, não há nenhuma cólera, há apenas a
confusão de sempre e o medo de morrer na merda, mais medo que fatos, não
há fatos, comemos um monte de limões e ninguém mais caga.
Agora falava sem freios, quase alegre, tinha se livrado de um peso.
Então tornei a sentir a cilada em que eu estava — duas filhas pequenas, um
marido em geral ausente, o desastre do novo livro —, mas não fiquei
ansiosa, ao contrário, me senti leve, e fui eu mesma que reconduzi a
conversa ao meu fracasso. Tinha em mente frases do tipo: a corda
arrebentou, aquele seu fluxo que me influenciava positivamente secou, agora
estou realmente sozinha. Mas não falei nada. Em vez disso, confessei num
tom autoirônico que por trás do esforço daquele livro havia o desejo de
acertar as contas com o bairro, que tive a impressão de estar representando
as grandes mudanças que testemunhara, que o que de algum modo me
inspirou, me encorajou a escrevê-lo, tinha sido a história de dom Achille e
da mãe dos Solara. Ela caiu na risada. Disse que a face nojenta das coisas
não era suficiente para escrever um romance: sem imaginação não parecia
uma face verdadeira, mas uma máscara.
76.
Não sei bem o que me aconteceu depois. Ainda hoje, enquanto ponho ordem
naquele nosso telefonema, tenho dificuldade de relatar os efeitos dos soluços
de Lila. Se me estendo, tenho a impressão de enxergar sobretudo uma
espécie de gratificação incongruente, como se aquele choro, ao me confirmar
o afeto dela e a confiança que tinha nas minhas capacidades, tivesse acabado
por apagar o julgamento negativo sobre ambos os livros. Só muito mais tarde
me passou pela cabeça que aqueles soluços lhe permitiram liquidar meu
trabalho sem apelação, esquivar-se de meu ressentimento, impor-me um
objetivo tão alto — não a decepcionar — que paralisasse qualquer outra
tentativa de escrever. Mas repito que, por mais que me esforce em esmiuçar
aquele telefonema, não consigo dizer: ele esteve na origem disso ou daquilo,
foi um momento alto de nossa amizade ou, ao contrário, foi um dos
momentos mais mesquinhos. O certo é que Lila reforçou seu papel de
espelho de minhas incapacidades. O certo é que me senti mais disposta a
aceitar o fracasso, como se o parecer de Lila fosse muito mais autorizado —
mas também mais persuasivo e mais afetuoso — que o de minha sogra.
Alguns dias depois, telefonei para Adele e lhe disse: obrigada por ter
sido tão franca, me dei conta de que você tem razão, e agora tenho a
impressão de que meu primeiro livro também tinha muitos defeitos; acho que
preciso refletir, talvez eu não seja uma boa escritora, ou simplesmente
preciso de mais tempo. Minha sogra imediatamente me cobriu de elogios,
louvou minha capacidade de autocrítica, lembrou-me que eu tinha um
público e que esse público estava aguardando. Murmurei: sim, claro. E logo
em seguida guardei a última cópia do romance numa gaveta, pus de lado os
cadernos cheios de apontamentos e me deixei absorver pela cotidianidade. O
desgosto por aquele esforço inútil se estendeu também ao meu primeiro
livro, talvez até ao próprio uso literário da escrita. Assim que me ocorria
alguma imagem, uma frase sugestiva, me vinha uma sensação de mal-estar e
passava adiante.
Me dediquei à casa, às filhas, a Pietro. Não pensei nenhuma vez em
chamar Clelia de volta ou substituí-la por outra. Tornei a me encarregar de
tudo, e certamente o fiz para me entorpecer. Mas aconteceu sem esforço, sem
remorso, como se de repente eu tivesse descoberto que aquele era o modo
mais justo de empregar a vida e uma parte de mim me sussurrasse: chega de
grilos na cabeça. Dei aos trabalhos domésticos uma organização férrea e
cuidei de Dede e Elsa com uma alegria inesperada, como se, além do peso
do ventre, além do peso do livro, eu tivesse me livrado de outro peso, mais
oculto, que eu mesma era incapaz de nomear. Elsa confirmou ser uma
criaturinha tranquilíssima — tomava longos banhos serenos, mamava,
dormia, ria até durante o sono —, mas precisei dar muita atenção a Dede,
que odiava a irmã, acordava de manhã com um ar transtornado, contava que
a salvara ora do fogo, ora da água, ora do lobo, mas acima de tudo fingia ser
uma recém-nascida e pedia para chupar meus mamilos, imitava os vagidos
da irmã e de fato não se conformava em ser o que realmente era, uma menina
de quase quatro anos com uma linguagem muito desenvolvida, perfeitamente
autônoma em suas funções primárias. Tive o cuidado de lhe dar muito afeto,
de elogiar sua inteligência e sua eficiência, de convencê-la de que eu
precisava de sua ajuda em tudo, para fazer as compras, cozinhar, impedir
que a irmã fizesse estragos.
Enquanto isso, como estava aterrorizada com a possibilidade de
engravidar de novo, comecei a tomar a pílula. Engordei, me sentia inchada,
mas não tive coragem de parar: uma nova gravidez me assustava mais que
qualquer coisa. De resto, já não me importava com meu corpo como
antigamente. Achava que as duas meninas tinham decretado que eu não era
mais jovem, que ser marcada pelo cansaço — dar banho nelas, vesti-las,
tirar sua roupa, passear de carrinho, fazer as compras, cozinhar, uma no colo
e outra na mão, as duas no colo, tirar o ranho de uma, limpar a boca da outra,
em suma, as tensões de todo dia — testemunhasse minha maturidade de
mulher, que me transformar como as mães do bairro não fosse uma ameaça,
mas o curso natural das coisas. Tudo bem assim, dizia a mim mesma.
Pietro, que tinha cedido quanto à pílula depois de uma longa
resistência, me observava preocupado. Você está arredondando. O que são
essas manchas na pele? Temia que as meninas, eu, ele, todos nós ficássemos
doentes, mas detestava médicos. Eu tentava tranquilizá-lo. Tinha emagrecido
muito nos últimos tempos; os olhos cada vez mais fundos nas olheiras e já
uns fios brancos no cabelo; queixava-se de dores ora num joelho, ora no
quadril direito, ora num ombro, mas se negava a fazer consultas. Então o
obriguei, eu mesma o acompanhei com as meninas e, afora a necessidade de
tomar alguns calmantes, ele estava esbanjando saúde. Isso o deixou eufórico
por umas horas, e todos os sintomas desapareceram. Mas em pouco tempo,
apesar dos tranquilizantes, voltou a se sentir mal. Certa vez em que Dede não
o deixava assistir ao telejornal — foi logo após o golpe de estado no Chile
—, ele lhe deu umas palmadas com excessiva dureza. E, assim que passei a
tomar a pílula, veio-lhe uma vontade de transar com frequência ainda maior,
mas só de manhã ou à tarde, porque — dizia — era o orgasmo noturno que o
fazia perder o sono, forçando-o a estudar até altas horas da noite, o que lhe
causava um cansaço crônico e, consequentemente, todas aquelas dores.
Tudo balela sem sentido: para ele, estudar à noite sempre tinha sido
mais que um hábito, uma necessidade. No entanto eu concordava: não vamos
fazer mais à noite, tudo estava bem para mim. Claro, às vezes eu me
exasperava. Era difícil obter dele uma mínima ajuda em coisas úteis: fazer
as compras quando estava mais livre, lavar os pratos depois do jantar. Uma
noite perdi a paciência: não lhe disse nada de terrível, simplesmente falei
mais alto. E fiz uma descoberta importante: bastava eu gritar para que sua
teimosia sumisse de repente e ele me obedecesse. Era possível, enfrentando-
o com alguma firmeza, fazê-lo se esquecer até das dores erráticas, até do
desejo neurótico de me possuir continuamente. Mas eu não gostava de fazer
isso. Quando me comportava daquela maneira sentia pena dele, tinha a
impressão de causar-lhe um frêmito doloroso no cérebro. De todo modo, os
resultados não eram duradouros. Ele cedia, se restabelecia, assumia
compromissos com certa solenidade, mas depois voltava a ficar
cansadíssimo, se esquecia do pacto, recomeçava a cuidar apenas de si. Por
fim eu desistia, tentava animá-lo, beijava-o. O que eu ganhava com alguns
pratos mal lavados? Somente cara amarrada e uma distração que significava:
estou aqui perdendo meu tempo enquanto preciso trabalhar. Melhor deixá-lo
em paz, e ficava contente quando conseguia evitar tensões.
Para não deixá-lo nervoso, também aprendi a não expressar minhas
opiniões. De resto, não parecia que se importasse com elas. Se ele
argumentava, sei lá, sobre as medidas do governo por causa da crise do
petróleo, se elogiava a aproximação do partido comunista com a
democracia-cristã, preferia que eu apenas escutasse aquiescente. E, nas
vezes em que eu discordava, assumia ares vagos ou falava com um tom que
evidentemente usava com os estudantes: você teve uma má-educação, não
conhece o valor da democracia, do Estado, das leis, da mediação entre os
interesses constituídos, do equilíbrio entre as nações — você gosta do
apocalipse. Eu era sua esposa, uma mulher culta, e ele esperava que eu
prestasse muita atenção quando falava de política, de seus estudos, do novo
livro em que estava trabalhando à exaustão, cheio de ansiedade; mas a
atenção devia ser exclusivamente afetuosa, não queria ouvir opiniões,
sobretudo quando o deixavam em dúvida. Era como se pensasse em voz alta,
só para fazer um balanço interno. No entanto a mãe dele era um tipo de
mulher totalmente diversa. E a irmã também. Mas evidentemente ele não
queria que eu fosse como elas. Naquele seu período de fraqueza, compreendi
por meias frases que ele deve ter se incomodado não só com o sucesso, mas
também com a própria divulgação de meu primeiro livro. Quanto ao
segundo, nunca me perguntou que fim levara o datiloscrito e que projetos eu
tinha para o futuro. Tive a impressão de que o fato de eu não falar mais em
escrever o deixava aliviado.
Mas a revelação de que Pietro a cada dia se tornava pior do que eu
imaginava não me levou de novo a outros homens. Às vezes me acontecia de
topar com Mario, o engenheiro, mas logo descobri que a vontade de seduzir
e de ser seduzida tinha passado, aliás, aquela agitação de antes me pareceu
uma fase um tanto ridícula de minha vida, ainda bem que já estava superada.
Também se atenuou a ânsia de sair de casa, de participar da vida pública da
cidade. Se decidia ir a um debate ou manifestação, levava sempre comigo as
meninas e me sentia orgulhosa de minhas bolsas cheias do necessário para
acudi-las, da desaprovação cautelosa de quem dizia: elas são tão pequenas,
pode ser perigoso.
Mas saía todos os dias, não importava o clima, para permitir que
minhas filhas tomassem um pouco de ar e sol. Nunca o fazia sem levar um
livro. Seguindo um hábito que não me abandonava, continuei lendo em
qualquer circunstância, ainda que tivesse como que se dissipado a ambição
de formar um mundo com aquilo. Em geral eu perambulava um tempo e
depois me sentava num banco não distante de casa. Folheava ensaios
complicados, lia o jornal, gritava: Dede, não vá para longe, fique perto da
mamãe. Eu era isso, e precisava aceitar. Lila, não importa que rumo sua vida
tomasse, era outra coisa.
77.
Carmen estava numa ansiedade tremenda, chorava por aquilo que lhe parecia
o retorno de uma perseguição. Quanto a mim, não conseguia tirar da cabeça a
pracinha desolada onde ficava a farmácia, e tinha diante dos olhos o interior
da loja, que sempre me agradara pelo cheiro de caramelos e de xaropes,
pelos móveis de madeira escura sobre os quais se alinhavam vasos
coloridos, sobretudo pelos pais de Gino, gentilíssimos, um tanto curvados
atrás do balcão de onde se debruçavam como de uma galeria de teatro, eles,
que seguramente estavam ali quando o barulho dos tiros os fez estremecer,
eles, que dali mesmo talvez tenham visto de olhos arregalados o filho
desabar na soleira, e o sangue. Quis falar com Lila. Mas ela se mostrou de
uma indiferença total e, liquidando o assunto como mais um dos tantos, se
limitou a dizer: imagine se a polícia não iria atrás de Pasquale. A voz dela
conseguiu imediatamente me capturar e persuadir, sublinhando que, mesmo
que Pasquale tivesse de fato assassinado Gino — hipótese que ela excluía
—, de todo modo ela ficaria do lado dele, porque a polícia deveria ter se
preocupado mais com o morto, por todas as desgraças que ele fizera, e não
com nosso amigo pedreiro e comunista. Depois disso, com o tom de quem
passa a questões mais relevantes, me perguntou se poderia deixar Gennaro
comigo enquanto as aulas não recomeçavam. Gennaro? E como eu faria? Eu
já tinha Dede e Elsa que me esgotavam. Murmurei:
“Por quê?”
“Preciso trabalhar.”
“Estou indo para a praia com as meninas.”
“Leve ele também.”
“Vou para Viareggio e fico lá até o final de agosto: o menino me
conhece pouco, vai querer você. Se você também vier, tudo bem, mas
sozinha eu não sei.”
“Você me jurou que cuidaria dele.”
“Sim, mas se você estivesse mal.”
“E como é que você sabe que não estou mal?”
“Você está?”
“Não.”
“Então pode muito bem deixá-lo com sua mãe ou com Stefano.”
Ficou calada por uns segundos, depois perdeu as boas maneiras:
“Você pode me fazer esse favor? Sim ou não?”
Cedi na hora.
“Tudo bem, pode trazer o menino.”
Enzo chegou num sábado à tarde com uma Cinquecento branquíssima,
que tinha acabado de comprar. Só de avistá-lo da janela, de ouvir o dialeto
que usou para dizer algo ao menino que ainda estava no carro — era ele,
idêntico, o mesmo gesto compassado, o mesmo organismo compacto —,
senti de novo a materialidade de Nápoles, do bairro. Abri a porta com Dede
agarrada a meu vestido, e me bastou apenas olhar para Gennaro e perceber
que, já cinco anos atrás, Melina tinha acertado: agora que estava com dez
anos o menino mostrava evidentemente que não se parecia nada não só com
Nino, mas nem sequer com Lila — era uma reprodução perfeita de Stefano.
Ao constatá-lo, tive um sentimento ambíguo, uma mistura de decepção e
de regozijo. Pensei que, no fim das contas, tendo de ficar com o menino por
tanto tempo, teria sido bom ver pela casa, ao lado de minhas filhas, um filho
de Nino; no entanto, constatei de bom grado que Nino não tinha deixado nada
para Lila.
83.
Enzo queria partir logo em seguida, mas Pietro o acolheu com muita
gentileza e o obrigou a passar a noite com a gente. Tentei estimular Gennaro
a brincar com Dede, embora tivessem quase seis anos de diferença, mas,
enquanto ela se mostrou propensa, ele se recusou com um movimento
decidido da cabeça. Fiquei tocada com a atenção que Enzo dispensou àquele
filho que não era dele, mostrando conhecer seus hábitos, os gostos, as
necessidades. Obrigou-o com delicadeza, apesar de Gennaro protestar por
causa do sono, a fazer xixi e a escovar os dentes antes de ir para a cama;
depois, quando o menino apagou de cansaço, tirou a roupa dele e lhe pôs o
pijama delicadamente.
Enquanto eu lavava os pratos e arrumava as coisas, Pietro entretinha
nosso hóspede. Estavam sentados à mesa da cozinha, não tinham nada em
comum. Tentaram primeiro com a política, mas, quando meu marido acenou
positivamente à progressiva aproximação entre os comunistas e os
democratas-cristãos, e Enzo rebateu que, se aquela estratégia prevalecesse,
Berlinguer teria ajudado os piores inimigos da classe operária, renunciaram
a discutir para evitar um desentendimento. Então Pietro passou gentilmente a
perguntar sobre o trabalho do outro, e Enzo deve ter achado aquela
curiosidade sincera, porque foi menos lacônico que o habitual e começou um
relato conciso, talvez um pouco técnico demais. A ibm tinha acabado de
mandá-los, ele e Lila, para uma empresa maior, uma fábrica nos arredores de
Nola que tinha trezentos operários e uns quarenta funcionários. A proposta
salarial os deixara sem fôlego: trezentas e cinquenta mil liras ao mês para
ele, que era o chefe do centro, e cem mil para ela, sua ajudante. Obviamente
tinham aceitado, mas agora eles deveriam fazer jus a todo aquele dinheiro, e
o trabalho era realmente enorme. Somos responsáveis — nos explicou,
usando a partir daquele momento sempre o nós — por um Sistema 3 modelo
10, e temos à nossa disposição dois operadores e cinco perfuradoras, que
são também verificadoras. Precisamos recolher e inserir dentro do Sistema
uma grande quantidade de informações, necessárias para que a máquina
possa fazer, digamos, a contabilidade, os pagamentos, as faturas, o
armazenamento, a gestão das vendedoras, os pedidos aos fornecedores, a
produção e a expedição. Para isso nos servimos de cartõezinhos, isto é, as
fichas a serem perfuradas. As perfurações são tudo, todo o esforço converge
para elas. Vou dar um exemplo do trabalho que é preciso fazer para
programar uma operação simples como a emissão de faturas. Começa-se
pelas etiquetas de papel, aquelas em que o responsável pelo depósito
registrou os produtos e os clientes aos quais foram entregues. O cliente tem
seu código, seus dados pessoais têm outro código e os produtos também têm
um código. As perfuradoras vão para as máquinas, apertam a tecla de
liberação das fichas, batem nas teclas e reduzem o número-nota fiscal, o
código-cliente, o código-dados pessoais, o código-produto-quantidade a
outros tantos furos nos cartõezinhos. Só para vocês entenderem, mil notas
fiscais para dez produtos produzem dez mil fichas perfuradas com
buraquinhos pequenos como os de uma agulha; está claro, vocês estão
acompanhando?
A noite passou assim. Pietro de vez em quando fazia sinal de que estava
entendendo e tentou até fazer umas perguntas (os furos contam, mas as
partes não perfuradas também contam?). Eu me limitava a um meio sorriso
enquanto lavava e lustrava. Enzo parecia contente por poder explicar a um
professor universitário, que o ouvia como um estudante aplicado, e a uma
velha amiga, que se formara e escrevera um livro e agora arrumava a
cozinha, coisas que eles ignoravam completamente. Mas na verdade eu logo
me distraí. Um operador pegava dez mil cartõezinhos e os inseria numa
máquina que se chamava selecionadora. A máquina os organizava segundo o
código-produto. Depois se passava a dois leitores, não no sentido de
pessoas, mas no de máquinas programadas para ler os furos e os não furos
nos cartõezinhos. E depois? Nesse ponto me perdi. Me perdi entre os
códigos e os enormes pacotes de cartõezinhos e os furos que eram
contrastados com outros furos, que selecionavam furos, que liam furos, que
faziam as quatro operações, quem imprimiam nomes, endereços, somas. Me
perdi dentro de uma palavra que nunca tinha escutado, file, que Enzo usava
frequentemente e pronunciava como o plural de fila, mas não dizia le file,
mas il file, um misterioso masculino, o file disso, o file daquilo, sem parar.
Me perdi atrás de Lila, que sabia tudo daquelas palavras, daquelas
máquinas, daquele trabalho, trabalho que agora ela fazia naquela grande
fábrica de Nola, embora com o salário que pagavam a seu companheiro ela
tivesse mais condições de bancar a madame do que eu. Me perdi atrás de
Enzo, que podia dizer com orgulho: sem ela eu não conseguiria, e assim nos
comunicava um amor altíssimo, era evidente que ele gostava de recordar a si
mesmo e aos outros a extraordinariedade de sua mulher, ao passo que meu
marido nunca me elogiava, ao contrário, me reduzia a mãe de seus filhos,
queria que eu, mesmo tendo estudado, não fosse capaz de um pensamento
autônomo, me humilhava humilhando o que eu lia, o que me interessava, o
que eu dizia, e parecia disposto a só me amar desde que pudesse demonstrar
continuamente minha nulidade.
Finalmente também me sentei à mesa, soturna porque nenhum dos dois
tinha experimentado dizer: vamos ajudar você a pôr a mesa, a tirar os pratos,
a lavar a louça, a varrer o chão. Uma fatura, estava dizendo Enzo, é um
documento simples, o que é que custa fazê-la à mão? Nada, caso eu só
precise preencher dez ao dia. Mas e se eu precisar preencher mil? Os
leitores leem até duzentas fichas por minuto, portanto duas mil em dez
minutos e dez mil em cinquenta. A velocidade da máquina é uma vantagem
enorme, especialmente se for preparada para ser capaz de fazer operações
complexas, que demandam muito tempo. E meu trabalho e o de Lila é
justamente esse: preparar o Sistema para fazer operações complexas. As
fases de desenvolvimento dos programas são realmente belíssimas. Já as
fases operacionais são um pouco menos. Muitas vezes as fichas emperram e
se rasgam nas selecionadoras. Muitíssimas vezes uma caixa com fichas
recém-ordenadas cai no chão e os cartõezinhos se espalham pelo piso. Mas é
bonito, mesmo assim é bonito.
Então o interrompi só para me sentir presente e disse:
“Ele pode errar?”
“Ele quem?”
“O computador.”
“Não há nenhum ele, Lenu, ele sou eu. Se ele errar, se fizer confusão,
quem errou fui eu, eu é que fiz confusão.”
“Ah”, disse; e murmurei: “Estou cansada.”
Pietro fez sinal que sim e pareceu pronto a encerrar a noite. Mas depois
se dirigiu a Enzo:
“É entusiasmante, com certeza, mas, se a coisa é mesmo como você diz,
essas máquinas vão acabar tomando o lugar dos homens, muitas
competências vão desaparecer, na Fiat a soldagem já é feita por robôs,
muitíssimos postos de trabalho vão se perder.”
De início Enzo concordou, depois pareceu vacilar, por fim recorreu à
única pessoa a quem atribuía autoridade:
“Lina diz que isso é bom: os trabalhos humilhantes e os que
imbecilizam precisam desaparecer.”
Lina, Lina, Lina. Perguntei para provocar: se Lina é tão excelente, por
que dão trezentas e cinquenta mil liras a você e cem mil a ela? Só porque
você é o chefe e ela é a ajudante? Enzo hesitou de novo, pareceu a ponto de
dizer algo urgente que depois decidiu deixar de lado. Balbuciou: o que você
quer de mim, é preciso abolir a propriedade privada dos meios de produção.
Na cozinha se ouviu por alguns segundos o zumbido da geladeira. Pietro se
levantou e disse: vamos dormir.
84.
Enzo queria partir por volta das seis, mas já às quatro da manhã o escutei se
movendo no quarto e me levantei para preparar o café. A sós, na casa
silenciosa, a língua dos computadores ou o italiano devido à autoridade de
Pietro desapareceram, e passamos ao dialeto. Perguntei sobre a relação dele
com Lila. Disse que ia bem, embora ela não parasse nunca. Ora estava às
voltas com os problemas no trabalho, ora se desentendia com a mãe, com o
pai, com o irmão, ora ajudava Gennaro a fazer as tarefas, e vira e mexe
acabava também ajudando os filhos de Rino e todas as crianças que
apareciam na casa. Lila não se poupava, por isso vivia exausta, parecia à
beira de pifar, como já acontecera outras vezes, estava muito cansada. Logo
entendi que aquela dupla entrosada, cotovelo com cotovelo no trabalho,
abençoada por bons salários, devia ser posta numa sequência mais
complicada. Arrisquei:
“Talvez vocês estejam precisando se organizar melhor: Lila não pode
exagerar no trabalho.”
“É o que eu sempre digo a ela.”
“Além disso há a separação, o divórcio: não faz sentido que ela
continue casada com Stefano.”
“Quanto a isso, ela está pouco se lixando.”
“Mas e Stefano?”
“Nem sequer sabe que agora é possível se divorciar.”
“E Ada?”
“Ada precisa sobreviver. A roda gira, quem estava em cima termina
embaixo. Os Carracci não têm mais uma lira, somente dívidas com os
Solara, e Ada tenta raspar o que pode antes que seja tarde.”
“E você? Não quer se casar?”
Compreendi que ele se casaria de bom grado, mas Lila era contra. Não
só não queria perder tempo com o divórcio — e daí se eu continuo casada
com aquele sujeito, eu estou com você, durmo com você, o que importa é
isso —, mas também a própria ideia de outro casamento já lhe provocava
risos. Dizia: eu e você? Eu e você nos casando? Mas que nada, estamos bem
assim, e quando nos enchermos cada um segue seu rumo. Lila não se
interessava pela perspectiva de um novo casamento, tinha mais em que
pensar.
“Em quê?”
“Deixa pra lá.”
“Me diga.”
“Ela nunca lhe disse nada?”
“Sobre o quê?”
“Sobre Michele Solara.”
Me contou com frases breves e tensas que em todos aqueles anos
Michele nunca deixou de pedir a Lila que voltasse a trabalhar para ele.
Tinha lhe proposto administrar uma loja nova no Vomero. Ou cuidar da
contabilidade e dos impostos. Ou ser secretária de um amigo dele, um
importante político democrata-cristão. Tinha chegado até a oferecer um
salário de duzentas mil liras ao mês só para que inventasse coisas, ideias
malucas, tudo o que lhe passasse pela cabeça. Mesmo morando em
Posillipo, ele continuava mantendo a sede de seus negócios no bairro, na
casa da mãe e do pai. Assim Lila topava com ele frequentemente, na rua, no
mercado, nas lojas. Sempre muito amigável, ele a entretinha, brincava com
Gennaro, dava presentinhos para ele. Depois ficava seriíssimo e, mesmo
depois de ela recusar os trabalhos que lhe oferecia, ele reagia com paciência
e se despedia dela com a ironia de sempre: eu não desisto, vou esperar você
pela eternidade, me chame quando quiser que eu venho correndo. Até que
ficou sabendo que ela estava trabalhando para a ibm. Isso o deixou furioso,
tinha chegado a mobilizar uns conhecidos dele para tirar Enzo do emprego e,
consequentemente, também Lila. Não obtivera nenhum resultado, a ibm
precisava urgentemente de técnicos, e técnicos qualificados como Enzo e
Lila eram raros. Mas o clima tinha mudado. Enzo topara com os fascistas de
Gino na porta de casa e só escapou porque conseguiu chegar antes ao portão
e trancá-lo rapidamente. Mas logo em seguida aconteceu um fato
preocupante com Gennaro. A mãe de Lila foi buscá-lo na escola, como de
costume. Todos os alunos já tinham saído, mas não se via o menino. A
professora: ele estava aqui agora mesmo. Os colegas: estava aqui e depois
desapareceu. Assustadíssima, Nunzia chamou a filha no trabalho e Lila
voltou correndo em busca do filho. Ele estava sentado num banco dos
jardinzinhos. Estava ali quieto, a farda, o laço, a pasta e, ao ser perguntado:
aonde você foi, o que fez, ria com os olhos vazios. Ela queria ir
imediatamente até Michele e matá-lo, seja pela tentativa de espancamento,
seja pelo sequestro de Gennaro, mas Enzo a impedira. Os fascistas
perseguiam quem quer que fosse de esquerda, e nada provava que tinha sido
Michele que ordenara aquilo. Quanto a Gennaro, ele mesmo reconhecera que
sua breve ausência tinha sido uma mera desobediência. De todo modo,
depois que Lila se acalmou, Enzo decidiu por conta própria ir conversar
com Michele. Apresentou-se no bar Solara e Michele o escutou sem piscar o
olho. Depois lhe falou mais ou menos assim: não sei de que merda você está
falando, Enzù, eu tenho carinho por Gennaro, quem mexer com ele está
morto, mas de todas as bobagens que você disse a única coisa verdadeira é
que Lina é de fato excelente e é uma pena que ela desperdice sua
inteligência, faz anos que peço a ela que venha trabalhar comigo. Então
prosseguiu: você se chateia com isso? E daí? Mas você está errado, se gosta
mesmo dela, deveria encorajá-la a usar suas grandes capacidades. Venha cá,
se sente, pegue um café e um doce, me conte para que servem esses seus
computadores. E não terminou ali. Tinham se encontrado casualmente duas
ou três vezes, e Michele mostrara cada vez mais interesse pelo Sistema 3.
Um dia chegou a dizer, brincalhão, que tinha perguntado a um sujeito da ibm
quem era o melhor, ele ou Lila, e que o outro dissera que Enzo era realmente
muito bom, mas que a melhor na praça era Lila. Depois disso, noutra
ocasião, ele a parou na rua e fez uma proposta importante. Estava pensando
em alugar o Sistema 3 e utilizá-lo em todas as suas atividades comerciais.
Consequência: queria que ela fosse a chefe do centro, por quatrocentas mil
liras ao mês.
“Ela não lhe contou nem isso?”, Enzo me perguntou cauteloso.
“Não.”
“Deve ser porque não quer incomodá-la, você tem sua vida. Mas você
entende que, para ela, pessoalmente, seria um salto de qualidade, e para nós
dois seria uma fortuna: chegaríamos a setecentas e cinquenta mil liras por
mês, não sei se ficou claro.”
“Mas e Lina?”
“Deve dar uma resposta em setembro.”
“E o que ela vai fazer?”
“Não sei. Você já conseguiu prever o que se passa naquela cabeça?”
“Não. Mas o que você acha que ela deveria fazer?”
“Eu acho o que ela achar.”
“Mesmo que não esteja de acordo?”
“Mesmo assim.”
Acompanhei-o até o carro. Enquanto descia as escadas, pensei que
talvez devesse lhe dizer o que ele seguramente não sabia, isto é, que Michele
nutria por Lila um amor obsessivo, um amor perigoso, que não tinha a ver
com a posse física nem com uma devota subalternidade. E estive a ponto de
falar aquilo, porque eu gostava dele, não queria que acreditasse que tinha
diante de si apenas um meio camorrista que há tempos planejava comprar a
inteligência de sua mulher. Quando ele já estava dentro do carro, perguntei:
“E se Michele quiser tomá-la de você?”
Continuou impassível:
“Eu mato ele. Mas de todo modo ele não quer, já tem uma amante, todo
mundo sabe disso.”
“Quem é?”
“Marisa, ele a engravidou de novo.”
No momento tive a impressão de não ter entendido.
“Marisa Sarratore?”
“Sim, Marisa, a mulher de Alfonso.”
Então me lembrei da conversa com meu colega de escola. Ele tinha
tentado me dizer como sua vida era complicada, e eu me retraíra, tocada
mais pela superfície de sua revelação que pela substância. Mesmo naquela
ocasião seu mal-estar me pareceu confuso — para entender melhor,
precisaria ter conversado de novo com ele, e talvez nem assim tivesse
entendido —, no entanto assimilei a notícia com um desagradável incômodo.
Perguntei:
“E Alfonso?”
“Ele não está nem aí, dizem que é veado.”
“Quem diz?”
“Todo mundo.”
“Todo mundo é muito genérico, Enzo. O que mais todo mundo diz?”
Ele me olhou com um lampejo de ironia cúmplice:
“Tantas coisas, o bairro é um falatório contínuo.”
“Como assim?”
“Vieram à tona velhas histórias. Andam dizendo que quem matou dom
Achille foi a mãe dos Solara.”
Finalmente ele foi embora, e esperei que também levasse aquelas
palavras com ele. Mas o que fiquei sabendo durou, me deixou preocupada,
me fez sentir raiva. Para me livrar da sensação, corri ao telefone, falei com
Lila e misturei aflições a recriminações: por que você não me disse nada
sobre as propostas de trabalho de Michele, especialmente sobre essa última;
por que revelou o segredo de Alfonso; por que espalhou aquela história da
mãe dos Solara, aquilo era uma brincadeira nossa; por que mandou Gennaro
para cá, está preocupada com ele, me responda com clareza, eu tenho o
direito de saber; por que pelo menos uma vez na vida você não me fala o que
está se passando na sua cabeça? Foi um desabafo, mas, de frase em frase,
dentro de mim, tive a esperança de que não pararíamos por ali, de que
finalmente se realizaria, ainda que só por telefone, o velho desejo de encarar
nossa relação por inteiro, reexaminá-la e ter plena consciência do que ela
era. Esperava provocá-la e atraí-la para outras perguntas, cada vez mais
pessoais. Mas Lila se aborreceu, me tratou com bastante frieza, não estava
de bom humor. Respondeu que eu tinha ido embora havia anos, que agora eu
levava uma vida na qual os Solara, Stefano, Marisa, Alfonso não
significavam mais nada, importavam menos que zero. Aproveitem as férias
— me falou encurtando a conversa —, escreva, siga sua vida de intelectual,
nós aqui continuamos muito terra a terra para você, fique longe disso; e olhe
lá, faça Gennaro pegar um pouco de sol, se não ele vai voltar raquítico que
nem o pai.
A ironia da voz, o tom minimizador, quase grosseiro, deram mais
consistência ao relato de Enzo e eliminaram qualquer possibilidade de atraí-
la para os livros que eu estava lendo, para as palavras que eu tinha
aprendido com Mariarosa e o grupo florentino, para as questões que estava
tentando fazer a mim mesma e que, uma vez que lhe tivesse fornecido os
conceitos de base, ela certamente saberia enfrentar melhor que nós todas.
Mas claro, pensei, eu cuido de minhas coisas e você das suas: se prefere
assim, não cresça, continue brincando no pátio, mesmo agora, que está
prestes a fazer trinta anos; chega, vou para a praia. E assim fiz.
85.
Pietro nos acompanhou, a mim e às três crianças, até uma casa feiosa de
Viareggio que tínhamos alugado e em seguida voltou a Florença para
terminar seu livro. Pronto — disse a mim mesma —, agora sou uma
veranista, uma senhora abastada com três filhos e muitos brinquedos, um
guarda-sol na primeira fila, toalhas macias, muita coisa para comer, cinco
biquínis de várias cores, cigarros mentolados, o sol que bronzeia minha pele
e me deixa ainda mais loura. Telefonava todas as noites para Pietro e para
Lila. Pietro me falava de pessoas que tinham me procurado, resíduos de uma
época distante, e, mais raramente, me falava de alguma hipótese de trabalho
que tinha acabado de lhe ocorrer. Passava Lila a Gennaro, que relatava
desinteressadamente à mãe os fatos — segundo ele — mais relevantes do dia
e lhe dava boa noite. Eu não falava quase nada, nem com um, nem com outro.
Sobretudo Lila me parecia reduzida a uma mera voz.
Mas depois de um tempo me dei conta de que não era bem assim, parte
dela estava em carne e osso dentro de Gennaro. O menino era certamente
muito parecido com Stefano e não se assemelhava nem um pouco a Lila.
Entretanto os gestos, o modo de falar, alguns vocábulos, algumas expressões
e certa agressividade eram os mesmos de quando ela era menina. Assim,
quando de vez em quando eu me distraía, levava um susto ao ouvir a voz
dele ou me encantava observando-o enquanto gesticulava para explicar uma
brincadeira a Dede.
Porém, diferentemente da mãe, Gennaro era dissimulado. A maldade de
Lila quando era pequena sempre tinha sido explícita, nenhuma punição
jamais a levara a escondê-la. Já Gennaro desempenhava o papel de
garotinho bem-comportado, até tímido, mas assim que eu virava as costas ele
pirraçava Dede, escondia o boneco dela, batia nela. Quando eu o ameaçava
dizendo que, por punição, não telefonaríamos mais a sua mãe para dar boa
noite, assumia uma expressão compungida. Mas na verdade aquela eventual
punição não o preocupava nem um pouco, fui eu quem impus o ritual das
ligações noturnas, ele passaria sem isso tranquilamente. O que mais o
preocupava era a ameaça de não ganhar um sorvete. Então desandava a
chorar, dizia entre soluços que queria voltar para Nápoles, e eu
imediatamente cedia. Mas isso não o apaziguava. Vingava-se de mim
atacando Dede às escondidas.
Eu estava certa de que a menina tinha medo dele, de que o odiava. Mas
não. Com o passar do tempo, reagiu cada vez menos às provocações de
Gennaro e se apaixonou por ele. Chamava-o de Rino ou Rinuccio porque ele
tinha dito que seus amigos o chamavam assim, e o seguia por toda parte sem
ligar para meus chamados, ao contrário, era ela que o incentivava a se
afastar do guarda-sol. Eu passava o dia inteiro gritando: Dede, aonde você
vai, Gennaro, venha para cá, Elsa, o que você está fazendo, não ponha areia
na boca, Gennaro, pare com isso, Dede, se você não me obedecer eu vou aí e
vamos ver. Um esforço inútil: Elsa comia areia matematicamente, e
matematicamente, enquanto enxaguava sua boca com a água do mar, Dede e
Gennaro desapareciam.
O local onde se refugiavam era um caniçal que ficava ali perto. Uma
vez fui ver com Elsa o que os dois estavam aprontando e descobri que
tinham tirado a roupa de banho e Dede tocava curiosa o pintinho duro que
Gennaro lhe mostrava. Parei a poucos metros, não sabia como me comportar.
Dede — eu sabia, já tinha visto — muitas vezes se masturbava deitada de
barriga para baixo. Mas eu tinha lido bastante sobre sexualidade infantil —
tinha até comprado para minha filha um livrinho cheio de ilustrações
coloridas que explicava com frases brevíssimas o que acontecia entre
homem e mulher, palavras que tinha lido para ela sem suscitar nenhum
interesse — e, mesmo me sentindo incomodada, não só me obriguei a não
interromper nem a censurar, mas também, dando por certo que o pai teria
feito isso, tive o cuidado de evitar surpreendê-la.
Mas e agora? Devia deixar que brincassem entre si? Devia recuar, ir
embora de fininho? Ou me aproximar sem dar nenhum peso àquilo, falar com
naturalidade de outra coisa? E se aquele meninão violento, bem maior que
Dede, a obrigasse a sabe-se lá o quê, e se a machucasse? A diferença de
idade não seria um perigo? O que acabou precipitando a situação foram dois
acontecimentos: Elsa viu a irmã, gritou de alegria, a chamou; e no mesmo
instante ouvi as palavras em dialeto que Gennaro estava dizendo a Dede,
palavras pesadas, as mesmíssimas e vulgares palavras que eu também tinha
aprendido no pátio quando era pequena. Não consegui mais me controlar,
tudo o que eu tinha lido sobre prazeres, latências, neuroses, perversões
polimorfas de meninos e de mulheres desapareceu na hora, e repreendi os
dois com dureza, principalmente Gennaro, que agarrei por um braço e
arrastei embora. Ele caiu no choro, Dede me disse fria, destemida: você é
muito malvada.
Comprei sorvete para ambos, mas então começou uma fase em que, a
uma vigilância discreta, buscando evitar que o episódio se repetisse, se
juntou um certo alarme pelo modo como a linguagem de Dede ia
incorporando vocábulos obscenos do dialeto napolitano. De noite, enquanto
os meninos dormiam, peguei o hábito de forçar a memória: será que eu
também tinha feito aquelas brincadeiras com meus amigos do pátio? E Lila
também tivera experiências daquele tipo? Nunca tínhamos falado sobre isso.
Na época dizíamos palavras asquerosas, isto sim, mas eram insultos que
serviam entre outras coisas para repelir as mãos de adultos indecentes,
palavrões que gritávamos ao fugirmos. E quanto ao resto? Cheguei com
dificuldade a me pôr a questão: será que eu e ela alguma vez nos bolinamos?
Alguma vez eu tinha desejado fazer isso quando criança, menina,
adolescente, adulta? E ela? Fiquei rondando aquelas perguntas
demoradamente. Então me respondi baixinho: não sei, não quero saber.
Depois admiti que uma espécie de admiração pelo seu corpo, talvez isso
sim, tinha havido, mas excluí que alguma vez tivesse ocorrido algo entre nós.
Era medo demais: se nos flagrassem, nos matariam de tanta surra.
De todo modo, nos dias em que me vi diante daquele problema, evitei
levar Gennaro ao telefone público. Temia que ele dissesse a Lila que não
estava mais bem comigo, que talvez até lhe contasse aquele episódio. Aquele
temor me aborreceu: por que eu me preocupava tanto? Deixei que tudo se
atenuasse. Até a vigilância sobre os dois meninos aos poucos se abrandou,
não podia ficar o tempo todo de olho neles. Dediquei-me a Elisa e os deixei
em paz. Somente quando, mesmo com os lábios lívidos e os dedos
enrugados, se recusavam a sair da água é que eu gritava nervosíssima da
beira do mar, com as toalhas prontas para os dois.
Os dias de agosto passaram voando. Casa, mercado, preparação de
bolsas lotadas, praia, volta para casa, jantar, sorvete, telefone. Conversava
com outras mães, todas mais velhas que eu, e ficava contente se elogiavam
meus meninos e minha paciência. Falavam-me dos maridos, dos trabalhos
que faziam. Eu falava do meu, dizia: é professor de latim na universidade.
No fim de semana Pietro chegava, exatamente como anos atrás, em Ischia,
Stefano e Rino chegavam. Minhas conhecidas lhe lançavam olhares
respeitosíssimos e pareciam apreciar, graças a sua cátedra, até sua moita de
cabelos. Ele tomava banho com as filhas e com Gennaro, os envolvia em
aventuras falsamente arriscadas que faziam os quatro se divertirem muito,
depois ficava estudando debaixo do guarda-sol, queixando-se de tanto em
tanto do pouco sono, já que muitas vezes se esquecia de levar os
tranquilizantes. Na cozinha, quando os meninos já estavam dormindo, me
comia de pé para evitar o rangido da cama. O casamento agora me parecia
um instituto que, contrariamente ao que se pensava, destituía o coito de
qualquer humanidade.
86.
Foi Pietro que, num sábado, identificou em meio à multidão de títulos dos
jornais, que durante dias só falaram da bomba fascista que explodira no trem
Italicus, uma breve notícia no Corriere della Sera referente a uma pequena
indústria na periferia de Nápoles.
“A fábrica em que sua amiga trabalhava não se chamava Soccavo?”, me
perguntou.
“O que foi que aconteceu?”
Passou o jornal para mim. Um comando composto de dois homens e
uma mulher tinha invadido uma fábrica de embutidos na periferia de
Nápoles. Primeiro os três atiraram nas pernas do vigia, Filippo Cara, que
estava em estado gravíssimo; depois subiram ao escritório do proprietário,
Bruno Soccavo, um jovem empresário napolitano, e o assassinaram com
quatro tiros de pistola, três no peito e um na cabeça. Enquanto lia, visualizei
o rosto de Bruno se desfazendo, arrebentando com seus dentes
branquíssimos. Oh, meu Deus, meu Deus, não consegui respirar. Deixei os
meninos com Pietro e fui correndo ligar para Lila; o telefone tocou por muito
tempo sem que ninguém atendesse. Tentei de novo à noite, e nada. Consegui
encontrá-la no dia seguinte, e ela me perguntou assustada: o que houve,
Gennaro não está bem? Tranquilizei-a, contei sobre Bruno. Não sabia de
nada, me deixou falar e por fim murmurou apática: você me deu uma notícia
péssima. Nada mais. Insisti: telefone para alguém, tente saber mais, pergunte
para onde posso enviar um telegrama de condolências. Ela disse que não
tinha mais contato com ninguém da fábrica. E depois, que telegrama que nada
— resmungou —, deixa pra lá.
Deixei pra lá. Mas no dia seguinte encontrei no Manifesto um artigo
assinado por Giovanni Sarratore, Nino, que trazia muitas informações sobre
a pequena fábrica da Campânia, enfatizava as tensões políticas presentes
naquela realidade atrasada e citava com afeto Bruno e sua trágica morte. A
partir daquele momento acompanhei o desdobramento da notícia por dias,
mas sem resultado, já que rapidamente o caso sumiu dos jornais. Além disso,
Lila não quis mais falar sobre o assunto. À noite eu ligava para ela com os
meninos, e ela cortava a conversa, dizendo: me passe Gennaro. Ficou
particularmente irritada quando mencionei Nino. A mania de sempre,
resmungou, precisa sempre meter o bedelho: não tem nada a ver com
política, pode ter sido por mil outros motivos, aqui se morre assassinado por
qualquer coisa, chifres, trapaças, até por um olhar excessivo. Assim os dias
se passaram e só me restou de Bruno uma imagem, mais nada. Não era a do
patrão que eu havia ameaçado por telefone, servindo-me da autoridade dos
Airota, mas a do rapaz que tinha tentado me beijar e que eu rejeitara
duramente.
87.
Já ali na praia comecei a ter pensamentos ruins. Lila — disse a mim mesma
— reprime calculadamente as emoções e os sentimentos. Quanto mais eu
buscava instrumentos para tentar compreender a mim mesma, mais ela, ao
contrário, se escondia. Quanto mais eu procurava trazê-la para a berlinda e
envolvê-la em minha vontade de clareza, mais ela se refugiava na penumbra.
Parecia a lua cheia quando se oculta atrás do bosque e os ramos rabiscam
sua superfície.
Retornei a Florença nos primeiros dias de setembro, mas os maus
pensamentos, em vez de se dissolverem, tornaram-se ainda mais fortes. Inútil
tentar me abrir com Pietro. Ficou muito descontente com nossa volta para
casa, estava atrasado com o livro e a ideia de que o ano letivo recomeçaria
dali a pouco o deixava impaciente. Numa noite em que, à mesa, Dede e
Gennaro disputavam não me lembro o quê, ele deu um pulo de repente e saiu
da cozinha batendo a porta com tanta violência que o vidro fosco se
espatifou. Telefonei para Lila e disse a ela sem rodeios que alguém
precisava vir buscar o menino, fazia um mês e meio que seu filho vivia
comigo.
“Você não pode ficar com ele até o final do mês?”
“Não.”
“A coisa aqui está feia.”
“Aqui também.”
Enzo partiu em plena noite e chegou de manhã, quando Pietro estava no
trabalho. Eu já tinha preparado a bagagem de Gennaro. Expliquei a ele que
as tensões entre os meninos tinham se tornado insuportáveis, que eu
lamentava, mas três era além da conta, eu não aguentava mais. Ele disse que
entendia e me agradeceu por tudo o que eu tinha feito. Apenas murmurou, a
título de justificativa: você sabe como Lina é. Não repliquei, seja porque
Dede estava gritando, desesperada com a partida de Gennaro, seja porque,
se o tivesse feito, poderia ter dito coisas — justamente a propósito de como
era Lila — das quais me arrependeria mais tarde.
Tinha pensamentos na cabeça que não queria formular nem para mim
mesma, temia que os fatos se adaptassem magicamente às palavras. Mas não
conseguia apagar as frases, sentia na cabeça sua sintaxe já pronta e ficava
assustada, estava fascinada por aquilo, me causava horror, me seduzia. Meu
adestramento para encontrar uma ordem estabelecendo conexões entre
elementos distantes tinha me tomado pela mão. Eu havia somado a morte
violenta de Gino à de Bruno Soccavo (Filippo, o vigia da fábrica, tinha
escapado). E tinha chegado à ideia de que cada um daqueles acontecimentos
levava a Pasquale, talvez até a Nadia. Já essa hipótese me deixara
extremamente agitada. Pensei em telefonar para Carmen, perguntar se tinha
notícias do irmão; depois mudei de ideia, assustada com a possibilidade de
que seu telefone pudesse estar grampeado. Quando Enzo veio buscar
Gennaro, disse a mim mesma: agora toco no assunto com ele, vamos ver
como reage. Mas também nesse caso permaneci calada, temendo falar
demais, temendo pronunciar o nome da figura que estava por trás de
Pasquale e de Nadia, ou seja, Lila: sempre Lila, a que não diz as coisas, faz;
Lila, que está embebida na cultura do bairro e não tem nenhuma
consideração pela polícia, pelas leis, pelo Estado, mas acredita que existem
problemas solucionáveis apenas com o trinchete; Lila, que conhece o horror
da desigualdade; Lila, que na época do coletivo da via dei Tribunali
encontrou na teoria e na práxis revolucionária uma maneira de empregar sua
inteligência demasiado ativa; Lila, que transformou em objetivos políticos
seus antigos e novos rancores; Lila, que move as pessoas como personagens
de um romance; Lila, que conectou, está conectando, nosso conhecimento
pessoal da miséria e da opressão com a luta armada contra os fascistas,
contra os patrões, contra o capital. Admito aqui pela primeira vez de modo
claro: naqueles dias de setembro suspeitei que não só Pasquale — Pasquale,
impelido por sua história pessoal à necessidade de empunhar armas —, não
só Nadia, mas também Lila tivesse participado daqueles atentados. Por um
longo tempo, enquanto cozinhava, enquanto cuidava de minhas filhas, pude
vê-la, em companhia dos outros dois, atirando em Gino, atirando em Filippo,
atirando em Bruno Soccavo. E, se tinha dificuldade de imaginar Pasquale e
Nadia em cada detalhe — eu o considerava um bom rapaz, meio fanfarrão e
capaz, sim, de entrar numa luta com dureza, mas não de matar; ela me
parecia uma garotinha mimada que no máximo podia ferir com perfídias
verbais —, quanto a Lila nunca tive dúvida: ela teria sabido arquitetar o
plano mais eficaz, ela teria reduzido os riscos ao mínimo, ela teria mantido o
medo sob controle, ela era capaz de conferir às intenções assassinas uma
abstrata pureza, ela sabia como subtrair substância humana aos corpos e ao
sangue, ela não teria escrúpulos e menos ainda remorsos, ela teria matado e
se sentido com razão.
Então lá estava ela, nítida, junto à sombra de Pasquale, de Nadia, de
sabe-se lá quantos outros. Passavam de carro pela pracinha, reduziam a
marcha diante da farmácia e disparavam contra Gino, contra seu corpo de
miliciano fechado no avental branco. Ou chegavam à Soccavo pela estrada
poeirenta, dejetos de todo tipo amontoados no acostamento. Pasquale
atravessava o portão, atirava nas pernas de Filippo, o sangue se espalhava
pela guarita, gritos, olhos aterrorizados. Lila, para quem o ambiente era bem
conhecido, cruzava o pátio, entrava na fábrica, subia as escadas, irrompia no
escritório de Bruno e, justamente quando ele lhe dizia alegre: oi, você por
essas bandas, lhe explodia três tiros no peito e um na cara.
Ah, sim, antifascismo militante, nova resistência, justiça proletária e
outras fórmulas às quais ela, que por instinto sabia evitar a baboseira
gregária, certamente podia dar mais consistência. Imaginei que aquelas
ações fossem obrigatórias para entrar, sei lá, nas Brigadas Vermelhas, na
Primeira Linha, nos Núcleos Armados Proletários. Lila desapareceria do
bairro tal como Pasquale já tinha feito. Talvez por isso tenha tentado deixar
Gennaro comigo, aparentemente por um mês, mas na verdade com a intenção
de entregá-lo a mim para sempre. Nunca mais a veríamos. Ou então seria
presa, como tinha acontecido com os chefes das Brigadas Vermelhas, Curcio
e Franceschini. Ou escaparia de qualquer policial ou prisão, fantasiosa e
temerária como era. E, quando o grande advento se realizasse, reapareceria
triunfal, admirada por seus feitos, em trajes de líder revolucionária, e me
diria: você queria escrever romances, eu fiz meu romance com pessoas de
carne e osso, com sangue de verdade, no mundo real.
De noite, todas as fantasias me pareciam fatos acontecidos ou que ainda
estavam acontecendo, e eu temia por ela, a imaginava caçada, ferida como
tantas e tantos outros na desordem das coisas, e me dava pena, mas também a
invejava. Ampliava enormemente a convicção infantil de que ela estava
destinada desde sempre a aventuras extraordinárias, e me lamentava por ter
fugido de Nápoles, por ter me afastado dela, voltando a sentir a necessidade
de estar a seu lado. Mas também me enfurecia por ela ter tomado aquele
rumo sem me consultar, como se não me tivesse considerado à altura. No
entanto eu sabia bastante sobre capital, exploração, luta de classes, a
inevitabilidade da revolução proletária. Poderia ter sido útil participar de
algum modo. E estava infeliz. Definhava na cama, triste com minha condição
de mãe de família, de mulher casada, todo o futuro aviltado pela repetição
até a morte de rituais domésticos na cozinha, no leito conjugal.
De manhã me sentia mais lúcida, e o horror levava a melhor. Imaginava
uma Lila caprichosa, que estimulava ódios com esmero e acabava se vendo
cada vez mais envolvida em ações ferozes. Com certeza tinha tido a coragem
de ir além, de tomar iniciativas com a determinação cristalina e a crueldade
generosa de quem é movido por justas razões. Mas com que perspectiva?
Preparar uma guerra civil? Transformar o bairro, Nápoles, a Itália inteira
num campo de batalha, um Vietnã no meio do Mediterrâneo? Lançar todos
nós em um conflito impiedoso, interminável, esmagado entre o bloco oriental
e ocidental? Favorecer seu alastramento incendiário pela Europa, pelo
planeta inteiro? Até a vitória, sempre? Mas que vitória? As cidades
destruídas, o fogo, os mortos nas ruas, a ignomínia dos combates furiosos
não só com os inimigos de classe, mas também no interior da mesma frente,
entre grupos revolucionários de várias regiões e convicções, todos em nome
do proletariado e de sua ditadura. Talvez até a guerra nuclear?
Fechava os olhos horrorizada. As meninas, o futuro. E me agarrava a
fórmulas: o sujeito imprevisto, a lógica destrutiva do patriarca, o valor
feminino da sobrevivência, a piedade. Preciso conversar com Lila, pensava.
Ele tem de me contar tudo o que está fazendo, o que está planejando, para
que eu possa decidir se serei ou não sua cúmplice.
Mas nunca telefonei para ela, nem ela ligou para mim. Convenci-me de
que o longo fio de voz que tinha sido nosso único contato por anos não nos
favorecera. Tínhamos mantido o laço entre nossas duas histórias, mas por
subtração. Tínhamos nos tornado entidades abstratas uma para a outra, tanto
que agora eu podia inventá-la para mim a meu modo, seja como uma
especialista em computadores, seja como uma guerrilheira urbana decidida e
implacável, ao passo que ela, com toda probabilidade, podia me ver tanto
como o estereótipo da intelectual de sucesso quanto como uma senhora culta
e abastada, toda dedicada aos filhos, aos livros e a conversas eruditas com o
marido acadêmico. Ambas precisávamos de uma nova concretude, de um
corpo, e no entanto nos distanciáramos e não conseguíamos mais nos
conceder isso.
88.
Primeiro chegaram meu pai, minha mãe, as duas meninas e Pietro. Dede e
Elsa receberam mais presentes de Elisa, que fez muita festa para elas (Dede,
meu docinho, me dê um beijão aqui; Elsa, como você é fofinha, venha aqui
com a titia, sabe que temos o mesmo nome?). Minha mãe logo desapareceu
na cozinha, cabeça baixa, sem olhar para mim. Pietro tentou me puxar para o
lado e me falar não sei o quê de grave, mas com um ar de quem quer
protestar sua inocência. Não conseguiu, meu pai o arrastou para se acomodar
em um sofá diante da televisão, que ligou num volume altíssimo.
Passou pouco tempo e apareceu Gigliola com os filhos, dois meninos
endiabrados que logo se juntaram a Dede, enquanto Elsa, perplexa, se
refugiava em mim. Gigliola estava toda produzida, tiquetaqueava sobre
saltos altíssimos, reluzia de ouro nas orelhas, no pescoço, nos braços. Mal
cabia dentro de um vestido verde brilhante, decotadíssimo, e usava uma
maquiagem pesada, que já estava se desfazendo. Dirigiu-se a mim sem
preâmbulos, sarcástica:
“Cá estamos, viemos todos só para prestigiar vocês, professores. Tudo
bem, Lenu? Aquele é o gênio da universidade? Caramba, que cabelo bonito
seu marido tem.”
Pietro se livrou de meu pai, que estava com um braço sobre seu ombro,
pôs-se de pé com um sorriso tímido e não conseguiu controlar-se, pousando
instintivamente o olhar sobre a grande onda dos peitos de Gigliola. Ela se
deu conta disso com satisfação.
“Se acomode, se acomode”, falou, “se não me envergonho. Aqui
ninguém nunca se levantou para cumprimentar uma senhora.”
Meu pai puxou meu marido para baixo, preocupado que o levassem
embora, e recomeçou a falar com ele sabe-se lá sobre o quê, apesar do alto
volume da televisão. Perguntei a Gigliola como estava, tentando comunicar-
lhe com os olhos, com o tom de voz, que não tinha me esquecido de suas
confidências e que estava ao lado dela. Isso não deve ter lhe agradado, e ela
retrucou:
“Olhe, querida, eu estou bem, você está bem, estamos todos bem. Mas,
se meu marido não tivesse me obrigado a vir aqui encher meu saco, eu
estaria bem melhor em minha casa. Só para esclarecer as coisas.”
Não consegui responder, tocaram a campainha. Minha irmã se moveu
rápida, pareceu flutuar num fio de vento, correu para abrir a porta. Ouvi que
exclamava: como estou contente, venham, mamãe, entrem. E reapareceu
trazendo pela mão a futura sogra, Manuela Solara, vestida de festa, com uma
flor falsa entre os cabelos de uma tintura avermelhada, olhos de espírito
dolente encastoados em olheiras profundas, ainda mais magra que da última
vez em que a tinha visto, quase pele e osso. Atrás dela surgiu Michele, bem-
vestido, bem barbeado, com uma força enxuta no olhar e nos gestos calmos.
E um instante depois apareceu um homenzarrão que eu quase não reconheci,
de tão enorme que era em tudo: alto, pés grandes, pernas longas, grossas e
poderosas, barriga, tórax e ombros inchados de alguma matéria pesada e
muito compacta, a grande cabeça e uma testa ampla, cabelos castanhos
compridos e penteados para trás, a barba de um antracito lustroso. Era
Marcello, me confirmou Elisa oferecendo-lhe os lábios como a um deus a
quem se deve respeito e gratidão. Ele se inclinou para retribuir o beijo,
enquanto meu pai se levantava puxando consigo também Pietro, com ar
embaraçado, e minha mãe acorria mancando da cozinha. Percebi que a
presença da senhora Solara era considerada um fato excepcional, algo que
devia orgulhar a todos. Elisa me sussurrou emocionada: hoje minha sogra faz
sessenta anos. Ah, eu disse, e enquanto isso me surpreendi que Marcello,
assim que entrou, se dirigisse diretamente a meu marido, como se os dois já
se conhecessem. Abriu-lhe um sorriso branquíssimo e gritou: tudo certo,
professô. Tudo certo o quê? Pietro respondeu com um sorriso incerto,
depois olhou para mim balançando a cabeça desolado, como se me dissesse:
fiz o possível. Eu queria que ele me explicasse, mas Marcello já estava lhe
apresentando Manuela: venha, mamãe, este é o professor marido de
Lenuccia, sente-se aqui ao lado dele. Pietro fez uma mesura, e eu também me
senti forçada a cumprimentar a senhora Solara, que disse: como você está
bonita, Lenu, bonita como sua irmã; e então me perguntou um tanto ansiosa:
faz um certo calor aqui dentro, não está sentindo? Não respondi. Dede
choramingava me chamando, Gigliola — a única que mostrava não dar
nenhum peso à presença de Manuela — gritava em dialeto algo grosseiro a
seus filhos, que tinham machucado a minha. Notei que Michele estava me
estudando em silêncio, sem me dizer nem mesmo um oi. Então o
cumprimentei com voz forte, depois tentei acalmar Dede e Elsa, que, ao ver
a irmã machucada, também estava prestes a chorar. Marcello me disse: estou
muito contente de hospedá-los em minha casa, para mim é uma grande honra,
acredite. Dirigiu-se a Elisa como se falar diretamente a mim lhe parecesse
algo além de suas forças: diga a ela como estou contente, sua irmã me deixa
intimidado. Murmurei qualquer coisa para tranquilizá-lo, mas naquele
instante bateram de novo à porta.
Michele foi abrir e voltou logo em seguida com um ar divertido. Estava
acompanhado de um homem idoso que arrastava umas malas, as minhas
malas, a bagagem que tínhamos deixado no hotel. Michele fez um sinal em
minha direção, e o homem as depositou diante de mim como se fizesse um
passe de mágica para minha diversão. Não, exclamei, ah, não, assim vocês
vão me deixar chateada. Mas Elisa me abraçou, me beijou e disse: temos
espaço, vocês não podem ficar num hotel, aqui há muitos quartos e dois
banheiros. De todo modo, enfatizou Marcello, antes eu pedi permissão a seu
marido, nunca me arriscaria a tomar essa iniciativa sozinho: professô, por
favor, converse com sua esposa, me defenda. Agitei os braços furiosa, mas
sorridente. Meu Deus, que confusão, obrigada, Marcé, muito gentil de sua
parte, mas realmente não podemos aceitar. E tentei mandar as malas de volta
para o hotel. Mas também precisei cuidar de Dede e perguntei a ela: me
deixe ver o que os meninos fizeram, não foi nada, com um beijinho já passa,
vá brincar, leve Elsa também. E chamei Pietro, já enredado nas espirais de
Manuela Solara: Pietro, por favor, venha cá, o que foi que você disse a
Marcello, não podemos dormir aqui. E me dei conta de que o nervoso estava
aumentando minha cadência dialetal, que algumas palavras me vinham no
napolitano do bairro, que o bairro — do pátio ao estradão e ao túnel —
estava me impondo sua língua, a maneira de agir e reagir, suas figuras,
aquelas que em Florença pareciam imagens desbotadas e aqui, ao contrário,
se mostravam em carne e osso.
Tocaram mais uma vez a campainha, e Elisa foi abrir. Quem mais ainda
iria chegar? Passaram-se poucos segundos e quem invadiu a sala foi
Gennaro, que logo avistou Dede, e Dede o viu incrédula, parou
imediatamente de se queixar, e ambos se perscrutaram emocionados por
aquele reencontro imprevisto. Logo depois apareceu Enzo, o único louro
entre tantos morenos, de cores claríssimas, e no entanto sombrio. Por fim
entrou Lila.
92.
Um longo tempo de palavras sem corpo, de apenas voz que corria em onda
por um mar elétrico, se rompeu de repente. Lila usava um vestido azul que ia
até acima do joelho. Estava enxuta, toda nervos, coisa que a fazia parecer
mais alta que de costume, apesar do salto baixo. Tinha vincos marcados nos
cantos da boca e dos olhos; quanto ao resto, a pele do rosto, branquíssima,
era lisa na testa e sobre as maçãs do rosto. Os cabelos penteados num rabo
de cavalo mostravam rastros de fios brancos sobre as orelhas quase sem
lobo. Assim que me avistou sorriu, apertou os olhos. Eu não sorri nem disse
nada de tão surpresa, nem mesmo um oi. Embora ambas tivéssemos trinta
anos, ela me pareceu mais velha, mais enrugada do que a imagem que eu
fazia de mim mesma. Gigliola gritou: finalmente chegou a outra princesinha,
os meninos estão com fome, não consigo mais segurá-los.
Jantamos. Me senti pressionada num mecanismo incômodo, não
conseguia engolir as garfadas. Pensava com raiva nas bagagens que eu tinha
desfeito assim que chegamos ao hotel e que tinham sido arbitrariamente
refeitas por um ou mais estranhos, pessoas que haviam tocado em minhas
coisas, nas de Pietro, das meninas, deixando tudo em desordem. Não
conseguia aceitar aquela evidência, ou seja, que eu deveria dormir na casa
de Marcello Solara para agradar a minha irmã, que dividia a cama com ele.
Com uma hostilidade que me entristecia, observava Elisa e minha mãe, a
primeira que, arrastada por uma felicidade ansiosa, falava sem parar
representando o papel de dona da casa, a segunda que parecia contente, tão
contente que até enchia o prato de Lila com boas maneiras. Espiava Enzo
comendo de cabeça baixa e importunado por Gigliola, que pressionava o
seio enorme contra seu braço e lhe falava em alto volume com tons
sedutores. Olhava com irritação para Pietro, que, embora assediado por meu
pai, por Marcello e pela senhora Solara, dava espaço sobretudo a Lila, que
estava sentada na frente dele e se mostrava indiferente a todos, inclusive a
mim — talvez sobretudo a mim —, mas não a ele. E os meninos me davam
nos nervos, cinco vidas novas que tinham se organizado em duas fileiras:
Gennaro e Dede, comportados e dissimulados, contra os filhos de Gigliola,
que bebiam vinho do copo da mãe distraída, tornando-se cada vez mais
insuportáveis, e agora atraíam a atenção de Elsa, que se associara a eles
embora nem sequer a levassem em consideração.
Quem tinha armado aquele teatro? Quem tinha misturado juntos motivos
tão diversos para fazer a festa? Seguramente Elisa, mas impelida por quem?
Talvez por Marcello. Mas Marcello com certeza tinha sido orientado por
Michele, que estava sentado a meu lado e comia à vontade, bebia,
demonstrava ignorar o comportamento da esposa e dos filhos, mas fixava
ironicamente meu marido, que parecia fascinado por Lila. O que queria
demonstrar? Que aquele era o território dos Solara? Que, mesmo tendo
fugido dali, eu pertencia àquele lugar e, consequentemente, a eles também?
Que podiam me impor qualquer coisa mobilizando afetos, vocabulário,
rituais, mas também desfazê-los, transformando por conveniência o feio em
bonito e o bonito em feio? Dirigiu-se a mim pela primeira vez desde que
tinha chegado. Viu mamãe? — me perguntou —, imagine que acabou de fazer
sessenta anos, mas quem diria? Olha como está bonita, está realmente muito
bem, não é? Elevou a voz de propósito, para que todos ouvissem não tanto
sua pergunta, mas a resposta que agora eu era obrigada a dar. Devia me
pronunciar em louvor à sua mãe. Lá estava ela, sentada ao lado de Pietro,
uma mulher idosa um tanto perdida, gentil, de aparência inócua, o rosto
comprido e ossudo, o nariz maciço, aquela flor maluca nos cabelos ralos. No
entanto era a agiota que tinha consolidado a fortuna da família; a
organizadora e guardiã do livro vermelho no qual estavam os nomes de
tantos do bairro, da cidade, da província; a mulher do crime sem castigo,
fêmea impiedosa e perigosíssima, de acordo com a fantasia telefônica à qual
eu me abandonara em companhia de Lila, e também segundo não poucas
páginas de meu romance abortado: a mãe que tinha assassinado dom Achille
para tomar seu lugar no monopólio da agiotagem e que educara os dois filhos
para se apropriar de tudo, passando por cima de todos. E agora eu me via
forçada a dizer a Michele: sim, é verdade, como sua mãe é bonita, está
excelente com a idade que tem, parabéns. E via com o rabo do olho que Lila
parara de falar com Pietro e só esperava por isso, já se virava para me ver,
os lábios cheios quase entreabertos, os olhos em fenda, a fronte franzida. Li
em seu rosto o sarcasmo, me ocorreu que talvez tivesse sido ela quem
sugerira a Michele me colocar naquela gaiola: mamãe acabou de fazer
sessenta anos, Lenu, a mãe de seu cunhado, a sogra de sua irmã, vejamos
o que você tem a dizer agora, vamos ver se continua bancando a
professorinha. Respondi virando-me para Manuela: meus parabéns, e nada
mais. Mas logo interveio Marcello como para me ajudar, exclamando
comovido: obrigado, obrigado, Lenu. Então se dirigiu à mãe, que tinha o
rosto castigado de suor e manchas vermelhas no pescoço descarnado:
Lenuccia lhe deu os parabéns, mamãe. E logo em seguida Pietro disse à
mulher sentada a seu lado: parabéns igualmente de minha parte, senhora.
Assim todos — todos, exceto Gigliola e Lila — renderam homenagem à
senhora Solara, inclusive os meninos, em coro: que tenha cem dias como
este, Manuela, cem dias como este, vovó. Mas ela se esquivou,
resmungando: estou velha, e tirou da bolsa um leque azul com a imagem do
golfo e do Vesúvio fumegante, passando a abanar-se primeiro devagar,
depois cada vez com mais energia.
Mesmo tendo se dirigido a mim, Michele pareceu dar mais peso aos
parabéns de meu marido. Falou a ele com cortesia: muito gentil, professô, o
senhor não é daqui e não pode saber quais são os méritos de nossa mãe.
Então assumiu um tom confidencial: nós somos gente boa, meu avô — que
Deus o tenha — começou com um bar aqui ao lado, do nada, e meu pai o
ampliou, fez uma confeitaria apreciada em toda Nápoles graças também à
competência de Spagnuolo, o pai de minha esposa, um confeiteiro
extraordinário — não é, Giglió? Mas — acrescentou — é à minha mãe, à
nossa mãe, que devemos tudo. Nos últimos tempos, pessoas invejosas,
pessoas que não gostam de nós, espalharam boatos odiosos a respeito dela.
Mas somos gente tolerante, com uma vida habituada ao comércio, a ter
paciência. Seja como for, a verdade sempre triunfa. E a verdade é que esta
senhora é inteligentíssima, tem um caráter forte, nunca houve sequer um
momento em que se pudesse pensar: não está com ânimo de fazer nada. Ela
sempre trabalhou, sempre, e o fez somente pela família, nunca usufruiu nada.
O que temos hoje é o que ela construiu para nós, seus filhos, o que hoje
fazemos é apenas o prosseguimento de tudo o que ela fez.
Manuela se abanou com um gesto mais ponderado e disse em voz alta a
Pietro: Michele é um filho de ouro, desde pequeno; no Natal, subia na mesa
e recitava poesias com perfeição; mas tem o defeito de gostar de falar e,
falando, sempre exagera. Marcello interveio: não, mamãe, exagero nenhum, é
tudo verdade. E Michele continuou tecendo elogios a Manuela, como ela era
bonita, como era generosa, não terminava nunca. Até que, inesperadamente,
se dirigiu a mim. Disse sério, aliás, solene: há apenas outra mulher que é
quase como nossa mãe. Outra mulher? Uma mulher quase comparável a
Manuela Solara? Olhei perplexa para ele. A frase, apesar daquele quase,
estava fora de lugar, e o jantar barulhento ficou sem som por alguns
segundos. Gigliola fixou o marido com olhos nervosos, as pupilas dilatadas
pelo vinho e pelo desgosto. Minha mãe também fez uma expressão que
destoava, vigilante: talvez esperasse que aquela mulher fosse Elisa, que
Michele estivesse prestes a atribuir a sua filha uma espécie de direito de
sucessão ao pódio mais elevado dos Solara. Manuela parou de abanar-se
por um instante, enxugou com o indicador o suor sobre o lábio e esperou que
o filho invertesse aquelas palavras numa tirada zombeteira.
Mas ele, com a ousadia que sempre o distinguira, lixando-se para a
mulher, para Enzo e até para a mãe, fixou Lila enquanto no rosto lhe subia
uma cor esverdeada, o gesto se tornava mais agitado e as palavras serviam
de laço para arrancá-la à atenção que continuava dispensando a Pietro.
Nesta noite, disse, estamos todos aqui, na casa de meu irmão, primeiro para
acolher como se deve estes dois exímios professores e suas belas meninas;
segundo, para festejar o aniversário de minha mãe, uma mulher santíssima;
terceiro, para desejar a Elisa muitas felicidades e em breve um lindo
casamento; quarto, se me permitem, para brindar um acordo que eu receava
jamais conseguir selar: Lina, venha cá, por favor.
Lina. Lila.
Busquei seu olhar, e ela me retribuiu por uma fração de segundo, uma
mirada que queria dizer: agora você entendeu o jogo, se lembra de como
funciona? Então, para minha grande surpresa, enquanto Enzo fixava um ponto
indeterminado da toalha de mesa, ela se ergueu mansamente e foi até
Michele.
Ele não a tocou. Sequer roçou sua mão, seu braço, nada, como se entre
eles houvesse uma lâmina que pudesse feri-lo. Em vez disso, apoiou por uns
segundos os dedos em meu ombro e se dirigiu mais uma vez a mim: não se
ofenda, Lenu, você é excelente, você trilhou um longo caminho, você
apareceu nos jornais, você é o orgulho de todos nós que a conhecemos desde
pequena. Mas — e estou certo de que você vai gostar e estará de acordo com
o que digo agora, porque tem afeto por ela — Lina tem uma coisa viva na
cabeça que ninguém tem, uma coisa forte, que salta pra cá e pra lá e nada
consegue segurá-la, uma coisa que nem os médicos sabem ver e que, na
minha opinião, nem mesmo ela conhece, apesar de tê-la desde o nascimento
— não a conhece e não quer reconhecer, vejam que cara malvada está
fazendo neste momento —, uma coisa que, se ela não estiver de bom humor,
pode causar muitos problemas a qualquer um, mas, quando está de bom
gênio, deixa todo mundo boquiaberto. Bem, faz um tempão que eu quero
comprar essa sua particularidade. Comprar, sim, não há nada de mal,
comprar como se faz com as pérolas, com os diamantes. Mas até hoje
infelizmente não foi possível. Demos apenas um passo adiante, e é este
pequeno passo adiante que quero comemorar nesta noite: contratei a senhora
Cerullo para trabalhar no centro mecanográfico que instalei em Acerra, um
troço moderníssimo que, se lhe interessar, Lenu, se interessar ao professor,
podemos visitar amanhã mesmo, ou antes de vocês partirem. O que me diz,
Lina?
Lila fez uma expressão desgostosa. Balançou a cabeça incomodada e
disse, fixando a senhora Solara: Michele não entende nada de computadores
e acha que eu faço sabe-se lá o quê, mas é tudo bobagem, basta um curso por
correspondência, até eu aprendi, que parei na quinta fundamental. E não
acrescentou mais nada. Não debochou de Michele — como eu esperava que
fizesse — por aquela imagem bem terrível que ele inventara, a coisa viva
que lhe corria dentro da cabeça. Não zombou dele por causa das pérolas,
dos diamantes. Acima de tudo não se esquivou diante dos cumprimentos. Ao
contrário, deixou que brindássemos sua ascensão como se de fato tivesse
ascendido aos céus, permitiu que Michele continuasse a elogiando e
justificando com elogios o salário que lhe pagava. E tudo isso enquanto
Pietro, com sua capacidade de se sentir à vontade com pessoas que julgava
inferiores, já dizia, sem sequer me consultar, que queria muito ir conhecer o
centro de Acerra e passou a perguntar a Lila, que nesse intervalo tornara a se
sentar, tudo sobre o assunto. Pensei por um instante que, se eu lhe desse mais
tempo, ela me tomaria o marido assim como me tomou Nino. Mas não senti
ciúme: se isso tivesse ocorrido, ocorreria apenas por vontade de cavar mais
fundo uma vala entre nós, eu dava por certo que Pietro não podia interessar a
ela, e que Pietro nunca seria capaz de me trair por desejo de uma outra.
No entanto fui tomada por outro sentimento, mais confuso. Eu estava no
lugar em que tinha nascido, era considerada desde sempre a garota que tinha
se saído melhor, estava convencida de que, naquele ambiente, isso se tratava
de um dado indiscutível. Entretanto Michele, como se tivesse organizado de
propósito meu rebaixamento no bairro e especialmente no seio da família de
onde eu vinha, agira de modo que Lila me obscurecesse, pretendendo
inclusive que eu mesma concordasse com meu obscurecimento ao reconhecer
publicamente a potência inigualável de minha amiga. E ela aceitara de bom
grado que isso acontecesse. Aliás, talvez até tivesse colaborado para aquele
resultado, talvez ela mesma o tivesse planejado e organizado. Se uns anos
atrás, quando eu tive meu pequeno sucesso de escritora, o fato não me teria
ferido — ao contrário, até me teria dado prazer —, agora que tudo estava
acabado me dei conta de que sofria. Troquei um olhar com minha mãe.
Estava de cenho franzido, com a expressão que fazia quando se esforçava
para não me dar um tapa. Queria que eu não assumisse a habitual expressão
pacífica, queria que eu reagisse, que mostrasse quantas coisas sabia, tudo
coisa de primeira qualidade, não aquela cretinice de Acerra. Estava me
dizendo isso com os olhos, como uma ordem muda. Mas eu me calei. Já
Manuela Solara exclamou de repente, lançando ao redor olhares de agonia:
estou com muito calor, vocês também?
93.
Elisa, assim como minha mãe, não devia tolerar que eu perdesse prestígio.
Porém, enquanto minha mãe se manteve calada, ela se virou para mim
radiante e afetuosa e reiterou que eu continuava sendo sua extraordinária
irmã mais velha, de quem sempre sentiria orgulho. Preciso lhe dar uma
coisa, disse, acrescentando com seu saltitar alegre de um assunto a outro:
você já andou de avião? Respondi que não. Mas será possível? Pois é. Então
veio à tona que, dos presentes ali, somente Pietro já tinha voado, e várias
vezes, mas tratou o fato como se não tivesse nada de especial. Já para Elisa
tinha sido uma experiência maravilhosa, e para Marcello também. Tinham
ido para a Alemanha num voo longo, por motivos de trabalho e de lazer. No
início Elisa tivera um certo medo com aqueles choques e solavancos, um
jato de ar gelado a atingia justo na cabeça, como se quisesse perfurá-la.
Depois avistou pela janelinha umas nuvens branquíssimas sob um céu muito
azul no alto. Assim descobriu que, por cima das nuvens, fazia sempre tempo
bom, e que do alto a terra era toda verde e azul e roxa, com a neve
resplandecente quando se passava sobre as montanhas. Perguntou a mim:
“Adivinhe quem encontramos em Düsseldorf?”
Murmurei sem ânimo nenhum:
“Não sei, Elisa, quem?”
“Antonio.”
“Ah.”
“Mandou muitas lembranças a você.”
“Ele está bem?”
“Está ótimo. E me deu um presente para você.”
Então era aquilo que ela precisava me dar, um presente de Antonio. Ela
se levantou e foi correndo buscá-lo. Marcello me olhou divertido. Pietro
perguntou:
“Quem é Antonio?”
“Um funcionário nosso”, respondeu Marcello.
“Um namorado de sua esposa”, disse Michele rindo. “Os tempos
mudaram, professô, hoje as mulheres têm um monte de namorados e se
gabam disso mais do que os homens. O senhor quantas namoradas teve?”
Pietro disse sério:
“Eu, nenhuma; meu único amor foi minha esposa.”
“Mentiroso”, exclamou Michele zombeteiro, “posso lhe dizer no
ouvido quantas namoradas eu tive?”
Levantou-se e, acompanhado pelo olhar desgostoso de Gigliola,
aproximou-se de meu marido e lhe sussurrou alguma coisa.
“Inacreditável”, exclamou Pietro com uma discreta ironia. Ambos
riram.
Nesse meio tempo Elisa voltou e me estendeu um pacote embrulhado
em papel pardo.
“Abra.”
“Você já sabe o que é?”, perguntei perplexa.
“Nós dois sabemos”, disse Marcello, “mas esperamos que você não
saiba.”
Desembrulhei o pacote. Enquanto o fazia, percebi que todos me
olhavam. Lila especialmente me observava de esguelha, atenta, como se
esperasse que dali saltasse uma serpente. Quando perceberam que Antonio
— o filho de Melina, a louca, o criado semianalfabeto e violento dos Solara,
meu namorado de adolescência — não me mandara nada de extraordinário,
nada de comovente, nada que aludisse ao tempo passado, mas simplesmente
um livro, pareceram decepcionados. Depois viram, no entanto, que eu
mudara de cor, que estava olhando a capa com uma alegria que não
conseguia controlar. Não era um livro qualquer. Era o meu livro. A tradução
alemã de meu romance, seis anos após sua publicação na Itália. Pela
primeira vez me acontecia de assistir ao espetáculo — um espetáculo, sim
— das minhas palavras que dançavam sob meus olhos numa língua
estrangeira.
“Você não sabia de nada?”, perguntou Elisa feliz.
“Não.”
“E está contente?”
“Contentíssima.”
Minha irmã anunciou a todos orgulhosamente:
“É o romance que Lenuccia escreveu, mas com as palavras em
alemão.”
Minha mãe ficou vermelha de vingança e disse:
“Viram como ela é famosa?”
Gigliola pegou o livro, o folheou e murmurou admirada: a única coisa
que se entende é Elena Greco. Lila então estendeu a mão de modo
imperativo, fazendo sinal para que o passassem a ela. Vi curiosidade em
seus olhos, o desejo de tocar, olhar e ler a língua desconhecida que me
continha e me transportara para muito longe. Vi nela a urgência daquele
objeto, uma urgência que reconheci, que era dela desde pequena, e me
comovi. Mas Gigliola teve um ímpeto raivoso, segurou o livro para que ela
não o pegasse e falou:
“Espere, agora eu estou com ele. O que é? Você também sabe alemão?”.
E Lila retraiu a mão, balançou a cabeça em sinal negativo, ao que Gigliola
exclamou: “Então não encha o saco, me deixe ver: quero olhar bem o que
Lenuccia foi capaz de fazer”. Depois, em meio ao silêncio geral, revirou o
livro nas mãos com satisfação. Folheou as páginas uma a uma, lentamente,
como se lesse cinco linhas aqui, quatro ali. Até que me disse com a voz
empastada pelo vinho, devolvendo-o a mim: “Excelente, Lenu, parabéns por
tudo, pelo livro, pelo marido, pelas meninas. A gente achando que só nós
conhecemos você, mas até os alemães te conhecem. Tudo o que você
conquistou foi merecido, obtido com esforço, sem fazer mal a ninguém, sem
fazer merda com o marido das outras. Obrigada, agora preciso mesmo ir
embora, boa noite”.
Ergueu-se a custo, suspirando, estava ainda mais pesada por causa do
vinho. Gritou aos meninos: vamos logo, e eles protestaram, o maior disse
algo obsceno em dialeto, ela lhe deu um tapa e o arrastou até a porta.
Michele balançou a cabeça com um sorriso e resmungou: passo o maior
aperto com essa idiota, sempre tem de acabar com meu dia. Então falou
calmo: espere, Giglió, pra que tanta pressa, primeiro vamos comer os doces
de seu pai, depois vamos. No mesmo instante, encorajados pelas palavras do
pai, os meninos se livraram e retornaram à mesa. Mas Gigliola seguiu com o
passo pesado rumo à porta, dizendo com raiva: então vou embora sozinha,
não estou me sentindo bem. Nesse ponto Michele gritou com voz forte,
carregada de violência: sente-se imediatamente, e ela estacou como se a
frase tivesse paralisado suas pernas. Elisa se levantou murmurando: venha,
venha comer a torta com a gente. Pegou-a pelo braço e a conduziu até a
cozinha. Eu tranquilizei Dede com o olhar, estava assustada com o berro de
Michele. Depois estendi o livro a Lila dizendo: quer ver? Ela fez sinal
negativo, com uma expressão de indiferença.
94.
Telefonei para Adele assim que cheguei em casa, para saber da tradução
alemã que Antonio me dera de presente. Ela caiu das nuvens, também não
sabia de nada e ligou para a editora. Logo em seguida me telefonou de novo
para dizer que o livro tinha saído não só na Alemanha, mas também na
França e na Espanha. Então — perguntei — o que eu devo fazer? Adele
respondeu perplexa: nada, ficar contente. Claro, murmurei, estou muito
contente, mas do ponto de vista prático, sei lá, eu deveria viajar, divulgá-lo
no exterior? Ela me respondeu com afeto: você não precisa fazer nada,
Elena, infelizmente o livro não vendeu em lugar nenhum.
Meu humor piorou. Atormentei a editora, pedi notícias precisas sobre
as traduções, me irritei porque ninguém tinha se preocupado em me informar
e acabei dizendo a uma sonolenta funcionária: fiquei sabendo da edição
alemã não por vocês, mas por um amigo meu semianalfabeto; será que vocês
são capazes de fazer seu trabalho direito? Depois me desculpei, me senti
estúpida. Um a um, me chegaram os exemplares em francês, em espanhol e
em alemão, uma cópia sem o aspecto amassado daquela que Antonio me
mandara. Eram edições feias: na capa havia mulheres com roupas pretas,
homens de bigodes caídos e boné na cabeça, panos estendidos no varal.
Folheei os livros, mostrei-os a Pietro, coloquei-os numa prateleira entre
outros romances. Papel mudo, papel inútil.
Começou um período de desânimo e grande descontentamento.
Telefonava todos os dias a Elisa para saber se Marcello continuava sendo
gentil, se tinha decidido se casar. À minha ladainha apreensiva ela respondia
com risadas festeiras e relatos de vida alegre, as viagens de carro ou avião,
a crescente prosperidade de nossos irmãos, o bem-estar de nosso pai e de
nossa mãe. Agora, em certos momentos, eu a invejava. Estava cansada,
irascível. Elsa adoecia constantemente, Dede exigia atenção, Pietro vadiava
sem terminar seu livro. Eu ficava furiosa por nada. Gritava com as meninas,
brigava com meu marido. O resultado foi que os três passaram a me temer.
As meninas, só de eu passar na frente do quarto delas, interrompiam a
brincadeira e me olhavam assustadas; e Pietro preferiu cada vez mais a
biblioteca da universidade à nossa casa. Saía de manhã cedo, voltava à
noite. Quando retornava parecia trazer em si os sinais dos conflitos sobre os
quais eu, agora excluída de qualquer atividade pública, ficava sabendo
apenas pelos jornais: os fascistas que esfaqueavam e matavam, os
companheiros que não deixavam por menos, a polícia que recebia por lei
amplo direito de atirar e o fazia inclusive ali, em Florença. Até que
aconteceu o que eu esperava fazia tempos: Pietro se viu no centro de um
triste episódio que deu muito o que falar nos jornais. Reprovou um rapaz de
sobrenome importante, muito engajado nas lutas. O jovem o insultou na
frente de todos e apontou uma pistola para ele. Pietro, segundo o relato que
me fez não ele, mas uma nossa conhecida — uma versão de segunda mão, já
que ela não estava presente —, terminou com calma de registrar a
reprovação, estendeu o boletim ao rapaz e falou mais ou menos assim: ou o
senhor atira a sério, ou é bom se livrar logo dessa arma, porque daqui a um
minuto saio daqui e vou à delegacia denunciá-lo. O rapaz continuou por
longos segundos apontando a pistola para a cara dele, depois a meteu no
bolso, pegou o boletim e foi embora. Poucos minutos depois, Pietro foi à
polícia e o estudante foi detido. Mas a coisa não terminou ali. A família do
jovem recorreu não a ele, mas ao pai, para que o convencesse a retirar a
queixa. O professor Guido Airota tentou persuadir o filho, houve longos
telefonemas durante os quais, com certo espanto, sentiu que o velho perdia a
calma e erguia a voz. Mas Pietro não cedeu. De modo que o afrontei
agitadíssima e perguntei:
“Você se dá conta de como está se comportando?”
“O que eu deveria fazer?”
“Diminuir a tensão.”
“Não estou entendendo.”
“Você não quer entender. Você é idêntico aos nossos professores de
Pisa, aos mais insuportáveis.”
“Não acho.”
“Mas é. Você se esqueceu de como a gente penou inutilmente para
acompanhar cursos insossos e passar em provas ainda mais insossas?”
“Meu curso não é insosso.”
“Seria bom você perguntar isso a seus estudantes.”
“Só se pede um parecer a quem tem a competência para dá-lo.”
“E você me pediria um parecer se eu fosse uma aluna sua?”
“Tenho ótimas relações com quem estuda.”
“Ou seja, você gosta dos que lhe abanam o rabinho.”
“E você gosta dos que bancam os bravateiros, como sua amiga de
Nápoles?”
“Gosto.”
“Então por que você sempre foi a mais leal?”
Fiquei confusa.
“Porque eu era pobre e achava um milagre ter chegado até ali.”
“Bem, aquele rapaz não tem nada em comum com você.”
“Você também não tem nada em comum comigo.”
“O que você quer dizer?”
Não respondi, me esquivei por prudência. Mas depois minha raiva
cresceu de novo, tornei a criticar sua intransigência, insisti: se você já tinha
reprovado o rapaz, qual o sentido de ir denunciá-lo? Resmungou: ele
cometeu um crime. Eu: era uma brincadeira para assustá-lo, é um garoto.
Respondeu frio: aquela pistola é uma arma, não um brinquedo, e foi roubada
com outras armas sete anos atrás, em um quartel da polícia de Rovezzano.
Repliquei: o rapaz não atirou. Ele desabafou: a arma estava carregada, e se
tivesse atirado? Não atirou, gritei. Ele ergueu a voz mais ainda: eu devia
esperar que me desse um tiro para denunciá-lo? Berrei: não grite comigo,
seus nervos estão em frangalhos. Respondeu: pense antes nos seus. E foi
inútil tentar explicar para ele, agitadíssima, que apesar de minhas palavras e
do tom polêmico na verdade aquela situação me parecia muito perigosa, e eu
estava preocupada. Tenho medo por você, disse, pelas meninas, por mim.
Mas ele não me consolou. Trancou-se no escritório e tentou trabalhar no
livro. Somente semanas depois me falou que tinha sido procurado duas vezes
por policiais à paisana que lhe pediram informações sobre alguns estudantes,
mostrando umas fotos. Na primeira vez ele os recebeu com gentileza, e com
gentileza os mandou embora sem lhes dar nenhuma informação. Na segunda
vez perguntou:
“Esses jovens cometeram algum crime?”
“Não, por enquanto, não.”
“Então o que vocês querem de mim?”
E os acompanhou até a porta com toda a polidez desdenhosa de que era
capaz.
98.
Durante meses Lila nunca telefonou, devia estar muito ocupada. Eu também
não a procurei, mesmo quando precisava. Para atenuar a impressão de vazio,
tentei me reaproximar de Mariarosa, mas os obstáculos eram muitos. Agora
Franco estava morando definitivamente na casa de minha cunhada, e Pietro
não gostava nem que eu me apegasse demais à irmã, nem que encontrasse
meu ex-namorado. Se eu ficava por mais de um dia em Milão, o humor dele
piorava, os males imaginários se multiplicavam, as tensões cresciam. Além
disso, o próprio Franco, que em geral só saía de casa para os tratamentos
médicos que continuava tendo de seguir, não apreciava minha presença,
demonstrava intolerância com as vozes muito altas das meninas e às vezes
sumia de casa, assustando Mariarosa e a mim. De resto, minha cunhada tinha
mil compromissos e estava permanentemente cercada de mulheres. O
apartamento dela era uma espécie de centro de encontro, acolhia qualquer
um, intelectuais, senhoras respeitáveis, trabalhadoras fugindo de
companheiros violentos, garotas perdidas, de modo que tinha pouco tempo
para mim e, seja como for, era muito dada a todas para que eu pudesse me
sentir segura de nossa relação. No entanto na casa dela, por alguns dias, me
voltava a vontade de estudar, às vezes de escrever. Ou melhor, tinha a
impressão de que era capaz disso.
Discutíamos muito sobre nós. Porém, mesmo sendo exclusivamente
mulheres — quando não escapava de casa, Franco se refugiava em seu
quarto —, tínhamos uma grande dificuldade de entender o que era uma
mulher. Cada gesto, pensamento, fala ou sonho nosso, uma vez analisado em
profundidade, parecia não nos pertencer. E esse escavar exasperava as mais
frágeis, que mal suportavam o excesso de autorreflexão e consideravam que,
para tomar o caminho da liberdade, bastava simplesmente excluir os homens.
Eram tempos agitados, movidos em onda. Muitas de nós temiam o retorno à
calmaria plana e mantinham-se na crista, agarrando-se a fórmulas extremas e
olhando para baixo com medo e com raiva. Quando se soube que o serviço
de segurança de Luta Contínua havia atacado uma passeata separatista de
mulheres, os ânimos se acirraram a tal ponto que, se alguma das mais
radicais descobria que Mariarosa tinha um homem em casa — algo que ela
não declarava, mas tampouco escondia —, a discussão se tornava feroz, e as
rupturas, dramáticas.
Eu detestava aqueles momentos. Estava buscando estímulos, não
conflitos, hipóteses de sondagem, não dogmas. Ou pelo menos era o que eu
dizia a mim mesma, às vezes até a Mariarosa, que me escutava em silêncio.
Numa daquelas ocasiões consegui falar sobre meu relacionamento com
Franco nos tempos da Normal, do que tinha significado para mim. Tenho
gratidão por ele, disse, com ele aprendi muito, e lamento que hoje ele nos
trate a mim e as meninas com frieza. Fiz uma pausa, depois continuei: talvez
haja algo errado nessa vontade dos homens de nos instruir; na época eu era
uma menina e não percebia que, naquele seu desejo de me transformar,
estava a prova de que não gostava de mim tal como eu era, queria que eu
fosse outra, ou melhor, não desejava simplesmente uma mulher, mas uma
mulher como ele imaginava que poderia ser se tivesse nascido mulher. Para
Franco, disse, eu era uma possibilidade de ele expandir-se no feminino, de
apossar-se disso: eu constituía a prova de sua onipotência, a demonstração
de que sabia ser não só homem do modo certo, mas também mulher. E hoje,
que não me sente mais como uma parte de si, se sente traído.
Me expressei exatamente desta maneira. E Mariarosa me ouviu com um
interesse autêntico, não do jeito um pouco fingido que demonstrava com
todas. Escreva alguma coisa sobre esse tema, me incentivou. E então se
comoveu, murmurou que não tivera tempo de conhecer o Franco sobre quem
eu lhe falara. Depois acrescentou: talvez tenha sido bom assim, eu nunca me
apaixonaria por ele, detesto homens muito inteligentes, que me dizem como
devo ser; prefiro esse homem sofrido e reflexivo que eu trouxe para minha
casa e de quem cuido. Então insistiu: ponha isso por escrito, isso mesmo que
você disse.
Fiz sinal que sim e, meio atropeladamente, satisfeita com o elogio, mas
também embaraçada, disse algo sobre minha relação com Pietro, sobre como
ele tentava me impor seu ponto de vista. Dessa vez Mariarosa caiu na risada,
e o tom quase solene de nossa conversa mudou. Franco comparado a Pietro?
Você está brincando, ela disse, Pietro mal consegue sustentar a própria
virilidade, imagine se teria energia para lhe impor um sentimento seu sobre a
mulher. Quer saber uma coisa? Eu teria jurado que você não se casaria com
ele. Juraria que, se o tivesse feito, o abandonaria no intervalo de um ano.
Juraria que teria evitado ao máximo ter filhos. O fato de que ainda estejam
juntos me parece um milagre. Você é mesmo uma jovem excelente, coitada.
99.
Nino não tinha mais a barba cheia que eu vira anos antes na livraria, mas os
cabelos eram compridos e emaranhados. Quanto ao resto, continuava o
mesmo rapaz de antigamente, alto, magérrimo, os olhos brilhantes, o aspecto
desleixado. Abraçou-me, se ajoelhou para fazer um dengo nas meninas, se
levantou desculpando-se pela intrusão. Murmurei poucas palavras distantes:
venha, se sente, você aqui em Florença. Me sentia como se tivesse vinho
quente no cérebro, não conseguia conferir espessura ao que estava
acontecendo: ele, justamente ele, em minha casa. E tinha a impressão de que
algo não funcionava mais na organização do dentro e do fora. O que eu
estava imaginando e o que estava ocorrendo, quem era a sombra e quem o
corpo vivo? Enquanto isso Pietro me explicava: a gente se viu na faculdade,
e eu o convidei para almoçar. Eu sorria e dizia sim, está tudo pronto, onde
comem quatro comem cinco, me façam companhia enquanto eu ponho a mesa.
Parecia tranquila, mas estava agitadíssima, a cara me doía pelos sorrisos
forçados. Como é que Nino está aqui, e o que é aqui, o que é está? Preparei
uma surpresa para você, me disse Pietro um tanto apreensivo, como quando
temia ter errado em alguma coisa. E Nino, rindo: eu disse a ele que lhe
telefonasse, juro, mas ele não quis. Depois explicou que foi meu sogro quem
lhe disse que nos procurasse. Tinha encontrado o professor Airota em Roma,
no congresso do partido socialista, e lá, uma palavra puxa outra, ele dissera
que tinha um trabalho a fazer em Florença e o professor mencionara Pietro e
o novo estudo que o filho estava escrevendo, disse que precisava mandar-lhe
um livro com urgência. Nino então se oferecera para trazê-lo pessoalmente,
e aqui estávamos todos nós no almoço, as meninas disputando a atenção
dele, ele fazendo brincadeiras com ambas, concordando com Pietro, me
dirigindo poucas e seríssimas palavras.
“Imagine”, me disse, “vim tantas vezes a Florença a trabalho e não
sabia que você morava aqui, que tinha estas duas belas senhoritas. Ainda
bem que apareceu essa ocasião.”
“Você continua dando aula em Milão?”, perguntei, mesmo sabendo que
ele já não estava naquela cidade.
“Não, agora estou ensinando em Nápoles.”
“O quê?”
Fez uma careta de desânimo.
“Geografia.”
“Mais especificamente?”
“Geografia urbana.”
“Como é que você decidiu voltar?”
“Minha mãe não está bem.”
“Lamento. O que é que ela tem?”
“Problemas no coração.”
“E seus irmãos?”
“Estão bem.”
“Seu pai?”
“Como sempre. Mas o tempo passa, a gente cresce, e ultimamente nos
reaproximamos. Como todo mundo, ele tem seus defeitos e suas qualidades.”
Então se dirigiu a Pietro: “Quantos casos inventamos contra nossos pais e
contra a família. Agora, que chegou nossa vez, como nos saímos dessa?”.
“Eu me saio bem”, disse meu marido com uma ponta de ironia.
“Não tenho dúvidas. Você se casou com uma mulher extraordinária, e
estas duas princesas são perfeitas, educadíssimas, elegantíssimas. Que
vestidinho lindo, Dede, como fica bem em você. E quem deu a Elsa esse
passador com estrelinhas?”
“Mamãe”, disse Elsa.
Aos poucos fui me acalmando. Os segundos recuperaram a escansão
normal, e me dei conta do que estava acontecendo comigo. Nino estava
sentado a meu lado na mesa, comia a massa que eu tinha preparado, cortava
cuidadosamente em pequenos pedaços a costeleta de Elsa, comia a dele com
apetite, mencionava com desgosto as propinas que a Lockheed pagara a
Tanassi e a Gui, elogiava minha comida, discutia com Pietro sobre a
alternativa socialista, descascava uma maçã fazendo uma serpentina que
deixava Dede fascinada. Enquanto isso, espalhava-se pelo apartamento um
fluido benigno que eu não sentia há tempos. Como era bonito ver os dois
homens dando razão um ao outro, demonstrando simpatia recíproca.
Comecei a tirar a mesa em silêncio. Nino se levantou, se ofereceu para lavar
os pratos, desde que as meninas o ajudassem. Fique sentada, me disse, e eu
me acomodei enquanto ele recrutava Dede e Elsa, ambas entusiasmadas, me
perguntando de vez em quando onde devia guardar isso e aquilo e
continuando a conversa com Pietro.
Era ele mesmo, depois de tanto tempo, e estava ali. Eu olhava sem
querer a aliança que ele usava no dedo anular. Em nenhum momento
mencionou seu casamento, pensei, falou sobre a mãe, sobre o pai, mas não
da mulher e do filho. Talvez não tenha sido um casamento por amor, talvez
tenha se casado por interesse, talvez tenha sido forçado a se casar. Depois o
borboletear das hipóteses cessou. De uma hora para outra Nino começou a
falar às meninas de seu filho, Albertino, e o fez como se o pequeno fosse o
personagem de um conto de fadas, com entonação ora engraçada ora
carinhosa. Por fim enxugou as mãos, tirou uma fotografia da carteira,
mostrou-a primeiro a Elsa, depois a Dede, depois a Pietro, que a passou a
mim. Albertino era muito bonito. Tinha dois anos e estava no colo da mãe
com um ar emburrado. Olhei o pequeno por poucos segundos e logo passei a
examinar a mulher. Pareceu-me esplêndida, olhos grandes, cabelos pretos e
longos, devia ter pouco mais de vinte anos. Sorria, e os dentes eram uma
arcada cintilante e sem irregularidades, o olhar me pareceu apaixonado.
Devolvi-lhe a foto e disse: vou fazer o café. Fiquei só na cozinha, e os
quatro foram para a sala de estar.
Nino tinha um encontro de trabalho, se desmanchou em desculpas e saiu
logo após o café e um cigarro. Retorno a Nápoles amanhã, disse, mas volto
logo, já na próxima semana. Pietro disse várias vezes que aparecesse, ele
prometeu que o faria. Despediu-se das meninas com grande carinho, apertou
a mão de Pietro, fez um sinal para mim e desapareceu. Assim que a porta se
fechou às suas costas, fui vencida pela esqualidez do apartamento. Esperei
que Pietro, mesmo tendo estado tão à vontade com Nino, notasse algo de
odioso no hóspede, como quase sempre fazia. No entanto disse contente: até
que enfim uma pessoa com quem vale a pena passar o tempo. Não sei por
que, aquela frase me fez mal. Liguei a televisão e passei o resto da tarde
diante dela, com as meninas.
101.
Esperei que Nino ligasse logo, já no dia seguinte. Estremecia a cada toque
do telefone. Entretanto a semana passou sem que ele desse notícias. Me senti
como se estivesse com um forte resfriado. Fiquei sem vontade, interrompi
minhas leituras e anotações, me irritei comigo mesma por aquela espera
insensata. Depois, numa tarde, Pietro voltou para casa particularmente de
bom humor. Disse que tinha encontrado Nino na faculdade, que passaram um
tempo juntos, que não teve jeito de convencê-lo a vir jantar. Mas nos
convidou para jantar fora amanhã — disse —, as meninas também: não quer
que você se canse na cozinha.
Meu sangue começou a correr mais rápido, senti uma ternura ansiosa
por Pietro. Assim que as meninas foram deitar, o abracei, o beijei, lhe
sussurrei palavras de amor. Dormi pouco durante a noite, ou melhor, dormi
com a impressão de estar acordada. No dia seguinte, assim que Dede voltou
da escola, mandei-a para a banheira com Elsa e esfreguei bem as duas.
Depois passei a cuidar de mim. Tomei um longo banho feliz, me depilei,
lavei os cabelos, me enxuguei com cuidado. Experimentei todos os vestidos
que tinha, fiquei cada vez mais nervosa porque não gostava de mim, logo me
desanimei de como estavam meus cabelos, Dede e Elsa sempre em torno de
mim, brincando de me imitar. Faziam poses no espelho, mostravam-se
insatisfeitas com as roupas e os penteados, se arrastavam com meus sapatos
nos pés. Resignei-me a ser o que eu era. Depois de ter repreendido Elsa de
modo excessivo por ela ter sujado seu vestidinho no último momento, entrei
no carro e fomos buscar Pietro e Nino, que tinham marcado um encontro na
universidade. Fiz o percurso angustiada, gritando continuamente com as
meninas que brincavam de cantar musiquinhas inventadas por elas, todas
sobre cocô e xixi. Quanto mais me aproximava do local do encontro, mais
torcia para que algum incidente de última hora impedisse Nino de vir. No
entanto avistei logo os dois homens, que conversavam entre si. Nino tinha
gestos envolventes, como se convidasse o interlocutor a entrar num espaço
planejado especialmente para ele. Pietro me pareceu desengonçado como
sempre, a pele do rosto avermelhada, rindo apenas ele, e de modo
subalterno. Nenhum dos dois demonstrou particular interesse por minha
chegada.
Meu marido se sentou no banco traseiro com as meninas, Nino se
acomodou a meu lado para me guiar a um lugar onde se comia bem e —
disse, virando-se para Dede e Elsa — faziam frittelle excelentes. Então as
descreveu minuciosamente, causando frisson nas meninas. Tempos atrás —
pensei, observando-o com o rabo do olho — passeamos juntos de mãos
dadas e nos beijamos duas vezes. Que belos dedos. A mim disse apenas vire
aqui à direita, depois à direita de novo, no cruzamento, à esquerda. Nem
um olhar de admiração, nem um cumprimento.
Fomos recebidos na trattoria de modo alegre, mas respeitoso. Nino
conhecia o dono, os garçons. Acabei na cabeceira da mesa entre as meninas,
os dois homens se sentaram um na frente do outro, e meu marido começou a
falar da vida difícil nas universidades. Fiquei quase sempre calada,
cuidando de Dede e Elsa, que em geral eram muito disciplinadas à mesa,
mas naquela ocasião não paravam de aprontar, sempre rindo, para atrair a
atenção de Nino. Pensava incomodada: Pietro fala demais, está aborrecendo
Nino, não lhe dá espaço. Pensava: vivemos há sete anos nesta cidade e não
temos nenhum local aonde levá-lo para retribuir o convite, um restaurante
onde se coma bem como aqui, onde somos reconhecidos assim que entramos.
Gostei da gentileza do proprietário, veio várias vezes à nossa mesa, chegou
até a dizer a Nino: esta noite não vou lhe recomendar este, não é apropriado
ao senhor e a seus convidados — e lhe aconselhou outra coisa. Quando as
famosas frittelle foram servidas, as meninas se entusiasmaram, Pietro
também, todos as disputaram entre si. Só então Nino se dirigiu a mim:
“Como é que nunca mais saiu nada seu?”, perguntou sem a frivolidade
da conversação social, com um interesse que me pareceu genuíno.
Enrubesci, disse apontando para as meninas:
“Fiz outras coisas.”
“Aquele livro era excelente.”
“Obrigada.”
“Não é um cumprimento, você sempre escreveu bem. Lembra o
artiguinho sobre o professor de religião?”
“Seus amigos não o publicaram.”
“Houve um erro.”
“Perdi a confiança.”
“Lamento. Está escrevendo agora?”
“Nas horas vagas.”
“Um romance?”
“Não sei bem o que é.”
“Mas e o tema?”
“A fabricação das mulheres pelos homens.”
“Ótimo.”
“Vamos ver.”
“Mãos à obra, quero ler logo.”
E, para minha surpresa, mostrou que conhecia bem os textos de
mulheres com os quais eu estava trabalhando; eu tinha certeza de que os
homens não liam esse tipo de coisa. Não só: citou um livro de Starobinski
que tinha lido recentemente, disse que havia algo nele que podia me ser útil.
Quanta coisa ele sabia, era assim desde garoto, sentia curiosidade por tudo.
Agora estava citando Rousseau e Bernard Shaw, o interrompi, me escutou
com atenção. E quando as meninas, irritadas, passaram a me puxar querendo
mais frittelle, ele fez um sinal ao proprietário para que preparasse mais
algumas. Depois se virou para Pietro e disse:
“Você deve deixar sua mulher ter mais tempo.”
“Ela tem o dia inteiro à disposição.”
“Não estou brincando. Se você não fizer isso, estará sendo culpado não
só no plano humano, mas também no político.”
“E qual seria meu crime?”
“O desperdício de inteligência. Uma comunidade que acha natural
sufocar com o cuidado dos filhos e da casa tantas energias intelectuais
femininas é inimiga de si mesma e não se dá conta.”
Esperei em silêncio que Pietro respondesse. Meu marido reagiu com
ironia:
“Elena pode cultivar sua inteligência quando e como quiser, o essencial
é que não tire tempo de mim.”
“Se não tirar de você, vai tirar de quem?”
Pietro fechou a cara.
“Quando a tarefa que nos impomos tem a urgência da paixão, não há
nada que possa nos impedir de levá-la a cabo.”
Me senti ferida, murmurei com um sorrisinho falso:
“Meu marido está dizendo que não tenho nenhum interesse autêntico.”
Silêncio. Nino perguntou:
“E é assim?”
Respondi de pronto que não sabia, que não sabia nada. Porém, enquanto
falava constrangida, com raiva, me dei conta de que meus olhos se enchiam
de lágrimas. Baixei o olhar. Chega de frittelle, disse às meninas, com uma
voz descontrolada, e Nino me socorreu, exclamando: eu posso comer mais
uma, a mamãe e o papai também, e vocês mais duas, depois chega. Então
chamou o proprietário e disse solenemente: voltarei aqui com estas duas
senhoritas daqui a exatos trinta dias, e o senhor nos preparará uma montanha
dessas maravilhosas frittelle, certo? Elsa perguntou:
“Quando é um mês, quando é trinta dias?”
Brincamos — sobretudo Dede — com a ideia vaga que Elsa tinha do
tempo. Depois Pietro tentou pagar, mas descobriu que Nino já o tinha feito.
Protestou, se pôs ao volante, e eu me sentei no banco de trás entre as duas
meninas já sonolentas. Acompanhamos Nino ao hotel e durante todo o trajeto
escutei a conversa meio bêbada deles sem dizer uma palavra. Quando
chegamos ao hotel, Pietro disse muito eufórico:
“Não faz sentido você jogar dinheiro fora: temos um quarto de
hóspedes, da próxima vez fique com a gente, não faça cerimônia.”
Nino riu:
“Há menos de uma hora dissemos que Elena precisa de sossego, e
agora você quer sobrecarregá-la ainda mais com minha presença?”
Intervim com um tom apagado:
“Será um prazer para mim, e também para Dede e Elsa.”
Porém, assim que Nino saiu, falei a meu marido:
“Antes de fazer certos convites, você poderia pelo menos me
consultar.”
Ele deu partida no carro, me procurou pelo retrovisor e resmungou:
“Achei que você ia gostar.”
102.
Oh, claro que eu estava gostando, estava gostando muito. Mas também me
sentia como se meu corpo tivesse a consistência da casca do ovo e bastasse
uma leve pressão num braço, na testa, na barriga para rompê-lo e extrair dali
todos os meus segredos, sobretudo os que eram secretos até para mim. Evitei
contar os dias. Me concentrei nos textos que estava estudando, mas o fiz
como se Nino fosse o contratante daquele meu trabalho e, em seu retorno,
exigisse resultados de qualidade. Queria dizer a ele: segui seu conselho, fui
em frente, aqui está um rascunho, me diga o que acha.
Foi uma ótima decisão. Os trinta dias de espera voaram depressa até
demais. Me esqueci de Elisa, não pensei em Lila, não telefonei para
Mariarosa. E não li jornais, não vi tv, relaxei com as meninas e a casa. Das
prisões e combates e assassinatos e guerras, da convulsão permanente da
Itália e do planeta, só me chegou um eco, e mal me dei conta da campanha
eleitoral carregada de tensões. Só fiz escrever, com grande empenho.
Quebrei a cabeça com um monte de velhas questões até ter a impressão de
haver encontrado, pelo menos na escrita, uma ordem definitiva. Às vezes me
sentia tentada a recorrer a Pietro. Ele era muito mais competente que eu, com
certeza teria me poupado de escrever coisas levianas, toscas ou estúpidas.
Mas não o fiz, detestava os momentos em que ele me mantinha em sujeição
com seu saber enciclopédico. Trabalhei muito, me lembro bem, sobretudo
sobre a primeira e a segunda criação bíblica. Coloquei-as em sucessão e
considerei a primeira uma espécie de síntese do ato criativo divino, a
segunda, uma espécie de narrativa mais estendida. Fiz a partir dela uma
história bastante movimentada, sem jamais me sentir imprudente. Deus —
escrevi mais ou menos nesses termos — cria o homem, Ish, à sua imagem.
Fabrica uma versão masculina e uma feminina. Como? Primeiro, com o pó
da terra, dá forma a Ish e lhe sopra nas narinas o hálito vital. Depois extrai
Isha’h, a mulher, da matéria masculina já formada, matéria não mais bruta,
mas viva, que toma do flanco de Ish fechando-lhe imediatamente a carne. O
resultado é que Ish pode dizer: esta coisa não é, como a legião de tudo o que
foi criado, outro que não eu, mas é carne da minha carne, ossos dos meus
ossos. Eu sou Ish e ela é Isha’h. Sobretudo na palavra, na palavra que a
nomeia, ela deriva de mim, que sou a imagem do espírito divino, que trago
dentro de mim seu Verbo. Ela é, pois, um puro sufixo aplicado à minha raiz
verbal, podendo exprimir-se apenas dentro da minha palavra.
E prossegui assim, vivendo dias e dias num estado de agravável
excitação intelectual. Minha única aflição foi ter um texto legível a tempo.
De vez em quando me surpreendia comigo: tinha a impressão de que aspirar
ao consenso de Nino me tornava a escrita mais fácil, me desatava.
Mas o mês passou, e ele não deu sinal de vida. A princípio isso me
ajudou, tive mais tempo e consegui levar a cabo meu trabalho. Depois me
alarmei, perguntei a Pietro. Descobri que os dois tinham se falado com
frequência pelo telefone do escritório, mas que há alguns dias Pietro não
tinha notícias dele.
“Vocês se falaram várias vezes?”
“Sim.”
“E por que você não me disse nada?”
“Dizer o quê?”
“Que vocês se falaram várias vezes.”
“Eram ligações de trabalho.”
“Bem, já que vocês ficaram tão amigos, ligue e veja se ele se digna a
nos dizer quando vem.”
“Qual a necessidade disso?”
“Para você, nenhuma, mas todo o trabalho é meu: sou eu que devo
providenciar tudo e gostaria de ser avisada com antecedência.”
Ele não ligou. Reagiu me dizendo: tudo bem, vamos esperar, Nino
prometeu às meninas que voltaria, não acho que vá decepcioná-las. E foi
assim. Telefonou com uma semana de atraso, à noite. Eu mesma atendi, ele
pareceu constrangido. Disse poucas frases genéricas e perguntou: Pietro
está? Fiquei constrangida por minha vez e passei o telefone a meu marido.
Conversaram por muito tempo, senti com um mau humor crescente que Pietro
usava uma entonação estranha: voz muito alta, frases exclamativas, risadas.
Só então entendi que a relação com Nino o tranquilizava, o fazia se sentir
menos isolado, se esquecia das mazelas, trabalhava com mais vontade. Me
fechei em meu quarto, onde Dede estava lendo e Elsa brincando, ambas à
espera do jantar. Mas até mesmo ali me chegou aquela voz insólita, parecia
embriagado. Depois se calou, ouvi seus passos pela casa. Pôs a cara na
porta e disse alegre às meninas:
“Filhinhas, amanhã à noite vamos jantar frittelle com tio Nino.”
Dede e Elsa lançaram gritos de entusiasmo, e eu perguntei:
“O que ele vai fazer? Vem dormir aqui?”
“Não”, me respondeu, “veio com a esposa e o filho, estão num hotel.”
103.
Fui passear com Eleonora e as três crianças num estado de bem-estar tão
intenso que, mesmo se ela me enfiasse uma faca, eu não sentiria nada. De
resto, diante de minha euforia cheia de gentilezas, a mulher de Nino
suspendeu qualquer hostilidade, elogiou a disciplina de Dede e de Elsa,
confessou que me admirava muito. Seu marido lhe contara tudo de mim, os
estudos que eu tinha feito, meu sucesso como escritora. Mas sou um pouco
ciumenta — admitiu —, e não por você ser excelente, mas porque o conhece
desde pequena, e eu, não. Ela também gostaria de tê-lo conhecido na
infância, saber como ele era aos dez, aos catorze anos, a voz que tinha antes
de engrossar, a risada de quando era criança. Ainda bem que tenho Albertino
— disse —, é igualzinho ao pai.
Observei o menino, mas não achei que tivesse traços de Nino; talvez se
manifestassem mais tarde. Eu me pareço com papai, exclamou imediatamente
Dede com orgulho, e Elsa acrescentou: eu me pareço mais com a mamãe.
Tornei a me lembrar do filho de Silvia, Mirko, que sempre fora idêntico a
Nino. Que prazer eu sentira ao apertá-lo entre os braços, acalmando seus
vagidos na casa de Mariarosa. O que eu buscara naquele menino, quando
ainda estava longe da experiência da maternidade? O que eu tinha buscado
em Gennaro, quando ainda não sabia que seu pai era Stefano? O que buscava
em Albertino, agora que eu era mãe de Dede e de Elsa, e por que o
examinava com tanta atenção? Excluí que Nino se lembrasse de vez em
quando de Mirko. Nem me constava que ele tivesse demonstrado qualquer
curiosidade por Gennaro. Essa distraída semeadura dos homens,
entorpecidos pelo prazer; nos fecundam dominados pelo seu orgasmo;
irrompem dentro de nós e se retraem nos deixando, selado na carne, seu
fantasma como um objeto perdido. Albertino era filho da vontade, da
atenção? Ou também ele estava nos braços dessa mulher-mãe sem que Nino
lhe desse importância? Voltei a mim, disse a Eleonora que seu filho era a
cópia do pai e ela ficou contente com aquela mentira. Depois lhe contei
minuciosamente, com afeto, com ternura, de Nino na época da escola
fundamental, nos tempos das competições organizadas por Oliviero e pelo
diretor, no período do liceu, da Galiani e das férias em Ischia, que passamos
juntos com outros amigos. Parei ali, embora ela, como uma menina,
continuasse me perguntando: e depois?
Conversa vai, conversa vem, mostrei-me cada vez mais simpática a ela,
que acabou se apegando a mim. Se eu entrava numa loja e alguma coisa me
agradava, se a provava e depois desistia, descobria na saída que Eleonora a
comprara de presente para mim. Quis também comprar vestidinhos para
Dede e Elsa. No restaurante, ela pagou a conta. E pagou o táxi com que me
acompanhou até em casa com as meninas, para depois seguir carregada de
sacolas rumo ao hotel. Então nos despedimos, e tanto eu quanto as meninas
acenamos com as mãos para ela até o carro dobrar a esquina. É mais uma
peça de minha cidade, pensei. Muitíssimo distante de minha experiência.
Usava o dinheiro como se não tivesse o menor valor. Excluí que fosse
dinheiro de Nino. O pai dela era advogado, o avô, também, a mãe pertencia
a uma estirpe de banqueiros. Perguntei-me que diferença havia entre sua
riqueza de burgueses e a dos Solara. Pensei em quantas voltas ocultas o
dinheiro dá antes de se transformar em altos salários e lautos honorários.
Lembrei-me dos rapazes do bairro que ganhavam o dia descarregando
mercadorias de contrabando, cortando árvores de parques, trabalhando nos
canteiros de obras. Lembrei-me de Antonio, de Pasquale, de Enzo, que desde
meninos arranjavam uns trocados para sobreviver. Os engenheiros, os
arquitetos, os advogados, os bancos eram outra coisa, nunca o dinheiro deles
provinha — mesmo entre mil filtros — dos mesmos malfeitos, do mesmo
massacre, alguma migalha tinha até se transformado em gorjeta para meu pai
e contribuíra com meus estudos. Então qual era o limiar além do qual o
dinheiro ruim se tornava bom e vice-versa? Até que ponto era limpo o
dinheiro que Eleonora gastara sem problemas no calor daquele dia
florentino?; e os cheques com que tinham sido compradas as mercadorias
que eu estava levando para casa, até que ponto eram diferentes daqueles com
que Michele pagava o trabalho de Lila? Durante toda a tarde, eu e as
meninas nos pavoneamos na frente do espelho com as roupas que
ganháramos de presente. Eram artigos de qualidade, exuberantes, alegres.
Havia um vestido vermelho desbotado, anos 1940, que me caía
especialmente bem; queria que Nino me visse com ele.
No entanto a família Sarratore voltou para Nápoles sem que tivéssemos
a ocasião de nos encontrarmos mais uma vez. Porém, contra todas as
previsões, o tempo não colapsou, ao contrário, começou a correr com
leveza. Nino voltaria, isso era certo. E discutiria meu texto comigo. Para
evitar atritos inúteis, coloquei uma cópia dele sobre a escrivaninha de
Pietro. Depois telefonei para Mariarosa com a agradável certeza de ter
trabalhado bem e lhe disse que tinha conseguido pôr em ordem aquele
rascunho que eu havia mencionado. Quis que eu lhe mandasse logo uma
cópia. Poucos dias depois me ligou entusiasmada, perguntou se ela mesma
podia traduzi-lo em francês e mandá-lo para uma amiga de Nanterre que
tinha uma pequena editora. Aceitei com entusiasmo, mas a coisa não
terminou ali. Passaram-se poucas horas e minha sogra me telefonou com uma
voz falsamente ofendida.
“Como é que as coisas que você escreve agora vão parar nas mãos de
Mariarosa, e não nas minhas?”
“Temo que não interessem a você. São umas setenta páginas, não é um
romance, nem eu sei bem o que é.”
“Quando você não sabe o que é que escreveu, quer dizer que trabalhou
bem. De todo modo, deixe que eu decida se me interessa ou não.”
Mandei uma cópia também para ela. Fiz isso quase com displicência.
Fiz justo na manhã em que Nino, por volta do meio-dia, me telefonou de
surpresa da estação — tinha acabado de chegar em Florença.
“Chego aí daqui a meia hora, deixo a bagagem e vou para a biblioteca.”
“Não quer comer alguma coisa?”, perguntei com naturalidade. Pareceu-
me normal — o ponto de chegada de um longo percurso — que ele viesse
dormir em minha casa, que eu lhe preparasse o almoço enquanto tomava uma
ducha em meu banheiro, que comêssemos juntos, eu, ele e as meninas,
enquanto Pietro aplicava provas na universidade.
107.
Nino ficou uns dez dias. Nada do que ocorreu naquele período teve que ver
com a ânsia de sedução que eu experimentara anos antes. Não fiz gracinhas
com ele, não mudei o tom de voz, não o assediei com cortesias de todo tipo,
não representei o papel da mulher liberal imitando minha cunhada, não
experimentei o caminho das alusões maliciosas, não procurei seu olhar com
ternura, não procurei sentar a seu lado na mesa ou no sofá, diante da
televisão, não circulei seminua pela casa, não busquei estar sozinha com ele,
não encostei meu cotovelo no dele, braço no braço ou no seio, perna com
perna. Fui tímida, digna, de poucas e secas palavras, atenta apenas a que se
alimentasse bem, que as meninas não o importunassem, que se sentisse à
vontade. E não foi uma escolha, eu não teria conseguido me comportar de
outra maneira. Ele brincava muito com Pietro, com Dede, com Elsa, mas
assim que me dirigia a palavra se tornava sério, parecia medir as frases
como se não houvesse uma velha amizade entre nós. E comigo acontecia o
mesmo. Estava felicíssima de tê-lo em casa e no entanto não sentia nenhuma
necessidade de tons ou gestos de intimidade, ao contrário, gostava de me
manter à margem e de evitar contatos entre nós. Me sentia como uma gota de
chuva numa teia de aranha, e ficava atenta para não escorregar.
Tivemos uma única troca, longa, toda ela concentrada em meu texto. Ele
tocou no assunto imediatamente, assim que chegou, com precisão e agudeza.
Ficara tocado com a narrativa de Ish e Isha’h, me fez questões, perguntou:
para você a mulher, no relato bíblico, não é distinta do homem, é o próprio
homem? Sim, respondi, Eva não pode, não sabe, não tem matéria para ser
Eva fora de Adão. Seu mal e seu bem são o mal e o bem segundo Adão. Eva
é Adão mulher. E a operação divina é tão bem lograda que ela mesma, em si,
não sabe o que é, tem lineamentos maleáveis, não possui uma língua própria,
não tem uma lógica e um estilo próprios, forma-se como nada. Condição
terrível, comentou Nino, e eu, nervosa, o espiei com o rabo do olho para
entender se estava zombando de mim. Não, não estava. Ao contrário, me
elogiou muito sem a mínima sombra de ironia, citou alguns livros que eu não
conhecia sobre assuntos correlatos e reiterou que considerava o trabalho
pronto para publicação. Escutei sem demonstrar satisfação, apenas disse no
final: Mariarosa também gostou do texto. Nessa altura ele pediu informações
sobre minha cunhada, falou bem dela tanto como estudiosa quanto pela
dedicação a Franco, e seguiu para a biblioteca.
Quanto ao resto, saiu todas as manhãs com Pietro e voltou todas as
noites depois dele. Em raríssimas ocasiões saímos todos juntos. Uma vez,
por exemplo, quis nos levar ao cinema para ver uma comédia, escolhida
especialmente para as meninas. Nino se sentou ao lado de Pietro, eu, entre
minhas filhas. Quando me dei conta de que eu ria alto sempre que ele ria,
parei completamente de rir. Censurei-o brandamente porque durante o
intervalo quis comprar sorvete para Dede, Elsa e também para os adultos.
Para mim, não — disse —, obrigada. Brincou um pouco, falou que o sorvete
era bom e que eu não sabia o que estava perdendo, ofereceu para que eu o
provasse, provei. Enfim, pequenos gestos. Numa tarde fizemos um passeio
eu, ele, Dede e Elsa. Conversamos pouquíssimo, Nino deu corda sobretudo
às meninas. Mas o percurso ficou impresso na minha memória, eu poderia
mencionar cada rua, os locais onde paramos, cada esquina. Fazia calor, a
cidade estava abarrotada de gente. Ele cumprimentava passantes o tempo
todo, alguns o chamavam pelo sobrenome, fui apresentada a um ou outro com
elogios exagerados. Fiquei surpresa com sua notoriedade. Um deles,
historiador bastante conhecido, o cumprimentou pelas meninas como se
fossem nossas filhas. Não aconteceu mais nada além disso, exceto uma
mudança repentina e inexplicável das relações entre ele e Pietro.
108.
Voltei para minha cama por volta das quatro da manhã. Meu marido teve um
sobressalto e murmurou dormindo: o que foi? Respondi de modo
peremptório: durma — e ele se aquietou. Eu estava atordoada. Feliz com o
que havia acontecido, mas, embora me esforçasse, não conseguia ter
consciência daquilo a partir de dentro de minha condição, de dentro do que
eu era naquela casa, em Florença. Tinha a impressão de que tudo entre mim e
Nino houvesse ocorrido no bairro, enquanto os pais dele se mudavam e
Melina lançava objetos da janela e berrava destroçada pelo sofrimento; ou
em Ischia, quando tínhamos passeado de mãos dadas; ou na noite em Milão,
após o encontro na livraria, quando ele me defendeu contra aquele crítico
raivoso. Por um momento isso me deu um senso de irresponsabilidade,
talvez até de inocência, como se a amiga de Lila, a esposa de Pietro, a mãe
de Dede e de Elsa não tivessem nada a ver com a menina-garota-mulher que
amava Nino e finalmente o conquistara. Sentia os vestígios de suas mãos e
dos beijos em cada parte do corpo. A ânsia de gozo não queria sossegar, os
pensamentos eram: o dia ainda está longe, o que estou fazendo aqui, vou
voltar para ele, mais uma vez.
Depois adormeci. Reabri os olhos com um calafrio, havia luz no quarto.
O que eu tinha feito? Justo aqui, em minha casa, que cretinice. Agora Pietro
acordaria. Agora as meninas acordariam. Eu precisava preparar o café da
manhã. Nino se despediria de nós e voltaria a Nápoles, para a mulher e o
filho. E eu voltaria a ser eu.
Levantei, tomei uma ducha demorada, enxuguei os cabelos, me maquiei
com apuro, pus um vestido de festa como se fosse sair. Oh, claro, eu e Nino
tínhamos jurado no coração da noite que nunca mais nos perderíamos de
vista, que acharíamos um jeito de continuar nos amando. Mas como? E
quando? Por que ele me procuraria de novo? Tudo o que podia acontecer
entre nós já tinha acontecido, o resto era só complicação. Chega, pus a mesa
com cuidado para o café da manhã. Queria deixar para ele uma bela imagem
daquela sua permanência, da casa, dos objetos cotidianos, de mim.
Pietro apareceu descabelado, de pijama.
“Aonde você vai?”
“A lugar nenhum.”
Me olhou perplexo, nunca acontecia de eu estar tão bem-arrumada logo
depois de acordar:
“Você está muito bem.”
“Não por mérito seu.”
Foi até a janela, olhou para fora e então balbuciou:
“Eu estava muito cansado ontem à noite.”
“E muito mal-educado também.”
“Vou pedir desculpas a ele.”
“Devia pedir desculpas primeiramente a mim.”
“Me desculpe.”
“Hoje ele vai embora.”
Dede apareceu de pés descalços. Fui buscar suas pantufas e acordei
Elsa, que, como sempre, ainda de olhos fechados, me encheu de beijos. Que
cheiro gostoso ela tinha, como era macia. Sim, disse a mim mesma,
aconteceu. Ainda bem, podia não acontecer nunca. Mas agora preciso me
impor uma disciplina. Telefonar a Mariarosa para saber da França, falar
com Adele, ir pessoalmente à editora para tentar entender o que pretendem
fazer com meu livrinho, se acreditam nele de verdade ou querem apenas
agradar minha sogra. Depois ouvi rumores no corredor. Era Nino, fui
arrebatada pelos sinais de sua presença, ainda estava ali, só por mais um
pouco. Livrei-me do abraço da menina e disse: desculpe, Elsa, mamãe volta
logo — e saí depressa.
Nino estava saindo sonolento do quarto, o empurrei para o banheiro,
tranquei a porta. Começamos a nos beijar, perdi de novo a consciência do
lugar e da hora. Eu mesma me espantei com a intensidade de meu desejo, era
boa em esconder as coisas de mim. Nos agarramos com uma fúria que eu
desconhecia, como se os corpos se chocassem um contra o outro com a
intenção de se arrebentar. Então o prazer era isso: quebrar-se, misturar-se,
não saber mais o que era meu e o que era dele. Mesmo se Pietro tivesse
aparecido, mesmo se as meninas surgissem ali, não seriam capazes de nos
reconhecer. Sussurrei em sua boca.
“Fique mais um tempo.”
“Não posso.”
“Então volte, jure que vai voltar.”
“Juro.”
“E me ligue.”
“Sim.”
“Diga que não vai se esquecer de mim, que não vai me deixar, diga que
me ama.”
“Te amo.”
“Repita.”
“Te amo.”
“Jure que não é uma mentira.”
“Juro.”
112.
Foi embora uma hora depois, mesmo Pietro insistindo com um tom meio
mal-humorado para que ficasse, mesmo com o choro de Dede. Meu marido
foi tomar banho e reapareceu dali a pouco pronto para sair. Disse-me de
olhos baixos: não falei aos policiais que Pasquale e Nadia estiveram em
nossa casa; e não fiz isso para proteger você, mas porque acho que agora
estão confundindo a discordância com o crime. Não entendi imediatamente
sobre o que estava falando. Pasquale e Nadia tinham saído completamente
de minha cabeça, e foi difícil assimilá-los de novo. Pietro esperou alguns
segundos em silêncio. Talvez quisesse que eu mostrasse concordância com
aquela sua consideração, queria enfrentar o dia de calor e de provas sabendo
que tínhamos feito as pazes, que pelo menos por uma vez estávamos
pensando do mesmo modo. Mas me limitei a um aceno distraído. Que me
importavam agora as opiniões políticas dele, o caso de Nadia e Pasquale, a
morte de Ulrike Meinhof, o nascimento da república socialista do Vietnã, o
avanço eleitoral do partido comunista? O mundo se retraíra. Eu me sentia
abismada dentro de mim mesma, dentro de minha carne, que me parecia não
só o único habitáculo possível, mas também a única matéria pela qual valia
a pena esforçar-se. Foi um alívio quando ele, a testemunha da ordem e da
desordem, fechou a porta atrás de si. Não suportava estar sob seu olhar,
temia que de repente se tornassem visíveis os lábios doloridos pelos beijos,
o cansaço da noite, o corpo hipersensível, como escaldado.
Assim que fiquei sozinha, voltou-me a certeza de que nunca mais veria
e ouviria Nino. E a ela veio se juntar outra: não podia mais viver com
Pietro, me parecia insuportável continuarmos dormindo na mesma cama. O
que fazer? Vou deixá-lo, pensei. Vou embora com as meninas. Mas como eu
deveria proceder, ir embora e pronto? Não sabia nada sobre separações e
divórcios, qual era a praxe, quanto tempo era preciso para retornar à
liberdade. E não conhecia nenhum casal que tivesse tomado esse rumo. O
que acontecia com os filhos? Como era o acordo para a manutenção deles?
Podia levar as meninas para outra cidade, Nápoles, por exemplo? E por que
para Nápoles e não, digamos, para Milão? Se eu deixar Pietro, disse a mim
mesma, mais cedo ou mais tarde vou precisar de um trabalho. Os tempos
estão feios, a economia vai mal, e Milão para mim é o lugar certo, é lá que
está a editora. Mas e Dede, e Elsa? E a relação delas com o pai? Então devo
continuar em Florença? Nunca, nunca. Melhor Milão, Pietro iria ver as filhas
todas as vezes que pudesse e quisesse. Sim. No entanto minha cabeça me
levava para Nápoles. Não ao bairro, nunca voltaria para lá. Imaginei ir
morar na Nápoles deslumbrante onde eu nunca tinha vivido, a poucos passos
da casa de Nino, em via Tasso. Avistá-lo da janela enquanto ia ou voltava da
faculdade, encontrá-lo na rua, conversar com ele todos os dias. Sem o
incomodar. Sem lhe causar problemas com a família, ao contrário,
intensificando a relação de amizade com Eleonora. Me bastaria aquela
proximidade. Portanto Nápoles, e não Milão. De resto, separando-me de
Pietro, Milão já não seria tão hospitaleira. As relações com Mariarosa se
esfriariam, e com Adele, também. Não interrompidas, não, eram pessoas
civilizadas, mas continuavam sendo a mãe e a irmã de Pietro, mesmo não
tendo muito apreço por ele. Sem falar de Guido, o pai. Não, com certeza não
poderia mais contar do mesmo modo com os Airota, talvez nem com a
editora. Poderia receber alguma ajuda somente de Nino. Ele era bem
relacionado em todo lugar, com certeza encontraria uma maneira de me
apoiar. A menos que minha presença constante não importunasse sua mulher,
não o importunasse. Para ele eu era uma mulher casada que vivia em
Florença com a família. Portanto distante de Nápoles, e não livre. Romper às
pressas meu casamento, correr atrás dele, ir morar imediatamente a poucos
passos de sua casa, ufa. Ele me acharia uma doida, faria o papel de uma
mulherzinha desmiolada, o tipo de mulher dependente do homem que, aliás,
deixava as amigas de Mariarosa horrorizadas. E acima de tudo inadequada
para ele. Tinha amado muitas mulheres, passava de uma cama a outra,
semeava filhos sem compromisso, considerava o casamento uma convenção
necessária, mas que não podia enjaular os desejos. Eu cairia no ridículo.
Tinha prescindindo de tanta coisa em minha vida, também podia prescindir
de Nino. Seguiria meu caminho com minhas filhas.
Mas o telefone tocou, e corri para atender. Era ele, ao fundo se ouvia
um autofalante, vozerio, barulho, a voz chegava com dificuldade. Acabara de
chegar a Nápoles, estava ligando da estação. Apenas um oi, me disse, queria
saber como você está. Estou bem, respondi. O que está fazendo? Me
preparando para almoçar com as meninas. Pietro está? Não. Você gostou de
fazer amor comigo? Sim. Muito? Muitíssimo. Minhas fichas acabaram. Vá,
tchau, obrigada pelo telefonema. Nos ouvimos. Quando você quiser. Fiquei
contente comigo, com meu autocontrole. Mantive-o a uma distância correta,
disse a mim mesma, a um telefonema de cortesia respondi com cortesia. Mas
três horas depois ele tornou a ligar, de novo de um telefone público. Estava
nervoso. Por que você está tão fria? Não estou fria. Hoje de manhã você quis
que eu dissesse que te amava, e eu disse, embora por princípio eu não diga
isso a ninguém, nem a minha mulher. Fico contente. E você me ama? Amo.
Vai dormir com ele esta noite? E com quem você quer que eu durma? Não
suporto isso. Você não dorme com sua mulher? Não é a mesma coisa. Por
quê? Não estou nem aí para Eleonora. Então volte para cá. Como faço isso?
Se separe. E depois? Começou a ligar obsessivamente. Adorava aqueles
toques do telefone, especialmente quando nos despedíamos e parecia que só
nos falaríamos sabe-se lá quando, mas ele tornava a ligar meia hora depois,
às vezes até dez minutos depois, e recomeçava a se agitar, me perguntava se
eu já tinha feito amor com Pietro depois que estivemos juntos, eu lhe dizia
que não, ele me fazia jurar, jurava, perguntava a ele se tinha feito com a
mulher, gritava que não, também o fazia jurar, e era um juramento após o
outro, e uma avalanche de promessas, sobretudo a promessa solene de
permanecer em casa, de ficar comunicável. Queria que eu esperasse seus
telefonemas, tanto que, se por acaso eu saía — precisava pelo menos fazer
as compras —, ele fazia o telefone chamar e chamar no vazio, o fazia chamar
até que eu voltasse e deixasse as meninas, deixasse as sacolas, não fechava
nem mesmo a porta das escadas, e corria para atender. Ele estava do outro
lado, desesperado: achei que você nunca mais iria atender. Depois
acrescentava com alívio: mas eu continuaria ligando para sempre, na sua
falta eu passaria a amar o som do telefone, este som no vazio me parecia a
única coisa que me sobrara. E evocava minuciosamente nossa noite — se
lembra disso, se lembra daquilo —, a evocava continuamente. Listava tudo o
que queria fazer a meu lado, não só sexo: um passeio, uma viagem, ir ao
cinema, a um restaurante, conversar sobre o trabalho que estava fazendo,
ouvir como estava indo meu livrinho. Então eu perdia o controle. Murmurava
sim, sim, sim, tudo, tudo o que você quiser, e gritava: estou para sair de
férias, daqui a uma semana vou estar na praia com as meninas e Pietro, quase
como se tratasse de uma deportação. E ele: Eleonora vai para Capri daqui a
três dias, assim que ela for eu irei a Florença nem que seja por uma hora.
Enquanto isso Elsa me olhava e perguntava: mamãe, com quem você está
falando sem parar, venha brincar. Um dia Dede lhe disse: deixe ela em paz,
está falando com o namorado.
113.
Nino viajou de noite e chegou a Nápoles por volta das nove da manhã.
Telefonou, Pietro atendeu, desligou. Chamou de novo, corri para atender.
Tinha estacionado debaixo de minha casa. Desça. Não posso. Desça logo, se
não eu subo. Faltavam poucos dias para minha ida a Viareggio, Pietro já
estava em férias. Deixei as meninas com ele, disse que precisava fazer
compras urgentes para a praia. Corri para Nino.
Aquele reencontro foi uma péssima ideia. Descobrimos que, em vez de
atenuar o desejo, ele se alastrara como um incêndio e demandava mil gestos
com uma urgência imprudente. Se à distância, por telefone, as palavras nos
permitiam fantasiar, construindo perspectivas animadoras, mas também nos
impunham uma ordem, controlando-nos, assustando-nos, aquele nosso
reencontro, fechados no espaço mínimo do automóvel, alheios ao calor
terrível, deu concretude ao nosso delírio, conferiu-lhe a marca da
inevitabilidade, fez dele mais uma peça na grande estação subversiva em
curso, o tornou coerente com as formas de realismo da época, as que
pretendiam o impossível.
“Não volte pra casa.”
“E as meninas? E Pietro?”
“E a gente?”
Antes de voltar para Nápoles, disse que não sabia se conseguiria
passar todo o mês de agosto sem me ver. Nos despedimos em desespero. Eu
não tinha telefone na casa que havíamos alugado em Viareggio, ele me
passou o número da casa de Capri, me fez prometer que ligaria todos os
dias.
“E se sua mulher atender?”
“Desligue.”
“Se você estiver na praia?”
“Preciso trabalhar, não vou à praia quase nunca.”
Em nossa fantasia, telefonar devia servir também para fixar uma data,
antes ou depois do feriado de Ferragosto, e acharmos um jeito de nos
encontrarmos pelo menos uma vez. Ele pressionava para que eu inventasse
uma desculpa qualquer e voltasse a Florença. Ele faria o mesmo com
Eleonora e viria me ver. A gente se encontraria em minha casa, jantaríamos
juntos, dormiríamos juntos. Outra loucura. Eu o beijei, o acariciei, o mordi e
me arranquei dele num estado de felicidade infeliz. Corri para comprar ao
acaso toalhas, dois calções para Pietro, balde e pás para Elsa, um maiozinho
azul para Dede. Naquele período ela adorava o azul.
114.
Minha volta foi muito comemorada por Elsa, que falou séria: papai não sabe
brincar direito. Dede defendeu Pietro, exclamou que a irmã era pequena,
idiota e estragava todas as brincadeiras. Pietro me examinou de mau humor.
“Você não dormiu.”
“Dormi mal.”
“Encontrou os livros?”
“Sim.”
“E onde eles estão?”
“Onde você queria que estivessem? Em casa. Chequei o que precisava
checar e pronto.”
“Por que essa irritação?”
“Porque você me irrita.”
“Ligamos para você de novo, ontem à noite. Elsa queria lhe dizer boa
noite, mas você não estava.”
“Estava calor, fui dar um passeio.”
“Sozinha?”
“E com quem?”
“Dede falou que você tem um namorado.”
“Dede tem uma forte ligação com você e morre de vontade de me
substituir.”
“Ou então está vendo e ouvindo coisas que eu não vejo e não ouço.”
“O que você está querendo dizer?”
“Isso que eu disse.”
“Pietro, vamos tentar ser claros: entre suas tantas doenças, agora vamos
ter de acrescentar o ciúme também?”
“Não sou ciumento.”
“Espero que sim. Porque do contrário já vou logo dizendo: o ciúme é
demais, assim eu não aguento.”
Nos dias seguintes, as discussões como aquela se multiplicaram. Eu o
mantinha sob controle, o recriminava e ao mesmo tempo me desprezava. Mas
também sentia raiva: o que se pretendia de mim, o que eu devia fazer? Eu
amava Nino, sempre o amei: como conseguiria arrancá-lo do peito, da
cabeça, da barriga, agora que ele também me queria? Desde pequena eu me
construíra como um perfeito mecanismo autorrepressivo. Nenhum de meus
verdadeiros desejos havia prevalecido, sempre tinha achado um meio de
canalizar qualquer aspiração. Agora chega, dizia a mim mesma, que tudo se
exploda, eu em primeiro lugar.
No entanto oscilava. Por uns dias não telefonei a Nino, justo como
sabiamente lhe havia anunciado em Florença. Mas depois, de uma hora para
outra, comecei a ligar até três ou quatro vezes ao dia, sem nenhuma
prudência. Estava me lixando até para Dede, parada a poucos passos da
cabine telefônica. Discutia com ele no calor insuportável daquela gaiola ao
sol e de vez em quando, molhada de suor, exasperada pelo olhar espião de
minha filha, escancarava a porta de vidro e gritava: o que você está fazendo
aí feito um poste, já lhe disse para ficar de olho em sua irmã. Meus
pensamentos agora estavam concentrados no congresso de Montpellier. Nino
me pressionava, fazia disso cada vez mais uma espécie de prova definitiva
da autenticidade de meus sentimentos, de modo que passávamos de brigas
violentas a declarações de afeto sem limites, de longas e caras discussões
por interurbano à urgência de derramar num rio de palavras incandescentes
nosso desejo. Numa tarde, extenuada, com Dede e Elsa resmungando do lado
de fora da cabine mamãe, ande logo, a gente não aguenta mais, disse a ele:
“Só há uma maneira de ir com você a Montpellier.”
“Qual?”
“Contar tudo a Pietro.”
Houve um longo silêncio.
“Você está realmente pronta para fazer isso?”
“Sim, mas com uma condição: que você conte tudo a Eleonora.”
Outro longo silêncio. Nino murmurou:
“Quer que eu faça mal a Eleonora e ao menino?”
“Quero. Não vou fazer a Pietro e a minhas filhas? Tomar decisões
significa fazer mal.”
“Albertino é muito pequeno.”
“Elsa também é. E para Dede vai ser insuportável.”
“Vamos fazer isso depois de Montpellier.”
“Nino, não brinque comigo.”
“Não estou brincando.”
“Então, se não está, comporte-se como deve: você fala com sua mulher
e eu falo com meu marido. Agora. Esta noite.”
“Me dê um pouco de tempo, não é algo fácil.”
“E para mim é?”
Tergiversou, tentou me explicar. Disse que Eleonora era uma mulher
muito frágil. Disse que ela organizara a vida em torno dele e do menino.
Disse que quando era novinha tinha tentado se matar duas vezes. Mas não
parou por aí, senti que estava se obrigando a uma honestidade absoluta. De
frase em frase, com a lucidez que lhe era peculiar, chegou a admitir que
romper seu casamento significava não só fazer mal à mulher e ao menino,
mas também dar um chute em muitas mordomias — somente vivendo numa
condição de riqueza a vida em Nápoles se torna aceitável — e numa rede
de relações que lhe garantia poder fazer o que bem queria na universidade.
Depois, tragado por sua própria escolha de não omitir nada, concluiu:
lembre-se de que seu sogro gosta muito de mim e que tornar pública nossa
relação levaria, tanto a mim quanto a você, a uma ruptura irremediável com
os Airota. Foi essa última observação dele que, não sei por que, me fez mal.
“Tudo bem”, falei, “vamos encerrar por aqui.”
“Espere.”
“Já esperei até demais, devia ter me decidido antes.”
“O que você pretende fazer?”
“Assumir que meu casamento não tem mais sentido e seguir meu
caminho.”
“Tem certeza?”
“Tenho.”
“E vai vir comigo a Montpellier?”
“Eu disse seguir meu caminho, não o seu. Nossa relação acabou.”
116.
Pus o fone no gancho aos prantos, saí da cabine. Elsa me perguntou: você se
machucou, mamãe? Respondi: estou ótima, é a vovó que não está bem. E
continuei soluçando diante dos olhos preocupados dela e de Dede.
Na parte final das férias só fiz chorar. Dizia que estava cansada, que
fazia calor demais, que tinha dor de cabeça, e mandava Pietro e as meninas
para a praia. Ficava na cama encharcando o travesseiro de lágrimas.
Detestava aquela fragilidade excessiva, nunca fui assim, nem quando era
pequena. Tanto eu quanto Lila tínhamos nos adestrado a não chorar nunca e,
quando isso acontecia, era em momentos excepcionais, por pouco tempo: a
vergonha era grande, e a gente sufocava os soluços. Mas agora se abrira em
minha cabeça uma fonte de água como aconteceu com Orlando, que me
escorria pelos olhos sem jamais esgotar, e eu tinha a impressão de que até
quando Pietro, Dede e Elsa estavam para voltar, e eu com grande esforço
engolia as lágrimas e corria para lavar o rosto debaixo da torneira, a fonte
continuava gotejando, à espera do momento certo para voltar ao canal dos
olhos. Nino não me amava de verdade, Nino fingia muito e amava pouco.
Tinha querido me comer — sim, me comer, como tinha feito com tantas
outras —, mas ficar comigo, ficar comigo para sempre, rompendo os laços
com a esposa, bem, isso não estava em seus planos. Provavelmente ainda era
apaixonado por Lila. Provavelmente durante toda a vida amaria apenas ela,
como tantos que a tinham conhecido. E graças a isso continuaria para sempre
com Eleonora. O amor por Lila era a garantia de que nenhuma outra mulher
— por mais que ele a amasse a seu modo arrebatador — jamais colocaria
em risco aquele casamento frágil, muito menos eu. Essa era a realidade das
coisas. Às vezes eu interrompia o almoço ou o jantar e corria para soluçar
no banheiro.
Pietro me tratava com cautela, pressentindo que eu poderia explodir a
qualquer momento. A princípio, poucas horas depois do rompimento com
Nino, tinha pensado em contar tudo a ele, quase como se não fosse apenas
um marido a quem eu tivesse que me explicar, mas também um confessor.
Sentia a necessidade disso, especialmente quando, na cama, ele se encostava
em mim e eu o rechaçava sussurrando: não, as meninas vão acordar, estive a
ponto de despejar sobre ele cada detalhe. Mas sempre consegui me deter a
tempo, não era preciso lhe falar de Nino. Agora que eu não telefonava mais à
pessoa que amava, agora que a sentia definitivamente perdida, me parecia
inútil atazanar Pietro. Era melhor encerrar a questão com poucas palavras
claras: não posso mais viver com você. E no entanto não consegui fazer nem
isso. Justamente quando, na penumbra do quarto de dormir, me sentia pronta
a dar aquele passo, sentia pena dele, temia pelo futuro das meninas, lhe
acariciava um ombro, o rosto, murmurava: durma.
As coisas mudaram no último dia de férias. Era quase meia-noite, Dede
e Elsa estavam dormindo. Eu não ligava para Nino há pelo menos dez dias.
Tinha arrumado as bagagens, estava acabada de melancolia, de cansaço, de
calor, e estava com Pietro na sacada de casa, cada um em sua
espreguiçadeira, em silêncio. Havia uma umidade extenuante, que molhava
os cabelos e as roupas; vinha um cheiro de mar e de resina. De repente
Pietro disse:
“Como sua mãe está?”
“Minha mãe?”
“Sim.”
“Bem.”
“Dede me disse que está mal.”
“Já melhorou.”
“Telefonei para ela hoje à tarde. Sua mãe sempre esteve ótima de
saúde.”
Não respondi nada. Como aquele homem era inoportuno. Pronto, agora
as lágrimas estavam voltando. Oh, meu Deus, eu estava no limite, no limite.
Ele falou com calma:
“Você acha que sou cego e surdo. Acha que não me dava conta quando
flertava com aqueles imbecis que circulavam em nossa casa antes de Elsa
nascer.”
“Não sei de que você está falando.”
“Sabe perfeitamente.”
“Não, não sei. De quem você está falando? De pessoas que anos atrás
vieram jantar umas vezes? E eu flertava com elas? Ficou doido?”
Pietro balançou a cabeça sorrindo para si. Esperou alguns segundos e
então me perguntou, fixando a grade da sacada:
“Não flertava nem com aquele sujeito que tocava bateria?”
Tomei um susto. Ele não recuava, não cedia. Rebati:
“Mario?”
“Está vendo como se lembra?”
“Claro que me lembro, por que não deveria? É uma das poucas pessoas
interessantes que você trouxe para nossa casa em sete anos de casamento.”
“Você o achava interessante?”
“Acho, e daí? O que deu em você esta noite?”
“Quero saber. Não posso saber?”
“O que você quer saber? Sei o mesmo que você. Desde a última vez
que o vimos deve ter se passado pelo menos quatro anos, e você me vem
agora com essas besteiras?”
Ele parou de fixar a grade e se virou para me olhar, sério.
“Então vamos falar de fatos mais recentes. O que é que há entre você e
Nino?”
117.
Foi um golpe tão violento quanto inesperado. Queria saber o que havia
entre mim e Nino. Bastaram aquela pergunta e aquele nome para que a fonte
voltasse a jorrar em minha cabeça. Me senti cega pelas lágrimas, gritei fora
de mim, esquecendo que estávamos ao ar livre, que as pessoas dormiam
exaustas pelo dia de sol e de mar: por que você fez essa pergunta, devia
guardá-la para si, agora estragou tudo e não há mais nada a fazer, bastava
que conseguisse ficar calado, mas não foi capaz disso e agora eu preciso ir
embora, agora tenho que ir de qualquer jeito.
Não sei o que aconteceu com ele. Talvez tenha se convencido de ter
realmente cometido um erro que, agora, por motivos obscuros, arriscava
arruinar para sempre nossa relação. Ou então de repente me enxergou como
um organismo grosseiro, eu espedaçava a frágil superfície do discurso e me
manifestava de modo pré-lógico, uma mulher em sua expressão mais
alarmante. O certo é que eu devo ter lhe parecido um espetáculo
insuportável, que o fez se levantar abruptamente e entrar em casa. Mas corri
atrás dele e continuei gritando de tudo: o amor por Nino desde a infância, as
novas possibilidades de vida que me havia revelado, as energias inutilizadas
que eu sentia dentro de mim e a esqualidez em que ele me afundara por anos,
a responsabilidade por ter me impedido de viver plenamente.
Quando esgotei minhas forças e me prostrei num canto, o encontrei em
minha frente com as faces encavadas, os olhos fundos em manchas roxas, os
lábios brancos, o bronzeado que se tornara como uma crosta de lama. Só
então compreendi que o havia transtornado. As perguntas que ele me fizera
não admitiam nem por hipótese respostas afirmativas do tipo: sim, flertei
com o tocador de bateria e até fui além; sim, Nino e eu fomos amantes.
Pietro só as formulara para ser desmentido, para quietar as dúvidas que o
tinham invadido, para ir dormir mais sereno. No entanto eu o aprisionara em
um pesadelo do qual, agora, não sabia mais como sair. Perguntou quase
sussurrando, em busca de salvação:
“Vocês fizeram amor?”
De novo tive pena dele. Se eu tivesse respondido afirmativamente, teria
recomeçado a gritar e diria: sim, uma primeira vez enquanto você dormia,
uma segunda no carro dele, uma terceira em nossa cama em Florença. E
pronunciaria aquelas frases com a voluptuosidade que aquelas frases me
causavam. No entanto fiz sinal que não.
118.
Pus o fone no gancho como se queimasse. Está com ciúmes — disse a mim
mesma —, está com inveja, me odeia. Sim, a verdade era essa. E se passou
um longo cortejo de segundos, não me voltou mais à memória a mãe dos
Solara, seu corpo se esfumou marcado de morte. Em vez disso me perguntei
ansiosa: por que Nino não telefona, será possível que justo agora que contei
tudo a Lila ele recue, me tornando ridícula? Por um instante me vi exposta a
ela em toda minha eventual pequenez de pessoa que se arruinara por nada.
Então o telefone começou a tocar. Por dois ou três longos toques permaneci
sentada, fixando o aparelho. Quanto tirei o fone do gancho, tinha na ponta da
língua palavras prontas para Lila: não se preocupe nunca mais comigo, você
não tem nenhum direito sobre Nino, me deixe errar do jeito que eu quiser.
Mas não era ela. Era Nino, e eu o cobri de frases entrecortadas, feliz de
ouvi-lo. Disse-lhe em que pé estavam as coisas com Pietro e as meninas,
disse que era impossível chegar a um acordo com calma e racionalidade,
disse que tinha preparado a mala e não via a hora de abraçá-lo. Ele me
contou suas brigas furiosas com a mulher, as últimas horas tinham sido
insuportáveis. Murmurou: embora esteja muito assustado, não consigo pensar
em minha vida sem você.
No dia seguinte, enquanto Pietro estava na universidade, perguntei à
vizinha de porta se podia ficar com Dede e Elsa por algumas horas. Deixei
na mesa da cozinha as cartas que tinha escrito e fui embora. Pensei: está
acontecendo algo de grandioso, que vai dissolver completamente o velho
modo de viver, e eu sou parte dessa dissolução. Alcancei Nino em Roma,
nos encontramos em um hotel a poucos passos da estação. Enquanto o
abraçava, me dizia: nunca me habituarei a esse corpo nervoso, é uma
contínua surpresa, ossos longos, a pele de um cheiro excitante, uma massa,
uma força, uma agilidade de todo estranhas ao que Pietro é, aos costumes
que havia entre nós.
Na manhã seguinte, pela primeira vez em minha vida, subi num avião.
Não sabia apertar o cinto, Nino me ajudou. Como foi emocionante segurar
com força sua mão enquanto o ronco dos motores aumentava, aumentava,
aumentava, e o avião começava sua corrida. Como foi comovente descolar-
se do chão com um choque e ver as casas se transformando em
paralelepípedos, e as ruas se transmudando em finas faixas, e o campo se
reduzindo a uma mancha verde, e o mar se encurvando como uma chapa
compacta, e as nuvens se precipitando para baixo num desmoronamento de
rochas macias, e a angústia, e a dor, e a própria felicidade que se tornavam
parte de um movimento único, muito luminoso. Tive a impressão de que voar
submetesse todas as coisas a um processo de simplificação e suspirei, tentei
me abandonar. De vez em quando perguntava a Nino: está contente? E ele
fazia sinal que sim, me beijava. Às vezes tinha a impressão de que o piso
sob nossos pés — a única superfície com a qual era possível contar —
tremia.
[1] Nos anos 1960 os atuais computadores eram chamados de calculadores ou cérebros eletrônicos. (n.
e.)
[2] Referência ao mundo ínfero dos gregos, Hades (Ade, em italiano). (N.T.)