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"Quando o mundo estiver unido na busca do conhecimento, e não mais


lutando por dinheiro e poder, então nossa sociedade poderá enfim
evoluir a um novo nível."
Índice geral da obra
Volume 1
A amiga genial
Volume 2
História do novo sobrenome
Volume 3
História de quem foge e de quem fica
Volume 4
História da menina perdida
ELENA
FERRANTE
HISTÓRIA DE
QUEM FOGE E
DE QUEM FICA
TEMPO INTERMÉDIO

Tradução
Maurício Santana Dias
Storia di chi fugge e di chi resta © 2013 Edizioni e/o
Published by arrangement with The Ella Sher Literary Agency
Copyright da tradução © 2016 by Editora Globo . .

Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta edição pode ser utilizada ou reproduzida — em
qualquer meio ou forma, seja mecânico ou eletrônico, fotocópia, gravação etc. — nem apropriada ou
estocada em sistema de banco de dados sem a expressa autorização da editora.

Texto fixado conforme as regras do Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa (Decreto Legislativo no
54, de 1995).

Título original: Storia di chi fugge e di chi resta

Editor responsável: Thiago Barbalho


Editora assistente: Juliana de Araujo Rodrigues
Editor digital: Erick Santos Cardoso
Diagramação: Gisele Baptista de Oliveira
Capa: Mariana Bernd
Imagem de capa: Luigi Masella/Getty Images

cip-brasil. catalogação-na-fonte
sindicato nacional dos editores de livros, rj

F423h
Ferrante, Elena
História de quem foge e de quem fica / Elena Ferrante ; tradução Maurício Santana Dias. - 1. ed. - São
Paulo : Biblioteca Azul, 2016.

Tradução de: Storia di chi fugge e di chi resta


Sequência de: História do novo sobrenome
Continua com: História da menina perdida
isbn 978-85-250-6349-6

1. Romance italiano. i. Dias, Maurício Santana. ii. Título. iii. Série.

16-36203 cdd: 853


cdu: 821.131.3-3

1a edição, 2016

Direitos exclusivos de edição em língua portuguesa, para o Brasil, adquiridos por Editora Globo s.a.
Av. Nove de Julho, 5229
São Paulo-sp 01407-907
www.globolivros.com.br
Table of Content
Capa
Índice geral da obra
Folha de rosto
Créditos
Lista dos personagens
TEMPO INTERMÉDIO
1.
2.
3.
4.
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7.
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122.
123.
Notas
LISTA DOS PERSONAGENS

A família Cerullo (família do sapateiro):


Fernando Cerullo, sapateiro, pai de Lila. Interrompeu os estudos da filha
após a escola fundamental.
Nunzia Cerullo, mãe de Lila. Embora apoie a filha, não tem suficiente
autoridade para defendê-la contra o pai.
Raffaella Cerullo, chamada de Lina ou Lila. Nasceu em agosto de 1944.
Tem 66 anos quando desaparece de Nápoles sem deixar vestígios. Aluna
brilhante, escreve aos dez anos uma novela intitulada A fada azul. Abandona
a escola após completar o ensino fundamental e aprende o ofício de
sapateiro. Casa-se muito jovem com Stefano Carracci e administra com
sucesso a charcutaria do bairro novo e, depois, a loja de sapatos na piazza
dei Martiri. Durante umas férias em Ischia, se apaixona por Nino Sarratore,
por quem abandona o marido. Depois do naufrágio da convivência com Nino
e do nascimento do filho Gennaro, Lila abandona definitivamente Stefano
quando descobre que ele espera um filho de Ada Cappuccio. Transfere-se
com Enzo Scanno para San Giovanni a Teduccio e começa a trabalhar na
fábrica de embutidos de Bruno Soccavo.
Rino Cerullo, irmão mais velho de Lila, também sapateiro. Com o pai,
Fernando, e graças a Lila e ao dinheiro de Stefano Carracci, abre a fábrica
de calçados Cerullo. Casa-se com a irmã de Stefano, Pinuccia Carracci, com
quem tem o filho Fernando, chamado Dino. O primeiro filho de Lila tem o
nome dele, Rino.
Outros filhos.
A família Greco (família do contínuo):
Elena Greco, chamada de Lenuccia ou Lenu. Nascida em agosto de 1944, é
a autora da longa história que estamos lendo. Elena começa a escrevê-la no
momento em que recebe a notícia de que sua amiga de infância, Lina Cerullo,
chamada de Lila apenas por ela, desapareceu. Depois da escola fundamental,
Elena continua a estudar com êxito crescente. No liceu, sua competência e a
proteção da professora Galiani lhe permitem superar incólume uma
desavença com o professor de religião sobre o papel do Espírito Santo. A
convite de Nino Sarratore, por quem cultiva uma paixão secreta desde a
primeira infância, e com a preciosa ajuda de Lila, escreve um artigo sobre
essa desavença, mas o texto não é publicado pela revista em que Nino
colabora. Os brilhantes estudos de Elena são coroados com o diploma na
Escola Normal de Pisa, onde conhece e fica noiva de Pietro Airota, e com a
publicação de um romance em que reelabora a vida do bairro e as
experiências da adolescência vividas em Ischia.
Peppe, Gianni e Elisa, irmãos mais novos de Elena.
O pai trabalha como contínuo na prefeitura.
A mãe, dona de casa. Seu andar manco perturba Elena.
A família Carracci (família de dom Achille):
Dom Achille Carracci, o ogro das fábulas, contrabandista e agiota. Foi
assassinado.
Maria Carracci, mulher de dom Achille, mãe de Stefano, Pinuccia e
Alfonso. Trabalha na charcutaria da família.
Stefano Carracci, filho do falecido dom Achille, marido de Lila. Administra
os bens acumulados pelo pai e com o tempo se torna um comerciante de
sucesso, graças às duas charcutarias bem instaladas e à loja de sapatos na
piazza dei Martiri, que abre em sociedade com os irmãos Solara. Insatisfeito
com o tempestuoso casamento com Lila, começa um relacionamento com
Ada Cappuccio, com quem passa a conviver depois que ela fica grávida, e
Lila se muda para San Giovanni a Teduccio.
Pinuccia, filha de dom Achille. Trabalha de início na charcutaria da família
e, depois, na loja de calçados. Casa-se com o irmão de Lila, Rino, e com ele
tem um filho, Ferdinando, chamado de Dino.
Alfonso, filho de dom Achille. É colega de escola e divide o mesmo banco
com Elena. É noivo de Marisa Sarratore e se torna o gerente da loja de
sapatos da piazza dei Martiri.
A família Peluso (família do marceneiro):
Alfredo Peluso, marceneiro. Comunista. Acusado de ter assassinado dom
Achille, foi condenado e encarcerado na prisão, onde acaba morrendo.
Giuseppina Peluso, mulher de Alfredo. Operária da fábrica de tabaco,
dedica-se aos filhos e ao marido preso. Com a morte dele, se suicida.
Pasquale Peluso, filho mais velho de Alfredo e Giuseppina, pedreiro,
militante comunista. Foi o primeiro a perceber a beleza de Lila e a declarar-
lhe seu amor. Detesta os Solara. Foi namorado de Ada Cappuccio.
Carmela Peluso, prefere ser chamada de Carmen. Irmã de Pasquale, era
vendedora em um armarinho até ser contratada por Lila na nova charcutaria
de Stefano. Por muito tempo foi noiva de Enzo Scanno, mas ele a abandona
sem dar explicações após o serviço militar. Mais tarde fica noiva do
frentista do estradão.
Outros filhos.
A família Cappuccio (família da viúva louca):
Melina, parente de Nunzia Cerullo, viúva. Lava as escadas dos prédios do
bairro velho. Foi amante de Donato Sarratore, o pai de Nino. Os Sarratore
deixaram o bairro justamente por causa dessa relação, e Melina quase
enlouqueceu.
O marido de Melina descarregava caixas no mercado de hortifrúti e morreu
em circunstâncias obscuras.
Ada Cappuccio, filha de Melina. Desde menina ajudava a mãe a lavar as
escadas. Graças a Lila, é contratada como vendedora na charcutaria do
bairro velho. Por muito tempo namorada de Pasquale Peluso, torna-se
amante de Stefano Carracci: quando engravida, vai viver com ele. De sua
relação nasce uma menina, Maria.
Antonio Cappuccio, irmão dela, mecânico. Foi namorado de Elena e tem
muitos ciúmes de Nino Sarratore. A possibilidade de prestar o serviço
militar o preocupa muito, mas, quando Elena recorre aos irmãos Solara para
tentar ajudá-lo, ele fica profundamente humilhado, a ponto de romper
relações com Elena. Durante o serviço militar sucumbe a um grave
esgotamento nervoso e é dispensado antecipadamente. Voltando ao bairro,
pressionado pela miséria, põe-se a serviço de Michele Solara, que a certa
altura o envia à Alemanha para uma longa e misteriosa missão.
Outros filhos.
A família Sarratore (família do ferroviário-poeta):
Donato Sarratore, ferroviário, poeta, jornalista. Grande mulherengo, foi
amante de Melina Cappuccio. Quando Elena vai passar férias em Ischia e se
hospeda na mesma casa onde os Sarratore passam a temporada de verão, é
forçada a deixar a ilha às pressas para escapar ao assédio sexual de Donato.
No entanto, no verão seguinte, Elena se entrega a ele na praia, movida pelo
sofrimento diante da relação entre Nino e Lila. Para exorcizar essa
experiência degradante, Elena escreve sobre ela no livro que depois será
publicado.
Lidia Sarratore, mulher de Donato.
Nino Sarratore, o mais velho dos cinco filhos de Donato e Lidia. Odeia o
pai. É um aluno brilhante e mantém uma longa relação clandestina com Lila.
Quando ela engravida, os dois convivem por um brevíssimo período.
Marisa Sarratore, irmã de Nino. É noiva de Alfonso Carracci.
Pino, Clelia e Ciro Sarratore, os filhos mais novos de Donato e Lidia.
A família Scanno (família do verdureiro):
Nicola Scanno, verdureiro, morre de pneumonia.
Assunta Scanno, mulher de Nicola, morre de câncer.
Enzo Scanno, filho de Nicola e Assunta, também verdureiro. Desde a
infância Lila tem simpatia por ele. Por muito tempo foi noivo de Carmen
Peluso, mas, após voltar do serviço militar, interrompe o noivado sem dar
explicações. Durante o serviço volta a estudar e tira por conta própria um
diploma de perito industrial. Quando Lila decide deixar Stefano
definitivamente, se responsabiliza por ela e pelo filho, Gennaro, e todos vão
morar em San Giovanni a Teduccio.
Outros filhos.
A família Solara (família do dono do bar-confeitaria de mesmo nome):
Silvio Solara, proprietário do bar-confeitaria, monarquista e fascista,
camorrista ligado aos negócios ilícitos do bairro. Foi contra a abertura da
fábrica de calçados Cerullo.
Manuela Solara, mulher de Silvio, agiota: todos do bairro temem seu
caderno vermelho.
Marcello e Michele Solara, filhos de Silvio e Manuela. Fanfarrões,
prepotentes, mesmo assim são amados pelas jovens do bairro, afora
naturalmente Lila. Marcello se apaixona por Lila, mas ela o rejeita. Michele,
pouco mais novo que Marcello, é mais frio, mais inteligente, mais violento.
É noivo de Gigliola, a filha do confeiteiro, mas com o passar dos anos
desenvolve uma doentia obsessão por Lila.
A família Spagnuolo (família do confeiteiro):
Seu Spagnuolo, confeiteiro do bar-confeitaria Solara.
Rosa Spagnuolo, mulher do confeiteiro.
Gigliola Spagnuolo, filha do confeiteiro, noiva de Michele Solara.
Outros filhos.
A família Airota:
Guido Airota, professor de Literatura grega.
Adele, sua mulher. Colabora com a editora de Milão que publica o romance
de Elena.
Mariarosa Airota, a filha mais velha, professora de História da arte em
Milão.
Pietro Airota, colega de universidade de Elena e seu noivo, destinado a uma
brilhante carreira universitária.
Os professores:
Ferraro, professor e bibliotecário. Premiou Lila e Elena quando pequenas
por serem leitoras assíduas.
Oliviero, professora. Foi a primeira a se dar conta das potencialidades de
Lila e Elena. Aos dez anos de idade, Lila escreveu um conto intitulado A
fada azul. Elena gostou tanto da história que a deu para Oliviero. Mas a
professora, zangada porque os pais de Lila decidiram não mandar a filha
para o ensino médio, nunca se pronunciou sobre o conto. Ao contrário,
deixou de preocupar-se com Lila e se concentrou apenas no bom êxito de
Elena. Morre após uma longa doença, pouco antes da formatura de Elena.
Gerace, professor do ginásio.
Galiani, professora do liceu. É muito culta, comunista. Fica imediatamente
encantada com a inteligência de Elena. Empresta livros a ela, a protege nos
embates com o professor de religião e a convida para uma festa organizada
pelos filhos em sua casa. Suas relações esfriam depois que Nino,
apaixonado por Lila, rompe o namoro com Nadia.
Outros personagens:
Gino, filho do farmacêutico. Foi o primeiro namorado de Elena.
Nella Incardo, prima da professora Oliviero. Mora em Barano de Ischia e,
no verão, aluga alguns quartos de sua casa à família Sarratore. Hospedou
Elena durante suas férias na praia.
Armando, estudante de medicina, filho da professora Galiani.
Nadia, estudante, filha da professora Galiani e namorada de Nino, que a
abandona com uma carta enviada de Ischia quando se apaixona por Lila.
Bruno Soccavo, amigo de Nino Sarratore e filho de um rico industrial de San
Giovanni em Teduccio. Dá um emprego a Lila na fábrica de embutidos da
família.
Franco Mari, estudante e namorado de Elena durante os primeiros anos de
faculdade.
TEMPO INTERMÉDIO
1.

Encontrei Lila pela última vez cinco anos atrás, no inverno de 2005.
Estávamos passeando de manhã cedo pelo estradão e, como há anos vinha
acontecendo, não conseguíamos nos sentir à vontade. Lembro que apenas eu
falava; ela cantarolava, cumprimentava gente que nem respondia, e nas raras
vezes que me interrompia só pronunciava frases exclamativas, sem um nexo
evidente com o que eu dizia. Ao longo dos anos, muita coisa ruim tinha
ocorrido, algumas horríveis, e para retomar a via da intimidade teríamos de
nos fazer confidências secretas, mas eu não tinha a força para encontrar as
palavras, e ela — a quem talvez não faltasse força — não tinha a vontade,
nem via utilidade nisso.
De todo modo eu gostava muito dela e sempre que ia a Nápoles
procurava encontrá-la, ainda que — devo dizer — sentisse um certo medo.
Ela estava muito mudada. A velhice já tinha levado a melhor sobre nós duas,
mas, enquanto eu combatia a tendência a ganhar peso, ela se estabilizara
numa magreza só pele e ossos. Tinha cabelos curtos, que ela mesma cortava,
e muito brancos: não por escolha, mas por desleixo. O rosto, bastante
marcado, lembrava cada vez mais o do pai. Ria de nervoso, quase um
guincho, e falava altíssimo. Gesticulava sem parar, dando ao gesto uma
determinação tão feroz que parecia querer cortar em dois os edifícios, a rua,
os passantes, a mim.
Estávamos na altura da escola fundamental quando um homem jovem,
que eu não conhecia, correu para nós e gritou para ela que, em um canteiro
ao lado da igreja, tinha sido encontrado o cadáver de uma mulher. Fomos
depressa para os jardinzinhos, Lila me arrastou em meio ao círculo de
curiosos abrindo caminho com maus modos. A mulher jazia de lado, era
extraordinariamente gorda, vestia um impermeável verde escuro e fora de
moda. Lila a reconheceu num instante, eu, não: era nossa amiga de infância
Gigliola Spagnuolo, ex-mulher de Michele Solara.
Eu não a encontrava havia décadas. O rosto bonito se estragara, os
tornozelos estavam enormes. Os cabelos, antigamente castanhos, eram agora
de um vermelho fogo, longo como quando era uma garota, mas ralos,
espalhados sobre o humo revolvido. Apenas um dos pés calçava um sapato
de salto baixo, muito gasto; o outro estava metido numa meia de lã cinza,
furada no dedão, ao passo que o sapato estava um metro e meio mais à
frente, como se tivesse se desprendido depois de um chute provocado por
dor ou por espanto. Caí no choro, e Lila me olhou com fastio.
Sentadas em um banco perto dali, aguardamos em silêncio que Gigliola
fosse levada embora. O que havia acontecido com ela, como tinha morrido,
por ora não se sabia. Depois fomos para a casa de Lila, o velho e pequeno
apartamento dos pais, onde agora ela morava com o filho Rino.
Conversamos sobre nossa amiga, ela me falou mal dela, da vida que tinha
levado, das pretensões, das deslealdades. Mas neste momento era eu quem
não conseguia ouvir, pensava naquele rosto de perfil na terra, em como eram
ralos os cabelos compridos, nas manchas esbranquiçadas do crânio. Quantas
pessoas que tinham sido crianças com a gente e não estavam mais vivas,
desaparecidas da face da terra por doença, porque os nervos não tinham
resistido à lixa dos tormentos, porque seu sangue tinha sido derramado. Por
um tempo ficamos absortas na cozinha, sem que nenhuma das duas se
decidisse a tirar a mesa, e então saímos de novo.
O sol do belo dia de inverno conferia às coisas um aspecto sereno. O
bairro velho, diferentemente de nós, permanecera idêntico. Resistiam as
casas baixas e cinzentas, o pátio de nossas brincadeiras, o estradão, as bocas
escuras do túnel e a violência. No entanto a paisagem em torno mudara. A
extensão esverdeada dos pântanos não existia mais, a velha fábrica de
conservas desaparecera. Em seu lugar havia o brilho dos espigões de vidro,
noutros tempos sinais de um futuro radiante no qual ninguém nunca acreditou.
Com o passar dos anos todos registraram as mudanças, às vezes com
curiosidade, quase sempre distraidamente. Quando menina eu imaginava que,
para além do bairro, Nápoles oferecesse maravilhas. O arranha-céu da
estação central, por exemplo, me fascinara muito, décadas atrás, por sua
elevação andar a andar, um esqueleto de edifício que então nos parecia
altíssimo, ao lado da arrojada estação ferroviária. Como eu me surpreendia
quando passava pela piazza Garibaldi: olha só como é alto, dizia a Lila, a
Carmen, a Pasquale, a Ada, a Antonio, a todos os colegas daquela época,
com os quais eu caminhava até o mar, margeando os bairros ricos. Lá no alto
— pensava — moram os anjos, e certamente usufruem toda a cidade. Como
eu gostaria de subir até lá, escalar até o topo. Era o nosso arranha-céu,
mesmo estando fora do bairro, uma coisa que víamos crescer dia a dia. Mas
a obra foi interrompida. Quando eu voltava de Pisa para casa, o arranha-céu
da estação, em vez de símbolo de uma comunidade que estava se renovando,
me parecia mais um nicho da ineficiência.
Naquele período me convenci de que não havia grande diferença entre
o bairro e Nápoles, o mal-estar escoava de um para o outro sem
interrupções. A cada retorno encontrava uma cidade cada vez mais de
estuque, que não resistia às mudanças de estação, ao calor, ao frio, sobretudo
aos temporais. E logo a estação da piazza Garibaldi se alagava, logo vinha
abaixo a Galeria em frente ao Museu, logo havia um deslizamento de terra, e
a luz elétrica não voltava mais. Guardava na memória ruas escuras e cheias
de perigo, um trânsito cada vez mais caótico, a pavimentação irregular,
poças enormes. Os bueiros entupidos transbordavam, regurgitavam. Lavas de
água, esgoto, lixo e bactérias se despejavam no mar vindas das colinas
repletas de construções novíssimas e frágeis, ou erodiam o mundo de baixo.
As pessoas morriam por incúria, corrupção, opressão e, apesar de tudo, a
cada turno eleitoral, dava seu consenso entusiástico aos políticos que
tornavam sua vida insuportável. Assim que descia do trem, movia-me com
cautela nos lugares onde eu tinha crescido, atenta para falar sempre em
dialeto, como para assinalar sou um de vocês, não me façam mal.
Quando me formei, quando escrevi de jato uma história que, de modo
totalmente inesperado, em poucos meses se transformou em um livro, os
elementos do mundo de onde eu vinha me pareceram ainda mais
deteriorados. Enquanto em Pisa ou Milão eu me sentia bem, às vezes até
feliz, em minha cidade natal temia a cada retorno que algum imprevisto me
impedisse de fugir dali, que as coisas que eu tinha conquistado fossem
tiradas de mim. Não poderia mais ir encontrar Pietro, com quem deveria me
casar em breve; o espaço impecável da editora me seria vetado; não poderia
mais usufruir as gentilezas de Adele, minha futura sogra, uma mãe como
nunca tive. Já no passado a cidade me parecera lotada, uma única multidão
que se estendia da piazza Garibaldi até Forcella, Duchesca, Lavinaio,
Rettifilo. No final dos anos 1960, tive a impressão de que a multidão
aumentara, de que a intolerância e a agressividade estavam se espalhando de
modo incontrolável. Numa manhã fui até a via Mezzocannone, onde anos
antes eu tinha trabalhado como atendente numa livraria. Fui por curiosidade,
para ver o lugar em que passara horas de trabalho, especialmente para dar
uma olhada na universidade, onde eu nunca tinha entrado. Queria compará-la
com a de Pisa, com a Normal, esperava até cruzar com os filhos da
professora Galiani — Armando, Nadia — e me gabar do que eu tinha sido
capaz de fazer. Mas a rua, os espaços universitários me deram angústia,
estavam cheios de estudantes napolitanos, da província e de todo o Sul,
jovens bem-vestidos, barulhentos, seguros de si, e de rapazes de modos
grosseiros e ao mesmo tempo subalternos. Aglomeravam-se nas entradas,
dentro das salas, em frente às secretarias onde havia longas filas, onde
frequentemente surgiam animosidades. Três ou quatro trocaram socos sem
aviso prévio a poucos passos de mim, como se tivesse bastado se verem
para chegar a uma explosão de insultos e agressões físicas, uma fúria de
homem berrando sua vontade de sangue num dialeto que eu mesma tinha
dificuldade de entender. Fui embora depressa, como se algo ameaçador me
tivesse atingido em um local que eu imaginava seguro, habitado apenas por
boas razões.
Enfim, cada ano me parecia pior. Naquele período de chuvas, a cidade
estava mais uma vez colapsada, um prédio inteiro pendera de lado como uma
pessoa que se apoia no braço carcomido de uma velha poltrona e o braço
cede. Mortos, feridos. E gritos, massacres, bombas caseiras. Parecia que a
cidade gestava nas vísceras uma fúria que não conseguia extravasar e por
isso mesmo a corroía, ou irrompia em pústulas epidérmicas, inchadas de
veneno contra todos, crianças, adultos, velhos, gente de outras cidades,
americanos da Otan, turistas de qualquer nacionalidade, os próprios
napolitanos. Como era possível resistir naquele lugar de desordem e perigo,
na periferia, no centro, nas colinas, sob o Vesúvio? Que impressão horrível
me causara San Giovanni a Teduccio, a viagem para chegar até lá. Que
impressão horrível me deu a fábrica em que Lila trabalhava, e a própria
Lila, Lila com o filho pequeno, Lila que, num edifício miserável, vivia com
Enzo embora não dormissem juntos. Tinha dito que ele queria estudar o
funcionamento das calculadoras eletrônicas e que ela estava tentando ajudá-
lo. Ficou em minha memória a voz dela tentando apagar San Giovanni, os
embutidos, o cheiro da fábrica, sua condição, citando com fingida
competência siglas do tipo: Centro de cibernética da Estatal de Milão,
Centro soviético para a aplicação dos computadores nas ciências sociais.
Queria me fazer acreditar que em breve surgiria um centro daquele gênero
também em Nápoles. Aí pensei: em Milão talvez sim, com certeza na União
Soviética, mas aqui não, aqui são delírios de sua cabeça incontrolável, para
dentro dos quais você também está arrastando o pobre e devotíssimo Enzo.
Em vez disso, ir embora. Escapar definitivamente, para longe da vida que
tínhamos experimentado desde o nascimento. Fixar-se em territórios bem
organizados, onde realmente tudo era possível. E de fato foi o que eu fiz.
Mas só para descobrir, nas décadas seguintes, que eu tinha me enganado, que
se tratava de uma corrente com anéis cada vez maiores: o bairro remetia à
cidade, a cidade, à Itália, a Itália, à Europa, a Europa, a todo o planeta. E
hoje eu vejo assim: não é o bairro que está doente, não é Nápoles, é o globo
terrestre, é o universo, ou os universos. E a habilidade consiste em ocultar e
esconder para si o real estado das coisas.
Falei a respeito disso com Lila naquela tarde, no inverno de 2005,
como para fazer uma reparação. Queria reconhecer que ela havia
compreendido tudo desde pequena, sem jamais ter saído de Nápoles. Mas
me envergonhei quase imediatamente, senti em minhas palavras o
pessimismo rabugento de quem envelhece, o tom que — eu sabia — ela
detestava. De fato, me mostrou os dentes envelhecidos num sorriso que era
uma careta nervosa e disse:
“Agora vai bancar a sábia, proferir sentenças? Quais são suas
intenções? Quer escrever sobre nós? Quer escrever sobre mim?”.
“Não.”
“Diga a verdade.”
“Seria muito complicado.”
“Mas pensou nisso, e continua pensando.”
“Um pouco, sim.”
“Me deixe em meu canto, Lenu. Deixe todo mundo pra lá. Nós devemos
desaparecer, não merecemos nada, nem Gigliola nem eu, ninguém.”
“Isso não é verdade.”
Fez uma feia expressão de descontentamento e me perscrutou com
pupilas que mal se viam, a boca entreaberta.
“Tudo bem”, disse, “escreva, se faz tanta questão, escreva sobre
Gigliola, sobre quem quiser. Mas não sobre mim, nem tente, me prometa.”
“Não vou escrever sobre ninguém, nem sobre você.”
“Olha lá, estou de olho em você.”
“É mesmo?”
“Vou vasculhar seu computador, ler seus arquivos, apagar um por um.”
“Que nada.”
“Acha que não sou capaz?”
“Eu sei que você é capaz. Mas sei me proteger.”
Riu com seu velho jeito maldoso.
“De mim, não.”
2.

Nunca mais esqueci aquelas três palavras, foi a última coisa que ela me
disse: de mim, não. Agora já faz semanas que escrevo num bom ritmo, sem
perder tempo relendo o que escrevi. Se Lila ainda estiver viva — fico
fantasiando sobre isso enquanto sorvo um café e vejo o rio Pó se chocando
contra as pilastras da ponte Principessa Isabella, ela não vai resistir, virá
xeretar meu computador, vai ler e, velha lunática que é, ficará furiosa com
minha desobediência, vai se intrometer, corrigir, fazer acréscimos, deixando
pra lá o desejo de desaparecer. Depois lavo a xícara, vou à escrivaninha,
volto a escrever a partir daquela primavera fria em Milão, uma noite
passada mais de quarenta anos atrás, na livraria, quando o homem de óculos
grossos falou com sarcasmo de mim e de meu livro diante de todos, e eu
repliquei de modo confuso, trêmulo. Até que de repente Nino Sarratore se
ergueu, quase irreconhecível com a barba inculta, pretíssima, e atacou com
dureza quem tinha me atacado. A partir daquele momento, comecei por
inteiro a gritar seu nome em silêncio — há quanto tempo não o via, quatro,
cinco anos — e, embora estivesse gelada por causa da tensão, me senti
queimar.
Assim que Nino terminou sua fala, o homem pediu o direito de réplica
com um gesto contido. Era óbvio que ele sentira o golpe, mas eu estava
muito envolvida em emoções violentas para entender imediatamente o
porquê. Tinha percebido, naturalmente, que a intervenção de Nino deslocara
a discussão da literatura para a política, de modo agressivo e quase
desrespeitoso. Porém, naquele momento dei pouco peso ao fato, não
conseguia me perdoar por não ter sido capaz de enfrentar o debate, de ter
sido inconsequente diante de um público muito culto. No entanto eu sabia
reagir. No liceu, tinha reagido a uma condição de desvantagem tentando
imitar a professora Galiani, apropriando-me de seus tons e de sua linguagem.
Em Pisa aquele modelo de mulher não bastara, tive de me haver com gente
muito aguerrida. Franco, Pietro, todos os estudantes que se destacavam, e
naturalmente os professores prestigiosos da Normal, se expressavam de
maneira complexa, escreviam com calculadíssimo artifício, tinham uma
habilidade em categorizar, uma nitidez lógica, que Galiani não possuía. Mas
eu me exercitara para ser como eles. E frequentemente consegui, tive a
impressão de dominar as palavras a ponto de varrer para sempre as
incongruências do estar no mundo, a insurgência das emoções e os discursos
trôpegos. Em suma, agora eu sabia recorrer a um modo de falar e de
escrever que, por meio de um vocabulário selecionadíssimo, um andamento
amplo e meditado, a disposição implacável dos argumentos e a clareza
formal que jamais podia faltar, visava a aniquilar o interlocutor a ponto de
lhe tirar a vontade de rebater. Mas naquela noite as coisas não correram
como deveriam. Primeiro Adele e seus amigos, que eu imaginava de
finíssimas leituras, depois o homem de óculos grossos acabaram por me
intimidar. Eu me tornara a mulherzinha voluntariosa que vinha do bairro, a
filha do contínuo com a cadência dialetal do Sul, ela mesma assustada por
ter ido parar naquele lugar, recitando o papel da escritora jovem e culta. Por
isso perdi confiança e me expressei sem convicção, atabalhoadamente. Sem
falar de Nino. Sua aparição me tirara qualquer resto de controle, e a própria
qualidade de sua fala em minha defesa confirmara que eu havia perdido
subitamente minhas habilidades. Vínhamos de ambientes semelhantes, ambos
nos esforçáramos para adquirir aquela linguagem. Entretanto ele não só a
tinha usado com naturalidade, direcionando-a facilmente contra seu
interlocutor, mas também, nos momentos em que lhe pareceu necessário, até
se permitiu inserir programaticamente alguma desordem em seu italiano
elegante com uma negligência ostensiva, que logo fez soar antiquada e talvez
até um pouco ridícula a impostação professoral do homem de óculos
grossos. Consequentemente, quando notei que este último queria retomar a
palavra, pensei: deve estar furioso e, se antes falou mal de meu livro, agora
vai falar ainda pior, só para humilhar Nino, que o defendeu.
Mas o homem pareceu preocupado com outras coisas: não voltou ao
meu romance, não fez mais nenhuma menção a mim. Concentrou-se, em vez
disso, em certas fórmulas que Nino usara marginalmente, mas repetindo-as
com insistência; coisas do tipo arrogância oligárquica, literatura
antiautoritária. Só então compreendi que sua raiva derivava da inflexão
política do debate. Não apreciara aquele léxico, e o sublinhou escandindo a
voz profunda com um repentino falsete sarcástico (portanto a altivez do
conhecimento hoje é definida arrogância, então até a literatura tornou-se
antiautoritária?). Depois passou a jogar sutilmente com a palavra
autoridade, graças a Deus — disse — uma barreira contra os jovenzinhos
incultos que se pronunciam a esmo sobre qualquer coisa, recorrendo às
platitudes de sabe-se lá que curso livre da Estatal de Milão. E falou
demoradamente sobre esse tema, dirigindo-se ao público, jamais diretamente
a Nino ou a mim. No entanto, ao final, concentrou-se primeiro no velho
crítico que estava sentado a meu lado e, depois, diretamente em Adele,
talvez seu verdadeiro alvo polêmico desde o início. Não tenho nada contra
os jovens — disse em síntese —, mas contra os adultos estudados que estão
sempre prontos, por interesse, a cavalgar a última moda da estupidez. Neste
ponto finalmente se calou e fez menção de sair com abafados mas enérgicos
me desculpem, com licença, obrigado.
Os presentes se levantaram para deixá-lo passar, todos hostis, mas
respeitosos. Então pude confirmar definitivamente que se tratava de um
homem de prestígio, de tanto prestígio que até Adele respondeu ao seu
cumprimento raivoso com um cordial: obrigada, até logo. Talvez tenha sido
por isso que Nino surpreendeu a todos quando, de modo imperativo e ao
mesmo tempo zombeteiro, mostrando saber com quem estava falando, o
chamou com o título de professor — professor, aonde vai, não fuja — e
então, graças à agilidade das pernas compridas, bloqueou sua passagem, o
enfrentou, lhe disse frases naquela sua nova língua que, de onde eu estava,
mal pude ouvir e entender, mas que deviam ser como cabos de aço sob o sol
forte. O homem escutou imóvel, sem impaciência, depois fez um gesto com a
mão que significava afaste-se e rumou para a saída.
3.

Saí da mesa transtornada, demorava a me dar conta de que Nino realmente


estava ali, em Milão, naquela sala. Mas lá estava ele, que vinha a meu
encontro sorrindo, mas com o passo medido, sem pressa. Apertamos as mãos
— a dele estava muito quente, a minha, gelada — e declaramos quanto
estávamos contentes por nos revermos depois de tanto tempo. Saber que
finalmente o pior da noite havia passado e que agora ele estava diante de
mim, real, atenuou meu mau humor, mas não a agitação. Apresentei-o ao
crítico que havia generosamente elogiado meu livro, disse a ele que era um
amigo de Nápoles, que tínhamos feito o liceu juntos. Mesmo tendo recebido
de Nino algumas estocadas, o professor foi gentil, elogiou-o pelo modo
como havia tratado aquele sujeito, falou de Nápoles com simpatia, enfim,
dirigiu-se a ele como a um estudante brilhante que devia ser encorajado.
Nino explicou que morava em Milão havia anos, se ocupava de geografia
econômica, pertencia — e sorriu — à categoria mais miserável da pirâmide
acadêmica, ou seja, a dos assistentes. Expressou-se de modo cativante, sem
o tom mal-humorado que tinha na adolescência, e me pareceu estar vestindo
uma armadura mais leve que aquela que me fascinara no liceu, como se
tivesse conseguido desembaraçar-se de pesos excessivos para poder
esgrimir com mais rapidez e elegância. Notei com alívio que não usava
aliança.
Enquanto isso, algumas amigas de Adele se aproximaram para que eu
autografasse o livro, coisa que me emocionou, era a primeira vez que aquilo
acontecia. Titubeei: não queria perder Nino de vista nem por um segundo,
mas também desejava atenuar a impressão de menina desajeitada que devo
ter transmitido. Então o deixei com o professor de idade — chamava-se
Tarratano — e acolhi minhas leitoras com cortesia. Quis terminar com
aquilo rapidamente, mas os exemplares eram novos, com cheiro de gráfica,
muito diferentes dos livros surrados e malcheirosos que Lila e eu pegávamos
emprestados na biblioteca do bairro, e não tive ânimo de estragá-los
depressa com a caneta. Exibi minha melhor letra, aquela dos tempos da
professora Oliviero, e inventei elaboradas dedicatórias, que causaram
alguma impaciência nas senhoras que estavam na fila. Fiz isso com o
coração aos pulos, de olho em Nino. Tremia ao pensar que ele pudesse ir
embora.
Não foi. Agora Adele se juntara a ele e a Tarratano, e Nino se dirigia a
ela com deferência e ao mesmo tempo desenvoltura. Lembrei-me de quando
falava pelos corredores do liceu com a professora Galiani e não foi difícil
associar em minha cabeça o aluno brilhante daquela época ao jovem homem
de agora. Entretanto afastei com decisão, como um desvio inútil que nos
fizera sofrer a todos, o estudante universitário de Ischia, o amante de minha
amiga casada, o jovem abatido que se escondia no banheiro da loja da
piazza dei Martiri e que era o pai de Gennaro, um menino que ele nunca tinha
visto. Com certeza a irrupção de Lila o fizera perder o rumo, mas — como
naquela ocasião me pareceu evidente — tratou-se apenas de um parêntese.
Por mais intensa que tivesse sido aquela experiência, por mais que tivesse
deixado marcas profundas nele, agora tinha acabado. Nino se reencontrara, e
eu fiquei contente. Pensei: preciso dizer a Lila que o encontrei, que ele está
bem. Depois mudei de ideia: não, não vou dizer nada.
Quando encerrei as dedicatórias, a sala já estava vazia. Adele pegou
minha mão com delicadeza, elogiou muito o modo como eu tinha falado de
meu livro e como respondi à péssima intervenção — assim ela definiu — do
homem de óculos grossos. Como eu negava o fato de ter me saído bem (sabia
perfeitamente que não era verdade), pedi a Nino e a Tarratano que se
pronunciassem, e ambos naturalmente se derramaram em elogios. Nino
chegou a dizer, fixando-me sério: vocês não sabem o que era essa menina já
no ginásio, inteligentíssima, cultíssima, muito corajosa, muito bonita. E,
enquanto eu sentia meu rosto arder, ele passou a contar com elegância
irônica meu conflito de anos atrás com o professor de religião. Adele
escutava e ria em vários momentos. Nós da família — disse — percebemos
imediatamente as qualidades de Elena, e então anunciou que tinha reservado
para o jantar um restaurante ali perto. Fiquei tensa, murmurei sem jeito que
estava cansada e sem fome, dei a entender que, como não nos encontrávamos
há tanto tempo, gostaria de passear um pouco com Nino antes de ir para a
cama. Sabia que era uma descortesia, o jantar era para homenagear a mim e
agradecer a Tarratano por seu empenho em favor do livro, mas não consegui
me conter. Adele me fixou por um instante com uma expressão irônica e
replicou que, naturalmente, meu amigo também era convidado, acrescentando
com ares misteriosos, como para compensar-me do sacrifício que eu fazia:
tenho uma bela surpresa guardada para você. Olhei Nino ansiosa: aceitaria o
convite? Ele disse que não queria incomodar, olhou o relógio e aceitou.
4.

Saímos da livraria. Com discrição, Adele seguiu na frente acompanhada de


Tarratano, enquanto eu e Nino os acompanhávamos atrás. Mas logo descobri
que não sabia o que falar com ele, temia que qualquer palavra minha soasse
equivocada. Ele cuidou de quebrar o silêncio. Elogiou mais uma vez meu
livro e começou a falar com muito apreço dos Airota (os definiu como “a
mais civilizada das famílias que valem alguma coisa na Itália”), disse que
conhecia Mariarosa (“está sempre na linha de frente: duas semanas atrás
tivemos uma grande discussão”), congratulou-me porque tinha acabado de
saber por Adele que eu estava noiva de Pietro, cujo livro sobre os ritos
báquicos, para meu espanto, ele conhecia; mas acima de tudo falou com
deferência sobre o chefe de família, o professor Guido Airota, “um homem
realmente excepcional”. Fiquei um pouco irritada por ele já saber de meu
noivado, e também incomodada ao notar que o elogio a meu livro era mais
um preâmbulo ao louvor bem mais acentuado de toda a família de Pietro, do
livro de Pietro. Então o interrompi, perguntei a respeito dele, mas foi vago
nas respostas, apenas a menção a um livrinho no prelo que ele mesmo
qualificou de tedioso, mas obrigatório. Insisti, indaguei se tinha enfrentado
muitas dificuldades nos primeiros anos em Milão. Respondeu com poucas
palavras genéricas sobre os problemas quando se vem do Sul sem um
centavo no bolso. Depois me perguntou de repente:
“Você voltou a morar em Nápoles?”
“Por enquanto, sim.”
“No bairro?”
“Sim.”
“Eu rompi definitivamente com meu pai e não vejo mais ninguém da
família.”
“Que pena.”
“Está ótimo assim. Só lamento não ter notícias de Lina.”
Por um instante pensei que eu me enganara, que Lila nunca tivesse saído
de sua vida, que não tinha ido à livraria por minha causa, mas só para saber
dela. Então disse a mim mesma: se ele realmente quisesse saber de Lila,
depois de tantos anos teria encontrado um meio de se informar, e reagi com
ímpeto, no tom claro de quem quer encerrar o assunto depressa:
“Ela deixou o marido, vive com outro.”
“Teve um menino ou uma menina?”.
“Um menino.”
Fez uma expressão descontente e disse:
“Lina é corajosa, até demais. Mas não sabe dobrar-se à realidade, é
incapaz de aceitar os outros e a si mesma. Gostar dela foi uma experiência
difícil.”
“Em que sentido?”
“Ela não sabe o que é dedicação.”
“Talvez você esteja exagerando.”
“Não, ela realmente tem problemas: na cabeça, em tudo, até no sexo.”
Aquelas últimas palavras — até no sexo — me atingiram mais que as
outras. Então Nino estava expressando um juízo negativo sobre sua relação
com Lila? Então acabara de me dizer, para meu espanto, que aquele juízo
também incluía a esfera sexual? Fixei por uns segundos as silhuetas escuras
de Adele e de seu amigo, que caminhavam à nossa frente. O espanto se
transformou em ansiedade, percebi que até no sexo era um preâmbulo, que
ele queria ser ainda mais explícito. Anos atrás aconteceu que Stefano, depois
do casamento, fez confidências a mim e me contou alguns problemas com
Lila, mas sem nunca aludir ao sexo, ninguém no bairro o teria feito ao falar
sobre a mulher que amava. Era impensável, por exemplo, que Pasquale me
falasse da sexualidade de Ada ou, pior ainda, que Antonio conversasse com
Carmen ou Gigliola sobre minha sexualidade. Isso se fazia entre homens — e
de modo vulgar, quando eles não se importavam ou já tinham deixado de se
importar conosco, mulheres —, mas entre homens e mulheres, não.
Entretanto intuí que Nino, o novo Nino, considerava absolutamente normal
tratar comigo sobre temas como o das relações sexuais que tivera com minha
amiga. Fiquei constrangida, me retraí. Este é outro ponto — pensei — sobre
o qual nunca devo falar com Lila; no entanto disse com falsa desenvoltura:
águas passadas, vamos esquecer as tristezas, me fale de você, como é seu
trabalho, quais as perspectivas na universidade, onde você mora, vive
sozinho? Mas com certeza demonstrei excessiva ansiedade, e ele deve ter
notado que saí pela tangente depressa. Sorriu irônico e começou a me
responder. Mas tínhamos chegado ao restaurante, e entramos.
5.

Adele distribuiu os lugares: eu ao lado de Nino e em frente a Tarratano, ela


ao lado de Tarratano e em frente a Nino. Fizemos os pedidos e rapidamente
a conversa resvalou para o homem de óculos grossos, um professor de
literatura italiana — pelo que entendi — colaborador assíduo do Corriere
della Sera, democrata-cristão. Dessa vez, nem Adele nem o amigo dela
conseguiram se conter. Fora do ritual da livraria, falaram todo o mal
possível sobre o sujeito e elogiaram Nino pelo modo como o enfrentara e
desconcertara. Riram sobretudo ao lembrar as palavras com que ele o
atacara enquanto abandonava a sala, frases que eles tinham escutado, e eu,
não. Perguntaram a ele qual tinha sido a formulação precisa, mas Nino se
esquivou, disse que não recordava. Mas depois as palavras vieram à tona,
talvez reinventadas para a ocasião, algo do tipo: para tutelar a Autoridade
em toda sua expressão, o senhor estaria disposto a suspender a
democracia. E a partir daquele momento os três conversaram apenas entre
si, com um entusiasmo crescente, sobre os serviços secretos, a Grécia, a
tortura nas prisões daquele país, o Vietnã, a inesperada insurgência do
movimento estudantil não só na Itália, mas na Europa e em todo o mundo,
sobre um artigo do professor Airota na revista Ponte — com o qual Nino
disse ter concordado palavra por palavra — a propósito da condição da
pesquisa e do ensino nas universidades.
“Vou dizer a minha filha que você gostou”, disse Adele, “ela o
considerou ruim.”
“Mariarosa só se apaixona pelo que o mundo não pode dar.”
“Perfeito, é justamente isso.”
Eu não sabia nada sobre esse artigo de meu futuro sogro. Aquilo me
deixou mal, e fiquei escutando em silêncio. Primeiro as provas finais, depois
a tese de conclusão de curso, depois o livro e sua publicação apressada
absorveram grande parte de meu tempo. Estava superficialmente informada
sobre os acontecimentos do mundo e não tinha ouvido quase nada sobre
estudantes, manifestações, confrontos, feridos, prisões, sangue. Como já
estava fora da universidade, tudo o que eu de fato sabia sobre aquela
agitação eram os resmungos de Pietro, que se lamentava do que definia numa
carta de “a besteirada pisana”. Assim me sentia imersa em um cenário de
traços confusos. Traços que, no entanto, meus comensais pareciam capazes
de decifrar com extrema precisão, sobretudo Nino. Eu estava sentada ao
lado dele, o escutava, tocava de leve meu braço no dele, um contato apenas
de tecidos, mas que mesmo assim me emocionava. Tinha conservado sua
propensão para as cifras: listava números de inscritos na universidade, uma
verdadeira multidão, e sobre a capacidade real dos edifícios, sobre as horas
que os medalhões de fato trabalhavam, sobre quantos, em vez de pesquisar e
ensinar, ocupavam cadeiras no parlamento ou em conselhos de
administração, ou se dedicavam a consultorias remuneradíssimas e a
atividades privadas. Adele concordava, o amigo, também, e às vezes
intervinham mencionando pessoas cujos nomes eu nunca tinha ouvido. Me
senti excluída. A comemoração pelo meu livro já não estava em seus
pensamentos, minha sogra parecia até esquecida da surpresa que me
anunciara. Sussurrei que sairia da mesa por um instante, Adele fez um sinal
distraído, Nino continuou falando entusiasmado. Tarratano deve ter pensado
que eu estava me aborrecendo e disse solícito, quase num murmúrio:
“Volte logo, conto muito com sua opinião.”
“Não tenho opiniões”, respondi com um meio sorriso.
Ele sorriu por sua vez:
“Uma escritora sempre inventa uma.”
“Talvez eu não seja uma escritora.”
“Claro que é.”
Fui ao toalete. Nino sempre tivera a capacidade de mostrar minhas
deficiências assim que abria a boca. Preciso estudar mais, pensei, como
pude ficar para trás desse jeito? Claro, quando quero, sei simular com as
palavras um pouco de competência e paixão. Mas não posso continuar assim,
aprendi muitas coisas que não servem para nada e pouquíssimas que
importam. Terminado meu caso com Franco, perdi o pouco de curiosidade
pelo mundo que ele me transmitira. E o noivado com Pietro não me ajudou, o
que não interessava a ele parou de interessar a mim. Como Pietro é diferente
do pai, da irmã, da mãe. E como ele é diferente de Nino. Se fosse por ele, eu
nem teria escrito meu romance. Ele o aceitou quase com fastio, como uma
infração à etiqueta acadêmica. Ou talvez eu esteja exagerando, foi só culpa
minha. Sou uma jovem limitada, só consigo me concentrar em uma coisa por
vez, o resto eu elimino. Mas agora vou mudar. Logo depois deste jantar
tedioso vou arrastar Nino comigo, vou obrigá-lo a passear a noite inteira,
vou lhe perguntar que livros eu devo ler, que filmes devo ver, que músicas
devo ouvir. Vou pegá-lo pelo braço e dizer: estou com frio. Propósitos
confusos, proposições incompletas. Me escondi na ansiedade que sentia,
disse apenas a mim mesma: poderia ser a única ocasião que temos, viajo
amanhã, não o verei mais.
Nesse meio-tempo eu me observava no espelho com raiva. Estava com
o rosto cansado, pequenas espinhas no queixo e olheiras roxas prenunciavam
a menstruação. Sou feia, baixinha, peitos muito grandes. Deveria ter
entendido há tempos que ele nunca me quis, não por acaso preferiu Lila a
mim. Mas com que resultado? Ela tem problemas até no sexo, ele disse.
Errei ao me esquivar. Deveria ter me mostrado curiosa, deixá-lo continuar.
Caso volte a tocar no assunto, serei mais desinibida: quando é que uma
mulher tem problemas no sexo? Estou perguntando — lhe direi, rindo —
porque também quero me corrigir, se achar necessário. Admitindo-se que
seja possível se corrigir, quem sabe. Recordei com asco o que tinha
acontecido com o pai dele na praia dos Maronti. Pensei nas relações com
Franco sobre a cama estreita de seu quarto em Pisa. Naquelas ocasiões eu
teria feito algo errado que tivesse sido notado, mas que, por tato, ele não me
dissera? E se naquela mesma noite, suponhamos, eu fosse para a cama com
Nino, voltaria a errar de novo, a ponto de ele pensar: tem problemas que
nem Lila, e falaria às minhas costas com suas amigas da Estatal, talvez até
com Mariarosa?
Percebi quanto aquelas palavras tinham sido desagradáveis, eu o
deveria ter censurado. Desse sexo errado — deveria ter dito a ele —, de
uma experiência sobre a qual você agora expressa um julgamento negativo,
nasceu um filho, o pequeno Gennaro, que é muito inteligente: não é nada
bonito que você fale assim, a questão não é redutível a quem tem problemas
e a quem não tem, Lila se arruinou por você. E decidi: quando me livrar de
Adele e do amigo dela, quando ele me acompanhar até o hotel, retomarei a
conversa e lhe direi tudo.
Saí do toalete. Voltei ao salão e descobri que a situação tinha mudado
durante minha ausência. Assim que minha sogra me viu, agitou uma mão e
disse alegre, com o rosto aceso: finalmente a surpresa chegou. A surpresa
era Pietro, sentado ao seu lado.
6.

Meu noivo se levantou e me abraçou. Eu nunca tinha dito nada a ele sobre
Nino. Tinha mencionado Antonio, poucas palavras, e lhe dissera algo sobre
minha relação com Franco, que aliás era bem conhecida no ambiente
estudantil de Pisa. Mas nunca nem aludira ao nome de Nino. Era uma história
que me fazia mal, com momentos penosos dos quais eu me envergonhava.
Revelá-la significaria confessar que sempre amei uma pessoa como jamais o
amaria. E conferir-lhe uma ordem, um sentido, implicava falar de Lila, de
Ischia, avançar quem sabe até o ponto de admitir que o episódio de sexo com
um homem maduro, tal como era narrado em meu livro, se inspirava em uma
experiência verdadeira nos Maronti, em minha escolha de garotinha
desesperada que agora, depois de tanto tempo, me parecia uma coisa
repugnante. Assunto meu, portanto, e preservei meus segredos. Se Pietro
tivesse sabido, compreenderia facilmente a razão de meu descontentamento
com que o estava recebendo.
Ele tornou a se sentar na cabeceira da mesa, entre a mãe e Nino.
Devorou uma bisteca e bebeu vinho, mas me olhava assustado, percebendo
meu mau humor. Com certeza se sentia em culpa por não ter chegado a tempo
e perdido um acontecimento importante em minha vida, porque seu descuido
podia ser interpretado como um sinal de que não me amava, porque me
deixara com estranhos, sem o conforto de seu afeto. Difícil dizer a ele que
minha cara amarrada e meu mutismo se explicavam justamente pelo fato de
ele não ter permanecido ausente até o final, por ter se intrometido entre mim
e Nino.
De resto, Nino estava me infligindo uma infelicidade ainda maior.
Estava sentado a meu lado, mas nunca me dirigia a palavra. Parecia contente
com a chegada de Pietro. Servia-lhe vinho, oferecia seus cigarros, acendia
um, e agora os dois sopravam fumaça de lábios estreitos, falando da viagem
cansativa de carro entre Pisa e Milão e do prazer de dirigir. Fiquei
espantada com a diferença entre eles: Nino era enxuto, flexível, a voz alta e
cordial; Pietro atarracado, com uma bizarra massa emaranhada de cabelos
sobre a testa enorme, as bochechas cheias raspadas pela lâmina, a voz
sempre baixa. Pareciam alegres por terem se conhecido, algo bastante
anômalo para Pietro, sempre na dele. Nino o incitava, mostrava um real
interesse por seus estudos (li em algum lugar um artigo em que você
contrapõe o leite e o mel ao vinho e a qualquer forma de embriaguez), o
solicitava a falar sobre o assunto, e meu noivo, que em geral tendia a não
dizer nada sobre aqueles temas, acabava cedendo, corrigia com bom humor,
se abria. Porém, justo quando Pietro começava a ficar íntimo, Adele
interveio.
“Chega de conversa”, disse ao filho. “E a surpresa para Elena?”
Olhei para ela, incerta. Havia outras surpresas? Não bastava que Pietro
tivesse guiado por oito horas, sem fazer nenhuma parada, só para chegar a
tempo de pelo menos jantar em minha homenagem? Pensei em meu noivo
com curiosidade, estava assumindo um ar circunspecto que eu conhecia bem,
e que se estampava em seu rosto quando as circunstâncias o forçavam a falar
bem de si em público. Anunciou-me, mas quase em um sussurro, que se
tornara professor titular, um precocíssimo professor titular com uma cátedra
em Florença. Assim, por magia, segundo seu costume. Nunca se gabava de
sua excelência, eu não sabia quase nada sobre quanto era apreciado como
estudioso, submetia-se a provas duríssimas sem me dizer palavra. E agora lá
estava ele, dando aquela notícia com negligência, como se tivesse sido
obrigado pela mãe, como se para ele não significasse grande coisa. No
entanto significava um prestígio notável para alguém de sua idade,
significava segurança econômica, significava sair de Pisa, significava
subtrair-se a um clima político e cultural que há meses, não sei por que, o
exasperava. Significava acima de tudo que no outono, ou no máximo no
início do próximo ano, nós nos casaríamos e eu deixaria Nápoles. Ninguém
fez menção a este último fato, mas todos se congratularam tanto com Pietro
quanto comigo. Nino, que logo em seguida olhou o relógio, disse uma frase
azeda sobre a carreira universitária e exclamou que estava desolado, mas
precisava ir embora.
Todos nos levantamos. Eu não sabia o que fazer, busquei inutilmente o
olhar dele, e uma grande dor cresceu em meu peito. Fim da noite, ocasião
perdida, desejos abortados. Uma vez na rua, esperei que me desse um
número de telefone, um endereço. Limitou-se a apertar minha mão e a me
desejar todo o bem possível. A partir dali me pareceu que cada movimento
dele me excluísse de propósito. Num gesto de despedida, fiz-lhe um meio
sorriso agitando a mão no ar, como se empunhasse uma caneta. Era uma
súplica e significava: você sabe onde moro, me escreva, por favor. Mas ele
já tinha virado as costas.
7.

Agradeci a Adele e a seu amigo por todo o esforço que tinham feito por mim
e por meu livro. Ambos elogiaram muito Nino, com sinceridade, falando
como se eu tivesse contribuído para torná-lo um jovem tão simpático e
inteligente. Pietro não disse nada, fez apenas um gesto meio nervoso quando
a mãe lhe recomendou que voltasse logo, ambos eram hóspedes de
Mariarosa. Eu disse imediatamente: não precisa me acompanhar, vá com sua
mãe. Ninguém achou que eu estivesse falando sério, que eu estava infeliz e
preferia ficar sozinha.
Durante todo o percurso me mostrei intratável. Exclamei que não
gostava de Florença, o que não era verdade. Exclamei que não queria mais
escrever, queria ensinar, e não era verdade. Exclamei que estava cansada,
que tinha muito sono, e não era verdade. Não só: quando Pietro me anunciou
sem preâmbulos que queria conhecer meus pais, gritei: está maluco, deixe
minha família em paz, você não é adequado para eles e eles não são
adequados a você. Naquela altura ele me perguntou espantado:
“Não quer mais se casar comigo?”
Estive a ponto de dizer: é, não quero, mas me controlei a tempo, sabia
que nem isso era verdade. Disse sem forças: desculpe, estou deprimida,
claro que quero me casar com você — então peguei sua mão e entrelacei
meus dedos nos dele. Era um homem inteligente, extraordinariamente culto e
bom. Eu gostava dele, não queria que sofresse. No entanto, enquanto
segurava sua mão, justamente enquanto confirmava que queria me casar,
compreendi com clareza que, se ele não tivesse aparecido aquela noite no
restaurante, eu teria tentado ficar com Nino.
Foi difícil admitir isso. Com certeza era uma má ação, que Pietro não
merecia, mas eu a cometeria com prazer e talvez até sem remorsos.
Encontraria um modo de atrair Nino para mim depois de todos aqueles anos,
desde a escola fundamental até o liceu, até o período de Ischia e da piazza
dei Martiri. Eu o tomaria para mim, ainda que aquela frase dele sobre Lila
me incomodasse e angustiasse. Eu o tomaria para mim e nunca diria nada a
Pietro. Talvez pudesse contar a Lila, mas quem sabe quando, talvez na
velhice, quando imaginava que nada mais importaria nem a ela, nem a mim.
O tempo, como em todas as coisas, era decisivo. Nino duraria apenas uma
noite, me deixaria na manhã seguinte. Mesmo o conhecendo desde sempre,
era feito de fantasias, ficar com ele para sempre teria sido impossível, ele
vinha da infância, era construído de desejos infantis, não tinha concretude,
não apontava para o futuro. Já Pietro era de agora, maciço, um marco de
fronteira. Delimitava uma terra novíssima para mim, uma terra de boas
razões, governada por regras que derivavam de sua família e que conferiam
um sentido a cada coisa. Vigiam grandes ideais, o culto do bom nome,
questões de princípio. Nada, entre os Airota, era aproximativo. O
casamento, por exemplo, participava de sua contribuição a uma batalha
laica. Os pais de Pietro eram casados apenas no civil, e Pietro, mesmo tendo
uma vasta cultura religiosa — aliás, talvez justamente por isso —, nunca se
casaria na igreja, preferiria renunciar a mim. O mesmo valia para o batismo.
Pietro não tinha sido batizado, nem Mariarosa, portanto nossos eventuais
filhos não seriam batizados. Tudo nele seguia aquele andamento, parecia
sempre guiado por uma ordem superior que, embora não tendo uma origem
divina, mas familiar, dava-lhe igualmente a certeza de estar do lado da
verdade e da justiça. Quanto ao sexo, não sei, ele era reservado. Conhecia
bem minha história com Franco Mari para deduzir que eu não era virgem,
mas nunca tocara nesse assunto, nem uma meia frase recriminatória, uma
piada pesada, uma risadinha. Não me constava que ele tivesse tido outras
namoradas, era difícil imaginá-lo com uma prostituta, e excluía que ele
tivesse passado um minuto sequer de sua vida falando de mulheres com
outros homens. Detestava anedotas picantes. Detestava fofocas, tons
exaltados, festas, toda forma de desperdício. Mesmo sendo de condição
abastada, tendia — nesse ponto em polêmica com os pais e a irmã — a uma
espécie de ascetismo na abundância. E tinha um senso agudo do dever, nunca
faltaria a seus compromissos comigo, nunca me trairia.
Portanto, claro, eu não queria perdê-lo. Paciência se minha natureza,
rude apesar dos estudos que fiz, estava longe de seu rigor, se eu não sabia
honestamente até que ponto seria capaz de suportar toda aquela geometria.
Ele me dava a certeza de escapar à maleabilidade oportunista de meu pai e à
grosseria de minha mãe. Por isso reprimi à força a ideia de Nino, peguei
Pietro pelo braço e murmurei: sim, vamos nos casar o mais rápido possível,
quero ir embora de casa, quero tirar minha habilitação, quero viajar, quero
ter um telefone, uma televisão, nunca tive nada. E naquele momento ele ficou
alegre, riu, disse sim a tudo o que eu confusamente pretendia. A poucos
passos do hotel ele parou e murmurou, rouco: posso dormir com você? Foi a
última surpresa da noite. Olhei para ele perplexa: estive propensa muitas
vezes a fazer amor, ele sempre evitara; mas me deitar com ele ali, em Milão,
no hotel, depois da discussão traumática na livraria, depois de Nino, não me
agradava. Respondi: já esperamos tanto, podemos esperar um pouco mais.
Beijei-o numa esquina escura e o observei da entrada do hotel, enquanto ele
se afastava pelo corso Garibaldi e de vez em quando se virava e dava tchau
com um gesto tímido. Seu andar atrapalhado, os pés chatos, o alto
emaranhado dos cabelos me enterneceram.
8.

A partir daquele momento a vida começou a martelar-me sem trégua, os


meses se enxertaram depressa um dentro do outro, não havia dia em que não
ocorresse algo de bom ou de ruim. Voltei a Nápoles com Nino revirando em
minha cabeça, aquele nosso encontro sem consequências, e aos poucos
prevaleceu a vontade de correr até Lila, esperar que ela voltasse do
trabalho, contar o que fosse possível contar sem lhe fazer mal. Depois me
convenci de que mesmo um leve aceno a Nino seria doloroso para ela, e
renunciei. Lila deslizara para seu rumo, Nino, para o dele, e eu tinha coisas
urgentes a enfrentar. Por exemplo, na mesma noite em que voltei de Milão
disse a meus pais que Pietro logo faria uma visita para conhecê-los, que
provavelmente nos casaríamos ainda naquele ano e que eu iria morar em
Florença.
Não manifestaram alegria nem satisfação. Pensei que estivessem
definitivamente habituados àquele meu vaivém incessante, cada vez mais
estranha à família, indiferente a seus problemas de sobrevivência. E me
pareceu previsível que só meu pai se agitasse um pouco, sempre nervoso
diante de situações para as quais não se sentia preparado.
“O professor da universidade precisa vir mesmo à nossa casa?”,
perguntou irritado.
“E onde seria?”, rebateu furiosa minha mãe. “Como ele vai pedir a mão
de Lenuccia a você se não vier aqui?”
Como sempre, minha mãe me pareceu mais pronta do que ele, concreta,
com uma determinação que beirava a insensibilidade. Mas, uma vez que
conseguiu calá-lo, uma vez que o marido se recolheu para dormir e Elisa,
Peppe e Gianni arrumaram suas camas na sala de jantar, tive que mudar de
opinião. Ela me agrediu com uma voz baixíssima e mesmo assim gritada,
sibilando com olhos injetados: nós não somos nada para você, nos diz as
coisas só em cima da hora, a senhorita se acha não sei o quê por ter
estudado, porque escreve livros, porque vai se casar com um professor, mas,
minha querida, você veio desta barriga e é feita desta substância, por isso
não banque a superior e nunca se esqueça de que, se você é inteligente, eu
que a carreguei aqui dentro sou tão inteligente quanto ou mais que você, tanto
que, se tivesse tido as mesmas oportunidades, faria as mesmas coisas que
você, entendeu? Então, embalada na onda daquela fúria, primeiro me jogou
na cara que, por culpa minha — que fui embora pensando somente em mim
—, meus irmãos iam muito mal na escola; depois me pediu dinheiro, ou
melhor, exigiu, disse que precisava dele para comprar um vestido decente
para Elisa e para arrumar um pouco a casa, já que eu a forçara a receber meu
noivo.
Minimizei os problemas escolares de meus irmãos. Mas lhe dei o
dinheiro imediatamente, mesmo não sendo verdade que eram para a casa, ela
sempre me pedia, qualquer desculpa era boa. Ainda não conseguira aceitar,
embora não o dissesse explicitamente, o fato de eu ter dinheiro depositado
nos Correios, de não o entregar a ela como sempre fizera, desde quando
levava as filhas da dona da papelaria para a praia ou trabalhava na livraria
de Mezzocannone. Talvez, pensei, ao se comportar como se meu dinheiro lhe
pertencesse, quisesse me convencer de que eu mesma pertencia a ela e,
mesmo me casando, pertenceria para sempre.
Fiquei calma, comuniquei a ela que, como uma espécie de indenização,
instalaria um telefone em casa e compraria uma tv a prestações. Ela me
olhou titubeante, com uma repentina admiração que contrastava com o que
me dissera pouco antes.
“Televisão e telefone, nesta casa aqui?”
“Claro.”
“E você vai pagar?”
“Vou.”
“Sempre? Mesmo depois de casada?”
“Sim.”
“O professor sabe que não há um centavo para o seu dote nem para a
festa?”
“Sabe, e não vamos fazer nenhuma festa.”
Mudou de novo de humor, os olhos voltaram a ficar vermelhos.
“Como? Nenhuma festa? Diga para ele pagar.”
“Não, podemos passar sem isso.”
Minha mãe tornou a virar uma fera, me provocou de todas as maneiras,
queria que lhe respondesse para se enfurecer mais ainda.
“Lembra o casamento de Lina, lembra a festa que ela fez?”
“Lembro.”
“E você, que está bem melhor que ela, não quer fazer nada?”
“Não.”
Continuamos assim até que eu decidi que, em vez de absorver sua
raiva, melhor seria devolver na mesma moeda:
“Não só”, falei, “não faremos festa, mas nem sequer vamos nos casar
na igreja: me caso na prefeitura.”
Nessa altura foi como se portas e janelas tivessem sido escancaradas
por um forte vento. Embora de religiosidade escassíssima, minha mãe
perdeu todo o controle e começou a estrilar, a cara vermelha, insultos
terríveis, avançando com o corpo. Gritou que o matrimônio não valia nada
se o padre não dissesse que era válido. Gritou que, se eu não me casasse
diante de Deus, nunca seria uma esposa, mas uma puta, e quase voou —
apesar da perna machucada — para acordar meu pai, meus irmãos, e
comunicar a eles o que ela sempre temera, ou seja, que o excesso de estudos
tinha destruído meu cérebro, que eu tive toda a sorte do mundo, mas deixava
que me tratassem como uma cadela, que ela não poderia mais sair de casa
pela vergonha de ter uma filha sem Deus.
Meu pai, atordoado, de cueca, e meus irmãos tentaram entender qual o
novo abacaxi que precisariam descascar por culpa minha e, enquanto isso,
tentaram inutilmente acalmá-la. Ela berrava que queria me expulsar de casa
imediatamente, antes que a expusesse àquela vergonha de também ela,
também ela, ter uma filha concubina como Lila e Ada. E, embora não fizesse
nada para me estapear de verdade, golpeava o ar como se eu fosse uma
sombra e ela tivesse capturado minha figura real, em quem estava dando
pancadas ferozes. Foi preciso um certo tempo até que ela se acalmasse, o
que ocorreu graças a Elisa. Minha irmã perguntou com cuidado:
“Mas é você quem quer se casar na prefeitura ou seu noivo?”
Então expliquei a ela, mas como se esclarecesse a questão para todos,
que para mim a Igreja há muito tempo não significava mais nada, e que
portanto me casar na prefeitura ou no altar dava na mesma; mas que para meu
noivo era importantíssimo se casar apenas no civil, ele sabia tudo de
questões religiosas e acreditava que a religião, aliás coisa muito digna, se
arruinava justamente quando metia o bedelho em assuntos do Estado. Enfim,
se não nos casarmos só na prefeitura — concluí —, ele não se casará
comigo.
Naquele instante meu pai, que logo se alinhara com minha mãe, parou
de repente de lhe fazer eco nos insultos e lamúrias.
“Não se casa?”
“Não.”
“E faz o quê? Rompe com você?”
“Vamos viver juntos em Florença, sem nos casar.”
Minha mãe considerou aquela hipótese a mais insuportável. Perdeu
completamente as estribeiras, prometeu que nesse caso pegaria uma faca e
me degolaria. Já meu pai esfregou nervosamente os cabelos e disse a ela:
“Cale um pouco essa boca, não me encha o saco e vamos raciocinar.
Sabemos perfeitamente que é possível se casar diante do padre, fazer uma
festa de luxo e depois tudo acabar muito mal.”
Também ele estava aludindo claramente a Lila, que era o escândalo
sempre vivo do bairro, e minha mãe finalmente compreendeu. O padre não
era uma garantia, nada era uma garantia do mundo horrível em que vivíamos.
Por isso parou de gritar e deixou a meu pai a tarefa de examinar a situação e,
no caso, se dar por vencida. Mas não parou de andar pra lá e pra cá,
mancando, sacudindo a cabeça, resmungando ofensas contra meu futuro
marido. O professor era o quê? Comunista? Comunista e professor?
Professor dessa merda, gritou. Que professor é esse que pensa assim? Quem
pensa assim é ‘nu strunz, um idiota. Não, rebateu meu pai, strunz coisa
nenhuma, é alguém que estudou e sabe melhor que todo mundo quantas
nojeiras os padres fazem, é por isso que quer dizer sim somente na
prefeitura. Tudo bem, você tem razão, muitos comunistas agem assim. Tudo
bem, você tem razão, desse jeito vai parecer que nossa filha não está casada.
Mas eu daria um voto de confiança a esse professor da universidade: ele
gosta dela, não posso acreditar que vai pôr Lenuccia na condição de parecer
uma vagabunda. De todo modo, se não quisermos confiar nele — mas eu
confio, apesar de ainda não o conhecer: é uma pessoa importante, as meninas
daqui sonham com um partido assim —, vamos confiar pelo menos na
prefeitura. Trabalho lá, na prefeitura, e posso lhe garantir que o casamento
ali dentro vale tanto quanto o da igreja, talvez até mais.
Prosseguiu por horas. A certa altura meus irmãos desabaram de sono e
foram dormir. Eu fiquei para acalmar meus pais e convencê-los a aceitar
uma coisa que, para mim, naquele momento, era um forte sinal de minha
entrada no mundo de Pietro. Além disso, daquele modo eu me sentia pelo
menos uma vez mais ousada que Lila. E, se reencontrasse Nino, gostaria
sobretudo de poder falar com subentendidos: está vendo aonde me levou
aquela discussão com o professor de religião?, toda escolha tem sua história,
muitos momentos de nossa vida estão espremidos num canto só esperando
uma brecha, e no final essa brecha aparece. Mas eu estaria exagerando, na
verdade tudo era mais simples. Há pelo menos dez anos o Deus da infância,
já bastante frágil, se metera em um cantinho como um velho enfermo, e eu já
não sentia nenhuma necessidade da santidade do matrimônio. O essencial era
ir embora de Nápoles.
9.

É claro que o horror que minha família experimentava só de pensar em uma


união apenas civil não se extinguiu naquela noite, mas se atenuou. No dia
seguinte minha mãe me tratou como se todas as coisas que tocava — a
máquina de café, a xícara de leite, o açucareiro, o cesto de pão fresco —
estivessem ali somente para induzi-la à tentação de arremessá-las em minha
cara. Entretanto não voltou a gritar. Quanto a mim, resolvi ignorá-la, saí de
manhã cedo e fui providenciar o necessário para a instalação do telefone.
Terminada aquela tarefa, passei por Port’Alba e circulei pelas livrarias.
Estava determinada a, em pouco tempo, ser capaz de me exprimir sem
timidez todas as vezes que se apresentassem situações como aquela de
Milão. Selecionei revistas e livros meio no faro, gastei bastante dinheiro.
Depois de muitas incertezas, sugestionada por aquela frase de Nino que
frequentemente me vinha à lembrança, terminei comprando os Três ensaios
sobre a teoria da sexualidade — não sabia quase nada de Freud, e o pouco
que sabia não me animava —, além de dois livrinhos dedicados ao sexo.
Pretendia fazer o mesmo que tinha feito no passado quanto às matérias
escolares, às provas, à tese, o mesmo que tinha feito com os jornais que
Galiani me dava ou com os textos marxistas que Franco me indicara anos
atrás. Queria estudar o mundo contemporâneo. Difícil dizer o que eu já
havia assimilado naquela época. Houvera as discussões com Pasquale e
também com Nino. Houvera um pouco de atenção a Cuba e à América
Latina. Houvera a miséria irremediável do bairro, a batalha perdida de Lila.
Houvera a escola, que tinha rejeitado meus irmãos só porque foram menos
teimosos, menos dedicados que eu ao sacrifício. Houvera as longas
conversas com Franco e outras, ocasionais, com Mariarosa, agora
confundidas num único rastro de vapor (o mundo é profundamente injusto e
é preciso transformá-lo, mas tanto a coexistência pacífica entre o
imperialismo americano e as burocracias stalinistas quanto as políticas
reformistas dos partidos operários europeus, e especialmente italianos,
visam a manter o proletariado numa perspectiva subalterna, que joga
água na fogueira da revolução, com a consequência de que, se o cerco
mundial prevalecer, se a socialdemocracia vencer, o capital vai triunfar
durante séculos e a classe operária se tornará gado coagido ao consumo).
Esses estímulos certamente agiram e se moveram em mim havia muito, e de
vez em quando me emocionavam. Mas acho que o que me impeliu para
aquela busca de atualização em marcha forçada foi, pelo menos de início, a
velha urgência de me sair bem. Há tempos estava convencida de que nos
educamos para tudo, até para a paixão política.
Enquanto estava pagando, avistei meu romance numa prateleira e
imediatamente desviei o olhar. Toda vez que via o volume em alguma
vitrine, entre outros romances recém-lançados, sentia uma mistura de orgulho
e de medo, um impulso de prazer que terminava em angústia. É verdade, a
narrativa tinha nascido por acaso, em vinte dias, sem compromisso, como um
sedativo contra a depressão. De resto, eu bem sabia o que era a grande
literatura, tinha trabalhado muito com os clássicos e, enquanto escrevia,
nunca me ocorreu que estivesse fazendo algo de valor. Mas o esforço de
encontrar uma forma me envolvera. E o envolvimento se tornara aquele
livro, um objeto que me continha. Agora eu estava ali, exposta, e olhar para
mim me dava golpes violentos no peito. Sentia que não só em meu livro, mas
nos romances em geral, havia alguma coisa que realmente me agitava, um
coração nu e palpitante, o mesmo que me saltara do peito naquele instante
longínquo em que Lila me propusera escrevermos uma história juntas.
Coubera a mim fazê-lo a sério. Mas era isso mesmo o que eu queria?
Escrever, escrever não por acaso, escrever melhor do que eu já tinha feito?
E estudar os relatos do passado e do presente para entender como
funcionavam e aprender, aprender tudo sobre o mundo com a única
finalidade de construir corações cheios de vida, que ninguém jamais
conceberia melhor do que eu, nem mesmo Lila, se tivesse tido a
oportunidade?
Saí da livraria e parei na piazza Cavour. O dia estava bonito, a via
Foria parecia insolitamente limpa e sólida, malgrado as estacas que
escoravam a Galeria. Impus a mim mesma a disciplina de sempre. Peguei um
caderno que tinha comprado recentemente, queria começar a fazer como os
escritores de verdade, registrar pensamentos, observações, informações
úteis. Li de cabo a rabo o Unità, anotei as coisas que não sabia. Encontrei na
Ponte o artigo do pai de Pietro, passei os olhos nele com curiosidade, mas
não me pareceu tão importante como Nino tinha afirmado, ao contrário, me
causou uma impressão desagradável por pelo menos dois motivos: primeiro,
Guido Airota usava de modo ainda mais rígido a mesma língua professoral
do homem de óculos grossos; segundo, numa passagem em que falava de
alunas (“é uma multidão nova”, escreveu, “e são evidentemente de condição
humilde, mocinhas em vestes modestas e de modesta educação, que
evidentemente almejam pelo enorme esforço dos estudos alcançar um futuro
que ultrapasse o ritualismo doméstico”), tive a impressão de que havia ali
uma referência a mim, consciente ou não. Também anotei aquilo em meu
caderno (o que eu sou para os Airota? A flor na lapela em sua largueza de
visão?) e, não propriamente de bom humor, aliás, um tanto aborrecida,
passei a folhear o Corriere della Sera.
Lembro que o ar estava morno, ficou impressa em mim — inventada ou
verdadeira — uma memória olfativa, uma mistura de papel impresso e pizza
frita. Página a página, olhei os títulos, até que perdi o fôlego. Havia uma foto
minha encaixada entre quatro colunas cerradas de chumbo. Ao fundo se via
um trecho do bairro, o túnel. O título dizia: Memórias picantes de uma
garota ambiciosa. O romance de estreia de Elena Greco. Vinha assinado
pelo homem de óculos pesados.
10.

Enquanto eu lia, fiquei coberta de suor frio e tive a sensação de desmaiar.


Meu livro era tratado como uma ocasião para reiterar que, na última década,
em todos os setores da vida produtiva, social e cultural, das fábricas aos
escritórios, à universidade, à editoria, ao cinema, todo um mundo tinha
desmoronado sob a pressão de uma juventude estragada e sem valores. Aqui
e ali se citavam frases minhas entre aspas para demonstrar que, de minha
geração mal crescida, eu era um expoente adequado. Ao final eu era definida
como “uma mocinha empenhada em esconder a própria falta de talento com
páginas picantes de banalidades medíocres”.
Desandei a chorar. Era a coisa mais dura que eu tinha lido desde que o
livro saíra, e não em um diário de pequena tiragem, mas no jornal mais lido
na Itália. Pareceu-me especialmente intolerável a imagem de meu rosto
sorridente em meio a um texto tão ofensivo. Voltei para casa a pé, não antes
de ter me livrado do Corriere. Temia que minha mãe lesse a resenha e a
usasse contra mim. Imaginei que iria querer colocar também aquela em seu
álbum para me mostrar toda vez que a incomodasse.
Encontrei a mesa posta só para mim. Meu pai estava no trabalho, minha
mãe tinha ido pedir não sei o quê a uma vizinha de casa, e meus irmãos já
tinham comido. Mastiguei massa com batata relendo aqui e ali umas linhas
do meu livro. Pensava com desespero: talvez de fato não valha nada, talvez
tenha sido publicado só para fazer um favor a Adele. Como eu tinha podido
conceber frases tão insossas e considerações tão banais? E que desleixo,
quantas vírgulas inúteis, nunca mais vou escrever. Estava deprimida entre o
desgosto do almoço e o desgosto do livro quando Elisa apareceu com uma
folhinha de papel. Foi a senhora Spagnuolo quem lhe deu — a cujo número
de telefone, se eu tivesse necessidades urgentes, podia recorrer. O recado
dizia que eu tinha recebido três telefonemas. Um de Gina Medotti, que
cuidava da assessoria de imprensa da editora, um de Adele e um de Pietro.
Os três nomes, escritos com a letra vacilante da senhora Spagnuolo,
tiveram o efeito de dar concretude a um pensamento que até um segundo
antes ficara submerso. As palavras maldosas do homem de óculos pesados
estavam se difundindo rapidamente, e ao longo do dia chegariam a todos os
lugares. Já tinham sido lidas por Pietro, pela família dele, pelos diretores da
editora. Talvez tivessem chegado até Nino. Talvez estivessem sob os olhos
de meus professores de Pisa. Certamente tinham merecido a atenção de
Galiani e de seus filhos. E quem sabe até Lila teria lido aquilo. De novo
comecei a chorar, assustando Elisa.
“O que foi, Lenu?”
“Não estou me sentindo bem.”
“Posso lhe fazer um chá de camomila?”
“Pode.”
Mas não deu tempo. Bateram à porta, era Rosa Spagnuolo. Alegre, um
pouco agitada por ter subido as escadas correndo, disse que meu noivo
estava de novo ao telefone, que bela voz, que lindo sotaque do Norte. Corri
para atender, me desculpando mil vezes pelo incômodo. Pietro tentou me
consolar, disse que a mãe recomendava que eu não me abalasse, o essencial
era que falassem do livro. Mas eu, para surpresa da senhora Spagnuolo, que
me conhecia como uma pessoa dócil, quase gritei: e o que me importa que
falem se estão dizendo coisas horríveis. Ele mais uma vez me recomendou
calma e acrescentou: amanhã vai sair um artigo no Unità. Encerrei a ligação
com frieza e disse: seria melhor que ninguém mais tratasse de mim.
À noite não consegui dormir. De manhã não consegui me conter e fui
correndo buscar o Unità. Folheei depressa o jornal, ainda na frente da
banca, a um passo da escola fundamental. Deparei-me de novo com minha
foto, a mesma do Corriere, dessa vez não no centro do artigo, mas no alto,
ao lado do título Jovens rebeldes e velhos reacionários. A propósito do
livro de Elena Greco. Nunca tinha ouvido falar do nome de quem assinava o
artigo, mas com certeza escrevia bem, e suas palavras agiram como um
bálsamo. Elogiava meu romance sem meios-termos e destratava o
prestigioso professor de óculos pesados. Voltei para casa fortalecida, talvez
até de bom humor. Folheei meu livro e dessa vez me pareceu bem
orquestrado, escrito com inteligência. Minha mãe disse maldosa: ganhou o
terno da loto? Deixei o jornal sobre a mesa da cozinha sem lhe dizer nada.
No fim da tarde Spagnuolo reapareceu, havia um novo telefonema para
mim. Diante de meu embaraço, de minhas desculpas, ela se disse felicíssima
em poder ser útil a uma garota como eu e me fez muitos elogios. Gigliola não
teve sorte, suspirou pelas escadas, o pai a obrigou a trabalhar na confeitaria
dos Solara quando ainda tinha treze anos, e ainda bem que ficou noiva de
Michele, se não, teria de suar a vida inteira. Abriu a porta de casa, me
acompanhou pelo corredor até o telefone fixado na parede. Notei que tinha
posto uma cadeira justamente para que eu ficasse mais confortável: quanta
deferência por quem tinha estudado, estudar era considerado o truque dos
rapazes mais espertos para se furtar ao trabalho duro. Como posso explicar a
essa mulher — pensei — que desde os seis anos de idade sou escrava de
letras e números, que meu humor depende do êxito de suas combinações, que
essa alegria de ter feito bem é rara, instável, que dura uma hora, uma tarde,
uma noite?
“Você leu?”, me perguntou Adele.
“Li.”
“Está contente?”
“Estou.”
“Então vou lhe dar outra notícia boa: o livro está começando a vender,
se continuar assim, vamos reimprimi-lo.”
“O que significa isso?”
“Significa que nosso amigo do Corriere acreditou que estava
destruindo você e, ao contrário, trabalhou para nós. Tchau, Elena, aproveite
o sucesso.”
11.

O livro vendia de verdade, pude comprová-lo já no dia seguinte. O sinal


mais vistoso foi a sequência de telefonemas de Gina, que ora me indicava
uma nota saída em tal jornal, ora me anunciava algum convite de livrarias e
círculos culturais, sem nunca deixar de se despedir com a frase afetuosa: o
livro está indo depressa, doutora Greco, parabéns. Obrigada, eu dizia, mas
não estava contente. Os artigos na imprensa me pareciam superficiais, se
limitavam a aplicar o esquema entusiástico do Unità ou o destrutivo do
Corriere. E, embora Gina me repetisse a cada ocasião que mesmo os
julgamentos negativos ajudavam o livro a circular, de todo modo aqueles
julgamentos me faziam mal, e eu esperava ansiosa uma penca de argumentos
favoráveis para contrabalançar os desfavoráveis e me sentir melhor. Seja
como for, parei de esconder de minha mãe as resenhas maldosas, entreguei-
lhe todas, as boas e as ruins. Ela tentava ler soletrando com ar severo, mas
jamais conseguia passar das quatro ou cinco primeiras linhas e, ou achava
logo um motivo para esbravejar, ou se refugiava por tédio na mania do
colecionismo. Pretendia preencher um álbum inteiro e se lamentava quando
não tinha nada para lhe dar, temendo ficar com folhas vazias.
A resenha que naquela época mais me feriu apareceu no Roma.
Decalcava parte por parte aquela do Corriere, mas num estilo florido que,
no final, burilava obsessivamente um único conceito, o seguinte: as mulheres
estão perdendo todos os freios, basta ler o romance obsceno de Elena Greco
para perceber isso, é um subproduto do já decadente Bonjour tristesse. Mas
o que me fez mal não foi o conteúdo, e sim a autoria. O artigo era assinado
pelo pai de Nino, Donato Sarratore. Pensei em quanto me impressionara,
desde menina, que aquele homem fosse autor de um livro de poesias; pensei
no halo glorioso em que o encerrara quando descobri que escrevia nos
jornais. Por que aquela resenha? Tinha querido se vingar porque se
reconhecera no repugnante pai de família que assediava a protagonista?
Fiquei tentada a ligar para ele e gritar em dialeto os insultos mais
insuportáveis. Só renunciei a isso porque me lembrei de Nino e tive a
impressão de fazer uma descoberta importante: a experiência dele e a minha
se assemelhavam. Ambos tínhamos recusado nos modelar a partir de nossas
famílias: eu desde sempre estive empenhada em me distanciar de minha mãe,
ele havia destruído definitivamente as pontes com o pai. Essa afinidade me
consolou, e pouco a pouco a raiva parou de ferver.
Mas não tinha levado em conta que, no bairro, o Roma era o mais lido
dos jornais. Percebi isso já no fim da tarde. Gino, o filho do farmacêutico,
que se tornara um jovem cheio de músculos com o levantamento de pesos,
apareceu na soleira da loja do pai justamente quando eu passava por ali,
vestindo um avental branco de doutor apesar de ainda não ter se formado.
Me chamou agitando o jornal e disse com um tom bastante sério, já que
recentemente fizera uma modesta carreira dentro da seção do msi, o
Movimento Social Italiano ligado ao fascismo: viu o que estão escrevendo
sobre você? Para não lhe dar satisfações, respondi: escrevem de tudo, e
segui adiante com um gesto de despedida. Ele se atrapalhou, murmurou
alguma coisa, depois escandiu com evidente malícia: preciso ler esse seu
livro, pelo visto é muito interessante.
Foi só o início. No dia seguinte, quem se aproximou de mim na rua foi
Michele Solara, que insistiu em me oferecer um café. Fomos ao bar dele e,
enquanto Gigliola nos servia sem dizer uma palavra, aliás, visivelmente
irritada com minha presença e talvez até com a do noivo, Michele começou:
Lenu, Gino me mostrou um artigo onde se diz que você escreveu um livro
proibido para menores de dezoito anos. Mas veja só, quem podia imaginar
uma coisa dessas. Foi isso que você estudou em Pisa? Foi isso que lhe
ensinaram na universidade? Não posso acreditar. A meu ver, você e Lina
fizeram um acordo secreto: ela faz as coisas erradas e você as escreve. É
isso? Me diga a verdade. Fiquei vermelha, não esperei o café, me despedi
de Gigliola e fui embora. Ele gritou atrás de mim, debochado: o que foi, se
ofendeu, venha cá, eu estava brincando.
Logo em seguida aconteceu um encontro com Carmen Peluso. Minha
mãe me obrigara a ir à charcutaria nova dos Carracci porque lá o azeite
custava menos. Era de tarde, não havia clientes, Carmen me fez muitos
elogios. Como você está bem, disse, é uma honra ser sua amiga, a única
sorte que eu tive em toda minha vida. Depois me falou que tinha lido o artigo
de Sarratore, mas só porque um fornecedor esquecera o Roma na loja.
Definiu a resenha uma canalhice, e sua indignação me pareceu autêntica. Já o
irmão dela, Pasquale, lhe passara o artigo do Unità, muito, muito bom, e
trazia uma bela foto. Você é toda bonita, disse, em tudo o que faz. Tinha
sabido por minha mãe que em breve eu me casaria com um professor
universitário e que ia morar em Florença numa casa de madame. Ela também
ia se casar, com o frentista do estradão, mas não sabia quando, estavam sem
dinheiro. Então, sem interromper sua fala, começou a se queixar de Ada.
Desde que Ada tinha assumido o posto de Lila ao lado de Stefano, tudo ia de
mal a pior. Dava uma de dona das charcutarias e implicava com ela,
acusando-a de roubar e tratando-a com rédea curta, sempre sob vigilância.
Por isso não aguentava mais, queria pedir demissão e ir trabalhar na bomba
de gasolina do futuro marido.
Fiquei ouvindo com atenção e me lembrei de quando Antonio e eu
queríamos nos casar e também ganhar a vida com um posto de gasolina.
Contei isso a ela para animá-la, mas ela resmungou fechando a cara: sim,
claro, imagine, você numa bomba de gasolina, sorte sua que escapou desta
miséria. Depois murmurou frases obscuras: é injustiça demais, Lenu, demais,
é preciso acabar com isso, ninguém aguenta mais. E, enquanto ainda falava,
tirou meu livro de uma gaveta, com a capa toda deformada e suja. Era o
primeiro exemplar que eu via nas mãos de alguém do bairro, e notei como as
primeiras páginas estavam estufadas e escuras, como eram compactas e
cândidas as outras. Leio um pouco toda noite, me disse, ou quando não há
clientes. Mas ainda estou na página 32, tenho muito pouco tempo, preciso
fazer tudo aqui dentro, os Carracci me mantêm trancada das seis da manhã às
nove da noite. Então me perguntou de repente, maliciosa: falta muito para
chegar às páginas ousadas? Quanto ainda preciso ler?
As páginas ousadas.
Passou pouco e topei com Ada carregando Maria no colo, a filha que
tivera com Stefano. Depois do que Carmen falou, me esforcei para ser
cordial. Elogiei a menina, disse que tinha um belo vestidinho e brincos
lindos. Mas Ada foi ríspida. Me falou de Antonio, disse que se escreviam,
que não era verdade que ele tinha se casado e tinha filhos, disse que tinham
fritado o cérebro dele e a capacidade de querer bem. Depois passou a meu
livro. Não o tinha lido, esclareceu, mas ouviu dizer que não era um livro
para se ter em casa. E quase se enfureceu: vai que a menina cresce e o
encontra, o que eu vou fazer? Lamento, não posso comprá-lo. Mas,
acrescentou, estou contente por você estar ganhando dinheiro, parabéns.
12.

Esses episódios, um após o outro, me fizeram suspeitar de que o livro


estivesse vendendo porque tanto as críticas positivas quanto as negativas
assinalavam a presença de páginas escabrosas. Cheguei até a pensar que
Nino tivesse feito referência à sexualidade de Lila só porque acreditara que,
com alguém que escrevia daquele jeito, fosse possível entrar naqueles
assuntos sem problema. E por esse caminho me voltou o desejo de
reencontrar minha amiga. Quem sabe — disse a mim mesma — se Lila foi
atrás do livro assim como Carmen? Imaginei-a de noite, depois da fábrica —
Enzo sozinho em um quarto, ela com o menino ao lado em outro —, exausta e
mesmo assim atenta a ler meu livro, a boca semicerrada, o cenho franzido
como fazia quando se concentrava. Como o avaliaria? Ela também reduziria
o romance às páginas ousadas? Mas talvez não estivesse lendo nada,
duvidava que tivesse dinheiro para comprar um exemplar, eu precisaria
levar uma cópia de presente para ela. A princípio me pareceu uma boa ideia,
depois deixei pra lá. Continuava dando mais importância a Lila do que a
qualquer outra pessoa, mas não tive coragem de me decidir a procurá-la.
Não tinha tempo, precisava estudar e aprender muitas coisas depressa. Além
disso, o desfecho de nosso último encontro — ela com o avental sobre o
capote, no pátio da fábrica, em frente à fogueira onde as folhas da Fada azul
queimavam — tinha sido um adeus definitivo aos resíduos da infância, a
confirmação de que nossos percursos agora divergiam, talvez ela me
dissesse: não tenho tempo de ler seu livro, não vê a vida que levo? E segui
em frente pelo meu caminho.
Enquanto isso, sabe-se lá por que motivo, o livro ia indo de vento em
popa. Uma vez Adele me ligou e, com sua mistura habitual de ironia e afeto,
me disse: se continuar assim, vai ficar rica em pouco tempo e sem saber o
que fazer com o pobre Pietro. Depois passou a ligação a ninguém menos que
seu marido. Guido — disse — quer falar com você. Fiquei agitada, minhas
conversas com o professor Airota tinham sido pouquíssimas e eu me sentia
constrangida. Mas o pai de Pietro foi muito cordial, cumprimentou-me pelo
meu sucesso, ironizou as manifestações de pudor por parte de meus
detratores, falou sobre a longuíssima Idade Média italiana, elogiou-me pela
contribuição que eu estava dando à modernização do país e assim por diante.
Não falou nada de específico sobre o romance, certamente não o tinha lido,
era um homem muito ocupado. De todo modo foi bom receber dele um sinal
de estima e de concordância.
Mariarosa não se mostrou menos afetuosa, e também me fez elogios. De
início pareceu na iminência de comentar longamente meu livro, depois
mudou de assunto de modo acalorado, e disse que queria me convidar para a
Estatal de Milão: achava importante que eu também participasse do que
definiu como a marcha irrefreável dos acontecimentos. Venha amanhã
mesmo, me disse, viu o que está acontecendo na França? Eu sabia de tudo,
vivia grudada a um velho radinho azul de pilha, todo manchado de gordura,
que minha mãe deixava na cozinha, e respondi sim, é magnífico, Nanterre, as
barricadas no Quartier Latin. Mas ela me pareceu bem mais informada, bem
mais envolvida. Planejava ir a Paris com outros companheiros, me convidou
a ir com ela de carro. Fiquei tentada a viajar. Respondi tudo bem, vou
pensar. Ir até Milão, atravessar a França, chegar a Paris em revolta, enfrentar
a brutalidade da polícia, atirar-me com minha experiência pessoal no magma
mais incandescente daqueles meses, dar seguimento àquela viagem para fora
da Itália que eu tinha feito anos antes com Franco. Como seria bom pegar a
estrada com Mariarosa, a única jovem independente que eu conhecia, tão
moderna, totalmente engajada nos acontecimentos do mundo, senhora do
discurso político quase como os homens. Eu a admirava, não havia jovens
que alcançassem a fama com aquele jeito de lançar tudo pelos ares. Os
jovens heróis que ousavam enfrentar, correndo risco e perigo, a violência da
reação se chamavam Rudi Dutschke, Daniel Cohn-Bendit e, como nos filmes
de guerra, em que só havia homens, era difícil nos reconhecer neles,
podíamos apenas admirá-los, ajustar nossas ideias a seus pensamentos,
sofrer pela sorte deles. Ocorreu-me que, entre os companheiros de
Mariarosa, quem sabe também estivesse Nino. Eles se conheciam, era
provável. Ah, encontrá-lo, ser arrastada por aquela aventura, expor-me aos
perigos ao lado dele. O dia passou assim. A cozinha agora estava silenciosa,
meus pais dormiam, meus irmãos ainda vagabundeavam pelas ruas, Elisa se
lavava trancada no banheiro. Partir, amanhã de manhã.
13.

Parti, mas não para Paris. Após as eleições daquele ano turbulento, Gina
marcou para mim uma série de viagens para promover o livro. Comecei por
Florença. Tinha sido convidada à escola de magistério por uma professora
amiga de um amigo dos Airota, e acabei em um daqueles cursos abertos
bastante difundidos nas universidades em agitação, falando para uns trinta
alunos e alunas. O que imediatamente me espantou é que muitas das jovens
eram até piores do que as descritas por meu sogro na revista Ponte:
malvestidas, mal maquiadas, confusas na exposição demasiado emocional,
indignadas com os exames, com os professores. Incentivada pela professora,
me pronunciei sobre as manifestações estudantis com evidente entusiasmo,
especialmente sobre aquelas em curso na França. Exibi o que eu estava
aprendendo, fiquei satisfeita comigo. Senti que me expressava com
convicção e clareza, que principalmente as garotas admiravam a maneira
como eu falava, as coisas que eu sabia, o modo como tangenciava
habilmente os complicados problemas do mundo, organizando-os em um
quadro coerente. Mas logo me dei conta de que tendia a evitar qualquer
menção ao livro. Falar sobre ele me causava incômodo, temia reações como
as do bairro, preferia resumir com minhas palavras certas ideias dos
Quaderni piacentini ou da Monthly Review. Por outro lado, tinha sido
convidada para aquilo, e alguns já pediam a palavra. As primeiras perguntas
foram todas sobre os esforços da personagem feminina para escapar do
ambiente em que nascera. Somente mais para o final uma garota, que recordo
muito alta e magérrima, me pediu que explicasse — cortando as frases com
risinhos nervosos — por que eu considerara necessário escrever, dentro de
uma história toda suavidades, um trecho escabroso.
Fiquei confusa, talvez até vermelha, alinhavei motivações sociológicas.
Só no fim falei da necessidade de narrar com franqueza qualquer experiência
humana, até mesmo — sublinhei — o que parece impronunciável e por isso
mesmo calamos a nós mesmas. Essas últimas palavras agradaram, voltei a
respirar. A professora que me convidara fez um elogio, disse que refletiria
sobre aquilo, que escreveria para mim.
Sua aprovação estabilizou em minha cabeça aqueles poucos conceitos
que logo se transformaram numa espécie de refrão. Usei-os frequentemente
em público, ora de maneira divertida, ora com um tom dramático, ora
sinteticamente, ora desenvolvendo-os com elaborados torneios verbais. Me
senti especialmente à vontade certa noite, em uma livraria de Turim, diante
de um público bastante numeroso, que abordei com crescente desenvoltura.
Começava a me parecer natural que alguém me interrogasse com simpatia ou
de modo provocador sobre o episódio de sexo na praia, tanto mais que
minha resposta pronta, reelaborada de maneira cada vez mais agradável,
obtinha algum sucesso.
A pedido da editora, quem me acompanhou a Turim foi Tarratano, o
velho amigo de Adele. Declarou-se orgulhoso de ter sido o primeiro a intuir
as potencialidades de meu romance e me apresentou ao público com as
mesmas fórmulas entusiásticas que usara tempos atrás em Milão. Ao final da
noite, se congratulou comigo pelos grandes progressos que eu tinha feito em
pouco tempo. Depois me perguntou com seu habitual tom afável: por que
você aceita tão de bom grado que suas páginas eróticas sejam definidas
como escabrosas, por que você mesma as define assim em público? E me
explicou que eu não devia fazê-lo: primeiro, porque meu romance não se
esgotava no episódio da praia, havia outros mais interessantes e melhores;
segundo, se aqui e ali ele soava com certa audácia, isso ocorria sobretudo
porque tinha sido escrito por uma garota; a obscenidade, concluiu, não é
estranha à boa literatura e à verdadeira arte da narrativa, e, ainda que
ultrapasse o limite da decência, não é nunca escabrosa.
Fiquei desnorteada. Aquele homem cultíssimo estava me explicando
com tato que os pecados de meu livro eram veniais, e que eu me equivocava
ao falar sempre sobre eles como se fossem mortais. Ou seja, eu exagerava.
Submetia-me à miopia do público, a sua superficialidade. Disse a mim
mesma: chega, devo ser menos subalterna, preciso aprender a discordar de
meus leitores, não devo descer ao nível deles. E decidi que na primeira
ocasião seria mais dura com quem tirasse aquelas páginas da cartola.
Durante o jantar, no restaurante do hotel que a assessoria de imprensa
reservara para nós, meio embaraçada e meio divertida, escutei Tarratano
citando — como a provar que eu era uma escritora substancialmente casta —
Henry Miller, ou me explicando — e chamando de querida menina — que
muitas escritoras talentosíssimas dos anos 1920 e 1930 sabiam e escreviam
sobre sexo de uma maneira que eu, no momento, nem sequer imaginava.
Anotei seus nomes em meu caderninho, mas enquanto isso comecei a pensar:
este homem, apesar dos elogios, não me tem em grande conta; aos olhos dele
eu sou uma garotinha a quem coube um sucesso imerecido; até as páginas que
mais atraem os leitores, ele não as considera relevantes: podem escandalizar
os ingênuos ou ignorantes, mas não gente como ele.
Disse que eu estava um pouco cansada e ajudei meu comensal, que
bebera bastante, a se levantar. Era um homem pequeno, mas com uma
proeminente barriga de gourmet. Tufos de cabelos brancos despontavam das
orelhas grandes, tinha um rosto todo vermelho, vazado por uma boca estreita,
um grande nariz e olhos vivacíssimos; fumava muito, os dedos eram
amarelados. No elevador, tentou me abraçar e me beijar. Embora eu me
esquivasse, foi difícil afastá-lo de mim, ele não desistia. Ficaram gravados
em minha memória o contato com sua barriga, o hálito de vinho. Na época
nunca me ocorreria que um homem de idade, tão educado, tão culto, aquele
homem tão amigo de minha futura sogra, pudesse comportar-se de modo
indecoroso. Uma vez no corredor, apressou-se em me pedir desculpas,
atribuiu a culpa ao vinho e trancou-se depressa em seu quarto.
14.

No dia seguinte, durante o café da manhã e na viagem de carro que nos levou
até Milão, ele falou com muito entusiasmo do que considerava o período
mais vibrante de sua vida, os anos entre 1945 e 1948. Percebi em sua voz
uma melancolia autêntica, mas que esmoreceu quando passou a esboçar com
envolvimento igualmente autêntico o novo clima de revolução, a energia —
disse — que estava tomando jovens e velhos. Fiz sinais de concordância o
tempo todo, tocada pelo modo como ele tentava me convencer de que meu
presente era de fato como seu entusiasmante passado que estava voltando.
Senti um pouco de pena. A certa altura, uma distraída menção biográfica me
levou a fazer cálculos rápidos: a pessoa que estava diante de mim tinha
cinquenta e oito anos.
Uma vez em Milão, pedi que me deixassem a poucos passos da editora
e me despedi de meu acompanhante. Estava um tanto zonza, tinha dormido
mal. Na rua tentei livrar-me definitivamente do incômodo do contato físico
com Tarratano, mas continuei sentindo sua nódoa e uma confusa contiguidade
com certa indecência do bairro. Na editora fui muito paparicada. Não era a
cortesia de poucos meses antes, mas uma espécie de regozijo generalizado
que significava: como fomos excelentes ao intuir que você era excelente. Até
a telefonista, a única naquele ambiente que me tratara com desinteresse, saiu
da cabine e veio me abraçar. E o redator que tempos atrás fizera um
copidesque caviloso em meu texto me convidou para almoçar pela primeira
vez.
Assim que nos acomodamos em um pequeno restaurante semivazio, a
poucos passos dali, voltou a enfatizar que minha escrita guardava um
segredo fascinante e, entre um prato e outro, me sugeriu que — com calma,
mas sem descansar demais sobre os louros — seria bom se eu começasse a
planejar um novo romance. Depois disso, recordou que eu tinha um
compromisso na Estatal às três da tarde. Nada a ver com Mariarosa, tinha
sido a própria editora que, por meio de seus canais, agendara algo para mim
com um grupo de estudantes. Chegando lá — indaguei — devo procurar por
quem? Meu influente comensal me disse com orgulho: meu filho estará
esperando por você na entrada.
Peguei minha bagagem na editora e fui para o hotel. Fiquei lá poucos
minutos e saí em seguida para a universidade. Fazia um calor insuportável,
me vi contra um fundo de cartazes cheios de dizeres, bandeiras vermelhas e
povos em luta, pôsteres que anunciavam iniciativas, tudo tomado por um
forte vozerio, risadas e um alarme difuso. Circulei um pouco por ali,
buscando sinais que se referissem a mim. Lembro-me de um jovem moreno
que, correndo, se chocou com força contra mim, perdeu o equilíbrio, se
recuperou e escapou pela rua como se estivesse sendo perseguido, embora
atrás não houvesse ninguém. Lembro-me do som solitário de uma trombeta,
puríssimo, que perfurava o ar sufocante. Lembro-me de uma garota loura,
miúda, que arrastava com barulho uma corrente com um grande cadeado na
ponta e gritava solícita a não sei quem: estou chegando. Lembro-me disso
porque, à espera de que alguém me reconhecesse e se aproximasse, peguei
meu caderninho e anotei tudo aquilo, para entrar no clima. Mas passou meia
hora e ninguém veio. Então passei a examinar folhas e cartazes mais
atentamente, esperando encontrar meu nome e o título do romance. Inútil. Um
tanto nervosa, desisti de parar algum dos estudantes, tinha vergonha de citar
meu livro como objeto de discussão em um ambiente onde as folhas coladas
nos muros anunciavam temas bem mais relevantes. Percebi-me oscilando
irritantemente entre sentimentos opostos: uma forte simpatia por todos
aqueles rapazes e moças que exibiam, naquele local, movimentos e vozes de
absoluta indisciplina, e o medo de que a desordem da qual eu fugia desde
menina, agora, justamente ali, pudesse relançar-me e impelir-me ao centro
daquela algazarra, onde em breve um poder inexpugnável — um Bedel, um
Professor, o Reitor, a Polícia — me flagraria em erro — eu, que sempre fui
cordata — e me puniria.
Pensei em escapar, que me importava um punhado de rapazes pouco
mais jovens que eu, a quem eu diria as bobagens habituais? Queria voltar
para o hotel, gozar minha condição de autora de algum sucesso que viajava
muito, comia em restaurantes e dormia em hotéis. Mas passaram cinco ou
seis garotas de ar atarefado, carregadas de bolsas, e quase sem querer segui
atrás delas, de suas vozes, dos gritos, até do som de trombeta. Assim,
caminhando sem pensar, acabei em frente a uma sala lotada de onde, justo
naquele momento, começava a crescer um clamor raivoso. E, como as
garotas que eu tinha seguido até ali entraram, entrei também, cautelosamente.
Estava em curso um conflito muito duro entre facções diversas, tanto na
sala lotada quanto entre a pequena multidão que assediava a cátedra. Fiquei
perto da porta, pronta para ir embora, afugentada por uma névoa escaldante
de fumos e sopros, um forte cheiro de excitação.
Tentei me orientar. Discutia-se, acho, sobre questões de procedimento,
mas num clima em que ninguém — havia gente gritando, gente calada, gente
debochando, rindo, se movimentando rapidamente como estafetas em um
campo de batalha, gente que não prestava nenhuma atenção, gente que
estudava — parecia considerar possível um acordo qualquer. Esperei que
Mariarosa estivesse em algum lugar ali. Enquanto isso, estava me habituando
ao clamor, aos cheiros. Quanta gente: os homens estavam em maioria,
bonitos, feios, elegantes, desleixados, violentos, amedrontados, zombeteiros.
Observei com curiosidade as mulheres, tive a impressão de ser a única que
estivesse ali sozinha. Algumas — as que eu tinha acompanhado até lá, por
exemplo — se mantinham compactamente juntas até mesmo agora, enquanto
distribuíam panfletos pela sala apinhada: gritavam juntas, riam juntas e,
quando se afastavam uns poucos metros, olhavam-se umas às outras para não
se perderem. Amigas há tempos ou talvez conhecidas ocasionais, pareciam
extrair do grupo a autorização para estar naquele lugar caótico, seduzidas
pelo clima desregrado, sim, mas dispostas àquela experiência desde que não
se separassem, como se tivessem estabelecido previamente, em locais mais
seguros, que, se uma delas fosse embora, todas se retirariam juntas. Já
outras, sozinhas ou no máximo em dupla, se infiltraram nas fileiras
masculinas e demonstravam uma intimidade provocadora, uma alegre
dissolução das distâncias de segurança, e me pareceram as mais felizes, as
mais agressivas, as mais orgulhosas.
Me senti diferente, uma presença abusiva, sem os requisitos para gritar
o que quer que fosse, para permanecer dentro daqueles vapores e cheiros
que, agora, me faziam lembrar os cheiros e os vapores que emanavam do
corpo de Antonio, de seu hálito, de quando nos amassávamos nos pântanos.
Eu tinha sido miserável demais, pressionada demais pela obrigação de
brilhar nos estudos. Tinha ido pouco ou quase nada ao cinema. Nunca tinha
comprado discos, como gostaria. Não me tornara fã de cantores, não correra
para assistir a shows, não colecionara autógrafos, nunca fiquei bêbada, o
pouco sexo que pratiquei o fiz com incômodo, entre subterfúgios,
amedrontada. Já aquelas garotas, umas mais, outras menos, deviam ter
crescido com maior liberdade, e chegaram à atual mudança de pele mais
preparadas que eu; talvez sentissem sua presença naquele local, naquele
clima, não como um descarrilamento, mas como uma escolha justa e urgente.
Agora que tenho algum dinheiro — pensei —, agora que vou ganhar sabe-se
lá quanto mais, posso recuperar algumas das coisas que perdi. Ou talvez não,
eu já era culta demais, ignorante demais, controlada demais, habituada
demais a esfriar a vida estocando ideias e dados, próxima demais do
casamento e da acomodação definitiva, enfim, encerrada obtusamente demais
dentro de uma ordem que, ali, parecia ultrapassada. Aquele último
pensamento me assustou. Saia logo deste lugar — disse a mim mesma —,
cada gesto ou palavra é uma afronta ao esforço que eu fiz. Em vez disso,
deslizei para dentro da sala lotada.
Logo me chamou a atenção uma garota muito bonita, de traços
delicados, cabelos pretíssimos e longos sobre os ombros, com certeza mais
nova que eu. Depois que a vi não consegui tirar os olhos dela. Estava em pé
no meio de jovens muito combativos, e atrás dela, como um guarda-costas,
um homem moreno de seus trinta anos, fumando um charuto. O que a
distinguia naquele ambiente, além da beleza, era que trazia nos braços um
menino de poucos meses e o amamentava, enquanto seguia atentamente o
conflito em ato, às vezes gritando também. Quando o menino, uma mancha
azul com perninhas e pezinhos descobertos de uma cor avermelhada,
descolava a boca do mamilo, ela não recolocava o seio no sutiã, mas
continuava assim, exposta, a camisa branca desabotoada, o peito túrgido, de
cenho franzido, a boca semicerrada, até que se dava conta de que o filho já
não estava mamando e, mecanicamente, tentava fazê-lo voltar.
Aquela garota me perturbou. Na sala barulhenta e carregada de fumaça,
ela era um ícone de maternidade fora dos esquemas. Era mais nova que eu,
tinha um aspecto fino, a responsabilidade de um filho. Mas parecia
empenhada sobretudo em rejeitar os traços da jovem mulher placidamente
absorta nos cuidados com o filho. Gritava, gesticulava, pedia a palavra, ria
de raiva, apontava alguém com desprezo. E no entanto o filho era parte dela,
buscava seu peito, o perdia. Juntos compunham uma imagem trêmula, em
risco, prestes a despedaçar-se como se pintada em vidro: o menino cairia de
seus braços ou algo bateria em sua cabeça, um cotovelo, um gesto
descontrolado. Fiquei alegre quando de repente Mariarosa surgiu ao seu
lado. Lá estava ela, finalmente. Como era viva, como era radiante e cordial:
me pareceu muito íntima da jovem mãe. Agitei uma mão, não me viu. Falou
algo no ouvido da garota, desapareceu, reapareceu entre os que se
empurravam em torno da cátedra. Nesse meio-tempo, de uma porta lateral,
irrompeu um grupinho que, apenas com sua presença, acalmou um pouco os
ânimos. Mariarosa fez um sinal, esperou um aceno em resposta, segurou o
megafone e disse poucas palavras que aquietaram definitivamente a sala
lotada. Naquela altura, por alguns segundos, tive a impressão de que Milão,
as tensões daquele período, minha própria excitação tivessem a força de
permitir que as sombras que eu trazia na cabeça evadissem. Quantas vezes
tinha pensado naqueles dias em minha primeira educação política?
Mariarosa passou o megafone a um jovem que se postara a seu lado e que
reconheci imediatamente. Era Franco Mari, meu namorado nos primeiros
anos de Pisa.
15.

Continuava idêntico: o mesmo tom caloroso e persuasivo da voz, a mesma


capacidade de organizar o discurso partindo de proposições gerais que, de
passagem em passagem, chegavam de modo consequente a experiências
cotidianas, sob os olhos de todos, desvelando seu sentido. Enquanto escrevo
me dou conta de que me lembro pouquíssimo de seu aspecto físico, somente
o rosto pálido e imberbe, os cabelos curtos. No entanto seu corpo tinha sido,
até aquele momento, o único ao qual eu me unira como se fôssemos casados.
Fui encontrar Franco depois de sua fala, seus olhos se acenderam de
surpresa, e ele me abraçou. Mas foi difícil conversarmos, um sujeito o puxou
pelo braço, outro já começava a falar num tom duro, apontando para ele
insistentemente, como se devesse responder a golpes terríveis. Permaneci
entre os que estavam ao lado da cátedra, incomodada, e na confusão me
perdi de Mariarosa. Mas dessa vez foi ela quem me localizou e me puxou
pelo braço.
“O que você está fazendo aqui?”, disse contente.
Evitei explicar que tinha faltado a um encontro, que estava ali por
acaso. Falei indicando Franco:
“Conheço ele.”
“Mari?”
“Sim.”
Me falou de Franco com entusiasmo e então sussurrou: eles me pagam,
fui eu que o convidei, olha que vespeiro. E, como ele dormiria na casa dela
e viajaria para Turim no dia seguinte, insistiu logo para que eu também
ficasse com ela. Aceitei — pena pelo hotel.
A assembleia durou bastante, houve momentos de grande tensão, um
estado permanente de alarme. Deixamos a universidade quando já anoitecia.
Além de Franco, uniram-se a Mariarosa a jovem mãe — que se chamava
Silvia — e o homem de seus trinta anos que eu já tinha notado na sala, o que
fumava charuto, um tal de Juan, pintor venezuelano. Fomos todos jantar numa
trattoria que minha cunhada conhecia. Conversei com Franco o suficiente
para entender que eu tinha me enganado, ele permanecera idêntico ao que
era. Sobre seu rosto se pôs, ou talvez ele mesmo a tenha posto, uma máscara
que, embora correspondesse perfeitamente aos traços de antes, apagara sua
generosidade. Agora se mostrava retraído, contido, pesava as palavras.
Durante uma breve conversa aparentemente confidencial, jamais mencionou
nossa antiga relação e, quando toquei no assunto e me queixei de ele nunca
mais ter me escrito, me interrompeu e murmurou: tinha que ser assim. Quanto
à universidade, também foi evasivo, e compreendi que não tinha se formado.
“Há outras coisas a fazer”, disse.
“O quê?”
Virou-se para Mariarosa, quase irritado com o tom demasiado íntimo
de nosso diálogo:
“Elena está me perguntando o que há para fazer.”
Mariarosa respondeu alegre:
“A revolução.”
Então assumi um ar irônico, provoquei:
“E nas horas vagas?”
Juan interveio sério, balançando suavemente o punho fechado do
menino de Silvia, que estava sentada a seu lado:
“Nas horas vagas nós a preparamos.”
Depois do jantar entramos todos no carro de Mariarosa; ela morava em
Sant’Ambrogio, em um velho apartamento muito espaçoso. Descobri que o
venezuelano mantinha ali uma espécie de ateliê, um aposento bem
bagunçado, ao qual nos levou a mim e a Franco para que víssemos seus
trabalhos: grandes telas com cenas urbanas de multidões, realizadas com
uma perícia quase fotográfica, na quais, porém, tinha fixado — estragando-
as — bisnagas de tinta ou pincéis ou paletas ou tigelas para aguarrás e
trapos. Mariarosa o elogiou com entusiasmo, mas se dirigindo sobretudo a
Franco, cuja opinião parecia ser importante para ela.
Observei-os sem compreender. Com certeza Juan morava ali, e com
certeza morava ali também Silvia, que se movia pelo apartamento com
desenvoltura ao lado de Mirko, o bebê. Mas, se num primeiro momento
pensei que o pintor e a jovem mãe formassem um casal e vivessem em um
daqueles cômodos sublocados, logo mudei de ideia. Durante toda a noite o
venezuelano mostrou em relação a Silvia apenas uma distraída cortesia, mas
várias vezes envolveu os ombros de Mariarosa com o braço e a certa altura
a beijou no pescoço.
No início se falou muito das obras de Juan. Franco sempre teve uma
competência invejável no campo das artes visuais e uma sensibilidade
crítica acentuada. Todos o escutamos com interesse, exceto Silvia, cujo
filho, até aquele momento tranquilíssimo, de repente começou a chorar sem
conseguir acalmar-se. Por um tempo esperei que Franco também falasse de
meu livro, tinha certeza de que ele diria coisas inteligentes como as que
estava dizendo, com alguma aspereza, sobre os quadros de Juan. No entanto
ninguém mencionou meu livro e, após um impulso de intolerância do
venezuelano, que não apreciara uma tirada de Franco sobre arte e sociedade,
passou-se a discutir sobre o atraso cultural italiano, o quadro político
resultante das eleições, as capitulações sucessivas da socialdemocracia,
sobre os estudantes, a repressão policial e o que foi chamada de a lição da
França. O debate entre os dois homens logo se tornou áspero. Silvia, que
não conseguia entender quais eram as necessidades de Mirko e saía, entrava,
gritava duramente com ele como se fosse já grande, disparou com frequência
frases esquemáticas de discordância do corredor, onde passeava com o filho
pra cima e pra baixo, ou do quarto aonde fora trocá-lo. Depois de ter falado
sobre creches organizadas na Sorbonne para as crianças dos estudantes em
greve, Mariarosa evocou Paris nos primeiros dias de junho, chuvosa e
gelada, ainda bloqueada pela greve geral, não de primeira mão (lamentou
não ter podido viajar), mas tal como uma amiga lhe descrevera numa carta.
Franco e Juan ouviram as duas distraidamente, mas sem perder o fio da
discussão que travavam entre si, polemizando com animosidade crescente.
A consequência foi que nos vimos — nós três, mulheres — na condição
de três sonolentas vacas à espera de que os dois touros testassem até o fim a
própria potência. Isso me aborreceu. Esperei que Mariarosa voltasse a
entrar na conversa, eu também pensava em fazê-lo. Mas Franco e Juan não
nos deram espaço, e enquanto isso o menino estrilava, e Silvia o tratava de
modo cada vez mais agressivo. Lila — pensei — era ainda mais nova que
ela quando teve Gennaro. E me dei conta de que algo me levara, já durante a
assembleia, a estabelecer um nexo entre ambas. Talvez tenha sido a solidão
de mãe que Lila experimentara após o desaparecimento de Nino e o
rompimento com Stefano. Ou sua beleza: caso estivesse naquela assembleia
com Gennaro, teria sido uma mãe ainda mais sedutora, ainda mais
determinada que Silvia. Mas Lila já era carta fora do baralho. A onda que eu
percebera na sala chegaria até San Giovanni a Teduccio, mas ela, naquele
local em que terminara se degradando, nem a notaria. Uma pena — e me
senti culpada. Deveria tê-la levado embora, raptado, forçando-a a viajar
comigo. Ou pelo menos consolidar sua presença dentro de meu corpo,
misturar sua voz à minha. Como naquele momento. Pude ouvi-la dizendo: se
você ficar calada, se deixar só esses dois falarem, se você se comportar
como uma planta de apartamento, pelo menos dê uma mão a essa moça,
pense no que significa ter um filho pequeno. Uma confusão de espaços e
tempos, de humores distantes. Me levantei, peguei com delicadeza e
preocupação o menino do colo de Silvia, e ela o passou para mim
agradecida.
16.

Que menino bem-feito, foi um momento memorável. Mirko me seduziu


imediatamente, com suas dobrinhas de carne rosada nos pulsos e nas pernas.
Como era lindo, que belo formato dos olhos, quanto cabelo, que pés
compridos e delicados, que cheiro bom. Sussurrei no ouvido dele todos
aqueles elogios, baixinho, enquanto passeava com ele pela casa. As vozes
dos homens se distanciaram, assim como as ideias que defendiam, a
animosidade, e então ocorreu um fato novo para mim. Senti prazer.
Experimentei, como uma labareda incontrolável, o calor do menino, sua
mobilidade, e tive a impressão de que todos os meus sentidos estavam mais
vigilantes, como se a percepção daquele fragmento perfeito de vida que eu
carregava nos braços se aguçasse até o espasmo, e eu sentisse toda a doçura,
a responsabilidade, e me preparasse para protegê-lo de todas as sombras
nefastas à espreita nos cantos escuros da casa. Mirko deve ter percebido
tudo aquilo e se aquietou. Isso também me deu prazer, e senti orgulho por ter
sido capaz de lhe dar alguma paz.
Quando voltei ao quarto, Silvia, que se acomodara nos joelhos de
Mariarosa e escutava a discussão entre os dois homens intervindo com
exclamações nervosas, se virou para me olhar e deve ter visto em meu rosto
o prazer com que eu apertava o menino contra mim. Levantou-se de um salto,
tirou-o de minhas mãos com um agradecimento seco e foi colocá-lo na cama.
Tive uma sensação desagradável de perda. Senti o calor de Mirko me
deixando e voltei a me sentar de mau humor, com pensamentos confusos.
Queria o menino de volta, esperava que tornasse a chorar, que Silvia me
pedisse ajuda. O que está acontecendo comigo? Desejo ter filhos? Quero ser
mãe, quero amamentar e ninar? Casamento e ainda por cima gravidez? E se
minha mãe saltar de minha barriga justo agora, que acreditei estar segura?
17.

Demorei a me concentrar na lição que nos chegava da França, no confronto


tenso entre os dois homens. Mas não pretendia ficar calada. Queria dizer
algo a respeito do que eu tinha lido e pensado sobre os acontecimentos de
Paris, mas a fala se retorcia em frases que permaneciam truncadas no
pensamento. E me espantava que Mariarosa, tão capaz, tão livre, continuasse
calada, limitando-se a aprovar única e exclusivamente, com belos sorrisos, o
que Franco dizia, o que deixava Juan nervoso e em certos casos inseguro. Se
ela não fala, pensei comigo, falo eu; se não, por que aceitei vir aqui, por que
não fui para o hotel? Perguntas para as quais eu tinha uma resposta. Desejava
mostrar a quem me conhecera no passado a pessoa em que eu me
transformara. Queria que Franco se desse conta de que não podia me tratar
como a garotinha de antigamente, queria que percebesse que eu me tornara
outra, queria que dissesse na presença de Mariarosa que essa outra pessoa
contava com sua estima. Por isso, e já que o menino continuava calado, já
que Silvia sumira com ele, já que os dois não precisavam mais de mim,
esperei mais um pouco e por fim achei uma maneira de discordar de meu ex-
namorado. Uma discordância improvisada: o que me movia não eram
convicções sólidas, o objetivo era me expressar contra Franco, e o fiz, tinha
algumas fórmulas em mente e as usei com falsa segurança. Disse por alto que
estava perplexa com o grau de maturação da luta de classes na França, que
achava demasiado abstrata para o momento a união estudantes-operários.
Falei com decisão, temia que um dos homens me interrompesse para dizer
algo que reavivasse a discussão entre eles. Em vez disso me ouviram com
atenção, todos, inclusive Silvia, que voltara quase na ponta dos pés sem o
bebê. Nem Franco nem Juan deram sinais de impaciência enquanto eu falava,
ao contrário, o venezuelano assentiu quando pronunciei duas ou três vezes a
palavra povo. E isso irritou Mari. Você está dizendo que a situação não é
objetivamente revolucionária, sublinhou com ironia, e eu conhecia aquele
tom, significava que estava se defendendo ao zombar de mim. Então nos
atracamos, frases minhas sobre as dele e vice-versa: não sei o que significa
objetivamente; significa que agir é inevitável; então, se não for inevitável,
você fica de braços cruzados; não, a tarefa do revolucionário é fazer sempre
o possível; na França os estudantes fizeram o impossível, a máquina da
instrução quebrou e não se recuperará nunca mais; admita que as coisas
mudaram e vão mudar; sim, mas ninguém pediu um certificado com
reconhecimento de firma a você ou a quem quer que seja para garantir que a
situação seja objetivamente revolucionária, os estudantes agiram e pronto;
não é verdade; é verdade. E assim por diante. Até que nos calamos ao
mesmo tempo.
Foi um debate anômalo, não no conteúdo, mas no tom veemente, sem
atenção aos bons modos. Notei nos olhos de Mariarosa um lampejo
divertido, tinha entendido que, se eu e Franco nos falávamos assim, quer
dizer que entre nós tinha havido algo mais que um convívio entre colegas de
faculdade. Venham me dar uma mão, disse a Silvia e a Juan. Precisava pegar
uma escada, procurar roupa de cama para mim, para Franco. Os dois a
acompanharam. Juan lhe disse algo no ouvido.
Franco mirou o pavimento por um instante, apertou os lábios como para
reprimir um sorriso e disse com uma tonalidade afetuosa:
“Você continua a pequeno-burguesa de sempre.”
Essa era a etiqueta com que muitas vezes, anos atrás, ele zombava de
mim quando eu tinha medo de ser surpreendida em seu quarto. Fora da
vigilância dos outros, falei de chofre:
“O pequeno-burguês é você, por origem, por cultura, por
comportamento.”
“Não queria ofender.”
“Não me ofendi.”
“Você mudou, se tornou agressiva.”
“Continuo a mesma.”
“Tudo bem em casa?”
“Tudo.”
“E aquela sua amiga tão chegada a você?”
A pergunta veio com um salto lógico que me desconcertou. Tinha falado
de Lila com ele no passado? Em que termos? E por que se lembrava dela
justo agora? Qual era o nexo que ele tinha vislumbrado, e eu não?
“Está bem”, respondi.
“Faz o quê?”
“Trabalha numa fábrica de embutidos na periferia de Nápoles.”
“Não tinha se casado com um comerciante?”
“O casamento não deu certo.”
“Quando eu for a Nápoles você precisa me apresentar a ela.”
“Claro.”
“Me deixe um número, um endereço.”
“Tudo bem.”
Me observou para avaliar que palavras podiam me machucar menos e
perguntou:
“Ela leu seu livro?”
“Não sei, você leu?”
“Claro.”
“E o que achou?”
“Bom.”
“Em que sentido?”
“Há belas páginas.”
“Quais?”
“Aquelas em que você dá à protagonista a capacidade de conectar a seu
modo os fragmentos das coisas.”
“Só isso?”
“Não é o suficiente?”
“Não: é claro que você não gostou.”
“Já lhe disse que é bom.”
Eu o conhecia, estava tentando não me humilhar. Isso me exasperou,
insisti:
“É um livro que deu muito o que falar, está vendendo bastante.”
“Então ótimo, não?”
“Sim, mas não para você. O que é que não funciona?”
Apertou de novo os lábios, se decidiu:
“Não há grande coisa nele, Elena. Sob paixõezinhas e ânsias de
ascensão social você esconde justamente o que valeria a pena contar.”
“Ou seja?”
“Deixa pra lá, já está tarde, precisamos descansar.” E tentou assumir
um ar de ironia benévola, mas na realidade manteve aquele tom novo, de
quem tem uma missão importante e se dedica a todo o resto a conta-gotas:
“Você fez o possível, não é? Mas este, objetivamente, não é o momento de
escrever romances”.
18.

Mariarosa voltou justo naquele momento, trazendo com Juan e Silvia toalhas
de banho limpas e roupa de cama. Seguramente escutou aquela última frase e
com certeza entendeu que se falava de meu livro, mas não disse uma palavra.
Podia dizer que tinha gostado do livro, que é possível escrever romances em
qualquer momento, mas não o fez. Então deduzi que, para além das
declarações de simpatia e de afeto, naqueles ambientes tão cultos e
absorvidos pela paixão política meu livro era considerado uma coisinha
insignificante, e as páginas que estavam ajudando sua difusão eram
consideradas um subproduto de textos bem mais explosivos — que, aliás, eu
nunca tinha lido — ou merecedoras daquele rótulo depreciativo de Franco:
uma história de paixõezinhas.
Minha cunhada indicou-me o banheiro e o quarto com uma cortesia
esquiva. Me despedi de Franco, que partiria de manhã cedo. Limitei-me a
apertar sua mão, nem ele por sua vez acenou me abraçar. Pude vê-lo
desaparecer em um quarto com Mariarosa e, pela expressão carregada de
Juan, pelo olhar infeliz de Silvia, entendi que o hóspede e a dona da casa
dormiriam juntos.
Recolhi-me ao quarto que me fora indicado. Havia nele um forte cheiro
de fumo rançoso, uma caminha desfeita, nenhum criado-mudo, nenhuma
lâmpada além daquela, fraca, no centro do teto, jornais amontoados no piso,
alguns números do Menabò, do Nuovo impegno, de Marcatré, livros de arte
caros, alguns surrados, outros evidentemente nunca folheados. Debaixo da
cama achei um cinzeiro cheio de bitucas, abri a janela, deixei-o no batente.
Tirei a roupa. A camisola que Mariarosa me dera era muito comprida, muito
apertada. Fui ao banheiro de pés descalços, pelo corredor em penumbra. A
falta de escova de dentes não me incomodou: ninguém me educara a escovar
os dentes, era um hábito recente, adquirido em Pisa.
Uma vez na cama, tentei apagar o Franco que eu tinha encontrado
naquela noite com o Franco de anos antes, o rapaz rico e generoso que me
amara, que me ajudara, que me comprara de tudo, que me instruíra, que me
levara a Paris para suas reuniões políticas e a Versilia para férias, na casa
de seus parentes. Mas não consegui. O presente, com suas turbulências, os
berros na sala lotada, o fraseado político que zumbia em minha cabeça e se
abatia sobre meu livro, vilipendiando-o, levou a melhor. Estava me iludindo
quanto a meu futuro literário? Franco tinha razão, havia coisas bem mais
importantes que escrever romances? Que impressão eu lhe causara? Que
memória conservava de nosso amor, supondo-se que conservasse alguma?
Estava se queixando de mim com Mariarosa tal como Nino se queixara de
Lila comigo? Eu estava sofrendo, abatida. Com certeza o que eu imaginara
como uma noitada amena e talvez um pouco melancólica me pareceu triste.
Não via a hora de que a noite passasse e eu pudesse voltar para Nápoles.
Precisei me levantar para apagar a luz. Voltei para a cama no escuro.
Foi difícil pegar no sono. Virava de um lado para o outro, a cama e o
quarto conservavam os cheiros de outros corpos, uma intimidade semelhante
à de minha casa, mas neste caso feita de rastros de desconhecidos, quem
sabe repugnantes. Depois adormeci, mas despertei de repente, alguém tinha
entrado no quarto. Murmurei: quem é. Respondeu Juan, disse sem
preâmbulos e com uma voz suplicante, como se me pedisse um sério favor,
quase uma forma de pronto-socorro:
“Posso dormir com você?”
A solicitação me pareceu tão absurda que, para acordar inteiramente,
para entender aquilo, perguntei:
“Dormir?”
“Sim, eu me deito a seu lado e não a incomodo, só quero evitar ficar
sozinho.”
“Absolutamente não.”
“Por quê?”
Não soube o que responder, murmurei:
“Estou noiva.”
“E daí? Vamos só dormir.”
“Vá embora, por favor, eu nem te conheço.”
“Sou Juan, lhe mostrei minhas obras, o que mais você quer?”
Percebi que estava se sentando na cama, vi sua silhueta escura, senti
sua respiração cheirando a charuto.
“Por favor”, murmurei, “estou com sono.”
“Você é uma escritora, escreve sobre o amor. Tudo o que nos acontece
alimenta a imaginação e nos ajuda a criar. Me deixe ficar com você, é algo
que você vai poder contar.”
Roçou meu pé com a ponta dos dedos. Eu não o suportava, escapei em
direção ao interruptor e acendi a luz. Ainda estava sentado na cama, de
cueca e regata.
“Fora”, sibilei para ele, e o fiz de modo tão peremptório, tão
visivelmente próxima do grito, tão determinada a agredi-lo e a brigar com
todas as minhas energias, que ele se ergueu lentamente e falou desgostoso:
“Você é uma carola.”
Saiu. Fechei a porta atrás dele, não havia chave.
Estava estarrecida, furiosa, assustada, um dialeto sanguinário revoava
em minha cabeça. Esperei um pouco antes de voltar para a cama, mas não
apaguei a luz. O que eu dava a pensar de mim, que pessoa parecia ser, o que
legitimava a demanda de Juan? Dependia da fama de mulher livre que meu
livro estava me dando? Dependia das palavras políticas que eu tinha
expressado, as quais evidentemente não eram apenas um torneio dialético,
um jogo para mostrar que eu era tão hábil quantos os homens, mas definiam
toda a pessoa, disponibilidade sexual incluída? Era uma espécie de
pertencimento à mesma coalizão que induzira aquele homem a introduzir-se
sem hesitações em meu quarto, ou Mariarosa, igualmente sem hesitações, a
conduzir Franco ao dela? Ou eu mesma me contaminara por aquela difusa
excitação erótica que tinha percebido na sala da universidade e a exalava
sem me dar conta? Também em Milão eu me sentira pronta a fazer amor com
Nino, traindo Pietro. Mas aquela paixão era de velha data, justificava o
desejo sexual e a traição, ao passo que o sexo em si, aquela solicitação não
mediada de orgasmo, não, não conseguia me envolver, não estava preparada
para isso, me repugnava. Por que me deixar tocar pelo amigo de Adele em
Turim, por que me deixar tocar nesta casa por Juan, o que eu precisava
demonstrar, o que eles queriam demonstrar? De repente me voltou à memória
o episódio com Donato Sarratore. Não tanto a noite na praia em Ischia, a que
eu transformara em cena romanesca, mas a vez em que ele aparecera na
cozinha de Nella quando eu tinha acabado de deitar e me beijara, me
bolinara, provocando em mim um fluxo de prazer contra minha própria
vontade. Entre a menina de então, assustada, estarrecida, e a mulher atacada
no elevador, a mulher que sofrera aquele assédio, agora, havia algum nexo?
O cultíssimo Tarratano, amigo de Adele, e o artista venezuelano, Juan, eram
da mesma estirpe do pai de Nino, ferroviário, poetastro, pena de aluguel?
19.

Não consegui mais dormir. Aos nervos tensos, aos pensamentos


contraditórios, veio juntar-se Mirko, que voltara a chorar. Lembrei a forte
emoção que experimentei quando carreguei o menino em meus braços, como
ele não se acalmava, e não consegui me controlar. Levantei, segui o rastro
sonoro do choro e cheguei a uma porta da qual filtrava uma luz. Bati, Silvia
respondeu áspera. O quarto era mais aconchegante que o meu, tinha um velho
armário, uma cômoda, uma cama de casal onde a jovem estava sentada com
um baby-doll rosa, de pernas cruzadas, uma expressão ruim. Os braços
abandonados, o dorso de ambas as mãos sobre o lençol, tinha sobre as coxas
nuas, como uma oferenda votiva, Mirko igualmente nu, arroxeado, a abertura
negra da boca escancarada, os olhinhos apertados, os membros agitados. De
início me acolheu com hostilidade, depois abrandou. Disse que se sentia uma
mãe incapaz, que não sabia o que fazer, que estava desesperada. Por fim
murmurou: quando não está comendo, faz sempre assim, talvez esteja mal,
vai morrer aqui nesta cama — e, enquanto me falava, pareceu-me muitíssimo
distante de Lila, feia, deformada por expressões nervosas da boca, olhos
excessivamente arregalados. Até que desandou a chorar.
O choro de mãe e filho me enterneceu, gostaria de ter abraçado ambos,
apertá-los, niná-los. Sussurrei: posso segurá-lo um pouco? Ela fez sinal que
sim, entre soluços. Então tirei o menino de seus joelhos, aconcheguei-o em
meu peito e tornei a sentir o eflúvio de cheiros, sons e mornidão, como se
suas energias vitais estivessem se apressando a retornar para mim com
alegria, depois da separação. Caminhei para frente e para trás pelo quarto,
murmurando uma espécie de litania assintática que inventei no momento, uma
longa e insensata declaração de amor. Milagrosamente Mirko se acalmou e
adormeceu. Coloquei-o devagar ao lado da mãe, mas sem nenhuma vontade
de me separar dele. Temia voltar para meu quarto, uma parte de mim tinha
certeza de que encontraria Juan lá e queria permanecer ali.
Silvia me agradeceu sem gratidão, um obrigada ao qual acrescentou
uma fria lista de meus méritos: você é inteligente, sabe tudo, sabe se fazer
respeitar, é uma mãe de verdade, sorte de seus futuros filhos. Me esquivei,
estou indo, disse. Mas ela teve um impulso de ansiedade, pegou minha mão,
me pediu que ficasse: ele está ouvindo sua voz, disse, faça isso por ele, vai
dormir tranquilo. Aceitei imediatamente. Deitamos na cama com o menino no
meio, apagamos a luz. Mas não dormimos, começamos a falar de nós.
No escuro Silvia se tornou menos hostil. Falou-me da repulsa que
sentiu quando soube que estava grávida. Tinha escondido a gravidez do
homem que amava e até de si mesma, tinha se convencido de que passaria
como uma doença que deve cumprir seu percurso. No entanto o corpo reagia,
se deformava. Silvia precisava comunicar a seus pais, profissionais muito
abastados de Monza. Houve um pandemônio, e ela foi embora de casa. Mas,
em vez de admitir que deixara os meses passar à espera de um milagre, em
vez de confessar a si mesma que nunca levara em consideração o aborto
apenas por medo físico, passou a afirmar que queria a criança por amor ao
homem que a engravidara. Ele lhe dissera: se você quiser, pelo amor que
sinto por você, eu também quero. Amor dela, amor dele: naquele momento,
ambos falavam a sério. Mas depois de alguns meses, antes mesmo que a
gravidez chegasse a seu termo, o amor já havia abandonado os dois, e Silvia
insistiu várias vezes naquele ponto, com sofrimento. Não restara nada, só
ressentimento. Então ela se viu sozinha e, se até aquele momento tinha
conseguido se virar, o mérito era de Mariarosa, que ela elogiou muito,
falando dela com grande enlevo, uma professora excelente e de fato
solidária com os estudantes, uma companheira inestimável.
Disse-lhe que toda a família Airota era admirável, que eu estava noiva
de Pietro, que nos casaríamos no outono. Ela replicou imediatamente: o
casamento me causa horror, e a família também — tudo coisa velha. Depois
passou de repente a um tom melancólico.
“O pai de Mirko também trabalha na universidade.”
“É?”
“Tudo começou porque fiz o curso dele. Era tão seguro de si, muito
preparado, muito inteligente, lindo. Tinha todas as qualidades. E, já antes
que as lutas começassem, ele dizia: reeduquem seus professores, não se
deixem tratar como animais.”
“Ele ajuda um pouco com o menino?”
Riu no escuro e murmurou, áspera:
“Um homem, exceto nos momentos de loucura, em que você está
apaixonada e ele te penetra, fica sempre de fora. Por isso, mais tarde,
quando você deixa de amá-lo, só de pensar que você já gostou dele lhe dá
rancor. Ele gostou de mim, eu gostei dele, fim. Quanto a mim, várias vezes
ao dia me acontece de gostar de alguém. Você não? Durante pouco tempo,
depois passa. Só o menino fica, é uma parte de você; já o pai era um
estranho e volta a ser um estranho. Nem mesmo o nome tem mais o som de
antigamente. Nino, eu dizia, e só fazia repeti-lo mentalmente assim que
acordava, era uma palavra mágica. Agora, no entanto, é um som que me traz
tristeza.”
Não falei nada por um instante e por fim sussurrei:
“O pai de Mirko se chama Nino?”
“Sim, é conhecido de todos, é muito conhecido na universidade.”
“Nino de quê?”
“Nino Sarratore.”
20.

Fui embora de manhã cedo, deixei Silvia dormindo com o menino no peito.
Não vi sombra do pintor. Só consegui me despedir de Mariarosa, que
acordara cedíssimo para acompanhar Franco à estação e tinha acabado de
voltar. Tinha um ar sonolento, me pareceu incomodada. Perguntou:
“Dormiu bem?”
“Conversei muito com Silvia.”
“Ela lhe falou de Sarratore?”
“Falou.”
“Sei que vocês são amigos.”
“Foi ele quem disse?”
“Foi. Fofocamos um pouco sobre você.”
“É verdade que Mirko é filho dele?”
“É.” Reprimiu um bocejo, sorriu. “Nino é fascinante, as meninas vivem
atrás dele, o disputam, o puxam pra cá e pra lá. E — ainda bem — passam
dias felizes, fazem o que querem, tanto mais que ele emana uma força que
transmite alegria e vontade de agir.”
Disse que o movimento tinha grande necessidade de pessoas como ele.
Mas acrescentou que era preciso cuidar dele, fazê-lo amadurecer, orientá-lo.
Pessoas muito capazes — disse — devem ser guiadas, nelas está sempre à
espreita o democrata burguês, o técnico empresarial, o modernizador. Ambas
lamentamos o fato de termos tido pouco tempo para estar juntas e nos
prometemos que faríamos melhor na próxima oportunidade. Retirei a
bagagem no hotel e parti.
Somente no trem, durante a longa viagem até Nápoles, assimilei aquela
segunda paternidade de Nino. Um cinza esquálido se estendeu de Silvia a
Lila, de Mirko a Gennaro. Pareceu-me que a paixão de Ischia, a noite de
amor em Forio, a relação secreta na piazza dei Martiri, a gravidez, tudo
desbotasse e se reduzisse a um dispositivo mecânico que, ao sair de
Nápoles, Nino reativara com Silvia e sabe-se lá com quantas outras. A coisa
me ofendeu, quase como se eu tivesse Lila escondida num canto de minha
cabeça e experimentasse seus próprios sentimentos. Senti uma amargura
como se ela mesma sentiria se tivesse sabido, fiquei furiosa como se tivesse
sofrido a mesma injustiça que ela. Nino tinha traído Lila e a mim.
Estávamos, ela e eu, dentro da mesma humilhação, o amávamos sem nunca
termos de fato sido amadas. Portanto ele era, apesar de suas qualidades, um
homem frívolo, superficial, um organismo animal que exalava suores e
fluidos e deixava para trás, como resíduo de um prazer distraído, matéria
viva concebida, nutrida e formada em ventres femininos. Lembrei-me de
quando viera me encontrar no bairro, anos antes, e tínhamos ficado
conversando no pátio e Melina o avistara da janela e o confundira com o pai.
A ex-amante de Donato tinha captado semelhanças que a mim pareceram
inexistentes. Mas agora era claro, ela estava certa e eu, errada. Nino não
fugia do pai por medo de se tornar como ele, Nino já era o pai e não queria
admitir isso.
Contudo não consegui odiá-lo. No trem trincando de calor, não só me
lembrei de quando o tinha revisto na livraria, mas também o inseri nos
acontecimentos, palavras e frases daqueles dias. O sexo me perseguia,
agarrava, torpe e atraente, obsessivamente presente nos gestos, nas falas, nos
livros. As paredes divisórias estavam desabando, as correntes das relações
estavam despedaçando. E Nino vivia intensamente aquela época. Era parte
da assembleia barulhenta da Estatal com seu cheiro intenso, era adequado à
desordem da casa de Mariarosa, de quem certamente tinha sido amante. Com
sua inteligência, com seus desejos, com sua capacidade de sedução, movia-
se com segurança e curiosidade dentro daqueles tempos. Talvez eu tenha me
enganado ao associá-lo às vontades abjetas do pai, seu comportamento já
pertencia a outra cultura, e Silvia e Mariarosa haviam deixado isso claro: as
garotas o queriam, ele ficava com elas, não havia opressão, não havia culpa,
somente os direitos do desejo. Talvez, quem sabe, quando Nino me dissera
que Lila tinha problemas também com o sexo, quisesse me comunicar que o
tempo das obrigações tinha acabado, que sobrecarregar o prazer com a
responsabilidade era uma distorção. Se ele também tinha a mesma natureza
do pai, com certeza sua paixão pelas mulheres apontava em outro sentido.
Com espanto, com desaponto, cheguei a Nápoles no instante em que
uma parte de mim, ao pensar em quanto Nino era amado e em quanto amava,
tinha cedido e chegava a admitir: que mal há, goza-se a vida com quem sabe
gozá-la. E, enquanto regressava ao bairro, percebi que justamente porque
todas o queriam, e ele pegava todas, eu, que gostava dele desde sempre,
agora gostava mais ainda. Por isso decidi que evitaria ao máximo encontrá-
lo de novo. Quanto a Lila, não sabia como me comportar. Não dizer nada,
contar tudo? Quando a reencontrasse, decidiria no momento.
21.

Em casa não tive ou não quis ter tempo de voltar ao assunto. Pietro telefonou
dizendo que viria conhecer meus pais na semana seguinte. Aceitei o fato
como uma desgraça inevitável, fui logo procurar um hotel para ele, limpar a
casa e atenuar a ansiedade de minha família. Esforço inútil, este último: a
situação tinha piorado. No bairro a falação malévola sobre meu livro tinha
aumentado, e também sobre mim, sobre minhas constantes viagens sozinha.
Minha mãe se defendera vangloriando-se de que eu estava prestes a casar,
mas, para evitar que minhas escolhas contra Deus complicassem a situação,
tinha inventado que não me casaria em Nápoles, mas em Gênova.
Consequentemente as maledicências aumentaram, o que a exasperara.
Numa noite ela me interpelou com extrema dureza, disse que as pessoas
estavam lendo meu livro, que se escandalizavam e lhe falavam pelas costas.
Meus irmãos — gritou para mim — tiveram de dar porrada nos filhos do
açougueiro, que me trataram de vagabunda, e não só: quebraram a cara de
um colega de escola de Elisa que lhe pedira para fazer as mesmas coisas
sujas que a irmã mais velha fazia.
“O que foi que você escreveu?”, berrou comigo.
“Nada, mãe.”
“Escreveu as nojeiras que tem feito por aí?”
“Nojeira coisa nenhuma, leia o livro.”
“Não tenho tempo a perder com suas cretinices.”
“Então me deixe em paz.”
“Se seu pai sabe o que andam dizendo, te expulsa de casa.”
“Não é preciso, eu mesma vou embora.”
Era noite, e fui caminhar para não ter que dizer coisas das quais me
arrependeria depois. Na rua, nos jardins, ao longo do estradão, tive a
impressão de que a gente me olhava com insistência, sombras irascíveis de
um mundo que eu já não habitava. A certa altura topei com Gigliola, que
estava voltando do trabalho. Morávamos no mesmo prédio, fizemos o
caminho juntas, mas temi que mais cedo ou mais tarde ela achasse um meio
de me dizer algo irritante. No entanto, para minha surpresa, ela se expressou
com timidez — ela, que sempre fora agressiva, às vezes, pérfida:
“Li seu livro, é bonito, que coragem você teve de escrever aquelas
coisas.”
Enrijeci.
“Que coisas?”
“Aquelas que você faz na praia.”
“Eu não faço nada, quem faz é a personagem.”
“Sim, mas você as escreveu muito bem, Lenu, exatamente como
acontece, com a mesma imundície. São segredos que se sabem só quando se
é mulher.” Então me puxou pelo braço, me forçou a parar, murmurou: “Diga
a Lina, se a encontrar, que ela tinha razão, reconheço. Fez bem em se foder
do marido, da mãe, do pai, do irmão, de Marcello, de Michele, de toda essa
merda. Eu também deveria escapar daqui, seguir o exemplo de vocês duas,
que são inteligentes. Mas nasci estúpida e não posso fazer nada”.
Não nos dissemos mais nada de relevante, eu parei em meu andar, ela
seguiu para a casa dela. Mas aquelas frases ficaram em minha cabeça.
Surpreendeu-me que ela tivesse posto arbitrariamente juntas a queda de Lila
e minha ascensão, como se, comparadas à condição dela, tivessem o mesmo
grau de positividade. Mas o que mais ficou marcado em minha memória foi o
modo como reconhecera, na imundície de meu romance, sua própria
experiência de imundície. Era um fato novo, não soube como avaliá-lo.
Tanto mais que logo em seguida chegou Pietro, e por um tempo me esqueci
disso.
22.

Fui buscá-lo na estação e o acompanhei até a via Firenze, onde havia um


hotel que me fora indicado por meu pai e pelo qual, no fim, acabei optando.
Pietro me pareceu ainda mais ansioso que minha família. Desceu do trem
desleixado como sempre, o rosto exausto afogueado pelo calor, arrastando
uma mala pesada. Quis comprar um buquê de flores para minha mãe e,
contrariamente a seus hábitos, só ficou satisfeito quando lhe pareceu grande
o suficiente, caro o suficiente. Uma vez no hotel, me deixou no hall com as
flores, jurou que voltaria logo e reapareceu depois de meia hora, vestindo
um terno azul-marinho, camisa branca, gravata azul e sapatos bem
engraxados. Caí na risada e ele me perguntou: não estou bem? Então o
tranquilizei, estava ótimo. Mas já na rua senti o olhar dos homens sobre mim,
os risinhos debochados, como se eu estivesse sozinha, talvez até de modo
mais insistente, quase sublinhando que meu acompanhante não merecia
respeito. Pietro, com aquele enorme buquê de flores que ele não me deixava
carregar, tão correto em cada detalhe, era inadequado à minha cidade.
Embora com o braço livre envolvesse meus ombros, tive a impressão de que
eu é quem devia protegê-lo.
Elisa abriu a porta, depois chegou meu pai, depois meus irmãos, todos
vestidos de festa, todos muito cordiais. Por último apareceu minha mãe, o
rumor de seu passo manco nos alcançou logo após o da descarga do vaso.
Cacheara os cabelos, pusera um pouco de cor nos lábios e nas faces, pensei
que antigamente tinha sido uma garota bonita. Aceitou as flores com altivez e
nos acomodamos na sala de jantar, que, para a ocasião, não mostrava nenhum
resquício das camas que montávamos à noite e desmontávamos de manhã.
Cada coisa estava brilhando, a mesa tinha sido posta com esmero. Minha
mãe e Elisa tinha cozinhado durante dias, o que tornou o jantar interminável.
Pietro me espantou, mostrou-se muito expansivo. Indagou meu pai sobre seu
trabalho na prefeitura e lhe deu corda a tal ponto que ele abandonou seu
italiano sofrível e passou a contar, em dialeto, histórias espirituosas sobre
funcionários que meu noivo, mesmo entendendo pouco, demonstrou apreciar
muitíssimo. Mas acima de tudo comeu como eu nunca vira, e não só elogiou
minha mãe e minha irmã a cada prato, mas também pediu informações — ele,
que não era capaz de cozinhar um ovo — sobre os ingredientes de cada
iguaria, como se pretendesse pôr-se imediatamente ao fogão. A certa altura,
mostrou tal propensão ao gâteau de batatas que minha mãe acabou lhe
servindo uma segunda porção muito abundante e prometendo, ainda que com
seu tom desinteressado, que tornaria a fazê-lo antes que ele partisse. Em
pouco tempo o clima ficou agradável. Até Peppe e Gianni renunciaram a sair
para encontrar os amigos.
Após o jantar se chegou aos finalmente. Pietro ficou seriíssimo e pediu
minha mão a meu pai. Usou precisamente aquela fórmula, com voz
emocionada, o que fez minha irmã encher os olhos d’água e divertiu meus
irmãos. Meu pai se atrapalhou, balbuciou frases de simpatia por um
professor tão capaz e sério que o estava honrando com aquele pedido. A
noite enfim parecia se encaminhar ao seu desfecho, quando minha mãe
interveio e disse carrancuda:
“Nós aqui não estamos de acordo que vocês não se casem na igreja: um
matrimônio sem padre não é um matrimônio.”
Silêncio. Meus pais deviam ter feito algum acordo secreto que minha
mãe se incumbira de tornar público. Mas meu pai não conseguiu resistir e
logo lançou a Pietro um meio sorriso para mostrar que ele, mesmo fazendo
parte daquele nós vocalizado pela esposa, estava pronto a concordar com
soluções mais brandas. Pietro retribuiu o sorriso, mas dessa vez não o
considerou um interlocutor válido e se dirigiu apenas a minha mãe. Eu lhe
avisara da hostilidade em minha casa, ele estava preparado. Começou com
um discurso simples, afetuoso, mas, segundo seu costume, muito direto.
Disse que compreendia, mas que por sua vez desejava ser compreendido.
Disse que tinha enorme apreço por todos os que se confiavam com
sinceridade a um deus, mas que ele não tivera essa inclinação. Disse que não
ser religioso não significava não ter crença nenhuma, ele tinha suas
convicções e uma fé absoluta em seu amor por mim. Disse que era esse amor
que consolidaria nosso casamento, não um altar, um padre, um funcionário da
prefeitura. Disse que, para ele, a recusa ao ritual religioso era uma questão
de princípio, e que certamente eu deixaria de amá-lo — ou seguramente o
amaria menos — se ele se mostrasse um homem sem princípios. Disse por
fim que, sem sombra de dúvida, minha mãe mesma se recusaria a confiar sua
filha a uma pessoa pronta a demolir nem que fosse um único pilar sobre o
qual tinha fundado a própria existência.
Diante daquelas palavras meu pai fez gestos amplos de consenso, meus
irmãos ficaram de boca aberta, e Elisa voltou a se comover. Mas minha mãe
permaneceu impassível. Por alguns segundos ela deu voltas em sua aliança,
até que fixou Pietro direto no rosto e, em vez de retomar o assunto e dizer se
estava convencida ou não, começou a tecer elogios a mim com gélida
determinação. Desde pequena eu me mostrara uma menina fora do comum.
Eu tinha sido capaz de fazer coisas que nenhuma garota do bairro jamais
conseguira fazer. Eu tinha sido e era seu orgulho, o orgulho de toda a família.
Eu nunca a decepcionara. Eu conquistara o direito de ser feliz e, se alguém
me fizesse sofrer, ela o faria sofrer mil vezes mais.
Escutei constrangida. Por todo o tempo em que falou, tentei entender se
estava falando sério ou, segundo seu hábito, buscava deixar claro a Pietro
que ela estava pouco se lixando para seu ar professoral e sua conversa mole,
não era ele quem fazia um favor aos Greco, mas os Greco que o faziam a ele.
Não conseguiu. Meu noivo lhe prestou absoluta confiança e, por todo o
tempo em que minha mãe falou, só fez sinais de concordância. Quando ela
finalmente se calou, disse que sabia muito bem quanto eu era preciosa e que
agradecia a ela por ter me criado assim como eu era. Depois levou a mão ao
bolso do paletó e tirou um estojo azul, que me estendeu num gesto tímido. O
que será, pensei, ele já me deu um anel, vai me dar outro? Abri o estojo. Era
de fato um anel, mas belíssimo, de ouro vermelho, com uma ametista cercada
de brilhantes no engaste. Pietro murmurou: era de minha avó, a mãe de minha
mãe, e em casa estamos muito felizes que agora seja seu.
Aquele presente foi a senha de que o ritual tinha terminado. Voltou-se a
beber, meu pai retomou os casos divertidos de sua vida íntima e no trabalho,
Gianni quis saber de Pietro qual era seu time, Peppe o desafiou a uma queda
de braço. Enquanto isso, ajudei minha irmã a tirar a mesa. Uma vez na
cozinha, cometi o erro de perguntar a minha mãe:
“O que achou dele?”
“Do anel?”
“De Pietro.”
“É feio, tem pés tortos.”
“Papai não era melhor.”
“O que você tem a dizer contra seu pai?”
“Nada.”
“Então fique calada, você só sabe ser arrogante com a gente.”
“Não é verdade.”
“Não? E por que se deixa comandar? Se ele tem princípios, você não
tem os seus? Faça-se respeitar.”
Elisa interveio:
“Mãe, Pietro é um cavalheiro, e você não sabe o que é um cavalheiro
de verdade.”
“E você sabe? Tome cuidado que você ainda é pequena e, se não ficar
em seu canto, lhe dou um sopapo. Viu o cabelo dele? Um cavalheiro tem
cabelos assim?”
“Um cavalheiro não tem uma beleza normal, um cavalheiro se faz notar,
é um tipo.”
Minha mãe fingiu que lhe dava um tabefe e minha irmã, rindo, me tirou
da cozinha e disse, alegre:
“Sorte sua, Lenu. Como Pietro é fino, como gosta de você!
Simplesmente lhe deu o anel da avó, posso ver?”
Voltamos para a sala de jantar. Agora todos os homens da casa
insistiam em fazer uma queda de braço com meu noivo, queriam se mostrar
superiores pelo menos nas provas de força. E ele não se fez de rogado. Tirou
o paletó, arregaçou as mangas da camisa, sentou-se à mesa. Perdeu com
Peppe, perdeu com Gianni, perdeu até com meu pai. Mas fiquei surpresa
como ele se empenhou na disputa. Ficou vermelho, a veia da testa saltou,
protestou porque seus adversários violavam sem nenhum pudor as regras do
combate. Acima de tudo resistiu teimosamente contra Peppe e Gianni, que
faziam levantamento de pesos, e contra meu pai, que era capaz de soltar
parafusos só com a força dos dedos. Durante todo o tempo temi que, só para
não se dar por vencido, acabasse quebrando o braço.
23.

Pietro ficou três dias. Meu pai e meus irmãos rapidamente se afeiçoaram a
ele. Especialmente Peppe e Gianni estavam contentes por ele não ser
arrogante e se interessar pelos dois, mesmo a escola os tendo julgado
incapazes. Já minha mãe continuou a tratá-lo sem amizade, e só na véspera
da partida ficou mais terna. Era domingo, meu pai disse que queria mostrar
ao genro como Nápoles era linda. O genro concordou e propôs que
almoçássemos fora.
“No restaurante?”, perguntou minha mãe preocupada.
“Sim, senhora, precisamos comemorar.”
“Melhor que eu cozinhe, eu tinha dito que faríamos o gâteau de novo.”
“Não, obrigado, a senhora já trabalhou bastante.”
Enquanto nos preparávamos, minha mãe me puxou de lado e perguntou:
“Ele vai pagar?”
“Vai.”
“Tem certeza?”
“Claro, mãe, foi ele quem nos convidou.”
Fomos ao centro de manhã cedo, vestidos de festa. E aconteceu uma
coisa que me surpreendeu acima de tudo. Meu pai assumiu a tarefa de servir
de guia. Mostrou ao forasteiro o Maschio Angioino, o Palácio Real, as
estátuas dos reis, Castel dell’Ovo, via Caracciolo e o mar. Pietro ficou
ouvindo com uma expressão muito atenta. Mas depois de certo tempo, ele,
que vinha à cidade pela primeira vez, passou a falar sobre ela discretamente,
revelando-a a nós. Foi lindo. Eu nunca tinha demonstrado um especial
interesse pelo cenário de minha infância e adolescência, me espantei que
Pietro soubesse discorrer sobre ele com tão admirável conhecimento. Ele
demonstrou conhecer a história de Nápoles, sua literatura, as fábulas, as
lendas, muitas anedotas, os monumentos visíveis e os escondidos pela
incúria. Imaginei que em parte ele conhecesse a cidade porque era um
homem que sabia tudo, em parte porque a estudara a fundo, com o rigor
costumeiro, porque era a minha cidade, porque minha voz, meus gestos e
todo meu corpo tinham sofrido sua influência. Naturalmente meu pai se
sentiu logo destituído, e meus irmãos se entediaram. Percebi e fiz gestos a
Pietro para que parasse. Ele enrubesceu e se calou imediatamente. Mas
minha mãe, com uma de suas repentinas reviravoltas, se pendurou em seu
braço e lhe disse:
“Continue, estou gostando, ninguém nunca me falou essas coisas.”
Fomos comer num restaurante em Santa Lucia, que, segundo meu pai
(nunca tinha estado lá, mas lhe indicaram), era ótimo.
“Posso pedir o que eu quiser?”, me perguntou Elisa no ouvido.
“Pode.”
O tempo passou agradavelmente. Minha mãe bebeu demais e disse
algumas indecências, enquanto meu pai e meus irmãos recomeçaram a
brincar com Pietro e entre si. Não perdi de vista meu futuro marido, tive a
certeza de que gostava dele, era uma pessoa que conhecia seu valor e no
entanto, se necessário, se esquecia de si com naturalidade. Notei pela
primeira vez sua propensão à escuta, o tom de voz compreensivo como o de
um confessor laico, e gostei disso. Talvez devesse convencê-lo a ficar mais
um dia e apresentá-lo a Lila, dizer a ela: vou me casar com este homem,
estou prestes a deixar Nápoles com ele, o que você diz, estou agindo bem? E
estava avaliando aquela possibilidade quando aconteceu que, numa mesa não
distante da nossa, cinco ou seis estudantes que estavam comemorando não
sei o quê com uma pizza começaram a nos observar com insistência, aos
risos. Compreendi imediatamente que achavam Pietro engraçado por causa
das sobrancelhas muito espessas e a moita de cabelos na cabeça. No
intervalo de poucos minutos meus irmãos se levantaram da mesa ao mesmo
tempo, se dirigiram à mesa dos estudantes e provocaram uma briga com a
violência de sempre. Houve um escarcéu, gritos, pancadaria. Minha mãe
gritou insultos em defesa dos filhos, meu pai e Pietro correram para apartá-
los. Pietro estava quase achando graça, não tinha entendido nada do motivo
da briga. Uma vez na rua, ele disse irônico: é um costume local, vocês se
levantam de repente e vão bater nos que estão na mesa vizinha? Acabou que
ele e meus irmãos ficaram mais alegres e entrosados que antes. No entanto,
assim que pôde, meu pai puxou os filhos para um canto e os recriminou pelo
papel de mal-educados que tinham feito na frente do professor. Ouvi que
Peppe se justificava, quase sussurrando: estavam zombando de Pietro, papai,
que merda a gente devia fazer? Gostei que dissesse Pietro, e não o
professor: isso queria dizer que ele já era considerado parte da família,
alguém de casa, um amigo de grandes qualidades, e que, embora de aspecto
um tanto anômalo, ninguém podia debochar dele em sua presença. Entretanto
aquele incidente me convenceu de que eu não deveria apresentar Pietro a
Lila: eu a conhecia, ela era maldosa, o teria achado ridículo e zombaria dele
assim como os rapazes do restaurante.
À noite, cansados do dia passado ao ar livre, comemos algo em casa e
depois saímos todos de novo, para acompanhar meu noivo até o hotel. No
momento da separação, minha mãe, já alta, lhe deu dois beijos estalados nas
bochechas. Mas, quando voltamos ao bairro fazendo os maiores elogios a
Pietro, ela ficou na dela durante todo o percurso, sem dar um pio. Antes de
se retirar para o quarto, porém, ela disse rancorosa:
“Você tem sorte demais, não merece esse pobre garoto.”
24.

O livro vendeu durante todo o verão, e eu continuei falando sobre ele em


todo canto da Itália. Agora cuidava de defendê-lo com um tom distanciado,
às vezes petrificando o público mais insolente. De vez em quando me
vinham à mente as palavras de Gigliola, e eu as misturava às minhas,
tentando lhes dar uma ordem.
Nesse meio-tempo, no início de setembro, Pietro se transferiu para
Florença e, enquanto procurava casa, alojou-se em um hotelzinho próximo à
estação. Achou um pequeno apartamento para alugar nas bandas de Santa
Maria del Carmine, e eu logo fui vê-lo. Era uma casa de dois cômodos
escuros, em péssimo estado. A cozinha era pequena, o banheiro não tinha
janela. Quando no passado eu ia estudar no apartamento novíssimo de Lila,
ela muitas vezes deixava que eu me espichasse em sua banheira reluzente,
gozando a água morna e a espuma alta. A banheira da casa de Florença
estava toda trincada, encardida, dessas em que mal dá para ficar sentada.
Mas abafei a decepção, disse que estava bem: o curso de Pietro já ia
começar, ele precisava trabalhar, não podia perder tempo. De todo modo,
era um palácio se comparada à de meus pais.
Mas aconteceu que, justo quando Pietro se preparava para assinar o
contrato, Adele nos fez uma visitinha e não teve os meus pudores.
Considerou o apartamento um tugúrio, totalmente inadequado a duas pessoas
que deveriam passar boa parte do tempo fechadas em casa, trabalhando.
Então fez o que o filho não fez e poderia ter feito. Pegou o telefone e, sem
dar bola à contrariedade ostensiva de Pietro, mobilizou alguns conhecidos
florentinos, tudo gente com algum poder. Em pouco tempo achou em San
Niccolò, por uma quantia irrisória, porque de favor, um apartamento de
cinco cômodos luminosos, uma cozinha grande, um banheiro razoável. Mas
não se deu por satisfeita: mandou fazer melhorias por sua conta e me ajudou
a decorar a casa. Listava hipóteses, dava conselhos, me orientava. Mas
várias vezes tive de constatar que ela não se fiava nem na minha sujeição,
nem no meu gosto. Se eu dizia sim, queria entender se de fato eu estava de
acordo; se dizia não, me pressionava até que eu mudasse de opinião. Em
geral, fazíamos sempre o que ela dizia. Por outro lado, eu raramente me
opunha, acompanhava-a sem opor resistências, ao contrário, me esforçava
para aprender. Estava subjugada pelo ritmo de suas frases, pelos gestos,
pelos penteados, pelas roupas, pelos sapatos, pelos broches, colares e
brincos sempre lindos. E ela gostava daquela minha atitude de discípula
atenta. Convenceu-me a cortar os cabelos bem curtos, incentivou-me a
comprar roupas de seu gosto numa loja caríssima que lhe dava grandes
descontos, me deu de presente um par de sapatos de que ela gostava e que
teria comprado de bom grado para si, mas não os achava adequados à sua
idade, até me levou a um amigo dentista.
Enquanto isso, por causa do apartamento que, segundo Adele, precisava
sempre de novas reformas, por causa de Pietro, que estava assoberbado de
trabalho, o casamento passou do outono para a primavera, o que permitiu a
minha mãe prolongar sua guerra para arrancar dinheiro de mim. Tentei evitar
conflitos muito duros demonstrando a ela que eu não me esquecia da minha
família de origem. Com a chegada do telefone, mandei pintar o corredor e a
cozinha, mandei pôr um novo cortinado com flores bordô na sala de jantar,
comprei um casaco para Elisa, adquiri a prestações um aparelho de tv. E a
certa altura também resolvi me presentear com alguma coisa: me inscrevi
numa autoescola, passei facilmente no exame e tirei minha habilitação. Mas
minha mãe se irritou:
“Você gosta de jogar dinheiro fora? Para que a carta se você não tem
carro?”
“Depois veremos.”
“Quer comprar um automóvel, é? Quanto é mesmo que você tem
guardado?”
“Não é de sua conta.”
Quem tinha carro era Pietro e, depois de casada, esperava poder usá-
lo. Quando ele voltou a Nápoles — justamente de carro — trazendo os pais
para que conhecessem minha família, deixou-me guiar um pouco pelo bairro
velho e pelo novo. Sempre ao volante percorri o estradão, passei na frente
da escola fundamental, da biblioteca, subi pelas ruas onde Lila morara
quando casada, retornei, passei rente aos jardinzinhos, e aquela experiência
de dirigir é a única coisa divertida de que me lembro. Quanto ao resto, foi
uma tarde terrível, à qual se seguiu um jantar interminável. Eu e Pietro nos
esforçamos muito para amenizar o incômodo das duas famílias, eram mundos
tão distantes que os silêncios foram longuíssimos. Quando os Airota foram
embora, levando uma quantidade enorme de sobras por exigência de minha
mãe, de repente tive a impressão de estar errando tudo. Eu vinha daquela
família, Pietro, da dele, e cada um trazia no corpo os próprios antepassados.
Como seria nosso casamento? O que eu teria pela frente? As afinidades
prevaleceriam sobre as diferenças? Eu seria capaz de escrever outro livro?
Quando, sobre o quê? E Pietro me apoiaria? E Adele? E Mariarosa?
Certa noite, enquanto eu remoía pensamentos desse tipo, me chamaram
da rua. Corri para a janela, tinha reconhecido imediatamente a voz de
Pasquale Peluso. Descobri que não estava sozinho, estava com Enzo. Fiquei
assustada. Àquela hora Enzo não deveria estar em San Giovanni a Teduccio,
em casa, com Lila e Gennaro?
“Você pode descer?”, Pasquale gritou para mim.
“O que aconteceu?”
“Lina não está se sentindo bem e quer ver você.”
Estou indo, disse, e me lancei pelas escadas, embora minha mãe
gritasse atrás de mim: aonde você vai a esta hora, volte pra cá.
25.

Não via Pasquale nem Enzo fazia muito tempo, mas não houve preâmbulos,
tinham vindo por causa de Lila e me falaram imediatamente sobre ela.
Pasquale deixara a barba como a de Che Guevara, e tive a impressão de que
aquela mudança o deixou melhor. Os olhos pareciam maiores e mais
intensos, os bigodes espessos cobriam seus dentes estragados até quando ria.
Já Enzo não tinha mudado, sempre silencioso, sempre concentrado. Somente
quando já estávamos no velho carro de Pasquale me dei conta de como era
surpreendente vê-los juntos. Estava certa de que ninguém no bairro quisesse
ter mais nada a ver com Lila e com Enzo. No entanto as coisas não eram bem
assim: Pasquale frequentava a casa deles, tinha acompanhado Enzo até mim,
Lila os mandara me procurar juntos.
Foi Enzo quem me contou com seu jeito seco e ordenado o que tinha
acontecido: depois do trabalho em um canteiro de obras nos arredores de
San Giovanni a Teduccio, estava combinado que Pasquale iria jantar com
eles. Mas Lila, que normalmente voltava às quatro e meia da fábrica, às sete,
quando Enzo e Pasquale chegaram, ainda não tinha retornado. O apartamento
estava vazio, Gennaro estava com a vizinha. Os dois começaram a cozinhar,
Enzo deu de comer ao menino. Lila só apareceu por volta das nove,
palidíssima, muito nervosa. Não respondeu às perguntas de Enzo e Pasquale.
A única frase que disse, com um tom apavorado, foi: minhas unhas estão se
soltando. Coisa falsa, Enzo pegara suas mãos e tinha checado, estava tudo
certo com as unhas. Então ela ficou furiosa e foi se trancar no quarto com
Gennaro. Depois de um tempo gritou que fossem ver se eu estava no bairro,
precisava falar urgentemente comigo.
Perguntei a Enzo:
“Vocês brigaram?”
“Não.”
“Ela se sentiu mal, se feriu no trabalho?”
“Não me parece, não sei.”
Pasquale me disse:
“Agora não vamos ficar ansiosos. Querem apostar que Lina se acalma
assim que você chegar? Estou tão contente por termos achado você, agora
você é uma pessoa importante, deve ter muitos compromissos.”
Como eu me esquivava, ele citou como prova o velho artigo do Unità,
e Enzo fez sinais de concordância, ele também tinha lido.
“Lina também viu”, ele disse.
“E o que ela falou?”
“Estava muito contente com a foto.”
“No entanto”, resmungou Pasquale, “eles davam a entender que você
ainda era uma estudante. Você deveria escrever uma carta ao jornal
explicando que já é formada.”
Queixou-se do grande espaço que até o Unità concedia aos estudantes.
Enzo lhe deu razão, e os dois falaram coisas não muito distantes daquelas
que ouvi em Milão, apenas o fraseado era mais rude. Estava claro que
sobretudo Pasquale queria me entreter com assuntos dignos de alguém que,
mesmo sendo amiga deles, aparecia no Unità com uma foto daquelas. Mas
talvez também o fizessem para espantar a ansiedade, a deles e a minha.
Fiquei escutando. Logo entendi que a relação entre eles se reforçara
justamente graças à paixão política. Viam-se com frequência depois do
trabalho, em reuniões do partido ou de não sei qual comitê. Eu os ouvi,
intervim por gentileza, eles replicaram, mas enquanto isso não conseguia
tirar Lila da cabeça, devorada sabe-se lá por que angústia, ela, que era
sempre tão resistente. Quando chegamos a San Giovanni eles me pareceram
orgulhosos de mim, especialmente Pasquale não tinha perdido nada do que
eu dissera e várias vezes me observara pelo espelhinho do retrovisor.
Embora tivesse o mesmo tom sabido de sempre — era secretário da seção
de bairro do partido comunista —, na verdade atribuía à minha concordância
política o poder de sancionar que ele estava certo. Tanto é que, quando se
sentiu claramente apoiado, me explicou com algum mal-estar que estava
empenhado com Enzo e outros companheiros num duro combate dentro do
partido, o qual — disse enfezado, batendo as mãos no volante — preferia
esperar um assobio de Aldo Moro, como o que se dá a um cão obediente, em
vez de acabar com a espera e partir para a luta.
“O que você acha?”, perguntou.
“É isso mesmo”, respondi.
“Você é excelente”, me elogiou então com solenidade enquanto
subíamos as escadas sujas, “sempre foi. Não é verdade, Enzo?”
Enzo fez sinal que sim, mas compreendi que a preocupação dele por
Lila aumentava a cada degrau — assim como aumentava a minha —,
sentindo-se em culpa por ter se distraído com aquelas conversas. Abriu a
porta, falou em voz alta estamos aqui e me indicou uma porta com vidro
esmerilhado no meio, de onde vinha uma claridade de poucos watts. Bati
levemente e entrei.
26.

Lila estava deitada numa caminha, toda vestida. Gennaro dormia a seu lado.
Entre, me disse, eu sabia que você viria, me dê um beijo. Beijei-a nas
bochechas, sentei no colchãozinho vazio que devia ser de seu filho. Quanto
tempo passara desde a última vez em que a tinha visto? Achei-a ainda mais
magra, ainda mais pálida, os olhos vermelhos, as fossas nasais feridas, as
mãos longas marcadas por cortes. Continuou quase sem pausas, em voz baixa
para não acordar o menino: vi sua foto nos jornais, como você está bem, que
belos cabelos, sei tudo de você, sei que vai se casar, que ele é um professor,
muito bem, vai morar em Florença, desculpe se a fiz vir a esta hora, minha
cabeça não me ajuda, se descola que nem papel de parede, ainda bem que
você está aqui.
“O que houve?”, perguntei, e fiz que ia acariciar sua mão.
Bastaram aquela pergunta e aquele gesto. Arregalou os olhos, se agitou,
retraiu a mão bruscamente.
“Não estou bem”, disse, “mas espere, não se assuste, já me acalmo.”
Acalmou-se. Disse devagar, quase escandindo as palavras:
“Eu a incomodei, Lenu, porque você precisa me fazer uma promessa, eu
só confio em você: se me acontecer alguma coisa, se eu acabar num hospital,
se me levarem a um manicômio, se não me acharem mais, você deve cuidar
de Gennaro, deve ficar com ele, deve criá-lo em sua casa. Enzo é bom, uma
ótima pessoa, confio nele, mas não pode dar ao menino as coisas que você
poderia.”
“Por que você está me dizendo essas coisas? O que você tem? Se não
me explicar, não vou entender.”
“Antes prometa.”
“Tudo bem.”
Debateu-se de novo, a ponto de me assustar.
“Não, você não deve me dizer tudo bem; deve dizer aqui, agora, que
você fica com o menino. E, se precisar de dinheiro, procure Nino, diga que
ele tem de ajudar você. Mas prometa: eu vou criar o menino.”
Olhei para ela insegura, prometi. Prometi e fiquei ouvindo o que me
dizia, por toda a noite.
27.

Talvez esta seja a última vez que falo de Lila com riqueza de detalhes.
Depois ela se tornou cada vez mais fugidia, e o material à minha disposição
se empobreceu. Culpa da divergência de nossas vidas, culpa da distância.
No entanto, mesmo quando morei em outras cidades e não nos
encontrávamos quase nunca e ela como sempre não me dava notícias suas e
eu me esforçava para não saber dela, sua sombra me espicaçava, me
deprimia, me inchava de orgulho, me desinchava, sem nunca me dar sossego.
Aquele acicate, hoje que escrevo, me é ainda mais necessário. Quero
que ela esteja aqui, escrevo para isso. Quero que apague, que acrescente,
que colabore com nossa história despejando dentro dela, segundo seu estro,
as coisas que sabe, que disse ou que pensou: a vez em que se viu diante de
Gino, o fascista; a vez em que encontrou Nadia, a filha da professora
Galiani; a vez em que retornou à casa no corso Vittorio Emanuele, onde
tempos antes se sentira fora de lugar; a vez em que examinou com crueza sua
experiência sexual. Quanto aos constrangimentos que senti enquanto a
escutava, aos sofrimentos, às poucas coisas que lhe disse durante sua longa
narrativa, pensarei depois.
28.

Assim que A fada azul se transformou em cinzas voláteis na fogueira do


pátio, Lila voltou ao trabalho. Não sei quanto nosso encontro influiu sobre
ela, com certeza se sentiu infeliz por dias e dias, mas conseguiu não se
indagar por quê. Tinha aprendido que buscar razões lhe fazia mal e esperou
que a infelicidade se tornasse primeiro um genérico mau humor, depois
melancolia, por fim a ânsia normal de todo dia: cuidar de Gennaro, refazer
as camas, manter a casa limpa, lavar e passar as roupas do menino, de Enzo
e dela, preparar a comida para os três, entregar Gennaro à vizinha com mil
recomendações, correr para a fábrica e ali suportar o cansaço e os abusos,
voltar para casa e se dedicar ao filho e também aos meninos com quem
Gennaro brincava, preparar o jantar, comer de novo os três juntos, pôr
Gennaro na cama enquanto Enzo tirava a mesa e lavava os pratos, voltar à
cozinha para ajudá-lo a estudar, algo a que ele dava muita importância e que
ela, apesar de exausta, não queria lhe negar.
O que ela via em Enzo? No fim das contas, acho, a mesma coisa que
tinha querido ver em Stefano e em Nino: uma maneira de finalmente pôr tudo
de pé do modo mais justo. Mas enquanto Stefano, desmoronada a fachada do
dinheiro, se revelara uma pessoa sem substância e perigosa; enquanto Nino,
desmoronada a fachada da inteligência, se transmudara numa fumaça negra
de dor; Enzo por ora lhe parecia incapaz de tristes surpresas. Tinha sido o
menino da fundamental que ela, por motivos obscuros, sempre respeitara, e
agora era um homem tão intimamente compacto em cada gesto, tão resoluto
diante do mundo e tão manso com ela que lhe fazia excluir a hipótese de
poder de repente se deformar.
É verdade, não dormiam juntos, Lila não conseguia. Fechavam-se cada
um em seu quarto, e ela o escutava se mover além da parede até que todo
rumor cessasse e restassem somente os barulhos da casa, do edifício, da rua.
Tinha dificuldade de pegar no sono, apesar do cansaço. No escuro, todos os
motivos de infelicidade que por prudência deixara sem nome se misturavam
e se concentravam em Gennaro. Pensava: em que vai se transformar este
menino? Pensava: não devo chamá-lo de Rinuccio, assim o constranjo a
retroceder ao dialeto. Pensava: também preciso ajudar os meninos que
brincam com ele, se eu não quiser que, estando em sua companhia, ele se
estrague. Pensava: não tenho muito tempo, já não sou a mesma de antes, não
pego numa caneta, não leio mais um livro.
Às vezes sentia um peso no peito. Se alarmava, acendia a luz em plena
noite, olhava o filho dormindo. Reconhecia pouco ou nada de Nino, Gennaro
se parecia mais com seu irmão. Quando era mais novo, o menino estava
sempre atrás dela, mas agora se aborrecia, gritava, queria ir correndo
brincar, lhe dizia palavrões. Amo muito ele — Lila refletia —, mas será que
o amo assim como é? Pergunta terrível. Quanto mais examinava o filho, mais
percebia que, embora a vizinha de casa o achasse inteligentíssimo, não
estava crescendo como ela gostaria. Sentia que os anos em que se dedicara
unicamente a ele não tinham servido para nada, agora punha em dúvida que
as qualidades de uma pessoa dependessem da qualidade de sua primeira
infância. Era preciso ser constante, e Gennaro não tinha nenhuma constância,
tal como ela mesma não tinha. Minha cabeça se desvia continuamente, dizia
para si, tenho uma constituição ruim, e ele também. Depois se envergonhava
de pensar assim e sussurrava ao menino adormecido: você é ótimo, já sabe
ler, já sabe escrever, sabe somar e subtrair, sua mãe é uma estúpida, nunca
está contente. Então beijava o pequeno na testa e apagava a luz.
Mas o sono continuava se negando a vir, especialmente nas vezes em
que Enzo voltava tarde e ia para a cama sem a chamar para estudar. Nesses
casos Lila imaginava que ele tivesse se encontrado com alguma prostituta, ou
que tivesse uma amante, uma operária da fábrica onde trabalhava, uma
militante da célula comunista à qual se filiara prontamente. Os homens são
assim mesmo, pensava, pelo menos todos os que eu conheci: precisam trepar
o tempo todo, se não se sentem infelizes. Não creio que Enzo seja diferente,
por que deveria? De resto eu mesma o rejeitei, o deixei na cama sozinho,
não posso pretender nada. Temia apenas que ele se apaixonasse e a
mandasse embora. O que a preocupava não era ficar sem um teto, tinha um
trabalho na fábrica de embutidos e se sentia forte, surpreendentemente bem
mais forte do que quando se casara com Stefano e se vira com muito
dinheiro, mas submetida a ele. O que mais a amedrontava era perder a
gentileza de Enzo, a atenção que ele prestava a qualquer ansiedade sua, a
força tranquila que desprendia e graças à qual a salvara, primeiro da
ausência de Nino, depois da presença de Stefano. Tanto mais que, na
condição de vida em que se achava agora, ele era o único que a gratificasse
continuando a lhe atribuir capacidades extraordinárias.
“Você sabe o que significa isso?”
“Não.”
“Olhe bem.”
“É alemão, Enzo, e eu não sei alemão.”
“Mas, se você se concentrar, logo logo vai saber”, ele lhe dizia, em
parte brincando, em parte sério.
Enzo, que fizera grandes esforços para obter o diploma e afinal
conseguira, achava que ela — apesar de ter parado na quinta série da
fundamental — tinha uma inteligência muito mais pronta que a sua, e lhe
atribuía a virtude milagrosa de dominar rapidamente qualquer matéria. De
fato, quando a partir de pouquíssimos elementos ele se convencera de que
não só as linguagens das calculadoras eletrônicas preparavam o futuro do
gênero humano, mas também que a elite que primeiramente se apoderasse
delas teria um papel extraordinário na história do mundo, logo recorreu a
ela.
“Me ajude.”
“Estou cansada.”
“A gente leva uma vida de merda, Lina, precisamos mudar.”
“Pra mim está bom assim.”
“O menino passa o dia todo com estranhos.”
“Ele já está grandinho, não pode viver numa redoma de vidro.”
“Olhe como suas mãos estão.”
“As mãos são minhas, e faço com elas o que eu quiser.”
“Quero ganhar mais, por você e por Gennaro.”
“Pense em suas coisas que eu penso nas minhas.”
Reações ásperas, como de costume. Enzo se inscrevera em um curso
com apostilas mensais — coisa cara para o bolso deles, que exigia testes
periódicos enviados a um centro internacional de elaboração de dados com
sede em Zurique, o qual os remetia de volta corrigidos — e aos poucos tinha
conseguido envolver Lila, que se esforçara para acompanhá-lo. Mas se
comportara de um modo totalmente diverso de como tinha se comportado
com Nino, que ela assediara com a obsessão de mostrar para ele que era
capaz de ajudá-lo em tudo. Quando estudava com Enzo se mostrava
tranquila, não tentava superá-lo. As horas noturnas que dedicavam ao curso
eram para ele um esforço, para ela, um sedativo. Talvez por isso, nas raras
vezes em que voltava tarde e parecia poder prescindir dela, Lila ficava
acordada, ansiosa, escutando a água que escorria no banheiro e com a qual
imaginava que Enzo estivesse lavando do corpo todos os vestígios de
contato com suas amantes.
29.

Na fábrica — ela logo se dera conta — o cansaço extremo levava as pessoas


a querer trepar não com a mulher ou com o marido na própria casa, para
onde todos voltavam exaustos e sem vontade, mas ali mesmo, no trabalho, de
manhã ou de tarde. Os homens passavam a mão em qualquer oportunidade,
faziam propostas assim que passavam ao lado; e as mulheres, sobretudo as
menos jovens, riam, se esfregavam com os peitos grandes, se apaixonavam, e
o amor se tornava uma distração que atenuava o cansaço e o tédio, conferia
uma impressão de vida verdadeira.
Desde os primeiros dias de trabalho os homens tentaram reduzir as
distâncias, como para farejá-la. Lila os rechaçava, eles riam ou se afastavam
cantarolando cançõezinhas cheias de alusões obscenas. Numa manhã, para
deixar as coisas definitivamente às claras, quase arrancou a orelha de um
sujeito que, ao passar a seu lado, lhe disse uma frase pesada e lhe tascou um
beijo no pescoço. Era um tipo bonitão, de seus quarenta anos, chamado Edo,
que falava a todas com um tom insinuante e contava bem as piadas mais
nojentas. Lila agarrou-lhe a orelha com uma mão e a retorceu, puxando com
toda a força, as unhas cravadas na membrana, sem soltar a presa enquanto
ele berrava e tentava se defender dos chutes que ela lhe aplicava. Depois
disso, furiosa, foi protestar com Bruno Soccavo.
Desde que Bruno a contratara, Lila o tinha visto poucas vezes, de
passagem, sem lhe dar atenção. Já naquela circunstância teve a oportunidade
de observá-lo bem, estava de pé, atrás da escrivaninha, e se levantara de
propósito, como fazem os cavalheiros quando uma senhora entra no recinto.
Lila se surpreendeu: Soccavo tinha o rosto intumescido, os olhos velados
pela abundância, o peito pesado e sobretudo uma cor acesa que contrastava
como um magma com os cabelos pretíssimos e o branco dos dentes de lobo.
Perguntou a si mesma: o que este aqui tem a ver com o rapaz amigo de Nino,
que estudava direito? E sentiu que não havia continuidade entre os tempos de
Ischia e a fábrica de embutidos: no meio se estendia o vazio, e no salto de
um espaço a outro Bruno — quem sabe porque o pai tinha estado mal
recentemente, e o peso da empresa (as dívidas, alguns diziam) recaíra de
repente em seus ombros — se estragara.
Ela expôs suas razões, ele começou a rir.
“Lina”, advertiu, “eu lhe fiz um favor, mas não me arrume confusões.
Todos aqui nos esforçamos, não fique sempre com essa arma apontada: de
vez em quando as pessoas precisam relaxar, se não a coisa desanda.”
“Então relaxem entre vocês.”
Ele correu sobre ela um olhar divertido:
“Eu sabia que você gostava de brincar.”
“Só gosto quando eu quero.”
O tom hostil de Lila o fez mudar o seu. Ficou sério e disse sem lhe
dirigir o olhar: você sempre a mesma, como era linda em Ischia. Então lhe
indicou a porta: vá trabalhar, vá.
Mas desde então, sempre que cruzava com ela na fábrica, nunca
deixava de lhe dirigir a palavra diante de todos, e sempre para lhe fazer um
elogio benevolente. Aquela intimidade terminou legitimando a condição de
Lila na empresa: caíra nas graças do jovem Soccavo e, por isso, era melhor
não mexer com ela. A confirmação pareceu vir quando, numa tarde, logo
após a pausa para o almoço, uma mulherona chamada Teresa atravessou seu
caminho e lhe disse, debochada: pede-se gentilmente que compareça à
maturação. Lila foi para a grande sala onde secavam os salames, um
ambiente retangular repleto de carne ensacada que pendia do teto sob uma
luz amarela. Bruno estava lá, aparentemente fazendo checagens, mas na
verdade queria era conversar.
Enquanto circulava pelo ambiente apalpando e farejando com ar de
especialista, pediu-lhe notícias de Pinuccia, a cunhada, e — coisa que irritou
Lila — disse sem olhar para ela, examinando um salsichão: seu irmão nunca
a satisfez, naquele verão ela se apaixonou por mim, e você, por Nino. Então
avançou mais ainda e, dando-lhe as costas, acrescentou: foi graças a ela que
descobri que as grávidas adoram fazer amor. Em seguida, sem lhe dar tempo
de comentar, ironizar ou se enfurecer, parou no centro do salão e disse que,
se a fábrica em seu conjunto lhe dava náusea desde pequeno, ali, na
secagem, sempre se sentira bem, havia algo de agradável, de pleno, o
produto que chegava a seu término, que se afinava, que exalava seu cheiro,
que ficava pronto para ir ao mercado. Veja, toque, lhe disse, é matéria
compacta, dura, sinta o perfume que solta: parece o cheiro de quando um
macho e uma fêmea se abraçam e se tocam — você gosta? —, se soubesse
quantas eu trouxe aqui desde rapazinho. E nesse ponto ele a pegou pela
cintura, desceu a boca sobre seu pescoço comprido ao mesmo tempo em que
já lhe apertava a bunda, parecia ter cem mãos, apalpou-as sobre o avental,
debaixo, numa velocidade frenética e ofegante, uma exploração sem prazer,
uma pura agonia intrusiva.
Cada coisa ali, a começar pelo cheiro dos embutidos, trazia à memória
de Lila as violências de Stefano e por alguns segundos se sentiu aniquilada,
teve medo de ser trucidada. Até que foi tomada pela fúria, acertou Bruno na
cara e entre as pernas, berrou para ele você é um homem de merda, não tem
nada aí embaixo, venha cá, tire pra fora que eu arranco, strunz.
Bruno a soltou, recuou. Tocou o lábio que sangrava, zombou
constrangido, balbuciou: desculpe, pensei que podia haver ao menos um
pouco de gratidão. Lila gritou: quer dizer que eu devo pagar tributo senão
você me demite, é assim? Ele riu de novo, sacudiu a cabeça: não, se você
não quer, não quer, basta, já lhe pedi desculpas, o que mais preciso fazer?
Mas ela, fora de si, só agora começava a sentir no corpo o rastro de suas
mãos e sabia que isso duraria, não era algo que se tirasse com água e sabão.
Recuou para a porta e lhe disse: agora você se safou, mas, me demitindo ou
não, juro que você vai maldizer o momento em que me tocou. Saiu enquanto
ele murmurava: o que eu lhe fiz, não lhe fiz nada, venha aqui, se todos os
problemas fossem esses, vamos fazer as pazes.
Ela retornou a seu posto. Na época trabalhava em meio aos vapores das
piscinas, era uma espécie de servente que entre outras coisas devia deixar o
piso enxuto, um esforço inútil. Edo, aquele de quem quase arrancara a
orelha, a observou com curiosidade. Todos, operárias e operários, ficaram
de olho nela enquanto voltava furiosa da secagem. Lila não retribuiu o olhar
de ninguém. Pegou um trapo, bateu-o sobre os ladrilhos e começou a esfregá-
lo no pavimento pantanoso, escandindo em voz alta, ameaçadora: vamos ver
se algum outro filho da puta vai querer testar. Seus colegas se concentraram
no trabalho.
Durante dias aguardou a demissão, que não veio. As vezes em que
ocorria de passar por Bruno, ele fazia um sorriso gentil, ela respondia com
um gesto gelado. Nenhuma consequência, pois, salvo a repulsa por aquelas
mãos curtas e os ímpetos de ódio. No entanto, visto que Lila continuava se
lixando de todos com a soberba de sempre, os chefetes logo voltaram a
atormentá-la, mudando constantemente suas obrigações e fazendo-a trabalhar
até a exaustão, enquanto lhe diziam obscenidades. Sinal de que tinham tido
permissão para isso.
Não disse nada a Enzo sobre a orelha quase arrancada, sobre a
agressão de Bruno, sobre os desaforos e os cansaços de todo dia. Se ele
perguntava como estava indo na fábrica, ela respondia com sarcasmo: por
que você não me fala como está indo em seu trabalho? E, como ele não dizia
nada, Lila zombava um pouco dele e depois se dedicavam juntos aos
exercícios do curso apostilado. Refugiavam-se nele por vários motivos, o
mais importante era evitar interrogações sobre o futuro: quem eram um para
o outro, por que ele cuidava dela e de Gennaro, por que ela aceitava que o
fizesse, por que viviam na mesma casa há tanto tempo, mas Enzo esperava
inutilmente toda noite que ela fosse procurá-lo, e virava na cama, e revirava,
ia à cozinha com a desculpa de beber um gole d’água, lançava um olhar para
a porta de vidro a meia altura para ver se ela já tinha apagado a luz e espiar
sua sombra. Tensões mudas — bato, o deixo entrar —, dúvidas dele e dela.
Por fim preferiam entorpecer-se às voltas com diagramas em blocos, como
se fossem aparelhos de ginástica.
“Vamos fazer o esquema da porta que se abre”, dizia Lila.
“Vamos fazer o esquema do nó da gravata”, dizia Enzo.
“Vamos fazer o esquema de quando amarro os sapatos de Gennaro”,
dizia Lila.
“Vamos fazer o esquema de quando preparamos o café com a
napolitana”, dizia Enzo.
Das ações mais simples às mais complicadas, ambos quebravam a
cabeça para esquematizar o cotidiano, embora os testes de Zurique não
previssem isso. E não porque Enzo quisesse, mas porque como sempre Lila,
que tinha começado em surdina, noite após noite se entusiasmou cada vez
mais e agora, apesar da casa que à noite ficava gelada, estava tomada pelo
delírio de reduzir todo o mundo miserável em que viviam à verdade de 0 e
de 1. Parecia tender a uma abstrata linearidade — a abstração que gerava
todas as abstrações —, esperando que lhe assegurasse uma perfeição
repousante.
“Vamos esquematizar”, lhe propôs uma noite, “a fábrica.”
“Cada coisa que se faz ali?”, ele indagou perplexo.
“Sim.”
Ele a olhou e disse:
“Está bem, vamos começar pela sua.”
Ela fez uma expressão irritada, murmurou boa noite e foi se recolher em
seu quarto.
30.

Aqueles equilíbrios, já bastante precários, se modificaram quando Pasquale


reapareceu. Ele trabalhava em um canteiro nas vizinhanças e tinha ido a San
Giovanni a Teduccio para uma reunião da seção local do partido comunista.
Ele e Enzo se encontraram na rua, casualmente, e logo retomaram a velha
intimidade, acabaram falando de política e manifestaram o mesmo
descontentamento. A princípio, Enzo se expressou com cautela, mas
Pasquale, de surpresa, mesmo tendo um cargo importante no bairro — era
secretário de seção —, mostrou-se nem um pouco cauteloso e atacou o
partido, acusando-o de revisionista, e o sindicato, que quase sempre fechava
os olhos. Os dois estreitaram tanto a amizade que Lila encontrou Pasquale
em casa na hora do jantar e precisou arranjar algo para ele também.
A noite começou mal. Ela se sentia observada, precisou se esforçar
para não mostrar sua raiva. O que Pasquale queria, espiá-la, dizer ao bairro
como ela vivia? Com que direito estava ali, para julgá-la? Não lhe dirigia
uma só palavra de amizade, não lhe dava informações sobre sua família,
sobre Nunzia, sobre o irmão Rino, sobre Fernando. Em vez disso, lhe
lançava olhares de macho, como na fábrica, de quem a está avaliando, e se
ela notava, ele virava os olhos para outro lado. Certamente a achava mais
feia, com certeza pensava: como é que eu pude me apaixonar por essa aí
quando era novo, fui mesmo um idiota. E sem dúvida a considerava uma
péssima mãe, já que poderia ter criado o filho no conforto das charcutarias
Carracci, e no entanto o arrastara para aquela miséria. A certa altura Lila
bufou e disse a Enzo: tire a mesa você, eu estou indo dormir. Mas Pasquale,
de surpresa, assumiu o tom das grandes ocasiões e, um tanto emocionado,
disse-lhe: Lina, antes que você saia, preciso lhe dizer uma coisa: não há
nenhuma mulher como você, você se lança na vida com uma força que, se
todos nós a tivéssemos, o mundo já teria mudado quem sabe há quanto
tempo. Então, rompido o gelo a partir dali, contou-lhe que Fernando voltara
a fazer meias-solas, que Rino se tornara a cruz de Stefano e esmolava
dinheiro continuamente, que se via Nunzia muito pouco, já que ela quase
nunca saía de casa. Mas — reiterou — você fez bem: ninguém no bairro deu
tantos chutes na cara dos Carracci e dos Solara quanto você, e eu estou do
seu lado.
Depois daquela noite ele apareceu com frequência, o que comprometeu
bastante o estudo das apostilas. Chegava na hora do jantar com quatro pizzas
quentes, recitava o papel habitual de quem sabe tudo sobre o funcionamento
do mundo capitalista e anticapitalista, e a velha amizade se reforçou. Era
evidente que vivia sem afetos; Carmen, sua irmã, estava noiva e tinha pouco
tempo para ele. Mas reagia à solidão com um ativismo raivoso, que Lila via
com simpatia e curiosidade. Embora moído de cansaço nas obras, se
envolvia no sindicato, ia jogar tinta vermelho-sangue no consulado
americano, se era preciso ir às vias de fato com os fascistas estava sempre
na primeira fila, participava de um comitê operário-estudantil e brigava
constantemente com esses últimos. Isso para não falar do partido comunista:
por causa de suas posições muito críticas, esperava a qualquer momento
perder o cargo de secretário da seção. Com Enzo e Lila falava abertamente,
misturando ressentimentos pessoais e razões políticas. Dizem a mim que sou
inimigo do partido — se queixava —, dizem a mim que crio muita confusão,
que preciso me acalmar. Mas são eles que estão destruindo o partido, são
eles que o estão transformando numa peça do sistema, foram eles que
reduziram o antifascismo à vigilância democrática. Mas vocês sabem quem
colocaram na chefia da seção do Movimento Social lá do bairro? O filho do
farmacêutico, Gino, um servo imbecil de Michele Solara. E eu devo suportar
que os fascistas tornem a levantar a cabeça em meu bairro? Meu pai — dizia
comovido — deu tudo de si ao partido, e para quê? Para esse antifascismo
água com açúcar, para esta merda de hoje? Quando aquele pobre coitado foi
parar na cadeia inocente, inocentíssimo — dizia furioso —, pois não foi ele
quem matou dom Achille, o partido o abandonou, mesmo tendo sido um
grande companheiro, mesmo tendo participado das Quatro Jornadas e
combatido na Ponte della Sanità, mesmo se no pós-guerra, lá no bairro, se
expôs mais do que qualquer um. E Giuseppina, sua mãe, alguém a tinha
defendido? Assim que mencionava a mãe, Pasquale colocava Gennaro nos
joelhos e lhe perguntava: está vendo como sua mãe é bonita? Você gosta
dela?
Lila escutava. Às vezes pensava que deveria ter dito sim àquele rapaz,
o primeiro que a notara, sem olhar para Stefano e o dinheiro dele, sem se
meter em ciladas por causa de Nino: permanecer em seu lugar, não pecar por
soberba, sossegar a cabeça. Mas noutras vezes, por causa das invectivas de
Pasquale, se sentia recapturada pela infância, pela ferocidade do bairro, por
dom Achille, por aquele assassinato que ela, quando pequena, tinha contado
tantas vezes e com tantos detalhes inventados que agora tinha a impressão de
ter estado presente. E assim lhe voltava à mente a prisão do pai de Pasquale,
como o carpinteiro gritava, e sua mulher, e Carmen, e não gostava disso, as
lembranças reais se confundiam com as falsas, revia a violência, o sangue.
Então voltava a si, incomodada, subtraindo-se ao fluxo dos rancores de
Pasquale, e para se acalmar o impelia a rememorar, sei lá, o Natal ou a
Páscoa em família, a comida gostosa de sua mãe, Giuseppina. Ele logo
percebeu esse movimento e talvez tenha pensado que Lila sentisse falta dos
afetos familiares, assim como ele sentia. O fato é que certa vez ele chegou
sem avisar e disse a ela, todo alegre: olhe quem eu trouxe para você. Era
Nunzia.
Mãe e filha se abraçaram, Nunzia caiu num choro longuíssimo, deu de
presente um Pinóquio de pano a Gennaro. Mas assim que tentou criticar a
filha por suas escolhas, Lila, que de início se mostrara contente por vê-la,
lhe disse: mãe, ou fazemos de conta que não houve nada, ou é melhor que
você vá embora. Nunzia se ofendeu, passou a brincar com o menino e disse
várias vezes, como se de fato falasse com o pequeno: se sua mãe sai pra
trabalhar, você, pobre criaturinha, fica com quem? Nessa altura Pasquale
entendeu que tinha cometido um erro, disse que já estava tarde, que era
preciso ir. Nunzia se levantou e disse à filha, em parte a ameaçando, em
parte suplicando. Você — lamentou-se — primeiro nos fez levar uma vida de
ricos, e depois nos arruinou: seu irmão se sentiu abandonado e não quer mais
ver você, seu pai a apagou da memória; Lina, por favor, não lhe peço que
faça as pazes com seu marido, o que é impossível, mas pelo menos se
esclareça com os Solara, por culpa sua eles nos tomaram tudo, e Rino, e seu
pai, nós, os Cerullo, agora somos de novo ninguém.
Ela ficou escutando e depois quase a empurrou para fora, dizendo: mãe,
é melhor que você não volte mais. E também gritou o mesmo para Pasquale.
31.

Muitos problemas misturados: os sentimentos de culpa em relação a Gennaro


e a Enzo; os terríveis turnos de trabalho, as horas extras, as safadezas de
Bruno; a família de origem, que queria voltar a pesar sobre ela; e aquela
presença de Pasquale, com quem não adiantava ser arredia. Ele nunca se
incomodava, aparecia sempre alegre, e ora arrastava Lila, Gennaro e Enzo
para uma pizzaria, ora os levava de carro até Agerola, para o menino
respirar um pouco de ar fresco. Mas acima de tudo tentou envolvê-la em
suas atividades. Convenceu-a a se inscrever no sindicato mesmo contra a
vontade dela — e fez isso apenas para ferir Soccavo, que não veria a coisa
com bons olhos. Emprestou-lhe panfletos de todo o tipo, muito claros, muito
essenciais, sobre temas como remuneração, contratação, faixas salariais,
sabendo perfeitamente que, se ele não se desse ao trabalho de folheá-los,
mais cedo ou mais tarde Lila os leria. Arrastou-a com Enzo e o menino para
a Riviera de Chiaia, onde haveria uma manifestação pela paz no Vietnã que
acabou numa correria geral: pedras voavam, fascistas faziam provocações,
policiais atacavam, Pasquale trocava socos, Lila gritava insultos e Enzo
maldizia a hora em que decidira levar Gennaro para aquele pandemônio.
Mas naquela fase houve especialmente dois episódios importantes para
Lila. Certa vez Pasquale insistiu muito para que ela fosse ouvir uma
companheira importante. Lila aceitou o convite, estava curiosa. Mas quase
não escutou a fala — um discurso genérico sobre partido e classe operária
— porque a companheira importante chegou atrasada e, quando a reunião
finalmente começou, Gennaro já estava agitado e ela precisou entretê-lo, ora
saindo para que ele brincasse na rua, ora voltando para dentro, ora se
retirando de novo. No entanto, o pouco que ouviu foi suficiente para que ela
se desse conta da excelência daquela mulher e de como se distinguia em tudo
do público operário e pequeno-burguês que estava ali. Por isso, quando
percebeu que Pasquale, Enzo e alguns outros não se mostravam satisfeitos
com o que ela dizia, pensou que estavam sendo injustos, que deveriam ser
gratos àquela senhora culta, que tinha ido ali perder seu tempo com eles. E
quando Pasquale fez uma intervenção tão polêmica que a companheira
deputada se irritou e, elevando o tom, exclamou furiosa: agora chega, vou
embora, essa reação agradou a Lila, que se sentiu do lado dela. Mas
evidentemente, como sempre, trazia dentro de si sentimentos em tumulto.
Quando Enzo gritou em defesa de Pasquale: companheira, sem nós você nem
sequer existiria, por isso continue aí até que nós desejemos e vá embora
apenas quando nós quisermos, Lila mudou de ideia, se solidarizou de
repente com a violência daquele nós, teve a impressão de que a mulher o
merecia. E voltou para casa raivosa com o menino, que lhe estragara a noite.
Bem mais agitada foi uma reunião do comitê na qual Pasquale, em sua
ânsia de engajamento, decidira intervir. Lila compareceu não só porque ele
insistira muito, mas também porque achou que a agitação que o levava a
tentar compreender as coisas era boa. O comitê se reunia em Nápoles, numa
casa antiga da via dei Tribunali. Eles chegaram à noite, no carro de
Pasquale, e subiram as escadas arruinadas, mas monumentais. O ambiente
era amplo, os presentes, poucos. Lila notou como era fácil distinguir entre os
rostos dos estudantes e os dos trabalhadores, a desenvoltura dos líderes e o
balbucio dos gregários. E algo logo a contrariou. Os estudantes fizeram
exposições que lhe pareceram hipócritas, tinham uma postura humilde que
contrastava com suas frases arrogantes. De resto, o refrão era sempre o
mesmo: estamos aqui para aprender com vocês, ou seja, com os operários;
mas na realidade exibiam ideias claras demais sobre o capital, sobre a
exploração, sobre a traição da socialdemocracia, sobre as modalidades da
luta de classes. Além disso, descobriu que as poucas mulheres ali, em geral
taciturnas, estavam cheias de conversa mole com Enzo e Pasquale.
Principalmente Pasquale, que era o mais sociável, era tratado com grande
simpatia. Era considerado um operário que, mesmo tendo a carteirinha do
partido comunista, mesmo dirigindo uma seção, tinha decidido levar sua
experiência de proletário para um âmbito revolucionário. Quando ele e Enzo
tomaram a palavra, os estudantes, que entre si só faziam divergir, se
mostraram sempre de acordo. Como de costume, Enzo foi de poucas e
concentradas palavras. Já Pasquale, misturando italiano ao dialeto, falou
com loquacidade inesgotável sobre os progressos que o trabalho político
estava tendo nos canteiros de obra da província e lançou indiretas polêmicas
contra os estudantes, que eram pouco ativos. No final, sem aviso prévio, pôs
Lila na berlinda. Apresentou-a com nome e sobrenome, definiu-a como uma
companheira operária que trabalhava numa pequena indústria alimentar e lhe
fez muitos elogios.
Lila franziu o cenho, apertou os olhos, não apreciou que todos a
observassem como uma ave rara. E quando, depois de Pasquale, uma garota
interveio — a primeira entre as mulheres a tomar a palavra —, ficou ainda
mais irritada, primeiro, porque se expressava de modo livresco, segundo,
porque a citou várias vezes, chamando-a de companheira Cerullo, terceiro,
porque já a conhecia: era Nadia, a filha da professora Galiani, a
namoradinha de Nino que, em Ischia, lhe endereçava cartas de amor.
De início temeu que Nadia também a tivesse reconhecido, mas, embora
a garota falasse voltada quase sempre para ela, não deu nenhum sinal de
reconhecê-la. De resto, por que deveria? Quem sabe quantas festas de rico
tinha frequentado, e qual multidão de sombras trazia na memória. Lila, ao
contrário, tivera apenas aquela única ocasião, de anos antes, que lhe marcara
muito. Recordava-se com precisão da casa no corso Vittorio Emanuele, de
Nino, de todos aqueles jovens de boa família, dos livros, dos quadros, da
experiência desastrosa que tivera, do mal-estar que sentira. Não suportou a
situação, levantou-se enquanto Nadia ainda estava falando e saiu com
Gennaro, carregando dentro de si uma energia ruim que, não achando
válvulas de escape, deu voltas em seu estômago.
Mas logo em seguida retornou ao salão, decidida a dizer o que pensava
para não se sentir diminuída. Agora um jovem de cabelo encaracolado
estava falando com grande competência sobre a siderúrgica Italsider e o
trabalho por empreitada. Lila esperou que o rapaz terminasse e, ignorando o
olhar perplexo de Enzo, pediu a palavra. Falou longamente, em italiano,
enquanto Gennaro se agitava em seu colo. Começou baixinho, depois
prosseguiu em meio ao silêncio geral com uma voz talvez muito alta. Disse
provocadora que não sabia nada da classe operária. Disse que só conhecia
as operárias e os operários da fábrica em que trabalhava, pessoas com as
quais não havia absolutamente nada a aprender senão a miséria. Vocês
imaginam — perguntou — o que significa passar oito horas por dia
mergulhado até a cintura na água de cozimento das mortadelas? Imaginam o
que significa ter os dedos cheios de feridas de tanto descarnar ossos de
animais? Imaginam o que significa entrar e sair das câmaras frigoríficas a
vinte graus negativos e receber dez liras a mais por hora — dez liras — a
título de insalubridade? Se imaginam, o que acham que podem aprender com
gente que é forçada a viver assim? As operárias devem permitir que chefetes
e colegas passem-lhe a mão na bunda sem dar um pio. Se o patrãozinho
sentir necessidade, uma delas deve acompanhá-lo até a câmara de maturação
— coisa que já o pai dele fazia, e talvez até o avô — e ali, antes de pular em
cima de você, esse mesmo patrãozinho lhe faz um discursinho batido sobre
como o cheiro dos salames o excita. Homens e mulheres se submetem a
revistas corporais, porque na saída há uma coisa chamada “triagem” que,
quando se acende o vermelho em vez do verde, quer dizer que você está
levando escondido salames ou mortadelas. A “triagem” é controlada pelo
vigia, um espião do patrão, que acende o vermelho não só para os possíveis
furtadores, mas especialmente para moças bonitas e arredias e para os
encrenqueiros. Esta é a situação na fábrica onde eu trabalho. O sindicato
nunca entrou ali, e os operários não passam de uma gente pobre e
chantageada, sujeita à lei do patrão, ou seja, eu lhe pago e portanto a possuo
e possuo sua vida, sua família e tudo o que está à sua volta, e, se você não
fizer do jeito que eu mando, acabo com sua raça.
A princípio ninguém deu um pio. Depois se seguiram outras falas, e
todas citaram Lila com devoção. Ao final, Nadia foi abraçá-la. Fez-lhe
muitos elogios: como você é bonita, como é inteligente, como fala bem.
Depois agradeceu e disse séria: você nos fez entender quanto trabalho ainda
temos pela frente. Mas, apesar do tom elevado, quase solene, Lila a achou
mais infantil do que lhe pareceu quando, naquela noite de anos atrás, a
encontrara com Nino. O que ela e o filho de Sarratore faziam? Dançavam,
conversavam, se esfregavam, se beijavam? Já não lembrava mais. Sim, a
garota era de um encanto que ficava na memória. E agora, ao vê-la diante de
si, pareceu-lhe ainda mais limpa que então, limpa e frágil e tão genuinamente
exposta ao sofrimento alheio que parecia sentir o tormento em seu próprio
corpo, até o insuportável.
“Você vai voltar?”
“Tenho de cuidar do menino.”
“Você tem que voltar, nós precisamos de você.”
Mas Lila balançou a cabeça contrariada e repetiu a Nadia: tenho de
cuidar do menino, e o mostrou com um gesto da mão, dizendo a Gennaro: se
despeça da senhorita, diga que já sabe ler e escrever, mostre a ela como
você fala bem. E, como Gennaro escondeu o rosto em seu colo e, por outro
lado, Nadia esboçou um sorriso, mas não se mostrou interessada, Lila
repetiu: tenho de cuidar do menino, trabalho oito horas por dia, sem contar
os extras, gente que se encontra em minha situação só quer poder dormir à
noite. Então foi embora transtornada, com a impressão de ter se exposto
demais a pessoas de boa índole, sim, mas que, mesmo compreendendo tudo
em abstrato, concretamente não podiam entendê-la. Eu sei — ficou-lhe na
cabeça, sem se tornar som —, eu sei o que significa uma vida abastada e
cheia de boas intenções, você nem sequer imagina o que é a miséria de
verdade.
Uma vez na rua, o mal-estar cresceu. Enquanto caminhavam para o
automóvel, sentiu que Pasquale e Enzo estavam carrancudos e intuiu que sua
fala os tinha ferido. Pasquale a pegou com delicadeza pelo braço, superando
uma distância física que até então jamais tinha ultrapassado, e lhe perguntou:
“Você realmente trabalha nessas condições?”
Ela, incomodada com o contato, retraiu o braço e se insurgiu:
“E você? Como é que você trabalha? Como vocês dois trabalham?”
Não responderam. Trabalhavam duramente, isso era certo. E pelo
menos Enzo tinha com certeza sob os olhos, na fábrica, algumas operárias
esgotadas pelo cansaço, pelas humilhações e obrigações domésticas, tanto
quanto Lila. No entanto, agora, ambos se horrorizavam com as condições em
que ela trabalhava, não o podiam tolerar. É preciso esconder tudo deles, dos
homens. Preferiam não saber, preferiam fazer de conta que o que acontecia
em seus ambientes por algum milagre não ocorreria com as mulheres ligadas
a eles e que — esta era a ideia que os acompanhara desde a infância —
deviam proteger mesmo correndo o risco de serem assassinados. Diante
daquele silêncio, Lila ficou ainda mais furiosa.
“Vão tomar no cu”, disse, “vocês e a classe operária.”
Entraram no carro e trocaram apenas umas frases genéricas durante a
viagem até San Giovanni a Teduccio. Mas, quando Pasquale os deixou na
porta do prédio, lhe disse sério: não há o que fazer, você é sempre a melhor
— e então partiu para o bairro. Enzo, por sua vez, com o menino dormindo
em seus braços, murmurou taciturno:
“Por que você nunca me falou nada? Alguém na fábrica pôs as mãos em
você?”
Estavam exaustos, e ela decidiu acalmá-lo. Disse:
“Comigo não ousariam.”
32.

Dias depois os problemas começaram. Lila chegou ao trabalho de manhã


cedo, sobrecarregada por mil incumbências e totalmente despreparada para
o que estava prestes a acontecer. Fazia muito frio, há dias ela estava
tossindo, com um resfriado. Já na estrada encontrou dois rapazes, deviam ter
decidido cabular a escola. Um deles a cumprimentou com certa intimidade e
lhe deu não um folheto, como é mais comum, mas um caderninho
mimeografado de várias páginas. Ela respondeu ao cumprimento com um
olhar perplexo, tinha visto o rapaz no comitê da via dei Tribunali. Depois
meteu o fascículo no bolso do capote e passou por Filippo, o vigia, sem
sequer lhe dirigir o olhar, tanto que ele gritou: olha lá, hein, agora não se diz
nem bom dia?
Trabalhou com o afinco de sempre — naquele período estava na
descarnagem — e se esqueceu do rapaz. Na hora do almoço foi para o pátio
com a marmita e procurou um cantinho ao sol para comer, mas Filippo,
assim que a avistou, saiu da guarita e caminhou até ela. Era um homem de
seus cinquenta anos, de baixa estatura, pesado, propenso às obscenidades
mais asquerosas, mas também inclinado a sentimentalismos melosos.
Recentemente nascera seu sexto filho, e ele se comovia facilmente, sacava a
carteira do bolso e impunha a todos a foto do menino. Lila pensou que ele
decidira mostrá-la também a ela, mas não era isso. O homem tirou do bolso
do casaco o texto mimeografado e lhe disse em tom muito agressivo:
“Cerù, escute bem o que eu vou lhe dizer: se as coisas que estão
escritas aqui foi você quem contou a esses strunz, cê tá numa enrascada
fodida, sabia disso?”
Ela respondeu gélida:
“Não sei de que merda você está falando, me deixe comer.”
Filippo abriu com raiva o fascículo em sua cara e esbravejou:
“Não sabe, né? Então leia. Aqui dentro a gente sempre viveu na paz e
amor e só uma puta que nem você podia falar essas coisas por aí. Eu acendo
a triagem quando me dá na telha? Eu fico bolinando as mulheres? Eu, um pai
de família? Olhe bem, ou dom Bruno faz você pagar por isso, e caro, ou juro
por Deus que eu mesmo quebro sua cara.”
Então deu meia-volta e retornou à guarita.
Lila acabou de comer com calma, depois recolheu o panfleto. O título
era pretensioso: Enquete sobre a condição operária em Nápoles e província.
Folheou as páginas, achou uma inteira dedicada à fábrica de embutidos
Soccavo. Leu palavra por palavra tudo o que saíra de sua boca na reunião
em via dei Tribunali.
Fez de conta que não era nada. Deixou o fascículo no chão, voltou sem
olhar para a guarita e retomou o trabalho. Mas estava furiosa com quem a
metera naquela confusão sem nem mesmo avisá-la: sobretudo com Nadia, a
santinha; com certeza foi ela quem escreveu aquela droga, toda certinha e
cheia de afetações emocionadas. Enquanto trabalhava com a faca na carne
fria e o cheiro a nauseava e a raiva crescia, sentiu em torno de si a
hostilidade dos colegas de trabalho, homens e mulheres. Todos se conheciam
havia tempos, sabiam que eram vítimas coniventes e não tinham a menor
dúvida de quem tinha sido a delatora: ela, a única que se comportara desde o
início como se a necessidade de labutar não se confundisse com a
necessidade de se humilhar.
À tarde Bruno apareceu e, logo em seguida, mandou chamá-la. Estava
com o rosto mais vermelho que o habitual, trazia na mão o panfleto
mimeografado.
“Foi você?”
“Não.”
“Me diga a verdade, Lina: lá fora já tem gente demais fazendo
confusão, você também se juntou a eles?”
“Já disse que não.”
“Não, hein? Mas aqui não há ninguém que tenha a capacidade e a cara
de pau de inventar todas essas lorotas.”
“Deve ter sido um dos funcionários.”
“Os funcionários menos ainda.”
“Então o que você quer de mim, os passarinhos estão cantando por aí,
vá se informar com eles.”
Ele bufou, parecia realmente amargurado. Disse:
“Eu lhe dei um trabalho. Fiquei quieto quando você se inscreveu na
Cgil, meu pai a expulsaria a pontapés. Tudo bem, cometi uma tolice lá na
maturação, mas lhe pedi desculpas, você não pode dizer que a persegui. E
você faz o quê? Se vinga expondo assim meu estabelecimento e dizendo
preto no branco que eu levo as operárias para a secagem? Mas desde quando
eu, com as operárias, você é maluca? Já estou me arrependendo do bem que
lhe fiz.”
“O bem? Eu trabalho que nem uma condenada, e você me paga uma
ninharia. Eu faço muito mais bem a você do que você a mim.”
“Está vendo? Está falando como aqueles imbecis. Tenha a coragem de
admitir que quem escreveu isto aqui foi você.”
“Eu não escrevi nada.”
Bruno torceu a boca, olhou as páginas diante de si, e ela percebeu que
ele vacilava, não conseguia se decidir: adotar tons mais duros, ameaçá-la,
demiti-la, recuar e tentar entender se havia outras iniciativas daquele tipo em
andamento? Por fim ela se decidiu e disse em voz baixa — de má vontade,
mas com um pequeno trejeito cativante que se chocava com a lembrança da
violência dele, ainda viva em seu corpo — três frases conciliadoras:
“Confie em mim, eu tenho um filho pequeno para criar, realmente não
fiz isso aí.”
Ele fez sinal que sim, mas também resmungou, descontente:
“Sabe o que você me obriga a fazer agora?”
“Não, e não quero saber.”
“Mesmo assim vou lhe dizer. Se aqueles lá são seus amigos, avise a
eles: se voltarem a fazer arruaça aqui em frente, vou mandar dar tanta
porrada neles que vão até perder a vontade. Quanto a você, fique atenta: se
puxar mais a corda, vai ver que arrebenta.”
Mas o dia não terminou ali. Na saída, quando Lila passou, o vermelho
da triagem se acendeu. Era o ritual de sempre: todos os dias o vigia escolhia
alegremente três ou quatro vítimas, as garotas tímidas se deixavam apalpar
de olhos baixos, as mulheres escoladas riam e diziam: Filì, se você quer
tocar, toque, mas ande logo que eu preciso ir cozinhar. Naquela vez Filippo
só parou Lila. Fazia frio, soprava um vento forte. O vigia saiu da guarita.
Lila estremeceu e disse:
“Se você tocar em mim, juro por Deus que eu mato você ou mando
alguém matar.”
Carrancudo, Filippo apontou uma mesinha de bar que estava sempre ao
lado da guarita.
“Esvazie os bolsos um de cada vez, ponha tudo aqui em cima.”
Lila encontrou no casaco uma linguiça fresca, sentiu com desgosto a
carne mole compactada dentro da tripa. Tirou para fora, caiu na risada e
falou:
“Que gente de merda vocês são, todos vocês.”
33.

Ameaças de denúncia por furto. Corte de salário, multa. E ofensas de


Filippo a ela, dela para Filippo. Bruno não deu as caras, no entanto com
certeza ainda estava na fábrica, o carro dele estava no pátio. Lila intuiu que,
a partir daquele momento, as coisas piorariam ainda mais para ela.
Voltou para casa mais cansada que de costume, se irritou com Gennaro,
que queria ficar com a vizinha, preparou o jantar. A Enzo disse que ele
estudasse as apostilas sozinho, e se deitou cedo. Como não conseguia se
esquentar debaixo das cobertas, levantou-se e vestiu uma malha de lã sobre a
camisola. Estava se deitando de novo quando de repente, sem uma razão
evidente, o coração lhe subiu à garganta e começou a bater tão forte que
parecia o coração de um outro.
Já conhecia aqueles sintomas, eles acompanhavam aquilo que, em
seguida — onze anos mais tarde, em 1980 —, batizou de desmarginação.
Mas nunca ocorrera de se manifestar de modo tão violento, e além disso era
a primeira vez que acontecia estando ela sozinha, sem pessoas ao redor que,
por um motivo ou por outro, desencadeassem aquele efeito. Depois, com um
movimento de horror, se deu conta de que não estava sozinha de fato. De sua
cabeça atordoada estavam saindo figuras e vozes do dia, a flutuar pelo
quarto: os dois rapazes do comitê, o vigia, os colegas de trabalho, Bruno na
sala da maturação, Nadia, todos muito velozes, como num filme mudo, até os
sinais da luz vermelha da triagem tinham intervalos brevíssimos, até Filippo,
que arrancava a linguiça de suas mãos e lhe gritava ameaças. Tudo um truque
da mente: no quarto, com exceção de Gennaro na caminha ao lado, com sua
respiração regular, não havia pessoas e sons verdadeiros. Mas isso não a
acalmou, ao contrário, multiplicou seu assombro. As batidas do coração
agora eram tão fortes que pareciam capazes de explodir a engrenagem das
coisas. A tenacidade do aperto que encerrava as paredes do quarto se
enfraquecia, os choques violentos na garganta sacudiam a cama, abriam
rachaduras no reboco, descolavam a calota craniana, talvez estraçalhassem o
menino, sim, o estraçalhariam como a um boneco de plástico, abrindo-lhe o
peito, o ventre e a cabeça para revelar seu interior. Preciso afastá-lo daqui,
pensou, quanto mais perto ele estiver, mais provável que se desfaça. Mas se
lembrou de outro menino que tinha afastado de si, o menino que não
conseguira formar-se em sua barriga, o filho de Stefano. Eu o expulsei, ou
pelo menos era o que diziam Pinuccia e Gigliola às minhas costas. E talvez
de fato eu tenha feito isso, o expulsei de mim de propósito. Por que nada, até
agora, realmente deu certo comigo? E por que eu deveria me agarrar ao que
não deu certo? As batidas não davam impressão de serenar, as figuras de
fumaça a perseguiam com um zumbido de vozes, saiu de novo da cama,
sentou-se na borda. Estava coberta de um suor grudento, pareceu-lhe óleo
gelado. Apoiou os pés nus contra a caminha de Gennaro, o empurrou
devagar, para afastá-lo, mas não muito: temia destruí-lo se o mantivesse por
perto, e perdê-lo, se o distanciasse muito. Foi à cozinha com passos curtos,
apoiando-se nos móveis, nas paredes, mas olhando sempre para trás, com
medo de que o piso cedesse arrastando Gennaro para baixo. Bebeu água da
torneira, lavou o rosto e o coração parou de repente, arremessando-a para a
frente como depois de uma freada brusca.
Acabara. O encaixe das coisas recuperou a aderência, o corpo
lentamente voltou aos eixos, e ela se enxugou. Lila agora tremia e estava tão
cansada que as paredes giravam à sua volta; teve medo de desmaiar. Preciso
ir até Enzo, pensou, recuperar calor: entrar na cama dele agora, me apertar
contra suas costas enquanto ele dorme, recuperar eu mesma o sono. Mas
desistiu. Sentiu no rosto o pequeno trejeito gracioso que fizera quando disse
a Bruno: confie em mim, eu tenho um filho pequeno para criar, realmente
não fiz isso aí, uma expressão cativante, talvez sedutora, o corpo de fêmea
agindo autonomamente apesar do asco. Sentiu vergonha: como pudera se
comportar daquela maneira sabendo o que Soccavo lhe fizera na secagem? E
no entanto. Ah, pressionar os machos e impeli-los como bichinhos
obedientes para finalidades que não eram as deles. Não, não, chega, no
passado ela agira assim por vários motivos, quase sem se dar conta, com
Stefano, com Nino, com os Solara, talvez também com Enzo; agora não
queria mais isso, se viraria sozinha: com o vigia, com os colegas de
trabalho, com os estudantes, com Soccavo, com a própria cabeça cheia de
pretensões que não conseguia se resignar e, desgastada pelo choque com
pessoas e coisas, começava a ceder.
34.

Ao despertar, descobriu que estava com febre, tomou uma aspirina e foi
trabalhar mesmo assim. No céu ainda noturno havia uma luz tênue, azulada,
que roçava construções baixas, campos lamacentos e destroços. Já na
embocadura do trecho descampado que levava à fábrica, enquanto evitava as
poças, notou que os estudantes agora eram quatro, os dois do dia anterior, um
terceiro da mesma idade e um gordo, decididamente obeso, de seus vinte
anos. Estavam colando no muro cartazes que convocavam para a luta e
começavam a distribuir um folhetinho com o mesmo teor. Porém, se no dia
anterior, por curiosidade, por gentileza, operários e operárias tinham
aceitado receber o panfleto, agora a maior parte ou seguia em frente de
cabeça baixa, ou pegava o papel e imediatamente o amassava para jogar no
lixo.
Tão logo viu que os rapazes já estavam ali, pontuais como se o que
chamavam de trabalho político tivesse horários mais rígidos que o dela, Lila
sentiu antipatia. A antipatia se transformou em hostilidade quando o
jovenzinho do dia anterior a reconheceu e foi a seu encontro correndo, com
ar cordial e um bom número de folhetos na mão.
“Tudo certo, companheira?”
Lila não lhe deu bola, estava com a garganta inflamada, as têmporas
latejando. O rapaz insistiu, falou inseguro:
“Sou Dario, talvez não se lembre, nos vimos na via dei Tribunali.”
“Já sei quem você é, caralho”, explodiu Lila, “mas não quero conversa
nem com você nem com seus amigos.”
Dario ficou sem palavras, diminuiu o passo, falou quase para si:
“Não quer o folheto?”
Lila não respondeu para evitar ofendê-lo ainda mais. Mas guardou na
memória a cara desorientada do rapaz, aquela expressão que as pessoas
fazem quando se sentem do lado certo e não entendem como é que os outros
não compartilham sua opinião. Pensou que deveria ter lhe explicado direito
por que tinha dito as coisas que disse no comitê, e por que achara
insuportável que tudo aquilo fosse parar no texto mimeografado, e por que
motivo julgava inútil e estúpido que eles quatro, em vez de ainda estarem na
cama ou se preparando para entrar numa sala de aula, estivessem ali, no frio,
distribuindo um folheto apinhado de frases a pessoas que mal sabiam ler e,
pior, não tinham razões para se submeter àquele esforço, uma vez que elas já
conheciam aquelas coisas, as viviam todos os dias, e podiam contar outras
ainda piores, sons impronunciáveis que ninguém jamais teria dito, escrito,
lido, e que no entanto custodiavam em potência as verdadeiras razões de sua
subalternidade. Mas estava com febre, cansada de tudo, seria muito
extenuante para ela. De todo modo, já tinha chegado ao portão, e ali o
cenário estava se complicando.
O vigia esbravejava com o rapaz mais velho, o obeso, gritando-lhe em
dialeto: passe dessa linha, passe, strunz, assim você entra sem permissão
numa propriedade privada e eu lhe dou um tiro. O estudante, igualmente
agitado, replicava rindo, uma risada larga, agressiva, que acompanhava de
insultos: chamava-o de servo, berrava em italiano atire, me mostre se você
sabe atirar, isto aqui não é propriedade privada, tudo o que há aqui dentro
pertence ao povo. Lila passou ao lado de ambos — quantas vezes assistira a
patacoadas como aquelas: Rino, Antonio, Pasquale, até Enzo, todos eram
mestres naquelas patifarias — e disse a Filippo, séria: faça a vontade dele,
não perca tempo com conversas, alguém que poderia estar dormindo ou
estudando e em vez disso está aqui, enchendo o saco, merece levar um tiro.
O vigia olhou para ela, ouviu e ficou de boca aberta, tentando entender se
estava realmente o encorajando a fazer uma loucura ou se debochava dele. Já
o estudante não teve dúvidas, a mirou com raiva e gritou: vá, entre, vá
lamber o saco do patrão, e recuou alguns passos balançando a cabeça;
depois, continuou distribuindo folhetos a dois metros do portão.
Lila avançou pelo pátio. Já estava cansada às sete da manhã, sentiu os
olhos queimando, oito horas de trabalho lhe pareceram uma eternidade.
Nesse momento, surgiu atrás de si um barulho de freios e gritos de homens, e
ela se virou. Dois carros tinham chegado, um cinza e um azul. Alguém
desceu do primeiro e começou a arrancar os cartazes recém-colados no
muro. A coisa vai ficar feia, pensou Lila, e instintivamente fez o caminho
inverso, mesmo sabendo que devia agir como os outros, se apressar, entrar e
começar o trabalho.
Deu poucos passos, o suficiente para distinguir com clareza o jovem
que estava ao volante do carro cinza: era Gino. Pôde vê-lo abrir a porta e,
alto, a massa de músculos em que se transformara, sair do automóvel
empunhando um bastão. Os outros, os que estavam arrancando os cartazes,
os que mais preguiçosamente estavam ainda deslizando para fora do carro,
sete ou oito ao todo, seguravam correntes e barras de ferro. Quase todos
fascistas do bairro, e Lila reconheceu alguns. Fascistas como tinha sido o pai
de Stefano, dom Achille, e como se revelara o próprio Stefano, fascistas
como os Solara, avô, pai, netos, ainda que às vezes posassem de
monarquistas, às vezes de democratas-cristãos, segundo a conveniência.
Detestava-os desde que, garotinha, imaginara cada detalhe de suas abjeções,
desde que teve a impressão de descobrir que não havia modo de se livrar
deles, de começar tudo do zero. A ligação entre passado e presente nunca
cedera de fato, o bairro os amava em sua larga maioria, os bajulava, e eles
surgiam com seu negrume a cada ocasião de violência.
Dario, o rapazinho da via dei Tribunali, foi o primeiro a reagir: correu
para protestar contra os cartazes arrancados. Levava na mão o maço de
folhetos, e Lila pensou: jogue fora, cretino, mas ele não fez isso. Ouviu que
ele falava em italiano frases inúteis, do tipo parem com isso, vocês não têm
o direito, e enquanto isso viu que se virava para os companheiros em busca
de ajuda. Não sabe nada sobre como se luta: nunca perder de vista o
adversário, no bairro não havia blá-blá-blá, no máximo se lançavam gritos
com olhos esbugalhados de meter medo e, nesse meio tempo, se golpeava
primeiro, fazendo o maior estrago possível, sem parar, e eram os outros que
deviam detê-lo se fossem capazes. Um dos que estavam arrancando os
cartazes se comportou justamente desse modo: atingiu Dario na cara sem
preâmbulos, com um soco, derrubando-o entre os folhetos que tinham caído,
e então foi para cima dele e continuou a golpeá-lo, enquanto os papéis
esvoaçavam em torno como se houvesse uma excitação feroz nas próprias
coisas. A essa altura o estudante obeso se deu conta do rapaz no chão e
correu em seu socorro de mãos vazias, mas foi parado no meio do caminho
por um sujeito armado de corrente, que o acertou em um braço. O jovem
então agarrou furioso a corrente e começou a puxar para arrancá-la do
agressor, e os dois passaram a disputá-la por alguns segundos, aos insultos.
Até que Gino chegou pelas costas do estudante gordo e o abateu com uma
paulada.
Lila se esqueceu da febre, do cansaço e correu para o portão, mas sem
um propósito definido. Não sabia se queria ter uma visão mais clara, se
queria ajudar os estudantes, se simplesmente era movida por um instinto que
sempre tivera e em virtude do qual as pancadas não a atemorizavam, ao
contrário, acendiam sua fúria. Mas não fez a tempo de voltar para a rua,
precisou esquivar-se para não ser arrastada por um grupinho de operários
que estava passando às carreiras pelo portão. Alguns tinham tentado conter
os espancadores, certamente Edo e mais uns outros, mas não conseguiram e
agora estavam fugindo. Fugiam homens e mulheres, todos perseguidos por
dois jovens com barras de ferro. Uma que se chamava Isa, uma funcionária,
gritou correndo para Filippo: intervenha, faça alguma coisa, chame os
guardas; e Edo, que estava com uma mão sangrando, disse em voz alta para
si: vou buscar o machado e depois veremos. Assim, quando Lila chegou à
estrada de terra, o carro azul já havia partido e Gino estava entrando no
cinza; mas ele a reconheceu, parou estupefato e disse: Lina, você veio parar
aqui? Então, puxado para dentro pelos camaradas, deu a partida e arrancou,
gritando pela janela: você bancava a madame, cretina, e olha em que merda
se transformou.
35.

O dia de trabalho transcorreu numa ansiedade que Lila, como de costume,


tratou de ocultar por trás de uma atitude ora desdenhosa, ora ameaçadora.
Todos deram a entender que a culpa por aquele clima de tensão,
desencadeado de repente em um estabelecimento sempre tranquilo, era dela.
Mas logo se delinearam dois partidos: um, constituído de poucos, queria
reunir-se em algum lugar durante o intervalo do almoço e aproveitar o estado
das coisas para convencer Lila a levar ao dono da fábrica uma cautelosa
reivindicação econômica; outro, composto pela maioria, nem sequer dirigia
a palavra a Lila e era contrário a qualquer iniciativa que complicasse uma
vida de trabalho já complicada. Entre os dois grupos não houve meio de se
chegar a um acordo. Aliás, Edo, que pertencia ao primeiro grupo e estava
bastante nervoso com o ferimento na mão, chegou a dizer a um integrante do
partido oposto: se minha mão infeccionar, se eu a perder, vou até sua casa,
jogo uma lata de gasolina e queimo você e toda sua família. Lila ignorou
ambas as facções. Manteve-se fechada e trabalhou de cabeça baixa com a
eficiência habitual, afugentando o bate-boca, os insultos e o resfriado. Mas
refletiu muito sobre o que a aguardava, e um vórtice de pensamentos
diversos lhe passou pela cabeça febril: o que acontecera com os estudantes
espancados, para onde tinham fugido, em que enrascada a tinham metido;
Gino espalharia fofocas sobre ela em todo o bairro, contaria tudo a Michele
Solara; que humilhação pedir favores a Bruno, no entanto não havia outra
possibilidade, temia ser demitida, temia perder um salário que, mesmo
sendo miserável, permitia que ela gostasse de Enzo sem o considerar
fundamental para sua sobrevivência e a de Gennaro.
Depois tornou a se lembrar de sua noite terrível. O que tinha
acontecido? Devia ir a um médico? E se o médico encontrasse alguma
doença, como ela faria com o trabalho e o menino? Cuidado, não se agite,
precisava se reorganizar. Por isso, no intervalo do almoço, vencida pelas
preocupações, resignou-se a falar com Bruno. Queria conversar sobre a
brincadeira maldosa da linguiça, sobre os fascistas de Gino, e reafirmar que
não tinha culpa naquilo. Mas antes, sentindo desprezo por si, trancou-se no
banheiro para ajeitar os cabelos e passar um pouco de batom. No entanto a
secretária lhe comunicou hostil que Bruno não estava e quase seguramente
não viria durante toda a semana. Foi tomada de novo pela ansiedade. Cada
vez mais nervosa, pensou em pedir a Pasquale que impedisse os estudantes
de voltarem ao portão, disse para si que, afastados os rapazes do comitê, os
fascistas também sumiriam, e a fábrica se acalmaria dentro de seus velhos
hábitos. Mas como localizar Peluso? Não sabia onde era o canteiro em que
ele trabalhava, não se sentia disposta a ir procurá-lo no bairro, temia ter de
cruzar com sua mãe, com o pai, sobretudo com o irmão, com quem não
queria se encontrar. Assim, esgotada, somou todos os seus desgostos e
decidiu recorrer diretamente a Nadia. Ao final do turno correu para casa,
deixou para Enzo um bilhete em que lhe dizia que preparasse o jantar, cobriu
bem Gennaro com capote e gorro e subiu, ônibus após ônibus, até o corso
Vittorio Emanuele.
O céu tinha tons pastéis, nem sequer uma nesga de nuvem, mas a luz do
final da tarde estava cedendo e o vento era forte, soprando um ar violeta.
Recordou-se com precisão da casa, do portão, de cada coisa, e a humilhação
de anos atrás lhe acendeu mais ainda o fastio de agora. Como o passado era
friável, desmoronava continuamente, caía sobre ela. Daquela casa onde ela
havia entrado comigo numa festa que a fizera sofrer agora saía rodopiando
Nadia, a ex-namorada de Nino, para fazê-la sofrer ainda mais. Mas ela não
era do tipo de ficar quieta, e foi até lá arrastando Gennaro consigo. Queria
dizer àquela garotinha: você e os outros estão criando problemas para meu
filho; pra você é apenas uma diversão, nunca lhe acontecerá nada de grave;
pra mim, pra ele, não, é coisa séria, então ou você faz algo para consertar
tudo, ou eu quebro sua cara. Pretendia falar exatamente assim, e tossia
enquanto a raiva aumentava, não via a hora de desabafar.
Encontrou o portão aberto. Subiu as escadas, lembrou-se de mim e
dela, de Stefano, que nos acompanhara à festa, das roupas, dos sapatos, de
cada palavra que trocamos na ida e na volta. Tocou, a própria professora
Galiani lhe abriu a porta, idêntica a como a recordava, gentil, toda arrumada
até dentro de casa. Em comparação a ela, Lila se sentiu suja: pelo cheiro de
carne crua que trazia impregnado no corpo, pelo resfriado que lhe
congestionava o peito, pela febre que desordenava os sentimentos, pelo
menino que a importunava se lamuriando em dialeto. Perguntou bruscamente:
“Nadia está?”
“Não, saiu.”
“Quando ela volta?”
“Lamento, não sei dizer, daqui a dez minutos, uma hora; ela faz o que
lhe dá na telha.”
“Pode dizer que Lina a procurou?”
“É algo urgente?”
“Sim.”
“Quer dizer a mim?”
Dizer a ela o quê? Lila se desconcertou, seu olhar vagou para além de
Galiani. Entrevia-se a antiguidade aristocrática dos móveis e dos
lampadários, a biblioteca repleta de livros que a encantara, os quadros
preciosos nas paredes. Pensou: aí está o mundo que Nino ambicionava antes
de se atolar em mim. Pensou: o que é que eu sei dessa outra Nápoles, nada;
nunca vou viver aqui, nem Gennaro; então que seja destruída, que venham o
fogo e as cinzas, que a lava chegue até o topo das colinas. Depois finalmente
respondeu: não, obrigada, preciso falar com Nadia. E já estava para se
despedir, tinha sido uma viagem inútil. Mas gostara do andamento hostil com
que a professora tinha falado da filha e exclamou com um tom subitamente
frívolo:
“Sabe que anos atrás eu estive em uma festa nesta casa? Eu imaginava
não sei o quê, mas no fim das contas me entediei, não via a hora de sair.”
36.

Galiani também deve ter percebido algo que lhe agradou, talvez uma
franqueza no limite da descortesia. Porém, quando Lila mencionou nossa
amizade, a professora se mostrou contente e exclamou: ah, sim, Greco, ela
nunca mais deu notícias, o sucesso deve ter subido à cabeça. Então convidou
mãe e filho a se acomodarem na sala de estar, onde tinha deixado o neto
brincando, um menino louro a quem quase ordenou: Marco, cumprimente seu
novo amigo. Lila, por sua vez, fez o filho dar um passo à frente e disse: vá,
Gennaro, brinque com Marco, e se sentou numa antiga e confortável poltrona
verde, continuando a falar sobre a festa de anos atrás. A professora lamentou
não ter nenhuma lembrança dela, mas Lila se recordava de tudo. Disse que
tinha sido uma das piores noites de sua vida. Contou como se sentira fora de
lugar, ironizou pesadamente as conversas que escutara sem entender nada. Eu
era muito ignorante, exclamou com alegria excessiva, e hoje sou ainda mais.
Galiani ficou ouvindo e se espantou com sua sinceridade, com o tom
desconcertante, as frases ditas num italiano muito intenso, a ironia
habilmente controlada. Deve ter sentido em Lila, suponho, aquele algo de
inapreensível que seduzia e ao mesmo tempo alarmava, uma potência de
sereia: acontecia com qualquer um, aconteceu também com ela, e a conversa
só se interrompeu quando Gennaro deu um tapa em Marco e gritou um insulto
em dialeto, arrancando um carrinho verde das mãos dele. Lila se levantou
furiosa, agarrou o filho pelo braço, deu vários tapas vigorosos na mão que
tinha batido no outro menino e, embora Galiani lhe dissesse, branda: deixe
pra lá, são crianças, o censurou com dureza e o obrigou a devolver o
brinquedo. Marco chorava, Gennaro não derramou uma lágrima, ao
contrário, arremessou contra o outro o brinquedo com desprezo. Lila bateu
nele de novo, muito forte, na cabeça.
“Vamos embora”, disse então, nervosa.
“Não, fique mais um pouco.”
Lila voltou a se sentar.
“Ele não é sempre assim.”
“É um menino lindo. Não é verdade, Gennaro, que você é bonito e
bonzinho?”
“Ele não é nada bonzinho, não é mesmo. Mas é inteligente. Apesar de
pequeno, sabe ler e escrever todas as letras, maiúsculas e cursivas. E então,
Gennà, quer mostrar à professora como você sabe ler?”
Pegou uma revista sobre uma bela mesinha de cristal, indicou ao acaso
uma palavra na capa e disse: vamos, leia. Gennaro se recusou, Lila lhe deu
um tapinha no ombro e repetiu ameaçadora: leia, Gennà. O menino decifrou
de má vontade: d-e-s-t, e então parou, fixando com raiva o carrinho de
Marco. Marco o apertou forte contra o peito, deu um sorrisinho e leu com
desenvoltura: destinação.
Lila ficou mal, fechou o cenho, olhou o neto de Galiani com antipatia.
“Ele lê bem.”
“Porque lhe dedico muito tempo. Já os pais andam sempre por aí.”
“Quantos anos ele tem?”
“Três anos e meio.”
“Parece mais velho.”
“É verdade, ele é bem desenvolvido. Seu filho tem que idade?”
“Vai fazer cinco anos”, admitiu Lila contrariada.
A professora fez um carinho em Gennaro e lhe disse:
“Mamãe o fez ler uma palavra difícil, mas você é excelente, vê-se
perfeitamente que sabe ler.”
Naquele instante houve uma agitação, a porta da escada se abriu e se
fechou, rumor de passos pela casa, vozes masculinas, vozes femininas. Meus
filhos chegaram, disse Galiani, e chamou: Nadia. Mas não foi Nadia quem
apareceu na sala, em vez dela surgiu ruidosamente uma garota magra, muito
pálida, louríssima e com olhos de um azul tão azul que parecia falso. A
jovem abriu os braços e gritou para Marco: quem vai dar um beijo na
mamãe? O menino correu em sua direção e ela o abraçou e encheu de
beijinhos, enquanto Armando, o filho mais velho de Galiani, se aproximava.
Lila também se lembrou dele imediatamente e o observou enquanto quase
arrancava Marco dos braços da mãe, gritando: vamos, pelo menos trinta
beijos também no papai. Então Marco passou a beijar o pai na bochecha,
contando: um, dois, três, quatro.
“Nadia”, chamou de novo Galiani com um tom subitamente irritado,
“está surda? Venha aqui, há uma visita para você.”
Finalmente Nadia entrou na sala. Atrás dela apareceu Pasquale.
37.

O aborrecimento de Lila tornou a explodir. Então quer dizer que, depois do


trabalho, Pasquale corria para a casa daquela gente, entre mães, pais, avós,
tias e crianças felizes, todos afetuosos, todos bem instruídos, todos tão
liberais a ponto de acolhê-lo como um deles, embora fosse pedreiro e ainda
trouxesse os vestígios sórdidos do trabalho?
Nadia a abraçou com seu jeito emocionado. Ainda bem que você veio,
lhe disse, deixe o menino com minha mãe, precisamos conversar. Lila
replicou agressiva que sim, precisavam conversar imediatamente, ela estava
ali para isso. E, como enfatizou que só tinha mais um minuto, Pasquale se
ofereceu para acompanhá-la até a casa de carro. Então deixaram a sala de
estar, os meninos, a avó e se reuniram todos — inclusive Armando, inclusive
a jovem loura, que se chamava Isabella — no quarto de Nadia, um cômodo
amplo com uma pequena cama, uma escrivaninha, prateleiras cheias de
livros, pôsteres de cantores, filmes e lutas revolucionárias de que Lila não
sabia quase nada. Ali havia outros três jovens: dois que ela nunca tinha visto
e Dario, bastante machucado pelas porradas que levara, escarranchado na
cama de Nadia com os sapatos sobre o edredom rosa. Todos os três
fumavam, o quarto estava saturado de fumaça. Lila não se fez esperar, nem
sequer respondeu ao cumprimento de Dario. Disse que a tinham colocado
numa enrascada, que por sua falta de consideração ela agora corria o risco
de ser demitida, que o texto mimeografado tinha causado um pandemônio,
que nunca mais deveriam se aproximar do portão, que por culpa deles os
fascistas tinham vindo e todos agora estavam às voltas tanto com os
vermelhos quanto com os negros. Sibilou para Dario: quanto a você, se não
sabe dar porrada, fique em casa; sabe que podiam ter matado você?
Pasquale tentou interrompê-la umas duas vezes, mas ela o rechaçou
desdenhosa, como se a simples presença dele naquela casa fosse uma
traição. Já os outros escutaram em silêncio. Somente quando Lila terminou,
Armando interveio. Tinha os traços delicados da mãe, sobrancelhas pretas
grossíssimas, a sombra arroxeada da barba bem-feita que lhe subia até os
zigomas, e falava com uma voz quente, espessa. Primeiro se apresentou,
disse que estava muito contente de conhecê-la, que lamentava não ter estado
presente quando ela falara no comitê, mas que haviam discutido muito entre
si sobre o que ela contara e, como consideraram seu relato uma contribuição
importante, por fim tinham decidido colocar cada palavra por escrito. Não
se preocupe — concluiu tranquilo —, daremos todo o apoio possível a você
e a seus companheiros.
Lila tossiu, a fumaça do quarto lhe irritava ainda mais a garganta.
“Vocês tinham que ter me avisado.”
“É verdade, mas não houve tempo.”
“Quando se quer, sempre se acha tempo.”
“Nós somos poucos, e as iniciativas são cada vez mais numerosas.”
“Qual é o seu trabalho?”
“Em que sentido?”
“Que trabalho você faz para viver?”
“Sou médico.”
“Que nem seu pai?”
“Sim.”
“E neste momento você está arriscando seu emprego? Pode acabar no
meio da rua de uma hora pra outra com seu filho?”
Armando balançou a cabeça descontente e disse:
“Disputar para ver quem se arrisca mais é um erro, Lina.”
E Pasquale:
“Ele já foi detido duas vezes, e eu tenho oito denúncias nas costas.
Aqui não há quem se arrisca menos ou mais.”
“Ah, não?”
“Não”, disse Nadia, “estamos todos na linha de frente e prontos a
assumir nossas responsabilidades.”
Então, esquecendo-se de que estava na casa dos outros, Lila gritou:
“E se acontecer de eu perder o emprego, venho morar aqui, vocês vão
me alimentar, vão assumir a responsabilidade por minha vida?”
Nadia respondeu placidamente:
“Se quiser, sim.”
Apenas três palavras. Lila compreendeu que não era uma frase vazia,
que Nadia estava falando sério, que mesmo se Bruno Soccavo demitisse
todo o pessoal, ela, com aquela voz licorosa, teria dado a mesma resposta
insensata. Afirmava estar a serviço dos operários e, enquanto isso, de seu
quarto dentro de uma casa forrada de livros e com vista para o mar, queria
controlar você, queria lhe dizer o que você deve fazer com o seu trabalho,
decidia em seu lugar, tinha uma solução pronta mesmo que você fosse para o
olho da rua. Se eu quiser — Lila esteve a ponto de dizer —, arrebento tudo
bem melhor que você, sua mosca morta: não preciso que venha me dizer com
essa voz de santinha como eu devo pensar, como devo agir. Mas se conteve e
disse brusca a Pasquale:
“Estou com pressa, você me acompanha ou fica aqui?”
Silêncio. Pasquale lançou um olhar a Nadia e balbuciou: acompanho, e
Lila fez que ia sair do quarto, sem se despedir. A jovem se precipitou para
lhe abrir caminho e enquanto isso lhe disse que era inaceitável trabalhar nas
condições que a própria Lila descrevera tão bem, que era urgente acender a
chama da luta, e outras frases desse tipo. Não recue — exortou-a por fim,
antes de passarem para a sala de estar. Mas não obteve resposta.
Sentada na poltrona, Galiani estava lendo, concentrada. Quando ergueu
o olhar, dirigiu-se a Lila ignorando a filha, ignorando Pasquale, que acabara
de chegar embaraçado.
“Já vai embora?”
“Vou, já está tarde. Vamos, Gennaro, devolva o carrinho a Marco e
vista seu casaco.”
Galiani sorriu ao neto, que estava emburrado:
“Marco deu o carrinho para ele.”
Lila apertou os olhos, reduzindo-os a duas fissuras:
“Nesta casa todos são tão generosos, obrigada.”
A professora a observou enquanto pelejava com o filho para que
vestisse o casaco.
“Posso lhe perguntar uma coisa?”
“Diga.”
“Que estudos você fez?”
A pergunta pareceu perturbar Nadia, que atalhou:
“Mamãe, Lina precisa ir.”
“Posso falar duas palavrinhas?”, irrompeu Galiani com um tom não
menos nervoso. Então repetiu para Lila, mas com gentileza: “Que estudos
você fez?”
“Nenhum.”
“A ouvi-la falar — e gritar —, não parece.”
“Mas é assim, parei depois do quinto ano fundamental.”
“Por quê?”
“Não tinha capacidade.”
“Como você se deu conta disso?”
“Quem tinha era Greco; eu, não.”
Galiani balançou a cabeça em sinal de discordância e disse:
“Se você tivesse estudado, teria se saído tão bem quanto Greco.”
“Como a senhora pode dizer isso?”
“É o meu trabalho.”
“Vocês professores insistem tanto no estudo porque é com ele que
ganham a vida, mas estudar não serve pra nada, nem melhora as pessoas, ao
contrário, torna-as ainda mais cruéis.”
“Elena ficou mais cruel?”
“Não, ela não.”
“E por quê?”
Lila meteu o gorro de lã na cabeça do filho:
“Desde pequenas fizemos um pacto: a cruel sou eu.”
38.

No carro ela atacou Pasquale (você virou o escravo dessa gente?), e ele a
deixou desabafar. Somente quando lhe pareceu que ela havia esgotado todas
as recriminações, ele começou com seu repertório político: a condição
operária no Sul, o estado de servidão que predominava ali, a chantagem
permanente, a fraqueza ou até mesmo a ausência de sindicatos, a necessidade
de forçar as situações e chegar à luta. Lila — disse a ela em dialeto, com um
tom comovido —, você tem medo de perder essa miséria que lhe pagam, e
tem razão, Gennaro precisa crescer. Mas eu sei que você é uma companheira
de verdade, sei que você compreende: nós aqui, trabalhadores, nunca
estivemos nem mesmo dentro do piso salarial, estamos fora de todas as
regras, estamos abaixo de zero. Por isso é uma blasfêmia dizer: me deixe em
paz, eu tenho meus problemas e vou me virar sozinha. Cada um tem de fazer,
no lugar que lhe couber, tudo o que for possível.
Lila estava exausta, ainda bem que Gennaro dormia no banco de trás
com o carrinho apertado na mão direita. Escutou o falatório de Pasquale em
ondas. De vez em quando lhe vinha à mente a bela casa do corso Vittorio
Emanuele, e a professora, e Armando, e Isabella, e Nino, que a abandonara
para encontrar em algum lugar uma mulher do tipo de Nadia, e Marco, que
tinha três anos e sabia ler bem melhor que seu filho. Que esforço inútil tentar
que Gennaro se tornasse inteligente. O menino já estava se perdendo, era
arrastado para trás, e ela não conseguia segurá-lo. Quando chegaram ao
portão de casa e ela se viu obrigada a convidar Pasquale a subir, disse a ele:
não sei o que Enzo cozinhou, ele cozinha muito mal, talvez não seja bom
para você — e esperou que ele fosse embora. Mas Pasquale respondeu: fico
só dez minutos e depois saio — de modo que ela tocou seu braço com a
ponta dos dedos e murmurou:
“Não diga nada a seu amigo.”
“Nada sobre o quê?”
“Sobre os fascistas. Se ele souber, vai esta noite mesmo quebrar a cara
de Gino.”
“Você gosta dele?”
“Não gostaria de fazer mal a ele.”
“Ah.”
“É isso mesmo.”
“Olhe que Enzo sabe melhor que eu e você o que é preciso ser feito.”
“Sim, mas de todo modo não diga nada a ele.”
Pasquale concordou com uma expressão preocupada. Carregou
Gennaro, que se recusava a acordar, e o levou escada acima, seguido por
Lila, que resmungava descontente: que droga de dia, estou morta de cansaço,
você e seus amigos me meteram numa enrascada enorme. Contaram a Enzo
que tinham estado na casa de Nadia para uma reunião, e Pasquale não lhe
deu espaço para fazer perguntas, conversou sem parar até meia-noite. Disse
que Nápoles, assim como o mundo inteiro, era um caldeirão fervendo de
vida nova, elogiou muito Armando, que, como bom médico que era, em vez
de pensar na carreira, tratava de graça quem não tinha dinheiro, cuidava dos
meninos dos Bairros e, com Nadia e Isabella, estava metido em mil projetos
a serviço do povo, uma escola infantil, um ambulatório. Disse que ninguém
estava mais só, os companheiros ajudavam os companheiros, a cidade vivia
momentos maravilhosos. Vocês, disse, não devem ficar trancados em casa,
precisam sair, precisamos estar mais tempo juntos. E por fim anunciou que,
para ele, não dava para continuar no partido comunista: muita coisa ruim,
muitos compromissos nacionais e internacionais, não aguentava mais aquele
marasmo. Enzo ficou bastante perturbado com aquela decisão, o debate entre
eles se acendeu e estendeu noite adentro, o partido é o partido, não, sim, não,
chega de políticas de estabilização, é preciso atacar o sistema em suas
estruturas. Lila se aborreceu depressa, foi pôr Gennaro na cama, que tinha
jantado queixoso por causa do sono, e não voltou mais.
Mas permaneceu acordada mesmo quando Pasquale foi embora e os
sinais da presença de Enzo pela casa se apagaram. Mediu a febre, estava
com trinta e oito. Tornou a lembrar o momento em que Gennaro teve
dificuldade de ler. Mas que espécie de palavra ela pusera diante dos olhos
do menino: destinação. Com certeza Gennaro nunca a escutara. Não basta
conhecer o alfabeto, pensou, as dificuldades são muitas. Se Nino o tivesse
gerado com Nadia, aquele filho teria um destino totalmente diverso. Sentiu-
se uma mãe falhada. No entanto fui eu quem o quis, pensou, era de Stefano
que eu não desejava filhos; de Nino, sim. De Nino ela gostara de verdade.
Desejara-o intensamente, desejara dar prazer a ele e, pelo prazer dele, fizera
de bom grado tudo o que, para seu marido, tinha tido que fazer à força,
vencendo o asco, só para não ser morta. Mas o que se dizia que ela deveria
experimentar ao se sentir penetrada, isso ela nunca experimentara, era certo,
e não só com Stefano, mas também com Nino. Os homens eram fixados
demais nele, no pau, tinham um enorme orgulho dele e estavam convencidos
de que você devia admirá-lo ainda mais que eles. Também Gennaro não
parava de brincar com sua coisinha, às vezes era embaraçoso como ele o
girava entre as mãos, o puxava. Lila temia que se machucasse, e até para
lavá-lo e fazê-lo urinar tivera de esforçar-se, habituar-se. Enzo era tão
discreto, nunca de cueca pela casa, nunca uma palavra vulgar. Essa era a
razão por que sentia um intenso afeto por ele e lhe era agradecida por sua
espera devotada no outro cômodo, que nunca resultara em um movimento
equivocado. O controle que ele exercia sobre as coisas e sobre si lhe
pareceu o único consolo. Mas depois o sentimento de culpa aflorou: o que a
consolava com certeza o fazia sofrer. E o pensamento de que Enzo sofresse
por sua causa se somou a todas as coisas ruins daquele dia. Os fatos e as
falas lhe voltearam desordenadamente na cabeça por muito tempo. Tons de
voz, palavras isoladas. Como se comportar amanhã na fábrica? Realmente
havia todo aquele fervor em Nápoles e no mundo ou eram Pasquale, Nadia e
Armando que o imaginavam para sedar suas próprias ânsias, por tédio, para
criar coragem? Devia confiar nisso, com o risco de cair prisioneira de
fantasias? Ou era melhor tentar falar de novo com Bruno para evitar
problemas? Mas de fato seria útil buscar amansá-lo, com o risco de que ele
a atacasse de novo? Servia de alguma coisa dobrar-se à prepotência de
Filippo e dos chefetes? Não avançou muito. Por fim, sonolenta, chegou a um
velho princípio que nós duas tínhamos assimilado desde pequenas. Chegou à
conclusão de que, para se salvar, para salvar Gennaro, deveria intimidar
aqueles que a mantinham sob intimidação, deveria meter medo em quem
queria amedrontá-la. Adormeceu com a intenção de causar estragos: a
Nadia, demonstrando que ela era apenas uma garotinha de boa família, cheia
de conversas melosas; a Soccavo, lhe estragando o prazer de farejar salames
e mulheres na câmara de maturação.
39.

Acordou às cinco da manhã toda suada, já sem febre. Não encontrou os


estudantes no portão da fábrica, mas os fascistas. Os mesmos automóveis, as
mesmas caras do dia anterior: gritavam slogans, distribuíam folhetos. Lila
sentiu que preparavam novas violências e seguiu em frente de cabeça baixa,
mãos no bolso, esperando entrar no estabelecimento antes da pancadaria.
Mas Gino parou em sua frente.
“Ainda sabe ler?”, perguntou em dialeto, estendendo-lhe um folheto.
Ela continuou com as mãos enterradas no casaco e replicou:
“Eu, sim; mas você alguma vez aprendeu?”
Então tentou seguir seu caminho, inutilmente. Gino a impediu, meteu-lhe
o folheto à força num bolso com um gesto tão violento que arranhou a mão
dela com a unha. Lila amassou o papel com calma.
“Não serve nem para limpar a bunda”, disse, e o jogou fora.
“Pegue de volta”, ordenou o filho do farmacêutico agarrando-a pelo
braço, “pegue logo e tome cuidado: ontem à tarde pedi ao corno do seu
marido uma autorização para quebrar sua cara, e ele me disse que sim.”
Lila o encarou bem nos olhos:
“E para quebrar minha cara você foi pedir autorização a meu marido?
Solte meu braço imediatamente, strunz.”
Naquele momento veio vindo Edo, que, em vez de fingir que não era
nada — como era de esperar —, parou.
“Ele está incomodando você, Cerù?”
Foi um instante. Gino lhe deu um murro na cara, Edo desabou. O
coração de Lila subiu à garganta, tudo começou a ganhar velocidade,
apanhou uma pedra e, apertando-a firmemente, acertou o filho do
farmacêutico no peito. Houve um instante demorado. Enquanto Gino a
empurrava, lançando-a contra um poste de luz, enquanto Edo tentava se
levantar, um outro carro chegou pela estrada de terra levantando poeira. Lila
o reconheceu, era a lata-velha de Pasquale. Pronto, pensou, Armando me deu
ouvidos, talvez até Nadia, são gente educada, mas Pasquale não resistiu e
está vindo fazer a guerra. De fato, as portas se abriram e com ele saíram
mais quatro. Era gente dos canteiros de obras, carregavam porretes nodosos
com os quais começaram a bater nos fascistas com uma ferocidade metódica,
sem raiva, apenas um golpe, mas preciso e destinado a abatê-los. Lila
percebeu logo que Pasquale mirava Gino e, como Gino ainda estava a
poucos passos dela, o agarrou pelo braço com ambas as mãos e lhe disse
rindo: acho melhor você ir embora, se não vão matá-lo. Mas ele não foi, ao
contrário, empurrou-a de novo e se lançou contra Pasquale. Lila então
ajudou Edo a se levantar, tentou arrastá-lo para o pátio, mas foi difícil: ele
era pesado e se contorcia, berrava insultos, sangrava. Só se acalmou um
pouco quando viu Pasquale acertar Gino com o porrete e estendê-lo no chão.
A essa altura a confusão era grande: velhos destroços de objetos recolhidos
na beira da estrada voavam que nem projéteis, além de cusparadas e
insultos. Pasquale tinha deixado Gino desacordado e, junto com outro, um
homem vestindo apenas uma malha de frio sobre largas calças azuis sujas de
cal, correu para o pátio. Ambos agora davam pauladas na guarita de Filippo,
que se trancara ali dentro aterrorizado. Arrebentavam os vidros e berravam
obscenidades, enquanto se ouvia a sirene dos policiais que se aproximavam.
Lila experimentou mais uma vez o prazer ansioso da violência. Sim, pensou,
é preciso meter medo em quem quer amedrontar, não há outra saída, porrada
contra porrada, o que você tirar de mim eu tomo de volta, o que me fizer eu
devolvo. Porém, enquanto Pasquale e seus amigos já entravam nos carros,
enquanto os fascistas faziam o mesmo carregando Gino, enquanto a sirene da
polícia se aproximava cada vez mais, ela sentiu com espanto que seu
coração estava se tornando como a mola excessivamente carregada de um
brinquedo e entendeu que devia encontrar o mais rápido possível um lugar
onde sentar. Uma vez dentro do estabelecimento, estendeu-se no átrio, as
costas apoiadas na parede, e tentou se acalmar. Teresa, a mulherona de seus
quarenta anos que trabalhava na descarnagem, começou a cuidar de Edo,
limpou o sangue de seu rosto e zombou de Lila:
“Primeiro você arranca uma orelha do coitado e depois o socorre?
Devia tê-lo deixado lá fora.”
“Ele me ajudou, e eu ajudei ele.”
Teresa falou a Edo, incrédula:
“Você a ajudou?”
Ele resmungou:
“Não queria que um estranho quebrasse a cara dela, eu mesmo quero
fazer isso.”
A mulher disse:
“Viram como Filippo se cagou todo?”
“Bem feito pra ele”, resmungou Edo, “pena que só arrebentaram a
guarita.”
Teresa se dirigiu a Lila e perguntou com alguma malícia:
“Foi você que chamou os comunistas? Diga a verdade.”
Ela só está brincando — perguntou-se Lila — ou é uma espiã e daqui a
pouco vai correr para contar ao patrão?
“Não”, respondeu, “mas sei muito bem quem chamou os fascistas.”
“Quem?”
“Soccavo.”
40.

Pasquale apareceu de noite depois do jantar, com uma cara preocupada, e


convidou Enzo a uma reunião na seção de San Giovanni a Teduccio. Lila
ficou sozinha com ele uns poucos minutos e lhe disse:
“Bela cagada, a de hoje de manhã.”
“Faço o que é necessário.”
“Seus amigos estavam de acordo?”
“Quem são meus amigos?”
“Nadia e o irmão dela.”
“Claro que estavam de acordo.”
“Mas ficaram em casa.”
Pasquale murmurou:
“E quem disse que ficaram em casa?”
Não estava de bom humor, aliás, parecia esvaziado de energias, como
se o exercício da violência lhe tivesse exaurido a ânsia de agir. De resto,
não pediu a ela que fosse à reunião, fez o convite apenas a Enzo, o que nunca
tinha acontecido, nem quando já estava tarde da noite, fazia frio e era
improvável que ela levasse Gennaro para fora. Talvez eles tivessem outros
combates de macho pela frente. Talvez estivesse chateado com ela porque,
com sua resistência à luta, estragava a imagem dele perante Nadia e
Armando. O certo é que estava irritado com o tom crítico com que ela
aludira à expedição da manhã. Está convencido — pensou Lila — de que eu
não compreendi por que ele bateu em Gino daquele modo, por que queria
arrebentar a cabeça do vigia. Bons ou maus, todos os homens acham que, a
cada ação deles, você deve colocá-los num altar como um são Jorge
matando o dragão. Me considera uma ingrata, fez isso para se vingar, queria
que eu ao menos lhe agradecesse.
Quando os dois saíram, ela se deitou e leu até tarde as publicações
sobre trabalho e sindicato que Pasquale lhes dera tempos atrás. Serviram
para que ela se mantivesse ancorada nas coisas pálidas do cotidiano, temia o
silêncio da casa, o sono, a desobediência das batidas do coração, as formas
que ameaçavam deteriorar-se a cada momento. Apesar do cansaço, leu muito
e, segundo seu costume, entusiasmou-se e aprendeu depressa muitíssimas
coisas. Tentando se sentir segura, esforçou-se para esperar o retorno de
Enzo. Mas ele não voltou, o som da respiração regular de Gennaro acabou se
tornando hipnótico, e ela caiu no sono.
Na manhã seguinte, Edo e a mulher da descarnagem, Teresa,
começaram a zumbir em torno dela com palavras e gestos timidamente
amigáveis. E Lila não só não os rechaçou, mas também tratou com gentileza
os outros colegas. Mostrou-se disponível com quem reclamava,
compreensiva com quem se enfurecia, solidária com quem praguejava contra
os abusos. Escorou o incômodo de um ao incômodo de outro, soldando tudo
com boas palavras. Acima de tudo, nos dias seguintes, deu cada vez mais
corda a Edo, a Teresa e a seu minúsculo grupo, transformando o intervalo de
almoço num momento de conchavo. E como, quando queria, sabia dar a
impressão de que não era ela quem propunha e dispunha, mas os outros,
encontrou em torno de si cada vez mais gente satisfeita em ouvir que as
próprias lamúrias, genéricas, eram nada menos que necessidades justas e
urgentes. Somou as reivindicações da descarnagem às das câmaras e às das
piscinas e descobriu, ela mesma com certa surpresa, que os problemas de um
setor dependiam dos problemas de outro setor e que todos juntos eram elos
de uma mesma cadeia de exploração. Fez uma lista detalhada das mazelas
originadas das condições de trabalho: danos às mãos, aos ossos, aos
pulmões. Recolheu informações suficientes para demonstrar que todo o
estabelecimento estava em péssimo estado, que as condições higiênicas eram
lastimáveis, que se trabalhava com materiais às vezes deteriorados, às vezes
de procedência duvidosa. Quando pôde falar pessoalmente com Pasquale e
explicar o que tinha levantado em pouquíssimo tempo, ele, de mal-humorado
que estava, ficou boquiaberto de maravilha e disse, radiante: eu jurava que
você faria isso, e marcou para ela um encontro com um tal de Capone,
secretário da Câmara do Trabalho.
Lila passou a limpo com sua bela letra tudo o que tinha recolhido, preto
no branco, e levou a cópia a Capone. O secretário examinou as folhas e
também ficou entusiasmado. Disse-lhe coisas do tipo: de onde você
apareceu, companheira, você fez um trabalho precioso, excelente. E mais:
nós nunca conseguimos entrar na Soccavo, ali dentro são todos fascistas, mas
agora que você está lá as coisas vão mudar.
“Como devemos agir?”, ela perguntou.
“Façam uma comissão.”
“Já temos uma comissão.”
“Ótimo: então a primeira coisa é pôr uma ordem nisto aqui.”
“Pôr uma ordem em que sentido?”
Capone olhou para Pasquale, Pasquale não disse nada.
“Vocês estão reivindicando coisas demais ao mesmo tempo, até coisas
que ninguém nunca reivindicou, é preciso estabelecer prioridades.”
“Ali dentro, tudo é prioridade.”
“Eu sei, mas é uma questão de tática: se vocês quiserem tudo de uma
vez só, correm o risco de amargar uma derrota.”
Lila reduziu os olhos a uma fenda, houve algum bate-boca. Entre outras
coisas, veio à tona que a comissão não podia tratar diretamente com o dono
da empresa, era preciso a mediação do sindicato.
“E eu não sou o sindicato?”, ela se exaltou.
“Claro, mas há tempos e modos.”
Desentenderam-se de novo. Capone disse: vejam lá vocês, abram a
discussão, sei lá, sobre os turnos, as férias, as horas extras, e depois se
segue adiante. De todo modo — concluiu —, você não sabe como estou
contente de ter uma companheira como você, é uma coisa rara, vamos nos
coordenar, faremos grandes avanços no setor alimentar, as mulheres que se
engajam são muito poucas. Em seguida, pôs a mão na carteira que trazia no
bolso posterior da calça e perguntou a ela:
“Quer um pouco de dinheiro para as despesas?”
“Que despesas?”
“O mimeógrafo, o papel, o tempo que gastou nisso, coisas assim.”
“Não.”
Capone recolocou a carteira no bolso.
“Mas não vá desanimar e desaparecer, Lina, vamos ficar em contato.
Olha, vou escrever aqui nome e sobrenome, quero falar de você no
sindicato, precisamos utilizá-la.”
Lila foi embora insatisfeita e disse a Pasquale: que tipo de gente você
me apresenta? Mas ele a tranquilizou, garantiu que Capone era uma ótima
pessoa, falou que ele tinha razão, que era preciso entender, havia a estratégia
e havia a tática. Depois se tomou de entusiasmo, quase se comoveu, fez que
ia abraçá-la, voltou atrás e disse: vá em frente, Lina, que se foda a
burocracia, enquanto isso informo o comitê.
Lila não fez nenhuma seleção dos objetivos. Limitou-se a reduzir a
primeira redação, que era muito ampla, a uma folha bem densa, que entregou
a Edo: uma lista de demandas relativas à organização do trabalho, aos
ritmos, ao estado geral do estabelecimento, à qualidade do produto, ao risco
permanente de se ferir ou contrair doenças, às indenizações miseráveis, aos
aumentos salariais. Nessa altura se pôs a questão de quem iria levar aquela
lista a Bruno.
“Vá você”, disse Lila a Edo.
“Eu perco as estribeiras facilmente.”
“Melhor assim.”
“Não sou adequado.”
“Você é adequadíssimo.”
“Não, vá você, que é associada ao sindicato. Além disso, você sabe
falar bem, rapidinho vai colocá-lo no lugar.”
41.

Lila sabia desde o início que a tarefa caberia a ela. Ganhou tempo, deixou
Gennaro com a vizinha, foi com Pasquale a uma reunião do comitê na via dei
Tribunali convocada para discutir também a situação na Soccavo. Dessa vez
eram doze pessoas, incluindo Nadia, Armando, Isabella e Pasquale. Lila fez
circular a cópia que tinha preparado para Capone, já que, naquela primeira
versão, cada demanda estava mais bem argumentada. Nadia leu com atenção.
Por fim, disse: Pasquale tinha razão, você é daquelas que não se omitem, em
pouquíssimo tempo fez um trabalho excelente. E elogiou com um tom
sinceramente admirado não só a substância política e sindical do documento,
mas também a escrita: como você é talentosa, disse, quando já se viu que se
pode escrever sobre esse assunto desta maneira? No entanto, depois dessa
premissa, desaconselhou que ela partisse logo para um confronto direto com
Soccavo. E Armando expressou a mesma opinião.
“Vamos esperar para nos reforçar e crescer”, disse, “a fabriqueta de
Soccavo é uma realidade que precisa ser amadurecida. Nós colocamos um
pé lá, e isso já é um grande resultado, não podemos nos arriscar a sermos
varridos por pura imprudência.”
Dario perguntou:
“O que vocês propõem?”
Nadia respondeu, mas se dirigindo a Lila:
“Vamos fazer uma reunião mais ampla. Vamos nos encontrar o mais
rapidamente possível com seus companheiros, consolidamos a estrutura de
vocês e, se for o caso, com o seu material, preparamos outro panfleto
mimeografado.”
Diante daquelas cautelas inesperadas, Lila sentiu uma grande e
agressiva satisfação. Disse arrogante:
“Então vocês acham que eu fiz todo esse esforço e estou pondo meu
emprego em risco para permitir que vocês façam uma reunião ampliada e
preparem um outro texto?”
Mas não conseguiu gozar plenamente aquela sensação de revanche. De
repente Nadia, que estava bem à sua frente, começou a vibrar como um vidro
mal fixado e se despedaçou. Sem um motivo aparente, a garganta de Lila se
fechou, e os mínimos gestos dos presentes, até um bater de cílios, se
aceleraram. Ela fechou os olhos, apoiou as costas no espaldar da cadeira
bamba em que estava sentada e se sentiu sufocar.
“Você está bem?”, perguntou Armando.
Pasquale se agitou:
“Ela se cansa demais”, disse. “Lina, o que foi, quer um copo d’água?”
Dario correu para buscar a água, enquanto Armando checava seu pulso
e Pasquale, nervoso, insistia:
“O que você está sentindo? Alongue as pernas, respire.”
Lila sussurrou que estava bem, tirou bruscamente o pulso das mãos de
Armando, disse que só queria ser deixada um minuto em paz. Mas, depois
que Dario voltou com a água e ela deu um pequeno gole, murmurou que não
era nada, só um pouco de gripe.
“Está com febre?”, perguntou Armando com tranquilidade.
“Hoje não.”
“Tosse, tem dificuldade de respirar?”
“Um pouco, sinto o coração batendo na garganta.”
“Agora está um pouco melhor?”
“Sim.”
“Venha para a outra sala.”
Lila relutava e, no entanto, sentia uma grande angústia por dentro. Por
fim obedeceu, ergueu-se com dificuldade e acompanhou Armando, que nesse
meio-tempo pegara uma bolsa de couro preto com fivelas douradas. Foram
para um cômodo que Lila ainda não tinha visto, espaçoso, frio, três camas de
campanha sobre as quais havia velhos colchões de aparência imunda, um
armário com um espelho rachado, um gaveteiro. Sentou-se exausta em uma
das camas, não se submetia a uma consulta médica desde a época da
gravidez. Quando ele a indagou sobre os sintomas, omitiu tudo, só
mencionou o peso no peito, mas acrescentou: é uma bobagem.
Armando a examinou em silêncio, e ela imediatamente odiou aquele
silêncio, pareceu-lhe um silêncio pérfido. Aquele homem distante, limpo,
mesmo durante as perguntas parecia não confiar nem um pouco nas
respostas; submetia-a a análises como se somente seu corpo, potencializado
por instrumentos e competências, fosse um dispositivo confiável. Ele a
auscultava, apalpava, perscrutava e ao mesmo tempo lhe impunha uma
espera de palavras definitivas sobre o que estava acontecendo em seu peito,
na barriga, na garganta, locais aparentemente bem conhecidos que agora ela
sentia como totalmente estranhos. Por fim Armando perguntou:
“Você dorme bem?”
“Muito bem.”
“Quanto?”
“Depende.”
“De quê?”
“Dos pensamentos.”
“Come bem?”
“Quanto tenho vontade.”
“Às vezes tem dificuldade de respirar?”
“Não.”
“Dores no tórax?”
“Um peso, mas leve.”
“Suores frios?”
“Não.”
“Já aconteceu de desmaiar ou se sentir tonta?”
“Não.”
“Você é regular?”
“Em quê?”
“Nas menstruações.”
“Não.”
“Quando menstruou pela última vez?”
“Não sei.”
“Você não registra?”
“É preciso registrar?”
“É melhor. Usa anticoncepcionais?”
“O que você quer dizer?”
“Preservativos, diu, pílula?”
“Que pílula?”
“Um medicamento novo: você toma e impede a gravidez.”
“É verdade?”
“Com certeza que sim. Seu marido nunca usou um preservativo?”
“Não tenho mais marido.”
“Ele a deixou?”
“Eu o deixei.”
“Quando estavam juntos, ele usava?”
“Não sei nem como é um preservativo.”
“Você tem uma vida sexual regular?”
“Qual a necessidade de falar sobre essas coisas?”
“Se não quiser, não falamos.”
“Não quero.”
Armando recolocou seus instrumentos na bolsa, sentou-se numa cadeira
meio destroçada, deu um suspiro.
“Você precisa ir mais devagar, Lina: você forçou seu corpo demais.”
“O que isso significa?”
“Você está desnutrida, debilitada, você se descuidou muito.”
“E o que mais?”
“Tem um pouco de catarro, vou lhe dar um xarope.”
“E o que mais?”
“Você deveria fazer uma série de exames, o fígado está um pouco
inchado.”
“Não tenho tempo para exames, me dê um remédio.”
Armando balançou a cabeça, descontente.
“Escute”, disse, “já entendi que com você é melhor ser direto: você tem
um sopro.”
“O que é isso?”
“Um problema no coração, e poderia ser algo não benigno.”
Lila fez uma expressão de ansiedade.
“O que você quer dizer? Que eu vou morrer?”
Ele sorriu e disse:
“Não, você só precisa fazer um exame com um cardiologista. Venha me
ver amanhã no hospital e eu mando você a um bom especialista.”
Lila franziu o cenho, se levantou e disse fria:
“Amanhã tenho compromisso, vou ver Soccavo.”
42.

O tom preocupado de Pasquale a exasperou. Enquanto dirigia para casa,


perguntou a ela:
“O que Armando lhe disse? Como você está?”
“Estou bem, preciso me alimentar melhor.”
“Está vendo? Você não se cuida.”
Lila esbravejou:
“Pasquà, você não é meu pai, não é meu irmão, não é ninguém. Me
deixe em paz, combinado?”
“Não posso me preocupar com você?”
“Não, e tome cuidado com o que faz e o que diz, especialmente com
Enzo: se você disser a ele que eu me senti mal — o que não é verdade, só
tive uma tontura —, corremos o risco de romper a amizade.”
“Tire dois dias de descanso e não vá falar com Soccavo: tanto Capone
quanto o comitê aconselharam você a não fazer isso, é uma questão de
oportunidade política.”
“Estou me lixando para a oportunidade política: foram vocês que me
meteram nessa enrascada, e agora eu faço o que quiser.”
Não o convidou a subir, e ele foi embora aborrecido. Uma vez em casa,
Lila mimou muito Gennaro, preparou o jantar e esperou por Enzo. Agora
tinha a impressão de estar constantemente com a respiração curta. Como
Enzo demorasse, deu de comer a Gennaro e teve medo de que fosse uma
daquelas noites em que ele se encontrava com mulheres e voltava altas
horas. Quando o menino derrubou um copo cheio d’água, ela interrompeu
toda ternura e gritou com ele como se fosse um adulto, em dialeto: quer ficar
um pouco parado, quer que eu lhe dê uns tapas, por que você quer arruinar
minha vida assim?
Enzo voltou naquele momento, ela tentou ser gentil. Comeram, mas Lila
teve a impressão de que as garfadas tinham dificuldade de descer ao
estômago, arranhando-lhe o peito. Assim que Gennaro adormeceu, os dois se
dedicaram às apostilas do curso de Zurique, mas Enzo se cansou logo e
tentou várias vezes, gentilmente, ir dormir. Foram tentativas vãs, Lila queria
ir até tarde, tinha medo de se fechar em seu quarto, temia que os sintomas
omitidos a Armando aparecessem assim que ela se visse sozinha no escuro,
todos juntos, levando-a à morte. Ele lhe perguntou baixinho:
“O que é que você tem?”
“Nada.”
“Está sempre pra lá e pra cá com Pasquale: qual o segredo de vocês?”
“São coisas do sindicato, ele me inscreveu nele e agora preciso
participar.”
Enzo fez uma expressão incomodada, e ela perguntou:
“O que foi?”
“Pasquale me contou o que você está fazendo na fábrica. Você
conversou com ele e conversou com o pessoal do comitê. Por que o único
que não merece saber sou eu?”
Lila ficou nervosa, se levantou, foi ao banheiro. Pasquale não tinha
resistido. O que ele tinha contado? Apenas a luta sindical que queria travar
com Soccavo ou também sobre Gino, o mal-estar que ela sentira na via dei
Tribunali? Não conseguira ficar calado, a amizade entre homens tem seus
pactos não escritos, mas sólidos, não como a amizade entre mulheres. Deu
descarga, voltou a Enzo, disse:
“Pasquale é um dedo-duro.”
“Pasquale é um amigo. Já você é o quê?”
O tom lhe fez mal, cedeu de modo inesperado, de golpe. Os olhos se
encheram de lágrimas, e tentou inutilmente mandá-las para dentro, humilhada
pela própria fraqueza.
“Não quero lhe causar mais problemas do que já lhe causei”, soluçou,
“tenho medo de que você me mande embora.” Então assoou o nariz e
acrescentou num sussurro: “Posso dormir com você?”
Enzo a fixou incrédulo.
“Dormir como?”
“Como você quiser.”
“E você quer?”
Lila murmurou, fixando o jarro de água no centro da mesa, um jarro
engraçado, de que Gennaro gostava muito, com uma cabeça de galinha:
“O essencial é que você fique perto de mim.”
Enzo balançou a cabeça, desanimado.
“Você não gosta de mim.”
“Gosto, mas não sinto nada.”
“Não sente nada por mim?”
“Nada disso, eu gosto muito de você e todas as noites desejo que me
chame e me abrace. Mas além disso não desejo mais nada.”
Enzo ficou pálido, o rosto bonito se contraiu como numa dor
insuportável, constatou:
“Tem aversão por mim.”
“Não, não, não: vamos fazer o que você quiser, agora, estou pronta.”
Ele deu um sorriso desolado e ficou um instante em silêncio. Depois
não suportou a ansiedade dela e balbuciou:
“Vamos dormir.”
“Cada um em seu quarto?”
“Não, no meu.”
Aliviada, Lila foi se despir. Colocou a camisola e foi até ele tremendo
de frio. Enzo já estava na cama.
“Posso me deitar aqui?”
“Pode.”
Deslizou sob as cobertas, apoiou a cabeça em seu ombro, passou um
braço sobre seu peito. Ele ficou imóvel, ela logo sentiu que emanava um
calor violentíssimo.
“Estou com os pés gelados”, sussurrou, “posso encostá-los nos seus?”
“Sim.”
“Posso fazer carinho em você?”
“Me deixe quieto.”
Aos poucos o frio passou. A dor no peito se dissolveu, esqueceu-se do
aperto na garganta, abandonou-se à trégua da tepidez.
“Posso dormir?”, perguntou a ele, aturdida de cansaço.
“Durma.”
43.

Ao amanhecer teve um sobressalto, seu corpo recordou a ela que precisava


despertar. Num instante lhe chegaram os maus pensamentos, todos
nitidíssimos: o coração doente, as regressões de Gennaro, os fascistas do
bairro, o pedantismo de Nadia, a inconfiabilidade de Pasquale, a lista das
reivindicações. Somente depois se deu conta de que havia dormido com
Enzo, mas que ele já não estava na cama. Levantou-se depressa, justo a
tempo de ouvir a porta de casa se fechando. Será que ele se levantara assim
que ela tinha pegado no sono? Ficara acordado a noite toda? Tinha dormido
no outro quarto com o menino? Ou adormecera com ela, esquecendo-se de
todo desejo? Com certeza tinha tomado café sozinho após deixar a mesa
posta para ela e Gennaro. Foi embora trabalhar, sem palavras, os
pensamentos na cabeça.
Depois de ter entregue o filho à vizinha, Lila também correu para a
fábrica.
“Então, já se decidiu?”, perguntou Edo um tanto mal-humorado.
“Me decido quando quiser”, respondeu Lila, voltando ao velho tom.
“Somos uma comissão, você precisa nos informar.”
“Vocês já fizeram a lista circular?”
“Já.”
“E o que os outros estão dizendo?”
“Quem cala consente.”
“Não”, disse ela, “quem cala se caga nas calças.”
Capone tinha razão, Nadia e Armando, também. Era uma iniciativa
frágil, uma forçação. Lila trabalhou no corte da carne com afinco, tinha
vontade de machucar e se machucar. Meter a faca na mão, fazê-la escapar,
agora, da carne morta para a carne dela, viva. Urrar, arremessar-se contra os
outros, fazer com que todos pagassem por sua incapacidade de achar um
equilíbrio. Ah, Lina Cerullo, você é incorrigível. Por que preparou aquela
lista? Não quer ser explorada? Quer melhorar sua condição e a desse
pessoal? Está convencida de que você, eles, começarão a partir daqui, disto
que vocês são agora, e depois se unirão à marcha vitoriosa do proletariado
de todo o mundo? Que nada. Marcha para se tornar o quê? Ainda e sempre
operários? Operários que labutam o dia inteiro, mas no poder? Cretinices.
Cortina de fumaça para dourar a pílula do cansaço. Você bem sabe que é uma
condição terrível, não deve ser melhorada, mas eliminada, você sabe desde
pequenininha. Melhorar, melhorar-se? Você, por exemplo, melhorou por
acaso, tornou-se alguém como Nadia ou Isabella? Seu irmão melhorou,
tornou-se alguém como Armando? E seu filho, é como Marco? Não, nós
continuamos nós, e ele, eles. Então por que você não se resigna? Culpa da
cabeça que não sabe acalmar-se, procura continuamente uma maneira de
funcionar. Desenhar sapatos. Batalhar para construir uma fábrica de
calçados. Reescrever os artigos de Nino, não dar trégua a ele até que fizesse
como você queria. Usar a seu modo as apostilas de Zurique, com Enzo. E
agora demonstrar a Nadia que, se ela faz a revolução, você faz mais ainda. A
cabeça, ah, sim, o mal está lá, é pela insatisfação da cabeça que o corpo está
adoecendo. Estou cansada de mim, de tudo. Estou cansada até de Gennaro: o
destino dele, se tiver sorte, é acabar num lugar como este, rastejando por
cinco liras a mais diante de algum patrão. E aí? Aí, Cerullo, assuma suas
responsabilidades e faça o que sempre teve em mente: assustar Soccavo,
tirar dele o vício de comer as operárias dentro da maturação. Mostre o que
você soube preparar ao estudante com cara de lobo. Naquele verão em
Ischia. As bebidas, a casa de Forio, a cama luxuosa em que esteve com
Nino. O dinheiro vinha deste lugar, deste mau cheiro, destes dias passados
no asco, desta labuta paga com poucas liras. O que eu cortei aqui? Está
saindo pra fora uma gosma amarelada, que nojo. O mundo gira, mas pelo
menos, se cair, se quebra.
Logo após a pausa para o almoço se decidiu e disse a Edo: vou lá. Mas
nem teve tempo de tirar o avental, foi a secretária do patrão que se
apresentou na descarnagem para dizer:
“Doutor Soccavo quer lhe falar com urgência no escritório dele.”
Lila achou que algum espião já tivesse dito a Bruno o que vinha pela
frente. Interrompeu o trabalho, pegou a folha de reivindicações no armário e
subiu. Bateu na porta do escritório, entrou. No aposento não havia apenas
Bruno. Sentado numa poltrona, cigarro na boca, encontrou Michele Solara.
44.

Sabia desde sempre que, mais cedo ou mais tarde, Michele reapareceria em
sua vida, mas encontrá-lo no escritório de Bruno a assustou tanto quanto, na
infância, os espíritos nos recantos escuros da casa. O que ele está fazendo
aqui dentro, pensou, preciso ir embora. Mas, ao vê-la, Solara ficou de pé,
abriu os braços, pareceu realmente emocionado. Disse em italiano: Lina, que
prazer, como estou contente. Queria abraçá-la, e o teria feito se ela não o
tivesse interrompido com um gesto irrefletido de repulsa. Michele ficou por
alguns segundos de braços abertos e então, desordenadamente, tocou com
uma mão a maçã do rosto, a nuca, e com a outra indicou Lila a Soccavo,
dessa vez falando de modo fingido:
“Mas olha só, nem posso acreditar: quer dizer que, no meio dos
salames, você realmente mantinha a senhora Carracci escondida?”
Lila se dirigiu a Bruno bruscamente:
“Volto mais tarde.”
“Sente-se”, disse ele, soturno.
“Prefiro ficar de pé.”
“Sente-se que assim você se cansa.”
Ela sacudiu a cabeça, permaneceu de pé, e Michele lançou um sorriso
cúmplice a Soccavo:
“Ela é assim mesmo, desista, não obedece nunca.”
Lila teve a impressão de que a voz de Michele estava mais potente que
no passado, pronunciava as sílabas finais de cada palavra como se naqueles
últimos anos tivesse feito exercícios de pronúncia. Talvez para poupar as
forças, talvez apenas para contradizê-lo, mudou de ideia e se sentou.
Michele também se reacomodou, mas todo voltado na direção dela, quase
como se a partir daquele momento Bruno não estivesse mais na sala. Ele a
esquadrinhou bem, com simpatia, e falou demonstrando amargura: suas mãos
estão destruídas, que pena, quando garotinha eram tão lindas. Então
desandou a falar da loja na piazza dei Martiri com um tom informativo, como
se Lila ainda fosse sua funcionária e eles estivessem tendo um encontro de
trabalho. Fez menção a novas estantes, a novos pontos de iluminação e disse
que tinha mandado murar de novo a porta do banheiro que dava para o pátio.
Lila se lembrou daquela porta e disse devagar, em dialeto:
“Estou cagando para sua loja.”
“Você quer dizer nossa: nós a inventamos juntos.”
“Nunca inventei nada com você.”
Michele sorriu mais uma vez, balançando a cabeça em sinal de suave
discordância. Quem põe dinheiro, disse, faz e desfaz exatamente como quem
trabalha com as mãos e com a cabeça. O dinheiro inventa os panoramas, as
situações, a vida das pessoas. Você não sabe quanta gente eu posso fazer
feliz ou arruinar somente assinando um cheque. Em seguida, voltou a
conversar com tranquilidade, parecia contente por contar as últimas notícias,
como se faz entre amigos. Começou com Alfonso, que tinha feito bem seu
trabalho na piazza dei Martiri e agora ganhava o suficiente para poder
constituir família. Mas não tinha vontade de se casar, preferia manter a pobre
Marisa na condição de noiva eterna e continuar fazendo o que bem quisesse.
Então ele, como empregador, o encorajara, uma vida regular faz bem aos
funcionários, oferecera-se para pagar a festa de núpcias, de modo que,
finalmente, em junho haveria o casamento. Está vendo, lhe disse, se você
tivesse continuado a trabalhar para mim, muito mais que Alfonso, eu lhe
daria tudo o que me pedisse, você seria uma rainha. Depois, sem lhe dar
tempo de replicar, bateu a cinza do cigarro num velho cinzeiro de bronze e
anunciou que ele também estava se casando, também em junho, naturalmente
com Gigliola, o grande amor de sua vida. Pena que não posso convidá-la,
lamentou, eu gostaria, mas não quero constranger seu marido. E passou a
falar de Stefano, de Ada e da filha deles, ora falando muito bem dos três, ora
sublinhando que as duas charcutarias não iam tão bem como antigamente.
Enquanto o dinheiro do pai durou — disse —, Carracci conseguiu se manter,
mas o comércio hoje é um mar agitado, há um bom tempo os negócios de
Stefano estão afundando, ele não aguenta mais. A concorrência — explicou
— tinha crescido, abriam-se continuamente novas lojas. O próprio Marcello,
por exemplo, metera na cabeça de ampliar o velho armazém de dom Carlo,
que Deus o tenha, e transformá-lo num desses locais onde se vendia de tudo,
de sabonetes a lâmpadas, de mortadelas a doces. E acabou fazendo, o
negócio ia de vento em popa, o batizara de Tutto per tutti.
“Está me dizendo que você e seu irmão conseguiram arruinar Stefano
também?”
“Que arruinar, Lina: nós apenas fazemos nosso trabalho, só isso. Aliás,
quando podemos ajudar os amigos, ajudamos de bom grado. Adivinhe quem
Marcello pôs para trabalhar na nova loja?”
“Não sei.”
“Seu irmão.”
“Reduziram Rino a funcionário de vocês?”
“Bem, você o abandonou, e aquele rapaz carrega nas costas seu pai, sua
mãe, um filho e Pinuccia, que está grávida de novo. O que ele podia fazer?
Procurou Marcello pedindo ajuda, e Marcello o ajudou. Não gostou da
notícia?”
Lila respondeu gélida:
“Não, não gostei, não gosto de nada do que vocês fazem.”
Michele fez um ar descontente, lembrou-se de Bruno:
“Está vendo? É como eu lhe dizia, o problema dela é que tem um
caráter ruim.”
Bruno esboçou um sorriso embaraçado, que pretendia ser cúmplice.
“É verdade.”
“Ela também lhe fez mal?”
“Um pouco.”
“Sabe que ela ainda era uma menina quando pôs um trinchete na
garganta de meu irmão, que era o dobro dela? E não estava brincando, se via
que estava pronta para usá-lo.”
“Está falando sério?”
“Estou. Essa aí tem coragem, é determinada.”
Lila cerrou os punhos com força, detestava a fraqueza que sentia no
corpo. A sala ondejava, os corpos das coisas mortas e das pessoas vivas se
dilatavam. Observou Michele apagar o toco do cigarro no cinzeiro. Estava
pondo muita energia naquilo, como se ele também, apesar do tom pacato,
estivesse buscando dar vazão a um mal-estar. Lila fixou seus dedos, que não
paravam de amassar o cigarro, as unhas brancas. Tempos atrás, pensou, me
pediu que eu me tornasse sua amante. Mas não é isso que ele realmente quer,
há algo mais aí, algo que não tem a ver com trepar e que nem ele mesmo
sabe explicar. Ficou fixado, é como uma superstição. Talvez acredite que eu
tenha algum poder, e que esse poder lhe é indispensável. Ele o deseja, mas
não consegue tomá-lo, e sofre com isso, é uma coisa que não pode tirar de
mim à força. Sim, talvez seja isso. Se não fosse assim, já teria me esmagado.
Mas por que justamente eu? O que identificou em mim que serviria a ele?
Não devo continuar aqui, sob os olhos dele, não devo ouvi-lo, me dá medo o
que ele vê e o que quer. Lila disse a Soccavo:
“Deixo uma coisa com você e estou indo.”
Ficou de pé, pronta a lhe entregar a lista das reivindicações, um gesto
que lhe pareceu cada vez mais desprovido de sentido e, no entanto,
necessário. Queria pôr a folha sobre a mesa, ao lado do cinzeiro, e sair
daquela sala. Mas a voz de Michele a deteve. Agora era decididamente
afetuosa, quase acariciante, como se tivesse intuído que ela tentava escapar-
lhe e ele quisesse apostar tudo para encantá-la e mantê-la ali. Continuou
falando a Soccavo:
“Está vendo? Ela tem mesmo um caráter ruim. Estou falando, e ela não
está nem aí, saca uma folha de papel, diz que quer ir embora. Mas por favor
a perdoe, porque o caráter ruim é compensado por enormes qualidades. Você
acha que contratou uma operária? Não é verdade. Esta senhora é muito,
muito mais que isso. Se você a deixar agir, ela transforma merda em ouro, é
capaz de reorganizar todo este barraco e levá-lo a níveis que você nem
sequer imagina. Por quê? Porque tem uma cabeça que normalmente não só
nenhuma mulher tem, mas nem nós, homens, temos. Estou de olho nela desde
que era quase uma menina, e é justamente assim. Ela desenhou sapatos que
até hoje eu vendo em Nápoles e fora da cidade, e ganho um monte de
dinheiro com isso. E me reformou uma loja na piazza dei Martiri com tanta
fantasia que a transformou num salão de encontro para os senhores de via
Chiaia, de Posillipo, do Vomero. E poderia fazer muitas, muitíssimas outras
coisas. Mas tem uma cabeça doida, acredita que sempre pode fazer o que lhe
dá na telha. Vai, vem, conserta, quebra. Você acha que eu a demiti? Não, um
belo dia, como se nada fosse, não veio mais trabalhar. Sumiu, assim. E, se
você torna a capturá-la, ela escapa de novo, é uma enguia. O problema dela
está aí: mesmo sendo muito inteligente, não consegue entender o que pode e
o que não pode fazer. Isso porque ainda não encontrou um homem de
verdade. Um homem de verdade sabe colocar a mulher nos trilhos. Não é
capaz de cozinhar? Aprende. Deixa a casa suja? Limpa. Um homem de
verdade pode fazer com que uma mulher faça tudo. Só para lhe dizer,
conheci recentemente uma fulana que não sabia assoviar. Bem, ficamos
juntos apenas duas horas — horas de fogo —, e depois disse a ela: vai,
assovia. E ela — você não vai acreditar — assoviou. Se você sabe educar
uma mulher, bem. Se não sabe, melhor desistir, que lhe faz mal.” Pronunciou
essas últimas palavras com um tom seriíssimo, como se condensassem um
mandamento imprescindível. Mas, enquanto falava, deve ter percebido que
ele não tinha sido e ainda não era capaz de respeitar sua própria lei. Então
mudou de cara, mudou de voz de repente, sentiu a urgência de humilhá-la.
Virou-se para Lila com um impulso de intolerância e sublinhou num
crescendo de vulgaridades dialetais: “Mas com essa aqui é difícil, não é
nada fácil tirá-la do pé. No entanto, olhe só pra ela, os olhos miúdos, as tetas
pequenas, a bunda pequena, reduzida a um cabo de vassoura. Com uma assim
o que se pode fazer? Nem dá pra ficar duro. Mas basta um instante, um
instante só: você olha pra ela e tem vontade de fodê-la”.
Foi nesse ponto que Lila sentiu um baque violentíssimo na cabeça,
como se seu coração, em vez de martelar na garganta, explodisse na calota
craniana. Gritou-lhe um insulto não menos pesado que as palavras ditas por
ele, agarrou o cinzeiro de bronze da escrivaninha derrubando cinzas e
guimbas, tentou acertá-lo. Mas o gesto, apesar da fúria, veio lento,
desprovido de força. E mesmo a voz de Bruno — Lina, por favor, o que é
que você está fazendo — atravessou-a desinteressada. Talvez por isso
Solara a tenha bloqueado facilmente e facilmente lhe tirou o cinzeiro das
mãos, dizendo raivoso:
“Você pensa que depende do doutor Soccavo? Pensa que não sou
ninguém aqui? Você se engana. Há algum tempo o doutor Soccavo está no
livro vermelho de minha mãe, que é um livro muito mais importante que o
livrinho de Mao. Por isso você não depende dele, depende de mim, depende
sempre e apenas de mim. E eu até agora a deixei agir, queria ver até onde
você ia parar, você e aquele merda com quem fode. Mas a partir de agora
lembre-se de que estou de olho em você, e se eu quiser você tem de correr,
está claro?”
Só então Bruno saltou de pé nervosíssimo e exclamou:
“Deixe-a em paz, Michè, agora você está exagerando.”
Solara soltou aos poucos o pulso de Lila e então balbuciou, dirigindo-
se a Soccavo novamente em italiano:
“Você tem razão, me desculpe. Mas a senhora Carracci tem esse dom:
de um modo ou de outro, sempre força você a exagerar.”
Lila reprimiu a fúria, esfregou com cuidado o pulso, tirou com a ponta
dos dedos um pouco de cinza que caíra sobre ela. Depois desdobrou a folha
de reivindicações, colocou-a diante de Bruno e, enquanto se dirigia para a
porta, virou-se para Solara e disse:
“Sei assoviar desde os cinco anos de idade.”
45.

Quando voltou para baixo, palidíssima, Edo perguntou como tinha sido, mas
Lila não respondeu, o afastou com a mão e foi se fechar no banheiro. Temia
ser imediatamente reconvocada por Bruno, temia ser obrigada a um
confronto na presença de Michele, temia a fragilidade incomum do corpo,
não conseguia se habituar. Pelo basculante manteve o olho no pátio e deu um
suspiro de alívio quando viu Michele, alto, o passo nervoso, a fronte com
entradas, o belo rosto barbeado com cuidado, uma jaqueta de couro preto
sobre calças escuras, chegar até seu carro e partir. Nessa altura voltou à
descarnagem, e Edo lhe perguntou de novo:
“E então?”
“Foi. Mas a partir de agora vocês cuidam disso.”
“Em que sentido?”
Não pôde responder, a secretária de Bruno chegou ofegante, o patrão
queria vê-la imediatamente. Seguiu como aquela santa que, mesmo tendo a
cabeça ainda sobre o pescoço, a carrega nas mãos, como se já a tivessem
cortado. Assim que a viu na sua frente, Bruno quase gritou:
“Querem que de manhã lhes sirva até o café na cama? O que é esta
novidade aqui, Lina? Você se dá conta? Sente-se e explique. Nem posso
acreditar.”
Lila explicou as reivindicações uma a uma, com o tom que usava com
Gennaro quando ele não queria entender. Enfatizou que era conveniente a ele
tomar aquela lista a sério e enfrentar os vários pontos com espírito
construtivo, porque, se ele se comportasse de modo imponderado, logo a
inspetoria do trabalho cairia em cima dele. Por fim perguntou em que tipo de
problema se metera para cair nas mãos de gente perigosa como os Solara.
Nesse instante Bruno perdeu totalmente a calma. Sua tez avermelhada ficou
roxa, os olhos se injetaram, gritou que acabaria com ela, que bastaria dar
poucas liras por fora aos quatro cretinos que lhe faziam oposição para
arranjar tudo. Berrou que há anos seu pai dava regalias à inspetoria do
trabalho, e imagine se ele ia ter medo de inspeções. Gritou que os Solara
fariam que ela perdesse a vontade de bancar a sindicalista e concluiu com
voz engasgada: pra fora, pra fora imediatamente, fora.
Lila andou até a porta. Somente na soleira lhe disse:
“É a última vez que você me vê: a partir deste momento paro de
trabalhar aqui dentro.”
Diante dessas palavras, Soccavo voltou bruscamente a si. Fez uma
careta alarmada, devia ter prometido a Michele que não a demitiria. Disse:
“Agora você se ofende? Agora banca a caprichosa? Deixe de bobagem,
venha cá, vamos pensar juntos, sou eu quem decido se devo demiti-la ou não.
Idiota, já disse, venha cá.”
Por uma fração de segundo, Ischia lhe voltou à mente de novo, as
manhãs em que esperávamos que chegassem Nino e seu amigo rico, que tinha
casa em Forio, o rapaz cheio de gentilezas e sempre paciente. Saiu e fechou
a porta atrás de si. Logo em seguida sentiu um tremor violentíssimo,
recobriu-se de suor. Não foi para a descarnagem, não se despediu de Edo e
de Teresa, passou diante de Filippo, que a olhou com estranheza, gritando:
Cerù, aonde você vai, volte aqui. Mas ela seguiu pela estrada de terra
correndo, pegou o primeiro ônibus para a Marina, chegou ao mar.
Perambulou muito. Havia um vento frio, subiu ao Vomero no funicular,
passeou por piazza Vanvitelli, por via Scarlatti, por via Cimarosa, tomou de
novo o funicular e tornou para baixo. Já tarde se deu conta de que se
esquecera de Gennaro. Chegou em casa às nove, pediu a Enzo e a Pasquale
— que lhe faziam perguntas ansiosas para entender o que havia ocorrido —
que fossem me procurar no bairro.
E agora estou aqui, em plena noite, neste cômodo esquálido de San
Giovanni a Teduccio. Gennaro dorme, Lila fala e fala em voz baixa, Enzo e
Pasquale estão à espera na cozinha. Eu me sinto como o cavaleiro de um
romance medieval que, fechado em sua armadura reluzente, depois de ter
cumprido mil prodigiosas empresas a girar pelo mundo, topa com um pastor
esfarrapado e desnutrido que, sem jamais ter se afastado do pasto, comanda
e governa de mãos nuas feras horríveis com uma coragem portentosa.
46.

Fui uma ouvinte tranquila, deixei-a falar. Alguns momentos do relato,


sobretudo quando a expressão do rosto de Lila e o andamento das frases
sofriam uma repentina e dolorosa contração nervosa, me perturbaram muito.
Experimentei um forte sentimento de culpa, pensei: esta é a vida que eu
poderia ter tido e, se não foi assim, isso é também por mérito dela. Às vezes
estive a ponto de abraçá-la, noutras quis lhe fazer perguntas, comentários.
Mas no geral me contive, só a interrompi em duas ou três ocasiões, no
máximo.
Com certeza me intrometi, por exemplo, quando ela falou de Galiani e
dos filhos. Gostaria que me explicasse melhor o que minha professora tinha
dito, que palavras usara exatamente, se meu nome alguma vez fora
mencionado por Nadia ou Armando. Mas percebi a tempo a mesquinhez das
perguntas e me contive, embora uma parte de mim considerasse a
curiosidade legítima, já que se tratava de conhecidos a quem eu era
afeiçoada. Limitei-me a dizer:
“Antes de ir definitivamente para Florença, devo passar na Galiani
para me despedir. Por que você não vem comigo?”. E acrescentei: “Nossa
relação esfriou um pouco depois de Ischia, ela acha que Nino deixou Nadia
por culpa minha”. Lila então me olhou como se não me visse, e eu insisti:
“Os Galiani são boas pessoas, um pouco esnobes, a história do sopro
precisa ser verificada”.
Dessa vez ela reagiu:
“O sopro existe.”
“Tudo bem”, respondi, “mas o próprio Armando disse que é preciso
ver um cardiologista.”
Ela replicou:
“De todo modo ele o percebeu.”
Mas foi principalmente sobre assuntos de sexo que me senti provocada.
Quando ela contou o episódio da secagem, quase lhe falei: comigo, em
Turim, fui atacada por um velho intelectual; e em Milão um pintor
venezuelano que eu tinha acabado de conhecer veio até meu quarto para
entrar na minha cama como se fosse um favor que eu lhe devia. No entanto,
também nesse caso, me contive. Que sentido havia falar de minhas coisas
naquele momento? De resto, o que eu poderia contar realmente se parecia
com o que ela estava contando?
Essa última pergunta se apresentou a mim com clareza quando, a partir
da enunciação dos fatos — conversáramos de fatos brutalíssimos apenas
anos antes, quando ela me contou sobre sua noite de núpcias —, Lila passou
a me falar sobre sua sexualidade em geral. Para nós, era algo inteiramente
novo abordar aquele tema. A vulgaridade do ambiente de onde vínhamos
servia para agredir ou para se defender, mas, justamente porque era a língua
da violência, não facilitava — ao contrário, bloqueava — as confidências
íntimas. Por isso fiquei constrangida, fixei o chão quando ela disse com o
cru vocabulário do bairro que trepar nunca lhe dera o prazer que esperava
desde menina, ao contrário, sempre experimentara pouco ou quase nada, que
depois de Stefano, depois de Nino, fazer isso chegava a incomodá-la, tanto é
que não conseguira aceitar dentro de si um homem gentil como Enzo. Não só:
acrescentou com um léxico ainda mais brutal que tinha feito ora por força,
ora por curiosidade, ora por paixão, tudo o que um homem podia querer de
uma mulher, mas que, até quando Nino desejara ter um filho, e ela
engravidara, o prazer que, especialmente naquela circunstância de grande
amor, se dizia que deveria existir nunca houve.
Diante de tanta clareza, compreendi que eu não podia continuar calada,
que devia fazer com que ela sentisse minha proximidade, que devia reagir às
suas confidências com igual confidência. Mas à ideia de ter que falar de mim
— o dialeto me desgostava e, embora passasse por autora de páginas
ousadas, o italiano que adquirira me parecia demasiado precioso para a
matéria pegajosa das experiências sexuais — o mal-estar cresceu, esqueci
que ela estava fazendo uma confissão difícil, que cada palavra, mesmo
vulgar, estava encastoada no esgotamento que trazia no rosto, no tremor das
mãos, e fui direta:
“Comigo não é assim”, disse.
Não menti, e no entanto não era verdade. A verdade era bem mais
complicada e, para lhe dar uma forma, eu necessitaria de palavras
experimentadas. Deveria explicar a ela que, na época de Antonio, me
esfregar nele, deixar que me tocasse, sempre me dera um grande prazer, e
que ainda agora desejava esse prazer. Deveria admitir que ser penetrada
também tinha me decepcionado, era uma experiência estragada pelo
sentimento de culpa, pelo desconforto das condições do ato, pelo medo de
ser surpreendida, pela pressa derivada disso, pelo terror de ficar grávida.
Mas deveria acrescentar que Franco — o pouco que eu conheci do sexo
estava em grande parte associado a ele, antes de entrar em mim e depois,
permitia que eu me esfregasse em sua perna, em seu ventre, e isso era bom,
às vezes tornava até agradável a penetração. Consequentemente — deveria
dizer a ela ao final — agora que eu aguardava o casamento, e Pietro era um
homem muito gentil, esperava que na tranquilidade e na legitimidade do leito
conjugal encontrasse tempo e facilidade para descobrir o prazer do coito.
Sim, se eu tivesse me expressado dessa maneira, teria sido honesta. Mas a
tradição de confidências tão articuladas, aos vinte e cinco anos, nós ainda
não tínhamos. Houvera apenas breves acenos genéricos durante o namoro
dela com Stefano e o meu, com Antonio, mas se tratara de frases esquivas,
alusões. Quanto a Donato Sarratore, quanto a Franco, eu nunca mencionara
nem o primeiro, nem o segundo. Por isso me ative àquelas poucas palavras
— comigo não é assim, que devem ter soado como se lhe dissesse: talvez
você não seja normal. De fato, ela me olhou perplexa e disse, como para se
defender:
“No livro você escreveu outra coisa.”
Então ela o havia lido. Murmurei na defensiva:
“Hoje eu nem sei mais o que foi parar ali dentro.”
“Foi parar coisa suja”, emendou, “coisa que os homens não querem
ouvir e que as mulheres conhecem, mas têm medo de dizer. Mas agora o que
você vai fazer, se esconder?”
Usou mais ou menos essas palavras, com certeza disse suja. Então ela
também citava minhas páginas escabrosas tal como Gigliola, que usara
imundície. Esperei que ela fizesse uma avaliação abrangente do livro, mas
isso não ocorreu, serviu-se dele apenas como uma ponte para tornar a
reafirmar o que chamou várias vezes, com insistência, de o incômodo de
foder. Isso está lá, em seu romance — exclamou —, e se você contou é
porque conhece, é inútil dizer: comigo não é assim. E eu balbuciei sim,
talvez seja verdade, mas não sei. E, enquanto com um despudor atormentado
ela continuava me fazendo suas confidências — muita excitação, pouca
satisfação, sentimento de desgosto —, Nino me voltou à mente, e se
reapresentaram as indagações que eu ruminara muitas vezes na cabeça.
Aquela noite longa, cheia de relatos, era um bom momento para dizer a ela
que o tinha reencontrado? Devia avisar que não podia contar com Nino em
relação a Gennaro, que ele tinha outro filho, que ele fazia filhos e os deixava
para trás com indiferença? Devia aproveitar aquele momento, aquelas suas
confissões, para lhe comunicar que, em Milão, ele me dissera algo
desagradável a seu respeito, Lila tem problemas até no sexo? Devo chegar a
dizer que em todas aquelas confidências agitadas, até no seu modo de ler as
páginas sujas de meu livro, agora, enquanto ela falava, eu tinha a impressão
de estar confirmando que Nino no fundo tinha razão? O que o filho de
Sarratore estava de fato querendo dizer senão o que ela mesma estava
admitindo? Tinha percebido que, para Lila, deixar-se penetrar era apenas um
dever, que ela não conseguia gozar daquele ato? Ele — pensei comigo — é
experiente. Conheceu muitas mulheres, sabe o que é uma boa conduta sexual
feminina e, consequentemente, sabe reconhecer uma ruim. Ter problemas no
sexo significa, evidentemente, não conseguir ter prazer sob as investidas do
macho, significa contorcer-se de vontade esfregando-se para aquietar o
desejo, significa agarrar as mãos dele e levá-las ao próprio sexo, como às
vezes eu fiz com Franco, ignorando seu incômodo e até o tédio de quem já
teve seu orgasmo e agora gostaria de dormir. O mal-estar cresceu, pensei:
escrevi isto em meu romance, Gigliola e Lila reconheceram isto nele,
provavelmente Nino reconheceu isto e por isso quis falar a respeito.
Reprimi todas essas questões e murmurei meio sem propósito:
“Lamento.”
“O quê?”
“Que você tenha ficado grávida sem alegria.”
Ela respondeu com um repentino ímpeto de sarcasmo:
“Imagine eu.”
No final a interrompi quando já começava a clarear, ela acabara de me
narrar o embate com Michele. Falei: chega, se acalme, vamos ver essa febre.
Estava com trinta e oito e meio. Abracei-a com força e sussurrei: agora eu
vou cuidar de você e, enquanto não estiver boa, ficaremos sempre juntas; e,
caso eu precise ir a Florença, você e o menino vêm comigo. Recusou com
energia e me fez a última confissão daquela noitada. Disse que tinha errado
ao ir com Enzo para San Giovanni a Teduccio, que queria voltar ao bairro.
“Ao bairro?”
“Sim.”
“Você está louca.”
“Assim que me sentir melhor, faço isso.”
Fui contra, falei que aquilo era um pensamento induzido pela febre, que
o bairro a destruiria, que era uma estupidez tornar a pôr os pés lá.
“Já eu não vejo a hora de sair daqui”, exclamei.
“Você é forte”, respondeu ela para minha surpresa, “eu nunca fui forte.
Você, quanto mais se sente verdadeira e está bem, mais se afasta. Eu, só de
atravessar o túnel do estradão, já me assusto. Lembra quando tentamos ir até
o mar, mas começou a chover? Quem de nós duas queria continuar, seguir em
frente, e quem resolveu dar meia-volta: eu ou você?”
“Não me lembro. De todo modo, para o bairro você não volta.”
Tentei de todas as maneiras fazê-la mudar de ideia, discutimos muito.
“Vá”, ela disse afinal, “vá falar com aqueles dois, estão esperando há
horas. Não pregaram olho e precisam trabalhar.”
“O que digo a eles?”
“O que quiser.”
Estendi as cobertas sobre ela, cobri também Gennaro, que se agitara no
sono durante toda a noite. Percebi que Lila já estava dormindo. Murmurei:
“Volto logo.”
Ela disse:
“Lembre-se do que prometeu.”
“O quê?”
“Já esqueceu? Se me acontecer alguma coisa, você fica com Gennaro.”
“Não vai lhe acontecer nada.”
Enquanto eu saía do quarto, Lila estremeceu sonolenta e murmurou:
“Olhe por mim até que eu durma. Olhe sempre por mim, mesmo quando
for embora de Nápoles. Assim eu sei que você está me vendo e me sinto
tranquila.”
47.

No tempo que transcorreu entre aquela noite e o dia de meu casamento —


casei em 17 de maio de 1969, em Florença, e, depois de uma viagem de
núpcias de apenas três dias a Veneza, comecei com entusiasmo minha vida
de esposa —, tentei fazer por Lila tudo o que estava ao meu alcance. Na
verdade, de início pensei simplesmente em cuidar dela até que a gripe
passasse. Precisava lidar com a casa em Florença, tinha muitos
compromissos em relação ao livro — o telefone tocava o tempo todo e
minha mãe resmungava, tinha dado o número a meio bairro, mas ninguém
ligava para ela, ter este troço em casa, dizia, é só mais um aborrecimento, as
chamadas eram quase sempre para mim —, escrevia notas para hipotéticos
novos romances, tentava preencher as lacunas de minha cultura literária e
política. Mas o estado de prostração geral a que minha amiga se reduzira me
levou rapidamente a descuidar de minhas coisas e a me ocupar cada vez
mais com ela. Minha mãe logo notou que tínhamos reatado as relações:
achou isso infame, fez um escarcéu, cobriu-nos as duas de insultos.
Continuava achando que podia me dizer o que eu devia ou não devia fazer,
mancava atrás de mim lançando recriminações, às vezes parecia decidida a
intrometer-se dentro de meu próprio corpo para não me deixar ser dona de
mim. O que você ainda tem a dividir com aquela lá — me perseguia —,
pense em quem você é e no que ela é, não lhe bastou o livro nojento que
você escreveu, quer continuar a amizade com essa cachorra? Mas me
comportei como se fosse surda. Encontrei Lila todos os dias e me dediquei a
reorganizar sua vida desde o momento em que a deixei dormindo no quarto e
fui ter com os dois homens que haviam esperado a noite toda na cozinha.
Disse a Enzo e a Pasquale que Lila estava mal, que não podia mais
trabalhar na Soccavo, tinha pedido demissão. Com Enzo não precisei jogar
conversa fora, há tempos ele entendera que ela não podia continuar na
fábrica, que se metera numa situação difícil, que algo dentro dela estava
cedendo. Já Pasquale se mostrou resistente enquanto dirigia rumo ao bairro
pelas estradas da primeira manhã, ainda sem tráfego. Não vamos exagerar,
disse, é verdade que Lina leva uma vida do cão, mas é o que acontece a
todos os explorados do mundo. Então, seguindo um hábito que era seu desde
garoto, passou a me falar dos camponeses do Sul, dos operários do Norte,
das populações da América Latina, do Nordeste do Brasil, da África, dos
afro-americanos, dos vietnamitas, do imperialismo norte-americano. Em
pouco tempo o interrompi e disse: Pasquale, se Lina continuar assim, ela
morre. Não se rendeu, continuou me fazendo objeções, e não porque não se
preocupasse com Lila, mas porque a luta na Soccavo lhe parecia importante,
considerava o papel de nossa amiga fundamental e, no fundo, no fundo,
estava convencido de que todo aquele papo por causa de um pouco de gripe
não era coisa dela, mas minha, uma intelectual pequeno-burguesa mais
preocupada com uma febrinha do que com as péssimas consequências
políticas de uma derrota operária. Como ele não se decidia a me dizer tudo
aquilo de modo explícito, mas por meias palavras, eu mesmo tratei de
resumi-las com clareza pacata, para lhe mostrar que eu tinha entendido. A
coisa o deixou ainda mais nervoso e, ao se despedir de mim no portão,
disse: agora preciso ir trabalhar, Lenu, mas vamos falar mais sobre isso.
Assim que voltei à casa de San Giovanni a Teduccio, puxei Enzo num canto
e lhe disse: se você gosta dela, mantenha Pasquale longe de Lina, ela não
deve mais ouvir falar daquela fábrica.
Naquela fase eu sempre levava na bolsa um livro e meu caderninho de
apontamentos: lia no ônibus ou quando Lila estava dormindo. Às vezes a
descobria com os olhos abertos, me fixando, talvez espreitando para ver o
que eu estava lendo, mas nunca me perguntou nem mesmo o título do livro, e
quando tentei ler para ela algumas páginas — das cenas da pousada de
Upton, me lembro —, fechou os olhos como se isso a aborrecesse. A febre
passou depois de alguns dias, mas a tosse, não; por isso a obriguei a
continuar de repouso. Eu mesma cuidei da casa, cozinhei, me dediquei a
Gennaro. Talvez porque já fosse grandinho, um tanto agressivo, caprichoso,
achei o menino desprovido da inerme sedução que emanava de Mirko, o
outro filho de Nino. Mas às vezes ele passava de brincadeiras violentas a
repentinas melancolias e adormecia no chão, o que me enterneceu e fez com
que eu me afeiçoasse ao menino, coisa que, ao se tornar clara para ele, fez
com que andasse sempre grudado em mim, impedindo-me de trabalhar ou de
ler.
Enquanto isso, tentei entender melhor a situação de Lila. Tinha
dinheiro? Não. Então lhe emprestei algum, e ela só o aceitou depois de jurar
mil vezes que o devolveria. Quanto Bruno lhe devia? Duas mensalidades. E
a indenização? Não sabia. Enzo trabalhava com quê? Quanto ganhava? Sei
lá. E aquele curso de Zurique por apostilas, que possibilidades concretas
oferecia? Não sei. Tossia continuamente, sentia dores no peito, suor, um
aperto na garganta, o coração que de repente disparava. Anotei
sorrateiramente todos os sintomas e tentei convencê-la de que era preciso
fazer uma nova consulta médica, bem mais séria do que aquela feita por
Armando. Não disse que sim, mas também não se opôs. Numa noite em que
Enzo ainda não tinha chegado, Pasquale deu uma passadinha e disse com
boas maneiras que ele, os companheiros do comitê e alguns operários da
Soccavo queriam saber como ela estava. Confirmei que não estava bem, que
precisava de repouso, mas mesmo assim ele me pediu para vê-la, só para um
oi. Deixei-o na cozinha e fui ver Lila, aconselhando-a a não o encontrar. Fez
uma careta que significava: faço o que você achar melhor. Fiquei comovida
ao vê-la render-se a mim — ela, que desde sempre tinha comandado, feito e
desfeito —, sem discutir.
48.

Naquela mesma noite, fiz da casa de meus pais uma longa ligação a Pietro,
contando-lhe tim-tim por tim-tim todos os problemas de Lila e como eu
queria ajudá-la. Ficou me escutando com paciência. A certa altura até
mostrou espírito de colaboração, lembrou-se de um jovem helenista de Pisa
que estava fixado em calculadores[1] e fantasiava que eles revolucionariam a
filologia. Me deu ternura que, mesmo sendo alguém que estava sempre com a
cabeça no trabalho, naquela ocasião, por amor a mim, se esforçasse para ser
útil.
“Tente localizá-lo”, pedi, “fale de Enzo com ele, nunca se sabe,
poderia surgir uma possibilidade de trabalho.”
Prometeu que o faria e acrescentou que, pelo que se lembrava,
Mariarosa tinha tido um breve caso amoroso com um jovem advogado de
Nápoles: talvez pudesse localizá-lo e perguntar se poderia me ajudar.
“Ajudar em quê?”
“Recuperar o dinheiro de sua amiga.”
Me entusiasmei.
“Ligue para Mariarosa.”
“Tudo bem.”
Insisti:
“Não prometa apenas, ligue mesmo, por favor.”
Ficou em silêncio por um segundo e então disse:
“Você acabou de usar o tom de minha mãe.”
“Em que sentido?”
“Parecia ela quando está muito empenhada numa coisa.”
“Sou diferente demais dela, pena.”
Calou-se de novo.
“Ainda bem que é diferente. De todo modo, nessas coisas ela é
incomparável. Conte a ela sobre sua amiga e pode ter certeza de que vai
ajudar.”
Telefonei para Adele. Estava um tanto embaraçada, mas venci a
vergonha ao recordar todas as vezes em que a vi em ação, seja por meu
livro, seja pela procura da casa em Florença. Era uma mulher que gostava de
se ocupar das coisas. Se precisava de algo, pegava o telefone e, peça por
peça, montava uma corrente que alcançava seu objetivo. Sabia pedir de um
jeito que era impossível de negar. E superava com desenvoltura fronteiras
ideológicas, não respeitava hierarquias, ia atrás de faxineiras, empregados,
industriais, intelectuais, ministros, a todos se dirigindo com cordial
distanciamento, como se o favor que estava prestes a pedir na realidade ela
mesma o estivesse fazendo a eles. Entre mil desculpas envergonhadas pelo
incômodo que lhe estava causando, contei também a Adele sobre minha
amiga, detalhadamente, e ela ficou curiosa, se entusiasmou, se indignou. Por
fim me disse:
“Deixe-me pensar.”
“Claro.”
“Enquanto isso, posso lhe dar um conselho?”
“Claro.”
“Não seja tímida. Você é uma escritora, use seu papel, experimente-o,
lhe dê peso. Estamos vivendo tempos decisivos, tudo está indo pelos ares.
Participe, esteja presente. E comece por essa gentalha de suas bandas,
coloque-os contra a parede.”
“Como?”
“Escrevendo. Deixe Soccavo e gente como ele morrendo de medo.
Promete que vai fazer isso?”
“Vou tentar.”
E me passou o nome de um redator do Unità.
49.

O telefonema a Pietro e sobretudo à minha sogra liberaram um sentimento


que até então eu mantivera sob controle, ou melhor, reprimira, mas que
estava vivo e pronto a ganhar terreno. Tinha a ver com minha mudança de
estado. Era provável que os Airota, especialmente Guido, mas talvez
também a própria Adele, me considerassem uma garota que, embora muito
voluntariosa, estava bem distante da pessoa que teriam esperado para o
filho. Era igualmente provável que minha origem, minha cadência dialetal,
minha deselegância em tudo, pusessem a dura prova sua largueza de visões.
Com certo exagero, eu poderia até supor que a publicação de meu livro fosse
parte de um plano de emergência destinado a me tornar apresentável ao
mundo deles. Mas não havia nenhuma dúvida de que eles tinham me
aceitado, que eu estava prestes a me casar com Pietro com o consentimento
deles, que estava a ponto de entrar numa família protetora, uma espécie de
castelo bem fortificado de onde eu poderia avançar sem medo, ou para onde
poderia recuar caso me sentisse em perigo. Portanto eu devia me habituar
àquele novo meio com urgência e, acima de tudo, devia ter consciência
disso. Não era mais uma pequena vendedora de fósforos sempre à beira do
último palito, agora eu contava com uma boa provisão de fósforos. E por
isso — compreendi de repente — podia fazer por Lila muito mais do que
tinha calculado fazer.
Foi com essa perspectiva que pedi a minha amiga que me passasse a
documentação que ela recolhera contra Soccavo, e ela obedeceu
passivamente, sem nem sequer perguntar o que eu pretendia fazer com
aquilo. Comecei a ler o material com crescente envolvimento. Quantas
coisas terríveis ela conseguira dizer com precisão e eficácia. Quantas
experiências insuportáveis percebiam-se por trás da descrição da fábrica.
Virei as páginas entre as mãos por muito tempo; depois, de repente, quase
sem me dar conta, procurei na lista telefônica e liguei para a Soccavo. Dei o
tom certo à minha voz, disse com correta altivez: alô, aqui é Elena Greco —
e me passaram para Bruno. Ele foi cordial — que prazer ouvi-la —, eu,
fria. Ele disse: quanta coisa boa você fez, Elena, vi sua foto no Roma,
excelente, que bons tempos os de Ischia. Respondi que também estava
contente de ouvi-lo, mas que Ischia estava muito longe, que bem ou mal
todos tínhamos mudado, que sobre ele, por exemplo, eu ouvira tristes relatos
que esperava não fossem verdadeiros. Entendeu num instante e logo reagiu.
Falou malíssimo de Lila, de sua ingratidão, dos problemas que lhe causara.
Mudei de tom, respondi que acreditava mais em Lila do que nele. Pegue
caneta e papel — falei —, anote meu número, feito? Agora ordene que
paguem a ela o que deve até o último centavo, e me avise quando posso
passar para retirar o dinheiro: não queria que sua foto também aparecesse
nos jornais.
Desliguei antes que ele retrucasse, senti orgulho de mim. Não tinha
demonstrado a mínima emoção, tinha sido seca, poucas frases em italiano, de
início gentis, depois distantes. Esperava que Pietro tivesse razão: estava de
fato assimilando o tom de Adele, estava aprendendo sem perceber seu modo
de estar no mundo? Resolvi checar se eu seria capaz — querendo — de dar
seguimento à ameaça com que tinha encerrado o telefonema. Mais agitada do
que quando liguei para Bruno — afinal era o mesmo jovem aborrecido que
tentara me beijar na praia de Citara —, disquei o número da redação do
Unità. Enquanto o telefone chamava, esperei que não se ouvisse ao fundo a
voz de minha mãe gritando algo a Elisa em dialeto. Aqui é Elena Greco,
disse à telefonista, e mal tive tempo de explicar o que eu queria quando a
mulher exclamou: Elena Greco, a escritora? Tinha lido meu livro, me fez
muitos elogios. Agradeci, me senti alegre, forte, expliquei sem necessidade
que tinha em mente um artigo sobre uma fabriqueta da periferia e mencionei
o nome do redator que Adele me aconselhara. A telefonista me
cumprimentou mais uma vez e então assumiu um tom profissional. Aguarde
na linha, me disse. Um minuto depois uma voz masculina muito rouca me
indagou em tom provocador desde quando os cultores das belas letras
estavam dispostos a sujar sua pena com trabalhos por empreitada, turnos e
horas extras, coisas chatíssimas, evitadas especialmente por jovens
romancistas de sucesso.
“De que se trata?”, perguntou. “Construção civil, portos, mineradoras?”
“É uma fabriqueta de embutidos”, murmurei, “nada demais.”
O homem continuou me provocando:
“Não precisa se desculpar, está ótimo. Se Elena Greco, a quem este
jornal dedicou nada menos que meia página de elogios efusivos, resolve
escrever sobre linguiças, nós, pobres redatores, podemos dizer que não nos
interessa? Trinta linhas são suficientes para você? São poucas? Então
sejamos mais generosos, sessenta. Quando estiver pronto, o que pretende
fazer: me traz pessoalmente ou prefere ditar o texto?”
Comecei a escrever o artigo imediatamente. Precisava espremer das
páginas de Lila as minhas sessenta linhas e, por amor a ela, queria fazer um
bom trabalho. Mas não tinha nenhuma experiência em relatos jornalísticos,
exceto a vez em que, aos quinze anos, com péssimos resultados, tentara
escrever sobre o conflito com o professor de religião para a revista de Nino.
Não sei, talvez tenha sido essa lembrança que me complicou as coisas. Ou
talvez o sarcasmo do redator, que me ficara nos ouvidos, especialmente
quando ao final da ligação me pediu que eu cumprimentasse minha sogra. O
certo é que demorei muito tempo, escrevi e reescrevi ferozmente. Porém,
quando tive a impressão de ter terminado, não me senti satisfeita e não o
levei ao jornal. Antes preciso falar com Lila, pensei, é algo que devemos
decidir juntas, amanhã entrego.
No dia seguinte fui ver Lila, que me pareceu particularmente mal.
Balbuciou que, quando eu não estava, certas presenças se aproveitavam
disso e saíam das coisas para molestar a ela e Gennaro. Depois notou que eu
estava alarmada e fez um ar brincalhão, murmurou que eram bobagens, só
queria que eu passasse mais tempo com ela. Conversamos muito, tentei
acalmá-la, mas não lhe mostrei o artigo. O que me fez desistir foi a ideia de
que, se o Unità recusasse o texto, eu seria forçada a dizer a ela que não o
tinham achado bom e me sentiria humilhada. Foi preciso que, à noite, um
telefonema de Adele inoculasse em mim uma boa dose de otimismo para que
eu me decidisse. Ela se aconselhara com o marido e até com Mariarosa. Em
poucas horas tinha acionado meio mundo: medalhões da medicina,
professores socialistas especializados em sindicatos, um democrata-cristão
que ela definiu como simplório, mas boa pessoa e muito experiente em
direito trabalhista. O resultado era que eu tinha um encontro no dia seguinte
com o melhor cardiologista de Nápoles — um amigo de amigos, não
precisava pagar nada —, que a inspetoria do trabalho faria imediatamente
uma visita à Soccavo, que para recuperar o dinheiro de Lila eu podia
procurar aquele amigo de Mariarosa que Pietro mencionara, um jovem
advogado socialista que tinha escritório na piazza Nicola Amore e já tinha
sido informado.
“Está contente?”
“Estou.”
“Escreveu o artigo?”
“Escrevi.”
“Está vendo? Eu tinha certeza de que você não o faria.”
“No entanto está pronto, amanhã vou levá-lo ao Unità.”
“Muito bem. Corro o risco de subestimá-la.”
“É um risco?”
“A subestimação sempre é. Como vão as coisas com a pobre criatura
do meu filho?”
50.

A partir daquele momento tudo começou a fluir, quase como se eu tivesse a


arte de fazer os eventos correrem como água da nascente. Até Pietro
trabalhou para Lila. O tal colega helenista revelou-se um literato tagarela,
mas se mostrou igualmente útil: conhecia um tal de Bologna, de fato
especialista em calculadores — a fonte confiável de suas fantasias de
filólogo —, que lhe dera o número de um conhecido de Nápoles,
considerado também confiável. Ditou-me nome, sobrenome, endereço e
telefone do tal senhor napolitano, e eu o papariquei muito, ironizei com
carinho aquele seu esforço empreendedor, até estalei um beijo no telefone.
Fui logo ver Lila. Estava com uma tosse cavernosa, o rosto tenso e
pálido, o olhar excessivamente vigilante. Mas eu levava ótimas notícias e
estava contente. Sacudi-a, abracei-a, segurei forte suas mãos e lhe falei da
conversa que tive com Bruno por telefone, li o artigo que tinha preparado,
listei os resultados da zelosa dedicação de Pietro, de minha sogra, de minha
cunhada. Escutou-me como se eu falasse de muito longe — um outro mundo
no qual eu adentrara —, e só conseguisse ouvir com clareza metade das
coisas que eu dizia. Além disso, Gennaro a puxava sem parar para que
brincassem juntos, e ela, enquanto eu falava, prestava atenção a ele sem
entusiasmo. Mesmo assim me senti contente. No passado, Lila tinha aberto a
gaveta milagrosa da charcutaria e me comprara de tudo, especialmente
livros. Agora eu abria minhas gavetas e retribuía, esperando que se sentisse
segura como eu já me sentia.
“Então”, finalmente indaguei, “amanhã você vai ao cardiologista?”
Reagiu à pergunta de modo incongruente e falou com uma risadinha:
“Nadia não vai gostar desse modo de enfrentar as coisas. Nem o irmão
dela.”
“Que modo? Não entendi.”
“Nada.”
“Lila”, eu disse, “por favor, o que Nadia tem a ver com isso, não lhe dê
mais importância do que ela mesma já se dá. Quanto a Armando, deixe ele
pra lá, sempre foi um rapaz superficial.”
Eu mesma me surpreendi com aqueles julgamentos, no fim das contas
sabia pouco dos filhos da Galiani. E por uns segundos tive a impressão de
que Lila não me reconhecesse, mas visse diante de si um espírito que se
aproveitava de sua fraqueza. Na realidade, mais que falar mal de Nadia e de
Armando, só queria que ela entendesse que as hierarquias de poder eram
outras, que em comparação aos Airota os Galiani não contavam nada, que
contava menos ainda gente como Bruno Soccavo ou o bonitão do Michele,
que enfim ela devia fazer como eu dizia e não se preocupar. Porém, já
enquanto eu falava, me dei conta de que arriscava parecer arrogante e lhe
acariciei a bochecha, de todo modo me mostrei muito admirada com o
empenho político dos dois irmãos e completei, rindo: mas confie em mim.
Ela resmungou:
“Tudo bem, vamos ao cardiologista.”
Insisti:
“E quanto a Enzo, o que devo decidir? Em que dia marco o encontro,
em que horário?”
“Quando quiser, mas depois das cinco.”
Assim que voltei para casa corri ao telefone. Liguei para o advogado,
expliquei detalhadamente a situação de Lila. Telefonei ao cardiologista,
confirmei a consulta. Telefonei ao expert em calculadores, que trabalhava na
Secretaria de Desenvolvimento: me disse que as apostilas de Zurique não
serviam para nada, mas que de todo modo eu podia mandar Enzo encontrá-lo
em tal dia, em tal hora e em tal endereço. Telefonei ao Unità, o redator me
disse: vejo que a senhora não tem pressa, vai me trazer o artigo ou
esperamos até o Natal? Telefonei à secretária de Soccavo, pedi que
informasse ao patrão que, como ele não tinha dado notícias, em breve sairia
um artigo meu no Unità.
Essa minha última chamada teve uma reação imediata e violenta.
Soccavo me ligou dois minutos depois e dessa vez não se mostrou amigável,
ao contrário, me ameaçou. Respondi que a qualquer momento ele iria
receber uma visita da inspetoria do trabalho e um advogado que cuidaria dos
interesses de Lila. Então, prazerosamente exaltada — estava orgulhosa do
combate, por afeto e por convicção, contra a injustiça, nas barbas de
Pasquale e de Franco, que achavam que ainda podiam me dar lições —, à
noite corri ao Unità e entreguei meu artigo.
O homem com quem eu tinha falado era de meia-idade, baixa estatura,
roliço, com olhinhos vivazes permanentemente acesos por uma ironia
benévola. Acomodou-me numa cadeira escangalhada e leu o artigo com
atenção. Por fim, pôs as folhas na escrivaninha e disse:
“E isto são sessenta linhas? Me parecem cento e cinquenta.”
Senti o rosto corar, murmurei:
“Contei várias vezes, são sessenta.”
“Sim, mas escritas à mão com uma letra que não dá para ler nem com
uma lupa. Mas o texto realmente está ótimo, companheira. Arranje em algum
lugar uma máquina de escrever e corte o que conseguir cortar.”
“Agora?”
“E quando? Uma vez na vida eu tenho algo que alguém vai ler e você
quer que eu espere as calendas gregas?”
51.

Com quanta energia me senti naqueles dias. Fomos ao cardiologista, um


professor que tinha casa e consultório na via Crispi. Me arrumei muito para
aquela ocasião. O médico, mesmo sendo de Nápoles, participava do mesmo
mundo de Adele, e eu não queria fazer feio diante de minha sogra. Escovei
bem os cabelos, pus um vestido que ela me dera de presente, usei um
perfume que se parecia com o dela, me maquiei delicadamente. Queria que,
se o professor conversasse com minha sogra por telefone ou se a
encontrasse, falasse bem de mim. Já Lila se apresentou do mesmo modo de
todo dia, sem nenhum cuidado com o próprio aspecto. Acomodamo-nos
numa antessala grande, com quadros do século xix nas paredes: uma nobre
sentada numa poltrona com uma serva negra ao fundo, o retrato de uma velha
senhora e uma grande e bela cena de caça. Havia outras duas pessoas à
espera, um homem e uma mulher, ambos idosos, ambos com ar impecável e
elegante de gente abastada. Aguardamos em silêncio. Somente uma vez Lila,
que na rua já me tinha feito muitos elogios por causa de minha aparência,
disse em voz baixa: parece que você saiu de um desses quadros, você é a
dama, e eu, a criada.
Esperamos poucos minutos. Uma enfermeira nos chamou, sem motivos
claros passamos na frente de outros pacientes. Só então Lila se agitou, quis
que eu acompanhasse a consulta, jurou que sozinha nunca entraria, por fim
me empurrou como se a paciente fosse eu. O doutor era um homem ossudo,
de seus sessenta anos, cabelos grisalhos muito cheios. Acolheu-me com
gentileza, sabia tudo de mim, conversou por dez minutos como se Lila não
existisse. Disse que o filho também se formara na Normal, mas seis anos
antes de mim. Enfatizou que o irmão era um escritor de certa notoriedade,
mas apenas em Nápoles. Elogiou muito os Airota, conhecia bem um primo
de Adele que era um físico famoso. Me perguntou:
“Para quando, o casamento?”
“17 de maio.”
“Dezessete? Dá azar. Por favor, mude de data.”
“Não é mais possível.”
Durante todo o tempo Lila permaneceu calada. Não prestou nenhuma
atenção ao professor, senti sua curiosidade fixada em mim, parecia
maravilhada a qualquer palavra ou gesto meus. Quando o doutor finalmente
se concentrou nela e lhe fez demoradas perguntas, respondeu de má vontade,
em dialeto ou num horrível italiano que decalcava fórmulas dialetais. Várias
vezes precisei intervir para lembrar sintomas que ela me relatara ou para dar
peso ao que ela minimizava. Por fim se submeteu com expressão enfezada a
um exame acuradíssimo e capcioso, como se eu e o cardiologista
estivéssemos fazendo algum mal a ela. Observei seu corpo fino numa anágua
de um celeste pálido, muito grande para ela, bastante gasta. O pescoço
comprido parecia se esforçar para manter a cabeça, a pele estava esticada
sobre os ossos como um papel de seda prestes a se rasgar. Notei que o
polegar da mão esquerda de vez em quando fazia um breve movimento
irreflexo. Passou uma boa meia hora antes que o professor lhe dissesse que
podia se vestir. Ela o fez sem tirar os olhos dele, e agora me pareceu
amedrontada. O cardiologista foi à escrivaninha, sentou-se e finalmente
anunciou que estava tudo em ordem, não tinha detectado nenhum sopro.
Senhora — lhe disse —, seu coração é perfeito. Mas o efeito da resposta em
Lila foi aparentemente inconsistente, não se mostrou satisfeita, ao contrário,
pareceu irritada. Eu é que me senti aliviada, como se aquele coração fosse
meu, e fui eu que dei sinais de preocupação quando o professor, voltando a
se dirigir a mim, e não a Lila, quase como se sua escassa reatividade o
tivesse ofendido, acrescentou carrancudo que, no entanto, era preciso
intervir com urgência no estado geral de minha amiga. O problema, disse,
não é a tosse: a senhora está resfriada, teve um pouco de gripe, vou lhe dar
um xarope. O problema, segundo ele, era o esgotamento devido ao grave
depauperamento orgânico: Lila devia ter mais cuidado com a saúde,
alimentar-se regularmente, fazer um tratamento reconstituinte, conceder-se ao
menos oito horas de sono. Grande parte dos sintomas de sua amiga, me
disse, vão passar assim que ela recuperar as forças. De todo modo —
concluiu —, aconselho uma consulta com um neurologista.
Foi essa última palavra que fez Lila despertar. Franziu o cenho,
inclinou-se para a frente e falou em italiano:
“Está dizendo que estou doente dos nervos?”
O médico a olhou surpreso, como se por magia a paciente que tinha
acabado de examinar tivesse sido substituída por outra pessoa.
“Ao contrário: estou apenas lhe sugerindo uma checagem.”
“Eu disse ou fiz algo que não devia?”
“Não, não se preocupe, a consulta serve apenas para dar um quadro
mais claro de sua situação.”
“Uma parente minha”, disse Lila, “prima de minha mãe, era infeliz,
tinha sido infeliz a vida inteira. No verão, quando eu era pequena, a escutava
da janela aberta, gritando, rindo. Ou a avistava na rua fazendo coisas meio
malucas. Mas era a infelicidade, e por isso ela nunca foi a um neurologista,
aliás, nunca foi a médico nenhum.”
“Teria feito bem se tivesse ido.”
“As doenças nervosas são coisas para senhoras.”
“A prima de sua mãe não é uma senhora?”
“Não.”
“E a senhora?”
“Eu, menos ainda.”
“Sente-se infeliz?”
“Estou ótima.”
O médico se dirigiu novamente a mim, de mau humor:
“Repouso absoluto. Diga-lhe que siga este tratamento, pontualmente. Se
tiver ocasião de levá-la ao campo por uns dias, melhor ainda.”
Lila desandou a rir e retomou o dialeto:
“Na última vez que estive em um médico ele me mandou para a praia, e
eu tive um monte de problemas.”
O professor fez de conta que não ouviu, sorriu para mim em busca de
cumplicidade, me sugeriu o nome de um amigo neurologista, a quem ele
mesmo telefonou para que nos atendesse o mais rápido possível. Não foi
fácil arrastar Lila para um outro consultório médico. Disse que não tinha
tempo para jogar fora, que já tinha se aborrecido bastante com o
cardiologista, que precisava cuidar de Gennaro e acima de tudo não tinha
dinheiro para desperdiçar nem queria que eu desperdiçasse o meu. Garanti a
ela que a consulta era de graça e por fim, de má vontade, cedeu.
O neurologista era um homenzinho animado e completamente calvo, que
tinha consultório em um antigo edifício de via Toledo e ostentava na sala de
espera, bem ordenados, apenas livros de filosofia. Adorava ouvir a si
mesmo e falou tanto que me pareceu prestar mais atenção à meada do
próprio discurso que à paciente. Ele a examinava e se dirigia a mim, fazia
perguntas a ela e me propunha alguma reflexão profunda, sem se importar
com a resposta que ela lhe dava. De todo modo, concluiu distraído que o
sistema nervoso de Lila estava em ordem quanto ao músculo cardíaco. Mas
— acrescentou, sempre se dirigindo a mim — meu colega tem razão, cara
doutora Greco, o organismo está enfraquecido e, consequentemente, tanto a
alma irascível quanto a concupiscível se aproveitam para prevalecer sobre a
racional: vamos restituir bem-estar ao corpo e assim restituiremos saúde à
mente. Então redigiu uma receita com sinais indecifráveis, mas escandindo
em voz alta os nomes dos remédios e as doses. Depois passou aos
conselhos. Aconselhou, para que se relaxasse, longas caminhadas, mas
evitando o mar: melhor o bosque de Capodimonte ou os Camaldoli, disse.
Aconselhou ler muito, mas durante o dia, nunca à noite. Aconselhou manter
as mãos ocupadas, embora lhe bastasse apenas um olhar de verdade às de
Lila para entender que ela as ocupara até demais. Quando passou a insistir
nos benefícios neurológicos do trabalho de crochê, Lila se agitou na cadeira,
não esperou que o médico terminasse de falar e perguntou, seguindo uma
linha de raciocínio toda sua:
“Visto que estamos aqui, o senhor poderia me receitar as pílulas que
evitam filhos?”
O médico franziu o cenho, e eu também — acho. Pareceu-me um pedido
fora de lugar.
“A senhora é casada?”
“Já fui, agora não.”
“Em que sentido agora não?”
“Eu me separei.”
“Mas continua sendo casada.”
“Ah.”
“Já tem filhos?”
“Tenho um.”
“Um só é pouco.”
“Para mim, é o bastante.”
“Em seu estado uma gravidez ajudaria, não há remédio melhor para
uma mulher.”
“Conheço mulheres destruídas pela gravidez. Melhor as pílulas.”
“Para esse seu problema a senhora deve consultar um ginecologista.”
“O senhor só entende de nervos, não entende de pílulas?”
O médico ficou ressentido. Conversou mais um pouco e depois, da
soleira, me deu o endereço e o telefone de uma médica que trabalhava em um
laboratório de análises em Ponte di Tappi. Procure por ela, me disse, como
se o pedido de anticoncepcionais tivesse sido feito por mim, e se despediu.
Na saída, a secretária pretendeu que pagássemos. O neurologista — entendi
— era estranho à corrente de favores que Adele ativara. Paguei.
Uma vez na rua, Lila quase gritou, furiosa: não vou tomar nenhum dos
remédios que aquele cretino me passou, seja como for já sei que minha
cabeça vai entrar em parafuso. Respondi: sou contra, mas faça o que achar
melhor. Ela então se atrapalhou, murmurou: não estou chateada com você,
mas com os médicos, e passeamos em direção à Ponte di Tappia, mas sem o
dizermos, como se caminhássemos meio ao acaso, só para espichar as
pernas. Ora ela se mantinha calada, ora imitava irritada o tom e a fala do
neurologista. Tive a impressão de que aquela sua intolerância testemunhasse
um retorno de vitalidade. Perguntei:
“As coisas vão melhor com Enzo?”
“Tudo na mesma.”
“Então para que as pílulas?”
“Você conhece?”
“Conheço.”
“Esta tomando?”
“Não, mas assim que me casar vou tomar.”
“Você não quer ter filhos?”
“Quero, mas antes preciso escrever outro livro.”
“Seu marido sabe que você não quer filhos logo?”
“Vou dizer a ele.”
“Vamos para essa sicrana e pedimos pílulas para nós duas?”
“Lila, não se trata de balas que podemos tomar de qualquer jeito. Se
você não faz nada com Enzo, deixe pra lá.”
Ela me fixou com os olhos puxados, fissuras dentro das quais mal se
entreviam as pupilas:
“Não faço nada hoje, mas depois, quem sabe?”
“Está falando sério?”
“Você acha que eu não deveria?”
“Claro que deveria.”
Em Ponte di Tappia procuramos uma cabine telefônica e ligamos para a
doutora, que se disse disponível para nos receber imediatamente. Durante o
caminho para o laboratório, mostrei-me cada vez mais contente por aquela
aproximação com Enzo, e ela pareceu encorajada por minha aprovação.
Voltamos a ser as duas meninas de outros tempos e começamos a brincar,
meio a sério, meio fingidas, uma provocando a outra: você, que é a mais
cara de pau, fala com ela; não, você, que está vestida de madame; eu não
tenho urgência; nem eu; então por que estamos indo?
A médica nos esperava no portão, de avental branco. Era uma mulher
sociável, com uma voz aguda. Convidou-nos ao bar e nos tratou como se
fôssemos velhas amigas. Enfatizou várias vezes que não era uma
ginecologista, mas foi tão generosa em explicações e conselhos que,
enquanto fiquei na minha, um tanto entediada, Lila fez perguntas cada vez
mais explícitas, e objeções, e mais perguntas, e observações irônicas. As
duas se entrosaram muito. Por fim, depois de muitas recomendações,
recebemos uma receita cada uma. A médica se recusou a receber pagamento
porque — disse — era uma missão que ela e outros amigos tinham assumido.
Ao se despedir — precisava voltar ao trabalho —, em vez de nos dar a mão,
nos deu um abraço. Uma vez na rua, Lila falou séria: finalmente uma pessoa
correta. Agora estava alegre, não a via assim havia muito tempo.
52.

Apesar do consenso entusiástico do redator, o Unità tardava a publicar meu


artigo. Eu estava ansiosa, temia que não saísse mais. Mas justamente no dia
seguinte à consulta ao neurologista fui à banca de manhã cedo, folheei o
jornal saltando depressa de uma página a outra e finalmente o encontrei.
Esperava que o tivessem espremido entre as bagatelas locais e, no entanto,
lá estava ele nas páginas nacionais, completo, minha assinatura que só de vê-
la impressa me atravessou como uma agulha comprida. Pietro me telefonou
contente, também Adele estava entusiasmada, disse que o marido e até
Mariarosa tinham gostado muitíssimo do artigo. Mas a coisa surpreendente
foi que me ligaram para me cumprimentar o diretor de minha editora, duas
personalidades muito conhecidas que colaboravam há anos com a editora, e
Franco, Franco Mari, que tinha pedido meu número a Mariarosa: falou-me
num tom respeitoso, disse que estava contente comigo, que eu tinha fornecido
um exemplo de reportagem abrangente sobre a condição operária, que
esperava me encontrar em breve para pensarmos juntos. Esperei naquela
altura que, por algum canal imprevisível, também me chegasse a aprovação
de Nino. Mas foi inútil, e fiquei mal. Tampouco Pasquale se fez vivo; mas
ele, por desgosto político, tinha há tempos deixado de ler o jornal do
partido. De todo modo, o redator do Unità me consolou: procurou-me para
dizer que o texto tinha agradado muito na redação e me convidou, com seu
habitual ar despachado, a comprar uma máquina de escrever e desembuchar
mais coisas boas.
Mas devo dizer que o telefonema mais desconcertante foi o de Bruno
Soccavo. Mandou a secretária ligar para mim e em seguida tomou a palavra.
Falou com um tom melancólico, como se o artigo — que no entanto ele a
princípio não mencionou — o tivesse atingido tão duramente que lhe tirara
todo o impulso vital. Disse que nos dias de Ischia, durante nossos belos
passeios na praia, ele me amara como nunca tinha amado ninguém. Declarou-
me toda sua admiração pelo rumo que, ainda muito jovem, eu tinha
conseguido dar à minha vida. Jurou que o pai dele lhe entregara uma fábrica
em grandes dificuldades, cheia de péssimos hábitos, e que ele era apenas o
herdeiro sem culpa de uma situação a seus próprios olhos lamentável.
Afirmou que meu artigo — finalmente o citou — tinha sido iluminador para
ele e que queria corrigir o mais rapidamente possível muitas distorções
herdadas do passado. Desculpou-se pelos mal-entendidos com Lila e
declarou que a administração já estava resolvendo tudo com o meu
advogado. Concluiu com cautela: você conhece os Solara, eles estão me
ajudando nesse momento difícil a dar uma nova cara à Soccavo. E
acrescentou: Michele lhe manda calorosas lembranças. Retribuí os
cumprimentos, registrei seus bons propósitos e desliguei. Mas logo telefonei
ao advogado amigo de Mariarosa para lhe falar daquela ligação. Ele me
confirmou que a questão do dinheiro estava resolvida e fui encontrá-lo
alguns dias depois no escritório para o qual trabalhava. Era pouco mais
velho que eu, simpático apesar dos irritantes lábios finos, e se vestia com
esmero. Quis me convidar ao bar para um café. Tinha muita admiração por
Guido Airota, lembrava-se bem de Pietro. Entregou-me a soma que a
Soccavo tinha pago a Lila e recomendou que eu tomasse cuidado para não
ser roubada. Descreveu o caos de estudantes, sindicalistas e policiais que
encontrara nos portões da fábrica, disse que o inspetor também fizera uma
visita ao estabelecimento. No entanto não me pareceu satisfeito. Somente
quando estávamos para nos despedir, me perguntou da soleira:
“Você conhece os Solara?”
“É gente do bairro onde cresci.”
“Sabe que eles estão por trás de Soccavo?”
“Sei.”
“E não está preocupada?”
“Não entendi.”
“Quero dizer: o fato de que você os conhece desde sempre e de ter
estudado fora de Nápoles talvez não lhe permita ver a situação com clareza.”
“Ela é claríssima para mim.”
“Nos últimos anos os Solara cresceram bastante, eles têm influência
nesta cidade.”
“E daí?”
Contraiu os lábios, estendeu-me a mão.
“Daí nada: conseguimos o dinheiro, está tudo certo. Mande lembranças
a Mariarosa e a Pietro. Quando vai ser o casamento? Gosta de Florença?”
53.

Dei o dinheiro a Lila, que o contou por duas vezes com satisfação e quis
imediatamente me devolver a quantia que eu lhe emprestara. Pouco depois
Enzo chegou, tinha acabado de encontrar a pessoa especialista em
calculadores. Parecia contente, naturalmente dentro dos limites daquela sua
impassibilidade que, talvez até contra seus próprios desejos, estrangulava
emoções e palavras. Lila e eu penamos para tirar informações de sua boca,
mas por fim acabamos tendo um quadro bastante claro. O especialista tinha
sido de grande gentileza. De início reiterara que as apostilas de Zurique
eram dinheiro jogado fora, mas depois se deu conta de que Enzo era bom, a
despeito da inutilidade do curso. Dissera-lhe que a ibm estava prestes a
produzir na Itália, no estabelecimento de Vimercate, um computador
novíssimo, e que a filial de Nápoles tinha urgente necessidade de
perfuradores-verificadores, de operadores, de programadores-analistas.
Garantiu-lhe que, tão logo a empresa começasse os cursos de formação, ele
entraria em contato. Tomara nota de todos os seus dados.
“Parecia uma pessoa séria?”, quis saber Lila.
Para testemunhar a seriedade de seu interlocutor, Enzo apontou para
mim e disse:
“Sabia tudo sobre o noivo de Lila.”
“Como assim?”
“Falou que era filho de uma pessoa importante.”
Lila fez uma expressão de fastio. Obviamente sabia que o encontro
tinha sido arranjado por Pietro e que o sobrenome Airota tinha um peso no
bom êxito daquele encontro, mas me pareceu contrariada com o fato de que
Enzo precisasse saber disso. Pensei que o que a perturbava era a ideia de
que ele também me devesse alguma coisa, como se aquela dívida — que
entre mim e ela não podia ter nenhuma consequência, nem mesmo a
subalternidade da gratidão — pudesse, ao contrário, fazer mal a Enzo.
Apressei-me a dizer que o prestígio de meu sogro importava pouco, que o
especialista em computadores tinha deixado claro, inclusive para mim, que
só o ajudaria se ele fosse bom. Lila fez um gesto um tanto excessivo de
aprovação e exclamou:
“Ele é excelente.”
“Nunca vi um computador na vida”, disse Enzo.
“E daí? Mesmo assim aquele sujeito deve ter notado que você sabe
fazer as coisas.”
Ele pensou e por fim se dirigiu a Lila com uma admiração que, por um
instante, me causou inveja:
“Ficou impressionado com os exercícios que você me estimulou a
fazer.”
“É mesmo?”
“Sim. Especialmente o esquema de coisas do tipo passar roupa, bater
um prego.”
A partir daquele momento, os dois começaram a brincar recorrendo a
fórmulas que eu não entendia e que me excluíam. E de repetente me
pareceram um casal de apaixonados, muito felizes, com um segredo tão
secreto que era desconhecido até para eles mesmos. Revi o pátio de quando
éramos pequenas. Revi Enzo e ela enquanto combatiam pelo primado em
aritmética sob os olhos do diretor e da professora Oliviero. Revi-os
enquanto ele, que nunca chorava, se desesperava por a ter ferido com uma
pedra. Pensei: o modo de eles estarem juntos vem da parte melhor do bairro.
Talvez Lila tenha razão em querer voltar.
54.

Comecei a prestar atenção aos aluga-se, aos cartazes afixados aos portões
que anunciavam casas para locação. Enquanto isso, chegou — endereçado
não a minha família, mas a mim — o convite para a festa de casamento de
Gigliola Spagnuolo e Michele Solara. E, poucas horas depois, me veio
trazido em mãos outro convite: dessa vez se casavam Marisa Sarratore e
Alfonso Carracci, e tanto a família Solara quanto a Carracci se dirigiam a
mim com deferência: egrégia doutora Greco Elena. Os dois convites de
casamento me pareceram quase imediatamente uma boa ocasião para tentar
entender se era bom apoiar o retorno de Lila ao bairro. Planejei ir encontrar
Michele, Alfonso, Gigliola, Marisa, aparentemente só para lhes desejar
felicidades e explicar que os casamentos se realizariam quando eu já estaria
longe de Nápoles; mas, de fato, especialmente para descobrir se os Solara e
os Carracci ainda estavam querendo atazanar Lila. Alfonso me parecia a
única pessoa capaz de me falar de modo desapaixonado em que medida o
rancor de Stefano pela esposa ainda estava vivo. Quanto a Michele, apesar
de o detestar — ou talvez justamente por detestá-lo —, eu queria conversar
com ele calmamente sobre os problemas de saúde de Lila e fazê-lo entender
que, se ele se achava sabe-se lá o quê e zombava de mim como se eu fosse a
menininha de antigamente, agora eu tinha força suficiente para lhe complicar
a vida e os negócios, caso continuasse perseguindo minha amiga. Pus ambos
os convites na bolsa, não queria que minha mãe os visse e se ofendesse pela
reverência com que eu, e não ela e meu pai, era tratada. Tirei um dia inteiro
para me dedicar àqueles encontros.
O tempo não prometia boa coisa, levei o guarda-chuva, mas eu estava
de bom humor, queria caminhar, refletir, fazer uma espécie de saudação ao
bairro e à cidade. Por um hábito de estudante diligente, comecei pelo
encontro mais difícil, com Solara. Fui ao bar, mas não encontrei nem ele,
nem Gigliola, nem mesmo Marcello; me disseram que talvez estivessem na
nova loja do estradão. Dei uma passada lá com o passo da desocupada que
olha ao redor sem pressa. Tinha sido definitivamente apagada a memória da
gruta escura e profunda de dom Carlo aonde, quando pequena, eu ia comprar
sabão líquido e outras coisas para a casa. Das janelas do terceiro andar
descia um letreiro enorme, disposto na vertical, Tutto per tutti, que chegava
até a entrada ampla. A loja estava cheia de luzes, apesar de ser dia, e
dispunha de todo tipo de mercadoria, o triunfo da abundância. Achei o irmão
de Lila, Rino, muito mais gordo. Ele me tratou com frieza, disse que ali
dentro o patrão era ele, que não sabia nada dos Solara. Se está procurando
Michele, vá à casa dele — disse hostil, virando-me as costas como se
tivesse algo urgente a fazer.
De novo caminhei pelas ruas e fui até o bairro novo, onde eu sabia que
toda a família Solara tinha comprado anos antes uma casa enorme. Quem
abriu a porta foi a mãe, Manuela, a agiota, que eu não via desde os tempos
do casamento de Lila. Senti que estava me observando pelo postigo.
Espreitou demoradamente e então puxou o trinco e surgiu na moldura da
porta, em parte imersa no breu da casa, em parte corroída pela luz que vinha
do janelão das escadas. Tinha como que secado. A pele estava repuxada
sobre os ossos grandes, tinha uma pupila luminosíssima e a outra quase
apagada. Nas orelhas, no pescoço, na roupa escura que dançava sobre seu
corpo cintilavam ouros, como se estivesse preparada para uma festa. Tratou-
me com polidez, quis que eu entrasse, que tomasse um café. Michele não
estava, soube que tinha outra casa, em Posillipo, onde passaria a viver
definitivamente depois do casamento. Estava lá com Gigliola, decorando a
casa.
“Vão deixar o bairro?”, perguntei.
“Claro.”
“Por Posillipo?”
“Seis quartos, Lenu, três com vista para o mar. Eu teria preferido o
Vomero, mas Michele quis fazer tudo da própria cabeça. De todo modo, tem
um ar pela manhã, tem uma luz, que você não pode imaginar.”
Fiquei surpresa. Jamais pensei que os Solara se afastariam da zona de
suas transações, da toca onde escondiam o butim. No entanto, justamente
Michele, o mais esperto, o mais ávido da família, ia morar em outro local,
no alto, em Posillipo, de frente para o mar e o Vesúvio. A mania de grandeza
dos dois irmãos realmente crescera, o advogado tinha razão. Mas naquele
momento a notícia me alegrou, fiquei contente de que Michele saísse do
bairro. Achei que isso favoreceria um eventual retorno de Lila.
55.

Pedi o endereço a dona Manuela, despedi-me e atravessei a cidade, primeiro


de metrô até a Mergellina, depois um pouco a pé e um pouco de ônibus,
subindo até Posillipo. Eu estava curiosa. Agora me sentia parte de um poder
legítimo, universalmente admirado, aureolado de cultura de alto nível, e
queria ver que vestes estridentes estava assumindo o poder que eu tivera sob
os olhos desde a infância, o prazer vulgar da intimidação, a prática impune
do crime, o truque sorridente dos obséquios às leis, a exibição do
desperdício tal como eram encarnados pelos irmãos Solara. Mas Michele
me escapou de novo. No último andar de um edifício recém-construído,
encontrei apenas Gigliola, que me acolheu com evidente espanto e com uma
animosidade igualmente evidente. Percebi que, enquanto tinha usado o
telefone da mãe dela a toda hora do dia, eu tinha sido cordial, mas quando
instalei o aparelho na casa dos meus pais toda a família Spagnuolo
desaparecera de minha vida sem que eu me desse conta. E agora, ao meio-
dia, sem aviso prévio, num dia escuro que ameaçava chuva, eu me
apresentava em Posillipo, irrompia numa casa de futura esposa ainda toda
bagunçada? Senti vergonha, mostrei-me artificialmente entusiasta para que
me perdoasse. Por um momento Gigliola permaneceu de cara amarrada,
talvez até em alarme, depois prevaleceu a ostentação. Desejou que eu a
invejasse, quis sentir de modo tangível que a considerava a mais afortunada
de todas nós. Por isso, perscrutando minhas reações, gozando meu
entusiasmo, mostrou-me os aposentos um a um, os móveis caríssimos, os
lampadários deslumbrantes, dois grandes banheiros, o enorme aquecedor de
água, a geladeira, a lavadora, três telefones infelizmente ainda desativados, a
televisão de não sei quantas polegadas e por fim o terraço, que não era um
terraço, mas um jardim suspenso cheio de flores que somente o dia nublado
impedia que fosse apreciado em todas as suas cores.
“Olhe só, você já viu o mar assim? E Nápoles? E o Vesúvio? E o céu?
No bairro já houve todo esse céu?”
Nunca. O mar era de chumbo, e o golfo o circundava como a borda de
uma caldeira. A massa densa das nuvens pretíssimas rolava encrespada até
nós. Mas ao fundo, entre mar e nuvem, havia um longo rasgo que se chocava
contra a sombra roxa do Vesúvio, uma ferida da qual escorria um alvaiade
ofuscante. Ficamos um bom tempo a olhar, as roupas coladas pelo vento. Eu
estava como hipnotizada pela beleza de Nápoles, nem mesmo do terraço da
Galiani, anos atrás, eu a tinha visto assim. O massacre da cidade oferecia a
um custo altíssimo miradouros em cimento sobre uma paisagem
extraordinária, e Michele tinha adquirido um local memorável.
“Você não gosta?”
“É maravilhoso.”
“Não tem comparação com a casa de Lina no bairro, né?”
“Não, não tem comparação.”
“Eu disse Lina, mas quem está lá agora é Ada.”
“É.”
“Aqui é muito mais nobre.”
“É.”
“Mas você fez uma cara de desagrado.”
“Não, estou feliz por você.”
“A cada um o seu. Você estudou, escreve livros, e eu tenho isto aqui.”
“É.”
“Não está convencida disso.”
“Estou convencidíssima.”
“Neste prédio, se você observar as plaquinhas, só moram engenheiros,
advogados e grandes professores. A paisagem e o conforto custam caro. Se
você e seu marido economizarem, acho que também vão poder comprar uma
casa como esta.”
“Não creio.”
“Ele não quer vir morar em Nápoles?”
“Duvido.”
“Nunca se sabe, você tem sorte: escutei várias vezes a voz de Pietro ao
telefone, pude vê-lo da janela, está na cara que é um bom rapaz. Não é que
nem Michele, vai fazer o que você quiser.”
A essa altura ela me puxou para dentro da casa, quis que comêssemos
algo. Desembrulhou presunto e provolone, cortou fatias de pão. Ainda é um
acampamento, se desculpou, mas quando passar em Nápoles com seu marido
venha me visitar, vou lhe mostrar como ficou. Abriu os olhos enormes e
brilhantes, estava excitada pelo esforço de não deixar dúvidas sobre sua
riqueza. Mas aquele futuro improvável — que eu e Pietro viéssemos a
Nápoles e fizéssemos uma visita a ela e a Michele — ao final se revelou
insidioso. Por um instante ela se distraiu, teve pensamentos ruins e, quando
recomeçou com a ostentação, tinha perdido a confiança no que dizia e
começou a mudar. Eu também tive sorte, reiterou, mas falou sem satisfação,
aliás, com uma espécie de sarcasmo dirigido contra si. Carmen — listou —
terminou com o frentista do estradão, Pinuccia se envenena atrás daquele
bronco do Rino, Ada é a prostituta de Stefano. Já eu, sorte minha, tenho
Michele, que é bonito, inteligente, manda em todo mundo, finalmente decidiu
se casar comigo e olhe só onde me colocou, não sabe o banquete que
encomendou, vamos fazer um casamento que nem o xá da Pérsia fez quando
se casou com Soraya. Pois é, ainda bem que o fisguei desde pequena, fui a
mais esperta. E continuou por aí, mas tomando um rumo autoirônico. Teceu
elogios à própria esperteza, deslizando lentamente dos confortos que
conquistara agarrando Solara para si à solidão de seu compromisso de
esposa. Michele, confessou, nunca está, é como se eu estivesse me casando
sozinha. E me perguntou de repente, quase como se de fato quisesse um
parecer: você acha que eu existo? Olhe pra mim, na sua opinião, eu existo?
Bateu a mão aberta no peito farto, mas o fez como para me demonstrar na
prática que a mão a trespassava, que seu corpo, por culpa de Michele, não
existia. Ele tinha tomado tudo dela, logo, desde quando era quase uma
menina. Ele a consumira, amarrotara e, agora que tinha vinte e cinco anos, já
se habituara, nem sequer olhava mais para ela. Fode daqui e dali como bem
entende. O nojo que me dá quando alguém lhe pergunta quantos filhos vocês
querem e ele tripudia, diz: perguntem a Gigliola, filhos eu já tenho e nem sei
quantos são. Seu marido lhe diz essas coisas? Seu marido lhe diz: com
Lenuccia quero três, com as outras, não sei? Ele me trata diante de todos
como um capacho. E eu sei o porquê. Nunca gostou de mim. Está se casando
comigo para ter uma serva leal, todos os homens se casam para isso. E me
fala continuamente: que merda eu vou fazer com você, você não sabe nada,
não tem inteligência, não tem gosto, esta bela casa é um desperdício, tudo
com você se torna uma porcaria. Começou a chorar, dizendo entre soluços:
“Desculpe, estou falando assim porque você escreveu aquele livro de
que gostei e sei que você conhece o sofrimento.”
“Por que você deixa que ele lhe diga essas coisas?”
“Porque senão ele não se casa.”
“Mas depois do casamento faça-o pagar por isso.”
“De que maneira? Está se fodendo para mim: já agora não o vejo nunca,
imagine depois.”
“Então não estou entendendo.”
“Não entende porque não está no meu lugar. Você ficaria com um cara
que você sabe perfeitamente que é apaixonado por outra?”
Olhei para ela perplexa:
“Michele tem uma amante?”
“Muitíssimas, ele é homem, mete o pau onde bem quer. Mas o ponto
não é este.”
“E qual é?”
“Lenu, se eu lhe disser, você não deve repetir isso a ninguém, se não
Michele me mata.”
Prometi; e mantive a promessa: estou escrevendo aqui, agora, só
porque ela está morta. Disse:
“Ele ama Lina. E a ama como nunca me amou, como nunca vai amar
ninguém.”
“Bobagens.”
“Bobagens é o que você está dizendo, Lenu, se não é melhor você ir
embora. Estou falando sério. Ele ama Lina desde aquele maldito dia em que
ela meteu o trinchete na garganta de Marcello. Não estou inventando, ele
mesmo me disse.”
E me contou coisas que me perturbaram profundamente. Contou que,
não muito tempo antes, justamente naquela casa, uma noite Michele ficou
bêbado e lhe disse com quantas mulheres tinha estado, o número exato: cento
e vinte e duas, pagas e de graça. Você está nessa lista, sublinhou, e com
certeza não faz parte das que mais me fizeram gozar, ao contrário. E sabe por
quê? Porque você é cretina, e até para foder bem é preciso um pouco de
inteligência. Por exemplo, você não sabe fazer um boquete, é um fracasso, e
não adianta lhe explicar, você não consegue, se sente logo que lhe dá nojo. E
prosseguiu assim por um tempo, com um monte de frases cada vez mais
nojentas, com ele a vulgaridade era a regra. Depois quis explicar a ela com
clareza em que pé as coisas estavam: casava-se pelo respeito que tinha por
seu pai, exímio confeiteiro a quem era afeiçoado; casava-se porque era
preciso ter uma esposa, e também filhos, e também uma casa respeitável.
Mas não queria que houvesse equívocos: ela, para ele, não era nada, não a
tinha colocado num altar, não era a mulher que ele mais amava, portanto não
devia ousar encher-lhe o saco achando que tivesse algum direito. Palavras
horríveis. A certa altura o próprio Michele deve ter se dado conta disso e foi
tomado por uma espécie de melancolia. Murmurou que as mulheres para ele
eram brinquedos com uns buracos para brincar. Todas. Todas, menos uma.
Lina era a única mulher no mundo que ele amava — amava, sim, como nos
filmes — e respeitava. Ele me disse — soluçou Gigliola — que ela, sim,
saberia decorar esta casa. Me disse que dar dinheiro a ela para gastar à
vontade, sim, teria sido um prazer. Me disse que, com ela, poderia realmente
se tornar alguém importante em Nápoles. Me disse: se lembra do que ela foi
capaz de fazer com aquela foto vestida de noiva, se lembra de como arrumou
a loja? E você, Pinuccia e todas as outras, que merda são, que merda sabem
fazer? Ele lhe dissera aquelas coisas, e não só. Disse que pensava em Lila
noite e dia, mas não com a vontade normal, o desejo por ela não se
assemelhava ao que ele conhecia. Na realidade não a queria. Isto é, não a
queria como em geral queria as mulheres, para senti-las debaixo de si, para
virá-las, revirá-las, abri-las, arrebentá-las, colocá-las sob seus pés e
esmagá-las. Não a queria para pegá-la e esquecê-la: ele a queria na
delicadeza da cabeça repleta de ideias; a queria na inventividade; e a queria
sem a estragar, para que ela durasse; a queria não para fodê-la, aquela
palavra aplicada a Lila o perturbava. Ele a queria para beijá-la e acariciá-
la; a queria para ser acariciado, ajudado, guiado, comandado; a queria para
ver como mudava com o passar do tempo, como envelhecia; a queria para
pensar com ela e ser ajudado a pensar. Entende? Falou dela como de mim —
de mim, que estamos prestes a nos casar — nunca falou. Juro a você, é assim
mesmo. Ele murmurava: meu irmão Marcello, o babaca do Stefano e Enzo,
com aquela cara de bunda, o que eles compreenderam de Lina? Será que se
deram conta do que perderam, do que podem perder? Não, eles não têm
inteligência para isso. Somente eu sei o que ela é, quem é. Eu a reconheci. E
sofro ao pensar em como está se perdendo. Delirou desse jeito, para
desabafar. E eu fiquei ouvindo sem dizer nada, até que ele dormiu. Olhava
para ele e dizia: como é possível que Michele seja capaz desse sentimento?
Não é ele quem está falando, é um outro. E eu odiei aquele outro, pensei:
agora o esfaqueio no sono e recupero meu Michele. Quanto a Lila, não, não
tenho nada contra ela. Quis matá-la anos atrás, quando Michele me tirou a
loja da piazza dei Martiri para me mandar de novo para trás do balcão da
confeitaria. Na época me senti uma merda. Mas agora não a odeio mais, ela
não é o problema. Sempre quis sair fora. Não é uma cretina como eu, que
vou me casar com ele — nunca ficará com ele. Aliás, como Michele vai se
apossar de tudo que há para se apossar, mas com ela não vai conseguir nada,
de uns tempos pra cá até passei a gostar dela: pelo menos há uma que o fará
cagar sangue.
Fiquei escutando, de vez em quando tentei minimizar as coisas para
consolá-la. Falei: se ele vai se casar com você, não importa o que diga, isso
significa que ele lhe dá valor, não se desespere. Gigliola sacudiu a cabeça
energicamente e enxugou as faces com os dedos. Você não o conhece —
disse —, ninguém o conhece como eu. Perguntei:
“Você acha que ele pode perder a cabeça e fazer algum mal a Lina?”
Soltou uma espécie de exclamação, entre a risada e o grito.
“Ele? Mal a Lina? Não viu como se comportou durante todos esses
anos? Ele pode fazer mal a mim, a você, a qualquer um, até ao pai dele, à
mãe, ao irmão. Pode fazer mal a todas as pessoas ligadas a Lina, ao filho, a
Enzo. E pode fazer sem nenhum escrúpulo, a frio. Mas a ela, a ela
pessoalmente, nunca fará nada.”
56.

Decidi completar meu circuito exploratório. Desci a pé até a Mergellina e


cheguei à piazza dei Martiri justamente quando o céu negro estava tão baixo
que parecia apoiado sobre os prédios. Entrei depressa na elegante loja de
calçados Solara convencida de que o temporal desabaria a qualquer instante.
Achei Alfonso ainda mais bonito do que me lembrava, grandes olhos de
cílios longos, lábios bem delineados, o corpo delgado e ao mesmo tempo
forte, o italiano um tanto artificial por causa do estudo de latim e grego.
Ficou sinceramente feliz ao me ver. Termos atravessado juntos os anos
difíceis do ginásio e do liceu havia criado uma relação afetuosa entre nós
que, embora não nos víssemos há tempos, se reanimou prontamente.
Começamos a nos divertir. Falamos sem parar e simultaneamente, sobre
nosso passado na escola, sobre os professores, sobre o livro que eu tinha
publicado, o casamento dele, o meu. Naturalmente fui eu que mencionei Lila,
e ele se confundiu, não queria falar mal dela, mas tampouco do irmão, nem
de Ada. Disse apenas:
“Era previsível que fosse terminar assim.”
“Por quê?”
“Lembra quando eu dizia que Lina me dava medo?”
“Lembro.”
“Não era medo, só entendi bem mais tarde.”
“E o que era?”
“Estranhamento e adesão, um efeito simultâneo de distância e
proximidade.”
“Ou seja?”
“É difícil explicar: eu e você ficamos imediatamente amigos, eu gosto
de você. Com ela isso sempre me pareceu impossível. Tinha algo de terrível
que me fazia ter vontade de me ajoelhar e confessar meus pensamentos mais
secretos.”
Ironizei:
“Bonito, uma experiência quase religiosa.”
Ele continuou sério:
“Não, apenas uma admissão de subalternidade. Bonito mesmo foi
quando ela me ajudou a estudar, isso sim. Lia o manual, entendia
imediatamente, resumia tudo para mim de modo simples. Houve momentos
— e isso acontece ainda hoje — em que pensava: se eu tivesse nascido
mulher, gostaria de ter sido como ela. De fato, dentro da família Carracci,
éramos dois corpos estranhos: nem eu nem ela podíamos durar. Por isso
nunca me importei com suas culpas, e sempre me senti do seu lado.”
“Stefano ainda tem mágoa dela?”
“Não sei. Mesmo que a odeie, tem encrencas demais para gastar com
isso. Neste momento Lina é o último problema dele.”
A afirmação me pareceu sincera e sobretudo fundada, e não falei mais
de Lila. Em vez disso, perguntei sobre Marisa, sobre a família Sarratore, por
fim sobre Nino. Foi vago em relação a todos, especialmente sobre Nino, que
ninguém — por vontade de Donato, me disse — se arriscara a convidar para
o insuportável casamento que ele enfrentaria.
“Você não está contente de se casar?”, arrisquei.
Olhou para além da vitrine: relampejava, trovejava, mas ainda não
chovia. Disse:
“Eu estava bem do jeito que estava.”
“E Marisa?”
“Ela, não, não estava bem.”
“Queria que ela ficasse noiva para o resto da vida?”
“Não sei.”
“Então no fim das contas você fez a vontade dela.”
“Ela procurou Michele.”
Olhei para ele sem entender.
“Em que sentido?”
Riu, uma risadinha nervosa.
“Foi até ele, o colocou contra mim.”
Eu estava sentada num pufe, ele estava de pé, contra a luz. Tinha o
aspecto tenso, compacto, dos toureiros nos filmes sobre corridas.
“Não entendi: você vai se casar com Marisa porque ela pediu a Solara
que lhe dissesse que você devia fazer isso?”
“Estou me casando com Marisa para não fazer uma desfeita a Michele.
Foi ele quem me pôs aqui dentro, confiou em minhas capacidades, tenho
afeto por ele.”
“Você é doido.”
“Você fala assim porque todos têm uma ideia errada de Michele, não
sabem como ele é.” Contraiu o rosto, tentou inutilmente segurar as lágrimas.
Acrescentou: “Marisa está grávida”.
“Ah.”
Então o verdadeiro motivo era esse. Peguei a mão dele e, com grande
constrangimento, tentei acalmá-lo. Sossegou com muito esforço e me disse:
“A vida é uma coisa muito feia, Lenù”.
“Não é verdade: Marisa vai ser uma boa esposa e uma ótima mãe.”
“Estou me lixando para Marisa.”
“Agora não exagere.”
Fixou os olhos em mim, senti que me examinava como para entender
algo de mim que o deixava bloqueado. Perguntou:
“Nem a você Lila nunca disse nada?”
“O que ela devia me dizer?”
Balançou a cabeça, subitamente divertido.
“Está vendo que tenho razão? É uma pessoa incomum. Certa vez confiei
um segredo a ela. Estava apavorado e precisava dizer a alguém a razão de
meu pavor. Contei a ela, e ela me ouviu com atenção, tanto que até me
acalmei. Para mim foi importante falar com ela, me parecia que não me
escutava com os ouvidos, mas com um órgão que só ela possuía e que
tornava as palavras aceitáveis. No final não lhe pedi nada, como se costuma
fazer: jure, por favor, que não vai me trair. Mas agora é claro que, se não
disse nada a você, não falou com ninguém, nem por despeito, nem no período
mais duro para ela, os dias de ódio e das porradas de meu irmão.”
Não o interrompi. Senti apenas que estava descontente porque ele
confiara sabe-se lá o que a Lila, e não a mim, que também era sua amiga
desde sempre. Ele deve ter percebido e decidiu remediar. Me abraçou forte
e sussurrou em meu ouvido:
“Lenù, eu sou bicha, não gosto de mulheres.”
Quando eu estava para ir embora, murmurou embaraçado: tenho certeza
de que você já tinha percebido. Isso acentuou meu desgosto, na verdade o
fato nunca me ocorrera.
57.

Assim passou aquele dia longo, sem chuva, mas escuro. E nesse ponto
começou uma inversão de tendência que rapidamente converteu uma fase de
aparente crescimento da relação entre mim e Lila em desejo de abreviar e
voltar a cuidar de minha vida. Ou talvez já tivesse começado antes, em
minúsculos detalhes que, ao me atingirem, eu mal notara, mas agora
começavam a acumular-se. O périplo tinha sido útil, e no entanto voltei
descontente para casa. Que amizade era essa minha e de Lila, se ela por
tantos anos não me dissera nada sobre Alfonso, com quem sabia que eu tinha
uma ligação importante? Será possível que não se dera conta da dependência
absoluta de Michele quanto a ela, ou por motivos seus tinha decidido me
omitir isso também? Por outro lado, eu, quantas coisa eu lhe havia ocultado?
Passei o resto do dia imersa num caos de lugares, tempos, pessoas
várias: a inquieta dona Manuela, o vazio Rino, Gigliola na primeira
fundamental, Gigliola na segunda fundamental, Gigliola seduzida pela beleza
potente dos jovens Solara, Gigliola encantada com a Millecento, e Michele,
que atraía as mulheres tanto quanto Nino, com a diferença de que ele era
capaz de uma paixão absoluta, e Lila, Lila, que soubera suscitar aquela
paixão, um arrebatamento que não era nutrido apenas por ânsia de posse,
bravatas de periferia, vingança, vontade baixa, como ela tendia a afirmar,
mas era uma forma obsessiva de valorização da mulher, não devoção, não
subalternidade, mas sobretudo um amor masculino entre os mais refinados,
um sentimento complicado que sabia fazer de uma mulher, com
determinação, em certo sentido com ferocidade, a eleita entre as mulheres.
Me senti próxima de Gigliola, compreendi sua humilhação.
À noite encontrei Lila e Enzo. Não falei nada a respeito daquela
incursão que eu fizera por amor a ela e também para proteger o homem com
quem vivia. Mas aproveitei um momento em que Lila estava na cozinha
dando de comer ao menino para dizer a Enzo que ela pretendia voltar ao
bairro. Decidi não lhe esconder minha opinião. Falei que não me parecia
uma boa ideia, mas achava que tudo o que pudesse ajudá-la a estabilizar-se
— era saudável, tinha necessidade apenas de recuperar um equilíbrio —, ou
que ela julgasse que a ajudaria, devia ser encorajado. Tanto mais que o
tempo passara e, pelo que eu sabia, no bairro eles não estariam pior do que
em San Giovanni a Teduccio. Enzo deu de ombros.
“Não tenho nada contra. Vou acordar mais cedo de manhã e voltar um
pouco mais tarde à noite.”
“Vi que a velha casa de dom Carlo está para alugar. Os filhos foram
embora para Caserta e agora a viúva também quer ir morar com eles.”
“Quanto ela está pedindo?”
Disse a ele: no bairro os aluguéis eram mais baixos que em San
Giovanni a Teduccio.
“Tudo bem”, assentiu Enzo.
“De todo modo, vocês sabem que terão problemas.”
“Aqui também temos.”
“As dificuldades serão maiores, e as demandas também.”
“Vamos ver.”
“Vai ficar ao lado dela?”
“Enquanto ela quiser, sim.”
Fomos ver Lila na cozinha, falamos da casa de dom Carlo. Ela acabara
de brigar com Gennaro. Agora que o menino ficava mais com a mãe e menos
com a vizinha, estava desorientado, tinha menos liberdade, era forçado a
perder uma série de hábitos e se rebelava, exigindo aos cinco anos que a
mãe lhe desse de comer na boca. Lila começou a gritar, ele atirou longe o
prato que se espatifou no chão. Quando entramos na cozinha, ela já tinha lhe
dado um tapa. Disse-me de modo agressivo:
“Foi você que deu comida a ele fazendo aviãozinho com a colher?”
“Só uma vez.”
“Não devia.”
Respondi:
“Não vai acontecer mais.”
“Sim, nunca mais, porque depois você leva sua vida de escritora e eu
tenho que desperdiçar meu tempo com isso.”
Aos poucos se acalmou, enquanto eu limpava o piso. Enzo disse que,
para ele, procurar casa no bairro estava bem; eu falei do apartamento de
dom Carlo, sufocando minha mágoa. Ela ficou escutando sem vontade,
enquanto consolava o menino, e então reagiu como se fosse Enzo que
quisesse se mudar, como se fosse eu que pressionasse por aquela escolha.
Por fim nos disse: tudo bem, faço o que vocês quiserem.
No dia seguinte fomos todos ver a casa. Estava em péssimas condições,
mas Lila se entusiasmou: gostava dela por estar nas margens do bairro,
quase em frente ao túnel, e que das janelas se visse a bomba de gasolina do
noivo de Carmen. Enzo observou que, de noite, seriam incomodados pelos
caminhões que passavam no estradão e pelos trens do entroncamento. Porém,
como ela achou que os barulhos de nossa infância também eram bonitos, os
dois entraram em acordo com a viúva por um preço conveniente. A partir
daquele momento, todas as noites, em vez de voltar para San Giovanni a
Teduccio, Enzo se dirigia ao bairro para dedicar-se a uma série de trabalhos
que deviam transformar o apartamento numa habitação digna.
Já tínhamos chegado às vésperas de maio, a data de meu casamento se
aproximava, eu ia e vinha de Florença. Mas Lila, como se não levasse
minimamente em conta aquele prazo, me envolvia em compras para dar uma
arrumada definitiva na casa. Compramos uma cama de casal, uma caminha
para Gennaro, fizemos juntas o pedido de instalação do telefone. As pessoas
nos observavam nas ruas, alguns só cumprimentavam a mim, outros, a ambas,
outros fingiam não ver nenhuma das duas. Em todos os casos Lila parecia à
vontade. Uma vez encontramos Ada; estava sozinha, fez acenos cordiais e
seguiu adiante, como se tivesse pressa. Uma vez cruzamos com Maria, mãe
de Stefano: eu e Lila a cumprimentamos, ela virou a cara. Uma vez Stefano
em pessoa passou de carro e parou; saiu do automóvel, conversou
alegremente apenas comigo, perguntou sobre meu casamento, elogiou
Florença — onde tinha estado recentemente com Ada e a menina — e por
fim deu uma palmadinha em Gennaro, cumprimentou Lila com um gesto de
cabeça e foi embora. Uma vez vimos Fernando, pai de Lila: encurvado,
muito envelhecido, estava parado na frente da escola fundamental, e Lila se
agitou, disse a Gennaro que queria lhe apresentar o avô, e eu tentei detê-la,
mas ela quis ir mesmo assim, e Fernando fez como se a filha não estivesse
presente, mirou o neto por alguns segundos e escandiu: se encontrar sua mãe,
diga a ela que é uma puta, e foi embora.
Mas o encontro mais perturbador, ainda que no momento tenha parecido
o menos significativo, aconteceu dias antes de ela se transferir
definitivamente para o novo apartamento. Justo quando estávamos saindo de
casa topamos com Melina, que levava pela mão a neta Maria, filha de
Stefano e Ada. Estava com o ar alheado de sempre, mas bem-vestida, os
cabelos oxigenados, o rosto muito maquiado. Ela me reconheceu, mas não a
Lila, ou talvez de início tenha preferido falar apenas comigo. Dirigiu-se a
mim como se eu ainda fosse a namorada de seu filho, Antonio: disse que ele
voltaria logo da Alemanha e que sempre perguntava por mim nas cartas. Fiz-
lhe muitos elogios pelo vestido e pelo cabelo, me pareceu contente. Mas se
mostrou ainda mais contente quando elogiei sua neta, que, tímida, se
encolheu na saia da avó. Naquela altura, deve ter se sentido na obrigação de
elogiar Gennaro e se dirigiu a Lila: é seu filho? Só então pareceu recordar-
se dela, que até aquele momento a fixara sem dizer uma palavra, e deve ter
se lembrado de que era a mulher de quem sua filha Ada tirara o marido. Seus
olhos afundaram nas grandes olheiras, e ela disse, muito séria: Lina, como
você ficou feia e seca, é claro que Stefano tinha de deixá-la, os homens
querem carne sobre os ossos, senão não sabem onde meter as mãos e vão
embora. Então, com um movimento muito veloz da cabeça, dirigiu-se a
Gennaro e quase gritou, apontando a menina: sabe que esta aqui é sua irmã?
Deem um beijo um no outro, vamos, meu Deus, como vocês são lindos.
Gennaro beijou imediatamente a irmã, que se deixou beijar sem protestos, e
Melina, ao ver os dois rostos unidos, exclamou: os dois puxaram ao pai,
são idênticos. Depois daquela constatação, como se tivesse coisas urgentes
a fazer, sacudiu a neta e foi embora sem se despedir.
Durante todo aquele tempo Lila permaneceu muda. Mas entendi que lhe
ocorrera algo de muito violento, como na vez em que, ainda criança, tinha
visto Melina passar pelo estradão comendo uma barra de sabão. Assim que a
mulher e a menina se afastaram, ela teve um estremecimento, despenteou-se
freneticamente com uma mão, bateu as pálpebras e disse: vou ficar assim.
Depois tentou rearranjar os cabelos e murmurou:
“Escutou o que ela disse?”
“Não é verdade que você está feia e seca.”
“Quem está se lixando se sou feia ou seca, estou falando da
semelhança.”
“Que semelhança?”
“Entre as duas crianças: Melina tem razão, os dois são idênticos a
Stefano.”
“Que nada: a pequena, sim, mas Gennaro é diferente.”
Ela caiu na risada, depois de tanto tempo recuperou o riso malvado de
sempre. Reconfirmou:
“São como duas gotas d’água.”
58.

Eu precisava absolutamente ir embora. O que eu podia fazer por ela já tinha


feito, agora só estava me arriscando a atolar eu mesma em reflexões inúteis
sobre quem era o verdadeiro pai de Gennaro, sobre quanto Melina tinha
percebido bem, sobre os movimentos secretos da cabeça de Lila, sobre o
que sabia ou não sabia ou supunha e não dizia, ou achava melhor acreditar, e
assim por diante, numa espiral que me consumia. Discutimos sobre aquele
encontro aproveitando o fato de que Enzo estava no trabalho. Usei lugares-
comuns do tipo: uma mulher sempre sabe quem é o pai de seus filhos. Falei:
você sempre sentiu que esse filho era de Nino, aliás, resolveu tê-lo
justamente por isso, e agora tem certeza de que é de Stefano só porque
Melina, a louca, falou? Mas ela ria e dizia: que estúpida, como é que não
consegui entender, e — coisa para mim incompreensível — parecia contente.
Então por fim me calei. Se aquela nova convicção a ajudava a se curar,
ótimo. E se fosse mais um sinal de sua instabilidade, o que eu poderia fazer?
Chega. Meu livro tinha sido adquirido na França, na Espanha e na Alemanha,
seria traduzido por lá. Eu tinha publicado outros dois artigos sobre o
trabalho feminino nas fábricas da Campânia e o pessoal do Unità tinha
ficado satisfeito. Da editora me chegavam incentivos para um novo romance.
Enfim, eu precisava me dedicar a mil coisas minhas, já tinha me dedicado
bastante a Lila e não podia continuar me perdendo nos meandros de sua vida.
Encorajada por Adele, comprei em Milão um tailleur de cor creme para o
casamento, caía bem em mim, o casaco era bem elegante, a saia, curta.
Enquanto o provava pensei em Lila, em seu luxuoso vestido de noiva, na foto
que a modista tinha exposto na vitrine do Rettifilo, e a comparação me fez
me sentir definitivamente diversa. O casamento dela, o meu: mundos já muito
distantes. Tempos atrás eu tinha dito a ela que não me casaria na igreja, que
não usaria um vestido de noiva tradicional, que Pietro mal havia admitido a
presença dos parentes próximos.
“Por quê?”, me perguntara ela, mas sem particular interesse.
“Por que o quê?”
“Por que não se casam na igreja?”
“Não somos religiosos.”
“E o dedo de Deus, e o Espírito Santo?”, ela citou, me recordando o
artiguinho que tínhamos escrito juntas na infância.
“Já cresci.”
“Mas pelo menos faça uma festa, convide os amigos.”
“Pietro não quer.”
“Não vai convidar nem a mim?”
“Você viria?”
Então ela riu balançando a cabeça:
“Não.”
Pois é. Mas nos primeiros dias de maio, quando resolvi tomar uma
última iniciativa antes de deixar definitivamente a cidade, as coisas —
naquele ponto, mas não só — tomaram um rumo desagradável. Eu tinha
decidido fazer uma visita a Galiani. Procurei o número, telefonei. Disse que
estava para me casar, que ia morar em Florença e queria passar para me
despedir. Sem demonstrar surpresa, sem alegria, mas com gentileza, ela me
convidou para as cinco da tarde do dia seguinte. Antes de desligar, falou:
traga também aquela sua amiga, Lina, se ela quiser.
Daquela vez Lila não se fez de rogada e deixou Gennaro com Enzo. Eu
me maquiei, me penteei, me vesti segundo o gosto que assimilara de Adele, e
ajudei Lila a assumir um aspecto pelo menos digno, já que era difícil
convencê-la a ficar bonita. Ela queria levar uns doces, eu disse que não era
o caso. Em vez disso, comprei um exemplar do meu livro, embora desse por
certo que Galiani já o tivesse lido: fiz isso apenas para ter um meio de lhe
escrever uma dedicatória.
Chegamos pontuais, tocamos a campainha, silêncio. Tocamos de novo,
Nadia abriu a porta ofegante, desmazelada, sem a polidez de sempre, como
se tivéssemos perturbado não só seu aspecto, mas também sua boa educação.
Expliquei que tinha um encontro com a mãe dela. Não está, disse, mas nos
fez aguardar na sala. Desapareceu.
Ficamos mudas, trocando sorrisinhos incomodados na casa silenciosa.
Passaram-se talvez cinco minutos, e finalmente ouvimos passos no corredor.
Pasquale apareceu meio descabelado. Lila não demonstrou a mínima
surpresa, eu exclamei realmente maravilhada: o que você está fazendo aqui?
Ele respondeu sério, sem cordialidade: o que vocês estão fazendo aqui. E a
frase inverteu a situação, eu é que precisei explicar a ele — como se aquela
casa fosse sua — que tinha marcado um encontro com minha professora.
“Ah”, disse, e perguntou a Lila, despachado: “Você se recuperou?”
“Estou bem.”
“Bom saber.”
Fiquei irritada, respondi por ela, disse que só agora Lila começava a se
sentir melhor e que de todo modo a Soccavo tinha tido uma bela lição, que
os inspetores fizeram uma visita, que a fábrica teve de pagar a Lila tudo o
que devia.
“É mesmo?”, disse ele justo quando Nadia reapareceu, agora arrumada
como se fosse sair. “Entendeu, Nadia? A doutora Greco diz que deu uma
bela lição à Soccavo.”
Exclamei:
“Eu não.”
“Ela não, quem deu a lição à Soccavo foi o Pai Eterno.”
Nadia esboçou um sorrisinho, atravessou a sala e, embora houvesse um
sofá livre, sentou-se com um movimento gracioso sobre os joelhos de
Pasquale. Fiquei incomodada.
“Apenas tentei ajudar Lina.”
Pasquale envolveu a cintura de Nadia com um braço, inclinou-se para
mim e exclamou:
“Excelente. Quer dizer que em todas as fábricas, em todos os canteiros
de obra, em cada canto da Itália e do mundo, assim que o patrão fizer merda
e os operários se estreparem, vamos chamar Elena Greco: ela telefona aos
seus amigos, à inspetoria do trabalho, a todos os santos do Paraíso, e resolve
tudo.”
Ele nunca me falara daquela maneira, nem quando eu era uma garotinha
e ele me parecia já grande, com ares de político experiente. Me senti
ofendida, fiz que ia responder, mas Nadia interveio me interrompendo.
Dirigiu-se a Lila com sua vozinha lenta, como se não valesse a pena falar
comigo:
“Os inspetores do trabalho não contam nada, Lina. Foram à Soccavo,
preencheram uns papéis, e depois? Tudo continua como antes no
estabelecimento. Enquanto isso, quem se expôs está correndo perigo, quem
ficou calado ganhou uns trocados por baixo do pano, os policiais vieram
para cima de nós e os fascistas espancaram Armando na porta de nossa
casa.”
Ela nem terminou de falar e Pasquale já se dirigia a mim com maior
dureza ainda, dessa vez aumentando a voz:
“Explique pra gente que merda você acha que resolveu”, falou com uma
mágoa e uma decepção sinceras. “Você sabe qual é a situação na Itália? Tem
ideia do que é a luta de classes?”
“Não grite, por favor”, pediu Nadia; depois se dirigiu de novo a Lila e
quase sussurrou:
“Não se abandonam os companheiros.”
Ela respondeu:
“De todo modo, a coisa ia acabar mal.”
“Ou seja?”
“Ali dentro não se vence com panfletos, nem enfrentando os fascistas na
porrada.”
“E como se vence?”
Lila ficou calada e Pasquale esbravejou, agora dirigindo-se a ela:
“É mobilizando os bons amigos dos patrões que se vence? É pegando
um punhado de dinheiro e se fodendo para os outros que se vence?”
Então desabafei:
“Pare com isso, Pasquale”, disse e, sem querer, também aumentei a
voz: “Que tom é este? Não foi assim.”
Eu queria me explicar, silenciá-lo, embora sentisse a cabeça vazia, sem
saber a que argumentos recorrer, e a única ideia que tinha na ponta da língua
era pérfida e politicamente inutilizável: você me trata desse modo porque,
agora que pode meter as mãos nessa mocinha de boa família, está se achando
sabe-se lá o quê. Mas Lila então me impediu e, com um gesto de
aborrecimento totalmente inesperado, que me desconcertou, disse:
“Chega, Lenu, eles têm razão.”
Fiquei péssima. Eles têm razão? Eu queria replicar, polemizar com ela
também, o que tinha querido dizer? Mas naquele momento Galiani chegou,
ouvimos seus passos no corredor.
59.

Torci para que a professora não tivesse me ouvido gritar. Entretanto esperei
que Nadia pulasse do colo de Pasquale e corresse para se sentar no sofá,
desejava ver ambos humilhados pela necessidade de fingir uma ausência de
intimidade. Notei que Lila também os observava irônica. Mas os dois
continuaram como estavam, Nadia até passou um braço no pescoço de
Pasquale como se temesse cair, dizendo à mãe, que tinha acabado de
aparecer na soleira: na próxima vez que tiver visitas, me avise. A professora
não respondeu e dirigiu-se a nós, fria: desculpem, me atrasei, vamos ao meu
escritório. Seguimos atrás dela, enquanto Pasquale afastava Nadia de si
murmurando com um tom que de repente me pareceu deprimido: vamos,
vamos pra lá.
Galiani abriu caminho pelo corredor murmurando irritada: o que
realmente me irrita é a cafonice. Depois nos fez entrar em um aposento
arejado com uma antiga escrivaninha, muitos livros, austeras cadeiras
estofadas. Assumiu um tom gentil, mas era evidente que estava lutando
contra o mau humor. Disse que estava feliz de me ver e de reencontrar Lila;
no entanto, a cada palavra, e entre as palavras, senti que ela estava cada vez
mais furiosa e desejei ir embora o mais depressa possível. Desculpei-me
pelo meu sumiço, falei de modo um tanto apressado sobre o esforço nos
estudos, sobre o livro, sobre as mil coisas que me assoberbaram, o noivado,
o casamento já próximo.
“Você vai se casar na igreja ou só no civil?”
“Só no civil.”
“Muito bem.”
Dirigiu-se a Lila, queria atraí-la para a conversa:
“Você se casou na igreja?”
“Sim.”
“É religiosa?”
“Não.”
“Então por que se casou na igreja?”
“Era assim que se fazia.”
“Não precisaríamos fazer as coisas só porque são feitas de certo jeito.”
“Fazemos tantas.”
“Vai ao casamento de Elena?”
“Ela não me convidou.”
Estremeci e falei imediatamente:
“Não é verdade.”
Lila deu um risinho:
“É verdade, ela tem vergonha de mim.”
O ar era irônico, mas me senti igualmente ferida. O que estava
acontecendo com ela? Por que antes dissera que eu estava errada na frente
de Nadia e Pasquale e agora falava aquela coisa antipática diante da
professora?
“Bobagem”, emendei e, para me acalmar, tirei meu livro da bolsa e o
entreguei a Galiani, dizendo: queria lhe dar isto. Ela o olhou por um instante
sem o enxergar, seguindo talvez um pensamento seu, e então me agradeceu,
disse que já o tinha, me devolveu o exemplar perguntando:
“Seu marido faz o quê?”
“Tem uma cátedra de literatura latina em Florença.”
“É bem mais velho que você?”
“Tem vinte e sete anos.”
“Tão jovem, e já com uma cátedra?”
“Ele é excelente.”
“Como se chama?”
“Pietro Airota.”
Galiani me olhou atentamente, como no colégio, quando eu era
sabatinada e dava uma resposta que ela considerava incompleta.
“Parente de Guido Airota?”
“Filho dele.”
Sorriu com explícita malícia.
“Belo casamento.”
“A gente se gosta.”
“Já começou a escrever outro livro?”
“Estou tentando.”
“Vi que você colabora com o Unità.”
“Poucas coisas.”
“Não escrevo mais para eles, é um jornal de burocratas.”
Passou de novo a Lila, pareceu que queria lhe demonstrar de todos os
modos sua simpatia. Disse:
“O que você fez na fábrica é notável.”
Lila fez uma expressão contrariada.
“Eu não fiz nada.”
“Não é verdade.”
Galiani se levantou, remexeu em uns papéis na escrivaninha, mostrou-
lhe umas folhas como se fossem uma prova irrefutável.
“Nadia deixou esse seu texto pela casa, e eu me permiti lê-lo. É um
trabalho corajoso, novo, muito bem escrito. Queria reencontrá-la para lhe
dizer isso pessoalmente.”
Segurava nas mãos as páginas de Lila de onde eu tinha tirado meu
primeiro artigo para o Unità.
60.

Ah, sim, já era tempo de eu ir embora. Saí da casa de Galiani amargurada, a


boca seca, sem ter tido coragem de dizer à professora que ela não tinha o
direito de me tratar daquela maneira. Não dissera uma palavra sobre meu
livro, embora já o tivesse há tempos, e certamente o tinha lido ou pelo menos
dado uma olhada. Não me pedira uma dedicatória na cópia que eu levara
especialmente para ela e quando eu, antes de ir embora — por fraqueza, por
uma necessidade de encerrar aquela relação de modo afetuoso —, me
ofereci mesmo assim para fazê-la, não respondeu nem sim nem não, apenas
sorriu e continuou conversando com Lila. Sobretudo não dissera nada sobre
meus artigos, ou melhor, antes os citou somente para envolvê-los no juízo
negativo a propósito do Unità, depois tirou da cartola as páginas de Lila e
começou a falar com ela como se minha opinião sobre aquela matéria
valesse um zero à esquerda, como se eu nem sequer estivesse mais naquela
sala. Tive vontade de gritar: sim, é verdade, Lila tem uma inteligência
enorme, inteligência que eu sempre reconheci, que amo, que influenciou tudo
o que eu fiz; mas eu cultivei a minha com grande esforço e com êxito, sou
admirada em todo lugar, não sou uma nulidade pretensiosa como sua filha.
No entanto permaneci calada, só escutando enquanto discutiam sobre
trabalho, fábricas e reivindicações. No patamar da escada continuaram
conversando entre si, até que Galiani se despediu de mim distraidamente,
enquanto dizia a Lila em tom de intimidade: dê notícias — e a abraçou. Me
senti humilhada. Para piorar, Pasquale e Nadia não reapareceram, não tive
ocasião de rebatê-los e fiquei com aquela raiva por dentro em relação a
eles: que culpa havia em ajudar uma amiga, eu me expus ao fazer aquilo,
como tinham se permitido criticar minha ação? Agora, nas escadas, no hall,
na calçada do corso Vittorio Emanuele estávamos somente eu e Lila. Já
estava a ponto de gritar para ela: você acha realmente que eu tenho vergonha
de você, o que deu na sua cabeça, por que deu razão àqueles dois, você é
uma ingrata, fiz de tudo para estar ao seu lado, para lhe ser útil, e você me
trata assim, você realmente não é boa da cabeça. Mas assim que chegamos à
rua, antes mesmo que eu pudesse abrir a boca (por outro lado, o que mudaria
se eu tivesse desabafado?), ela me pegou pelo braço e desandou a falar em
minha defesa contra Galiani.
Não encontrei nenhuma brecha para censurá-la, nem pelo seu
alinhamento com Pasquale e Nadia, nem pela acusação insensata de que eu
não a queria em meu casamento. Comportou-se como se uma outra Lila
tivesse dito aquelas coisas, uma Lila que ela mesma desconhecia
inteiramente, a quem era inútil pedir explicações. Que gente horrível —
disparou a dizer sem parar, até chegarmos ao metrô de piazza Amedeo — ,
viu como a velha tratou você, ela quis se vingar, não consegue suportar o
fato de você escrever livros e artigos, não consegue suportar que você esteja
prestes a fazer um bom casamento, sobretudo não consegue suportar que
Nadia, educada justamente para ser a melhor de todas, Nadia, que devia lhe
dar tanta satisfação, não acerta uma, vive grudada no pedreiro e banca a
vagabunda dele na frente de todos; é verdade, ela não suporta tudo isso, mas
você não deveria se incomodar, foda-se para ela, não devia ter deixado o
livro com ela, não devia perguntar se queria a dedicatória, aliás, não devia
ter feito dedicatória nenhuma, essa gente precisa ser tratada a pontapés, seu
defeito é que você é boazinha demais, engole tudo o que as pessoas
estudadas dizem, como se só eles tivessem cabeça, mas não é assim, relaxe,
vá, se case, faça sua viagem de lua de mel, você se preocupou muito comigo,
escreva outro romance, você sabe que espero coisas maravilhosas suas, que
gosto muito de você.
Durante todo o tempo fiquei ouvindo, subjugada. Com ela não havia
modo de se aquietar, cedo ou tarde cada ponto firme de nosso
relacionamento se revelava uma fórmula provisória, logo se movia algo em
sua cabeça que a desequilibrava e me desequilibrava. Não entendi se
aquelas palavras de fato serviam como um pedido de desculpas, se falava
com fingimento, me ocultando sentimentos que não tinha intenção de me
confiar, se pensava num adeus definitivo. Com certeza estava sendo falsa,
sendo ingrata, e eu, malgrado todas as minhas mudanças, continuava sendo
subalterna. Senti que nunca me livraria daquela subalternidade, e essa
constatação me pareceu insuportável. Desejei — e não consegui afastar esse
desejo — que o cardiologista estivesse enganado, que Armando tivesse
razão, que ela realmente estivesse doente e morresse.
Desde então, por anos, não nos vimos mais, apenas nos falamos por
telefone. Tornamo-nos uma para a outra fragmentos de vozes, sem jamais
uma verificação do olhar. Mas o desejo de que ela morresse ficou num canto,
eu o expulsava, e ele não ia embora.
61.

Na noite anterior à minha partida para Florença não consegui dormir. Dentre
todos os pensamentos dolorosos, o mais resistente dizia respeito a Pasquale.
As críticas dele me queimavam. Num primeiro momento as rejeitei em
bloco, mas agora oscilava entre a convicção de que não as merecia e a ideia
de que, se Lila dera razão a ele, talvez eu tivesse errado de fato. Por fim, fiz
algo que nunca havia feito: levantei da cama às quatro da manhã e saí de
casa sozinha, antes que amanhecesse. Estava muito infeliz, queria que me
acontecesse algo ruim, um evento que, punindo-me por minhas ações
equivocadas e meus maus pensamentos, também punisse Lila por reflexo. No
entanto nada me aconteceu. Caminhei longamente pelas ruas desertas, bem
mais seguras do que quando estavam lotadas. O céu ficou violeta. Cheguei
ao mar, uma folha acinzentada sob o céu pálido com raras nuvens de bordas
rosadas. A massa do Castel dell’Ovo estava nitidamente cortada em duas
pela luz, uma forma ocre resplandecente do lado do Vesúvio, uma mancha
marrom do lado de Mergellina e Posillipo. A rua ao longo do arrecife estava
vazia, o mar não tinha som, mas emanava um cheiro intenso. Quem sabe que
sentimento eu teria de Nápoles, de mim, se acordasse todas as manhãs não
no bairro, mas num daqueles edifícios à beira-mar. O que estou buscando?
Mudar meu nascimento? Mudar a mim mesma e também aos outros?
Repovoar esta cidade agora deserta de cidadãos sem o suplício da miséria
ou da avidez, sem rancor e sem fúrias, cidadãos capazes de gozar o
esplendor da paisagem como as divindades que um dia a habitaram?
Favorecer meu demônio, dar a ele uma boa vida e me sentir feliz? Eu tinha
usado o poder dos Airota, gente que há gerações lutava pelo socialismo,
gente que estava ao lado de pessoas como Pasquale e Lila, não porque eu
pensasse em consertar os problemas do mundo, mas porque estava em
condições de ajudar uma pessoa que eu amava e me parecera indesculpável
não o fazer. Tinha agido mal? Devia ter deixado Lila se virar? Nunca mais,
nunca mais moveria uma palha por ninguém. Parti, fui me casar.
62.

Não recordo nada de meu casamento. O auxílio de algumas fotos, ao invés


de mover a memória, congelou-a em torno de umas poucas imagens: Pietro
com uma expressão distraída, eu com aparência irritada, minha mãe fora de
foco, mas mesmo assim conseguindo se mostrar descontente. Ou não. É do
ritual em si que não lembro nada, mas tenho em mente a longa discussão que
tive com Pietro dias antes de nos casarmos. Disse a ele que pretendia tomar
a pílula para não ter filhos, que me parecia urgente tentar antes de tudo
escrever outro livro. Estava certa de que contaria imediatamente com sua
concordância. Em vez disso, para minha surpresa, ele se mostrou contrário.
Primeiro fez disso um problema jurídico, a pílula ainda não estava sendo
oficialmente comercializada; depois disse que muitos falavam que ela fazia
mal à saúde; então passou a uma argumentação complicada sobre sexo, amor
e fecundação; por fim resmungou que, se alguém realmente precisa escrever,
escreve de qualquer jeito, mesmo esperando um bebê. Fiquei incomodada,
me enfureci, aquela reação me pareceu incoerente com o jovem culto que
tinha exigido o casamento apenas no civil, e disse isso a ele. Brigamos.
Chegamos ao dia do matrimônio sem fazermos as pazes, ele mudo, eu fria.
Houve ainda outra surpresa que não se apagou: a recepção. Tínhamos
decidido casar, nos despedir dos parentes e ir para casa sem nenhum tipo de
festa. Aquela escolha havia amadurecido fundindo a vocação ascética de
Pietro com minha tendência a mostrar que eu não pertencia mais ao mundo
de minha mãe. Mas nossa linha de conduta foi secretamente minada por
Adele. Ela nos arrastou para a casa de uma amiga, para um brinde, e ali
Pietro e eu nos vimos no centro de uma grande recepção numa nobilíssima
mansão florentina, entre um considerável número de parentes dos Airota e
pessoas conhecidas, algumas conhecidíssimas, que ficaram lá até a noite.
Meu marido ficou taciturno, e eu me perguntei desorientada por que, já que
de fato se tratava da festa do meu casamento, eu teria de me limitar a
convidar apenas meus pais e irmãos. Indaguei a Pietro:
“Você sabia que as coisas estavam nesse pé?”
“Não.”
No início enfrentamos juntos a situação. Mas logo ele se mostrou
refratário às tentativas da mãe e da irmã de apresentá-lo ora a um, ora a
outro convidado, isolou-se num canto com meus parentes e conversou com
eles durante todo o tempo. Eu a princípio me resignei — com certo
desconforto — a habitar a arapuca em que tínhamos caído, depois comecei a
achar excitante que políticos famosos, intelectuais prestigiosos, jovens
revolucionários e até um poeta e um romancista muito conhecidos
demonstrassem interesse por mim, pelo meu livro, e me elogiassem pelos
artigos no Unità. O tempo voou, e me senti cada vez mais aceita no mundo
dos Airota. Até meu sogro quis me ter a seu lado, perguntando-me com
gentileza sobre minhas competências em questões relativas ao trabalho. Em
pouco tempo se formou um círculo, pessoas empenhadas em refletir nos
jornais e revistas sobre a maré de reivindicações que estava tomando conta
do país. E eu, eu estava ali, ao lado deles, e aquela era a minha festa, e eu
estava no centro dos debates.
A certa altura meu sogro elogiou muito um artigo publicado no Mondo
Operaio que, segundo ele, expunha o problema da democracia na Itália com
límpida inteligência. Graças a uma grande quantidade de dados, o texto
substancialmente mostrava que enquanto a rai, os grandes jornais, a escola, a
universidade e a magistratura trabalhassem dia e noite para consolidar a
ideologia dominante, a concorrência eleitoral resultaria de fato truncada, e
os partidos operários nunca teriam votos suficientes para governar. Sinais de
concordância, citações em defesa daquela tese, referências a essa e aquela
contribuição. Por fim o professor Airota, com toda sua autoridade, disse o
nome do autor do artigo, e eu soube antes mesmo que o pronunciasse —
Giovanni Sarratore — que se tratava de Nino. Fiquei tão contente que não
consegui me conter, disse que o conhecia, chamei Adele para que
confirmasse a meu marido e aos presentes como meu amigo napolitano era
brilhante.
Nino participou de meu casamento mesmo não estando presente, e ao
falar sobre ele me senti autorizada a falar também sobre mim, sobre as
razões que me levaram a tratar das lutas dos trabalhadores, da necessidade
de fornecer elementos para que partidos e representantes parlamentares da
esquerda superassem os atrasos que tinham acumulado na compreensão da
quadra política e econômica em curso e assim por diante, com fórmulas que
eu tinha aprendido fazia pouco, mas que usei com desenvoltura. Me senti
poderosa. Fiquei cada vez mais bem-humorada, gostei de estar ao lado de
meus sogros e de me sentir apreciada por seus amigos. No final, quando
meus parentes se despediram tímidos e correram para se abrigar não sei
onde, à espera do primeiro trem que os levasse de volta a Nápoles, eu já não
tinha vontade de manter a cara amarrada para Pietro. Coisa que ele deve ter
notado, já que, por sua vez, ficou mais carinhoso e diluiu qualquer tensão.
Assim que chegamos ao nosso apartamento e fechamos a porta de casa,
começamos a fazer amor. No início gostei muito, mas o dia ainda me
reservava um fato surpreendente. Antonio, meu primeiro namorado, quando
se esfregava em mim era rápido e intenso; Franco fazia enormes esforços
para se conter, mas a certa altura saía de dentro de mim com um estertor ou,
quando estava usando preservativo, de repente parava e parecia se tornar
mais pesado, me esmagava sob seu peso rindo em meu ouvido. Já Pietro se
esforçou por um tempo que me pareceu eterno. Entrava em mim com
investidas calculadas, violentas, tanto que o prazer inicial se atenuou aos
poucos, vencido pela insistência monótona e pela dor que sentia no ventre.
Ele se cobriu de suor pelo demorado esforço, talvez pelo sofrimento, e ao
ver seu rosto e o pescoço banhados, ao tocar suas costas empapadas, o
desejo sumiu inteiramente. Mas ele não se deu conta, continuou a sair e a
afundar dentro de mim com força, no mesmo ritmo, sem parar nunca. Eu não
sabia como me comportar; acariciava-o, sussurrava-lhe palavras de amor e
torcia para que parasse. Quando explodiu num rugido e desabou finalmente
exausto, me senti contente, apesar de dolorida e insatisfeita.
Ficou pouquíssimo tempo na cama, levantou-se, foi ao banheiro.
Esperei-o por alguns minutos, mas estava cansada e mergulhei no sono.
Acordei assustada depois de uma hora e me dei conta de que ele não tinha
voltado para a cama. Encontrei-o no escritório, sentado à escrivaninha.
“O que você está fazendo?”
Ele sorriu.
“Trabalhando.”
“Venha dormir.”
“Vá você, estou indo mais tarde.”
Tenho certeza de que engravidei naquela noite.
63.

Assim que descobri que esperava um filho, fui tomada de ansiedade e


telefonei logo para minha mãe. Por mais que nossa relação sempre tivesse
sido conflituosa, naquela circunstância prevaleceu a necessidade de ouvi-la.
Foi um erro, ela imediatamente passou a me atormentar. Queria sair de
Nápoles, estabelecer-se em minha casa, me ajudar, me orientar ou, em vez
disso, levar-me de volta para o bairro, ter-me de novo em sua casa, confiar-
me à velha parteira que trouxera à luz todos os seus filhos. Tive dificuldade
de mantê-la a distância, falei que já estava sendo acompanhada por um
ginecologista amigo de minha sogra, um grande professor, e que eu faria o
parto na clínica dele. Ela se ofendeu. Sibilou para mim: prefere sua sogra a
mim — e não telefonou mais.
Passados alguns dias, quem me ligou foi Lila. Já tínhamos tido uns
contatos telefônicos depois de minha partida, mas só de poucos minutos, não
queríamos gastar muito, ela alegre, eu distante, ela perguntando irônica sobre
minha vida de casada, eu me informando séria sobre sua saúde. Dessa vez
me dei conta de que algo não ia bem.
“Está chateada comigo?”, indagou.
“Não, por que deveria?”
“Você não me comunicou nada. A notícia só me chegou porque sua mãe
se gaba de sua gravidez com todo mundo.”
“Só tive a confirmação recentemente.”
“Achei que estivesse tomando a pílula.”
Fiquei confusa.
“Sim, mas depois decidi que não.”
“Por quê?”
“Os anos passam.”
“E o livro que você deve escrever?”
“Depois vejo isso.”
“Veja mesmo.”
“Farei o possível.”
“Deve fazer o máximo.”
“Vou tentar.”
“Eu estou tomando a pílula.”
“Então vai tudo bem com Enzo?”
“Muito bem, mas não quero engravidar nunca mais.”
Ela se calou, eu também não disse mais nada. Quando tornou a falar, me
contou sobre as duas vezes em que se deu conta de que esperava um bebê.
Definiu ambas como uma experiência horrível: na segunda — disse — eu
tinha certeza de que o menino era de Nino e, mesmo estando mal, fiquei
contente. Mas, contente ou não, você vai ver, o corpo sofre, não aceita se
deformar, sente muita dor. A partir dali, seguiu adiante num crescendo cada
vez mais tétrico, eram coisas que ela já tinha me falado, mas nunca com tanto
afã de me arrastar para seu sofrimento a fim de que eu também o
experimentasse. Parecia querer me preparar para o que me esperava, estava
muito preocupada comigo e com meu futuro. A vida de um outro, me disse,
primeiro ele se gruda na barriga e, quando finalmente sai lá de dentro, logo a
transforma numa prisioneira, lhe mete uma coleira, e você não é mais dona
de si. Esboçou animadamente cada fase de minha maternidade decalcando-a
da sua, expressou-se com seu modo eficaz de sempre. É como se você
fabricasse para si seu próprio tormento, exclamou, e percebi que Lila não
conseguia pensar que ela era ela e eu era eu, parecia-lhe inconcebível que eu
pudesse ter uma gravidez diferente da dela, um sentimento diverso dos
filhos. Dava por tão certo que eu enfrentaria suas mesmas dificuldades que
me pareceu pronta a considerar uma eventual alegria minha com a
maternidade como uma traição.
Não quis mais ouvi-la, afastei o fone do ouvido, ela me assustava.
Despedimo-nos sem calor.
“Se precisar de mim”, disse, “me avise.”
“Tudo bem.”
“Você me ajudou, agora eu quero te ajudar.”
“Tudo bem.”
Mas aquele telefonema não me ajudou em nada, ao contrário, me deixou
mais inquieta. Estava morando numa cidade sobre a qual não sabia nada,
embora graças a Pietro agora a conhecesse em cada recanto, coisa que não
podia dizer de Nápoles. Eu adorava as margens do Arno, fazia belos
passeios por lá, mas não gostava da cor das casas, me deixava de mau
humor. O ar arrogante de seus moradores — o porteiro do prédio, o
açougueiro, o padeiro, o carteiro — me levava a ser igualmente arrogante, e
daí nascia uma hostilidade sem motivo. Além disso, os muitos amigos de
meus sogros, tão disponíveis no dia do casamento, nunca mais tinham dado
as caras, nem Pietro tinha intenção de revê-los. Sentia-me sozinha e frágil.
Comprei uns livros sobre como se tornar uma mãe perfeita e me preparei
com a habitual diligência.
Os dias passaram, as semanas, mas, para minha surpresa, a gravidez
não me pesou nem um pouquinho, ao contrário, me deixou alegre. As náuseas
foram irrelevantes, nunca tive fraquezas no corpo, no humor, na vontade de
fazer as coisas. Estava no quarto mês quando meu livro recebeu um prêmio
relevante, que me trouxe mais reconhecimento e um pouco mais de dinheiro.
Fui recebê-lo apesar do clima político hostil àquele tipo de distinção e me
senti em estado de graça, orgulhosa de mim, com um sentimento de
completude física e intelectual que me deixou sem timidez, muito expansiva.
No discurso de agradecimento falei demais, disse que me sentia feliz como
os astronautas na branca extensão da lua. Dois dias depois, já que me sentia
forte, telefonei a Lila para lhe contar sobre o prêmio. Queria dizer que as
coisas não estavam indo como ela previra, que, ao contrário, tudo seguia
tranquilamente, que eu estava satisfeita. Eu me sentia tão plena que desejava
passar por cima dos desgostos que ela me tinha dado. Mas Lila tinha lido no
Mattino — apenas os jornais napolitanos haviam dedicado algumas linhas
ao prêmio — aquela minha frase sobre os astronautas e, sem me dar tempo
de falar, criticou-a com aspereza. A branca extensão da lua, ironizou, às
vezes é melhor ficar calado que dizer cagadas. E acrescentou que a lua era
uma pedra entre bilhões de outras pedras e que, pedra por pedra, o melhor
era ficar com os pés bem plantados nos problemas da terra.
Senti uma agulhada no estômago. Por que continuava me ferindo? Não
queria que eu fosse feliz? Ou nunca se recuperara de fato, e era seu mal-estar
que acentuava seu lado ruim? Ocorreram-me palavras terríveis, mas não
consegui pronunciá-las. Como se não tivesse percebido que me machucara,
ou como se pensasse que tinha direito a isso, passou em seguida a me contar
suas coisas com um tom muito amigável. Tinha feito as pazes com o irmão,
com a mãe, até com o pai; brigou com Michele Solara sobre a velha questão
da marca dos calçados e do dinheiro que ele devia a Rino; entrou em contato
com Stefano para solicitar que, pelo menos do ponto de vista econômico, ele
também cumprisse seu papel de pai com Gennaro, e não só com Maria.
Pronunciou frases cortantes, às vezes vulgares, seja contra Rino, seja contra
os Solara, seja contra Stefano. Por fim me perguntou, como se de fato tivesse
uma necessidade urgente de ouvir minha opinião: fiz bem? Não respondi. Eu
tinha ganhado um prêmio importante e ela só se importara com a frase sobre
os astronautas. Perguntei a ela, talvez para ofendê-la, se ainda tinha aqueles
sintomas que lhe perturbavam a cabeça. Respondeu que não, repetiu duas
vezes que estava ótima e acrescentou com uma risadinha autoirônica: só de
vez em quando vejo com o canto do olho umas pessoas saindo dos móveis.
Então me perguntou: tudo bem com a gravidez? Tudo ótimo, excelente — eu
disse —, nunca estive melhor.
Viajei bastante naqueles meses. Era convidada para cá e para lá não só
por causa de meu livro, mas também pelos artigos que escrevia, os quais por
sua vez me forçavam a deslocar-me para ver de perto as novas formas de
greve, as reações do patronato. Nunca pensei em me esfalfar para ser
articulista. Fazia porque, ao fazê-lo, ficava contente. Me sentia
desobediente, em revolta, insuflada de uma tal potência que minha
docilidade parecia um disfarce. De fato, graças a isso, me intrometia nos
piquetes em frente das fábricas, falava com operários, operárias e
sindicalistas, irrompia entre os policiais. Nada me atemorizava. Quando o
Banco da Agricultura explodiu eu estava em Milão, na editora, mas não me
alarmei, não tive presságios sombrios. Considerava-me parte de uma força
irrefreável, considerava-me invulnerável. Ninguém podia fazer nenhum mal
a mim nem a meu menino. Nós dois éramos a única realidade durável, eu
visível, e ele (ou ela: mas Pietro desejava um menino), por ora, invisível. O
resto era uma corrente de ar, uma onda imaterial de imagens e sons que,
desastrosa ou benéfica que fosse, constituía material para o meu trabalho, ia
além ou pesava para que eu a pusesse em palavras mágicas dentro de um
romance, um artigo, um discurso público, atentando para que nada escapasse
ao esquema e cada conceito agradasse aos Airota, à editora, a Nino — que
em algum lugar com certeza me lia —, até a Pasquale (por que não?) e a
Nadia, e a Lila, que finalmente seriam forçados a pensar: olha aí, fomos
injustos com Lena, ela está do nosso lado, veja só o que ela escreve.
Foi uma época particularmente intensa, a da gravidez. Fiquei surpresa
com o fato de que meu estado me tornava mais propensa ao sexo. Era eu
quem procurava Pietro, o abraçava, o beijava, embora ele não fosse dado a
beijos e abraços e passasse quase imediatamente a me penetrar com seu
modo demorado e doloroso. Depois se levantava e trabalhava até tarde da
noite. Eu dormia uma ou duas horas, depois acordava, não o encontrava na
cama, acendia a luz e lia até me cansar. Então ia até o escritório dele,
obrigava-o a vir dormir. Ele me obedecia, mas se levantava de manhã cedo,
parecia que o sono o assustava. Já eu continuava dormindo até o meio-dia.
Houve apenas um acontecimento que me deixou angustiada. Era o
sétimo mês, a barriga já pesava bastante. Eu estava nos portões da
metalúrgica Nuovo Pignone quando estourou uma briga e fugi. Talvez eu
tenha feito um movimento errado, não sei, o fato é que senti uma fisgada
dolorosíssima no centro da nádega direita, que se estendeu pela perna como
um ferro quente. Voltei para casa mancando, deitei na cama, passou. Mas de
vez em quando a dor reaparecia e se irradiava pela coxa até a virilha.
Habituei-me a reagir buscando posições que a atenuassem, mas, quando me
dei conta de que tendia a mancar continuamente, fiquei aterrorizada e fui ao
professor que acompanhava meu pré-natal. Ele me acalmou, disse que estava
tudo em ordem, o peso que eu carregava no ventre me cansava, causando um
pouco de ciática. Por que está tão preocupada, me perguntou com um tom
afetuoso, a senhora é uma pessoa tão serena. Menti, disse que não sabia. Na
verdade eu sabia perfeitamente, era o temor de que os passos de minha mãe
tivessem me alcançado, que tivessem se infiltrado em meu corpo, que eu
passasse a mancar para sempre que nem ela.
Depois das palavras apaziguadoras do obstetra fiquei mais tranquila, a
dor durou ainda um tempo, até sumir. Pietro me proibiu de fazer outras
loucuras, chega dessa mania de correr para cá e para lá. Dei razão a ele,
passei o último período da gravidez lendo, não escrevi quase nada. Nossa
filha nasceu em 12 de fevereiro de 1970, às cinco e vinte da manhã. Demos-
lhe o nome de Adele, embora minha sogra não parasse de repetir: coitada da
menina, Adele é um nome horrível, deem qualquer outro nome a ela, mas não
este. Dei à luz depois de dores atrozes, mas que duraram pouco. Quando vi a
menina, cabelos pretíssimos, um organismo arroxeado que se retorcia e
vagia cheio de vigor, experimentei um prazer físico tão arrebatador que
ainda hoje não consigo achar nenhum prazer que se compare. Não a
batizamos, minha mãe gritou coisas infames pelo telefone, jurou que nunca
viria vê-la. Ela vai se acalmar, pensei entristecida; de todo modo, se não
vier, pior para ela.
Assim que me recuperei do parto telefonei para Lila, não queria que se
chateasse por eu não ter dito nada.
“Foi uma experiência maravilhosa”, disse a ela.
“O quê?”
“A gravidez, o parto. Adele é linda, e muito boazinha.”
Ela respondeu:
“Cada um conta a própria vida como acha melhor.”
64.

Que emaranhado de fios e pontas irrecuperáveis descobri dentro de mim


naquele período. Eram velhos e descoloridos, novíssimos, às vezes de cores
vivas, às vezes sem cor nenhuma, finíssimos, quase invisíveis. Aquele
estado de bem-estar acabou repentinamente justo quando me parecia ter
escapado aos vaticínios de Lila. A menina mudou para pior, e as áreas mais
remotas daquele esboço vieram à tona como num gesto distraído. A
princípio, quando ainda estávamos na clínica, ela grudara em meu peito com
facilidade, mas quando chegamos em casa alguma coisa saiu dos trilhos e
não me quis mais. Mamava uns poucos segundos, depois berrava como um
bichinho furioso. Me vi enfraquecida, exposta a velhas superstições. O que
estava acontecendo com ela? Meus mamilos eram muito pequenos, lhe
escapavam da boca? Não gostava do meu leite? Ou uma aversão a mim, sua
mãe, lhe fora inoculada a distância por algum malefício?
Teve início um calvário de médico em médico, apenas eu e ela, Pietro
estava sempre ocupado com a universidade. Meu peito inchado inutilmente
começou a doer, tinha pedras incandescentes nos seios, imaginava infecções,
amputações. Para me esvaziar, para tirar leite suficiente e alimentar a menina
com a mamadeira, eu me torturava com o tira-leite. Sussurrava em seu
ouvido, persuasiva: mame, vamos, você é tão boazinha, tão terna, que
boquinha linda, que lindos olhinhos, o que é que não está bom? Inútil. A
princípio optei com muita dor pelo aleitamento misto, depois renunciei até a
isso. Passei ao leite artificial, que me obrigou a longos preparativos dia e
noite, um sistema irritante de esterilização das mamadeiras, um controle
obsessivo do peso antes e após as refeições, sentimento de culpa a cada
diarreia. Às vezes me lembrava de Silvia, que, no clima turbulento da
assembleia estudantil em Milão, dava de mamar ao filho de Nino, Mirko,
com grande naturalidade. Por que eu não? E cedia a choros longos e
escondidos.
Por alguns dias a menina se regularizou, me senti aliviada, esperei que
tivesse chegado o momento de reorganizar minha vida. Mas a trégua durou
menos de uma semana. Em seu primeiro ano de vida a pequena nunca pregou
olho, seu corpinho miúdo se retorcia e estremecia por horas com uma
energia e uma resistência insuspeitadas. Só se acalmava quando eu passeava
com ela pela casa, apertada em meus braços, falando em seu ouvido: agora a
criaturinha maravilhosa da mamãe vai ficar boazinha, agora vai ficar calada,
agora descansa, agora dorme. Mas a criaturinha maravilhosa não queria
dormir, parecia temer o sono que nem o pai. O que era? Dor de barriga,
fome, medo do abandono porque eu não a amamentara, mau-olhado, um
demônio que lhe entrara no corpo? E o que é que eu tinha? Que veneno tinha
entrado em meu leite? E a perna? Era uma impressão ou estava voltando a
doer? Culpa de minha mãe? Queria me punir porque durante toda a vida eu
tentara não me parecer com ela? Ou havia mais coisas?
Uma noite ressurgiu em minha memória o fio de voz de Gigliola quando
espalhara pelo bairro que Lila tinha um poder tremendo, que era capaz de
malefícios com o fogo, que sufocava os bebês na barriga. Senti vergonha de
mim, tentei reagir, estava precisando repousar. Então experimentei deixar a
pequena com Pietro, que, habituado a estudar à noite, sentia menos o
cansaço. Eu dizia: estou acabada, me chame daqui a duas horas, e me metia
na cama, caía no sono como se perdesse os sentidos. Mas certa vez fui
acordada pelo choro desesperado da menina; esperei um pouco, ela não
parava. Então levantei. Descobri que Pietro tinha arrastado o berço para o
escritório e, sem fazer caso dos berros da filha, estava curvado sobre os
livros, preenchendo fichas como se fosse surdo. Perdi as estribeiras, regredi
ainda mais, o insultei no meu dialeto. Você está cagando para tudo, essa
coisa é mais importante do que sua filha? Distante, impassível, meu marido
me convidou a sair do quarto e a levar o berço. Estava terminando um artigo
importante para uma revista inglesa, o prazo estava muito próximo. Desde
então não lhe pedi mais ajuda e, se ele se oferecia, eu falava: pode ir,
obrigada, eu sei que você está ocupado. Depois do jantar ele me rondava
inseguro, embaraçado, e então se fechava no escritório e trabalhava até tarde
da noite.
65.

Me senti abandonada, mas com a impressão de que merecia aquilo: não era
capaz de garantir serenidade a minha filha. No entanto segui firme, embora
estivesse cada vez mais assustada. Meu organismo recusava o papel de mãe.
E por mais que eu rechaçasse a dor na perna, fazendo de tudo para ignorá-la,
a dor tinha voltado e crescia. Mas eu insistia, me esgotava cuidando de tudo.
Como o prédio não tinha elevador, eu subia e descia com a pequena dentro
do carrinho, ia fazer as compras, voltava carregada de sacolas, limpava a
casa, cozinhava, pensava: estou ficando feia e velha antes da hora, que nem
as mulheres do bairro. E, claro, sempre que estava particularmente
desesperada, telefonava para Lila.
Assim que ouvia a voz dela me vinha de gritar: mas o que foi que você
fez, estava indo tudo bem e agora, de uma hora para outra, está acontecendo
justamente o que você dizia, a menina está mal, eu estou mancando, como é
possível, não aguento mais. Mas conseguia me segurar a tempo e murmurara:
está tudo bem, a pequena dá um certo trabalho e por ora cresce pouco, mas é
maravilhosa, estou muito contente. Então, com falso interesse, passava a
perguntar por Enzo, por Gennaro, pelas relações dela com Stefano, com o
irmão, o bairro, se tinha tido outros problemas com Bruno Soccavo ou com
Michele. Ela respondia num dialeto pesado e agressivo, mas em geral sem
raiva. Soccavo — dizia — precisa se ferrar. E Michele, se eu topar com ele,
cuspo na cara. Quanto a Gennaro, agora se referia a ele explicitamente como
o filho de Stefano e dizia: é quadrado que nem o pai. E ria quando eu falava
é um menino tão agradável, disparava: você é uma mamãezinha tão boa,
fique com ele. Naquelas frases eu sentia o sarcasmo de quem conhecia,
graças quem sabe a que força oculta, o que de fato estava ocorrendo comigo,
e isso me dava rancor, mas eu redobrava a carga, insistia com meu teatrinho
— escute que vozinha linda a Dede tem, aqui em Florença é uma beleza,
estou lendo um livro interessante de Baran — e prosseguia assim até que ela
me forçava a terminar a encenação para me falar do curso que Enzo tinha
começado na ibm.
Falava com respeito apenas sobre ele, demoradamente, e logo em
seguida me perguntava de Pietro.
“Tudo bem com seu marido?”
“Tudo ótimo.”
“Eu também com Enzo.”
Quando desligava, sua voz deixava um rastro de imagens e de sons do
passado que durava horas em minha cabeça: o pátio, as brincadeiras
perigosas, a minha boneca que ela jogara no porão, as escadas escuras que
subimos para buscá-la com dom Achille, o casamento dela, sua generosidade
e sua maldade, como ela se apossara de Nino. Não tolera minha sorte, eu
pensava amedrontada, me quer ao lado dela, abaixo dela, ajudando-a em
suas coisas, em suas miseráveis guerras de bairro. Depois dizia a mim
mesma: como sou estúpida, de que me serviu estudar — e fazia de conta que
tudo estava sob controle. Para minha irmã Elisa, que me ligava
frequentemente, eu dizia que ser mãe era lindo. Para Carmen Peluso, que me
falava de seu casamento com o frentista do estradão, eu respondia: ah, que
bela notícia, desejo-lhe muitas felicidades, mande lembranças a Pasquale,
como ele está. Com minha mãe, que raramente telefonava, fingi estar
radiante, e somente numa ocasião acabei cedendo e lhe perguntando: o que
aconteceu com sua perna, por que você manca?; e ela respondeu: que te
importa, cuide de suas coisas.
Lutei durante meses, mantive sob vigilância as partes mais opacas de
mim. Às vezes me surpreendia rezando para Nossa Senhora, apesar de me
considerar ateia — e me envergonhava. Mais frequentemente, quando estava
sozinha em casa com a menina, lançava gritos terríveis, não palavras, apenas
sopro expelido com o desespero. Mas aquele período ruim não queria
passar, foi um tempo longo e atormentado. À noite, mancando, eu levava a
menina para lá e para cá pelo corredor e já não lhe sussurrava palavrinhas
sem sentido, a ignorava e tentava pensar em mim, sempre com um livro na
mão ou uma revista, mesmo sem conseguir ler quase nada. De dia, quando
Adele dormia placidamente — no início, tinha começado a chamá-la de
Ade[2], sem me dar conta do inferno concentrado naquelas duas sílabas, tanto
que, quando Pietro chamou minha atenção para isso, fiquei perturbada e
mudei para Dede —, eu tentava escrever para o jornal. Mas não tinha mais
tempo — e com certeza nem sequer vontade — de andar viajando por conta
do Unità. Assim, as coisas que eu escrevia perderam energia, tentava apenas
exibir minha habilidade formal e acabava em arabescos desprovidos de
substância. Uma vez rabisquei um artigo e o li a Pietro antes de ditá-lo para
a redação. Ele disse:
“É vazio.”
“Em que sentido?”
“São palavras, só isso.”
Me senti ofendida, ditei o artigo mesmo assim. Não o publicaram. E a
partir daquele momento, com um certo mal-estar, tanto a redação local
quanto a nacional começaram a recusar meus textos alegando problemas de
espaço. Sofri, me dei conta de que, como por violentos abalos provenientes
de profundezas inacessíveis, estava desmoronando rapidamente ao meu
redor tudo o que até pouco tempo atrás eu considerara uma condição de vida
e de trabalho já conquistada. Lia apenas para manter os olhos fixos num
livro ou revista, mas era como se eu parasse nos caracteres e não tivesse
mais acesso aos significados. Duas ou três vezes topei por acaso com artigos
de Nino, mas o fato de lê-los não me deu o prazer habitual de imaginá-lo, de
ouvir sua voz, de usufruir seus pensamentos. Fiquei contente por ele, claro:
se escrevia, isso queria dizer que estava bem, vivia a vida dele quem sabe
onde, quem sabe com quem. Mas eu olhava a assinatura, lia poucas linhas e
me retraía, sempre como se cada frase dele, preto no branco, tornasse minha
situação ainda mais insuportável. Não tinha mais curiosidade, não conseguia
me cuidar nem mesmo no aspecto. De resto, me cuidar para quê? Não
encontrava ninguém, somente Pietro, que me tratava com uma gentileza
convencional, mas eu percebia que, para ele, eu era uma sombra. Às vezes
tinha a impressão de pensar com a cabeça dele e quase sentia seu
descontentamento. O casamento só tinha complicado sua existência de
estudioso, e isso justamente quando sua fama estava crescendo,
especialmente na Inglaterra e nos Estados Unidos. Eu o admirava, mas ao
mesmo tempo me ressentia. E conversava com ele sempre com uma mistura
de rancor e subalternidade.
Um dia eu impus a mim mesma: chega, esqueça o Unità, já é muito se
eu conseguir achar o caminho certo para um novo livro; assim que ele estiver
pronto, tudo vai se arranjar. Mas que livro? Eu garantia à minha sogra, à
editora, que já estava num bom ponto, mas era mentira; e eu mentia em cada
ocasião com tons cordialíssimos. Na verdade, eu só tinha cadernos cheios de
apontamentos frouxos, nada mais. Quando resolvia abri-los — de noite ou de
dia, a depender dos ritmos que Dede me impunha —, dormia em cima deles
sem nem perceber. Num final de tarde, Pietro voltou da universidade e me
encontrou em um estado pior do que aquele em que o flagrara tempos atrás:
eu estava na cozinha, mergulhada no sono, a cabeça apoiada na mesa; a
menina não tinha comido nada e gritava no quarto. O pai a encontrou no
berço, seminua, esquecida. Quando Dede se acalmou, agarrando-se
vorazmente à mamadeira, Pietro disse desolado:
“Será que você não teria ninguém que pudesse ajudar?”
“Nesta cidade, não, e você sabe muito bem.”
“Traga sua mãe para cá, sua irmã.”
“Não quero.”
“Então peça àquela sua amiga de Nápoles: você fez tudo por ela, e ela
vai fazer o mesmo por você.”
Senti um calafrio. Percebi com clareza, por uma fração de segundo, que
uma parte de mim tinha certeza de que Lila já estava em casa, presente: se
antes ela ficava à espreita dentro de mim, agora se infiltrava por dentro de
Dede, os olhos semicerrados, o cenho franzido. Sacudi a cabeça com
energia. Era preciso espantar aquelas imagens, aquela possibilidade: de que
eu estava me aproximando?
Pietro se conformou e telefonou para a mãe. Perguntou a ela, muito a
contragosto, se poderia passar um tempo com a gente.
66.

Entreguei-me a minha sogra com uma sensação imediata de alívio, e também


nesse caso ela se revelou a mulher com quem eu queria me parecer. Em
poucos dias conseguiu arranjar uma garotona de pouco mais de vinte anos,
Clelia, nascida na Maremma, a quem instruiu minuciosamente para que
cuidasse bem da casa, das compras, da cozinha. Quando Pietro topou com
Clelia pelo apartamento sem ter sido nem mesmo consultado, teve um ímpeto
de revolta:
“Não quero escravas em minha casa.”
Adele respondeu calmamente:
“Não é uma escrava, é uma assalariada.”
E, encorajada pela presença de minha sogra, desabafei:
“Então você quer que a escrava seja eu?”
“Quero que você seja mãe, não escrava.”
“Eu lavo e passo suas roupas, limpo a casa, cozinho para você, lhe dei
uma filha, cuido dela com mil dificuldades, estou exausta.”
“E quem a obriga a isso? Por acaso eu já lhe pedi alguma coisa?”
Não consegui reagir, mas Adele sim, liquidou o filho com um sarcasmo
às vezes feroz, e Clelia ficou. Depois disso ela se incumbiu da menina, levou
o berço para o quarto que eu lhe reservara, cuidou com muita precisão das
várias mamadeiras durante o dia e a noite. Quando notou que eu estava
mancando, me acompanhou a um médico amigo dela, que me prescreveu uma
série de injeções. Ela mesma veio de manhã e de noite com o estojinho da
seringa, as ampolas, e aplicava a agulha com alegria em minhas nádegas.
Logo me senti melhor, a dor na perna desapareceu, o humor melhorou e eu
fiquei mais tranquila. Mas Adele continuou zelando por mim. Obrigou-me
gentilmente a retomar os cuidados comigo, me mandou ao cabeleireiro, me
forçou a voltar ao dentista. E sobretudo me falou constantemente de teatro,
de cinema, de um livro que estava traduzindo, de outro que estava
organizando, do que tinham escrito nessa e naquela revista o marido ou
pessoas conhecidas, que ela chamava intimamente pelo nome. Por meio dela
tomei conhecimento de publicações feministas muito combativas. Mariarosa
conhecia as meninas que trabalhavam nessas revistas, se entusiasmara, tinha
grande estima por elas. Ela, não. Com seu habitual tom irônico, disse que
elas deliravam sobre a questão feminina, como se o problema pudesse ser
enfrentado prescindindo da luta de classes. De todo modo, leia os textos —
me aconselhou por fim, e me passou dois daqueles livrinhos com uma última
frase ferina: se quiser ser escritora, não deixe passar nada. Coloquei-os de
lado, não queria perder tempo com livros que a própria Adele subestimava.
Mas acima de tudo, justo naquela ocasião, senti que nenhuma daquelas
conversas cultas de minha sogra nascia de uma real necessidade de trocar
ideias comigo. Adele buscava programaticamente me tirar da condição
desesperadora de mãe incapaz, friccionando palavras para arrancar faíscas e
reacender minha cabeça e meu olhar gelados. Mas na verdade ela preferia
me salvar a ouvir o que eu tinha a dizer.
De resto. De resto, Dede, apesar de tudo, continuava chorando de noite;
eu a escutava, me agitava, e dela me vinha um senso de infelicidade que
desarticulava a ação benéfica de minha sogra; e, mesmo tendo mais tempo à
minha disposição, de todo modo eu não conseguia escrever; e Pietro,
normalmente contido, na presença da mãe se tornava tão desinibido que
beirava a grosseria, sua volta para casa era quase sempre acompanhada de
uma rusga entre eles a golpe de sarcasmos, e isso terminava acentuando a
sensação de ruína que eu sentia à minha volta. Meu marido — logo me dei
conta — achava natural considerar Adele no fim das contas a responsável
por todos os seus problemas. Invocava com ela por qualquer coisa, até pelo
que acontecia no trabalho. Eu não sabia quase nada sobre certas tensões que
ele vinha sofrendo na faculdade, em geral respondia ao meu como vai com
um tudo bem, preferia me poupar. Mas com a mãe ele rompia as barreiras,
assumindo o tom recriminador do menino que se sente malcuidado.
Despejava em Adele tudo o que escondia de mim, e se a coisa ocorria na
minha presença ele fazia de conta que eu não estava ali, quase como se eu, a
mulher dele, tivesse que ser apenas uma testemunha muda.
Foi dessa maneira que muitas coisas ficaram claras para mim. Os
colegas dele, todos mais velhos, atribuíam sua carreira meteórica — e até a
pequena fama que começava a favorecê-lo no exterior — ao sobrenome que
ostentava, e o isolaram. Os estudantes o consideraram rigoroso em excesso,
um burguês metido a besta que cultivava seu jardinzinho sem ceder nada ao
magma do presente, em suma, um inimigo de classe. E ele, como sempre, não
se defendia nem atacava, seguia em frente seu caminho dando — disso eu
estava certa — aulas com evidente inteligência, confirmando competências
com igual limpidez e reprovando. Mas é difícil — ele quase gritou uma
noite, dirigindo-se a Adele num tom de lamento. Depois logo abaixou a voz,
murmurou que precisava de tranquilidade, que o trabalho era cansativo, que
vários de seus colegas colocavam os estudantes contra ele, que
frequentemente grupos de jovens irrompiam na sala onde ele estava e o
obrigavam a encerrar a aula, que apareceram escritas infames contra ele nas
paredes. Nessa altura, antes mesmo que Adele se manifestasse, reagi
descontrolada. Se ele fosse um pouco menos reacionário, falei, essas coisas
não estariam acontecendo. E ele, pela primeira vez desde que o conheci, me
respondeu brutalmente, sibilando: fique calada, você só diz frases feitas.
Fui me trancar no banheiro e de repente me dei conta de que o conhecia
pouquíssimo. O que eu sabia sobre ele? Era um homem pacífico, mas
determinado até a obstinação. Era defensor da classe operária e dos
estudantes, mas ensinava e fazia provas do modo mais tradicional. Era ateu,
não tinha querido se casar na igreja, se recusara a batizar Dede, mas
admirava as comunidades cristãs do Oltrarno e discorria sobre questões
religiosas com extrema competência. Era um Airota, mas não suportava os
privilégios e as facilidades que derivavam disso. Fiquei calma, tentei apoiá-
lo, manifestar meu afeto. É meu marido, disse a mim mesma, precisamos
conversar mais. Mas a presença de Adele se revelou um problema cada vez
maior. Havia algo de não dito entre eles que levava Pietro a deixar as boas
maneiras de lado e Adele a falar com ele como a um incapaz, sem esperança
de salvação.
Agora vivíamos assim, entre desavenças contínuas: ele brigava com a
mãe e acabava dizendo alguma frase que me chateava, e eu o agredia. Até
que chegou uma noite em que minha sogra, durante o jantar, na minha
presença, perguntou a ele por que estava dormindo no sofá. Ele respondeu: é
melhor que você vá embora amanhã. Não intervim, mas sabia por que ele
dormia no sofá: fazia isso por mim, para não perturbar meu sono quando, por
volta das três, parava de estudar e se concedia um pouco de descanso. No
dia seguinte Adele voltou para Gênova. E eu me senti perdida.
67.

No entanto os meses se passaram, e tanto eu quanto a menina seguimos em


frente. Dede começou a andar sozinha no dia de seu primeiro aniversário: o
pai se agachou diante dela, fez muitas palhaçadas, ela sorriu, se soltou de
mim e foi na direção dele, vacilante, os braços estendidos, a boca
entreaberta, como se fosse a meta feliz do seu ano de choro. A partir daquele
momento suas noites ficaram tranquilas, e as minhas também. A menina
passou cada vez mais tempo com Clelia, as ansiedades se atenuaram,
consegui reservar um pouco de espaço para mim. Mas descobri que não
tinha vontade de trabalhos cansativos. Como depois de uma longa doença,
não via a hora de estar ao ar livre, aproveitar o sol e as cores, passear por
ruas movimentadas, olhar as vitrines. E, como tinha bastante dinheiro
guardado, naquela fase comprei roupas para mim, para a menina e para
Pietro, enchi a casa de móveis e bibelôs, torrei dinheiro como nunca havia
feito. Sentia a necessidade de estar bonita, de encontrar pessoas
interessantes, conversar, mas não tinha conseguido fazer amizade com
ninguém e, por outro lado, Pietro raramente trazia hóspedes para casa.
Aos poucos tentei recuperar a vida gratificante que eu levara até um
ano antes, e só então me dei conta de que o telefone agora tocava cada vez
menos, de que as ligações para mim eram raras. A lembrança de meu
romance estava se apagando e, com isso, ia baixando a curiosidade em torno
de meu nome. Depois daquele período de euforia veio uma fase em que,
preocupada, em certos momentos deprimida, me perguntava sobre o que
fazer; voltei a ler literatura contemporânea e muitas vezes me envergonhei de
meu romance, que em comparação parecia frívolo e muito tradicional, deixei
de lado os apontamentos para o livro novo, que tendia a refazer o antigo, e
me esforcei em pensar histórias mais sérias, que abrangessem o tumulto do
presente.
Também voltei a fazer tímidas ligações para o Unità e tentei mais uma
vez escrever artigos, mas logo notei que meus textos já não interessavam à
redação. Tinha perdido terreno, estava mal informada, não tinha tempo de ir
ver situações específicas e reportá-las, escrevia com elegância frases de
abstrato rigor formal para deixar clara minha adesão — não sei bem a quem,
e justo naquele jornal — às críticas mais duras em relação ao partido
comunista e aos sindicatos. Hoje tenho dificuldade de explicar por que
insisti em escrever aquelas coisas, ou melhor, por que, mesmo participando
pouquíssimo da vida política da cidade, e apesar de minha brandura, me
sentia cada vez mais atraída por posições extremas. Talvez fizesse isso por
insegurança. Ou talvez por desconfiança quanto a qualquer forma de
mediação, arte que, desde a primeira infância, eu identificava com as
artimanhas de meu pai quando se movia com esperteza em meio à
ineficiência da prefeitura. Ou quem sabe, pelo conhecimento vivo da miséria
— que eu sentia a obrigação de não esquecer —, quisesse ficar do lado de
quem tinha permanecido por baixo e lutava para fazer tudo explodir. Ou
porque a política miúda e as reivindicações, sobre as quais eu até escrevera
com diligência, não me interessassem grande coisa, e eu quisesse apenas que
algo grandioso — usara e usava frequentemente essa fórmula —
transbordasse e eu pudesse vivê-lo e contá-lo. Ou porque — e me era difícil
admitir — meu modelo continuava sendo Lila e sua irracionalidade teimosa,
que não aceitava meios-termos, tanto que, mesmo estando longe dela em
todos os sentidos, eu queria dizer e fazer o que imaginava que ela diria e
faria se tivesse tido meus instrumentos, se não tivesse decidido isolar-se no
espaço restrito do bairro.
Parei de comprar o Unità, passei a ler o Lotta continua e Il manifesto.
Neste último, como vim a descobrir, de vez em quando aparecia um artigo de
Nino. Seus textos eram sempre bem documentados, formulados com uma
lógica cerrada. Senti a necessidade — como desde menina, quando
conversava com ele — de também me encerrar numa rede de proposições
gerais formuladas com arte, que me impedisse de prosseguir me perdendo.
Tomei consciência de modo definitivo que não pensava mais nele com
desejo, nem mesmo com amor. Ele se tornara — me pareceu — uma figura
do remorso, a síntese de tudo o que eu me arriscava a jamais conseguir,
mesmo tendo tido as possibilidades para isso. Tínhamos nascido no mesmo
ambiente, e ambos saímos brilhantemente de lá. Por que então eu estava
patinando na mediocridade? Por culpa do casamento? Por culpa da
maternidade e de Dede? Por que eu era mulher, por que precisava cuidar da
casa e da família e limpar merda e trocar fraldas? Toda vez que topava com
um artigo de Nino, e o artigo me parecia bem-feito, eu ficava de mau humor.
E quem pagava o pato era Pietro, na verdade o único interlocutor que eu
tinha. Cismava com ele, o acusava de ter me abandonado a mim mesma no
período mais terrível de minha vida, de só se importar com sua carreira,
esquecendo-se de mim. Nossas relações — era difícil admitir porque o fato
me assustava, mas a realidade era essa — estavam cada vez piores. Entendia
que ele estivesse mal por causa de seus problemas de trabalho, mas não
conseguia justificá-lo, ao contrário, criticava-o, muitas vezes partindo de
posições políticas não diversas das dos estudantes que não o deixavam em
paz. Ele me ouvia incomodado, quase sem replicar. Naqueles momentos eu
suspeitava que as palavras que me gritara tempos atrás (fique calada, você
só diz frases feitas) não tinham sido apenas um rompante ocasional, mas
indicavam que, no geral, ele não me considerava à altura de uma discussão
séria. Aquilo me exasperava, me deprimia, o rancor aumentava,
especialmente porque eu mesma sabia que oscilava entre sentimentos
contraditórios que, reduzidos ao osso, podiam ser resumidos mais ou menos
assim: era a desigualdade que tornava os estudos penosíssimos para alguns
(para mim, por exemplo) e quase um passatempo para outros (para Pietro,
por exemplo); por outro lado, com ou sem desigualdade, era preciso estudar,
e bem, ou melhor, muitíssimo bem — eu tinha orgulho de meu percurso, da
competência que tinha demonstrado, e me recusava a acreditar que meu
esforço tinha sido inútil, em certos aspectos obtuso. No entanto, com Pietro,
por motivos obscuros, me ocorria de dar forma apenas à injustiça da
desigualdade. Dizia a ele: você se comporta como se tivesse diante de si
estudantes todos iguais, mas não é assim, é uma forma de sadismo pretender
os mesmos resultados de jovens que não tiveram as mesmas oportunidades.
E também o critiquei quando me contou que tinha tido uma discussão
violenta com um colega pelo menos vinte anos mais velho, um conhecido de
sua irmã que tinha achado que encontrara nele um aliado contra a parte mais
conservadora do corpo docente. Acontecera que aquele tal o aconselhara
amigavelmente a ser menos duro com os estudantes. Pietro rebatera com seu
modo educado, mas sem meias palavras, que não achava que fosse duro, mas
apenas exigente. Bem — lhe dissera o outro —, então seja menos exigente,
em especial com aqueles que generosamente dedicam grande parte de seu
tempo a transformar este barraco. Nessa altura as coisas se precipitaram,
embora eu não saiba dizer de que maneira ou com base em quais argumentos.
Pietro, cujo relato era como de hábito minimizador, primeiro afirmou que só
dissera, para se defender, que seu costume era tratar todos os rapazes sempre
com o respeito que mereciam; depois admitiu que tinha acusado o colega de
usar dois pesos e duas medidas: aquiescente com os estudantes mais
agressivos e impiedoso até a humilhação com os estudantes mais
amedrontados. O outro se enfureceu e chegou a gritar que, somente porque
conhecia bem sua irmã, evitava lhe dizer — mas enquanto isso disse — que
ele era um cretino indigno da cátedra que ocupava.
“Você não podia ser mais cauteloso?”
“Sou cauteloso.”
“Não me parece.”
“Mas eu também preciso dizer o que penso.”
“Talvez fosse bom aprender a notar quem são os amigos e os inimigos.”
“Não tenho inimigos.”
Uma palavra puxa outra, acabei exagerando. A consequência desse seu
modo de agir — sibilei para ele — é que ninguém nesta cidade, muito menos
os amigos dos seus pais, nos convida para um jantar, um concerto ou um
passeio no campo.
68.

Agora estava claro para mim que, em seu ambiente de trabalho, Pietro era
considerado um homem maçante, totalmente alheio ao ativismo entusiástico
de sua família, um Airota falhado. E eu tinha aquela mesma opinião, o que
não favorecia nem um pouco nossa convivência e intimidade. Quando Dede
finalmente se aquietara e passara a dormir com regularidade, ele voltou à
nossa cama, mas assim que se encostava em mim eu me sentia incomodada,
tinha medo de engravidar de novo, queria que me deixasse dormir. Então o
afastava sem dizer uma palavra, bastava lhe dar as costas e, se ele insistisse
e pressionasse o sexo contra a camisola, lhe dava pancadinhas de leve na
perna com o calcanhar, um sinal para deixar claro: não quero, estou com
sono. Pietro se retraía insatisfeito, se levantava, ia estudar.
Uma noite nos desentendemos pela enésima vez sobre Clelia. Havia
sempre uma certa tensão quando era preciso pagar a ela, mas naquela
ocasião ficou evidente que Clelia era uma desculpa. Ele murmurou taciturno:
Elena, precisamos examinar nossa relação e fazer um balanço. Concordei
imediatamente. Falei que adorava sua inteligência e boa educação, que Dede
era maravilhosa, mas acrescentei que não queria mais filhos, que achava
insuportável o isolamento em que eu vivia, que desejava voltar a uma vida
ativa, que não tinha penado desde a infância para acabar encarcerada no
papel de esposa e de mãe. Discutimos, eu com dureza, ele com polidez. Não
protestou mais por causa de Clelia e finalmente capitulou. Resolveu comprar
preservativos, começou a convidar amigos para o jantar — ou melhor,
conhecidos, já que não tinha amigos —, resignou-se a permitir que eu fosse
de vez em quando com Dede a assembleias e manifestações, apesar do
sangue cada vez mais frequente nas ruas.
Entretanto, em vez de melhorar minha vida, aquele novo arranjo me
trouxe complicações. Dede se apegou cada vez mais a Clelia e, quando eu a
levava para fora, se aborrecia, ficava nervosa, puxava minhas orelhas, os
cabelos, o nariz, chamava por ela chorando. Convenci-me de que ela se
sentia melhor com a garota de Maremma do que comigo, e isso fez reemergir
a suspeita de que, por eu não a ter amamentado e por seu primeiro ano de
vida ter sido muito difícil, a seus olhos eu era uma figura sombria, a mulher
infame que a censurava em todas as ocasiões e enquanto isso maltratava, por
ciúmes, sua tia solar, a amiga de brincadeiras, a contadora de fábulas. Ela
me repelia até quando, com um gesto mecânico, eu limpava com um lenço o
ranho do seu nariz ou a boca dos restos de comida. Chorava e dizia que eu a
estava machucando.
Quanto a Pietro, os preservativos arrefeciam ainda mais sua
sensibilidade, para chegar ao orgasmo precisava de um tempo ainda maior
do que em geral lhe era necessário, causando-lhe sofrimento e me fazendo
sofrer. Às vezes deixava que ele me pegasse de lado, tinha a impressão de
sentir menos dor assim, e enquanto ele me assestava aqueles golpes
violentos, eu agarrava sua mão e a levava até meu sexo, esperando que
entendesse que eu queria ser tocada. Mas ele parecia incapaz de fazer ambas
as coisas e, como preferia a primeira, esquecia-se quase imediatamente da
segunda, e, uma vez satisfeito, não parecia intuir que eu desejava uma parte
qualquer de seu corpo para, por minha vez, saciar o desejo. Depois que
obtinha seu prazer, fazia um carinho em meus cabelos e murmurava: vou
trabalhar um pouco. Quando se retirava, a solidão me parecia um prêmio de
consolo.
Às vezes, nas passeatas, observava com curiosidade os homens jovens
que se expunham, impávidos, a qualquer perigo, cheios de uma energia
alegre mesmo quando se sentiam ameaçados e se tornavam ameaçadores. Eu
sucumbia a seu fascínio, me sentia atraída por aquele calor febril. Mas me
considerava totalmente distante das garotas coloridas que estavam à volta
deles, eu era culta demais, usava óculos, era casada, sempre com o tempo
curto. Então voltava para casa descontente, tratava meu marido com frieza,
me sentia já velha. Somente em duas ocasiões sonhei de olhos abertos que
um daqueles jovens, conhecidíssimo em Florença, muito querido, se dava
conta de mim e me levava embora com ele, como acontecia quando,
garotinha, eu ficava constrangida e me negava a dançar, mas Antonio ou
Pasquale me pegavam pelo braço e me obrigavam mesmo assim.
Naturalmente isso nunca ocorreu. Ao contrário, foram os conhecidos que
Pietro começou a trazer para casa que complicaram as coisas. Eu penava
para preparar os jantares, bancava a mulher que sabe manter a conversa
animada e não me queixava, fui eu quem pedira a meu marido que
convidasse um pouco de gente. Mas logo percebi, incomodada, que aquele
ritual não se exauria em si mesmo: eu era atraída por qualquer homem que
me desse um pouco de corda. Alto, baixo, magro, gordo, feio, bonito, velho,
casado ou solteiro, se o hóspede elogiava uma observação minha, se
recordava meu livro com belas palavras, se chegava a entusiasmar-se com
minha inteligência, eu imediatamente o olhava com simpatia e em poucas
frases e olhares essa minha boa disposição se comunicava a ele. Então, se de
início se mostrava entediado, o homem se transformava em espirituoso,
acabava ignorando Pietro totalmente e multiplicava as atenções a mim. Cada
palavra dele se tornava cada vez mais alusiva e, ao longo da conversa, os
gestos e as atitudes se faziam mais íntimas. Tocava-me o ombro com a ponta
dos dedos, roçava minha mão, punha os olhos nos meus formulando frases
suspirosas, batia os joelhos nos meus, chocava a ponta dos sapatos contra os
meus.
Naqueles momentos eu me sentia bem, me esquecia da existência de
Pietro e de Dede, o rastro das obrigações insuportáveis que arrastavam atrás
de si. Temia apenas o momento em que o convidado fosse embora e eu
recaísse na esqualidez da casa: dias inúteis, preguiça, raivas disfarçadas
pela docilidade. Por isso mesmo eu me excedia: a excitação me levava a
falar muito e em voz alta, cruzava as pernas buscando descobri-las o mais
possível, desabotoava num gesto irrefletido um botão da blusa. Era eu
mesma quem encurtava as distâncias, como se uma parte de mim estivesse
certa de que, aderindo de algum modo àquele estranho, um pouco do bem-
estar que eu sentia naquele momento permaneceria em meu corpo e, quando
ele deixasse o apartamento, sozinho, com a mulher ou uma companheira, eu
sentiria menos a depressão, o vazio por trás da exibição de sentimentos e de
ideias, a angústia do fracasso.
Na realidade, depois, sozinha na cama enquanto Pietro estudava, me
sentia simplesmente estúpida e me desprezava. Porém, por mais que eu
resistisse, não conseguia mudar. Tanto mais que aqueles homens saíam
convencidos de terem me fisgado e, em geral, ligavam no dia seguinte,
inventando desculpas para me encontrar. Eu aceitava. Mas, assim que
chegava ao encontro, ficava assustada. O simples fato de estarem excitados
— mesmo tendo, digamos, trinta anos a mais que eu ou sendo casados —
apagava sua autoridade, anulava o papel de salvador que eu lhes atribuíra, e
o próprio prazer que sentira durante o jogo de sedução resultava num
equívoco infame. Perguntava a mim mesma, perdida: por que me comportei
daquela maneira, o que está acontecendo comigo? E passava a dar mais
atenção a Dede e a Pietro.
Mas na primeira oportunidade tudo recomeçava. Eu devaneava,
escutava em alto volume músicas que ignorara quando mocinha, não lia, não
escrevia. Sobretudo lamentava cada vez mais o fato de, por culpa da minha
autodisciplina em tudo, eu ter perdido a alegria de me desregrar, que, ao
contrário, as mulheres de minha idade e do ambiente que agora frequentava
davam mostras de ter usufruído e estarem usufruindo. Nas vezes, por
exemplo, em que Mariarosa aparecia em Florença, ora por razões de estudo,
ora por reuniões políticas, vinha dormir conosco com homens sempre
diferentes, às vezes com amigas, e usava drogas, as oferecia a seus
companheiros e a nós e, se Pietro se irritava e ia se fechar no quarto, eu ao
contrário ficava fascinada, me recusava insegura a provar fumo ou ácido —
tinha medo de passar mal —, mas continuava conversando com ela e seus
amigos até tarde da noite.
Falava-se de tudo, as discussões eram frequentemente violentas, eu
tinha a impressão de que a boa língua que me esforçara para adquirir tivesse
se tornado inadequada. Preciosa demais, limpa demais. Olha como a
linguagem de Mariarosa se modificou — eu pensava —, ela quebrou as
pontes com a educação que teve, é desbocada. Agora a irmã de Pietro se
expressava pior do que eu e Lila na infância. Não pronunciava um
substantivo que não fosse precedido de “porra”. Onde eu coloquei a porra
do isqueiro, onde está a porra do cigarro? Lila nunca deixou de falar assim;
e eu, o que devia fazer, voltar a ser que nem ela, voltar ao ponto de partida?
Então por que me esforçara tanto?
Ficava observando minha cunhada. Gostava de como ostentava
solidariedade a mim e de como, ao contrário, deixava em apuros o irmão, os
homens que trazia para casa. Uma noite interrompeu bruscamente a conversa
para dizer ao jovem que a acompanhava: chega, vamos trepar. Trepar. Pietro
tinha inventado um vocabulário infantil de boa família para coisas
relacionadas ao sexo, eu o assimilara e o usava em lugar do sórdido
vocabulário dialetal que conhecia desde a primeira infância. Mas agora,
para se sentir de fato no mundo em mutação, era preciso repor as palavras
obscenas em circulação e dizer: quero que me coma, que me foda assim e
assado? Inimaginável com meu marido. No entanto os poucos homens que eu
frequentava, todos cultíssimos, se travestiam à vontade de populacho, se
divertiam com mulheres que se fingiam de vadias, pareciam gozar ao lidar
com uma senhora como se ela fosse uma prostituta. A princípio eram muito
formais, contidos. Mas não viam a hora de se lançar a uma escaramuça que
passasse do implícito ao explícito, ao cada vez mais explícito, num jogo de
liberdades em que o recato feminino era considerado um sinal de bom-
mocismo hipócrita. Em vez disso, franqueza, naturalidade. Essas eram as
qualidades da mulher liberada, e eu me esforçava para me adequar. Mas,
quanto mais me adequava, mais me sentia seduzida pelo meu interlocutor.
Em dois casos, tive a impressão de estar apaixonada.
69.

Primeiro aconteceu com um professor-assistente de literatura grega, da


minha idade, piemontês de Asti, que tinha na cidade natal uma noiva com
quem se dizia insatisfeito; depois, com o marido de uma encarregada de
papirologia, um casal com duas crianças pequenas, ela de Catânia, ele de
Florença, engenheiro que ensinava mecânica, se chamava Mario, tinha vasta
cultura política, bastante autoridade pública, cabelos compridos, nas horas
vagas tocava bateria numa banda de rock, e era sete anos mais velho que eu.
Com ambos a sequência foi a mesma: Pietro os convidou para jantar, eu
comecei a flertar. Telefonemas, alegres participações em manifestações,
muitos passeios, às vezes acompanhada de Dede, às vezes sozinha, algumas
idas ao cinema. Com o professor-assistente, recuei assim que ele se tornou
direto. Já Mario me envolveu numa rede cada vez mais estreita e, uma noite,
no carro dele, me deu um beijo, um beijo demorado, acariciando meus peitos
dentro do sutiã. Rejeitei-o com dificuldade, disse que não queria mais vê-lo.
Mas ele telefonou, tornou a telefonar, sentia sua falta, cedi. Como tinha me
beijado e me apalpado, estava certo de ter direitos sobre mim e logo se
comportou como se recomeçássemos do ponto em que tínhamos parado.
Insistia, fazia propostas, pressionava. Quando eu em parte o provocava, em
parte me esquivava, rindo, ele se fazia de ofendido, me ofendia.
Certa manhã eu estava passeando com ele e Dede, que na época tinha,
se bem me lembro, pouco mais de dois anos e estava toda entretida com um
bonequinho que ela adorava, Tes, um nome inventado por ela. Naquelas
ocasiões eu prestava pouquíssima atenção a ela, me via arrebatada pelo jogo
verbal, às vezes me esquecia inteiramente dela. Quanto a Mario, não dava a
mínima importância à presença da menina e só se preocupava em me
assediar com falas desinibidas, dirigindo-se a Dede apenas para lhe
sussurrar no ouvido frases jocosas do tipo: por favor, pode pedir à mamãe
para ser boazinha comigo? O tempo passou voando, nos despedimos, Dede e
eu tomamos o caminho de casa. Mas depois de poucos passos a menina
escandiu, áspera: Tes me disse que vai contar um segredo ao papai. Meu
coração teve um sobressalto. Tes? Sim. E o que ele vai dizer a papai? Tes é
que sabe. Uma coisa boa ou ruim? Ruim. Então a ameacei: explique a Tes
que se ele contar isso ao papai você vai trancá-lo dentro do depósito, no
escuro. Ela caiu no choro, e precisei levá-la para casa no colo, ela, que para
me agradar caminhava fingindo nunca estar cansada. Quer dizer que Dede
entendia, ou pelo menos percebia, que entre mim e aquele homem havia algo
que seu pai não teria tolerado.
Interrompi mais uma vez os encontros com Mario. No fim das contas
ele era o quê? Um burguês doente de pornolalia. Mas a inquietude não
passou, estava crescendo em mim uma ânsia de violação, queria me
desregrar assim como o mundo parecia estar se desregrando. Desejava sair
do casamento nem que fosse uma única vez ou, por que não, de tudo o que
era minha vida, do que eu tinha aprendido, do que tinha escrito, do que
tentava escrever, da menina que tinha posto no mundo. Ah, sim, o casamento
era uma prisão: Lila, que tinha coragem, só escapara dele arriscando a
própria vida. Quanto a mim, que riscos eu corria com Pietro, tão distraído,
tão ausente? Nenhum. E então? Liguei para Mario. Deixei Dede com Clelia e
fui encontrá-lo em seu escritório. Nós nos beijamos, ele chupou o bico dos
meus peitos, me tocou entre as pernas como Antonio fazia nos pântanos
muitos anos atrás. Mas, quando baixou as calças e, com a cueca nos joelhos,
agarrou-me pela nuca tentando me puxar para seu sexo, me esquivei, disse
que não, me arrumei e saí.
Voltei para casa agitadíssima, cheia de sentimentos de culpa. Fiz amor
com Pietro apaixonadamente, nunca me sentira tão envolvida, eu mesma não
quis que ele botasse o preservativo. Estou me preocupando à toa — pensei
comigo —, estou perto de menstruar, não vai acontecer nada. No entanto
aconteceu. Em poucas semanas descobri que estava grávida de novo.
70.

Sobre aborto, com Pietro, nem ousei falar — estava muito feliz que eu lhe
desse outro filho —, e de resto eu também tinha medo de tentar aquela via,
só a palavra me dava dor de estômago. Quem mencionou o aborto foi Adele,
por telefone, mas logo saí pela tangente com frases do tipo: Dede precisa de
companhia, crescer sozinho é ruim, é melhor dar um irmãozinho ou irmãzinha
a ela.
“E o livro?”
“Estou num bom ponto”, menti.
“Vai me deixar ler?”
“Claro.”
“Estamos todos esperando.”
“Eu sei.”
Eu estava em pânico e, quase sem refletir, tive uma iniciativa que
espantou muito Pietro, talvez até a mim. Telefonei para minha mãe, disse que
estava esperando outro filho, perguntei se ela gostaria de passar um tempo
em Florença. Resmungou que não podia, que precisava cuidar de meu pai, de
meus irmãos. Gritei para ela: isso quer dizer que, por culpa sua, não vou
mais escrever. E quem se importa, respondeu ela, já não lhe basta levar uma
vida de madame? E pôs o fone no gancho. Mas cinco minutos depois Elisa
telefonou. Eu cuido da casa, ela disse, mamãe viaja amanhã.
Pietro foi buscar minha mãe de carro na estação, o que a deixou
orgulhosa, a fez se sentir amada. Assim que colocou os pés dentro de casa,
listei a ela uma série de regras: não mudar a ordem das coisas em meu
quarto e no de Pietro; não mimar Dede; nunca se intrometer em minha
relação com Pietro; ficar de olho em Clelia, mas sem entrar em conflito com
ela; considerar-me uma estranha e não me perturbar em hipótese nenhuma;
ficar na cozinha ou em seu quarto se eu recebesse hóspedes. Eu já estava
resignada à ideia de que ela não respeitaria nenhuma dessas regras, mas,
como se o medo de estar longe tivesse modificado sua natureza, no intervalo
de poucos dias ela se reduziu a uma serva dedicada, que acudia todas as
necessidades da casa e resolvia qualquer problema com decisão e
eficiência, sem jamais incomodar Pietro ou a mim.
De quando em quando ia a Nápoles, e logo sua ausência me fazia sentir
exposta à casualidade, com medo de que não voltasse mais. Mas ela sempre
voltou. Me contava as novidades do bairro (Carmen estava grávida, Marisa
tinha tido um menino, Gigliola estava dando um segundo filho a Michele
Solara, não falava nada de Lila para evitar conflitos) e depois se tornava
uma espécie de espírito da casa que, invisível, garantia a todos nós a roupa
de cama limpa e bem passada, refeições com os sabores da infância, um
apartamento sempre brilhando, uma ordem que, apenas perturbada, se
recompunha com uma pontualidade maníaca. Pietro pensou em tentar mais
uma vez se ver livre de Clelia, e minha mãe se mostrou de acordo. Fiquei
furiosa, mas em vez de atacar meu marido fiz um escândalo com ela, que se
retirou para o quarto sem reclamar. Pietro me recriminou e fez tudo para que
eu me reconciliasse com minha mãe, o que ocorreu logo e fez bem a todos.
Ele a adorava, dizia que era uma mulher muito inteligente, muitas vezes
ficava na cozinha com ela, depois do jantar, conversando. Dede a chamava
de vovó e se ligou a tal ponto a ela que se incomodava quando Clelia
aparecia. Pronto, me disse, está tudo em ordem, agora você não tem
desculpas. E me forçou a me concentrar no livro.
Revi os apontamentos. Definitivamente me convenci de que devia
mudar de rumo. Queria deixar para trás o que Franco tinha considerado uma
história de paixõezinhas e escrever algo mais adequado ao tempo de
manifestações de rua, mortes violentas, repressão policial, temores de golpe
de estado. Não achei nada que fosse além de umas dez paginazinhas
desinteressantes. Então o que me faltava? Difícil dizer. Talvez Nápoles, o
bairro. Ou uma imagem como a da Fada azul. Ou um amor. Ou uma voz a
quem atribuir autoridade e que me desse um rumo. Passava horas inutilmente
na escrivaninha, lia uns romances, nunca saía do quarto com medo de ser
capturada por Dede. Como eu era infeliz. Ouvia a voz da menina no
corredor, a de Clelia, o passo manco de minha mãe. Levantava a saia, olhava
a barriga que já começava a crescer, expandindo por todo o organismo um
bem-estar indesejado. Pela segunda vez estava grávida e, no entanto, vazia.
71.

Foi então que comecei a telefonar para Lila não esporadicamente, como
tinha ocorrido até aquele momento, mas quase todos os dias. Fazia caras
ligações interurbanas com o único objetivo de me aninhar em sua sombra,
fazer passar o tempo da gravidez, esperar que, segundo um velho costume,
ela pusesse minha fantasia em movimento. Naturalmente eu tomava cuidado
para não dizer coisas erradas, e esperava que ela fizesse o mesmo. Agora
sabia com clareza que só era possível cultivar nossa amizade com a
condição de frearmos nossa língua. Por exemplo, eu não podia confessar a
ela que uma parte sombria de mim temera que ela tivesse feito malefícios
contra mim a distância, que essa parte ainda esperava que ela de fato
estivesse doente e morresse. Por exemplo, ela não podia revelar os reais
motivos que a levavam a me tratar de modo áspero, frequentemente ofensivo.
Por isso nos limitávamos a falar de Gennaro, que era um dos melhores
alunos da escola fundamental, de Dede, que já sabia ler — e o fazíamos
como duas mães, com as normais gabolices de mãe. Ou então mencionava
minhas tentativas de escrever, mas sem dramatizar, dizendo apenas: estou
trabalhando, não é fácil, a gravidez me consome um pouco. Ou tentava
entender se Michele continuava lhe fazendo o cerco, para prendê-la de algum
modo e se apossar dela. Ou às vezes tentava saber se ela gostava de certos
atores do cinema ou da tv, levá-la a me dizer se era atraída por homens
diferentes de Enzo, e se fosse o caso confessar que também eu desejava
outros homens que não Pietro. Mas parecia que esse último assunto não lhe
interessava. Sobre os atores, dizia quase sempre: quem é? Nunca vi nem no
cinema, nem na televisão. Mas bastava que eu mencionasse o nome de Enzo,
e ela desandava a falar sobre a história dos computadores, confundindo-me
com um jargão incompreensível.
Eram relatos entusiásticos, e às vezes, na hipótese de que pudessem ser
úteis no futuro, eu tomava nota enquanto ela falava. Enzo tinha conseguido,
agora trabalhava numa pequena fábrica de tecidos a cinquenta quilômetros
de Nápoles. A empresa havia alugado uma máquina da ibm, e ele era o
analista de sistemas. Sabe que trabalho é esse? Ele esquematiza os
processos manuais, transformando-os em diagramas de fluxo. A unidade
central da máquina é do tamanho de um armário de três portas, e a memória é
de 8 KByte. Que calor que faz, Lenu, você não pode imaginar: o computador
é pior que uma estufa. Máxima abstração misturada a suor e muito fedor. Me
falava de núcleos de ferrita, de anéis atravessados por um cabo elétrico cuja
tensão determinava sua rotação, 0 ou 1, e um anel era um bit, e o conjunto de
oito anéis podia representar um byte, isto é, um caractere. Enzo era o
protagonista absoluto da verborragia de Lila. Dominava como um deus toda
aquela matéria, manipulava aquele vocabulário e sua substância dentro de
uma grande sala com grandes condicionadores de ar, um gigante que
conseguia que a máquina fizesse tudo o que as pessoas faziam. Estou sendo
clara?, me perguntava de vez em quando. Eu respondia vacilante que sim,
mas não tinha ideia do que ela estava falando. Percebia apenas que ela
notava quão obscuro era tudo aquilo para mim, e isso me envergonhava.
O entusiasmo dela cresceu de interurbano em interurbano. Enzo agora
ganhava 148 mil liras por mês, precisamente, cento e quarenta e oito.
Porque era excepcional, o homem mais inteligente que já tinha conhecido.
Tão competente, tão rápido, que logo se tornou indispensável e encontrou um
modo de a contratarem também, como ajudante. Sim, esta era a novidade:
Lila estava trabalhando de novo, e dessa vez estava gostando. Ele é o chefe,
Lenu, e eu, a subchefe. Deixo Gennaro com minha mãe — às vezes até com
Stefano — e vou para a fábrica todas as manhãs. Eu e Enzo estudamos a
empresa ponto por ponto. Fazemos o que os funcionários fazem para
entender bem o que devemos inserir no computador. Assinalamos, por
exemplo, os movimentos contábeis, colamos os registros nas faturas,
verificamos as cadernetas dos aprendizes, os cartões de presença, e depois
transformamos tudo em diagramas e furos nas fichas. Sim, sim, também
trabalho como perfuradora: fico lá com outras três mulheres, e me pagam 80
mil liras. Cento e quarenta e oito mais oitenta dá duzentas e vinte e oito,
Lenu. Eu e Enzo estamos ricos, e vai ficar ainda melhor daqui a uns meses,
porque o patrão se deu conta de que sou capaz e quer que eu faça um curso.
Viu a vida que estou levando? Está contente?
72.

Uma noite foi ela quem me ligou, disse que tinha acabado de receber uma
péssima notícia: tinham assassinado a pauladas, bem na saída da escola, na
piazza del Gesù, Dario, o estudante sobre quem ela tinha me falado tempos
atrás, o garoto do comitê que distribuía panfletos na frente da Soccavo.
Ela me pareceu preocupada. Passou a me falar da capa de chumbo que
pesava sobre o bairro e em toda a cidade, agressões e mais agressões. Por
trás de muitos daqueles massacres — falou — estavam os fascistas de Gino
e, por trás de Gino, estava Michele Solara, nomes que, ao pronunciá-los,
carregou com a velha repulsa e com uma raiva nova, como se por trás do que
dizia houvesse muito mais coisa que silenciava. Pensei: como é que está tão
certa da responsabilidade deles? Talvez tenha mantido contato com os
estudantes de via dei Tribunali, talvez não dedicasse a vida apenas aos
computadores de Enzo. Escutei sem a interromper, enquanto ela fazia as
palavras escorrerem com seu modo cativante. Narrou com riqueza de
detalhes sobre um certo número de expedições de milicianos que partiam da
seção do Movimento Social Italiano em frente à escola fundamental,
espalhavam-se pelo Rettifilo, pela piazza Municipio, subiam pelo Vomero e
atacavam companheiros com barras de ferro e facadas. Até Pasquale tinha
sido espancado duas vezes, arrebentaram-lhe os dentes da frente. E certa
noite Enzo saiu na mão com o próprio Gino, bem na entrada de nosso prédio.
Então parou, mudou de tom. Você se lembra — perguntou — do clima
do bairro quando a gente era pequena? Está pior, ou melhor, é igual. E citou
o sogro, dom Achille Carracci, o agiota, o fascista, e Peluso, o marceneiro, o
comunista, e a guerra que tinha acontecido bem diante dos nossos olhos. A
partir daquele momento deslizamos lentamente para dentro daquela época,
eu recordava um detalhe, ela acrescentava outro. Até que Lila acentuou a
qualidade visionária das frases e começou a me narrar o assassinato de dom
Achille tal como fazia na infância, com fragmentos de realidade e muitas
fantasias. A facada no pescoço, o longo esguicho de sangue que manchara a
panela de cobre. Excluiu, como já fizera na época, que o assassino fosse o
marceneiro. Disse com convicção adulta: a justiça de então, como aliás a de
hoje, logo se contentou com a pista mais óbvia, a que levava ao comunista.
Então exclamou: mas quem disse que foi realmente o pai de Carmen e de
Pasquale? E quem disse que foi um homem, e não uma mulher? Eu, como
numa brincadeira de infância, quando parecíamos em tudo complementares,
a acompanhei passo a passo, sobrepondo minha voz excitada à dela, e tive a
impressão de que juntas — as meninas de então e as adultas de hoje —
estávamos chegando a uma verdade deixada por duas décadas
impronunciável. Pense um pouco, me disse, quem realmente ganhou com
aquele homicídio, com quem terminou o controle da agiotagem que era
comandado por dom Achille? Sim, com quem? Encontramos a resposta em
uníssono: quem ganhou foi a mulher do caderninho vermelho, Manuela
Solara, a mãe de Marcello e de Michele. Foi ela quem matou dom Achille,
dissemos exaltadas, e então murmuramos, primeiro eu, depois ela, com
tristeza: mas o que é que estamos falando, chega, ainda somos duas meninas,
não vamos crescer nunca.
73.

O momento finalmente me pareceu propício, fazia muito tempo que não


reencontrávamos a antiga sintonia. Só que dessa vez a sintonia de fato se
limitava a um enlace de tons vibrantes através dos fios telefônicos. Não nos
víamos há séculos. Ela não conhecia meu aspecto depois das duas gestações,
eu não sabia se ela permanecera pálida, magérrima, ou se tinha mudado. Há
alguns anos eu vinha falando a uma imagem mental que a voz exumava
preguiçosamente. Talvez por isso, repentinamente, o assassinato de dom
Achille me parecera sobretudo uma invenção, o núcleo de um possível
romance. E assim que terminei a ligação tentei pôr uma ordem em nossa
conversa, reconstruindo as passagens a que Lila me conduzira, fundindo
passado e presente, do assassinato do pobre Dario ao do agiota, até Manuela
Solara. Foi difícil pegar no sono, fiquei remoendo aquilo demoradamente.
Senti com nitidez cada vez maior que aquele material podia ser como uma
margem da qual me lançar para capturar uma história. Nos dias seguintes
misturei Florença e Nápoles, os tumultos do presente com as vozes distantes,
o conforto de agora e o esforço que tinha feito para romper com minhas
raízes, o terror de perder tudo e o fascínio da regressão. De tanto pensar no
assunto, me convenci de que poderia tirar um livro dali. Com dificuldade,
entre ruminações contínuas e dolorosas, enchi um caderno quadriculado
construindo uma trama de violências que amarrava os últimos vinte anos.
Lila às vezes telefonava e perguntava:
“Por que é que você não tem ligado? Está tudo bem?”
“Tudo ótimo, estou escrevendo.”
“E quando você escreve eu deixo de existir?”
“Existe, mas eu me distraio.”
“E se eu estiver mal, se precisar de você?”
“Telefone.”
“E se eu não telefonar? Você fica dentro de seu romance?”
“Sim.”
“Que inveja, sorte sua.”
Trabalhei com crescente ansiedade, temendo não conseguir terminar a
história antes do parto, imaginando que morreria ao dar à luz e deixaria o
livro inacabado. Foi difícil, nada a ver com a feliz inconsciência com que
rabiscara meu primeiro romance. Uma vez esboçada a história, me empenhei
em dar ao texto um andamento mais meditado. Queria uma escrita
movimentada, nova, estudadamente caótica, e não me poupei. Então trabalhei
numa segunda redação, cavilosa. Voltei a fazer e refazer cada linha mesmo
quando, graças a uma Lettera 32 que eu comprara no período em que estava
esperando Dede, graças ao papel carbono, transformei os cadernos num
datiloscrito substancioso, em cópia tríplice, quase duzentas páginas, sem um
erro de digitação.
Era verão, fazia muito calor, eu estava com uma barriga enorme. Há
algum tempo tinha reaparecido aquela dor no glúteo, ia e vinha, e os passos
de minha mãe pelo corredor me davam nos nervos. Fixei as folhas, descobri
que estava com medo. Durante dias não consegui me decidir, a ideia de dá-lo
a Pietro para que o lesse me agitava. Talvez, pensei, devesse mandar o livro
diretamente a Adele, ele não é adequado para esse tipo de história. Além
disso, com a teimosia de sempre, Pietro continuava complicando a vida na
faculdade, voltava para casa nervosíssimo, me fazia discursos abstratos
sobre o valor da legalidade, enfim, não estava no clima favorável para ler
um romance em que havia operários, patrões, lutas, sangue, camorristas e
agiotas. De resto, era o meu romance. Ele me mantém distante de seus
conflitos internos, não se interessou pelo que eu era e pelo que me tornei,
qual o sentido de lhe dar o texto? Vai se limitar a discutir sobre essa ou
aquela escolha lexical, sobre a pontuação, e se eu insistir num parecer me
dirá frases vagas. Enviei a Adele uma cópia do datiloscrito e telefonei para
ela.
“Terminei.”
“Fico muito feliz. Vai mandar para mim?”
“Já mandei hoje de manhã.”
“Excelente, não vejo a hora de ler.”
74.

Então começou a espera, uma espera que se revelou bem mais ansiosa do
que a do bebê que chutava minha barriga. Contei cinco dias seguidos, Adele
não deu notícias. No sexto dia, durante o jantar, enquanto Dede se esforçava
para comer sozinha, querendo me agradar, e a avó morria de vontade de
ajudá-la, mas não o fazia, Pietro me perguntou:
“Você terminou seu livro?”
“Terminei.”
“E por que o deu para ler à minha mãe, e não a mim?”
“Você está muito ocupado, não queria incomodar. Mas, se quiser ler,
tem uma cópia em minha escrivaninha.”
Não respondeu. Esperei um pouco e perguntei:
“Adele lhe disse que mandei o texto para ela?”
“Quem você acha que poderia ter sido?”
“Ela já leu?”
“Sim.”
“E o que achou?”
“Ela mesma vai lhe dizer, é assunto de vocês.”
Ele reagira mal. Depois do jantar, transferi o datiloscrito de minha
escrivaninha para a dele, pus Dede para dormir, assisti a televisão sem ver
nem ouvir nada e por fim fui deitar. Não consegui pregar o olho: por que
Adele falara do livro com Pietro, mas ainda não tinha telefonado para mim?
No dia seguinte — 30 de julho de 1973 — fui checar se meu marido tinha
começado a ler: o texto tinha ido parar sob a pilha de livros nos quais ele
trabalhara grande parte da noite, era evidente que não o tinha nem mesmo
folheado. Fiquei nervosa, gritei para Clelia que cuidasse de Dede, que não
ficasse de braços cruzados deixando tudo por conta de minha mãe. Fui muito
dura, e minha mãe evidentemente tomou aquilo como um sinal de afeto.
Tocou minha barriga para me acalmar, perguntou:
“Se for outra menina, que nome você vai dar?”
Eu estava pensando em outras coisas, a perna estava doendo, respondi
sem pensar:
“Elsa.”
Ela se anuviou, me dei conta tarde demais que esperava outra resposta:
demos o nome da mãe de Pietro a Dede, e se dessa vez também nascer uma
menina vamos dar a ela o seu nome. Tentei me justificar, mas sem empenho.
Disse: mãe, tente entender, você se chama Immacolata, não posso dar um
nome assim à minha filha, eu não gostaria. Ela resmungou: e por quê? Elsa
por acaso é mais bonito? Repliquei: Elsa é que nem Elisa, nesse caso posso
pôr o nome de minha irmã, assim você deve ficar contente. Não me dirigiu
mais a palavra. Ah, como eu estava cansada de tudo. Fazia cada vez mais
calor, eu suava em bicas, não suportava minha barriga pesada, não suportava
meu passo manco, não suportava nada, nada, nada.
Finalmente, pouco antes da hora do almoço, Adele telefonou. A voz não
tinha a costumeira inflexão irônica. Falou com lentidão e gravidade, senti
que cada palavra lhe custava um grande esforço, disse com um largo rodeio
de frases e muitas ressalvas que o livro não era bom. Porém, quando tentei
defender o texto, ela parou de buscar fórmulas que não me ferissem e se
tornou explícita. A protagonista era antipática. Não havia personagens, só
marionetes. Situações e diálogos eram amaneirados. A escrita queria ser
moderna, mas era apenas confusa. Todo aquele ódio se tornava
desagradável. O final era grosseiro, de western à italiana, não estava à altura
de minha inteligência, minha cultura, meu talento. Conformei-me ao silêncio
e escutei suas críticas até o fim. Concluiu dizendo: o romance anterior era
vivo, novíssimo, já este é velho nos conteúdos e escrito de modo tão
pretensioso que as palavras parecem vazias. Respondi baixinho: talvez na
editora eles sejam mais benevolentes. Ela recrudesceu e replicou: se quiser
mandar para eles, faça isso, mas tenho certeza de que vão considerá-lo
impublicável. Eu não soube o que responder, apenas murmurei: tudo bem,
vou pensar, tchau. Mas ela me deteve, mudou de registro rapidamente,
passou a falar com afeto de Dede, de minha mãe, de minha gravidez, de
Mariarosa, que a estava deixando furiosa. Então me perguntou:
“Por que você não deu o romance a Pietro?”
“Não sei.”
“Ele poderia ter lhe dado uns conselhos.”
“Duvido.”
“Você não tem nenhum apreço por ele?”
“Não.”
Depois, trancada em meu quarto, me desesperei. Tinha sido humilhante,
eu não conseguia tolerar. Não comi quase nada, dormi com a janela fechada
apesar do calor. Às quatro da tarde senti as primeiras dores. Não disse nada
a minha mãe, peguei a bolsa que tinha preparado havia tempos, entrei no
carro e dirigi até a clínica, esperando morrer no caminho, eu e meu segundo
filho. Mas tudo deu certo. Senti dores terríveis e em poucas horas tive outra
menina. Já na manhã seguinte Pietro fez de tudo para dar à nossa segunda
filha o nome de minha mãe, que lhe parecia uma homenagem necessária. De
péssimo humor, rebati que estava cansada de seguir a tradição, reiterei que
ela devia se chamar Elsa. Quando voltei da clínica para casa, a primeira
coisa que fiz foi ligar para Lila. Não disse que tinha acabado de dar à luz,
perguntei apenas se podia mandar o romance para ela.
Por alguns segundos ouvi sua respiração leve, até que murmurou:
“Leio quando sair.”
“Preciso de seu parecer o mais rápido possível.”
“Não abro um livro há séculos, Lenu, não sei mais ler, não sou capaz.”
“Por favor, estou pedindo.”
“Você publicou o outro sem problemas: por que este não?”
“Porque o outro nem me parecia um livro.”
“Só posso lhe dizer se gostei ou não.”
“Tudo bem, é suficiente.”
75.

Enquanto aguardava que Lila fizesse sua leitura, soube-se que em Nápoles
havia uma epidemia de cólera. Minha mãe se agitou exageradamente, depois
ficou absorta, acabou quebrando uma sopeira de que eu gostava muito,
anunciou que precisava voltar para casa. Logo intuí que, se a cólera tinha
algum peso em sua decisão, o fato de eu ter recusado dar o nome dela a
minha segunda filha não era algo secundário. Tentei segurá-la, mas ela me
abandonou mesmo assim, quando eu ainda não havia me recuperado do parto
e a perna continuava doendo. Não suportava mais sacrificar meses e meses
da vida por minha causa, uma criatura que nascera dela sem nenhum respeito
ou reconhecimento: preferia ir correndo morrer de vibrião com o marido e
os filhos bons. No entanto, até a despedida, manteve a impassibilidade que
eu exigira: não se lamentou, não resmungou, não me jogou nada na cara.
Aceitou de bom grado que Pietro a acompanhasse de carro à estação. Sentia
que o genro gostava dela e provavelmente — pensei — sempre se controlara
não para me agradar, mas para não fazer feio diante dele. Só se comoveu
quando precisou se separar de Dede. No patamar da escada, perguntou à
menina em seu italiano forçado: está triste que vovó vai embora? Dede, que
estava vivendo aquela partida como uma traição, respondeu enfezada: não.
Fiquei com mais raiva de mim do que dela. Depois fui tomada de uma
fúria autodestrutiva e, poucas horas depois, demiti Clelia. Pietro ficou
espantado, se assustou. Disse-lhe irritada que não aguentava mais lutar ora
com o sotaque maremmano de Dede, ora com o napolitano de minha mãe:
queria voltar a ser dona de minha casa e de meus filhos. Na verdade, me
sentia culpada e tinha uma enorme necessidade de me punir. Com um prazer
desesperado, me abandonei à ideia de que seria esmagada pelas duas
meninas, pelos afazeres domésticos, pela perna doente.
Não tinha dúvida de que Elsa me submeteria a um ano não menos
terrível do que aquele vivido com Dede. No entanto, talvez porque tivesse
mais prática com recém-nascidos, talvez porque estivesse resignada a ser
uma mãe ruim e abandonara a ânsia de perfeição, a menina grudou em meu
peito sem problemas, entregando-se a longas mamadas e sonos
intermináveis. Consequentemente também dormi bastante naqueles primeiros
dias em casa, e para minha surpresa Pietro tratou de manter o apartamento
limpo, fez as compras, cozinhou, deu banho em Elsa e brincou com Dede,
que estava atordoada com o surgimento da irmãzinha e a partida da avó. A
dor na perna cessou de repente. E no fim das contas eu estava tranquila, até
que, num fim de tarde, enquanto cochilava, meu marido veio me acordar: sua
amiga de Nápoles está no telefone, disse. Corri para atender.
Lila tinha conversado bastante com Pietro, disse que não via a hora de
conhecê-lo pessoalmente. Ouvi sem vontade o que ela me dizia — Pietro era
sempre afável com quem não pertencia ao mundo de seus pais — e, como ela
se demorava em frases que me pareceram de uma alegria nervosa, estive a
ponto de gritar: dei a você a possibilidade de me fazer todo o mal possível,
vamos logo, fale, você ficou treze dias com o livro, me diga o que você
pensa sobre ele. Em vez disso, limitei-me a interrompê-la bruscamente:
“Você leu ou não?”
Ficou séria.
“Li.”
“E então?”
“É bom.”
“Bom como? O livro lhe pareceu interessante, divertido, tedioso?”
“Interessante.”
“Quanto? Muito, pouco?”
“Muito.”
“E por quê?”
“Pela história: dá vontade de ler.”
“E o que mais?”
“O que mais o quê?”
Fui dura, falei:
“Lila, eu preciso absolutamente saber como é esse troço que escrevi e
não tenho mais ninguém que me possa dizer isso, somente você.”
“É o que estou fazendo.”
“Não, não é verdade, você está me enrolando: você nunca falou de
modo tão superficial quanto agora.”
Houve um longo silêncio. Imaginei-a sentada de pernas cruzadas, ao
lado de uma feia mesinha onde estava apoiado o telefone. Talvez ela e Enzo
tivessem acabado de voltar do trabalho, talvez Gennaro estivesse brincando
ali por perto. Falou:
“Eu tinha dito a você que não sei mais ler.”
“Não é este o ponto: a questão é que preciso de você, e você não está
nem aí.”
Outro silêncio. Então resmungou algo que não entendi, talvez um
insulto. Disse com dureza, ressentida: eu faço um tipo de trabalho, você faz
outro, o que quer de mim, foi você que estudou, é você quem sabe como os
livros devem ser. Depois sua voz se rompeu e ela quase gritou: você não
deve escrever essas coisas, Lenu, você não é isso, nada do que li se parece
com você, é um livro feio, feio, feio — e o anterior também era.
Assim. Frases velozes e entrecortadas, como se a respiração suave de
repente se tornasse sólida e não conseguisse mais entrar e sair da garganta.
Senti dor de estômago, uma dor forte acima do ventre, que cresceu, mas não
pelo que ela dissera, e sim por como o dissera. Estava soluçando? Exclamei
ansiosa: Lila, o que foi, se acalme, vamos, respire. Não se acalmou. De fato,
eram soluços, pude ouvi-los nitidamente tão carregados de sofrimento que
não consegui sentir a ferida daquele feio, Lenu, feio, feio, nem me ofendi por
ter reduzido meu primeiro livro — o livro que vendera tanto, o livro do meu
sucesso, sobre o qual ela nunca se pronunciara de verdade — a um fracasso.
O que me fez mal foi seu choro. Eu não estava preparada, não esperava
aquilo. Teria preferido a Lila cruel, teria preferido seu tom pérfido. Mas
não, ela soluçava e não conseguia parar.
Me senti perdida. Tudo bem, pensei, escrevi dois livros ruins, mas e
daí?, esse sofrimento é bem mais grave. Então murmurei: Lila, por que esse
choro, eu é que devia estar chorando, pare com isso. Mas ela estrilou: por
que você me forçou a ler, por que me obrigou a dizer o que penso? Eu devia
guardar para mim. E eu: não, estou contente por você ter falado, lhe juro.
Queria que sossegasse, mas ela não conseguia, e continuou despejando em
mim frases desconexas: não me faça ler mais nada, não sou capaz, espero o
máximo de você, tenho certeza de que sabe fazer melhor, quero que você
faça melhor, é a coisa que mais desejo, pois quem sou eu se você não for
excelente, quem sou eu? Murmurei: não se preocupe, me diga sempre o que
pensa, só assim você pode me ajudar, e me ajudou desde que éramos
pequenas, eu sem você não sou capaz de nada. Ela finalmente sufocou os
soluços e sussurrou, fungando o nariz: não sei por que comecei a chorar, sou
mesmo uma cretina. Riu: não queria lhe dar um desgosto, tinha preparado
todo um discurso positivo, imagine que até o escrevi, queria dar uma boa
impressão. Insisti para que me mandasse o texto, disse: pode ser que você
saiba melhor que eu o que devo escrever. Nessa altura deixamos o livro de
lado, anunciei que Elsa tinha nascido, falamos de Florença, de Nápoles, da
cólera. Que cólera — ironizou —, não há nenhuma cólera, há apenas a
confusão de sempre e o medo de morrer na merda, mais medo que fatos, não
há fatos, comemos um monte de limões e ninguém mais caga.
Agora falava sem freios, quase alegre, tinha se livrado de um peso.
Então tornei a sentir a cilada em que eu estava — duas filhas pequenas, um
marido em geral ausente, o desastre do novo livro —, mas não fiquei
ansiosa, ao contrário, me senti leve, e fui eu mesma que reconduzi a
conversa ao meu fracasso. Tinha em mente frases do tipo: a corda
arrebentou, aquele seu fluxo que me influenciava positivamente secou, agora
estou realmente sozinha. Mas não falei nada. Em vez disso, confessei num
tom autoirônico que por trás do esforço daquele livro havia o desejo de
acertar as contas com o bairro, que tive a impressão de estar representando
as grandes mudanças que testemunhara, que o que de algum modo me
inspirou, me encorajou a escrevê-lo, tinha sido a história de dom Achille e
da mãe dos Solara. Ela caiu na risada. Disse que a face nojenta das coisas
não era suficiente para escrever um romance: sem imaginação não parecia
uma face verdadeira, mas uma máscara.
76.

Não sei bem o que me aconteceu depois. Ainda hoje, enquanto ponho ordem
naquele nosso telefonema, tenho dificuldade de relatar os efeitos dos soluços
de Lila. Se me estendo, tenho a impressão de enxergar sobretudo uma
espécie de gratificação incongruente, como se aquele choro, ao me confirmar
o afeto dela e a confiança que tinha nas minhas capacidades, tivesse acabado
por apagar o julgamento negativo sobre ambos os livros. Só muito mais tarde
me passou pela cabeça que aqueles soluços lhe permitiram liquidar meu
trabalho sem apelação, esquivar-se de meu ressentimento, impor-me um
objetivo tão alto — não a decepcionar — que paralisasse qualquer outra
tentativa de escrever. Mas repito que, por mais que me esforce em esmiuçar
aquele telefonema, não consigo dizer: ele esteve na origem disso ou daquilo,
foi um momento alto de nossa amizade ou, ao contrário, foi um dos
momentos mais mesquinhos. O certo é que Lila reforçou seu papel de
espelho de minhas incapacidades. O certo é que me senti mais disposta a
aceitar o fracasso, como se o parecer de Lila fosse muito mais autorizado —
mas também mais persuasivo e mais afetuoso — que o de minha sogra.
Alguns dias depois, telefonei para Adele e lhe disse: obrigada por ter
sido tão franca, me dei conta de que você tem razão, e agora tenho a
impressão de que meu primeiro livro também tinha muitos defeitos; acho que
preciso refletir, talvez eu não seja uma boa escritora, ou simplesmente
preciso de mais tempo. Minha sogra imediatamente me cobriu de elogios,
louvou minha capacidade de autocrítica, lembrou-me que eu tinha um
público e que esse público estava aguardando. Murmurei: sim, claro. E logo
em seguida guardei a última cópia do romance numa gaveta, pus de lado os
cadernos cheios de apontamentos e me deixei absorver pela cotidianidade. O
desgosto por aquele esforço inútil se estendeu também ao meu primeiro
livro, talvez até ao próprio uso literário da escrita. Assim que me ocorria
alguma imagem, uma frase sugestiva, me vinha uma sensação de mal-estar e
passava adiante.
Me dediquei à casa, às filhas, a Pietro. Não pensei nenhuma vez em
chamar Clelia de volta ou substituí-la por outra. Tornei a me encarregar de
tudo, e certamente o fiz para me entorpecer. Mas aconteceu sem esforço, sem
remorso, como se de repente eu tivesse descoberto que aquele era o modo
mais justo de empregar a vida e uma parte de mim me sussurrasse: chega de
grilos na cabeça. Dei aos trabalhos domésticos uma organização férrea e
cuidei de Dede e Elsa com uma alegria inesperada, como se, além do peso
do ventre, além do peso do livro, eu tivesse me livrado de outro peso, mais
oculto, que eu mesma era incapaz de nomear. Elsa confirmou ser uma
criaturinha tranquilíssima — tomava longos banhos serenos, mamava,
dormia, ria até durante o sono —, mas precisei dar muita atenção a Dede,
que odiava a irmã, acordava de manhã com um ar transtornado, contava que
a salvara ora do fogo, ora da água, ora do lobo, mas acima de tudo fingia ser
uma recém-nascida e pedia para chupar meus mamilos, imitava os vagidos
da irmã e de fato não se conformava em ser o que realmente era, uma menina
de quase quatro anos com uma linguagem muito desenvolvida, perfeitamente
autônoma em suas funções primárias. Tive o cuidado de lhe dar muito afeto,
de elogiar sua inteligência e sua eficiência, de convencê-la de que eu
precisava de sua ajuda em tudo, para fazer as compras, cozinhar, impedir
que a irmã fizesse estragos.
Enquanto isso, como estava aterrorizada com a possibilidade de
engravidar de novo, comecei a tomar a pílula. Engordei, me sentia inchada,
mas não tive coragem de parar: uma nova gravidez me assustava mais que
qualquer coisa. De resto, já não me importava com meu corpo como
antigamente. Achava que as duas meninas tinham decretado que eu não era
mais jovem, que ser marcada pelo cansaço — dar banho nelas, vesti-las,
tirar sua roupa, passear de carrinho, fazer as compras, cozinhar, uma no colo
e outra na mão, as duas no colo, tirar o ranho de uma, limpar a boca da outra,
em suma, as tensões de todo dia — testemunhasse minha maturidade de
mulher, que me transformar como as mães do bairro não fosse uma ameaça,
mas o curso natural das coisas. Tudo bem assim, dizia a mim mesma.
Pietro, que tinha cedido quanto à pílula depois de uma longa
resistência, me observava preocupado. Você está arredondando. O que são
essas manchas na pele? Temia que as meninas, eu, ele, todos nós ficássemos
doentes, mas detestava médicos. Eu tentava tranquilizá-lo. Tinha emagrecido
muito nos últimos tempos; os olhos cada vez mais fundos nas olheiras e já
uns fios brancos no cabelo; queixava-se de dores ora num joelho, ora no
quadril direito, ora num ombro, mas se negava a fazer consultas. Então o
obriguei, eu mesma o acompanhei com as meninas e, afora a necessidade de
tomar alguns calmantes, ele estava esbanjando saúde. Isso o deixou eufórico
por umas horas, e todos os sintomas desapareceram. Mas em pouco tempo,
apesar dos tranquilizantes, voltou a se sentir mal. Certa vez em que Dede não
o deixava assistir ao telejornal — foi logo após o golpe de estado no Chile
—, ele lhe deu umas palmadas com excessiva dureza. E, assim que passei a
tomar a pílula, veio-lhe uma vontade de transar com frequência ainda maior,
mas só de manhã ou à tarde, porque — dizia — era o orgasmo noturno que o
fazia perder o sono, forçando-o a estudar até altas horas da noite, o que lhe
causava um cansaço crônico e, consequentemente, todas aquelas dores.
Tudo balela sem sentido: para ele, estudar à noite sempre tinha sido
mais que um hábito, uma necessidade. No entanto eu concordava: não vamos
fazer mais à noite, tudo estava bem para mim. Claro, às vezes eu me
exasperava. Era difícil obter dele uma mínima ajuda em coisas úteis: fazer
as compras quando estava mais livre, lavar os pratos depois do jantar. Uma
noite perdi a paciência: não lhe disse nada de terrível, simplesmente falei
mais alto. E fiz uma descoberta importante: bastava eu gritar para que sua
teimosia sumisse de repente e ele me obedecesse. Era possível, enfrentando-
o com alguma firmeza, fazê-lo se esquecer até das dores erráticas, até do
desejo neurótico de me possuir continuamente. Mas eu não gostava de fazer
isso. Quando me comportava daquela maneira sentia pena dele, tinha a
impressão de causar-lhe um frêmito doloroso no cérebro. De todo modo, os
resultados não eram duradouros. Ele cedia, se restabelecia, assumia
compromissos com certa solenidade, mas depois voltava a ficar
cansadíssimo, se esquecia do pacto, recomeçava a cuidar apenas de si. Por
fim eu desistia, tentava animá-lo, beijava-o. O que eu ganhava com alguns
pratos mal lavados? Somente cara amarrada e uma distração que significava:
estou aqui perdendo meu tempo enquanto preciso trabalhar. Melhor deixá-lo
em paz, e ficava contente quando conseguia evitar tensões.
Para não deixá-lo nervoso, também aprendi a não expressar minhas
opiniões. De resto, não parecia que se importasse com elas. Se ele
argumentava, sei lá, sobre as medidas do governo por causa da crise do
petróleo, se elogiava a aproximação do partido comunista com a
democracia-cristã, preferia que eu apenas escutasse aquiescente. E, nas
vezes em que eu discordava, assumia ares vagos ou falava com um tom que
evidentemente usava com os estudantes: você teve uma má-educação, não
conhece o valor da democracia, do Estado, das leis, da mediação entre os
interesses constituídos, do equilíbrio entre as nações — você gosta do
apocalipse. Eu era sua esposa, uma mulher culta, e ele esperava que eu
prestasse muita atenção quando falava de política, de seus estudos, do novo
livro em que estava trabalhando à exaustão, cheio de ansiedade; mas a
atenção devia ser exclusivamente afetuosa, não queria ouvir opiniões,
sobretudo quando o deixavam em dúvida. Era como se pensasse em voz alta,
só para fazer um balanço interno. No entanto a mãe dele era um tipo de
mulher totalmente diversa. E a irmã também. Mas evidentemente ele não
queria que eu fosse como elas. Naquele seu período de fraqueza, compreendi
por meias frases que ele deve ter se incomodado não só com o sucesso, mas
também com a própria divulgação de meu primeiro livro. Quanto ao
segundo, nunca me perguntou que fim levara o datiloscrito e que projetos eu
tinha para o futuro. Tive a impressão de que o fato de eu não falar mais em
escrever o deixava aliviado.
Mas a revelação de que Pietro a cada dia se tornava pior do que eu
imaginava não me levou de novo a outros homens. Às vezes me acontecia de
topar com Mario, o engenheiro, mas logo descobri que a vontade de seduzir
e de ser seduzida tinha passado, aliás, aquela agitação de antes me pareceu
uma fase um tanto ridícula de minha vida, ainda bem que já estava superada.
Também se atenuou a ânsia de sair de casa, de participar da vida pública da
cidade. Se decidia ir a um debate ou manifestação, levava sempre comigo as
meninas e me sentia orgulhosa de minhas bolsas cheias do necessário para
acudi-las, da desaprovação cautelosa de quem dizia: elas são tão pequenas,
pode ser perigoso.
Mas saía todos os dias, não importava o clima, para permitir que
minhas filhas tomassem um pouco de ar e sol. Nunca o fazia sem levar um
livro. Seguindo um hábito que não me abandonava, continuei lendo em
qualquer circunstância, ainda que tivesse como que se dissipado a ambição
de formar um mundo com aquilo. Em geral eu perambulava um tempo e
depois me sentava num banco não distante de casa. Folheava ensaios
complicados, lia o jornal, gritava: Dede, não vá para longe, fique perto da
mamãe. Eu era isso, e precisava aceitar. Lila, não importa que rumo sua vida
tomasse, era outra coisa.
77.

Naquele período aconteceu que Mariarosa veio a Florença para apresentar


um livro de sua colega na universidade sobre a Nossa Senhora do parto.
Pietro jurou que não faltaria, mas no último momento arranjou uma desculpa
e se entocou em algum lugar. Minha cunhada chegou de carro, dessa vez
sozinha, um pouco cansada, mas carinhosa como sempre e carregada de
presentes para Dede e Elsa. Em nenhum momento acenou a meu romance
abortado, embora com certeza Adele tenha contado tudo a ela. Falou sem
parar das viagens que tinha feito e de livros, com o entusiasmo habitual.
Acompanhava cheia de energia as muitas novidades do planeta. Afirmava
uma coisa, se cansava, passava para outra que, até pouco antes, por
distração, por cegueira, tinha negado. Quando falou do livro da colega,
conquistou imediatamente a admiração da parte do público composta de
historiadores da arte. E a noite teria corrido tranquila nos trilhos acadêmicos
de sempre se, a certa altura, com uma guinada brusca, ela não tivesse
pronunciado frases às vezes desbocadas, do tipo: não é preciso dar filhos a
nenhum pai, muito menos a Deus Pai, os filhos devem ser dados a si mesmos;
chegou o momento de estudarmos como mulheres, e não como homens; por
trás de toda disciplina está o pau, e quando o pau se sente impotente recorre
ao porrete, à polícia, às prisões, ao exército, aos campos de concentração; e
se você não se submete, se ao contrário continua questionando tudo, vem o
massacre. Rumores de discordância, de consenso, no final ela foi cercada
por um grupo numeroso de mulheres. Chamou-me para o lado dela com
acenos alegres, mostrou orgulhosamente Dede e Elsa a suas amigas
florentinas, falou muito bem de mim. Uma delas se lembrou de meu livro,
mas eu logo me esquivei, como se não o tivesse escrito. Foi uma bela
noitada, que deu origem ao convite — por parte de um grupinho heterogêneo
de garotas e mulheres feitas — para ir à casa de uma delas, uma vez por
semana, para falar — me disseram — de nós.
As frases provocadoras de Mariarosa e o convite de suas amigas me
levaram a desenterrar de baixo de uma pilha de livros aqueles dois
opúsculos que Adele me dera tempos atrás. Andei com eles por aí dentro da
bolsa, li ao ar livre, sob um céu cinzento de fim de inverno. O primeiro que
li, atraída pelo título, foi um texto intitulado Vamos cuspir em Hegel. Li
enquanto Elsa dormia no carrinho e Dede, de casaco, echarpe e gorro de lã,
conversava em voz baixa com seu boneco. Cada frase, cada palavra me
surpreendeu, sobretudo a ousada liberdade de pensamento. Sublinhei muitas
passagens com força, coloquei pontos exclamativos, marcas verticais.
Cuspir em Hegel. Cuspir na cultura dos homens, cuspir em Marx, em Engels,
em Lênin. E no materialismo histórico. E em Freud. E na psicanálise e na
inveja do pênis. E no casamento, na família. E no nazismo, no stalinismo, no
terrorismo. E na guerra. E na luta de classes. E na ditadura do proletariado.
E no socialismo. E no comunismo. E na armadilha da igualdade. E em todas
as manifestações da cultura patriarcal. E em todas as formas organizativas.
Opor-se à dispersão das inteligências femininas. Desculturalizar-se.
Desaculturar-se a partir da maternidade, não dar filhos a ninguém. Livrar-se
da dialética servo-patrão. Tirar da cabeça a inferioridade. Restituir-se a si
mesmas. Não ter antíteses. Mover-se num outro plano em nome da própria
diferença. A universidade não liberta as mulheres, mas aperfeiçoa sua
repressão. Contra a sabedoria. Enquanto os homens se entregam a aventuras
espaciais, a vida para as mulheres deste planeta ainda deve começar. A
mulher é a outra face da terra. A mulher é o Sujeito Imprevisto. Libertar-se
da submissão, aqui, agora, neste presente. A autora daquelas páginas se
chamava Carla Lonzi. Como é possível, me perguntei, que uma mulher saiba
pensar assim? Trabalhei muito nos livros, mas sempre me submeti a eles,
nunca os utilizei realmente, nunca os voltei contra si mesmos. Aí está como
se pensa. Aí está como se pensa contra. Eu — depois de tanto esforço — não
sei pensar. Nem mesmo Mariarosa sabe: leu páginas e páginas e as
recombina com estro, dando espetáculos. Só isso. Já Lila sabe. É a natureza
dela. Se tivesse estudado, saberia pensar dessa maneira.
Essa ideia se tornou insistente. Todas as leituras daquele período
terminaram, de um modo ou de outro, trazendo Lila para o centro. Eu
encontrara um modelo feminino de pensamento que, feitas as devidas
diferenças, me causava a mesma admiração, a mesma subalternidade que
sentia em relação a ela. Não só: lia pensando nela, em fragmentos de sua
vida, em frases que ela aprovaria, em outras que rejeitaria. Em seguida,
motivada por aquela leitura, me reuni várias vezes com o grupo de amigas de
Mariarosa, e não foi fácil. Dede me solicitava continuamente: quando vamos
embora, Elsa lançava de repente gritos de alegria. Mas as dificuldades não
vieram apenas de minhas filhas. Na verdade, ali só encontrei mulheres que,
mesmo se parecendo comigo, não me foram de grande ajuda. Eu me
entediava quando a discussão era uma espécie de resumo mal formulado
daquilo que já conhecia. E tinha a impressão de saber bastante bem o que
significava ter nascido mulher, não me apaixonava pelos combates da
consciência de si. E não tinha nenhuma intenção de falar em público sobre
minha relação com Pietro, com os homens em geral, para dar testemunho do
que são os homens de todas as classes e idades. E ninguém melhor do que eu
sabia o que significava masculinizar a própria cabeça para ser bem acolhida
pela cultura dos homens, eu tinha feito isso, continuava fazendo. Além disso,
continuava completamente alheia a tensões, explosões de ciúme, tons
autoritários, vozinhas subalternas, hierarquias intelectuais, lutas pelo
primado no grupo que terminavam em choros desesperados. Mas aconteceu
um fato novo que naturalmente me reconduziu a Lila. Fiquei fascinada com o
modo — explícito até a inconveniência — com que ali se falava e se
divergia. Não gostei tanto da condescendência que cedia o passo à lenga-
lenga, isso eu conhecia bastante bem desde a infância. O que me seduziu foi
a urgência de autenticidade que eu nunca sentira e que talvez não estivesse
em minha natureza. Nunca disse uma só palavra naquele ambiente que se
adequasse àquela urgência. Mas senti que devia fazer alguma coisa do
gênero com Lila, examinarmo-nos em nossa trama com a mesma
inflexibilidade, dizer-nos até o fundo o que silenciávamos, partindo quem
sabe do choro insólito pelo meu livro falhado.
Aquela necessidade foi tão forte que cogitei ir a Nápoles com as
meninas por um tempo, ou pedir que ela viesse me ver com Gennaro, ou que
nos escrevêssemos. Falei sobre isso com ela uma vez, por telefone, mas foi
um fiasco. Contei sobre os livros de mulher que eu andava lendo, do grupo
que frequentava. Ela ficou escutando, mas depois riu diante de títulos como
A mulher clitoridiana e a mulher vaginal e fez de tudo para ser vulgar: que
porra você está dizendo, Lenu, o prazer, a racha, os problemas aqui já são
tantos, ficou doida. Queria demonstrar que não tinha instrumentos para dar
palpite nas coisas que me interessavam. No final falou com desprezo:
trabalhe, Lenu, faça as coisas que precisa fazer, não jogue seu tempo fora.
Estava irritada. Evidentemente não é o melhor momento, pensei, vou tentar
mais adiante. Mas nunca tive tempo nem coragem de tentar de novo.
Terminei concluindo que antes de tudo eu devia entender melhor o que eu
era. Indagar sobre minha condição de mulher. Tinha me excedido, fizera um
enorme esforço para adquirir capacidades masculinas. Acreditava que devia
saber tudo, tratar de tudo. O que me importava a política, as lutas? Queria
fazer bonito diante dos homens, estar à altura. À altura de quê? Da razão
deles, a mais irracional. Tanto esforço para memorizar frases em voga, tanta
energia desperdiçada. Tinha sido condicionada pelo estudo, que havia
modelado minha cabeça, minha voz. Que pactos secretos assumira
intimamente a fim de me destacar? E agora, depois do duro esforço de
aprender, o que precisava desaprender? Além disso, por causa da forte
proximidade de Lila, tinha sido forçada a me imaginar de um jeito que eu
não era. Acabara me somando a ela e me sentia mutilada assim que me
subtraía. Sem Lila, nem sequer uma ideia. Sem o apoio de seus pensamentos,
nenhum pensamento em que pudesse confiar. Nenhuma imagem. Devia me
aceitar fora dela. O núcleo era esse. Aceitar que eu era uma pessoa mediana.
O que eu devia fazer? Tentar escrever mais uma vez? Talvez não tivesse a
paixão para isso, talvez me limitasse a executar uma tarefa. Então nunca mais
escrever. Achar um trabalho qualquer. Ou bancar a madame, como dizia
minha mãe. Fechar-me na família. Ou jogar tudo pelos ares. A casa. As
filhas. O marido.
78.

Fortaleci os laços com Mariarosa. Liguei frequentemente para ela, mas


quando Pietro se deu conta disso começou a me falar da irmã com um
desprezo cada vez mais evidente. Era frívola, vazia, perigosa para si e para
os outros, tinha sido a cruel torturadora de sua infância e adolescência, era a
maior preocupação dos pais. Uma noite, enquanto eu falava com minha
cunhada por telefone, saiu do escritório desgrenhado, o rosto exausto.
Circulou pela cozinha, comeu alguma coisa, brincou com Dede e enquanto
isso ficou escutando nossa conversa. Depois, de uma hora pra outra, gritou:
essa cretina sabe que está na hora do jantar? Desculpei-me com Mariarosa e
pus o fone no gancho. Está tudo pronto — falei —, já vamos comer, não
precisa gritar. Ele resmungou que gastar dinheiro com interurbanos para
ouvir as doidices da irmã lhe parecia uma estupidez. Não respondi, pus a
mesa. Percebeu que eu estava com raiva e disse preocupado: não era com
você, era com Mariarosa. Mas a partir daquela noite ele começou a folhear
os livros que eu lia, a ironizar sobre frases que eu tinha sublinhado. Dizia:
não se deixe enganar, é tudo bobagem. E tentava me demonstrar a lógica
claudicante de manifestos e opúsculos feministas.
Uma noite, justamente sobre aquele tema, acabamos brigando e eu
talvez tenha exagerado; de frase em frase, cheguei a lhe dizer: você se dá
muita importância, mas tudo o que você é depende de seu pai e de sua mãe,
exatamente como Mariarosa. Ele reagiu de modo inesperado, me deu uma
bofetada, e na presença de Dede.
Aguentei firme, melhor do que ele: tinha levado muitas bofetadas ao
longo da vida, Pietro nunca tinha dado uma, nem provavelmente recebido. Vi
em sua expressão o horror pelo que havia feito, fixou a filha por um instante,
saiu de casa. Esperei o ódio esfriar. Não fui para a cama, esperei por ele e,
como não voltava, fiquei preocupada, não sabia o que fazer. Ele estava com
problema de nervos, precisava de repouso? Ou essa era sua verdadeira
natureza, enterrada sob milhares de livros e uma boa educação? Mais uma
vez me dei conta de que sabia bem pouco sobre ele, que não era capaz de
prever seus movimentos: podia ter pulado no Arno, estar caído embriagado
em algum canto, até ter ido a Gênova em busca de conforto e curativo nos
braços da mãe. Ah, chega, eu estava assustada. Percebi que estava deixando
à margem de minha vida privada tudo aquilo que eu lia, que sabia. Tinha
duas filhas, não queria encerrar as contas muito apressadamente.
Pietro voltou por volta das cinco da manhã, e senti tanto alívio ao vê-lo
são e salvo que o abracei e beijei. Ele balbuciou: você não me ama, nunca
me amou. E acrescentou: de todo modo, não mereço você.
79.

Na verdade, Pietro não conseguia aceitar a desordem agora difusa em cada


âmbito da existência. Teria preferido uma vida regrada por hábitos
indiscutíveis: estudar, ensinar, brincar com as meninas, fazer amor,
contribuir a cada dia, em seu pequeno raio de ação, para desembaraçar de
acordo com a democracia o complicadíssimo emaranhado italiano. Em vez
disso, estava extenuado com os conflitos universitários, seus colegas
denegriam seu trabalho que, no entanto, tinha cada vez mais crédito no
exterior, sentia-se continuamente vilipendiado e ameaçado, tinha a impressão
de que, por conta de minha inquietude (mas que inquietude, eu era uma
mulher opaca), nossa própria família estivesse exposta a contínuos riscos.
Numa tarde, Elsa estava brincando sozinha, eu obrigava Dede a exercícios
de leitura, ele estava fechado no escritório, a casa estava imóvel. Pietro —
pensei nervosa — aspira a uma fortaleza em que possa trabalhar em seu
livro, eu me preocupo com a economia doméstica e as meninas crescem
serenamente. Depois veio a descarga elétrica da campainha, corri para abrir
e, de surpresa, entraram em casa Pasquale e Nadia.
Estavam carregando pesadas mochilas militares, ele usava um chapéu
surrado sobre uma massa cheíssima de cabelos crespos que caíam numa
barba igualmente cheia e crespa, ela parecia mais magra e cansada, com
olhos enormes, de menina assustada que finge não ter medo. Tinham
conseguido nosso endereço com Carmen, que por sua vez o obtivera com
minha mãe. Ambos foram afetuosos, e eu também, como se nunca tivéssemos
tido tensões ou divergências. Ocuparam a casa deixando coisas espalhadas
por todo lado. Pasquale falava muito, em voz alta, quase sempre em dialeto.
No início ambos me pareceram uma agradável interrupção em meu cotidiano
monótono. Mas logo me dei conta de que Pietro não gostava deles. Ficou
irritado por não terem telefonado antes avisando da chegada, por ambos se
comportarem com excessiva desenvoltura. Nadia tirou os sapatos e se
espreguiçou no sofá. Pasquale continuou com o chapéu na cabeça, tocou em
objetos, folheou livros, pegou na geladeira uma cerveja para si e para Nadia
sem pedir permissão, bebeu no gargalo e arrotou de um jeito que fez Dede
rir. Disseram que tinham decidido dar um rolé, falaram exatamente dar um
rolé, sem especificar. Quando tinham saído de Nápoles? Foram vagos.
Quando voltariam para lá? Foram igualmente vagos. E o trabalho? —
perguntei a Pasquale. Ele riu: chega, já trabalhei demais, agora descanso. E
mostrou as mãos a Pietro, quis que ele mostrasse as dele, esfregou palma
contra palma dizendo: sente a diferença? Depois pegou o Lotta Continua e
passou a direita sobre a primeira página, orgulhoso do som que fazia o papel
raspado pela pele áspera, alegre como se tivesse inventado um novo jogo.
Então acrescentou quase ameaçador: sem estas mãos de lixa, professô, não
existiria nenhuma cadeira sequer, nenhum prédio, um automóvel, nada, nem
sequer você; se nós, trabalhadores, deixássemos de labutar, tudo pararia, o
céu cairia por terra e a terra salpicaria no céu, as plantas retomariam as
cidades, o Arno alagaria suas belas casas, e somente quem sempre labutou
saberia como sobreviver, enquanto vocês dois, com todos os seus livros,
seriam trucidados pelos cães.
Foi um discurso ao modo de Pasquale, exaltado e sincero, que Pietro
escutou sem replicar. Assim como Nadia, que, enquanto seu companheiro
falava, se mantinha séria, deitada no sofá, os olhos fixos no teto. Ela pouco
interveio na conversa entre os dois homens, nem disse nada a mim. Mas,
quando fui preparar o café, me acompanhou até a cozinha. Notou que Elsa
estava sempre grudada em mim e disse séria:
“Ela gosta muito de você.”
“É muito pequena.”
“Está dizendo que quando crescer não vai mais gostar de você?”
“Não, espero que goste de mim também quando estiver grande.”
“Minha mãe falava muitíssimo de você. Era só uma aluna dela, mas
parecia mais filha do que eu.”
“É mesmo?”
“Eu odiava você por isso, e também porque tomou Nino de mim.”
“Não foi por mim que ele deixou você.”
“Estou me lixando, agora nem me lembro mais da cara que ele tinha.”
“Quando eu era novinha, queria ser que nem você.”
“Pra quê? Você acha que nascer e já encontrar tudo de mão beijada é
uma coisa boa?”
“Bem, você precisa batalhar menos.”
“Você se engana, a verdade é que tudo parece já feito e você não tem
nenhum bom motivo para se esforçar. Sente apenas a culpa pelo que você é
sem ter merecido.”
“Melhor que sentir a culpa de ter fracassado.”
“É o que sua amiga Lina lhe diz?”
“Não, não.”
Nadia fez um movimento agressivo com a cabeça e uma expressão
pérfida, que nunca pensaria ver nela. Disse:
“Prefiro ela a você. Vocês são duas merdinhas que nunca vão mudar,
dois exemplares da escória subproletária. Mas você se faz de simpática,
Lina, não.”
Deixou-me na cozinha sem palavras. Ouvi que ela gritava a Pasquale,
vou tomar uma ducha, e você também devia dar uma enxaguada no corpo. Os
dois se fecharam no banheiro. Escutamos suas risadas, ela lançava gritinhos
que — percebi — deixavam Dede muito preocupada. Quando saíram
estavam seminus, os cabelos molhados, felicíssimos. Continuaram brincando
entre si como se não estivéssemos ali. Pietro tentou se intrometer com
perguntas do tipo: há quanto tempo vocês estão juntos? Nadia respondeu
friíssima: não estamos juntos, talvez vocês dois estejam juntos. Ele então
perguntou com o tom birrento que costumava exibir nos casos em que as
pessoas lhe pareciam superficiais: o que significa? Você não conseguiria
entender, respondeu Nadia. Meu marido objetou: quando alguém não
consegue entender, os outros tentam explicar. Neste ponto Pasquale
interveio, rindo: não há nada a explicar, professô; você precisa pensar que
está morto e não sabe; tudo está morto, o modo como vocês vivem, como
falam, a convicção de serem inteligentíssimos, democratas e de esquerda.
Como se pode explicar algo a quem está morto?
Houve um momento de tensão. Eu não disse nada, não conseguia tirar
da cabeça os insultos de Nadia, assim, como se nada fosse, na minha própria
casa. Finalmente eles foram embora, quase sem avisar, assim como tinham
chegado. Pegaram as coisas deles e desapareceram. Pasquale apenas disse
da soleira, com um tom subitamente triste:
“Tchau, senhora Airota.”
Senhora Airota. Até meu amigo do bairro estava me julgando
negativamente? Queria dizer que, para ele, eu não era mais Lenu, Elena,
Elena Greco? Para ele e para todos os outros? Até para mim? Eu mesma não
usava quase sempre o sobrenome de meu marido, agora que o meu tinha
perdido aquele pouco de prestígio que havia conquistado? Recoloquei a
casa em ordem, principalmente o banheiro, que os dois tinham deixado em
péssimo estado. Pietro disse: não quero nunca mais esses dois em minha
casa; alguém que fala assim do trabalho intelectual é um fascista, mesmo que
não saiba; quanto a ela, é um tipo que conheço muito bem, não tem nada na
cabeça.
80.

Como se desse razão a Pietro, a desordem começou a se tornar concreta,


envolvendo pessoas que tinham sido próximas. Soube por Mariarosa que
Franco tinha sido agredido em Milão por fascistas, estava em péssimas
condições, tinha perdido um olho. Viajei imediatamente para lá com Dede e
a pequena Elsa. Fui de trem, brincando com as meninas e lhes dando comida,
mas entristecida com a outra que eu fui — a namorada pobre e inculta do
rico estudante hiperpolitizado Franco Mari; quantas de mim ainda existiam?
—, que se perdera em algum lugar e que agora tornava a despontar.
Na estação encontrei minha cunhada, pálida, alarmada. Ela nos levou
para a casa dela, uma casa agora deserta e ainda mais bagunçada do que
quando me hospedara depois da assembleia na universidade. Enquanto Dede
brincava e Elsa dormia, ela me contou mais do que me dissera por telefone.
O fato tinha ocorrido cinco dias antes. Franco falara numa manifestação da
Vanguarda Operária, num teatrinho lotado. No final, se afastou com Silvia,
que agora vivia com um redator de Il Giorno numa bela casa ali perto do
teatro: ele iria dormir lá e partir no dia seguinte para Piacenza. Já estavam
quase no portão, Silvia tinha acabado de tirar as chaves da bolsa, quando um
furgão branco encostou e os fascistas desceram. Ele tinha sido massacrado
na porrada, Silvia tinha sido surrada e violentada.
Bebemos muito vinho, Mariarosa pegou a droga: chamava-a assim,
noutros casos usava o plural. Dessa vez resolvi experimentar, mas só
porque, apesar do vinho, me sentia sem uma coisa boa sequer à qual me
agarrar. Depois de frases cada vez mais raivosas, minha cunhada se calou e
desandou a chorar. Não achei nem uma palavra para consolá-la. Eu sentia
suas lágrimas, tive a impressão de que faziam um rumor ao escorrer de seus
olhos pelas faces. De repente não a vi mais, não vi nem mesmo o quarto,
tudo ficou escuro. E desmaiei.
Quando recuperei os sentidos, me desculpei muito constrangida, disse
que tinha sido o cansaço. Dormi pouco à noite: o corpo me pesava por
excesso de disciplina, e as palavras dos livros e das revistas escorriam
como se de repente as letras do alfabeto não fossem mais combináveis.
Fiquei do lado das meninas como se fossem elas que devessem me confortar
e proteger.
No dia seguinte deixei Dede e Elsa com minha cunhada e fui ao
hospital. Encontrei Franco numa enfermaria esverdeada, que tinha um cheiro
forte de hálito, urina e medicamentos. Tinha como que encurtado e inchado,
ainda tenho na lembrança o branco das ataduras, a cor arroxeada de parte do
rosto e do pescoço. Não me recebeu bem, tive a impressão de que se
envergonhava pelo seu estado. Então falei eu, contei a ele sobre minhas
filhas. Depois de alguns minutos, murmurou: vá embora, não quero você
aqui. Como insisti em continuar, sussurrou aborrecido: não sou mais eu, vá
embora. Estava muito mal, soube por um grupinho de companheiros dele que
talvez tivessem de operá-lo de novo. Quando voltei do hospital, Mariarosa
percebeu que eu estava transtornada. Me ajudou com as meninas e, assim que
Dede dormiu, me mandou também para a cama. Mas no dia seguinte ela quis
que eu a acompanhasse na visita a Silvia. Tentei não ir, já tinha sido
insuportável encontrar Franco e sentir que não só não podia ajudá-lo, mas o
deixava ainda mais frágil. Disse que preferia recordá-la como a tinha visto
durante a assembleia na Estatal. Não, insistiu Mariarosa, ela quer que a
vejamos como está agora, é importante para ela. E fomos.
Uma senhora muito arrumada, com cabelos louríssimos que desciam em
onda até os ombros, abriu a porta para nós. Era a mãe de Silvia e estava ao
lado de Mirko, também louro, um menino já de cinco ou seis anos que Dede,
com seu jeito meio emburrado e autoritário, logo obrigou a brincar com Tes,
o velho boneco que ela levava para todo lado. Silvia estava dormindo, mas
tinha dito que queria ser acordada quando chegássemos. Esperamos bastante
até que ela aparecesse. Tinha feito uma maquiagem pesada, colocado um
belo vestido verde, comprido. O que mais me chamou a atenção não foram
os hematomas, os cortes, o passo incerto — Lila me parecera ainda mais
maltratada quando voltara da viagem de núpcias —, mas o olhar
inexpressivo. Tinha olhos vazios, totalmente incongruentes com o falatório
frenético, interrompido por risadinhas, com que disparou a contar a mim,
somente a mim, que ainda não conhecia a história, o que os fascistas tinham
feito com ela. Expressou-se como se recitasse uma cantilena atroz, que era o
modo pelo qual, por ora, estava sedimentando o horror à força de repeti-lo a
quem quer que a visitasse. A mãe tentou várias vezes interrompê-la, mas ela
sempre a rechaçou com um gesto aborrecido, erguendo a voz, escandindo
obscenidades e prevendo um tempo próximo, muito próximo, de vinganças
ferozes. Quando comecei a chorar, ela parou bruscamente. Enquanto isso,
outras pessoas chegaram, especialmente amigas de família e companheiras
dela. Então Silvia recomeçou, e eu me retirei depressa para um canto
abraçando Elsa, dando-lhe beijos suaves. Entretanto voltavam à minha mente
os detalhes do que Stefano fizera com Lila, os detalhes que eu tinha
imaginado enquanto Silvia me contava, e me pareceu que as palavras de
ambos os relatos fossem gritos animalescos de terror.
A certa altura fui procurar Dede. Encontrei-a no corredor, brincando
com Mirko e o boneco. Fingiam que eram a mãe e o pai com seu filho, mas
não havia paz entre eles, estavam encenando uma briga. Fiquei parada. Dede
instruía Mirko: você tem de me dar um tapa, entendeu? A nova carne viva
repetia a velha por brincadeira, éramos uma cadeia de sombras sempre
encenada com a mesma carga de amor, de ódio, de vontades e de violência.
Observei Dede com atenção, me pareceu semelhante a Pietro. Já Mirko era
idêntico a Nino.
81.

Não muito tempo depois, a guerra subterrânea que irrompia em picos


imprevistos nos jornais e na tv — planos golpistas, repressão policial,
bandos armados, combates de fogo, ferimentos, assassinatos, bombas e
massacres em cidades grandes e pequenas — me atingiu mais uma vez.
Carmen telefonou, estava preocupadíssima, não tinha notícias de Pasquale há
semanas.
“Por acaso ele esteve aí com você?”
“Esteve, mas há pelo menos uns dois meses.”
“Ah. Ele tinha me pedido seu número de telefone e o endereço: queria
ouvir um conselho seu. Ele fez isso?”
“Um conselho sobre o quê?”
“Não sei.”
“Ele não me pediu nenhum conselho.”
“E o que ele falou?”
“Nada, estava bem, alegre.”
Carmen tinha perguntado por ele a todo mundo, até a Lila, até a Enzo,
até ao pessoal do coletivo na via dei Tribunali. Por fim telefonara para
Nadia, mas a mãe tinha sido ríspida, e Armando lhe dissera apenas que ela
se mudara sem deixar nenhum contato.
“Devem ter ido morar juntos.”
“Pasquale com aquela lá? Sem deixar um endereço ou telefone?”
Ficamos um bom tempo tentando entender. Disse a ela que talvez Nadia
tivesse rompido com a família por causa de sua ligação com Pasquale, que
— quem sabe — talvez eles tivessem ido morar na Alemanha, na Inglaterra,
na França. Mas Carmen não se convenceu. Pasquale é um irmão muito
querido, disse, nunca desapareceria assim. Estava com um pressentimento
terrível: os combates no bairro eram agora cotidianos, todos os
companheiros deviam tomar cuidado, os fascistas tinham ameaçado até ela e
o marido. E tinham acusado Pasquale de ter incendiado tanto a seção do msi
quanto o supermercado dos Solara. Eu não estava sabendo de nada daquilo e
fiquei espantada: isso tinha acontecido no bairro? Os fascistas atribuíam as
ações a Pasquale? Sim, ele estava no topo da lista, era considerado alguém a
ser varrido do mapa. Talvez Gino tenha mandado matá-lo, disse Carmen.
“Você foi à polícia?”
“Fui.”
“E o que eles disseram?”
“Por pouco não me prenderam, são mais fascistas que os fascistas.”
Telefonei para Galiani. Ela me disse irônica: o que aconteceu com
você, não a vejo mais nas livrarias nem nos jornais, já se aposentou?
Respondi que tinha duas meninas, que por ora precisava me dedicar a elas,
depois perguntei de Nadia. Ela foi antipática. Nadia é grande, foi morar
sozinha. Onde — indaguei. Ela é que sabe, respondeu e, sem se despedir,
justo quando ia lhe pedir o telefone do filho, desligou a chamada.
Demorei bastante para encontrar o número de Armando, e mais difícil
ainda foi encontrá-lo em casa. Quando finalmente atendeu, parecia contente
de me ouvir e bastante propenso a confidências. Estava trabalhando muito no
hospital, tinha se separado da mulher, que saíra de casa levando o menino,
deixando-o só e desorientado. Travou quando falou da irmã. Disse baixinho:
não tenho mais nenhuma relação com ela. Divergências políticas,
divergências sobre tudo: desde que se juntara a Pasquale, não era mais
possível conversar. Perguntei: eles foram viver juntos? Ele foi direto:
digamos que sim. Então, como se o assunto fosse desimportante, ele se
esquivou e passou a fazer comentários duros sobre a situação política, falou
dos atentados de Brescia, dos patrões que subornavam os partidos e, assim
que a situação apertava, recorriam aos fascistas.
Tornei a ligar para Carmen tentando acalmá-la. Disse-lhe que Nadia
tinha rompido com a família para ficar com Pasquale, e que Pasquale foi
atrás dela feito um cachorrinho.
“Você acha?”, perguntou Carmen.
“Com certeza, o amor é assim.”
Ela se mostrou cética. Eu insisti, falei com mais detalhes sobre a tarde
que os dois tinham passado em minha casa e exagerei um pouco sobre quanto
eles se gostavam. Então nos despedimos. Mas em meados de junho Carmen
me ligou de novo, desesperada. Gino tinha sido assassinado em plena luz do
dia, na frente da farmácia, deram-lhe um tiro na cara. No momento pensei
que estivesse me dando aquela notícia porque o filho do farmacêutico era
parte de nossa primeira adolescência e, fascista ou não, certamente o
acontecimento me abalaria. Mas o motivo central não era compartilhar
comigo o horror daquela morte violenta. Os policiais tinham ido até ela e
vasculharam o apartamento de cima a baixo, inclusive a bomba de gasolina.
Procuravam alguma pista que pudesse levá-los até Pasquale, e ela se sentira
bem pior do que quando tinham ido prender seu pai após o assassinato de
dom Achille.
82.

Carmen estava numa ansiedade tremenda, chorava por aquilo que lhe parecia
o retorno de uma perseguição. Quanto a mim, não conseguia tirar da cabeça a
pracinha desolada onde ficava a farmácia, e tinha diante dos olhos o interior
da loja, que sempre me agradara pelo cheiro de caramelos e de xaropes,
pelos móveis de madeira escura sobre os quais se alinhavam vasos
coloridos, sobretudo pelos pais de Gino, gentilíssimos, um tanto curvados
atrás do balcão de onde se debruçavam como de uma galeria de teatro, eles,
que seguramente estavam ali quando o barulho dos tiros os fez estremecer,
eles, que dali mesmo talvez tenham visto de olhos arregalados o filho
desabar na soleira, e o sangue. Quis falar com Lila. Mas ela se mostrou de
uma indiferença total e, liquidando o assunto como mais um dos tantos, se
limitou a dizer: imagine se a polícia não iria atrás de Pasquale. A voz dela
conseguiu imediatamente me capturar e persuadir, sublinhando que, mesmo
que Pasquale tivesse de fato assassinado Gino — hipótese que ela excluía
—, de todo modo ela ficaria do lado dele, porque a polícia deveria ter se
preocupado mais com o morto, por todas as desgraças que ele fizera, e não
com nosso amigo pedreiro e comunista. Depois disso, com o tom de quem
passa a questões mais relevantes, me perguntou se poderia deixar Gennaro
comigo enquanto as aulas não recomeçavam. Gennaro? E como eu faria? Eu
já tinha Dede e Elsa que me esgotavam. Murmurei:
“Por quê?”
“Preciso trabalhar.”
“Estou indo para a praia com as meninas.”
“Leve ele também.”
“Vou para Viareggio e fico lá até o final de agosto: o menino me
conhece pouco, vai querer você. Se você também vier, tudo bem, mas
sozinha eu não sei.”
“Você me jurou que cuidaria dele.”
“Sim, mas se você estivesse mal.”
“E como é que você sabe que não estou mal?”
“Você está?”
“Não.”
“Então pode muito bem deixá-lo com sua mãe ou com Stefano.”
Ficou calada por uns segundos, depois perdeu as boas maneiras:
“Você pode me fazer esse favor? Sim ou não?”
Cedi na hora.
“Tudo bem, pode trazer o menino.”
Enzo chegou num sábado à tarde com uma Cinquecento branquíssima,
que tinha acabado de comprar. Só de avistá-lo da janela, de ouvir o dialeto
que usou para dizer algo ao menino que ainda estava no carro — era ele,
idêntico, o mesmo gesto compassado, o mesmo organismo compacto —,
senti de novo a materialidade de Nápoles, do bairro. Abri a porta com Dede
agarrada a meu vestido, e me bastou apenas olhar para Gennaro e perceber
que, já cinco anos atrás, Melina tinha acertado: agora que estava com dez
anos o menino mostrava evidentemente que não se parecia nada não só com
Nino, mas nem sequer com Lila — era uma reprodução perfeita de Stefano.
Ao constatá-lo, tive um sentimento ambíguo, uma mistura de decepção e
de regozijo. Pensei que, no fim das contas, tendo de ficar com o menino por
tanto tempo, teria sido bom ver pela casa, ao lado de minhas filhas, um filho
de Nino; no entanto, constatei de bom grado que Nino não tinha deixado nada
para Lila.
83.

Enzo queria partir logo em seguida, mas Pietro o acolheu com muita
gentileza e o obrigou a passar a noite com a gente. Tentei estimular Gennaro
a brincar com Dede, embora tivessem quase seis anos de diferença, mas,
enquanto ela se mostrou propensa, ele se recusou com um movimento
decidido da cabeça. Fiquei tocada com a atenção que Enzo dispensou àquele
filho que não era dele, mostrando conhecer seus hábitos, os gostos, as
necessidades. Obrigou-o com delicadeza, apesar de Gennaro protestar por
causa do sono, a fazer xixi e a escovar os dentes antes de ir para a cama;
depois, quando o menino apagou de cansaço, tirou a roupa dele e lhe pôs o
pijama delicadamente.
Enquanto eu lavava os pratos e arrumava as coisas, Pietro entretinha
nosso hóspede. Estavam sentados à mesa da cozinha, não tinham nada em
comum. Tentaram primeiro com a política, mas, quando meu marido acenou
positivamente à progressiva aproximação entre os comunistas e os
democratas-cristãos, e Enzo rebateu que, se aquela estratégia prevalecesse,
Berlinguer teria ajudado os piores inimigos da classe operária, renunciaram
a discutir para evitar um desentendimento. Então Pietro passou gentilmente a
perguntar sobre o trabalho do outro, e Enzo deve ter achado aquela
curiosidade sincera, porque foi menos lacônico que o habitual e começou um
relato conciso, talvez um pouco técnico demais. A ibm tinha acabado de
mandá-los, ele e Lila, para uma empresa maior, uma fábrica nos arredores de
Nola que tinha trezentos operários e uns quarenta funcionários. A proposta
salarial os deixara sem fôlego: trezentas e cinquenta mil liras ao mês para
ele, que era o chefe do centro, e cem mil para ela, sua ajudante. Obviamente
tinham aceitado, mas agora eles deveriam fazer jus a todo aquele dinheiro, e
o trabalho era realmente enorme. Somos responsáveis — nos explicou,
usando a partir daquele momento sempre o nós — por um Sistema 3 modelo
10, e temos à nossa disposição dois operadores e cinco perfuradoras, que
são também verificadoras. Precisamos recolher e inserir dentro do Sistema
uma grande quantidade de informações, necessárias para que a máquina
possa fazer, digamos, a contabilidade, os pagamentos, as faturas, o
armazenamento, a gestão das vendedoras, os pedidos aos fornecedores, a
produção e a expedição. Para isso nos servimos de cartõezinhos, isto é, as
fichas a serem perfuradas. As perfurações são tudo, todo o esforço converge
para elas. Vou dar um exemplo do trabalho que é preciso fazer para
programar uma operação simples como a emissão de faturas. Começa-se
pelas etiquetas de papel, aquelas em que o responsável pelo depósito
registrou os produtos e os clientes aos quais foram entregues. O cliente tem
seu código, seus dados pessoais têm outro código e os produtos também têm
um código. As perfuradoras vão para as máquinas, apertam a tecla de
liberação das fichas, batem nas teclas e reduzem o número-nota fiscal, o
código-cliente, o código-dados pessoais, o código-produto-quantidade a
outros tantos furos nos cartõezinhos. Só para vocês entenderem, mil notas
fiscais para dez produtos produzem dez mil fichas perfuradas com
buraquinhos pequenos como os de uma agulha; está claro, vocês estão
acompanhando?
A noite passou assim. Pietro de vez em quando fazia sinal de que estava
entendendo e tentou até fazer umas perguntas (os furos contam, mas as
partes não perfuradas também contam?). Eu me limitava a um meio sorriso
enquanto lavava e lustrava. Enzo parecia contente por poder explicar a um
professor universitário, que o ouvia como um estudante aplicado, e a uma
velha amiga, que se formara e escrevera um livro e agora arrumava a
cozinha, coisas que eles ignoravam completamente. Mas na verdade eu logo
me distraí. Um operador pegava dez mil cartõezinhos e os inseria numa
máquina que se chamava selecionadora. A máquina os organizava segundo o
código-produto. Depois se passava a dois leitores, não no sentido de
pessoas, mas no de máquinas programadas para ler os furos e os não furos
nos cartõezinhos. E depois? Nesse ponto me perdi. Me perdi entre os
códigos e os enormes pacotes de cartõezinhos e os furos que eram
contrastados com outros furos, que selecionavam furos, que liam furos, que
faziam as quatro operações, quem imprimiam nomes, endereços, somas. Me
perdi dentro de uma palavra que nunca tinha escutado, file, que Enzo usava
frequentemente e pronunciava como o plural de fila, mas não dizia le file,
mas il file, um misterioso masculino, o file disso, o file daquilo, sem parar.
Me perdi atrás de Lila, que sabia tudo daquelas palavras, daquelas
máquinas, daquele trabalho, trabalho que agora ela fazia naquela grande
fábrica de Nola, embora com o salário que pagavam a seu companheiro ela
tivesse mais condições de bancar a madame do que eu. Me perdi atrás de
Enzo, que podia dizer com orgulho: sem ela eu não conseguiria, e assim nos
comunicava um amor altíssimo, era evidente que ele gostava de recordar a si
mesmo e aos outros a extraordinariedade de sua mulher, ao passo que meu
marido nunca me elogiava, ao contrário, me reduzia a mãe de seus filhos,
queria que eu, mesmo tendo estudado, não fosse capaz de um pensamento
autônomo, me humilhava humilhando o que eu lia, o que me interessava, o
que eu dizia, e parecia disposto a só me amar desde que pudesse demonstrar
continuamente minha nulidade.
Finalmente também me sentei à mesa, soturna porque nenhum dos dois
tinha experimentado dizer: vamos ajudar você a pôr a mesa, a tirar os pratos,
a lavar a louça, a varrer o chão. Uma fatura, estava dizendo Enzo, é um
documento simples, o que é que custa fazê-la à mão? Nada, caso eu só
precise preencher dez ao dia. Mas e se eu precisar preencher mil? Os
leitores leem até duzentas fichas por minuto, portanto duas mil em dez
minutos e dez mil em cinquenta. A velocidade da máquina é uma vantagem
enorme, especialmente se for preparada para ser capaz de fazer operações
complexas, que demandam muito tempo. E meu trabalho e o de Lila é
justamente esse: preparar o Sistema para fazer operações complexas. As
fases de desenvolvimento dos programas são realmente belíssimas. Já as
fases operacionais são um pouco menos. Muitas vezes as fichas emperram e
se rasgam nas selecionadoras. Muitíssimas vezes uma caixa com fichas
recém-ordenadas cai no chão e os cartõezinhos se espalham pelo piso. Mas é
bonito, mesmo assim é bonito.
Então o interrompi só para me sentir presente e disse:
“Ele pode errar?”
“Ele quem?”
“O computador.”
“Não há nenhum ele, Lenu, ele sou eu. Se ele errar, se fizer confusão,
quem errou fui eu, eu é que fiz confusão.”
“Ah”, disse; e murmurei: “Estou cansada.”
Pietro fez sinal que sim e pareceu pronto a encerrar a noite. Mas depois
se dirigiu a Enzo:
“É entusiasmante, com certeza, mas, se a coisa é mesmo como você diz,
essas máquinas vão acabar tomando o lugar dos homens, muitas
competências vão desaparecer, na Fiat a soldagem já é feita por robôs,
muitíssimos postos de trabalho vão se perder.”
De início Enzo concordou, depois pareceu vacilar, por fim recorreu à
única pessoa a quem atribuía autoridade:
“Lina diz que isso é bom: os trabalhos humilhantes e os que
imbecilizam precisam desaparecer.”
Lina, Lina, Lina. Perguntei para provocar: se Lina é tão excelente, por
que dão trezentas e cinquenta mil liras a você e cem mil a ela? Só porque
você é o chefe e ela é a ajudante? Enzo hesitou de novo, pareceu a ponto de
dizer algo urgente que depois decidiu deixar de lado. Balbuciou: o que você
quer de mim, é preciso abolir a propriedade privada dos meios de produção.
Na cozinha se ouviu por alguns segundos o zumbido da geladeira. Pietro se
levantou e disse: vamos dormir.
84.

Enzo queria partir por volta das seis, mas já às quatro da manhã o escutei se
movendo no quarto e me levantei para preparar o café. A sós, na casa
silenciosa, a língua dos computadores ou o italiano devido à autoridade de
Pietro desapareceram, e passamos ao dialeto. Perguntei sobre a relação dele
com Lila. Disse que ia bem, embora ela não parasse nunca. Ora estava às
voltas com os problemas no trabalho, ora se desentendia com a mãe, com o
pai, com o irmão, ora ajudava Gennaro a fazer as tarefas, e vira e mexe
acabava também ajudando os filhos de Rino e todas as crianças que
apareciam na casa. Lila não se poupava, por isso vivia exausta, parecia à
beira de pifar, como já acontecera outras vezes, estava muito cansada. Logo
entendi que aquela dupla entrosada, cotovelo com cotovelo no trabalho,
abençoada por bons salários, devia ser posta numa sequência mais
complicada. Arrisquei:
“Talvez vocês estejam precisando se organizar melhor: Lila não pode
exagerar no trabalho.”
“É o que eu sempre digo a ela.”
“Além disso há a separação, o divórcio: não faz sentido que ela
continue casada com Stefano.”
“Quanto a isso, ela está pouco se lixando.”
“Mas e Stefano?”
“Nem sequer sabe que agora é possível se divorciar.”
“E Ada?”
“Ada precisa sobreviver. A roda gira, quem estava em cima termina
embaixo. Os Carracci não têm mais uma lira, somente dívidas com os
Solara, e Ada tenta raspar o que pode antes que seja tarde.”
“E você? Não quer se casar?”
Compreendi que ele se casaria de bom grado, mas Lila era contra. Não
só não queria perder tempo com o divórcio — e daí se eu continuo casada
com aquele sujeito, eu estou com você, durmo com você, o que importa é
isso —, mas também a própria ideia de outro casamento já lhe provocava
risos. Dizia: eu e você? Eu e você nos casando? Mas que nada, estamos bem
assim, e quando nos enchermos cada um segue seu rumo. Lila não se
interessava pela perspectiva de um novo casamento, tinha mais em que
pensar.
“Em quê?”
“Deixa pra lá.”
“Me diga.”
“Ela nunca lhe disse nada?”
“Sobre o quê?”
“Sobre Michele Solara.”
Me contou com frases breves e tensas que em todos aqueles anos
Michele nunca deixou de pedir a Lila que voltasse a trabalhar para ele.
Tinha lhe proposto administrar uma loja nova no Vomero. Ou cuidar da
contabilidade e dos impostos. Ou ser secretária de um amigo dele, um
importante político democrata-cristão. Tinha chegado até a oferecer um
salário de duzentas mil liras ao mês só para que inventasse coisas, ideias
malucas, tudo o que lhe passasse pela cabeça. Mesmo morando em
Posillipo, ele continuava mantendo a sede de seus negócios no bairro, na
casa da mãe e do pai. Assim Lila topava com ele frequentemente, na rua, no
mercado, nas lojas. Sempre muito amigável, ele a entretinha, brincava com
Gennaro, dava presentinhos para ele. Depois ficava seriíssimo e, mesmo
depois de ela recusar os trabalhos que lhe oferecia, ele reagia com paciência
e se despedia dela com a ironia de sempre: eu não desisto, vou esperar você
pela eternidade, me chame quando quiser que eu venho correndo. Até que
ficou sabendo que ela estava trabalhando para a ibm. Isso o deixou furioso,
tinha chegado a mobilizar uns conhecidos dele para tirar Enzo do emprego e,
consequentemente, também Lila. Não obtivera nenhum resultado, a ibm
precisava urgentemente de técnicos, e técnicos qualificados como Enzo e
Lila eram raros. Mas o clima tinha mudado. Enzo topara com os fascistas de
Gino na porta de casa e só escapou porque conseguiu chegar antes ao portão
e trancá-lo rapidamente. Mas logo em seguida aconteceu um fato
preocupante com Gennaro. A mãe de Lila foi buscá-lo na escola, como de
costume. Todos os alunos já tinham saído, mas não se via o menino. A
professora: ele estava aqui agora mesmo. Os colegas: estava aqui e depois
desapareceu. Assustadíssima, Nunzia chamou a filha no trabalho e Lila
voltou correndo em busca do filho. Ele estava sentado num banco dos
jardinzinhos. Estava ali quieto, a farda, o laço, a pasta e, ao ser perguntado:
aonde você foi, o que fez, ria com os olhos vazios. Ela queria ir
imediatamente até Michele e matá-lo, seja pela tentativa de espancamento,
seja pelo sequestro de Gennaro, mas Enzo a impedira. Os fascistas
perseguiam quem quer que fosse de esquerda, e nada provava que tinha sido
Michele que ordenara aquilo. Quanto a Gennaro, ele mesmo reconhecera que
sua breve ausência tinha sido uma mera desobediência. De todo modo,
depois que Lila se acalmou, Enzo decidiu por conta própria ir conversar
com Michele. Apresentou-se no bar Solara e Michele o escutou sem piscar o
olho. Depois lhe falou mais ou menos assim: não sei de que merda você está
falando, Enzù, eu tenho carinho por Gennaro, quem mexer com ele está
morto, mas de todas as bobagens que você disse a única coisa verdadeira é
que Lina é de fato excelente e é uma pena que ela desperdice sua
inteligência, faz anos que peço a ela que venha trabalhar comigo. Então
prosseguiu: você se chateia com isso? E daí? Mas você está errado, se gosta
mesmo dela, deveria encorajá-la a usar suas grandes capacidades. Venha cá,
se sente, pegue um café e um doce, me conte para que servem esses seus
computadores. E não terminou ali. Tinham se encontrado casualmente duas
ou três vezes, e Michele mostrara cada vez mais interesse pelo Sistema 3.
Um dia chegou a dizer, brincalhão, que tinha perguntado a um sujeito da ibm
quem era o melhor, ele ou Lila, e que o outro dissera que Enzo era realmente
muito bom, mas que a melhor na praça era Lila. Depois disso, noutra
ocasião, ele a parou na rua e fez uma proposta importante. Estava pensando
em alugar o Sistema 3 e utilizá-lo em todas as suas atividades comerciais.
Consequência: queria que ela fosse a chefe do centro, por quatrocentas mil
liras ao mês.
“Ela não lhe contou nem isso?”, Enzo me perguntou cauteloso.
“Não.”
“Deve ser porque não quer incomodá-la, você tem sua vida. Mas você
entende que, para ela, pessoalmente, seria um salto de qualidade, e para nós
dois seria uma fortuna: chegaríamos a setecentas e cinquenta mil liras por
mês, não sei se ficou claro.”
“Mas e Lina?”
“Deve dar uma resposta em setembro.”
“E o que ela vai fazer?”
“Não sei. Você já conseguiu prever o que se passa naquela cabeça?”
“Não. Mas o que você acha que ela deveria fazer?”
“Eu acho o que ela achar.”
“Mesmo que não esteja de acordo?”
“Mesmo assim.”
Acompanhei-o até o carro. Enquanto descia as escadas, pensei que
talvez devesse lhe dizer o que ele seguramente não sabia, isto é, que Michele
nutria por Lila um amor obsessivo, um amor perigoso, que não tinha a ver
com a posse física nem com uma devota subalternidade. E estive a ponto de
falar aquilo, porque eu gostava dele, não queria que acreditasse que tinha
diante de si apenas um meio camorrista que há tempos planejava comprar a
inteligência de sua mulher. Quando ele já estava dentro do carro, perguntei:
“E se Michele quiser tomá-la de você?”
Continuou impassível:
“Eu mato ele. Mas de todo modo ele não quer, já tem uma amante, todo
mundo sabe disso.”
“Quem é?”
“Marisa, ele a engravidou de novo.”
No momento tive a impressão de não ter entendido.
“Marisa Sarratore?”
“Sim, Marisa, a mulher de Alfonso.”
Então me lembrei da conversa com meu colega de escola. Ele tinha
tentado me dizer como sua vida era complicada, e eu me retraíra, tocada
mais pela superfície de sua revelação que pela substância. Mesmo naquela
ocasião seu mal-estar me pareceu confuso — para entender melhor,
precisaria ter conversado de novo com ele, e talvez nem assim tivesse
entendido —, no entanto assimilei a notícia com um desagradável incômodo.
Perguntei:
“E Alfonso?”
“Ele não está nem aí, dizem que é veado.”
“Quem diz?”
“Todo mundo.”
“Todo mundo é muito genérico, Enzo. O que mais todo mundo diz?”
Ele me olhou com um lampejo de ironia cúmplice:
“Tantas coisas, o bairro é um falatório contínuo.”
“Como assim?”
“Vieram à tona velhas histórias. Andam dizendo que quem matou dom
Achille foi a mãe dos Solara.”
Finalmente ele foi embora, e esperei que também levasse aquelas
palavras com ele. Mas o que fiquei sabendo durou, me deixou preocupada,
me fez sentir raiva. Para me livrar da sensação, corri ao telefone, falei com
Lila e misturei aflições a recriminações: por que você não me disse nada
sobre as propostas de trabalho de Michele, especialmente sobre essa última;
por que revelou o segredo de Alfonso; por que espalhou aquela história da
mãe dos Solara, aquilo era uma brincadeira nossa; por que mandou Gennaro
para cá, está preocupada com ele, me responda com clareza, eu tenho o
direito de saber; por que pelo menos uma vez na vida você não me fala o que
está se passando na sua cabeça? Foi um desabafo, mas, de frase em frase,
dentro de mim, tive a esperança de que não pararíamos por ali, de que
finalmente se realizaria, ainda que só por telefone, o velho desejo de encarar
nossa relação por inteiro, reexaminá-la e ter plena consciência do que ela
era. Esperava provocá-la e atraí-la para outras perguntas, cada vez mais
pessoais. Mas Lila se aborreceu, me tratou com bastante frieza, não estava
de bom humor. Respondeu que eu tinha ido embora havia anos, que agora eu
levava uma vida na qual os Solara, Stefano, Marisa, Alfonso não
significavam mais nada, importavam menos que zero. Aproveitem as férias
— me falou encurtando a conversa —, escreva, siga sua vida de intelectual,
nós aqui continuamos muito terra a terra para você, fique longe disso; e olhe
lá, faça Gennaro pegar um pouco de sol, se não ele vai voltar raquítico que
nem o pai.
A ironia da voz, o tom minimizador, quase grosseiro, deram mais
consistência ao relato de Enzo e eliminaram qualquer possibilidade de atraí-
la para os livros que eu estava lendo, para as palavras que eu tinha
aprendido com Mariarosa e o grupo florentino, para as questões que estava
tentando fazer a mim mesma e que, uma vez que lhe tivesse fornecido os
conceitos de base, ela certamente saberia enfrentar melhor que nós todas.
Mas claro, pensei, eu cuido de minhas coisas e você das suas: se prefere
assim, não cresça, continue brincando no pátio, mesmo agora, que está
prestes a fazer trinta anos; chega, vou para a praia. E assim fiz.
85.

Pietro nos acompanhou, a mim e às três crianças, até uma casa feiosa de
Viareggio que tínhamos alugado e em seguida voltou a Florença para
terminar seu livro. Pronto — disse a mim mesma —, agora sou uma
veranista, uma senhora abastada com três filhos e muitos brinquedos, um
guarda-sol na primeira fila, toalhas macias, muita coisa para comer, cinco
biquínis de várias cores, cigarros mentolados, o sol que bronzeia minha pele
e me deixa ainda mais loura. Telefonava todas as noites para Pietro e para
Lila. Pietro me falava de pessoas que tinham me procurado, resíduos de uma
época distante, e, mais raramente, me falava de alguma hipótese de trabalho
que tinha acabado de lhe ocorrer. Passava Lila a Gennaro, que relatava
desinteressadamente à mãe os fatos — segundo ele — mais relevantes do dia
e lhe dava boa noite. Eu não falava quase nada, nem com um, nem com outro.
Sobretudo Lila me parecia reduzida a uma mera voz.
Mas depois de um tempo me dei conta de que não era bem assim, parte
dela estava em carne e osso dentro de Gennaro. O menino era certamente
muito parecido com Stefano e não se assemelhava nem um pouco a Lila.
Entretanto os gestos, o modo de falar, alguns vocábulos, algumas expressões
e certa agressividade eram os mesmos de quando ela era menina. Assim,
quando de vez em quando eu me distraía, levava um susto ao ouvir a voz
dele ou me encantava observando-o enquanto gesticulava para explicar uma
brincadeira a Dede.
Porém, diferentemente da mãe, Gennaro era dissimulado. A maldade de
Lila quando era pequena sempre tinha sido explícita, nenhuma punição
jamais a levara a escondê-la. Já Gennaro desempenhava o papel de
garotinho bem-comportado, até tímido, mas assim que eu virava as costas ele
pirraçava Dede, escondia o boneco dela, batia nela. Quando eu o ameaçava
dizendo que, por punição, não telefonaríamos mais a sua mãe para dar boa
noite, assumia uma expressão compungida. Mas na verdade aquela eventual
punição não o preocupava nem um pouco, fui eu quem impus o ritual das
ligações noturnas, ele passaria sem isso tranquilamente. O que mais o
preocupava era a ameaça de não ganhar um sorvete. Então desandava a
chorar, dizia entre soluços que queria voltar para Nápoles, e eu
imediatamente cedia. Mas isso não o apaziguava. Vingava-se de mim
atacando Dede às escondidas.
Eu estava certa de que a menina tinha medo dele, de que o odiava. Mas
não. Com o passar do tempo, reagiu cada vez menos às provocações de
Gennaro e se apaixonou por ele. Chamava-o de Rino ou Rinuccio porque ele
tinha dito que seus amigos o chamavam assim, e o seguia por toda parte sem
ligar para meus chamados, ao contrário, era ela que o incentivava a se
afastar do guarda-sol. Eu passava o dia inteiro gritando: Dede, aonde você
vai, Gennaro, venha para cá, Elsa, o que você está fazendo, não ponha areia
na boca, Gennaro, pare com isso, Dede, se você não me obedecer eu vou aí e
vamos ver. Um esforço inútil: Elsa comia areia matematicamente, e
matematicamente, enquanto enxaguava sua boca com a água do mar, Dede e
Gennaro desapareciam.
O local onde se refugiavam era um caniçal que ficava ali perto. Uma
vez fui ver com Elsa o que os dois estavam aprontando e descobri que
tinham tirado a roupa de banho e Dede tocava curiosa o pintinho duro que
Gennaro lhe mostrava. Parei a poucos metros, não sabia como me comportar.
Dede — eu sabia, já tinha visto — muitas vezes se masturbava deitada de
barriga para baixo. Mas eu tinha lido bastante sobre sexualidade infantil —
tinha até comprado para minha filha um livrinho cheio de ilustrações
coloridas que explicava com frases brevíssimas o que acontecia entre
homem e mulher, palavras que tinha lido para ela sem suscitar nenhum
interesse — e, mesmo me sentindo incomodada, não só me obriguei a não
interromper nem a censurar, mas também, dando por certo que o pai teria
feito isso, tive o cuidado de evitar surpreendê-la.
Mas e agora? Devia deixar que brincassem entre si? Devia recuar, ir
embora de fininho? Ou me aproximar sem dar nenhum peso àquilo, falar com
naturalidade de outra coisa? E se aquele meninão violento, bem maior que
Dede, a obrigasse a sabe-se lá o quê, e se a machucasse? A diferença de
idade não seria um perigo? O que acabou precipitando a situação foram dois
acontecimentos: Elsa viu a irmã, gritou de alegria, a chamou; e no mesmo
instante ouvi as palavras em dialeto que Gennaro estava dizendo a Dede,
palavras pesadas, as mesmíssimas e vulgares palavras que eu também tinha
aprendido no pátio quando era pequena. Não consegui mais me controlar,
tudo o que eu tinha lido sobre prazeres, latências, neuroses, perversões
polimorfas de meninos e de mulheres desapareceu na hora, e repreendi os
dois com dureza, principalmente Gennaro, que agarrei por um braço e
arrastei embora. Ele caiu no choro, Dede me disse fria, destemida: você é
muito malvada.
Comprei sorvete para ambos, mas então começou uma fase em que, a
uma vigilância discreta, buscando evitar que o episódio se repetisse, se
juntou um certo alarme pelo modo como a linguagem de Dede ia
incorporando vocábulos obscenos do dialeto napolitano. De noite, enquanto
os meninos dormiam, peguei o hábito de forçar a memória: será que eu
também tinha feito aquelas brincadeiras com meus amigos do pátio? E Lila
também tivera experiências daquele tipo? Nunca tínhamos falado sobre isso.
Na época dizíamos palavras asquerosas, isto sim, mas eram insultos que
serviam entre outras coisas para repelir as mãos de adultos indecentes,
palavrões que gritávamos ao fugirmos. E quanto ao resto? Cheguei com
dificuldade a me pôr a questão: será que eu e ela alguma vez nos bolinamos?
Alguma vez eu tinha desejado fazer isso quando criança, menina,
adolescente, adulta? E ela? Fiquei rondando aquelas perguntas
demoradamente. Então me respondi baixinho: não sei, não quero saber.
Depois admiti que uma espécie de admiração pelo seu corpo, talvez isso
sim, tinha havido, mas excluí que alguma vez tivesse ocorrido algo entre nós.
Era medo demais: se nos flagrassem, nos matariam de tanta surra.
De todo modo, nos dias em que me vi diante daquele problema, evitei
levar Gennaro ao telefone público. Temia que ele dissesse a Lila que não
estava mais bem comigo, que talvez até lhe contasse aquele episódio. Aquele
temor me aborreceu: por que eu me preocupava tanto? Deixei que tudo se
atenuasse. Até a vigilância sobre os dois meninos aos poucos se abrandou,
não podia ficar o tempo todo de olho neles. Dediquei-me a Elisa e os deixei
em paz. Somente quando, mesmo com os lábios lívidos e os dedos
enrugados, se recusavam a sair da água é que eu gritava nervosíssima da
beira do mar, com as toalhas prontas para os dois.
Os dias de agosto passaram voando. Casa, mercado, preparação de
bolsas lotadas, praia, volta para casa, jantar, sorvete, telefone. Conversava
com outras mães, todas mais velhas que eu, e ficava contente se elogiavam
meus meninos e minha paciência. Falavam-me dos maridos, dos trabalhos
que faziam. Eu falava do meu, dizia: é professor de latim na universidade.
No fim de semana Pietro chegava, exatamente como anos atrás, em Ischia,
Stefano e Rino chegavam. Minhas conhecidas lhe lançavam olhares
respeitosíssimos e pareciam apreciar, graças a sua cátedra, até sua moita de
cabelos. Ele tomava banho com as filhas e com Gennaro, os envolvia em
aventuras falsamente arriscadas que faziam os quatro se divertirem muito,
depois ficava estudando debaixo do guarda-sol, queixando-se de tanto em
tanto do pouco sono, já que muitas vezes se esquecia de levar os
tranquilizantes. Na cozinha, quando os meninos já estavam dormindo, me
comia de pé para evitar o rangido da cama. O casamento agora me parecia
um instituto que, contrariamente ao que se pensava, destituía o coito de
qualquer humanidade.
86.

Foi Pietro que, num sábado, identificou em meio à multidão de títulos dos
jornais, que durante dias só falaram da bomba fascista que explodira no trem
Italicus, uma breve notícia no Corriere della Sera referente a uma pequena
indústria na periferia de Nápoles.
“A fábrica em que sua amiga trabalhava não se chamava Soccavo?”, me
perguntou.
“O que foi que aconteceu?”
Passou o jornal para mim. Um comando composto de dois homens e
uma mulher tinha invadido uma fábrica de embutidos na periferia de
Nápoles. Primeiro os três atiraram nas pernas do vigia, Filippo Cara, que
estava em estado gravíssimo; depois subiram ao escritório do proprietário,
Bruno Soccavo, um jovem empresário napolitano, e o assassinaram com
quatro tiros de pistola, três no peito e um na cabeça. Enquanto lia, visualizei
o rosto de Bruno se desfazendo, arrebentando com seus dentes
branquíssimos. Oh, meu Deus, meu Deus, não consegui respirar. Deixei os
meninos com Pietro e fui correndo ligar para Lila; o telefone tocou por muito
tempo sem que ninguém atendesse. Tentei de novo à noite, e nada. Consegui
encontrá-la no dia seguinte, e ela me perguntou assustada: o que houve,
Gennaro não está bem? Tranquilizei-a, contei sobre Bruno. Não sabia de
nada, me deixou falar e por fim murmurou apática: você me deu uma notícia
péssima. Nada mais. Insisti: telefone para alguém, tente saber mais, pergunte
para onde posso enviar um telegrama de condolências. Ela disse que não
tinha mais contato com ninguém da fábrica. E depois, que telegrama que nada
— resmungou —, deixa pra lá.
Deixei pra lá. Mas no dia seguinte encontrei no Manifesto um artigo
assinado por Giovanni Sarratore, Nino, que trazia muitas informações sobre
a pequena fábrica da Campânia, enfatizava as tensões políticas presentes
naquela realidade atrasada e citava com afeto Bruno e sua trágica morte. A
partir daquele momento acompanhei o desdobramento da notícia por dias,
mas sem resultado, já que rapidamente o caso sumiu dos jornais. Além disso,
Lila não quis mais falar sobre o assunto. À noite eu ligava para ela com os
meninos, e ela cortava a conversa, dizendo: me passe Gennaro. Ficou
particularmente irritada quando mencionei Nino. A mania de sempre,
resmungou, precisa sempre meter o bedelho: não tem nada a ver com
política, pode ter sido por mil outros motivos, aqui se morre assassinado por
qualquer coisa, chifres, trapaças, até por um olhar excessivo. Assim os dias
se passaram e só me restou de Bruno uma imagem, mais nada. Não era a do
patrão que eu havia ameaçado por telefone, servindo-me da autoridade dos
Airota, mas a do rapaz que tinha tentado me beijar e que eu rejeitara
duramente.
87.

Já ali na praia comecei a ter pensamentos ruins. Lila — disse a mim mesma
— reprime calculadamente as emoções e os sentimentos. Quanto mais eu
buscava instrumentos para tentar compreender a mim mesma, mais ela, ao
contrário, se escondia. Quanto mais eu procurava trazê-la para a berlinda e
envolvê-la em minha vontade de clareza, mais ela se refugiava na penumbra.
Parecia a lua cheia quando se oculta atrás do bosque e os ramos rabiscam
sua superfície.
Retornei a Florença nos primeiros dias de setembro, mas os maus
pensamentos, em vez de se dissolverem, tornaram-se ainda mais fortes. Inútil
tentar me abrir com Pietro. Ficou muito descontente com nossa volta para
casa, estava atrasado com o livro e a ideia de que o ano letivo recomeçaria
dali a pouco o deixava impaciente. Numa noite em que, à mesa, Dede e
Gennaro disputavam não me lembro o quê, ele deu um pulo de repente e saiu
da cozinha batendo a porta com tanta violência que o vidro fosco se
espatifou. Telefonei para Lila e disse a ela sem rodeios que alguém
precisava vir buscar o menino, fazia um mês e meio que seu filho vivia
comigo.
“Você não pode ficar com ele até o final do mês?”
“Não.”
“A coisa aqui está feia.”
“Aqui também.”
Enzo partiu em plena noite e chegou de manhã, quando Pietro estava no
trabalho. Eu já tinha preparado a bagagem de Gennaro. Expliquei a ele que
as tensões entre os meninos tinham se tornado insuportáveis, que eu
lamentava, mas três era além da conta, eu não aguentava mais. Ele disse que
entendia e me agradeceu por tudo o que eu tinha feito. Apenas murmurou, a
título de justificativa: você sabe como Lina é. Não repliquei, seja porque
Dede estava gritando, desesperada com a partida de Gennaro, seja porque,
se o tivesse feito, poderia ter dito coisas — justamente a propósito de como
era Lila — das quais me arrependeria mais tarde.
Tinha pensamentos na cabeça que não queria formular nem para mim
mesma, temia que os fatos se adaptassem magicamente às palavras. Mas não
conseguia apagar as frases, sentia na cabeça sua sintaxe já pronta e ficava
assustada, estava fascinada por aquilo, me causava horror, me seduzia. Meu
adestramento para encontrar uma ordem estabelecendo conexões entre
elementos distantes tinha me tomado pela mão. Eu havia somado a morte
violenta de Gino à de Bruno Soccavo (Filippo, o vigia da fábrica, tinha
escapado). E tinha chegado à ideia de que cada um daqueles acontecimentos
levava a Pasquale, talvez até a Nadia. Já essa hipótese me deixara
extremamente agitada. Pensei em telefonar para Carmen, perguntar se tinha
notícias do irmão; depois mudei de ideia, assustada com a possibilidade de
que seu telefone pudesse estar grampeado. Quando Enzo veio buscar
Gennaro, disse a mim mesma: agora toco no assunto com ele, vamos ver
como reage. Mas também nesse caso permaneci calada, temendo falar
demais, temendo pronunciar o nome da figura que estava por trás de
Pasquale e de Nadia, ou seja, Lila: sempre Lila, a que não diz as coisas, faz;
Lila, que está embebida na cultura do bairro e não tem nenhuma
consideração pela polícia, pelas leis, pelo Estado, mas acredita que existem
problemas solucionáveis apenas com o trinchete; Lila, que conhece o horror
da desigualdade; Lila, que na época do coletivo da via dei Tribunali
encontrou na teoria e na práxis revolucionária uma maneira de empregar sua
inteligência demasiado ativa; Lila, que transformou em objetivos políticos
seus antigos e novos rancores; Lila, que move as pessoas como personagens
de um romance; Lila, que conectou, está conectando, nosso conhecimento
pessoal da miséria e da opressão com a luta armada contra os fascistas,
contra os patrões, contra o capital. Admito aqui pela primeira vez de modo
claro: naqueles dias de setembro suspeitei que não só Pasquale — Pasquale,
impelido por sua história pessoal à necessidade de empunhar armas —, não
só Nadia, mas também Lila tivesse participado daqueles atentados. Por um
longo tempo, enquanto cozinhava, enquanto cuidava de minhas filhas, pude
vê-la, em companhia dos outros dois, atirando em Gino, atirando em Filippo,
atirando em Bruno Soccavo. E, se tinha dificuldade de imaginar Pasquale e
Nadia em cada detalhe — eu o considerava um bom rapaz, meio fanfarrão e
capaz, sim, de entrar numa luta com dureza, mas não de matar; ela me
parecia uma garotinha mimada que no máximo podia ferir com perfídias
verbais —, quanto a Lila nunca tive dúvida: ela teria sabido arquitetar o
plano mais eficaz, ela teria reduzido os riscos ao mínimo, ela teria mantido o
medo sob controle, ela era capaz de conferir às intenções assassinas uma
abstrata pureza, ela sabia como subtrair substância humana aos corpos e ao
sangue, ela não teria escrúpulos e menos ainda remorsos, ela teria matado e
se sentido com razão.
Então lá estava ela, nítida, junto à sombra de Pasquale, de Nadia, de
sabe-se lá quantos outros. Passavam de carro pela pracinha, reduziam a
marcha diante da farmácia e disparavam contra Gino, contra seu corpo de
miliciano fechado no avental branco. Ou chegavam à Soccavo pela estrada
poeirenta, dejetos de todo tipo amontoados no acostamento. Pasquale
atravessava o portão, atirava nas pernas de Filippo, o sangue se espalhava
pela guarita, gritos, olhos aterrorizados. Lila, para quem o ambiente era bem
conhecido, cruzava o pátio, entrava na fábrica, subia as escadas, irrompia no
escritório de Bruno e, justamente quando ele lhe dizia alegre: oi, você por
essas bandas, lhe explodia três tiros no peito e um na cara.
Ah, sim, antifascismo militante, nova resistência, justiça proletária e
outras fórmulas às quais ela, que por instinto sabia evitar a baboseira
gregária, certamente podia dar mais consistência. Imaginei que aquelas
ações fossem obrigatórias para entrar, sei lá, nas Brigadas Vermelhas, na
Primeira Linha, nos Núcleos Armados Proletários. Lila desapareceria do
bairro tal como Pasquale já tinha feito. Talvez por isso tenha tentado deixar
Gennaro comigo, aparentemente por um mês, mas na verdade com a intenção
de entregá-lo a mim para sempre. Nunca mais a veríamos. Ou então seria
presa, como tinha acontecido com os chefes das Brigadas Vermelhas, Curcio
e Franceschini. Ou escaparia de qualquer policial ou prisão, fantasiosa e
temerária como era. E, quando o grande advento se realizasse, reapareceria
triunfal, admirada por seus feitos, em trajes de líder revolucionária, e me
diria: você queria escrever romances, eu fiz meu romance com pessoas de
carne e osso, com sangue de verdade, no mundo real.
De noite, todas as fantasias me pareciam fatos acontecidos ou que ainda
estavam acontecendo, e eu temia por ela, a imaginava caçada, ferida como
tantas e tantos outros na desordem das coisas, e me dava pena, mas também a
invejava. Ampliava enormemente a convicção infantil de que ela estava
destinada desde sempre a aventuras extraordinárias, e me lamentava por ter
fugido de Nápoles, por ter me afastado dela, voltando a sentir a necessidade
de estar a seu lado. Mas também me enfurecia por ela ter tomado aquele
rumo sem me consultar, como se não me tivesse considerado à altura. No
entanto eu sabia bastante sobre capital, exploração, luta de classes, a
inevitabilidade da revolução proletária. Poderia ter sido útil participar de
algum modo. E estava infeliz. Definhava na cama, triste com minha condição
de mãe de família, de mulher casada, todo o futuro aviltado pela repetição
até a morte de rituais domésticos na cozinha, no leito conjugal.
De manhã me sentia mais lúcida, e o horror levava a melhor. Imaginava
uma Lila caprichosa, que estimulava ódios com esmero e acabava se vendo
cada vez mais envolvida em ações ferozes. Com certeza tinha tido a coragem
de ir além, de tomar iniciativas com a determinação cristalina e a crueldade
generosa de quem é movido por justas razões. Mas com que perspectiva?
Preparar uma guerra civil? Transformar o bairro, Nápoles, a Itália inteira
num campo de batalha, um Vietnã no meio do Mediterrâneo? Lançar todos
nós em um conflito impiedoso, interminável, esmagado entre o bloco oriental
e ocidental? Favorecer seu alastramento incendiário pela Europa, pelo
planeta inteiro? Até a vitória, sempre? Mas que vitória? As cidades
destruídas, o fogo, os mortos nas ruas, a ignomínia dos combates furiosos
não só com os inimigos de classe, mas também no interior da mesma frente,
entre grupos revolucionários de várias regiões e convicções, todos em nome
do proletariado e de sua ditadura. Talvez até a guerra nuclear?
Fechava os olhos horrorizada. As meninas, o futuro. E me agarrava a
fórmulas: o sujeito imprevisto, a lógica destrutiva do patriarca, o valor
feminino da sobrevivência, a piedade. Preciso conversar com Lila, pensava.
Ele tem de me contar tudo o que está fazendo, o que está planejando, para
que eu possa decidir se serei ou não sua cúmplice.
Mas nunca telefonei para ela, nem ela ligou para mim. Convenci-me de
que o longo fio de voz que tinha sido nosso único contato por anos não nos
favorecera. Tínhamos mantido o laço entre nossas duas histórias, mas por
subtração. Tínhamos nos tornado entidades abstratas uma para a outra, tanto
que agora eu podia inventá-la para mim a meu modo, seja como uma
especialista em computadores, seja como uma guerrilheira urbana decidida e
implacável, ao passo que ela, com toda probabilidade, podia me ver tanto
como o estereótipo da intelectual de sucesso quanto como uma senhora culta
e abastada, toda dedicada aos filhos, aos livros e a conversas eruditas com o
marido acadêmico. Ambas precisávamos de uma nova concretude, de um
corpo, e no entanto nos distanciáramos e não conseguíamos mais nos
conceder isso.
88.

Todo o mês de setembro passou assim, e também outubro. Eu não


conversava com ninguém, nem com Adele, que tinha muito trabalho, nem
com Mariarosa, que acolhera Franco em sua casa — um Franco inválido,
necessitado de assistência, transfigurado pela depressão — e me atendia
alegre, prometia mandar minhas lembranças para ele, mas depois encurtava a
conversa por causa dos muitos compromissos. Sem falar do mutismo de
Pietro. O mundo fora dos livros lhe pesava cada vez mais, ia com grande má
vontade ao caos regulamentado da universidade, frequentemente dizia que
estava doente. Falava que agia assim para poder estudar, mas não conseguia
concluir seu livro, raramente se trancava para estudar e, como para perdoar-
se e se fazer perdoar, dava atenção a Elsa, cozinhava, varria, lavava,
passava. Eu precisava tratá-lo com dureza para conseguir que voltasse à
faculdade, mas logo me arrependia por isso. Desde que a violência atingira
pessoas do meu círculo de conhecidos, temia por ele. Jamais renunciara,
mesmo tendo enfrentado situações perigosas, a opor-se publicamente àquilo
que, em seu vocabulário preferido, definia a estultice de seus estudantes e de
muitos colegas. Mas eu, mesmo me preocupando com ele — aliás,
exatamente porque me preocupava —, nunca lhe dava razão. Esperava que,
criticando-o, ele se arrependesse, parasse com aquele reformismo
reacionário (eu usava essa fórmula), se tornasse mais maleável. Mas a seus
olhos minha atitude me levava ainda mais para o lado dos estudantes que o
agrediam, dos professores que tramavam contra ele.
Não era assim, a situação era bem mais complicada. Por um lado, eu
queria confusamente protegê-lo, por outro, tinha a impressão de me alinhar
com Lila, de defender as escolhas que secretamente lhe atribuía. Tanto que
de vez em quando pensava em ligar para ela e começar uma conversa
justamente a partir de Pietro, de nossos conflitos, para só então ouvir o que
ela achava e, um passo depois do outro, tirá-la da toca. Obviamente acabava
desistindo da ideia, era ridículo esperar sinceridade sobre esses assuntos
por telefone. Mas uma noite foi ela quem me ligou, estava contentíssima.
“Preciso lhe dar uma boa notícia.”
“O que foi?”
“Sou chefe do centro.”
“Como assim?”
“Chefe do centro mecanográfico ibm que Michele alugou.”
Aquilo me pareceu inacreditável. Pedi que repetisse, que me explicasse
direito. Tinha aceitado a proposta de Solara? Depois de tantas resistências
voltara a trabalhar para ele como na época da piazza dei Martiri? Respondeu
que sim, com entusiasmo, e se mostrou cada vez mais alegre, cada vez mais
explícita: Michele confiara a ela o Sistema 3 que tinha alugado e instalado
em um depósito de sapatos em Acerra; ela teria sob seu comando operadores
e perfuradoras; o salário era de quatrocentas e vinte e cinco mil liras.
Fiquei mal. Não só a imagem da guerrilheira se dissipou num instante,
mas tudo o que eu tinha a impressão de saber sobre Lila vacilou. Falei:
“Era a última coisa que eu esperaria de você.”
“O que eu devo fazer?”
“Recusar.”
“Por quê?”
“A gente conhece bem os Solara.”
“E daí? Já aconteceu antes, e, como empregada de Michele, eu passei
bem melhor do que com o cretino do Soccavo.”
“Faça como achar melhor.”
Escutei sua respiração. Ela disse:
“Não gosto desse tom, Lenu. Vou ganhar um salário melhor que o de
Enzo, que é homem: qual é o problema?”
“Nenhum.”
“A revolução, os operários, o novo mundo e bobagens desse tipo?”
“Pare com isso. Se de repente você decidir ter uma conversa
verdadeira, pode contar comigo; se não, é melhor deixar pra lá.”
“Posso lhe fazer uma observação? Você sempre usa verdadeira ou
verdadeiramente, tanto falando quanto escrevendo. Ou então diz: de repente.
Mas desde quando as pessoas falam verdadeiramente e desde quando as
coisas acontecem de repente? Você sabe melhor do que eu que tudo é uma
grande confusão, que uma coisa acontece depois de outra e de mais outra. Eu
não faço mais nada verdadeiramente, Lenu. E aprendi a prestar atenção às
coisas, só os idiotas acreditam que elas acontecem de repente.”
“Muito bem. Você quer que eu acredite em quê? Que você tem tudo sob
controle, que é você quem usa Michele, e não o contrário? Vamos deixar pra
lá, vamos, tchau.”
“Não, fale, diga o que você quer dizer.”
“Não tenho nada a dizer.”
“Fale, se não falo eu.”
“Então fale, quero ouvir.”
“Você me critica e não tem nada a dizer a sua irmã?”
Caí das nuvens.
“O que é que minha irmã tem a ver agora?”
“Não está sabendo nada de Elisa?”
“E o que eu deveria saber?”
Riu com maldade.
“Pergunte a sua mãe, seu pai, seus irmãos.”
89.

Não quis me adiantar mais nada e interrompeu furiosíssima a ligação.


Telefonei ansiosa para a casa de meus pais, minha mãe atendeu.
“De vez em quando você se lembra de que a gente existe”, ela disse.
“Mãe, o que está acontecendo com Elisa?”
“O mesmo que acontece com as mulheres de hoje.”
“Ou seja?”
“Está com alguém.”
“Ficou noiva?”
“Digamos que sim.”
“E com quem ela está?”
A resposta me atravessou o coração.
“Com Marcello Solara.”
Então era isso que Lila queria que eu soubesse. Marcello, o belo
Marcello de nossa primeira adolescência, seu noivo teimoso e desesperado,
o rapaz que ela humilhara ao se casar com Stefano Carracci, tinha tomado
Elisa para si, a mais nova da família, minha irmãzinha boa, a mulher que eu
ainda sentia como uma menina mágica. E Elisa se deixara tomar. Meus pais e
meus irmãos não tinham movido uma palha para impedi-lo. E toda minha
família, e de algum modo eu mesma, acabaríamos aparentados com os
Solara.
“Desde quando?”, perguntei.
“Sei lá, um ano.”
“E vocês deram permissão?”
“Você por acaso pediu nossa permissão? Fez como bem entendeu. E ela
fez a mesma coisa.”
“Pietro não é Marcello Solara.”
“Você tem razão: Marcello nunca permitiria que Elisa o tratasse como
você trata Pietro.”
Silêncio.
“Vocês podiam ter me informado, ter me consultado.”
“E por quê? Você foi embora. ‘Eu cuido de vocês, não se preocupem.’
Coisa nenhuma. Você só pensou em suas coisas, se fodeu para a gente.”
Decidi viajar imediatamente para Nápoles com as meninas. Queria ir
de trem, mas Pietro se ofereceu para nos levar de carro, fazendo passar por
zelo o fato de que não queria trabalhar. Já quando saímos da Doganella e
entramos no trânsito caótico de Nápoles, me senti agarrada de novo pela
cidade, comandada por suas leis não escritas. Não punha os pés ali desde
que tinha saído para me casar. O barulho me pareceu insuportável, fiquei
nervosa com o buzinar contínuo dos carros, com as ofensas que lançavam a
Pietro quando, por não conhecer a estrada, hesitava, diminuía a marcha.
Pouco antes de piazza Carlo iii o obriguei a encostar o carro, assumi o
volante e guiei com agressividade até via Firenze, até o mesmo hotel em que
ele se hospedara anos antes. Deixamos as bagagens e me dediquei a
cuidados meticulosos com as meninas e comigo. Depois fomos ao bairro,
para a casa de meus pais. O que eu achava que poderia fazer? Impor a Elisa
minha autoridade de irmã mais velha, formada, bem-casada? Induzi-la a
romper o noivado? Dizer: conheço Marcello desde que me agarrou pelo
pulso e tentou me puxar para dentro de sua Millecento, arrebentando o
bracelete de prata de mamãe, confie em mim, ele é um homem vulgar e
violento? Sim. Eu me sentia determinada, minha tarefa era tirar Elisa
daquela armadilha.
Minha mãe acolheu Pietro com grande afeto e, um após outro — este é
para a Dede da vovó, este é para Elsa —, deu às meninas muitos
presentinhos que, cada qual a seu jeito, as deixaram muito animadas. Meu
pai ficou com a voz rouca de emoção, me pareceu emagrecido, ainda mais
subalterno. Esperei que meus irmãos aparecessem, mas descobri que não
estavam em casa.
“Estão sempre trabalhando”, disse meu pai sem entusiasmo.
“O que eles estão fazendo?”
“Labutando”, atalhou minha mãe.
“Onde?”
“Marcello arranjou emprego para eles.”
Me lembrei de como os Solara tinham arranjado emprego para
Antonio, em que eles o haviam transformado.
“Que tipo de emprego?”, perguntei.
Minha mãe respondeu irritada:
“Eles trazem dinheiro para casa, é o que importa. Elisa não é que nem
você, Elisa pensa em todos nós.”
Fiz de conta que não escutei:
“Você avisou que eu chegaria hoje? Onde ela está?”
Meu pai baixou os olhos, minha mãe falou seca:
“Na casa dela.”
Fiquei furiosa:
“Ela não mora mais aqui?”
“Não.”
“E desde quando?”
“Quase dois meses. Ela e Marcello têm um belo apartamento no bairro
novo”, disse minha mãe, gelada.
90.

Então a coisa ia muito além de um noivado. Quis ir imediatamente para a


casa de Elisa, embora minha mãe repetisse: não faça isso, sua irmã está
preparando uma surpresa para você, fique aqui, vamos todos juntos mais
tarde. Não lhe dei ouvidos. Telefonei para Elisa, que atendeu ao mesmo
tempo alegre e constrangida. Falei: me espere, estou chegando. Deixei Pietro
e as meninas com meu pais e fui a pé.
O bairro me pareceu ainda mais degradado: prédios descascados, a
pavimentação das ruas esburacada, imundície. Pelos cartazetes tarjados de
preto que forravam os muros — nunca tinha visto tantos —, fiquei sabendo
que o velho Ugo Solara, avô de Marcello e Michele, tinha morrido. Como a
data atestava, o fato não era recente, remontava a pelo menos dois meses
antes, e as frases grandiloquentes, os rostos de virgens dolorosas, o próprio
nome do morto se mostravam desbotados e sem bordas. No entanto os avisos
fúnebres continuavam pelas ruas como se os outros mortos, por respeito,
tivessem decidido sumir do mundo sem que ninguém tomasse conhecimento.
Topei com muitos deles até na entrada da charcutaria de Stefano. Estava
aberta, mas me pareceu uma fenda no muro, escura, deserta; Carracci
apareceu ao fundo, de avental branco, e desapareceu como um fantasma.
Rumei na direção da ferrovia, passei na frente da loja que antigamente
chamávamos de a charcutaria nova. A porta abaixada, parcialmente fora dos
trilhos, estava enferrujada e emporcalhada por dizeres e desenhos obscenos.
Toda aquela parte do bairro parecia abandonada, o branco resplandecente de
antes se tornara cinzento, em certos pontos o reboco cedera e dava a ver os
tijolos. Passei em frente ao prédio onde Lila tinha morado. Das arvorezinhas
mirradas daquela época, poucas haviam sobrevivido. Uma fita preta para
embalagens protegia a rachadura no vidro do portão de entrada. Elisa
morava bem mais no alto, numa área mais conservada, mais pretensiosa. O
porteiro, um homenzinho calvo com finos bigodes, pôs a cara para fora e me
perguntou hostil quem eu procurava. Não soube o que dizer, balbuciei:
Solara. Ele assumiu um ar deferente e me deixou entrar.
Somente no elevador me dei conta de que eu tinha deslizado como que
por inteiro para trás. O que teria me parecido aceitável em Milão ou em
Florença — a livre disponibilidade feminina do próprio corpo e dos
próprios desejos, uma relação fora do casamento —, ali, no bairro, me
parecia inconcebível: o que estava em questão era o futuro de minha irmã,
não conseguia me acalmar. Elisa tinha montado uma casa com uma pessoa
perigosa como Marcello? E minha mãe estava contente? Ela, que ficara
furiosa porque eu me casara no civil, e não na igreja; ela, que considerava
Lila uma vagabunda porque convivia com Enzo, e Ada, uma grande puta,
porque se tornara a amante de Stefano; ela aceitava que sua filha caçula
dormisse com Marcello Solara — uma má pessoa — sem ter se casado?
Tinha pensamentos desse tipo enquanto subia para ver Elisa, além de uma
raiva que eu considerava justa. Mas a cabeça — minha cabeça disciplinada
— se sentia confusa, não sabia a que argumentos poderia recorrer. Aos
mesmos argumentos a que minha mãe teria se apegado até uns anos atrás se
eu tivesse feito uma escolha do gênero? Então eu regrediria a um nível que
ela mesma já tinha superado? Ou diria: vá morar com quem quiser, mas não
com Marcello Solara? Falaria assim? Mas quando que hoje, em Florença,
em Milão, eu teria forçado uma garota a abdicar de seu homem, não importa
qual, por quem ela estivesse apaixonada?
Quando Elisa abriu a porta, lhe dei um abraço tão forte que ela
murmurou, rindo: está me machucando. Senti que ela estava alarmada
enquanto me acomodava na sala de estar — uma sala pretensiosa, toda
tomada de sofás e de poltronas floridas, com espaldares dourados —, e
começou a falar sem parar, mas de outras coisas: como eu estava bem, que
lindos brincos eu estava usando, que belo colar, como estava elegante, tinha
tanta vontade de conhecer Dede e Elsa. Descrevi as sobrinhas para ela com
entusiasmo, tirei os brincos, disse que os provasse na frente do espelho, dei-
os para ela de presente. Percebi que ela se desanuviava, riu, murmurou:
“Tive medo de que você tivesse vindo para me recriminar, para dizer
que era contrária à minha relação com Marcello.”
Fixei-a por um longo instante e disse:
“Elisa, eu sou contrária. E fiz essa viagem justamente para dizer isso a
você, a mamãe, a papai e aos irmãos.”
Mudou de expressão, os olhos se encheram de lágrimas.
“Agora você me deixou triste: por que é contrária?”
“Os Solara são gente ruim.”
“Marcello, não.”
Desandou a falar dele. Disse que tudo começara quando eu estava
grávida de Elsa. Nossa mãe tinha ido morar comigo, e ela se viu com todo o
peso da família sobre ela. Uma vez em que tinha ido fazer compras no
supermercado dos Solara, Rino, o irmão de Lila, disse que, se ela deixasse a
lista das coisas com ele, mandaria alguém levá-las em casa. E, enquanto
Rino falava, notou que Marcello lhe fazia um sinal de longe, como se
dissesse que ele mesmo dera aquela ordem. Desde então ele passou a rondá-
la, enchendo-a de gentilezas. Elisa disse a si mesma: é velho, não gosto dele.
Mas ele se tornara cada vez mais presente em sua vida, sempre bem-
educado, nunca houvera um gesto ou uma palavra que lembrasse as coisas
odiosas dos Solara. Marcello era realmente uma pessoa direita, que passava
segurança, e tinha uma força, uma presença, que o faziam parecer um gigante.
Não só. A partir do momento em que seu interesse por ela ficou claro, a vida
de Elisa mudou. Todo mundo, no bairro e fora dele, começou a tratá-la como
uma rainha, todos passaram a lhe dar importância. Era uma sensação
maravilhosa, com a qual ainda não se habituara. Antes — me disse — você
não é ninguém, e logo depois até os ratos da sarjeta te conhecem: claro, você
escreveu um livro, é famosa, está habituada a isso, mas eu não, fiquei de
queixo caído. Tinha sido emocionante descobrir que não precisava me
preocupar com mais nada. Marcello pensava em tudo, cada desejo seu para
ele era uma ordem. Assim, quanto mais o tempo passava, mais ela se
apaixonava. Até que finalmente lhe disse sim. E agora, se passava um dia
sem vê-lo ou ouvi-lo, ficava a noite inteira acordada, chorando.
Compreendi que Elisa estava convencida de ter tido uma sorte
inimaginável e vi que eu não teria condições de estragar toda aquela
felicidade. Tanto mais que ela não me deixava brechas: Marcello era capaz,
Marcello era responsável, Marcello era lindo, Marcello era perfeito. A cada
palavra que pronunciava, tomava todo o cuidado de distingui-lo da família
Solara, ou então falava com discreta simpatia ora da mãe dele, ora do pai,
que estava péssimo de estômago e quase não saía mais de casa, ora da boa
alma do avô, ora até de Michele, que, ele também, ao frequentá-lo, parecia
diferente de como as pessoas o julgavam, era muito afetuoso. Por isso,
acredite em mim — me disse —, nunca estive tão bem desde que nasci, e
mamãe também — e você sabe como ela é, está sempre do meu lado —, até
papai; e Gianni e Peppe, que até pouco tempo atrás passavam o dia sem
fazer nada, agora Marcello os utiliza pagando super bem.
“Se as coisas estão assim, então se casem.”
“Vamos fazer isso. Mas agora não é um bom período, Marcello me
disse que precisa resolver vários negócios complicados. Além disso, há o
luto pelo avô, que, coitadinho, estava com a cabeça no mundo da lua, não se
lembrava nem de como se andava, como se falava, Deus o libertou ao levá-
lo. Mas assim que as coisas se ajeitarem vamos nos casar, não se preocupe.
De resto, antes de partir para o casamento, é melhor ver se a vida juntos dá
certo, não é?”
Passou a usar palavras que não eram as dela, palavras de garota
moderna aprendidas nos jornalecos que lia. Comparei-as com as que eu teria
dito sobre aqueles mesmos assuntos e me dei conta de que não eram muito
diferentes, apenas as palavras de Elisa soavam um pouco mais toscas.
Rebater com quê? Não sabia desde o início daquele encontro, e continuava
não sabendo agora. Poderia ter dito: não há muito que discutir, Elisa, já está
tudo claro, Marcello vai consumi-la, vai se habituar a seu corpo e abandoná-
la. Mas eram frases que soavam velhas, nem mesmo minha mãe se arriscaria
a pronunciá-las. Por isso me resignei. Eu tinha ido embora, Elisa tinha
ficado. O que eu seria se também tivesse ficado? Que escolhas teria feito?
Eu não gostava também dos jovens Solara quando era menina? De resto, o
que eu tinha ganhado indo embora? Nem sequer a capacidade de achar
palavras sábias para convencer minha irmã a não se arruinar. Elisa tinha um
rosto bonito, muito delicado, e um corpo sem excessos, uma voz macia. Eu
me lembrava de Marcello alto, bonito, o rosto quadrado de uma tez
saudável, musculoso, capaz de sentimentos de amor intensos e duradouros:
dera demonstrações disso quando se apaixonara por Lila, e não se tinha
notícias de que desde então tivesse tido outros amores. Sendo assim, o que
dizer? No final ela foi buscar uma caixa e me mostrou todas as joias que
Marcello lhe dera de presente, objetos diante dos quais os brincos que eu
tinha dado a ela eram o que eram, ninharias.
“Tome cuidado”, disse a ela, “não se perca. E se precisar, me
telefone.”
Fiz que ia me levantar, e ela me interrompeu, rindo.
“Aonde você vai? Mamãe não lhe disse? Todo mundo está vindo jantar
aqui. Preparei um monte de coisas.”
Demonstrei contrariedade:
“Todo mundo quem?”
“Todos: é uma surpresa.”
91.

Primeiro chegaram meu pai, minha mãe, as duas meninas e Pietro. Dede e
Elsa receberam mais presentes de Elisa, que fez muita festa para elas (Dede,
meu docinho, me dê um beijão aqui; Elsa, como você é fofinha, venha aqui
com a titia, sabe que temos o mesmo nome?). Minha mãe logo desapareceu
na cozinha, cabeça baixa, sem olhar para mim. Pietro tentou me puxar para o
lado e me falar não sei o quê de grave, mas com um ar de quem quer
protestar sua inocência. Não conseguiu, meu pai o arrastou para se acomodar
em um sofá diante da televisão, que ligou num volume altíssimo.
Passou pouco tempo e apareceu Gigliola com os filhos, dois meninos
endiabrados que logo se juntaram a Dede, enquanto Elsa, perplexa, se
refugiava em mim. Gigliola estava toda produzida, tiquetaqueava sobre
saltos altíssimos, reluzia de ouro nas orelhas, no pescoço, nos braços. Mal
cabia dentro de um vestido verde brilhante, decotadíssimo, e usava uma
maquiagem pesada, que já estava se desfazendo. Dirigiu-se a mim sem
preâmbulos, sarcástica:
“Cá estamos, viemos todos só para prestigiar vocês, professores. Tudo
bem, Lenu? Aquele é o gênio da universidade? Caramba, que cabelo bonito
seu marido tem.”
Pietro se livrou de meu pai, que estava com um braço sobre seu ombro,
pôs-se de pé com um sorriso tímido e não conseguiu controlar-se, pousando
instintivamente o olhar sobre a grande onda dos peitos de Gigliola. Ela se
deu conta disso com satisfação.
“Se acomode, se acomode”, falou, “se não me envergonho. Aqui
ninguém nunca se levantou para cumprimentar uma senhora.”
Meu pai puxou meu marido para baixo, preocupado que o levassem
embora, e recomeçou a falar com ele sabe-se lá sobre o quê, apesar do alto
volume da televisão. Perguntei a Gigliola como estava, tentando comunicar-
lhe com os olhos, com o tom de voz, que não tinha me esquecido de suas
confidências e que estava ao lado dela. Isso não deve ter lhe agradado, e ela
retrucou:
“Olhe, querida, eu estou bem, você está bem, estamos todos bem. Mas,
se meu marido não tivesse me obrigado a vir aqui encher meu saco, eu
estaria bem melhor em minha casa. Só para esclarecer as coisas.”
Não consegui responder, tocaram a campainha. Minha irmã se moveu
rápida, pareceu flutuar num fio de vento, correu para abrir a porta. Ouvi que
exclamava: como estou contente, venham, mamãe, entrem. E reapareceu
trazendo pela mão a futura sogra, Manuela Solara, vestida de festa, com uma
flor falsa entre os cabelos de uma tintura avermelhada, olhos de espírito
dolente encastoados em olheiras profundas, ainda mais magra que da última
vez em que a tinha visto, quase pele e osso. Atrás dela surgiu Michele, bem-
vestido, bem barbeado, com uma força enxuta no olhar e nos gestos calmos.
E um instante depois apareceu um homenzarrão que eu quase não reconheci,
de tão enorme que era em tudo: alto, pés grandes, pernas longas, grossas e
poderosas, barriga, tórax e ombros inchados de alguma matéria pesada e
muito compacta, a grande cabeça e uma testa ampla, cabelos castanhos
compridos e penteados para trás, a barba de um antracito lustroso. Era
Marcello, me confirmou Elisa oferecendo-lhe os lábios como a um deus a
quem se deve respeito e gratidão. Ele se inclinou para retribuir o beijo,
enquanto meu pai se levantava puxando consigo também Pietro, com ar
embaraçado, e minha mãe acorria mancando da cozinha. Percebi que a
presença da senhora Solara era considerada um fato excepcional, algo que
devia orgulhar a todos. Elisa me sussurrou emocionada: hoje minha sogra faz
sessenta anos. Ah, eu disse, e enquanto isso me surpreendi que Marcello,
assim que entrou, se dirigisse diretamente a meu marido, como se os dois já
se conhecessem. Abriu-lhe um sorriso branquíssimo e gritou: tudo certo,
professô. Tudo certo o quê? Pietro respondeu com um sorriso incerto,
depois olhou para mim balançando a cabeça desolado, como se me dissesse:
fiz o possível. Eu queria que ele me explicasse, mas Marcello já estava lhe
apresentando Manuela: venha, mamãe, este é o professor marido de
Lenuccia, sente-se aqui ao lado dele. Pietro fez uma mesura, e eu também me
senti forçada a cumprimentar a senhora Solara, que disse: como você está
bonita, Lenu, bonita como sua irmã; e então me perguntou um tanto ansiosa:
faz um certo calor aqui dentro, não está sentindo? Não respondi. Dede
choramingava me chamando, Gigliola — a única que mostrava não dar
nenhum peso à presença de Manuela — gritava em dialeto algo grosseiro a
seus filhos, que tinham machucado a minha. Notei que Michele estava me
estudando em silêncio, sem me dizer nem mesmo um oi. Então o
cumprimentei com voz forte, depois tentei acalmar Dede e Elsa, que, ao ver
a irmã machucada, também estava prestes a chorar. Marcello me disse: estou
muito contente de hospedá-los em minha casa, para mim é uma grande honra,
acredite. Dirigiu-se a Elisa como se falar diretamente a mim lhe parecesse
algo além de suas forças: diga a ela como estou contente, sua irmã me deixa
intimidado. Murmurei qualquer coisa para tranquilizá-lo, mas naquele
instante bateram de novo à porta.
Michele foi abrir e voltou logo em seguida com um ar divertido. Estava
acompanhado de um homem idoso que arrastava umas malas, as minhas
malas, a bagagem que tínhamos deixado no hotel. Michele fez um sinal em
minha direção, e o homem as depositou diante de mim como se fizesse um
passe de mágica para minha diversão. Não, exclamei, ah, não, assim vocês
vão me deixar chateada. Mas Elisa me abraçou, me beijou e disse: temos
espaço, vocês não podem ficar num hotel, aqui há muitos quartos e dois
banheiros. De todo modo, enfatizou Marcello, antes eu pedi permissão a seu
marido, nunca me arriscaria a tomar essa iniciativa sozinho: professô, por
favor, converse com sua esposa, me defenda. Agitei os braços furiosa, mas
sorridente. Meu Deus, que confusão, obrigada, Marcé, muito gentil de sua
parte, mas realmente não podemos aceitar. E tentei mandar as malas de volta
para o hotel. Mas também precisei cuidar de Dede e perguntei a ela: me
deixe ver o que os meninos fizeram, não foi nada, com um beijinho já passa,
vá brincar, leve Elsa também. E chamei Pietro, já enredado nas espirais de
Manuela Solara: Pietro, por favor, venha cá, o que foi que você disse a
Marcello, não podemos dormir aqui. E me dei conta de que o nervoso estava
aumentando minha cadência dialetal, que algumas palavras me vinham no
napolitano do bairro, que o bairro — do pátio ao estradão e ao túnel —
estava me impondo sua língua, a maneira de agir e reagir, suas figuras,
aquelas que em Florença pareciam imagens desbotadas e aqui, ao contrário,
se mostravam em carne e osso.
Tocaram mais uma vez a campainha, e Elisa foi abrir. Quem mais ainda
iria chegar? Passaram-se poucos segundos e quem invadiu a sala foi
Gennaro, que logo avistou Dede, e Dede o viu incrédula, parou
imediatamente de se queixar, e ambos se perscrutaram emocionados por
aquele reencontro imprevisto. Logo depois apareceu Enzo, o único louro
entre tantos morenos, de cores claríssimas, e no entanto sombrio. Por fim
entrou Lila.
92.

Um longo tempo de palavras sem corpo, de apenas voz que corria em onda
por um mar elétrico, se rompeu de repente. Lila usava um vestido azul que ia
até acima do joelho. Estava enxuta, toda nervos, coisa que a fazia parecer
mais alta que de costume, apesar do salto baixo. Tinha vincos marcados nos
cantos da boca e dos olhos; quanto ao resto, a pele do rosto, branquíssima,
era lisa na testa e sobre as maçãs do rosto. Os cabelos penteados num rabo
de cavalo mostravam rastros de fios brancos sobre as orelhas quase sem
lobo. Assim que me avistou sorriu, apertou os olhos. Eu não sorri nem disse
nada de tão surpresa, nem mesmo um oi. Embora ambas tivéssemos trinta
anos, ela me pareceu mais velha, mais enrugada do que a imagem que eu
fazia de mim mesma. Gigliola gritou: finalmente chegou a outra princesinha,
os meninos estão com fome, não consigo mais segurá-los.
Jantamos. Me senti pressionada num mecanismo incômodo, não
conseguia engolir as garfadas. Pensava com raiva nas bagagens que eu tinha
desfeito assim que chegamos ao hotel e que tinham sido arbitrariamente
refeitas por um ou mais estranhos, pessoas que haviam tocado em minhas
coisas, nas de Pietro, das meninas, deixando tudo em desordem. Não
conseguia aceitar aquela evidência, ou seja, que eu deveria dormir na casa
de Marcello Solara para agradar a minha irmã, que dividia a cama com ele.
Com uma hostilidade que me entristecia, observava Elisa e minha mãe, a
primeira que, arrastada por uma felicidade ansiosa, falava sem parar
representando o papel de dona da casa, a segunda que parecia contente, tão
contente que até enchia o prato de Lila com boas maneiras. Espiava Enzo
comendo de cabeça baixa e importunado por Gigliola, que pressionava o
seio enorme contra seu braço e lhe falava em alto volume com tons
sedutores. Olhava com irritação para Pietro, que, embora assediado por meu
pai, por Marcello e pela senhora Solara, dava espaço sobretudo a Lila, que
estava sentada na frente dele e se mostrava indiferente a todos, inclusive a
mim — talvez sobretudo a mim —, mas não a ele. E os meninos me davam
nos nervos, cinco vidas novas que tinham se organizado em duas fileiras:
Gennaro e Dede, comportados e dissimulados, contra os filhos de Gigliola,
que bebiam vinho do copo da mãe distraída, tornando-se cada vez mais
insuportáveis, e agora atraíam a atenção de Elsa, que se associara a eles
embora nem sequer a levassem em consideração.
Quem tinha armado aquele teatro? Quem tinha misturado juntos motivos
tão diversos para fazer a festa? Seguramente Elisa, mas impelida por quem?
Talvez por Marcello. Mas Marcello com certeza tinha sido orientado por
Michele, que estava sentado a meu lado e comia à vontade, bebia,
demonstrava ignorar o comportamento da esposa e dos filhos, mas fixava
ironicamente meu marido, que parecia fascinado por Lila. O que queria
demonstrar? Que aquele era o território dos Solara? Que, mesmo tendo
fugido dali, eu pertencia àquele lugar e, consequentemente, a eles também?
Que podiam me impor qualquer coisa mobilizando afetos, vocabulário,
rituais, mas também desfazê-los, transformando por conveniência o feio em
bonito e o bonito em feio? Dirigiu-se a mim pela primeira vez desde que
tinha chegado. Viu mamãe? — me perguntou —, imagine que acabou de fazer
sessenta anos, mas quem diria? Olha como está bonita, está realmente muito
bem, não é? Elevou a voz de propósito, para que todos ouvissem não tanto
sua pergunta, mas a resposta que agora eu era obrigada a dar. Devia me
pronunciar em louvor à sua mãe. Lá estava ela, sentada ao lado de Pietro,
uma mulher idosa um tanto perdida, gentil, de aparência inócua, o rosto
comprido e ossudo, o nariz maciço, aquela flor maluca nos cabelos ralos. No
entanto era a agiota que tinha consolidado a fortuna da família; a
organizadora e guardiã do livro vermelho no qual estavam os nomes de
tantos do bairro, da cidade, da província; a mulher do crime sem castigo,
fêmea impiedosa e perigosíssima, de acordo com a fantasia telefônica à qual
eu me abandonara em companhia de Lila, e também segundo não poucas
páginas de meu romance abortado: a mãe que tinha assassinado dom Achille
para tomar seu lugar no monopólio da agiotagem e que educara os dois filhos
para se apropriar de tudo, passando por cima de todos. E agora eu me via
forçada a dizer a Michele: sim, é verdade, como sua mãe é bonita, está
excelente com a idade que tem, parabéns. E via com o rabo do olho que Lila
parara de falar com Pietro e só esperava por isso, já se virava para me ver,
os lábios cheios quase entreabertos, os olhos em fenda, a fronte franzida. Li
em seu rosto o sarcasmo, me ocorreu que talvez tivesse sido ela quem
sugerira a Michele me colocar naquela gaiola: mamãe acabou de fazer
sessenta anos, Lenu, a mãe de seu cunhado, a sogra de sua irmã, vejamos
o que você tem a dizer agora, vamos ver se continua bancando a
professorinha. Respondi virando-me para Manuela: meus parabéns, e nada
mais. Mas logo interveio Marcello como para me ajudar, exclamando
comovido: obrigado, obrigado, Lenu. Então se dirigiu à mãe, que tinha o
rosto castigado de suor e manchas vermelhas no pescoço descarnado:
Lenuccia lhe deu os parabéns, mamãe. E logo em seguida Pietro disse à
mulher sentada a seu lado: parabéns igualmente de minha parte, senhora.
Assim todos — todos, exceto Gigliola e Lila — renderam homenagem à
senhora Solara, inclusive os meninos, em coro: que tenha cem dias como
este, Manuela, cem dias como este, vovó. Mas ela se esquivou,
resmungando: estou velha, e tirou da bolsa um leque azul com a imagem do
golfo e do Vesúvio fumegante, passando a abanar-se primeiro devagar,
depois cada vez com mais energia.
Mesmo tendo se dirigido a mim, Michele pareceu dar mais peso aos
parabéns de meu marido. Falou a ele com cortesia: muito gentil, professô, o
senhor não é daqui e não pode saber quais são os méritos de nossa mãe.
Então assumiu um tom confidencial: nós somos gente boa, meu avô — que
Deus o tenha — começou com um bar aqui ao lado, do nada, e meu pai o
ampliou, fez uma confeitaria apreciada em toda Nápoles graças também à
competência de Spagnuolo, o pai de minha esposa, um confeiteiro
extraordinário — não é, Giglió? Mas — acrescentou — é à minha mãe, à
nossa mãe, que devemos tudo. Nos últimos tempos, pessoas invejosas,
pessoas que não gostam de nós, espalharam boatos odiosos a respeito dela.
Mas somos gente tolerante, com uma vida habituada ao comércio, a ter
paciência. Seja como for, a verdade sempre triunfa. E a verdade é que esta
senhora é inteligentíssima, tem um caráter forte, nunca houve sequer um
momento em que se pudesse pensar: não está com ânimo de fazer nada. Ela
sempre trabalhou, sempre, e o fez somente pela família, nunca usufruiu nada.
O que temos hoje é o que ela construiu para nós, seus filhos, o que hoje
fazemos é apenas o prosseguimento de tudo o que ela fez.
Manuela se abanou com um gesto mais ponderado e disse em voz alta a
Pietro: Michele é um filho de ouro, desde pequeno; no Natal, subia na mesa
e recitava poesias com perfeição; mas tem o defeito de gostar de falar e,
falando, sempre exagera. Marcello interveio: não, mamãe, exagero nenhum, é
tudo verdade. E Michele continuou tecendo elogios a Manuela, como ela era
bonita, como era generosa, não terminava nunca. Até que, inesperadamente,
se dirigiu a mim. Disse sério, aliás, solene: há apenas outra mulher que é
quase como nossa mãe. Outra mulher? Uma mulher quase comparável a
Manuela Solara? Olhei perplexa para ele. A frase, apesar daquele quase,
estava fora de lugar, e o jantar barulhento ficou sem som por alguns
segundos. Gigliola fixou o marido com olhos nervosos, as pupilas dilatadas
pelo vinho e pelo desgosto. Minha mãe também fez uma expressão que
destoava, vigilante: talvez esperasse que aquela mulher fosse Elisa, que
Michele estivesse prestes a atribuir a sua filha uma espécie de direito de
sucessão ao pódio mais elevado dos Solara. Manuela parou de abanar-se
por um instante, enxugou com o indicador o suor sobre o lábio e esperou que
o filho invertesse aquelas palavras numa tirada zombeteira.
Mas ele, com a ousadia que sempre o distinguira, lixando-se para a
mulher, para Enzo e até para a mãe, fixou Lila enquanto no rosto lhe subia
uma cor esverdeada, o gesto se tornava mais agitado e as palavras serviam
de laço para arrancá-la à atenção que continuava dispensando a Pietro.
Nesta noite, disse, estamos todos aqui, na casa de meu irmão, primeiro para
acolher como se deve estes dois exímios professores e suas belas meninas;
segundo, para festejar o aniversário de minha mãe, uma mulher santíssima;
terceiro, para desejar a Elisa muitas felicidades e em breve um lindo
casamento; quarto, se me permitem, para brindar um acordo que eu receava
jamais conseguir selar: Lina, venha cá, por favor.
Lina. Lila.
Busquei seu olhar, e ela me retribuiu por uma fração de segundo, uma
mirada que queria dizer: agora você entendeu o jogo, se lembra de como
funciona? Então, para minha grande surpresa, enquanto Enzo fixava um ponto
indeterminado da toalha de mesa, ela se ergueu mansamente e foi até
Michele.
Ele não a tocou. Sequer roçou sua mão, seu braço, nada, como se entre
eles houvesse uma lâmina que pudesse feri-lo. Em vez disso, apoiou por uns
segundos os dedos em meu ombro e se dirigiu mais uma vez a mim: não se
ofenda, Lenu, você é excelente, você trilhou um longo caminho, você
apareceu nos jornais, você é o orgulho de todos nós que a conhecemos desde
pequena. Mas — e estou certo de que você vai gostar e estará de acordo com
o que digo agora, porque tem afeto por ela — Lina tem uma coisa viva na
cabeça que ninguém tem, uma coisa forte, que salta pra cá e pra lá e nada
consegue segurá-la, uma coisa que nem os médicos sabem ver e que, na
minha opinião, nem mesmo ela conhece, apesar de tê-la desde o nascimento
— não a conhece e não quer reconhecer, vejam que cara malvada está
fazendo neste momento —, uma coisa que, se ela não estiver de bom humor,
pode causar muitos problemas a qualquer um, mas, quando está de bom
gênio, deixa todo mundo boquiaberto. Bem, faz um tempão que eu quero
comprar essa sua particularidade. Comprar, sim, não há nada de mal,
comprar como se faz com as pérolas, com os diamantes. Mas até hoje
infelizmente não foi possível. Demos apenas um passo adiante, e é este
pequeno passo adiante que quero comemorar nesta noite: contratei a senhora
Cerullo para trabalhar no centro mecanográfico que instalei em Acerra, um
troço moderníssimo que, se lhe interessar, Lenu, se interessar ao professor,
podemos visitar amanhã mesmo, ou antes de vocês partirem. O que me diz,
Lina?
Lila fez uma expressão desgostosa. Balançou a cabeça incomodada e
disse, fixando a senhora Solara: Michele não entende nada de computadores
e acha que eu faço sabe-se lá o quê, mas é tudo bobagem, basta um curso por
correspondência, até eu aprendi, que parei na quinta fundamental. E não
acrescentou mais nada. Não debochou de Michele — como eu esperava que
fizesse — por aquela imagem bem terrível que ele inventara, a coisa viva
que lhe corria dentro da cabeça. Não zombou dele por causa das pérolas,
dos diamantes. Acima de tudo não se esquivou diante dos cumprimentos. Ao
contrário, deixou que brindássemos sua ascensão como se de fato tivesse
ascendido aos céus, permitiu que Michele continuasse a elogiando e
justificando com elogios o salário que lhe pagava. E tudo isso enquanto
Pietro, com sua capacidade de se sentir à vontade com pessoas que julgava
inferiores, já dizia, sem sequer me consultar, que queria muito ir conhecer o
centro de Acerra e passou a perguntar a Lila, que nesse intervalo tornara a se
sentar, tudo sobre o assunto. Pensei por um instante que, se eu lhe desse mais
tempo, ela me tomaria o marido assim como me tomou Nino. Mas não senti
ciúme: se isso tivesse ocorrido, ocorreria apenas por vontade de cavar mais
fundo uma vala entre nós, eu dava por certo que Pietro não podia interessar a
ela, e que Pietro nunca seria capaz de me trair por desejo de uma outra.
No entanto fui tomada por outro sentimento, mais confuso. Eu estava no
lugar em que tinha nascido, era considerada desde sempre a garota que tinha
se saído melhor, estava convencida de que, naquele ambiente, isso se tratava
de um dado indiscutível. Entretanto Michele, como se tivesse organizado de
propósito meu rebaixamento no bairro e especialmente no seio da família de
onde eu vinha, agira de modo que Lila me obscurecesse, pretendendo
inclusive que eu mesma concordasse com meu obscurecimento ao reconhecer
publicamente a potência inigualável de minha amiga. E ela aceitara de bom
grado que isso acontecesse. Aliás, talvez até tivesse colaborado para aquele
resultado, talvez ela mesma o tivesse planejado e organizado. Se uns anos
atrás, quando eu tive meu pequeno sucesso de escritora, o fato não me teria
ferido — ao contrário, até me teria dado prazer —, agora que tudo estava
acabado me dei conta de que sofria. Troquei um olhar com minha mãe.
Estava de cenho franzido, com a expressão que fazia quando se esforçava
para não me dar um tapa. Queria que eu não assumisse a habitual expressão
pacífica, queria que eu reagisse, que mostrasse quantas coisas sabia, tudo
coisa de primeira qualidade, não aquela cretinice de Acerra. Estava me
dizendo isso com os olhos, como uma ordem muda. Mas eu me calei. Já
Manuela Solara exclamou de repente, lançando ao redor olhares de agonia:
estou com muito calor, vocês também?
93.

Elisa, assim como minha mãe, não devia tolerar que eu perdesse prestígio.
Porém, enquanto minha mãe se manteve calada, ela se virou para mim
radiante e afetuosa e reiterou que eu continuava sendo sua extraordinária
irmã mais velha, de quem sempre sentiria orgulho. Preciso lhe dar uma
coisa, disse, acrescentando com seu saltitar alegre de um assunto a outro:
você já andou de avião? Respondi que não. Mas será possível? Pois é. Então
veio à tona que, dos presentes ali, somente Pietro já tinha voado, e várias
vezes, mas tratou o fato como se não tivesse nada de especial. Já para Elisa
tinha sido uma experiência maravilhosa, e para Marcello também. Tinham
ido para a Alemanha num voo longo, por motivos de trabalho e de lazer. No
início Elisa tivera um certo medo com aqueles choques e solavancos, um
jato de ar gelado a atingia justo na cabeça, como se quisesse perfurá-la.
Depois avistou pela janelinha umas nuvens branquíssimas sob um céu muito
azul no alto. Assim descobriu que, por cima das nuvens, fazia sempre tempo
bom, e que do alto a terra era toda verde e azul e roxa, com a neve
resplandecente quando se passava sobre as montanhas. Perguntou a mim:
“Adivinhe quem encontramos em Düsseldorf?”
Murmurei sem ânimo nenhum:
“Não sei, Elisa, quem?”
“Antonio.”
“Ah.”
“Mandou muitas lembranças a você.”
“Ele está bem?”
“Está ótimo. E me deu um presente para você.”
Então era aquilo que ela precisava me dar, um presente de Antonio. Ela
se levantou e foi correndo buscá-lo. Marcello me olhou divertido. Pietro
perguntou:
“Quem é Antonio?”
“Um funcionário nosso”, respondeu Marcello.
“Um namorado de sua esposa”, disse Michele rindo. “Os tempos
mudaram, professô, hoje as mulheres têm um monte de namorados e se
gabam disso mais do que os homens. O senhor quantas namoradas teve?”
Pietro disse sério:
“Eu, nenhuma; meu único amor foi minha esposa.”
“Mentiroso”, exclamou Michele zombeteiro, “posso lhe dizer no
ouvido quantas namoradas eu tive?”
Levantou-se e, acompanhado pelo olhar desgostoso de Gigliola,
aproximou-se de meu marido e lhe sussurrou alguma coisa.
“Inacreditável”, exclamou Pietro com uma discreta ironia. Ambos
riram.
Nesse meio tempo Elisa voltou e me estendeu um pacote embrulhado
em papel pardo.
“Abra.”
“Você já sabe o que é?”, perguntei perplexa.
“Nós dois sabemos”, disse Marcello, “mas esperamos que você não
saiba.”
Desembrulhei o pacote. Enquanto o fazia, percebi que todos me
olhavam. Lila especialmente me observava de esguelha, atenta, como se
esperasse que dali saltasse uma serpente. Quando perceberam que Antonio
— o filho de Melina, a louca, o criado semianalfabeto e violento dos Solara,
meu namorado de adolescência — não me mandara nada de extraordinário,
nada de comovente, nada que aludisse ao tempo passado, mas simplesmente
um livro, pareceram decepcionados. Depois viram, no entanto, que eu
mudara de cor, que estava olhando a capa com uma alegria que não
conseguia controlar. Não era um livro qualquer. Era o meu livro. A tradução
alemã de meu romance, seis anos após sua publicação na Itália. Pela
primeira vez me acontecia de assistir ao espetáculo — um espetáculo, sim
— das minhas palavras que dançavam sob meus olhos numa língua
estrangeira.
“Você não sabia de nada?”, perguntou Elisa feliz.
“Não.”
“E está contente?”
“Contentíssima.”
Minha irmã anunciou a todos orgulhosamente:
“É o romance que Lenuccia escreveu, mas com as palavras em
alemão.”
Minha mãe ficou vermelha de vingança e disse:
“Viram como ela é famosa?”
Gigliola pegou o livro, o folheou e murmurou admirada: a única coisa
que se entende é Elena Greco. Lila então estendeu a mão de modo
imperativo, fazendo sinal para que o passassem a ela. Vi curiosidade em
seus olhos, o desejo de tocar, olhar e ler a língua desconhecida que me
continha e me transportara para muito longe. Vi nela a urgência daquele
objeto, uma urgência que reconheci, que era dela desde pequena, e me
comovi. Mas Gigliola teve um ímpeto raivoso, segurou o livro para que ela
não o pegasse e falou:
“Espere, agora eu estou com ele. O que é? Você também sabe alemão?”.
E Lila retraiu a mão, balançou a cabeça em sinal negativo, ao que Gigliola
exclamou: “Então não encha o saco, me deixe ver: quero olhar bem o que
Lenuccia foi capaz de fazer”. Depois, em meio ao silêncio geral, revirou o
livro nas mãos com satisfação. Folheou as páginas uma a uma, lentamente,
como se lesse cinco linhas aqui, quatro ali. Até que me disse com a voz
empastada pelo vinho, devolvendo-o a mim: “Excelente, Lenu, parabéns por
tudo, pelo livro, pelo marido, pelas meninas. A gente achando que só nós
conhecemos você, mas até os alemães te conhecem. Tudo o que você
conquistou foi merecido, obtido com esforço, sem fazer mal a ninguém, sem
fazer merda com o marido das outras. Obrigada, agora preciso mesmo ir
embora, boa noite”.
Ergueu-se a custo, suspirando, estava ainda mais pesada por causa do
vinho. Gritou aos meninos: vamos logo, e eles protestaram, o maior disse
algo obsceno em dialeto, ela lhe deu um tapa e o arrastou até a porta.
Michele balançou a cabeça com um sorriso e resmungou: passo o maior
aperto com essa idiota, sempre tem de acabar com meu dia. Então falou
calmo: espere, Giglió, pra que tanta pressa, primeiro vamos comer os doces
de seu pai, depois vamos. No mesmo instante, encorajados pelas palavras do
pai, os meninos se livraram e retornaram à mesa. Mas Gigliola seguiu com o
passo pesado rumo à porta, dizendo com raiva: então vou embora sozinha,
não estou me sentindo bem. Nesse ponto Michele gritou com voz forte,
carregada de violência: sente-se imediatamente, e ela estacou como se a
frase tivesse paralisado suas pernas. Elisa se levantou murmurando: venha,
venha comer a torta com a gente. Pegou-a pelo braço e a conduziu até a
cozinha. Eu tranquilizei Dede com o olhar, estava assustada com o berro de
Michele. Depois estendi o livro a Lila dizendo: quer ver? Ela fez sinal
negativo, com uma expressão de indiferença.
94.

“Onde viemos parar?”, perguntou Pietro entre escandalizado e divertido


quando, depois de pôr as meninas para dormir, nos fechamos no quarto que
Elisa nos cedera. Ele queria zombar dos momentos mais bizarros da noite,
mas eu o agredi, e brigamos em voz baixa. Estava com muita raiva dele, de
todos, de mim mesma. Do sentimento caótico que eu trazia por dentro estava
despontando mais uma vez o desejo de que Lila estivesse doente e morresse.
Não por ódio, gostava dela cada vez mais, nunca seria capaz de odiá-la. Mas
não suportava o vazio de sua esquiva. Como você teve a ideia — falei a
Pietro — de aceitar que pegassem nossas bagagens, que as trouxessem para
cá, que nos transferissem à força para esta casa? E ele: eu não sabia que tipo
de gente era. Nada disso — sibilei para ele —, é que você nunca me
escutou, eu sempre lhe disse de onde vim.
Discutimos longamente, ele tentou me acalmar, e eu disse o diabo para
ele. Falei que tinha sido tímido demais, que se deixara tripudiar, que só
sabia se impor com gente educada em seu ambiente, que não confiava mais
nele, que não confiava nem mesmo em sua mãe, como é que há mais de dois
anos meu livro saíra na Alemanha e a editora não me disse nada?, em que
outros países ele tinha sido publicado sem que eu soubesse de nada?, eu
queria ir até o fundo daquela história etc. etc. Para me acalmar ele me disse
que concordava, me sugeriu inclusive que eu ligasse já na manhã seguinte
para a mãe e para a editora. Depois declarou sua grande simpatia por aquilo
que chamou de o ambiente popular em que eu tinha nascido e crescido.
Sussurrou que minha mãe era uma pessoa generosa e inteligentíssima,
expressou sua simpatia por meu pai, por Elisa, por Gigliola, por Enzo. Mas
mudou bruscamente de tom quando passou aos Solara: os definiu como dois
canalhas, dois espertalhões perigosos, dois delinquentes melífluos. E por fim
se dedicou a Lila. Disse baixinho: foi quem mais me impressionou. Eu
percebi — desabafei —, você conversou com ela a noite toda. Mas Pietro
sacudiu energicamente a cabeça e, para minha surpresa, esclareceu que Lila
lhe parecera a pessoa pior. Disse que não era absolutamente minha amiga,
que me detestava, que era, sim, extraordinariamente inteligente, que era, sim,
muito fascinante, mas que sua inteligência era mal utilizada — uma
inteligência nefasta, que semeia discórdia e odeia a vida —, que seu fascínio
era o mais intolerável, o fascínio que escraviza e conduz à ruína.
Precisamente assim.
De início deixei que ele falasse fingindo discordância, mas no fundo
estava contente. Então eu me enganara, Lila não tinha conseguido fisgá-lo,
Pietro era um homem treinado para perceber o subtexto de cada texto e
notara com facilidade os aspectos desagradáveis dela. Mas logo me pareceu
que ele exagerava. Falou: não entendo como essa relação entre vocês pôde
durar tanto tempo, evidentemente uma esconde da outra com todo o cuidado
o que poderia rompê-la. E acrescentou: ou não entendi nada sobre ela — e é
provável, não a conheço —, ou não entendi nada sobre você, e isso é mais
preocupante. Por fim pronunciou as palavras mais duras: ela e aquele
Michele foram feitos um para o outro, se já não são amantes, vão se tornar.
Então protestei. Sibilei que não suportava aquele seu tom pernóstico de
burguês culto, que ele nunca mais deveria falar de minha amiga daquele
modo, que não tinha entendido nada. E, enquanto eu falava, tive a impressão
de intuir algo que naquele momento nem ele sabia: Lila o tinha fisgado, e
como; Pietro tinha captado a tal ponto sua excepcionalidade que se assustara
e agora sentia a necessidade de denegri-la. Não temia por si, acho, mas por
mim e pelo nosso relacionamento. Tinha medo de que ela, mesmo à
distância, me arrancasse dele, nos destruísse. E para me proteger exagerava,
jogava lama nela, queria confusamente que eu me enojasse e a expulsasse de
minha vida. Murmurei boa noite e virei para o outro lado.
95.

No dia seguinte levantei cedíssimo, arrumei as malas, queria voltar


imediatamente a Florença. Mas não consegui. Marcello disse que tinha
prometido ao irmão nos levar a Acerra, e, como Pietro — embora eu desse a
entender de todas as maneiras que queria ir embora — se mostrou
disponível, deixamos as meninas com Elisa e concordamos que aquele
homenzarrão nos levasse de carro até um edifício baixo e comprido pintado
de amarelo, um grande depósito de calçados. Durante todo o trajeto
permaneci calada, enquanto Pietro fazia perguntas sobre os negócios dos
Solara na Alemanha e Marcello escapava com frases desconexas do tipo: a
Itália, a Alemanha, o mundo, professô, eu sou mais comunista que os
comunistas, mais revolucionário que os revolucionários, para mim, se fosse
possível varrer tudo e reconstruir tudo do zero, eu estaria na primeira fila.
De todo modo, acrescentou olhando-me pelo espelhinho do retrovisor em
busca de concordância, para mim o amor está acima de tudo.
Depois que chegamos, nos levou a uma sala de teto baixo, iluminada
por neon. Fui atingida pelo forte cheiro de tinta, de pó e de isolantes
superaquecidos misturado ao das gáspeas e da graxa de sapatos. Olha aí,
aqui está o troço que Michele alugou. Olhei ao redor, não havia ninguém na
máquina. O Sistema 3 era totalmente anódino, um móvel sem nenhum
fascínio encostado numa parede: painéis metálicos, manoplas, um interruptor
vermelho, uma bancada de madeira, teclados. Eu não entendo nada, disse
Marcello, isso é coisa que só Lina sabe, mas ela não tem horários, vive
sempre pra lá e pra cá. Pietro examinou com cuidado os painéis, as
manoplas, cada coisa, mas era evidente que a modernidade o decepcionava,
tanto mais que a cada pergunta dele Marcello respondia: são coisas de meu
irmão, eu tenho outras preocupações na cabeça.
Lila apareceu quando já estávamos prestes a ir embora. Chegou
acompanhada de duas jovens segurando caixas de metal. Parecia irritada,
dava ordens secas às duas. Assim que se deu conta de nossa presença,
mudou de tom e se tornou gentil, mas de modo forçado, quase como se uma
parte de seu cérebro se desvinculasse inclinando-se raivosamente para
questões urgentes de trabalho. Ignorou Marcello e se dirigiu a Pietro, mas
como se falasse também para mim. Qual o interesse de vocês por este troço
— disse despachada —, se têm mesmo curiosidade por isso, vamos fazer
uma troca: vocês ficam trabalhando aqui, e eu me dedico às coisas de vocês,
romances, pinturas, antiguidades. Tive de novo a impressão de que estava
mais envelhecida que eu, não só no aspecto, mas também nos movimentos, na
voz, na escolha do registro pouco brilhante, vagamente entediado, com que
nos explicou o funcionamento não só do Sistema e das várias máquinas, mas
também das fichas magnéticas, das fitas, dos discos de cinco polegadas e
outras novidades que vinham por aí, como computadores de mesa que
podiam ser instalados em casa, para uso pessoal. Não era mais a Lila que,
por telefone, falava do novo trabalho com ares infantis; e parecia muito
distante do entusiasmo de Enzo. Comportava-se como uma funcionária
supercompetente cumprindo uma das tantas ordens desagradáveis que o
patrão lhe designara, no caso, nossa excursãozinha turística. Não me tratou
em tom amigável, não brincou em nenhum momento com Pietro. No final,
ordenou que as garotas mostrassem a meu marido como funcionava a
perfuradora e então me empurrou para o corredor, dizendo:
“E aí? Deu os parabéns a Elisa? Dorme-se bem na casa de Marcello?
Está contente com os sessenta anos da velha bruxa?”
Rebati nervosa:
“Se minha irmã quer assim, o que é que eu posso fazer, quebrar a
cabeça dela?”
“Está vendo? Nas fábulas se age como se quer, na realidade se faz o
que se pode.”
“Não é verdade. Quem obrigou você a ser usada por Michele?”
“Sou eu que uso Michele, não ele a mim.”
“Você se ilude.”
“Espere e veja.”
“O que você quer que eu veja, Lila? Deixa pra lá.”
“Vou repetir: não gosto quando você fala assim. Você não sabe mais
nada sobre a gente, então é melhor ficar calada.”
“Quer dizer que eu só posso te criticar se viver em Nápoles?”
“Nápoles, Florença: você não está fazendo nada em lugar nenhum,
Lenu.”
“Quem disse?”
“Os fatos.”
“Os fatos, quem sabe de mim sou eu, não você.”
Eu estava tensa, e ela percebeu. Fez um trejeito conciliador.
“Você me deixa nervosa e eu acabo dizendo coisas que não penso. Você
fez bem ao ter ido embora de Nápoles, fez muitíssimo bem. Mas sabe quem
voltou?”
“Quem?”
“Nino.”
A notícia me queimou o peito.
“Como você ficou sabendo?”
“Marisa me disse. Ele conseguiu uma cátedra na universidade.”
“Não estava bem em Milão?”
Lila apertou os olhos.
“Se casou com uma fulana de via Tasso que é parente de meio Banco de
Nápoles. Têm um filho de um ano.”
Não sei se sofri, mas tive dificuldade de acreditar.
“Ele se casou mesmo?”
“Sim.”
Olhei para ela tentando entender o que tinha em mente.
“Você tem intenção de revê-lo?”
“Não. Mas, se acontecer de o encontrar, quero dizer que Gennaro não é
filho dele.”
96.

Falou assim e depois me disse umas coisas desencontradas. Parabéns, você


tem um marido bonito e inteligente, ele fala como se fosse um religioso
mesmo sendo ateu, conhece tudo da antiguidade e também de hoje, sabe
especialmente um monte de coisas sobre Nápoles, fiquei envergonhada,
sou napolitana, mas não sei nada. Gennaro está crescendo, minha mãe
cuida mais dele do que eu, vai muito bem na escola. Com Enzo está tudo
bem, trabalhamos muito, nos vemos pouco. Já Stefano se arruinou com as
próprias mãos: a polícia encontrou no fundo da loja produtos roubados,
não sei bem o quê, e acabou sendo preso; agora está em liberdade, mas
precisa tomar cuidado, perdeu tudo o que tinha, sou eu que lhe dou
dinheiro, não ele a mim. Veja só como as coisas mudam: se eu continuasse
sendo a senhora Carracci, estava acabada, de bunda no chão que nem
todos os Carracci; mas me chamo Raffaella Cerullo e sou a chefe de
informática de Michele Solara por quatrocentas e vinte mil liras ao mês. O
resultado é que minha mãe me trata como uma rainha, meu pai me perdoou
tudo, meu irmão chupa meu dinheiro, Pinuccia diz que me adora, os filhos
dela me chamam de titia. Mas é um trabalho tedioso, o oposto do que me
parecia no início: ainda lento demais, perde-se um tempo enorme, tomara
que cheguem logo as novas máquinas, que vão ser bem mais rápidas. Ou
não. A velocidade come tudo, como quando as fotografias saem tremidas.
Foi Alfonso quem usou essa expressão, de brincadeira, disse que saiu
mexido, sem contornos muito claros. Nos últimos tempos me fala sempre
com amizade. Faz questão de ser meu amigo, queria me copiar como um
papel carbono, jura que gostaria de ser uma mulher que nem eu. Que
mulher — disse a ele —, você é homem, Alfò, não sabe nada de como eu
sou e, mesmo sendo amigos, mesmo você me estudando, analisando e
copiando, nunca vai saber nada. Então — ele brincou — como é que eu
vou fazer? Eu sofro do jeito que sou. E me confessou que gosta de Michele
desde sempre — Michele Solara, sim — e que desejaria atraí-lo assim
como, segundo ele, eu o atraio. Você entende, Lenu, o que acontece com as
pessoas: a gente tem coisa demais por dentro, e isso nos incha, nos
arrebenta. Tudo bem — disse a ele —, vamos ser amigos, mas tire da
cabeça esse negócio de ser uma mulher como eu, você só conseguiria ser
uma mulher segundo o que vocês, homens, pensam. Pode me copiar, fazer
meu retrato exato como os artistas fazem, mas minha merda vai continuar
sempre minha, e a sua, sua. Ah, Lenu, o que é que acontece com a gente,
somos como o encanamento quando a água congela, que coisa horrível é
uma cabeça descontente. Você se lembra do que fizemos com minha foto de
noiva? Quero seguir por esse caminho. Um dia vou me reduzir inteira a
diagramas, vou me transformar numa fita cheia de furos e você não vai me
encontrar nunca mais.
Risadinhas, e só. Aquela conversa no corredor me confirmou que nossa
relação já não gozava de intimidade. Reduzira-se a notícias sucintas,
escassos detalhes, piadas maldosas, palavras em liberdade, nenhum
desvelamento de fatos e pensamentos confiados exclusivamente a mim. A
vida de Lila agora era só dela, parecia não querer compartilhá-la com
ninguém. Inútil insistir com perguntas do tipo: o que é que você sabe de
Pasquale, onde ele foi parar, você tem algo a ver com a morte de Soccavo,
com os tiros nas pernas de Filippo, o que a levou a aceitar a proposta de
Michele, o que pretende fazer da dependência dele por você? Lila se retraíra
no inconfessável, qualquer curiosidade minha não podia mais ser expressa,
ela me teria respondido: o que é que você tem na cabeça, ficou louca,
Michele, dependência, Soccavo, o que é isso? Ainda hoje, enquanto escrevo,
me dou conta de que não disponho de elementos suficientes para passar a
Lila foi, Lila fez, Lila encontrou, Lila planejou. No entanto, enquanto
voltava de carro para Florença, tive a impressão de que ali no bairro, entre o
atraso e a modernidade, ela tivesse mais história que eu. Quanta coisa eu
perdera ao ir embora, acreditando estar destinada a quem sabe que vida.
Lila, que continuara ali, tinha um trabalho novíssimo, ganhava muito, agia
com absoluta liberdade e segundo desígnios que pareciam indecifráveis. Era
muito ligada ao filho, dedicara-se muitíssimo a ele nos primeiros anos de
vida, e ainda o acompanhava; mas parecia capaz de livrar-se dele como e
quando quisesse, ele não lhe causava aquela ansiedade que minhas filhas me
davam. Tinha rompido com a família de origem, e mesmo assim assumia o
peso e a responsabilidade por ela sempre que podia. Cuidava de Stefano
caído em desgraça, mas sem nenhuma aproximação. Detestava os Solara, e
no entanto se dobrava a eles. Ironizava Alfonso e era sua amiga. Dizia não
querer reencontrar Nino, mas eu sabia que não era assim, que acabaria o
reencontrando. A vida dela era agitada, a minha era imóvel. Enquanto Pietro
guiava em silêncio e as meninas brigavam entre si, pensei muito nela e em
Nino, no que poderia ocorrer. Lila vai reconquistá-lo — fantasiei —, vai
achar um modo de reencontrá-lo, vai submetê-lo como só ela sabe fazer, o
afastará da mulher e do filho, o usará em sua guerra já nem sei contra quem,
o induzirá ao divórcio e, ao mesmo tempo, escapará de Michele depois de
lhe ter tomado muito dinheiro, vai deixar Enzo e finalmente se divorciará de
Stefano, e talvez se case com Nino ou não, mas com certeza os dois vão
somar suas inteligências e quem sabe em que vão se transformar.
Transformar. Esse era um verbo que sempre me obcecara, mas me dei
conta disso pela primeira vez somente naquela ocasião. Eu queria me
transformar, embora nunca tenha sabido em quê. E tinha me transformado,
isso era certo, mas sem um objeto, sem uma verdadeira paixão, sem uma
ambição determinada. Tinha querido me transformar em algo — aí está o
ponto — só porque temia que Lila se transformasse em sabe-se lá quem, e eu
ficasse para trás. Minha transformação era uma transformação dentro de
seu rastro. Precisava recomeçar a me transformar, mas para mim, como
adulta, fora dela.
97.

Telefonei para Adele assim que cheguei em casa, para saber da tradução
alemã que Antonio me dera de presente. Ela caiu das nuvens, também não
sabia de nada e ligou para a editora. Logo em seguida me telefonou de novo
para dizer que o livro tinha saído não só na Alemanha, mas também na
França e na Espanha. Então — perguntei — o que eu devo fazer? Adele
respondeu perplexa: nada, ficar contente. Claro, murmurei, estou muito
contente, mas do ponto de vista prático, sei lá, eu deveria viajar, divulgá-lo
no exterior? Ela me respondeu com afeto: você não precisa fazer nada,
Elena, infelizmente o livro não vendeu em lugar nenhum.
Meu humor piorou. Atormentei a editora, pedi notícias precisas sobre
as traduções, me irritei porque ninguém tinha se preocupado em me informar
e acabei dizendo a uma sonolenta funcionária: fiquei sabendo da edição
alemã não por vocês, mas por um amigo meu semianalfabeto; será que vocês
são capazes de fazer seu trabalho direito? Depois me desculpei, me senti
estúpida. Um a um, me chegaram os exemplares em francês, em espanhol e
em alemão, uma cópia sem o aspecto amassado daquela que Antonio me
mandara. Eram edições feias: na capa havia mulheres com roupas pretas,
homens de bigodes caídos e boné na cabeça, panos estendidos no varal.
Folheei os livros, mostrei-os a Pietro, coloquei-os numa prateleira entre
outros romances. Papel mudo, papel inútil.
Começou um período de desânimo e grande descontentamento.
Telefonava todos os dias a Elisa para saber se Marcello continuava sendo
gentil, se tinha decidido se casar. À minha ladainha apreensiva ela respondia
com risadas festeiras e relatos de vida alegre, as viagens de carro ou avião,
a crescente prosperidade de nossos irmãos, o bem-estar de nosso pai e de
nossa mãe. Agora, em certos momentos, eu a invejava. Estava cansada,
irascível. Elsa adoecia constantemente, Dede exigia atenção, Pietro vadiava
sem terminar seu livro. Eu ficava furiosa por nada. Gritava com as meninas,
brigava com meu marido. O resultado foi que os três passaram a me temer.
As meninas, só de eu passar na frente do quarto delas, interrompiam a
brincadeira e me olhavam assustadas; e Pietro preferiu cada vez mais a
biblioteca da universidade à nossa casa. Saía de manhã cedo, voltava à
noite. Quando retornava parecia trazer em si os sinais dos conflitos sobre os
quais eu, agora excluída de qualquer atividade pública, ficava sabendo
apenas pelos jornais: os fascistas que esfaqueavam e matavam, os
companheiros que não deixavam por menos, a polícia que recebia por lei
amplo direito de atirar e o fazia inclusive ali, em Florença. Até que
aconteceu o que eu esperava fazia tempos: Pietro se viu no centro de um
triste episódio que deu muito o que falar nos jornais. Reprovou um rapaz de
sobrenome importante, muito engajado nas lutas. O jovem o insultou na
frente de todos e apontou uma pistola para ele. Pietro, segundo o relato que
me fez não ele, mas uma nossa conhecida — uma versão de segunda mão, já
que ela não estava presente —, terminou com calma de registrar a
reprovação, estendeu o boletim ao rapaz e falou mais ou menos assim: ou o
senhor atira a sério, ou é bom se livrar logo dessa arma, porque daqui a um
minuto saio daqui e vou à delegacia denunciá-lo. O rapaz continuou por
longos segundos apontando a pistola para a cara dele, depois a meteu no
bolso, pegou o boletim e foi embora. Poucos minutos depois, Pietro foi à
polícia e o estudante foi detido. Mas a coisa não terminou ali. A família do
jovem recorreu não a ele, mas ao pai, para que o convencesse a retirar a
queixa. O professor Guido Airota tentou persuadir o filho, houve longos
telefonemas durante os quais, com certo espanto, sentiu que o velho perdia a
calma e erguia a voz. Mas Pietro não cedeu. De modo que o afrontei
agitadíssima e perguntei:
“Você se dá conta de como está se comportando?”
“O que eu deveria fazer?”
“Diminuir a tensão.”
“Não estou entendendo.”
“Você não quer entender. Você é idêntico aos nossos professores de
Pisa, aos mais insuportáveis.”
“Não acho.”
“Mas é. Você se esqueceu de como a gente penou inutilmente para
acompanhar cursos insossos e passar em provas ainda mais insossas?”
“Meu curso não é insosso.”
“Seria bom você perguntar isso a seus estudantes.”
“Só se pede um parecer a quem tem a competência para dá-lo.”
“E você me pediria um parecer se eu fosse uma aluna sua?”
“Tenho ótimas relações com quem estuda.”
“Ou seja, você gosta dos que lhe abanam o rabinho.”
“E você gosta dos que bancam os bravateiros, como sua amiga de
Nápoles?”
“Gosto.”
“Então por que você sempre foi a mais leal?”
Fiquei confusa.
“Porque eu era pobre e achava um milagre ter chegado até ali.”
“Bem, aquele rapaz não tem nada em comum com você.”
“Você também não tem nada em comum comigo.”
“O que você quer dizer?”
Não respondi, me esquivei por prudência. Mas depois minha raiva
cresceu de novo, tornei a criticar sua intransigência, insisti: se você já tinha
reprovado o rapaz, qual o sentido de ir denunciá-lo? Resmungou: ele
cometeu um crime. Eu: era uma brincadeira para assustá-lo, é um garoto.
Respondeu frio: aquela pistola é uma arma, não um brinquedo, e foi roubada
com outras armas sete anos atrás, em um quartel da polícia de Rovezzano.
Repliquei: o rapaz não atirou. Ele desabafou: a arma estava carregada, e se
tivesse atirado? Não atirou, gritei. Ele ergueu a voz mais ainda: eu devia
esperar que me desse um tiro para denunciá-lo? Berrei: não grite comigo,
seus nervos estão em frangalhos. Respondeu: pense antes nos seus. E foi
inútil tentar explicar para ele, agitadíssima, que apesar de minhas palavras e
do tom polêmico na verdade aquela situação me parecia muito perigosa, e eu
estava preocupada. Tenho medo por você, disse, pelas meninas, por mim.
Mas ele não me consolou. Trancou-se no escritório e tentou trabalhar no
livro. Somente semanas depois me falou que tinha sido procurado duas vezes
por policiais à paisana que lhe pediram informações sobre alguns estudantes,
mostrando umas fotos. Na primeira vez ele os recebeu com gentileza, e com
gentileza os mandou embora sem lhes dar nenhuma informação. Na segunda
vez perguntou:
“Esses jovens cometeram algum crime?”
“Não, por enquanto, não.”
“Então o que vocês querem de mim?”
E os acompanhou até a porta com toda a polidez desdenhosa de que era
capaz.
98.

Durante meses Lila nunca telefonou, devia estar muito ocupada. Eu também
não a procurei, mesmo quando precisava. Para atenuar a impressão de vazio,
tentei me reaproximar de Mariarosa, mas os obstáculos eram muitos. Agora
Franco estava morando definitivamente na casa de minha cunhada, e Pietro
não gostava nem que eu me apegasse demais à irmã, nem que encontrasse
meu ex-namorado. Se eu ficava por mais de um dia em Milão, o humor dele
piorava, os males imaginários se multiplicavam, as tensões cresciam. Além
disso, o próprio Franco, que em geral só saía de casa para os tratamentos
médicos que continuava tendo de seguir, não apreciava minha presença,
demonstrava intolerância com as vozes muito altas das meninas e às vezes
sumia de casa, assustando Mariarosa e a mim. De resto, minha cunhada tinha
mil compromissos e estava permanentemente cercada de mulheres. O
apartamento dela era uma espécie de centro de encontro, acolhia qualquer
um, intelectuais, senhoras respeitáveis, trabalhadoras fugindo de
companheiros violentos, garotas perdidas, de modo que tinha pouco tempo
para mim e, seja como for, era muito dada a todas para que eu pudesse me
sentir segura de nossa relação. No entanto na casa dela, por alguns dias, me
voltava a vontade de estudar, às vezes de escrever. Ou melhor, tinha a
impressão de que era capaz disso.
Discutíamos muito sobre nós. Porém, mesmo sendo exclusivamente
mulheres — quando não escapava de casa, Franco se refugiava em seu
quarto —, tínhamos uma grande dificuldade de entender o que era uma
mulher. Cada gesto, pensamento, fala ou sonho nosso, uma vez analisado em
profundidade, parecia não nos pertencer. E esse escavar exasperava as mais
frágeis, que mal suportavam o excesso de autorreflexão e consideravam que,
para tomar o caminho da liberdade, bastava simplesmente excluir os homens.
Eram tempos agitados, movidos em onda. Muitas de nós temiam o retorno à
calmaria plana e mantinham-se na crista, agarrando-se a fórmulas extremas e
olhando para baixo com medo e com raiva. Quando se soube que o serviço
de segurança de Luta Contínua havia atacado uma passeata separatista de
mulheres, os ânimos se acirraram a tal ponto que, se alguma das mais
radicais descobria que Mariarosa tinha um homem em casa — algo que ela
não declarava, mas tampouco escondia —, a discussão se tornava feroz, e as
rupturas, dramáticas.
Eu detestava aqueles momentos. Estava buscando estímulos, não
conflitos, hipóteses de sondagem, não dogmas. Ou pelo menos era o que eu
dizia a mim mesma, às vezes até a Mariarosa, que me escutava em silêncio.
Numa daquelas ocasiões consegui falar sobre meu relacionamento com
Franco nos tempos da Normal, do que tinha significado para mim. Tenho
gratidão por ele, disse, com ele aprendi muito, e lamento que hoje ele nos
trate a mim e as meninas com frieza. Fiz uma pausa, depois continuei: talvez
haja algo errado nessa vontade dos homens de nos instruir; na época eu era
uma menina e não percebia que, naquele seu desejo de me transformar,
estava a prova de que não gostava de mim tal como eu era, queria que eu
fosse outra, ou melhor, não desejava simplesmente uma mulher, mas uma
mulher como ele imaginava que poderia ser se tivesse nascido mulher. Para
Franco, disse, eu era uma possibilidade de ele expandir-se no feminino, de
apossar-se disso: eu constituía a prova de sua onipotência, a demonstração
de que sabia ser não só homem do modo certo, mas também mulher. E hoje,
que não me sente mais como uma parte de si, se sente traído.
Me expressei exatamente desta maneira. E Mariarosa me ouviu com um
interesse autêntico, não do jeito um pouco fingido que demonstrava com
todas. Escreva alguma coisa sobre esse tema, me incentivou. E então se
comoveu, murmurou que não tivera tempo de conhecer o Franco sobre quem
eu lhe falara. Depois acrescentou: talvez tenha sido bom assim, eu nunca me
apaixonaria por ele, detesto homens muito inteligentes, que me dizem como
devo ser; prefiro esse homem sofrido e reflexivo que eu trouxe para minha
casa e de quem cuido. Então insistiu: ponha isso por escrito, isso mesmo que
você disse.
Fiz sinal que sim e, meio atropeladamente, satisfeita com o elogio, mas
também embaraçada, disse algo sobre minha relação com Pietro, sobre como
ele tentava me impor seu ponto de vista. Dessa vez Mariarosa caiu na risada,
e o tom quase solene de nossa conversa mudou. Franco comparado a Pietro?
Você está brincando, ela disse, Pietro mal consegue sustentar a própria
virilidade, imagine se teria energia para lhe impor um sentimento seu sobre a
mulher. Quer saber uma coisa? Eu teria jurado que você não se casaria com
ele. Juraria que, se o tivesse feito, o abandonaria no intervalo de um ano.
Juraria que teria evitado ao máximo ter filhos. O fato de que ainda estejam
juntos me parece um milagre. Você é mesmo uma jovem excelente, coitada.
99.

Estávamos então neste ponto: a irmã de meu marido considerava meu


casamento um equívoco e o dizia a mim com franqueza. Eu não sabia se ria
ou se chorava, aquilo me pareceu a extrema e desapaixonada confirmação do
meu mal-estar conjugal. De resto, fazer o quê? Dizia a mim mesma que a
maturidade consistia em aceitar o rumo que a existência tomara sem se agitar
demais, traçar um sulco entre prática cotidiana e aquisições teóricas,
aprender a se enxergar, a se conhecer, à espera de grandes mudanças. Dia
após dia fui me acalmando. Minha filha Dede ia entrar um pouco antes da
hora no primeiro ano fundamental, mas já sabendo ler e escrever; minha filha
Elsa estava feliz por ficar sozinha comigo durante a manhã inteira na casa
quieta; meu marido, mesmo sendo o mais monótono dos acadêmicos, parecia
finalmente próximo de terminar um segundo livro que prometia ser ainda
mais importante que o primeiro; e eu era a senhora Airota, Elena Airota, uma
mulher entristecida pela aceitação e que, no entanto, movida pela cunhada,
mas também para combater o aviltamento, começara a estudar quase em
segredo a invenção da mulher por parte dos homens, misturando mundo
antigo e mundo moderno. Eu o fazia sem um objetivo preciso, apenas para
dizer a Mariarosa, a minha sogra, a algum conhecido: estou trabalhando.
Foi assim que, em minhas ruminações, me embrenhei desde a primeira
e a segunda criações bíblicas até Defoe-Flanders, até Flaubert-Bovary, até
Tolstói-Karenina, até La dernière mode, até Rose Sélavy e além, ainda mais
além, num frenesi desbravador. Aos poucos me senti contente. Descobria por
todo lado autômatos de mulheres fabricados por homens. De nosso não havia
nada, o pouco que surgia logo se tornava matéria para a manufatura deles.
Quando Pietro estava no trabalho, Dede na escola, Elsa brincava a poucos
passos de minha escrivaninha e eu me sentia finalmente viva escavando nas
palavras e entre as palavras, acabava às vezes imaginando o que teria sido
minha vida e a de Lila se ambas tivéssemos feito o exame de admissão na
escola média e depois o liceu e depois todos os estudos até a formatura,
ombro a ombro, afinadas, um casal perfeito que soma energias intelectuais,
prazeres do entendimento e da imaginação. Teríamos escrito juntas, teríamos
assinado juntas, teríamos tirado força uma da outra, nos bateríamos lado a
lado para que aquilo que era nosso fosse inimitavelmente nosso. É uma
tristeza a solidão feminina das cabeças, dizia a mim mesma, é um
desperdício esse excluir-se mutuamente, sem protocolos, sem tradição.
Naqueles casos me sentia como se tivesse pensamentos cortados pela
metade, atraentes e no entanto defeituosos, com a urgência de uma
comprovação, de um desenvolvimento, mas sem convicção, sem confiança
em si. Então me voltava a vontade de telefonar para ela, de lhe dizer: veja
sobre o que estou refletindo, por favor, vamos discutir juntas esse ponto, me
diga sua opinião, lembra o que você me falou de Alfonso? Mas a ocasião
estava perdida para sempre, já há décadas. Precisava aprender a me
contentar comigo.
Depois, um dia, justo enquanto analisava essa necessidade, escutei a
chave girando na fechadura. Era Pietro que voltava para o almoço, depois de
ter buscado Dede na escola como sempre fazia. Fechei livros e cadernos
enquanto a menina já irrompia no quarto, recebida com entusiasmo por Elsa.
Estava com fome, sabia que em breve gritaria: mamãe, o que vamos comer?
No entanto, antes mesmo de se desfazer da pasta, exclamou: um amigo de
papai veio almoçar com a gente. Lembro exatamente a data: 9 de março de
1976. Me levantei de mau humor, Dede segurou minha mão e me arrastou
pelo corredor. Já Elsa, após o anúncio da presença de um estranho, se
agarrou prudentemente à minha saia. Pietro disse alegre: olha quem eu lhe
trouxe.
100.

Nino não tinha mais a barba cheia que eu vira anos antes na livraria, mas os
cabelos eram compridos e emaranhados. Quanto ao resto, continuava o
mesmo rapaz de antigamente, alto, magérrimo, os olhos brilhantes, o aspecto
desleixado. Abraçou-me, se ajoelhou para fazer um dengo nas meninas, se
levantou desculpando-se pela intrusão. Murmurei poucas palavras distantes:
venha, se sente, você aqui em Florença. Me sentia como se tivesse vinho
quente no cérebro, não conseguia conferir espessura ao que estava
acontecendo: ele, justamente ele, em minha casa. E tinha a impressão de que
algo não funcionava mais na organização do dentro e do fora. O que eu
estava imaginando e o que estava ocorrendo, quem era a sombra e quem o
corpo vivo? Enquanto isso Pietro me explicava: a gente se viu na faculdade,
e eu o convidei para almoçar. Eu sorria e dizia sim, está tudo pronto, onde
comem quatro comem cinco, me façam companhia enquanto eu ponho a mesa.
Parecia tranquila, mas estava agitadíssima, a cara me doía pelos sorrisos
forçados. Como é que Nino está aqui, e o que é aqui, o que é está? Preparei
uma surpresa para você, me disse Pietro um tanto apreensivo, como quando
temia ter errado em alguma coisa. E Nino, rindo: eu disse a ele que lhe
telefonasse, juro, mas ele não quis. Depois explicou que foi meu sogro quem
lhe disse que nos procurasse. Tinha encontrado o professor Airota em Roma,
no congresso do partido socialista, e lá, uma palavra puxa outra, ele dissera
que tinha um trabalho a fazer em Florença e o professor mencionara Pietro e
o novo estudo que o filho estava escrevendo, disse que precisava mandar-lhe
um livro com urgência. Nino então se oferecera para trazê-lo pessoalmente,
e aqui estávamos todos nós no almoço, as meninas disputando a atenção
dele, ele fazendo brincadeiras com ambas, concordando com Pietro, me
dirigindo poucas e seríssimas palavras.
“Imagine”, me disse, “vim tantas vezes a Florença a trabalho e não
sabia que você morava aqui, que tinha estas duas belas senhoritas. Ainda
bem que apareceu essa ocasião.”
“Você continua dando aula em Milão?”, perguntei, mesmo sabendo que
ele já não estava naquela cidade.
“Não, agora estou ensinando em Nápoles.”
“O quê?”
Fez uma careta de desânimo.
“Geografia.”
“Mais especificamente?”
“Geografia urbana.”
“Como é que você decidiu voltar?”
“Minha mãe não está bem.”
“Lamento. O que é que ela tem?”
“Problemas no coração.”
“E seus irmãos?”
“Estão bem.”
“Seu pai?”
“Como sempre. Mas o tempo passa, a gente cresce, e ultimamente nos
reaproximamos. Como todo mundo, ele tem seus defeitos e suas qualidades.”
Então se dirigiu a Pietro: “Quantos casos inventamos contra nossos pais e
contra a família. Agora, que chegou nossa vez, como nos saímos dessa?”.
“Eu me saio bem”, disse meu marido com uma ponta de ironia.
“Não tenho dúvidas. Você se casou com uma mulher extraordinária, e
estas duas princesas são perfeitas, educadíssimas, elegantíssimas. Que
vestidinho lindo, Dede, como fica bem em você. E quem deu a Elsa esse
passador com estrelinhas?”
“Mamãe”, disse Elsa.
Aos poucos fui me acalmando. Os segundos recuperaram a escansão
normal, e me dei conta do que estava acontecendo comigo. Nino estava
sentado a meu lado na mesa, comia a massa que eu tinha preparado, cortava
cuidadosamente em pequenos pedaços a costeleta de Elsa, comia a dele com
apetite, mencionava com desgosto as propinas que a Lockheed pagara a
Tanassi e a Gui, elogiava minha comida, discutia com Pietro sobre a
alternativa socialista, descascava uma maçã fazendo uma serpentina que
deixava Dede fascinada. Enquanto isso, espalhava-se pelo apartamento um
fluido benigno que eu não sentia há tempos. Como era bonito ver os dois
homens dando razão um ao outro, demonstrando simpatia recíproca.
Comecei a tirar a mesa em silêncio. Nino se levantou, se ofereceu para lavar
os pratos, desde que as meninas o ajudassem. Fique sentada, me disse, e eu
me acomodei enquanto ele recrutava Dede e Elsa, ambas entusiasmadas, me
perguntando de vez em quando onde devia guardar isso e aquilo e
continuando a conversa com Pietro.
Era ele mesmo, depois de tanto tempo, e estava ali. Eu olhava sem
querer a aliança que ele usava no dedo anular. Em nenhum momento
mencionou seu casamento, pensei, falou sobre a mãe, sobre o pai, mas não
da mulher e do filho. Talvez não tenha sido um casamento por amor, talvez
tenha se casado por interesse, talvez tenha sido forçado a se casar. Depois o
borboletear das hipóteses cessou. De uma hora para outra Nino começou a
falar às meninas de seu filho, Albertino, e o fez como se o pequeno fosse o
personagem de um conto de fadas, com entonação ora engraçada ora
carinhosa. Por fim enxugou as mãos, tirou uma fotografia da carteira,
mostrou-a primeiro a Elsa, depois a Dede, depois a Pietro, que a passou a
mim. Albertino era muito bonito. Tinha dois anos e estava no colo da mãe
com um ar emburrado. Olhei o pequeno por poucos segundos e logo passei a
examinar a mulher. Pareceu-me esplêndida, olhos grandes, cabelos pretos e
longos, devia ter pouco mais de vinte anos. Sorria, e os dentes eram uma
arcada cintilante e sem irregularidades, o olhar me pareceu apaixonado.
Devolvi-lhe a foto e disse: vou fazer o café. Fiquei só na cozinha, e os
quatro foram para a sala de estar.
Nino tinha um encontro de trabalho, se desmanchou em desculpas e saiu
logo após o café e um cigarro. Retorno a Nápoles amanhã, disse, mas volto
logo, já na próxima semana. Pietro disse várias vezes que aparecesse, ele
prometeu que o faria. Despediu-se das meninas com grande carinho, apertou
a mão de Pietro, fez um sinal para mim e desapareceu. Assim que a porta se
fechou às suas costas, fui vencida pela esqualidez do apartamento. Esperei
que Pietro, mesmo tendo estado tão à vontade com Nino, notasse algo de
odioso no hóspede, como quase sempre fazia. No entanto disse contente: até
que enfim uma pessoa com quem vale a pena passar o tempo. Não sei por
que, aquela frase me fez mal. Liguei a televisão e passei o resto da tarde
diante dela, com as meninas.
101.

Esperei que Nino ligasse logo, já no dia seguinte. Estremecia a cada toque
do telefone. Entretanto a semana passou sem que ele desse notícias. Me senti
como se estivesse com um forte resfriado. Fiquei sem vontade, interrompi
minhas leituras e anotações, me irritei comigo mesma por aquela espera
insensata. Depois, numa tarde, Pietro voltou para casa particularmente de
bom humor. Disse que tinha encontrado Nino na faculdade, que passaram um
tempo juntos, que não teve jeito de convencê-lo a vir jantar. Mas nos
convidou para jantar fora amanhã — disse —, as meninas também: não quer
que você se canse na cozinha.
Meu sangue começou a correr mais rápido, senti uma ternura ansiosa
por Pietro. Assim que as meninas foram deitar, o abracei, o beijei, lhe
sussurrei palavras de amor. Dormi pouco durante a noite, ou melhor, dormi
com a impressão de estar acordada. No dia seguinte, assim que Dede voltou
da escola, mandei-a para a banheira com Elsa e esfreguei bem as duas.
Depois passei a cuidar de mim. Tomei um longo banho feliz, me depilei,
lavei os cabelos, me enxuguei com cuidado. Experimentei todos os vestidos
que tinha, fiquei cada vez mais nervosa porque não gostava de mim, logo me
desanimei de como estavam meus cabelos, Dede e Elsa sempre em torno de
mim, brincando de me imitar. Faziam poses no espelho, mostravam-se
insatisfeitas com as roupas e os penteados, se arrastavam com meus sapatos
nos pés. Resignei-me a ser o que eu era. Depois de ter repreendido Elsa de
modo excessivo por ela ter sujado seu vestidinho no último momento, entrei
no carro e fomos buscar Pietro e Nino, que tinham marcado um encontro na
universidade. Fiz o percurso angustiada, gritando continuamente com as
meninas que brincavam de cantar musiquinhas inventadas por elas, todas
sobre cocô e xixi. Quanto mais me aproximava do local do encontro, mais
torcia para que algum incidente de última hora impedisse Nino de vir. No
entanto avistei logo os dois homens, que conversavam entre si. Nino tinha
gestos envolventes, como se convidasse o interlocutor a entrar num espaço
planejado especialmente para ele. Pietro me pareceu desengonçado como
sempre, a pele do rosto avermelhada, rindo apenas ele, e de modo
subalterno. Nenhum dos dois demonstrou particular interesse por minha
chegada.
Meu marido se sentou no banco traseiro com as meninas, Nino se
acomodou a meu lado para me guiar a um lugar onde se comia bem e —
disse, virando-se para Dede e Elsa — faziam frittelle excelentes. Então as
descreveu minuciosamente, causando frisson nas meninas. Tempos atrás —
pensei, observando-o com o rabo do olho — passeamos juntos de mãos
dadas e nos beijamos duas vezes. Que belos dedos. A mim disse apenas vire
aqui à direita, depois à direita de novo, no cruzamento, à esquerda. Nem
um olhar de admiração, nem um cumprimento.
Fomos recebidos na trattoria de modo alegre, mas respeitoso. Nino
conhecia o dono, os garçons. Acabei na cabeceira da mesa entre as meninas,
os dois homens se sentaram um na frente do outro, e meu marido começou a
falar da vida difícil nas universidades. Fiquei quase sempre calada,
cuidando de Dede e Elsa, que em geral eram muito disciplinadas à mesa,
mas naquela ocasião não paravam de aprontar, sempre rindo, para atrair a
atenção de Nino. Pensava incomodada: Pietro fala demais, está aborrecendo
Nino, não lhe dá espaço. Pensava: vivemos há sete anos nesta cidade e não
temos nenhum local aonde levá-lo para retribuir o convite, um restaurante
onde se coma bem como aqui, onde somos reconhecidos assim que entramos.
Gostei da gentileza do proprietário, veio várias vezes à nossa mesa, chegou
até a dizer a Nino: esta noite não vou lhe recomendar este, não é apropriado
ao senhor e a seus convidados — e lhe aconselhou outra coisa. Quando as
famosas frittelle foram servidas, as meninas se entusiasmaram, Pietro
também, todos as disputaram entre si. Só então Nino se dirigiu a mim:
“Como é que nunca mais saiu nada seu?”, perguntou sem a frivolidade
da conversação social, com um interesse que me pareceu genuíno.
Enrubesci, disse apontando para as meninas:
“Fiz outras coisas.”
“Aquele livro era excelente.”
“Obrigada.”
“Não é um cumprimento, você sempre escreveu bem. Lembra o
artiguinho sobre o professor de religião?”
“Seus amigos não o publicaram.”
“Houve um erro.”
“Perdi a confiança.”
“Lamento. Está escrevendo agora?”
“Nas horas vagas.”
“Um romance?”
“Não sei bem o que é.”
“Mas e o tema?”
“A fabricação das mulheres pelos homens.”
“Ótimo.”
“Vamos ver.”
“Mãos à obra, quero ler logo.”
E, para minha surpresa, mostrou que conhecia bem os textos de
mulheres com os quais eu estava trabalhando; eu tinha certeza de que os
homens não liam esse tipo de coisa. Não só: citou um livro de Starobinski
que tinha lido recentemente, disse que havia algo nele que podia me ser útil.
Quanta coisa ele sabia, era assim desde garoto, sentia curiosidade por tudo.
Agora estava citando Rousseau e Bernard Shaw, o interrompi, me escutou
com atenção. E quando as meninas, irritadas, passaram a me puxar querendo
mais frittelle, ele fez um sinal ao proprietário para que preparasse mais
algumas. Depois se virou para Pietro e disse:
“Você deve deixar sua mulher ter mais tempo.”
“Ela tem o dia inteiro à disposição.”
“Não estou brincando. Se você não fizer isso, estará sendo culpado não
só no plano humano, mas também no político.”
“E qual seria meu crime?”
“O desperdício de inteligência. Uma comunidade que acha natural
sufocar com o cuidado dos filhos e da casa tantas energias intelectuais
femininas é inimiga de si mesma e não se dá conta.”
Esperei em silêncio que Pietro respondesse. Meu marido reagiu com
ironia:
“Elena pode cultivar sua inteligência quando e como quiser, o essencial
é que não tire tempo de mim.”
“Se não tirar de você, vai tirar de quem?”
Pietro fechou a cara.
“Quando a tarefa que nos impomos tem a urgência da paixão, não há
nada que possa nos impedir de levá-la a cabo.”
Me senti ferida, murmurei com um sorrisinho falso:
“Meu marido está dizendo que não tenho nenhum interesse autêntico.”
Silêncio. Nino perguntou:
“E é assim?”
Respondi de pronto que não sabia, que não sabia nada. Porém, enquanto
falava constrangida, com raiva, me dei conta de que meus olhos se enchiam
de lágrimas. Baixei o olhar. Chega de frittelle, disse às meninas, com uma
voz descontrolada, e Nino me socorreu, exclamando: eu posso comer mais
uma, a mamãe e o papai também, e vocês mais duas, depois chega. Então
chamou o proprietário e disse solenemente: voltarei aqui com estas duas
senhoritas daqui a exatos trinta dias, e o senhor nos preparará uma montanha
dessas maravilhosas frittelle, certo? Elsa perguntou:
“Quando é um mês, quando é trinta dias?”
Brincamos — sobretudo Dede — com a ideia vaga que Elsa tinha do
tempo. Depois Pietro tentou pagar, mas descobriu que Nino já o tinha feito.
Protestou, se pôs ao volante, e eu me sentei no banco de trás entre as duas
meninas já sonolentas. Acompanhamos Nino ao hotel e durante todo o trajeto
escutei a conversa meio bêbada deles sem dizer uma palavra. Quando
chegamos ao hotel, Pietro disse muito eufórico:
“Não faz sentido você jogar dinheiro fora: temos um quarto de
hóspedes, da próxima vez fique com a gente, não faça cerimônia.”
Nino riu:
“Há menos de uma hora dissemos que Elena precisa de sossego, e
agora você quer sobrecarregá-la ainda mais com minha presença?”
Intervim com um tom apagado:
“Será um prazer para mim, e também para Dede e Elsa.”
Porém, assim que Nino saiu, falei a meu marido:
“Antes de fazer certos convites, você poderia pelo menos me
consultar.”
Ele deu partida no carro, me procurou pelo retrovisor e resmungou:
“Achei que você ia gostar.”
102.

Oh, claro que eu estava gostando, estava gostando muito. Mas também me
sentia como se meu corpo tivesse a consistência da casca do ovo e bastasse
uma leve pressão num braço, na testa, na barriga para rompê-lo e extrair dali
todos os meus segredos, sobretudo os que eram secretos até para mim. Evitei
contar os dias. Me concentrei nos textos que estava estudando, mas o fiz
como se Nino fosse o contratante daquele meu trabalho e, em seu retorno,
exigisse resultados de qualidade. Queria dizer a ele: segui seu conselho, fui
em frente, aqui está um rascunho, me diga o que acha.
Foi uma ótima decisão. Os trinta dias de espera voaram depressa até
demais. Me esqueci de Elisa, não pensei em Lila, não telefonei para
Mariarosa. E não li jornais, não vi tv, relaxei com as meninas e a casa. Das
prisões e combates e assassinatos e guerras, da convulsão permanente da
Itália e do planeta, só me chegou um eco, e mal me dei conta da campanha
eleitoral carregada de tensões. Só fiz escrever, com grande empenho.
Quebrei a cabeça com um monte de velhas questões até ter a impressão de
haver encontrado, pelo menos na escrita, uma ordem definitiva. Às vezes me
sentia tentada a recorrer a Pietro. Ele era muito mais competente que eu, com
certeza teria me poupado de escrever coisas levianas, toscas ou estúpidas.
Mas não o fiz, detestava os momentos em que ele me mantinha em sujeição
com seu saber enciclopédico. Trabalhei muito, me lembro bem, sobretudo
sobre a primeira e a segunda criação bíblica. Coloquei-as em sucessão e
considerei a primeira uma espécie de síntese do ato criativo divino, a
segunda, uma espécie de narrativa mais estendida. Fiz a partir dela uma
história bastante movimentada, sem jamais me sentir imprudente. Deus —
escrevi mais ou menos nesses termos — cria o homem, Ish, à sua imagem.
Fabrica uma versão masculina e uma feminina. Como? Primeiro, com o pó
da terra, dá forma a Ish e lhe sopra nas narinas o hálito vital. Depois extrai
Isha’h, a mulher, da matéria masculina já formada, matéria não mais bruta,
mas viva, que toma do flanco de Ish fechando-lhe imediatamente a carne. O
resultado é que Ish pode dizer: esta coisa não é, como a legião de tudo o que
foi criado, outro que não eu, mas é carne da minha carne, ossos dos meus
ossos. Eu sou Ish e ela é Isha’h. Sobretudo na palavra, na palavra que a
nomeia, ela deriva de mim, que sou a imagem do espírito divino, que trago
dentro de mim seu Verbo. Ela é, pois, um puro sufixo aplicado à minha raiz
verbal, podendo exprimir-se apenas dentro da minha palavra.
E prossegui assim, vivendo dias e dias num estado de agravável
excitação intelectual. Minha única aflição foi ter um texto legível a tempo.
De vez em quando me surpreendia comigo: tinha a impressão de que aspirar
ao consenso de Nino me tornava a escrita mais fácil, me desatava.
Mas o mês passou, e ele não deu sinal de vida. A princípio isso me
ajudou, tive mais tempo e consegui levar a cabo meu trabalho. Depois me
alarmei, perguntei a Pietro. Descobri que os dois tinham se falado com
frequência pelo telefone do escritório, mas que há alguns dias Pietro não
tinha notícias dele.
“Vocês se falaram várias vezes?”
“Sim.”
“E por que você não me disse nada?”
“Dizer o quê?”
“Que vocês se falaram várias vezes.”
“Eram ligações de trabalho.”
“Bem, já que vocês ficaram tão amigos, ligue e veja se ele se digna a
nos dizer quando vem.”
“Qual a necessidade disso?”
“Para você, nenhuma, mas todo o trabalho é meu: sou eu que devo
providenciar tudo e gostaria de ser avisada com antecedência.”
Ele não ligou. Reagiu me dizendo: tudo bem, vamos esperar, Nino
prometeu às meninas que voltaria, não acho que vá decepcioná-las. E foi
assim. Telefonou com uma semana de atraso, à noite. Eu mesma atendi, ele
pareceu constrangido. Disse poucas frases genéricas e perguntou: Pietro
está? Fiquei constrangida por minha vez e passei o telefone a meu marido.
Conversaram por muito tempo, senti com um mau humor crescente que Pietro
usava uma entonação estranha: voz muito alta, frases exclamativas, risadas.
Só então entendi que a relação com Nino o tranquilizava, o fazia se sentir
menos isolado, se esquecia das mazelas, trabalhava com mais vontade. Me
fechei em meu quarto, onde Dede estava lendo e Elsa brincando, ambas à
espera do jantar. Mas até mesmo ali me chegou aquela voz insólita, parecia
embriagado. Depois se calou, ouvi seus passos pela casa. Pôs a cara na
porta e disse alegre às meninas:
“Filhinhas, amanhã à noite vamos jantar frittelle com tio Nino.”
Dede e Elsa lançaram gritos de entusiasmo, e eu perguntei:
“O que ele vai fazer? Vem dormir aqui?”
“Não”, me respondeu, “veio com a esposa e o filho, estão num hotel.”
103.

Demorei um tempo longuíssimo para assimilar o sentido daquelas frases.


Disparei:
“Ele podia ter avisado.”
“Decidiram de última hora.”
“É um grosseirão.”
“Elena, qual o problema?”
Então Nino viera com a mulher — fui tomada pelo terror da
comparação. Eu sabia bem como era feita, conhecia a materialidade bruta de
meu corpo, mas durante boa parte de minha vida lhe tinha dado pouca
importância. Crescera com um par de sapatos de quando em quando,
roupinhas costuradas por minha mãe, maquiagem somente em raras ocasiões.
Em anos recentes tinha começado a me preocupar com a moda, a educar meu
gosto sob a orientação de Adele, e agora achava divertido me arrumar. Mas
às vezes — especialmente quando me cuidava não só para causar uma boa
impressão geral, mas também para um homem — me enfeitar (era esta a
palavra) me dava a impressão de algo ridículo. Toda aquela afobação, todo
aquele tempo me disfarçando, quando poderia empregá-lo em coisa melhor.
As cores que ficam bem em mim, as que não ficam, os modelos que me
deixam mais magra, os que me engordam, o corte que me valoriza, o que me
deprecia. Uma longa e penosa preparação. Reduzir-me a mesa posta para o
apetite sexual do macho, a iguaria bem cozinhada para lhe dar água na boca.
E depois a angústia de não conseguir, de não parecer bonita, de não ter sido
capaz de ocultar com destreza a vulgaridade da carne com seus humores,
cheiros e deformidades. De todo modo eu tinha conseguido. Inclusive para
Nino, recentemente. Quis mostrar a ele que eu me tornara outra, que
conquistara uma certa fineza, que não era mais a menina do casamento de
Lila, a estudante na festa dos filhos da Galiani, nem mesmo a autora
despreparada de um único livro, como devo ter parecido a ele em Milão.
Mas agora chega. Ele trouxera a esposa e eu estava com raiva, me parecia
uma maldade. Detestava competir em beleza com outra mulher, mais ainda
sob o olhar de um homem, e sofria ao pensar que estaria dividindo o espaço
com a bela jovem que eu tinha visto na foto, me dava dor de estômago. Ela
me avaliaria e examinaria em cada detalhe, com a soberba de uma dondoca
de via Tasso, educada para a gestão do corpo desde o nascimento; depois,
encerrada a noite, a sós com o marido, me criticaria com lucidez cruel.
Vacilei por horas e por fim decidi que inventaria alguma desculpa,
apenas meu marido e as meninas iriam àquele jantar. Mas no dia seguinte não
consegui resistir. Me vesti, me desvesti, me arrumei, me desarrumei,
atormentei Pietro. Ia ao quarto dele continuamente, ora com uma roupa, ora
com outra, ora com um penteado, ora com outro, perguntando tensíssima:
como é que estou? Ele me lançava um olhar distraído e dizia: está bem. Eu
respondia: e se eu pusesse o vestido azul? Concordava. Mas eu punha o
vestido azul e não gostava, ficava muito justo nos quadris. Voltava até ele e
dizia: está apertado. Pietro rebatia paciente: é verdade, aquele verde com
florezinhas fica melhor em você. Mas eu não queria que o verde com
florezinhas ficasse simplesmente melhor, queria que ficasse perfeito, que
ficassem perfeitos os brincos e também os cabelos e também os sapatos.
Enfim, Pietro não era capaz de me passar confiança, me olhava sem me ver.
E eu me sentia cada vez mais disforme, peito demais, bunda demais, quadris
largos, e estes cabelos aloirados, este nariz grande. Tinha o corpo de minha
mãe, um organismo desprovido de graça, só me faltava a ciática voltar de
repente e eu recomeçar a mancar. Já a mulher de Nino era muito jovem,
bonita, rica e seguramente se movia à vontade no mundo, coisa que eu jamais
conseguiria aprender. Assim voltei mil vezes à decisão inicial: não vou,
mando Pietro com as meninas, mando dizer que não estou me sentindo bem.
No entanto fui. Pus uma blusa branca com uma saia florida, a única joia que
usei foi o velho bracelete de minha mãe, meti na bolsa o texto que havia
escrito. E disse a mim mesma: que se fodam ela, ele, todo mundo.
104.

Par causa de minhas indecisões chegamos atrasados à trattoria. A família


Sarratore já estava à mesa. Nino nos apresentou sua mulher, Eleonora, e meu
humor mudou. Oh, sim, ela tinha um rosto bonito e lindos cabelos pretos,
como na foto. Mas era mais baixa que eu — embora eu não fosse nada alta.
E, apesar de rechonchuda, não tinha peito. E usava um vestido vermelho fogo
que lhe caía malíssimo. E estava carregada de joias. E desde as primeiras
palavras que disse revelou uma voz estrídula, um sotaque de napolitana
educada por jogadoras de canastra numa casa com vidraças para o golfo.
Mas acima de tudo, ao longo da noite, demonstrou pouca cultura — embora
estudasse jurisprudência — e uma propensão a falar mal de tudo e de todos
com um ar de quem se sente na contracorrente e se orgulha disso. Em suma,
era rica, mimada, vulgar. Até seus traços agradáveis eram continuamente
estragados por uma careta de fastio seguida de uma risadinha nervosa, ih, ih,
ih, que lhe cortava a fala, mesmo em frases curtas. Invocou-se com Florença
— em que é melhor do que Nápoles? —, com a trattoria — péssima —,
com o dono — um mal-educado —, com qualquer coisa que Pietro dissesse
— que bobagem —, com as meninas — nossa senhora, como vocês falam,
um pouco de silêncio, por favor — e naturalmente comigo — você estudou
em Pisa, mas por quê?, Letras em Nápoles é bem melhor, nunca ouvi falar
desse seu romance, quando é que saiu?, oito anos atrás eu só tinha catorze
anos. Apenas com o filho e com Nino foi sempre carinhosa. Albertino era
muito bonito, gordinho, com um ar feliz, e Eleonora não parava de elogiá-lo.
O mesmo acontecia com o marido: ninguém era melhor que ele, aprovava
cada frase que saía de sua boca, o tocava, o abraçava, o beijava. O que essa
garotinha podia ter em comum com Lila, até com Silvia? Nada. Então por
que Nino se casara com ela?
Fiquei de olho nele durante a noite toda. Era gentil com ela, deixava-se
abraçar e beijar, sorria-lhe afetuosamente quando dizia tolices mal-
educadas, brincava distraidamente com o menino. Mas não mudou sua
atitude com minhas filhas, às quais prestou grande atenção, continuou
discutindo alegremente com Pietro e até me dirigiu algumas palavras. A
mulher — quis acreditar — não o absorvia. Eleonora era uma das muitas
peças de sua vida movimentada, mas não tinha nenhuma influência sobre ele,
Nino seguiu em frente seu próprio caminho sem dar peso a ela. Por isso me
senti cada vez mais à vontade, especialmente quando ele me segurou o pulso
por alguns segundos, quase o acariciou, mostrando que reconhecera meu
bracelete; especialmente quando zombou do meu marido perguntando-lhe se
tinha deixado um pouco mais de tempo para mim; especialmente quando,
logo em seguida, me perguntou se eu tinha avançado em meu trabalho.
“Terminei a primeira redação”, respondi.
Nino se virou sério para Pietro:
“Você leu?”
“Elena não me deixa ler nada.”
“É você quem não quer”, rebati sem irritação, como se fosse uma
brincadeira entre nós.
Nesse ponto Eleonora se intrometeu, não queria ser deixada de lado:
“De que se trata?”, quis saber. Porém, justamente quando eu estava para
responder, sua cabeça volúvel a levou para longe e começou a me perguntar
entusiasmada: “Amanhã você me acompanha para ver as lojas enquanto Nino
trabalha?”.
Sorri com falsa cordialidade. Disse que estava disponível, e ela
começou com uma lista detalhadíssima das coisas que pretendia comprar.
Somente quando saímos da trattoria consegui me aproximar de Nino e
murmurar:
“Você poderia dar uma olhada em meu texto?”
Ele me olhou com sincera surpresa:
“Você realmente me deixaria ler?”
“Se não for um incômodo, claro.”
Passei-lhe furtivamente minhas páginas com o coração aos pulos, como
se não quisesse que Pietro, Eleonora e as meninas percebessem.
105.

Não preguei olho. De manhã tive de ir ao encontro com Eleonora, marcamos


às dez na frente do hotel. Não faça a estupidez — disse a mim mesma — de
perguntar a ela se o marido já tinha começado a ler meu texto: Nino é
ocupado, vai precisar de certo tempo; você não deve pensar nisso, espere
pelo menos uma semana.
No entanto, às nove em ponto, quando eu estava para sair, o telefone
tocou e era ele.
“Desculpe”, disse, “mas estou entrando na biblioteca e só poderia
voltar a ligar à noite. Tem certeza de que não incomodo?”
“Claro, incômodo nenhum.”
“Já li.”
“Já?”
“Sim, e é um trabalho excelente. Você tem uma grande capacidade de
estudo, um rigor admirável e uma inventividade impressionante. Mas o que
mais invejo é sua habilidade de escritora. Você escreveu um texto difícil de
definir, não sei se é um ensaio ou um romance. Mas é extraordinário.”
“Isso é um defeito?”
“O quê?”
“Que não seja catalogável?”
“Que nada, é um de seus méritos.”
“Você acha que devo publicá-lo assim como está?”
“Com certeza absoluta.”
“Obrigada.”
“Obrigado a você, agora preciso ir. Tenha paciência com Eleonora, ela
parece agressiva, mas é só timidez. Amanhã de manhã voltamos para
Nápoles, mas apareço depois das eleições e, se você quiser, podemos
conversar.”
“Eu gostaria muito. Você fica com a gente?”
“Tem certeza de que não vou atrapalhar?”
“Absoluta.”
“Então tudo bem.”
Não desligou, pude escutar sua respiração.
“Elena.”
“Sim?”
“Quando éramos jovens, Lina nos deixou desorientados.”
Senti um forte incômodo.
“Em que sentido?”
“Você acabou atribuindo a ela talentos que são só seus.”
“E você?”
“Eu fiz pior. O que eu tinha visto em você, depois achei estupidamente
que encontrara nela.”
Permaneci calada por uns segundos. Por que ele sentira a necessidade
de mencionar Lila assim, por telefone? E sobretudo o que estava me
dizendo? Era apenas um cumprimento? Ou estava tentando me comunicar que
gostava de mim na juventude, mas que em Ischia acabara atribuindo a uma o
que era da outra?
“Volte logo”, eu disse.
106.

Fui passear com Eleonora e as três crianças num estado de bem-estar tão
intenso que, mesmo se ela me enfiasse uma faca, eu não sentiria nada. De
resto, diante de minha euforia cheia de gentilezas, a mulher de Nino
suspendeu qualquer hostilidade, elogiou a disciplina de Dede e de Elsa,
confessou que me admirava muito. Seu marido lhe contara tudo de mim, os
estudos que eu tinha feito, meu sucesso como escritora. Mas sou um pouco
ciumenta — admitiu —, e não por você ser excelente, mas porque o conhece
desde pequena, e eu, não. Ela também gostaria de tê-lo conhecido na
infância, saber como ele era aos dez, aos catorze anos, a voz que tinha antes
de engrossar, a risada de quando era criança. Ainda bem que tenho Albertino
— disse —, é igualzinho ao pai.
Observei o menino, mas não achei que tivesse traços de Nino; talvez se
manifestassem mais tarde. Eu me pareço com papai, exclamou imediatamente
Dede com orgulho, e Elsa acrescentou: eu me pareço mais com a mamãe.
Tornei a me lembrar do filho de Silvia, Mirko, que sempre fora idêntico a
Nino. Que prazer eu sentira ao apertá-lo entre os braços, acalmando seus
vagidos na casa de Mariarosa. O que eu buscara naquele menino, quando
ainda estava longe da experiência da maternidade? O que eu tinha buscado
em Gennaro, quando ainda não sabia que seu pai era Stefano? O que buscava
em Albertino, agora que eu era mãe de Dede e de Elsa, e por que o
examinava com tanta atenção? Excluí que Nino se lembrasse de vez em
quando de Mirko. Nem me constava que ele tivesse demonstrado qualquer
curiosidade por Gennaro. Essa distraída semeadura dos homens,
entorpecidos pelo prazer; nos fecundam dominados pelo seu orgasmo;
irrompem dentro de nós e se retraem nos deixando, selado na carne, seu
fantasma como um objeto perdido. Albertino era filho da vontade, da
atenção? Ou também ele estava nos braços dessa mulher-mãe sem que Nino
lhe desse importância? Voltei a mim, disse a Eleonora que seu filho era a
cópia do pai e ela ficou contente com aquela mentira. Depois lhe contei
minuciosamente, com afeto, com ternura, de Nino na época da escola
fundamental, nos tempos das competições organizadas por Oliviero e pelo
diretor, no período do liceu, da Galiani e das férias em Ischia, que passamos
juntos com outros amigos. Parei ali, embora ela, como uma menina,
continuasse me perguntando: e depois?
Conversa vai, conversa vem, mostrei-me cada vez mais simpática a ela,
que acabou se apegando a mim. Se eu entrava numa loja e alguma coisa me
agradava, se a provava e depois desistia, descobria na saída que Eleonora a
comprara de presente para mim. Quis também comprar vestidinhos para
Dede e Elsa. No restaurante, ela pagou a conta. E pagou o táxi com que me
acompanhou até em casa com as meninas, para depois seguir carregada de
sacolas rumo ao hotel. Então nos despedimos, e tanto eu quanto as meninas
acenamos com as mãos para ela até o carro dobrar a esquina. É mais uma
peça de minha cidade, pensei. Muitíssimo distante de minha experiência.
Usava o dinheiro como se não tivesse o menor valor. Excluí que fosse
dinheiro de Nino. O pai dela era advogado, o avô, também, a mãe pertencia
a uma estirpe de banqueiros. Perguntei-me que diferença havia entre sua
riqueza de burgueses e a dos Solara. Pensei em quantas voltas ocultas o
dinheiro dá antes de se transformar em altos salários e lautos honorários.
Lembrei-me dos rapazes do bairro que ganhavam o dia descarregando
mercadorias de contrabando, cortando árvores de parques, trabalhando nos
canteiros de obras. Lembrei-me de Antonio, de Pasquale, de Enzo, que desde
meninos arranjavam uns trocados para sobreviver. Os engenheiros, os
arquitetos, os advogados, os bancos eram outra coisa, nunca o dinheiro deles
provinha — mesmo entre mil filtros — dos mesmos malfeitos, do mesmo
massacre, alguma migalha tinha até se transformado em gorjeta para meu pai
e contribuíra com meus estudos. Então qual era o limiar além do qual o
dinheiro ruim se tornava bom e vice-versa? Até que ponto era limpo o
dinheiro que Eleonora gastara sem problemas no calor daquele dia
florentino?; e os cheques com que tinham sido compradas as mercadorias
que eu estava levando para casa, até que ponto eram diferentes daqueles com
que Michele pagava o trabalho de Lila? Durante toda a tarde, eu e as
meninas nos pavoneamos na frente do espelho com as roupas que
ganháramos de presente. Eram artigos de qualidade, exuberantes, alegres.
Havia um vestido vermelho desbotado, anos 1940, que me caía
especialmente bem; queria que Nino me visse com ele.
No entanto a família Sarratore voltou para Nápoles sem que tivéssemos
a ocasião de nos encontrarmos mais uma vez. Porém, contra todas as
previsões, o tempo não colapsou, ao contrário, começou a correr com
leveza. Nino voltaria, isso era certo. E discutiria meu texto comigo. Para
evitar atritos inúteis, coloquei uma cópia dele sobre a escrivaninha de
Pietro. Depois telefonei para Mariarosa com a agradável certeza de ter
trabalhado bem e lhe disse que tinha conseguido pôr em ordem aquele
rascunho que eu havia mencionado. Quis que eu lhe mandasse logo uma
cópia. Poucos dias depois me ligou entusiasmada, perguntou se ela mesma
podia traduzi-lo em francês e mandá-lo para uma amiga de Nanterre que
tinha uma pequena editora. Aceitei com entusiasmo, mas a coisa não
terminou ali. Passaram-se poucas horas e minha sogra me telefonou com uma
voz falsamente ofendida.
“Como é que as coisas que você escreve agora vão parar nas mãos de
Mariarosa, e não nas minhas?”
“Temo que não interessem a você. São umas setenta páginas, não é um
romance, nem eu sei bem o que é.”
“Quando você não sabe o que é que escreveu, quer dizer que trabalhou
bem. De todo modo, deixe que eu decida se me interessa ou não.”
Mandei uma cópia também para ela. Fiz isso quase com displicência.
Fiz justo na manhã em que Nino, por volta do meio-dia, me telefonou de
surpresa da estação — tinha acabado de chegar em Florença.
“Chego aí daqui a meia hora, deixo a bagagem e vou para a biblioteca.”
“Não quer comer alguma coisa?”, perguntei com naturalidade. Pareceu-
me normal — o ponto de chegada de um longo percurso — que ele viesse
dormir em minha casa, que eu lhe preparasse o almoço enquanto tomava uma
ducha em meu banheiro, que comêssemos juntos, eu, ele e as meninas,
enquanto Pietro aplicava provas na universidade.
107.

Nino ficou uns dez dias. Nada do que ocorreu naquele período teve que ver
com a ânsia de sedução que eu experimentara anos antes. Não fiz gracinhas
com ele, não mudei o tom de voz, não o assediei com cortesias de todo tipo,
não representei o papel da mulher liberal imitando minha cunhada, não
experimentei o caminho das alusões maliciosas, não procurei seu olhar com
ternura, não procurei sentar a seu lado na mesa ou no sofá, diante da
televisão, não circulei seminua pela casa, não busquei estar sozinha com ele,
não encostei meu cotovelo no dele, braço no braço ou no seio, perna com
perna. Fui tímida, digna, de poucas e secas palavras, atenta apenas a que se
alimentasse bem, que as meninas não o importunassem, que se sentisse à
vontade. E não foi uma escolha, eu não teria conseguido me comportar de
outra maneira. Ele brincava muito com Pietro, com Dede, com Elsa, mas
assim que me dirigia a palavra se tornava sério, parecia medir as frases
como se não houvesse uma velha amizade entre nós. E comigo acontecia o
mesmo. Estava felicíssima de tê-lo em casa e no entanto não sentia nenhuma
necessidade de tons ou gestos de intimidade, ao contrário, gostava de me
manter à margem e de evitar contatos entre nós. Me sentia como uma gota de
chuva numa teia de aranha, e ficava atenta para não escorregar.
Tivemos uma única troca, longa, toda ela concentrada em meu texto. Ele
tocou no assunto imediatamente, assim que chegou, com precisão e agudeza.
Ficara tocado com a narrativa de Ish e Isha’h, me fez questões, perguntou:
para você a mulher, no relato bíblico, não é distinta do homem, é o próprio
homem? Sim, respondi, Eva não pode, não sabe, não tem matéria para ser
Eva fora de Adão. Seu mal e seu bem são o mal e o bem segundo Adão. Eva
é Adão mulher. E a operação divina é tão bem lograda que ela mesma, em si,
não sabe o que é, tem lineamentos maleáveis, não possui uma língua própria,
não tem uma lógica e um estilo próprios, forma-se como nada. Condição
terrível, comentou Nino, e eu, nervosa, o espiei com o rabo do olho para
entender se estava zombando de mim. Não, não estava. Ao contrário, me
elogiou muito sem a mínima sombra de ironia, citou alguns livros que eu não
conhecia sobre assuntos correlatos e reiterou que considerava o trabalho
pronto para publicação. Escutei sem demonstrar satisfação, apenas disse no
final: Mariarosa também gostou do texto. Nessa altura ele pediu informações
sobre minha cunhada, falou bem dela tanto como estudiosa quanto pela
dedicação a Franco, e seguiu para a biblioteca.
Quanto ao resto, saiu todas as manhãs com Pietro e voltou todas as
noites depois dele. Em raríssimas ocasiões saímos todos juntos. Uma vez,
por exemplo, quis nos levar ao cinema para ver uma comédia, escolhida
especialmente para as meninas. Nino se sentou ao lado de Pietro, eu, entre
minhas filhas. Quando me dei conta de que eu ria alto sempre que ele ria,
parei completamente de rir. Censurei-o brandamente porque durante o
intervalo quis comprar sorvete para Dede, Elsa e também para os adultos.
Para mim, não — disse —, obrigada. Brincou um pouco, falou que o sorvete
era bom e que eu não sabia o que estava perdendo, ofereceu para que eu o
provasse, provei. Enfim, pequenos gestos. Numa tarde fizemos um passeio
eu, ele, Dede e Elsa. Conversamos pouquíssimo, Nino deu corda sobretudo
às meninas. Mas o percurso ficou impresso na minha memória, eu poderia
mencionar cada rua, os locais onde paramos, cada esquina. Fazia calor, a
cidade estava abarrotada de gente. Ele cumprimentava passantes o tempo
todo, alguns o chamavam pelo sobrenome, fui apresentada a um ou outro com
elogios exagerados. Fiquei surpresa com sua notoriedade. Um deles,
historiador bastante conhecido, o cumprimentou pelas meninas como se
fossem nossas filhas. Não aconteceu mais nada além disso, exceto uma
mudança repentina e inexplicável das relações entre ele e Pietro.
108.

Tudo começou durante um jantar. Pietro falou com admiração de um


professor de Nápoles, na época muito estimado, e Nino disse: seria capaz de
apostar que você gostava daquele cretino. Meu marido se mostrou
desconcertado, esboçou um sorriso incerto, mas Nino aumentou a dose,
debochando de como ele se deixava enganar facilmente pelas aparências. A
isso se seguiu, já na manhã seguinte, outro pequeno incidente. Não me
lembro a propósito de que, Nino voltou a citar meu antigo desentendimento
com o professor de religião sobre o Espírito Santo. Pietro, que não conhecia
aquele episódio, quis saber mais, e Nino, virando-se não para ele, mas para
as meninas, passou imediatamente a contar o caso como se fosse um grande
feito de sua mãe quando criança.
Meu marido me elogiou e disse: você foi muito corajosa. Mas depois
explicou a Dede, com o tom que assumia quando diziam bobagens na
televisão e ele se sentia obrigado a esclarecer a filha sobre como as coisas
eram de fato, o que tinha acontecido aos doze apóstolos na manhã de
pentecostes: um rumor de vento, lampejos como de fogo, o dom de fazer-se
compreender por qualquer um, em qualquer língua. Então se dirigiu a mim e
a Nino falando-nos com arrebatamento da virtus que invadira os discípulos,
e citou o profeta Joel: derramarei meu espírito sobre toda a carne, e disse
que o Espírito Santo era um símbolo indispensável para refletir sobre como
as multidões descobrem um meio de se encontrar e se organizar em
comunidades. Nino o deixou falar, mas com uma expressão cada vez mais
irônica. Por fim exclamou: eu teria apostado que por trás de você se
escondia um padre. E para mim, divertido: você é mulher dele ou empregada
de padre? Pietro ficou vermelho, se atrapalhou. Desde sempre tinha uma
paixão por aqueles temas, senti que estava ficando incomodado. Balbuciou:
me desculpem, estou tomando seu tempo, vamos trabalhar.
Os momentos daquele tipo se multiplicaram, sem um motivo evidente.
Enquanto as relações entre mim e Nino permaneceram inalteradas, atentas à
forma, educadas e distantes, entre ele e Pietro as barreiras se romperam.
Fosse no café da manhã ou no jantar, o hóspede passou a se dirigir ao dono
da casa num crescendo de frases zombeteiras, quase no limite do ofensivo,
dessas que humilham, mas de um jeito amigável, com um sorriso nos lábios,
tanto que não é possível se rebelar senão se passando por pessoa suscetível.
Era uma entonação que eu conhecia, no bairro os mais espertos
frequentemente se valiam dela para subjugar os mais lentos e empurrá-los,
sem palavras, para o centro do escárnio. Pietro pareceu sobretudo
desorientado: estava bem com Nino, o apreciava, e por isso não reagia,
balançava a cabeça simulando um ar divertido, às vezes parecia perguntar-se
em que poderia ter errado e esperava que se voltasse aos velhos e bons tons
afetuosos. Mas Nino prosseguia implacável. Virava-se para mim, para as
meninas, redobrava a dose para obter nosso consenso. E as meninas
concordavam rindo, e discretamente eu também. Mas enquanto isso eu
pensava: por que está fazendo isso?, se Pietro levar a sério, as relações
serão cortadas. Mas Pietro não levava a sério, simplesmente não entendia, e
dia após dia as neuroses voltavam a atormentá-lo. O rosto demonstrava
cansaço, o desgaste daqueles anos reaparecia nos olhos em alarme e na
fronte marcada. Preciso fazer alguma coisa — pensava —, e o mais depressa
possível. Mas eu não fazia nada, aliás, tinha dificuldade de me livrar não da
admiração, mas da excitação — talvez, sim, fosse excitação — que me
invadia ao ver e ouvir como um Airota, um cultíssimo Airota, perdia terreno,
se confundia, respondia com piadinhas frouxas às agressões velozes,
brilhantes e até cruéis de Nino Sarratore, meu colega de escola, meu amigo,
nascido no mesmo bairro que eu.
109.

Dias antes de ele voltar a Nápoles, houve dois episódios particularmente


desagradáveis. Numa tarde Adele me telefonou, ela também muito contente
com meu trabalho. Disse que eu devia mandar o texto imediatamente para a
editora, era possível fazer um livrinho a ser publicado simultaneamente ao
lançamento na França ou, se não desse tempo, logo em seguida. Durante o
jantar mencionei o fato com um ar displicente, e Nino me fez muitos elogios,
dizendo às meninas:
“Vocês têm uma mãe excepcional”. Depois se dirigia a Pietro: “Você
leu o texto?”.
“Não tive tempo.”
“Seria melhor não ler.”
“Por quê?”
“Não é coisa para você.”
“Como assim?”
“É muito inteligente.”
“O que você quer dizer com isso?”
“Que você é menos inteligente que Elena.”
E riu. Pietro não disse nada, Nino insistiu:
“Ficou ofendido?”
Queria que reagisse para humilhá-lo ainda mais. Mas Pietro se levantou
da mesa e disse:
“Licença, preciso trabalhar.”
Murmurei:
“Termine de comer.”
Ele não respondeu. Estávamos na sala de jantar, que era ampla. Por um
instante pareceu que realmente iria atravessá-la e se fechar no escritório. No
entanto deu meia-volta, sentou-se no sofá e ligou a televisão, aumentando
bastante o volume. O clima era intolerável. Em poucos dias tudo se
complicara. Me senti muito infeliz.
“Pode abaixar um pouco?”, pedi.
Respondeu simplesmente:
“Não.”
Nino deu uma risadinha, terminou de comer, me ajudou a tirar a mesa.
Na cozinha eu disse a ele:
“Por favor, o perdoe, Pietro trabalha demais e dorme pouco.”
Replicou com um ímpeto de raiva:
“Como você consegue suportá-lo?”
Olhei para a porta alarmada, ainda bem que o volume da tv continuava
alto.
“Eu gosto dele”, respondi. E, como insistisse em me ajudar a lavar os
pratos, acrescentei: “Vá, por favor, se não me complico”.
O outro episódio foi ainda pior, se bem que decisivo. Eu não sabia
mais o que ele realmente estava querendo: agora torcia para que aquele
período terminasse logo, queria retomar os hábitos familiares, acompanhar
de perto meu livrinho. Entretanto gostava de entrar no quarto de Nino de
manhã, arrumar a desordem que ele deixava, fazer sua cama, cozinhar
pensando que à noite jantaria conosco. E me angustiava o fato de que tudo
isso estivesse prestes a acabar. Em certas horas da tarde, me sentia louca.
Tinha a impressão de que a casa estivesse vazia apesar das meninas, eu
mesma me esvaziava, não sentia nenhum interesse pelo que havia escrito,
percebia a superficialidade, perdia confiança no entusiasmo de Mariarosa,
de Adele, da editora francesa, da italiana. Pensava: assim que ele for
embora, nada mais terá sentido.
Estava nesse estado — a vida me escapava com uma insuportável
sensação de perda — quando Pietro voltou particularmente soturno da
universidade. Estávamos esperando que ele chegasse para o jantar, Nino
tinha voltado uma meia hora antes, mas fora imediatamente sequestrado
pelas meninas. Perguntei-lhe com gentileza:
“Aconteceu alguma coisa?”
Esbravejou:
“Nunca mais me traga para casa gente de suas bandas.”
Fiquei gelada, pensei que se referisse a Nino. E também Nino, que
aparecera com Dede e Elsa em seus calcanhares, deve ter pensado a mesma
coisa, porque o olhou com um sorrisinho provocador, como se só estivesse
esperando aquela cena. Mas Pietro tinha outra coisa em mente. Disse com
seu tom desdenhoso, o tom que sabia usar bem quando se convencia de que
estavam em jogo princípios basilares e se sentia chamado a defendê-los:
“Hoje os policiais reapareceram e me citaram alguns nomes, me
mostraram umas fotos.”
Suspirei de alívio. Sabia que, depois de se recusar a retirar a queixa
contra o estudante que lhe apontara uma arma, o que mais lhe pesava não era
o desprezo de muitos jovens militantes e de não poucos professores, mas
sobretudo as visitas da polícia, que o tratava como um confidente. Estava
certa de que a causa de seu mau humor era aquela e o interrompi, irritada:
“Culpa sua. Você não devia ter agido daquele modo, eu lhe disse.
Agora vai ser difícil se livrar deles.”
Nino se intrometeu e perguntou a Pietro, sarcástico:
“Quem você denunciou?.
Pietro nem se virou para olhá-lo. Estava bravo comigo, era comigo que
queria brigar. Disse:
“Fiz o que era preciso na época e deveria ter feito o mesmo hoje. Mas
fiquei calado para não a envolver.”
Nesse ponto entendi que o problema não eram os policiais, mas o que
ficara sabendo por meio deles. Murmurei:
“O que é que eu tenho a ver com isso?”
Sua voz se alterou:
“Pasquale e Nadia não são seus amigos?”
Repeti bobamente:
“Pasquale e Nadia?”
“Os policiais me mostraram fotos de terroristas, e eles apareciam em
algumas.”
Não reagi, fiquei sem palavras. Então o que eu tinha imaginado era
verdade, Pietro estava de fato me confirmando. Em poucos segundos
voltaram as imagens de Pasquale descarregando a pistola em Gino, atirando
nas pernas de Filippo, enquanto Nadia — Nadia, não Lila — subia as
escadas, batia na porta de Bruno e lhe disparava na cara. Terrível. No
entanto de repente o tom de Pietro me pareceu fora de lugar, como se
estivesse usando a notícia para me pôr em dificuldade aos olhos de Nino,
para acender uma discussão que eu não queria enfrentar. De fato, logo em
seguida Nino tornou a se intrometer e continuou em tom de deboche:
“Então você é um informante da polícia? É isso que você faz? Denuncia
os companheiros? E seu pai sabe disso? Sua mãe? Sua irmã?”
Balbuciei sem ânimo: vamos jantar. Mas logo em seguida disse a Nino,
minimizando com gentileza, até para evitar que ele continuasse alfinetando
Pietro ao mencionar sua família de origem: pare com isso, informante coisa
nenhuma. Depois aludi confusamente ao fato de que, tempos atrás, recebera
uma visita de Pasquale Peluso, não sei se ele se lembrava, um jovem do
bairro, um bom rapaz que, pelos acasos da vida, se juntara a Nadia, dela
você se lembra, naturalmente, a filha de Galiani, ela mesma. E nessa altura
parei, porque Nino já estava rindo. Exclamou: Nadia, oh, meu Deus, Nadia,
e se virou de novo para Pietro, ainda mais sarcástico: somente você e meia
dúzia de policiais obtusos podiam pensar que Nadia Galiani estivesse na
luta armada, coisa de louco. Nadia, a pessoa melhor e mais gentil que já
conheci, a que ponto chegamos na Itália, vamos comer, vamos, por enquanto
a defesa da ordem constituída pode prescindir de você. Então se encaminhou
para a mesa chamando Dede e Elsa, e eu comecei a servir os pratos, certa de
que Pietro estava vindo.
Mas ele não apareceu. Pensei que tivesse ido lavar as mãos, que
estivesse dando um tempo para se acalmar, e me sentei em meu lugar. Estava
agitada, queria passar uma noite boa e tranquila, um final ameno para aquela
convivência. Mas ele não chegava, as meninas já estavam comendo. Agora
até Nino parecia perplexo.
“Pode começar”, disse a ele, “vai ficar frio.”
“Só se você também comer.”
Vacilei. Talvez devesse ir ver como meu marido estava, o que estava
fazendo, se estava mais calmo. Mas não tinha vontade, estava aborrecida
com o comportamento dele. Por que não guardara para si aquela incursão
dos policiais? Geralmente era o que fazia com tudo o que lhe dizia respeito,
nunca me contava nada. Por que me falara daquele modo na presença de
Nino: nunca mais me traga para casa gente de suas bandas. Qual a
urgência de tornar pública aquela questão? Podia esperar, podia desabafar
mais tarde, quando estivéssemos no quarto de dormir. Estava bravo comigo,
esse era o ponto. Queria estragar minha noite, estava se lixando para tudo o
que eu fazia e desejava.
Comecei a comer. Comemos nós quatro, o primeiro, o segundo prato e
até a sobremesa que eu tinha preparado. Nem sinal de Pietro. Naquela altura
fiquei furiosa. Pietro não queria jantar? Muito bem, não jantasse,
evidentemente estava sem fome. Queria que o deixassem em paz? Ótimo, a
casa era grande, sem ele não haveria tensões. De todo modo, agora parecia
claro que o problema não era que duas pessoas que vieram uma única vez à
nossa casa estivessem entre as suspeitas de participação em um grupo
armado. O problema era que ele não tinha uma inteligência suficientemente
rápida, não sabia dar conta das escaramuças entre homens, sofria com isso e
pretendia descontar em mim. Mas que me importa você e sua mesquinharia?
Tiro a mesa depois, falei em voz alta como se desse uma ordem a mim
mesma, a meu estado de confusão. Então liguei a tv e me sentei no sofá com
Nino e as meninas.
Passou um longo tempo, enervante. Eu sentia que Nino estava ao mesmo
tempo incomodado e achando divertido. Vou chamar papai, disse Dede, que,
de barriga cheia, agora estava preocupada com Pietro. Vá, reforcei. Voltou
quase na ponta dos pés e sussurrou em meu ouvido: deitou na cama, está
dormindo. Nino ouviu mesmo assim e disse:
“Amanhã vou embora.”
“Já terminou o trabalho?”
“Não.”
“Fique mais um pouco.”
“Não posso.”
“Pietro é uma boa pessoa.”
“Você ainda o defende?”
Defendê-lo de quê, de quem? Não entendi, e quase me enfureci com ele
também.
110.

As meninas dormiram na frente da televisão, e as levei para a cama. Quando


voltei, Nino não estava mais lá, tinha se fechado em seu quarto. Deprimida,
tirei a mesa, lavei os pratos. Que tolice pedir que ficasse mais um pouco, era
melhor que partisse. Por outro lado, como suportar a esqualidez sem ele?
Queria que fosse embora pelo menos com a promessa de que mais cedo ou
mais tarde voltaria. Desejava que dormisse de novo em minha casa, que
tomássemos café da manhã juntos e, à noite, jantássemos na mesma mesa,
que falasse disso e daquilo com seu tom divertido, que me ouvisse quando
eu quisesse dar forma a uma ideia, que fosse sempre respeitoso diante de
cada frase minha, que nunca recorresse à ironia e ao sarcasmo comigo.
Entretanto tive de admitir que, se a situação se deteriorara rapidamente,
tornando a convivência impossível, a culpa era dele. Pietro se afeiçoara a
ele. Tinha prazer em vê-lo por perto, prezava a amizade que surgira entre os
dois. Por que Nino sentiu a necessidade de machucá-lo, de humilhá-lo, de
lhe retirar autoridade? Tirei a maquiagem, me lavei, pus a camisola. Fechei
a porta de casa com chave e corrente, desliguei o gás, baixei todas as
persianas, apaguei as luzes. Passei para ver como as meninas estavam. Torci
para que Pietro não estivesse fingindo que dormia, que não estivesse me
esperando para brigar. Dei uma olhada em sua mesinha de cabeceira, ele
tinha tomado o tranquilizante, estava apagado. Senti ternura por ele, beijei
seu rosto. Que pessoa imprevisível: inteligentíssimo e estúpido, sensível e
obtuso, corajoso e vil, cultíssimo e ignorante, bem-educado e rude. Um
Airota que não deu certo, que tropeçara no meio do caminho. Nino, tão
seguro de si, tão determinado, teria sido capaz de recolocá-lo em
movimento, de ajudá-lo a melhorar? Tornei a me perguntar por que aquela
amizade nascente havia se transformado em hostilidade de mão única. E
dessa vez tive a impressão de entender. Nino quis me ajudar a ver meu
marido tal como ele realmente era. Estava convencido de que eu tinha uma
visão idealizada dele, à qual me submetera tanto no plano sentimental quanto
no intelectual. Tinha desejado me revelar a inconsistência que havia por trás
do jovem titular de cátedra, autor de uma tese que depois se tornara um livro
apreciadíssimo, o estudioso que há tempos trabalhava numa nova publicação
que deveria consolidar seu prestígio. Era como se naqueles últimos dias não
tivesse feito outra coisa senão me gritar: você vive com um homem banal,
teve duas filhas com uma nulidade. Seu plano era desvalorizá-lo para me
libertar, restituir-me a mim mesma e demoli-lo. Porém, ao fazer isso, se dava
conta de que se propunha a mim — querendo ou não — como um modelo
alternativo de virilidade?
Aquela pergunta me deixou com raiva. Nino tinha sido imprudente.
Tinha provocado desordem numa situação que, para mim, constituía o único
equilíbrio possível. Por que causar confusão sem sequer me consultar?
Quem lhe havia pedido que me abrisse os olhos, que me salvasse? Com base
em que havia deduzido que eu precisava disso? Pensou que podia fazer o
que bem quisesse com minha vida de casada, com minha responsabilidade
de mãe? Com que propósito? Onde achava que isso ia parar? É ele — disse
a mim mesma — quem precisa clarear as ideias. Não tem interesse por nossa
amizade? As férias estão próximas. Eu vou para Viareggio, ele disse que vai
para a casa dos sogros em Capri. Precisamos esperar o final das férias para
nos encontrarmos? E por quê? Já agora, durante o verão, seria possível
consolidar a relação entre nossas famílias. Eu poderia ligar para Eleonora,
convidá-la com o marido e o filho a passar uns dias com a gente em
Viareggio. E gostaria também de ser convidada a Capri, onde nunca estive,
com Dede, Elsa e Pietro. Mas, se nem mesmo isso acontecer, por que não
nos escrevemos, trocamos ideias, indicações de livros, falamos de nossos
projetos de trabalho?
Não consegui me acalmar. Nino havia errado. Se de fato tinha
consideração por mim, era preciso que reconduzisse tudo ao ponto de
partida. Ele devia reconquistar a simpatia e a amizade de Pietro, meu marido
não esperava outra coisa. Realmente supunha me fazer bem provocando
aquelas tensões? Não, não, eu tinha de falar com ele, dizer que era uma
tolice tratar Pietro daquela maneira. Levantei-me da cama com cautela, saí
do quarto. Atravessei o corredor de pés descalços, bati na porta de Nino.
Esperei um instante, entrei. O quarto estava escuro.
“Você se decidiu”, escutei sua voz.
Estremeci, não me perguntei se decidiu a quê. Soube apenas que ele
tinha razão, eu estava decidida. Tirei depressa a camisola e me deitei ao
lado dele, apesar do calor.
111.

Voltei para minha cama por volta das quatro da manhã. Meu marido teve um
sobressalto e murmurou dormindo: o que foi? Respondi de modo
peremptório: durma — e ele se aquietou. Eu estava atordoada. Feliz com o
que havia acontecido, mas, embora me esforçasse, não conseguia ter
consciência daquilo a partir de dentro de minha condição, de dentro do que
eu era naquela casa, em Florença. Tinha a impressão de que tudo entre mim e
Nino houvesse ocorrido no bairro, enquanto os pais dele se mudavam e
Melina lançava objetos da janela e berrava destroçada pelo sofrimento; ou
em Ischia, quando tínhamos passeado de mãos dadas; ou na noite em Milão,
após o encontro na livraria, quando ele me defendeu contra aquele crítico
raivoso. Por um momento isso me deu um senso de irresponsabilidade,
talvez até de inocência, como se a amiga de Lila, a esposa de Pietro, a mãe
de Dede e de Elsa não tivessem nada a ver com a menina-garota-mulher que
amava Nino e finalmente o conquistara. Sentia os vestígios de suas mãos e
dos beijos em cada parte do corpo. A ânsia de gozo não queria sossegar, os
pensamentos eram: o dia ainda está longe, o que estou fazendo aqui, vou
voltar para ele, mais uma vez.
Depois adormeci. Reabri os olhos com um calafrio, havia luz no quarto.
O que eu tinha feito? Justo aqui, em minha casa, que cretinice. Agora Pietro
acordaria. Agora as meninas acordariam. Eu precisava preparar o café da
manhã. Nino se despediria de nós e voltaria a Nápoles, para a mulher e o
filho. E eu voltaria a ser eu.
Levantei, tomei uma ducha demorada, enxuguei os cabelos, me maquiei
com apuro, pus um vestido de festa como se fosse sair. Oh, claro, eu e Nino
tínhamos jurado no coração da noite que nunca mais nos perderíamos de
vista, que acharíamos um jeito de continuar nos amando. Mas como? E
quando? Por que ele me procuraria de novo? Tudo o que podia acontecer
entre nós já tinha acontecido, o resto era só complicação. Chega, pus a mesa
com cuidado para o café da manhã. Queria deixar para ele uma bela imagem
daquela sua permanência, da casa, dos objetos cotidianos, de mim.
Pietro apareceu descabelado, de pijama.
“Aonde você vai?”
“A lugar nenhum.”
Me olhou perplexo, nunca acontecia de eu estar tão bem-arrumada logo
depois de acordar:
“Você está muito bem.”
“Não por mérito seu.”
Foi até a janela, olhou para fora e então balbuciou:
“Eu estava muito cansado ontem à noite.”
“E muito mal-educado também.”
“Vou pedir desculpas a ele.”
“Devia pedir desculpas primeiramente a mim.”
“Me desculpe.”
“Hoje ele vai embora.”
Dede apareceu de pés descalços. Fui buscar suas pantufas e acordei
Elsa, que, como sempre, ainda de olhos fechados, me encheu de beijos. Que
cheiro gostoso ela tinha, como era macia. Sim, disse a mim mesma,
aconteceu. Ainda bem, podia não acontecer nunca. Mas agora preciso me
impor uma disciplina. Telefonar a Mariarosa para saber da França, falar
com Adele, ir pessoalmente à editora para tentar entender o que pretendem
fazer com meu livrinho, se acreditam nele de verdade ou querem apenas
agradar minha sogra. Depois ouvi rumores no corredor. Era Nino, fui
arrebatada pelos sinais de sua presença, ainda estava ali, só por mais um
pouco. Livrei-me do abraço da menina e disse: desculpe, Elsa, mamãe volta
logo — e saí depressa.
Nino estava saindo sonolento do quarto, o empurrei para o banheiro,
tranquei a porta. Começamos a nos beijar, perdi de novo a consciência do
lugar e da hora. Eu mesma me espantei com a intensidade de meu desejo, era
boa em esconder as coisas de mim. Nos agarramos com uma fúria que eu
desconhecia, como se os corpos se chocassem um contra o outro com a
intenção de se arrebentar. Então o prazer era isso: quebrar-se, misturar-se,
não saber mais o que era meu e o que era dele. Mesmo se Pietro tivesse
aparecido, mesmo se as meninas surgissem ali, não seriam capazes de nos
reconhecer. Sussurrei em sua boca.
“Fique mais um tempo.”
“Não posso.”
“Então volte, jure que vai voltar.”
“Juro.”
“E me ligue.”
“Sim.”
“Diga que não vai se esquecer de mim, que não vai me deixar, diga que
me ama.”
“Te amo.”
“Repita.”
“Te amo.”
“Jure que não é uma mentira.”
“Juro.”
112.

Foi embora uma hora depois, mesmo Pietro insistindo com um tom meio
mal-humorado para que ficasse, mesmo com o choro de Dede. Meu marido
foi tomar banho e reapareceu dali a pouco pronto para sair. Disse-me de
olhos baixos: não falei aos policiais que Pasquale e Nadia estiveram em
nossa casa; e não fiz isso para proteger você, mas porque acho que agora
estão confundindo a discordância com o crime. Não entendi imediatamente
sobre o que estava falando. Pasquale e Nadia tinham saído completamente
de minha cabeça, e foi difícil assimilá-los de novo. Pietro esperou alguns
segundos em silêncio. Talvez quisesse que eu mostrasse concordância com
aquela sua consideração, queria enfrentar o dia de calor e de provas sabendo
que tínhamos feito as pazes, que pelo menos por uma vez estávamos
pensando do mesmo modo. Mas me limitei a um aceno distraído. Que me
importavam agora as opiniões políticas dele, o caso de Nadia e Pasquale, a
morte de Ulrike Meinhof, o nascimento da república socialista do Vietnã, o
avanço eleitoral do partido comunista? O mundo se retraíra. Eu me sentia
abismada dentro de mim mesma, dentro de minha carne, que me parecia não
só o único habitáculo possível, mas também a única matéria pela qual valia
a pena esforçar-se. Foi um alívio quando ele, a testemunha da ordem e da
desordem, fechou a porta atrás de si. Não suportava estar sob seu olhar,
temia que de repente se tornassem visíveis os lábios doloridos pelos beijos,
o cansaço da noite, o corpo hipersensível, como escaldado.
Assim que fiquei sozinha, voltou-me a certeza de que nunca mais veria
e ouviria Nino. E a ela veio se juntar outra: não podia mais viver com
Pietro, me parecia insuportável continuarmos dormindo na mesma cama. O
que fazer? Vou deixá-lo, pensei. Vou embora com as meninas. Mas como eu
deveria proceder, ir embora e pronto? Não sabia nada sobre separações e
divórcios, qual era a praxe, quanto tempo era preciso para retornar à
liberdade. E não conhecia nenhum casal que tivesse tomado esse rumo. O
que acontecia com os filhos? Como era o acordo para a manutenção deles?
Podia levar as meninas para outra cidade, Nápoles, por exemplo? E por que
para Nápoles e não, digamos, para Milão? Se eu deixar Pietro, disse a mim
mesma, mais cedo ou mais tarde vou precisar de um trabalho. Os tempos
estão feios, a economia vai mal, e Milão para mim é o lugar certo, é lá que
está a editora. Mas e Dede, e Elsa? E a relação delas com o pai? Então devo
continuar em Florença? Nunca, nunca. Melhor Milão, Pietro iria ver as filhas
todas as vezes que pudesse e quisesse. Sim. No entanto minha cabeça me
levava para Nápoles. Não ao bairro, nunca voltaria para lá. Imaginei ir
morar na Nápoles deslumbrante onde eu nunca tinha vivido, a poucos passos
da casa de Nino, em via Tasso. Avistá-lo da janela enquanto ia ou voltava da
faculdade, encontrá-lo na rua, conversar com ele todos os dias. Sem o
incomodar. Sem lhe causar problemas com a família, ao contrário,
intensificando a relação de amizade com Eleonora. Me bastaria aquela
proximidade. Portanto Nápoles, e não Milão. De resto, separando-me de
Pietro, Milão já não seria tão hospitaleira. As relações com Mariarosa se
esfriariam, e com Adele, também. Não interrompidas, não, eram pessoas
civilizadas, mas continuavam sendo a mãe e a irmã de Pietro, mesmo não
tendo muito apreço por ele. Sem falar de Guido, o pai. Não, com certeza não
poderia mais contar do mesmo modo com os Airota, talvez nem com a
editora. Poderia receber alguma ajuda somente de Nino. Ele era bem
relacionado em todo lugar, com certeza encontraria uma maneira de me
apoiar. A menos que minha presença constante não importunasse sua mulher,
não o importunasse. Para ele eu era uma mulher casada que vivia em
Florença com a família. Portanto distante de Nápoles, e não livre. Romper às
pressas meu casamento, correr atrás dele, ir morar imediatamente a poucos
passos de sua casa, ufa. Ele me acharia uma doida, faria o papel de uma
mulherzinha desmiolada, o tipo de mulher dependente do homem que, aliás,
deixava as amigas de Mariarosa horrorizadas. E acima de tudo inadequada
para ele. Tinha amado muitas mulheres, passava de uma cama a outra,
semeava filhos sem compromisso, considerava o casamento uma convenção
necessária, mas que não podia enjaular os desejos. Eu cairia no ridículo.
Tinha prescindindo de tanta coisa em minha vida, também podia prescindir
de Nino. Seguiria meu caminho com minhas filhas.
Mas o telefone tocou, e corri para atender. Era ele, ao fundo se ouvia
um autofalante, vozerio, barulho, a voz chegava com dificuldade. Acabara de
chegar a Nápoles, estava ligando da estação. Apenas um oi, me disse, queria
saber como você está. Estou bem, respondi. O que está fazendo? Me
preparando para almoçar com as meninas. Pietro está? Não. Você gostou de
fazer amor comigo? Sim. Muito? Muitíssimo. Minhas fichas acabaram. Vá,
tchau, obrigada pelo telefonema. Nos ouvimos. Quando você quiser. Fiquei
contente comigo, com meu autocontrole. Mantive-o a uma distância correta,
disse a mim mesma, a um telefonema de cortesia respondi com cortesia. Mas
três horas depois ele tornou a ligar, de novo de um telefone público. Estava
nervoso. Por que você está tão fria? Não estou fria. Hoje de manhã você quis
que eu dissesse que te amava, e eu disse, embora por princípio eu não diga
isso a ninguém, nem a minha mulher. Fico contente. E você me ama? Amo.
Vai dormir com ele esta noite? E com quem você quer que eu durma? Não
suporto isso. Você não dorme com sua mulher? Não é a mesma coisa. Por
quê? Não estou nem aí para Eleonora. Então volte para cá. Como faço isso?
Se separe. E depois? Começou a ligar obsessivamente. Adorava aqueles
toques do telefone, especialmente quando nos despedíamos e parecia que só
nos falaríamos sabe-se lá quando, mas ele tornava a ligar meia hora depois,
às vezes até dez minutos depois, e recomeçava a se agitar, me perguntava se
eu já tinha feito amor com Pietro depois que estivemos juntos, eu lhe dizia
que não, ele me fazia jurar, jurava, perguntava a ele se tinha feito com a
mulher, gritava que não, também o fazia jurar, e era um juramento após o
outro, e uma avalanche de promessas, sobretudo a promessa solene de
permanecer em casa, de ficar comunicável. Queria que eu esperasse seus
telefonemas, tanto que, se por acaso eu saía — precisava pelo menos fazer
as compras —, ele fazia o telefone chamar e chamar no vazio, o fazia chamar
até que eu voltasse e deixasse as meninas, deixasse as sacolas, não fechava
nem mesmo a porta das escadas, e corria para atender. Ele estava do outro
lado, desesperado: achei que você nunca mais iria atender. Depois
acrescentava com alívio: mas eu continuaria ligando para sempre, na sua
falta eu passaria a amar o som do telefone, este som no vazio me parecia a
única coisa que me sobrara. E evocava minuciosamente nossa noite — se
lembra disso, se lembra daquilo —, a evocava continuamente. Listava tudo o
que queria fazer a meu lado, não só sexo: um passeio, uma viagem, ir ao
cinema, a um restaurante, conversar sobre o trabalho que estava fazendo,
ouvir como estava indo meu livrinho. Então eu perdia o controle. Murmurava
sim, sim, sim, tudo, tudo o que você quiser, e gritava: estou para sair de
férias, daqui a uma semana vou estar na praia com as meninas e Pietro, quase
como se tratasse de uma deportação. E ele: Eleonora vai para Capri daqui a
três dias, assim que ela for eu irei a Florença nem que seja por uma hora.
Enquanto isso Elsa me olhava e perguntava: mamãe, com quem você está
falando sem parar, venha brincar. Um dia Dede lhe disse: deixe ela em paz,
está falando com o namorado.
113.

Nino viajou de noite e chegou a Nápoles por volta das nove da manhã.
Telefonou, Pietro atendeu, desligou. Chamou de novo, corri para atender.
Tinha estacionado debaixo de minha casa. Desça. Não posso. Desça logo, se
não eu subo. Faltavam poucos dias para minha ida a Viareggio, Pietro já
estava em férias. Deixei as meninas com ele, disse que precisava fazer
compras urgentes para a praia. Corri para Nino.
Aquele reencontro foi uma péssima ideia. Descobrimos que, em vez de
atenuar o desejo, ele se alastrara como um incêndio e demandava mil gestos
com uma urgência imprudente. Se à distância, por telefone, as palavras nos
permitiam fantasiar, construindo perspectivas animadoras, mas também nos
impunham uma ordem, controlando-nos, assustando-nos, aquele nosso
reencontro, fechados no espaço mínimo do automóvel, alheios ao calor
terrível, deu concretude ao nosso delírio, conferiu-lhe a marca da
inevitabilidade, fez dele mais uma peça na grande estação subversiva em
curso, o tornou coerente com as formas de realismo da época, as que
pretendiam o impossível.
“Não volte pra casa.”
“E as meninas? E Pietro?”
“E a gente?”
Antes de voltar para Nápoles, disse que não sabia se conseguiria
passar todo o mês de agosto sem me ver. Nos despedimos em desespero. Eu
não tinha telefone na casa que havíamos alugado em Viareggio, ele me
passou o número da casa de Capri, me fez prometer que ligaria todos os
dias.
“E se sua mulher atender?”
“Desligue.”
“Se você estiver na praia?”
“Preciso trabalhar, não vou à praia quase nunca.”
Em nossa fantasia, telefonar devia servir também para fixar uma data,
antes ou depois do feriado de Ferragosto, e acharmos um jeito de nos
encontrarmos pelo menos uma vez. Ele pressionava para que eu inventasse
uma desculpa qualquer e voltasse a Florença. Ele faria o mesmo com
Eleonora e viria me ver. A gente se encontraria em minha casa, jantaríamos
juntos, dormiríamos juntos. Outra loucura. Eu o beijei, o acariciei, o mordi e
me arranquei dele num estado de felicidade infeliz. Corri para comprar ao
acaso toalhas, dois calções para Pietro, balde e pás para Elsa, um maiozinho
azul para Dede. Naquele período ela adorava o azul.
114.

Saímos de férias. Dei pouca atenção às meninas, deixei-as quase o tempo


todo com o pai. Corria constantemente em busca de um telefone, pelo menos
para dizer a Nino que o amava. Eleonora só atendeu umas duas vezes, e eu
desliguei. Mas bastou sua voz para me aborrecer, achei injusto que ele
estivesse dia e noite a seu lado; o que ela tinha a ver com ele, com a gente?
Aquela irritação me ajudou a vencer o medo, o plano de nos encontrarmos
em Florença me pareceu cada vez mais viável. Disse a Pietro — e era
verdade — que enquanto a editora italiana, com toda boa vontade, não
conseguiria publicar meu livro antes de janeiro, meu texto sairia na França já
no final de outubro. Então eu precisava tirar algumas dúvidas com urgência,
queria consultar dois livros, precisava voltar para casa.
“Eu mesmo vou buscá-los”, se ofereceu ele.
“Fique um pouco com as meninas, você nunca está com elas.”
“Eu gosto de dirigir, você, não.”
“Pode me deixar um pouco em paz? Posso ter um dia de liberdade? As
empregadas têm, por que eu não?”
Saí de carro de manhã cedo, o céu estava estriado de branco, da janela
vinha um vento fresco que trazia os cheiros do verão. Entrei na casa vazia
com o coração aos pulos. Tirei a roupa, tomei banho, me olhei no espelho
perturbada com a clareza branca da barriga e dos seios, me vesti, me despi,
tornei a me vestir até me sentir bonita.
Por volta das três da tarde Nino chegou, não sei que lorota tinha
inventado para a mulher. Fizemos amor até a noite. Pela primeira vez ele
teve a oportunidade de se dedicar ao meu corpo, e eu não estava preparada
para tanta devoção e idolatria. Tentei corresponder à altura, queria a todo
custo mostrar que eu era boa. Porém, quando o vi exausto e feliz, algo de
repente estragou meus pensamentos. Para mim, aquilo era uma experiência
única; para ele, uma repetição. Amava as mulheres, adorava seus corpos
como fetiches. Não pensei propriamente nas mulheres de que tive notícias,
Nadia, Silvia, Mariarosa ou mesmo Eleonora. Em vez disso, pensei naquela
que eu conhecia bem, nas loucuras que tinha feito por Lila, no frenesi que a
levara à beira da autodestruição. Lembrei-me de como ela cedera àquela
paixão e se agarrara a ele, aos livros complicados que ele lia, a seus
pensamentos, a suas ambições, para corroborar a si mesma e se dar uma
possibilidade de mudança. Lembrei-me de como estava no fundo do poço
quando Nino a abandonara. Ele só sabia amar e induzir a ser amado daquela
maneira excessiva, não conhecia outros modos? Aquele nosso amor louco
era a reprodução de outros amores loucos? Aquele querer sem se preocupar
com nada recorria a um protótipo, ao modo como ele havia desejado Lila?
Até aquela visita à minha casa e de Pietro se parecia a quando Lila o levara
para a casa dela e de Stefano? Não estávamos fazendo, mas refazendo?
Me retraí, e ele perguntou: o que foi? Nada, não sabia o que dizer, não
eram pensamentos dizíveis. Estreitei-me a ele, o beijei e enquanto isso tentei
tirar da cabeça a sensação de seu amor por Lila. Mas Nino insistiu e por fim
não consegui evitar, me agarrei a um eco relativamente recente — sim, isso
eu talvez possa falar — e lhe perguntei com um ar de falso deboche:
“Eu tenho algum problema com o sexo, como Lina?”
Mudou de expressão. Em seus olhos, no rosto, apareceu uma pessoa
diferente, um estranho que me assustou. Antes mesmo que respondesse, me
apressei em sussurrar:
“Estou brincado, se não quiser responder, não responda.”
“Não entendi o que você disse.”
“Apenas citei palavras suas.”
“Eu nunca disse uma frase desse tipo.”
“Mentiroso, você disse isso em Milão, quando estávamos indo ao
restaurante.”
“Não é verdade; de todo modo, não quero falar de Lina.”
“Por quê?”
Não respondeu. Fiquei irritada, virei para o outro lado. Quando me
roçou as costas com os dedos, sibilei: me deixe em paz. Ficamos imóveis
por um tempo, sem dizer nada. Depois ele voltou a me fazer carinhos, me
beijou de leve um ombro, e eu cedi. Sim, admiti intimamente, ele tem razão,
não devo nunca mais interrogá-lo sobre Lila.
À noite o telefone tocou, com certeza era Pietro com as meninas. Fiz
sinal de silêncio a Nino, saí da cama e corri para atender. Preparei na
garganta uma voz afetuosa, tranquilizadora, mas sem me dar conta falei muito
baixo, um murmúrio pouco natural, não queria que Nino escutasse e depois
me zombasse ou até se aborrecesse.
“Por que você está sussurrando assim?”, perguntou Pietro. “Está tudo
bem?”
Imediatamente levantei a voz, que dessa vez saiu alta demais. Procurei
palavras gentis, fiz muitas gracinhas com Elsa, recomendei a Dede que não
complicasse a vida do pai e que escovasse os dentes antes de dormir.
Quando voltei para a cama, Nino disse:
“Que excelente esposa, que excelente mãezinha.”
Respondi:
“Você não fica atrás.”
Esperei que a tensão tornasse a passar, que o eco das vozes de meu
marido e das meninas abrandasse. Tomamos uma ducha juntos com grande
alegria, uma experiência nova, gostei de lavá-lo e de ser lavada. Depois me
preparei para sair. Tornei a ficar bonita para ele, mas dessa vez sob seus
olhos e de repente sem ansiedade. Parou para me olhar encantado, enquanto
eu provava as roupas à procura da mais certa, enquanto me maquiava, e de
tanto em tanto — embora eu lhe dissesse brincando: não ouse, isso me faz
cócegas, está acabando com minha maquiagem, vou ter de recomeçar,
cuidado para não rasgar o vestido, me deixe — ele vinha por trás, me
beijava na nuca, enfiava as mãos em meu decote e por baixo do vestido.
Obriguei-o a sair de casa sozinho, disse que me esperasse no carro.
Embora o prédio estivesse semideserto, porque todos tinham saído de férias,
mesmo assim temia que alguém nos visse juntos. Fomos jantar, comemos
muito, falamos muito, bebemos muitíssimo. Na volta fomos de novo para a
cama, mas não dormimos em nenhum momento. Ele me disse:
“Em outubro vou a Montpellier por cinco dias, tenho um congresso.”
“Divirta-se. Vai com sua mulher?”
“Quero ir com você.”
“Impossível.”
“Por quê?”
“Dede tem seis anos, Elsa, três. Preciso pensar nelas.”
Começamos a discutir sobre nossa situação, pela primeira vez
pronunciamos palavras como casados, filhos. Passamos do desespero ao
sexo, do sexo ao desespero. Por fim sussurrei:
“Não devemos mais nos ver.”
“Se para você é possível, bem. Para mim não é.”
“Conversa fiada. Você me conhece há décadas e no entanto teve uma
vida plena sem mim. Vai me esquecer em pouco tempo.”
“Prometa que continuará me ligando todos os dias.”
“Não, não vou mais telefonar.”
“Se você parar, vou ficar maluco.”
“Eu vou ficar maluca se continuar pensando em você.”
Exploramos com uma espécie de gozo masoquista o beco sem saída em
que nos sentíamos e, exasperados por nossa própria somatória de
obstáculos, acabamos brigando. Ele foi embora nervosíssimo às seis da
manhã. Eu arrumei a casa, chorei longamente, dirigi por todo o trajeto
torcendo para não chegar nunca a Viareggio. No meio do caminho me dei
conta de que não tinha pegado um único livro capaz de justificar minha
viagem. Pensei: melhor assim.
115.

Minha volta foi muito comemorada por Elsa, que falou séria: papai não sabe
brincar direito. Dede defendeu Pietro, exclamou que a irmã era pequena,
idiota e estragava todas as brincadeiras. Pietro me examinou de mau humor.
“Você não dormiu.”
“Dormi mal.”
“Encontrou os livros?”
“Sim.”
“E onde eles estão?”
“Onde você queria que estivessem? Em casa. Chequei o que precisava
checar e pronto.”
“Por que essa irritação?”
“Porque você me irrita.”
“Ligamos para você de novo, ontem à noite. Elsa queria lhe dizer boa
noite, mas você não estava.”
“Estava calor, fui dar um passeio.”
“Sozinha?”
“E com quem?”
“Dede falou que você tem um namorado.”
“Dede tem uma forte ligação com você e morre de vontade de me
substituir.”
“Ou então está vendo e ouvindo coisas que eu não vejo e não ouço.”
“O que você está querendo dizer?”
“Isso que eu disse.”
“Pietro, vamos tentar ser claros: entre suas tantas doenças, agora vamos
ter de acrescentar o ciúme também?”
“Não sou ciumento.”
“Espero que sim. Porque do contrário já vou logo dizendo: o ciúme é
demais, assim eu não aguento.”
Nos dias seguintes, as discussões como aquela se multiplicaram. Eu o
mantinha sob controle, o recriminava e ao mesmo tempo me desprezava. Mas
também sentia raiva: o que se pretendia de mim, o que eu devia fazer? Eu
amava Nino, sempre o amei: como conseguiria arrancá-lo do peito, da
cabeça, da barriga, agora que ele também me queria? Desde pequena eu me
construíra como um perfeito mecanismo autorrepressivo. Nenhum de meus
verdadeiros desejos havia prevalecido, sempre tinha achado um meio de
canalizar qualquer aspiração. Agora chega, dizia a mim mesma, que tudo se
exploda, eu em primeiro lugar.
No entanto oscilava. Por uns dias não telefonei a Nino, justo como
sabiamente lhe havia anunciado em Florença. Mas depois, de uma hora para
outra, comecei a ligar até três ou quatro vezes ao dia, sem nenhuma
prudência. Estava me lixando até para Dede, parada a poucos passos da
cabine telefônica. Discutia com ele no calor insuportável daquela gaiola ao
sol e de vez em quando, molhada de suor, exasperada pelo olhar espião de
minha filha, escancarava a porta de vidro e gritava: o que você está fazendo
aí feito um poste, já lhe disse para ficar de olho em sua irmã. Meus
pensamentos agora estavam concentrados no congresso de Montpellier. Nino
me pressionava, fazia disso cada vez mais uma espécie de prova definitiva
da autenticidade de meus sentimentos, de modo que passávamos de brigas
violentas a declarações de afeto sem limites, de longas e caras discussões
por interurbano à urgência de derramar num rio de palavras incandescentes
nosso desejo. Numa tarde, extenuada, com Dede e Elsa resmungando do lado
de fora da cabine mamãe, ande logo, a gente não aguenta mais, disse a ele:
“Só há uma maneira de ir com você a Montpellier.”
“Qual?”
“Contar tudo a Pietro.”
Houve um longo silêncio.
“Você está realmente pronta para fazer isso?”
“Sim, mas com uma condição: que você conte tudo a Eleonora.”
Outro longo silêncio. Nino murmurou:
“Quer que eu faça mal a Eleonora e ao menino?”
“Quero. Não vou fazer a Pietro e a minhas filhas? Tomar decisões
significa fazer mal.”
“Albertino é muito pequeno.”
“Elsa também é. E para Dede vai ser insuportável.”
“Vamos fazer isso depois de Montpellier.”
“Nino, não brinque comigo.”
“Não estou brincando.”
“Então, se não está, comporte-se como deve: você fala com sua mulher
e eu falo com meu marido. Agora. Esta noite.”
“Me dê um pouco de tempo, não é algo fácil.”
“E para mim é?”
Tergiversou, tentou me explicar. Disse que Eleonora era uma mulher
muito frágil. Disse que ela organizara a vida em torno dele e do menino.
Disse que quando era novinha tinha tentado se matar duas vezes. Mas não
parou por aí, senti que estava se obrigando a uma honestidade absoluta. De
frase em frase, com a lucidez que lhe era peculiar, chegou a admitir que
romper seu casamento significava não só fazer mal à mulher e ao menino,
mas também dar um chute em muitas mordomias — somente vivendo numa
condição de riqueza a vida em Nápoles se torna aceitável — e numa rede
de relações que lhe garantia poder fazer o que bem queria na universidade.
Depois, tragado por sua própria escolha de não omitir nada, concluiu:
lembre-se de que seu sogro gosta muito de mim e que tornar pública nossa
relação levaria, tanto a mim quanto a você, a uma ruptura irremediável com
os Airota. Foi essa última observação dele que, não sei por que, me fez mal.
“Tudo bem”, falei, “vamos encerrar por aqui.”
“Espere.”
“Já esperei até demais, devia ter me decidido antes.”
“O que você pretende fazer?”
“Assumir que meu casamento não tem mais sentido e seguir meu
caminho.”
“Tem certeza?”
“Tenho.”
“E vai vir comigo a Montpellier?”
“Eu disse seguir meu caminho, não o seu. Nossa relação acabou.”
116.

Pus o fone no gancho aos prantos, saí da cabine. Elsa me perguntou: você se
machucou, mamãe? Respondi: estou ótima, é a vovó que não está bem. E
continuei soluçando diante dos olhos preocupados dela e de Dede.
Na parte final das férias só fiz chorar. Dizia que estava cansada, que
fazia calor demais, que tinha dor de cabeça, e mandava Pietro e as meninas
para a praia. Ficava na cama encharcando o travesseiro de lágrimas.
Detestava aquela fragilidade excessiva, nunca fui assim, nem quando era
pequena. Tanto eu quanto Lila tínhamos nos adestrado a não chorar nunca e,
quando isso acontecia, era em momentos excepcionais, por pouco tempo: a
vergonha era grande, e a gente sufocava os soluços. Mas agora se abrira em
minha cabeça uma fonte de água como aconteceu com Orlando, que me
escorria pelos olhos sem jamais esgotar, e eu tinha a impressão de que até
quando Pietro, Dede e Elsa estavam para voltar, e eu com grande esforço
engolia as lágrimas e corria para lavar o rosto debaixo da torneira, a fonte
continuava gotejando, à espera do momento certo para voltar ao canal dos
olhos. Nino não me amava de verdade, Nino fingia muito e amava pouco.
Tinha querido me comer — sim, me comer, como tinha feito com tantas
outras —, mas ficar comigo, ficar comigo para sempre, rompendo os laços
com a esposa, bem, isso não estava em seus planos. Provavelmente ainda era
apaixonado por Lila. Provavelmente durante toda a vida amaria apenas ela,
como tantos que a tinham conhecido. E graças a isso continuaria para sempre
com Eleonora. O amor por Lila era a garantia de que nenhuma outra mulher
— por mais que ele a amasse a seu modo arrebatador — jamais colocaria
em risco aquele casamento frágil, muito menos eu. Essa era a realidade das
coisas. Às vezes eu interrompia o almoço ou o jantar e corria para soluçar
no banheiro.
Pietro me tratava com cautela, pressentindo que eu poderia explodir a
qualquer momento. A princípio, poucas horas depois do rompimento com
Nino, tinha pensado em contar tudo a ele, quase como se não fosse apenas
um marido a quem eu tivesse que me explicar, mas também um confessor.
Sentia a necessidade disso, especialmente quando, na cama, ele se encostava
em mim e eu o rechaçava sussurrando: não, as meninas vão acordar, estive a
ponto de despejar sobre ele cada detalhe. Mas sempre consegui me deter a
tempo, não era preciso lhe falar de Nino. Agora que eu não telefonava mais à
pessoa que amava, agora que a sentia definitivamente perdida, me parecia
inútil atazanar Pietro. Era melhor encerrar a questão com poucas palavras
claras: não posso mais viver com você. E no entanto não consegui fazer nem
isso. Justamente quando, na penumbra do quarto de dormir, me sentia pronta
a dar aquele passo, sentia pena dele, temia pelo futuro das meninas, lhe
acariciava um ombro, o rosto, murmurava: durma.
As coisas mudaram no último dia de férias. Era quase meia-noite, Dede
e Elsa estavam dormindo. Eu não ligava para Nino há pelo menos dez dias.
Tinha arrumado as bagagens, estava acabada de melancolia, de cansaço, de
calor, e estava com Pietro na sacada de casa, cada um em sua
espreguiçadeira, em silêncio. Havia uma umidade extenuante, que molhava
os cabelos e as roupas; vinha um cheiro de mar e de resina. De repente
Pietro disse:
“Como sua mãe está?”
“Minha mãe?”
“Sim.”
“Bem.”
“Dede me disse que está mal.”
“Já melhorou.”
“Telefonei para ela hoje à tarde. Sua mãe sempre esteve ótima de
saúde.”
Não respondi nada. Como aquele homem era inoportuno. Pronto, agora
as lágrimas estavam voltando. Oh, meu Deus, eu estava no limite, no limite.
Ele falou com calma:
“Você acha que sou cego e surdo. Acha que não me dava conta quando
flertava com aqueles imbecis que circulavam em nossa casa antes de Elsa
nascer.”
“Não sei de que você está falando.”
“Sabe perfeitamente.”
“Não, não sei. De quem você está falando? De pessoas que anos atrás
vieram jantar umas vezes? E eu flertava com elas? Ficou doido?”
Pietro balançou a cabeça sorrindo para si. Esperou alguns segundos e
então me perguntou, fixando a grade da sacada:
“Não flertava nem com aquele sujeito que tocava bateria?”
Tomei um susto. Ele não recuava, não cedia. Rebati:
“Mario?”
“Está vendo como se lembra?”
“Claro que me lembro, por que não deveria? É uma das poucas pessoas
interessantes que você trouxe para nossa casa em sete anos de casamento.”
“Você o achava interessante?”
“Acho, e daí? O que deu em você esta noite?”
“Quero saber. Não posso saber?”
“O que você quer saber? Sei o mesmo que você. Desde a última vez
que o vimos deve ter se passado pelo menos quatro anos, e você me vem
agora com essas besteiras?”
Ele parou de fixar a grade e se virou para me olhar, sério.
“Então vamos falar de fatos mais recentes. O que é que há entre você e
Nino?”
117.

Foi um golpe tão violento quanto inesperado. Queria saber o que havia
entre mim e Nino. Bastaram aquela pergunta e aquele nome para que a fonte
voltasse a jorrar em minha cabeça. Me senti cega pelas lágrimas, gritei fora
de mim, esquecendo que estávamos ao ar livre, que as pessoas dormiam
exaustas pelo dia de sol e de mar: por que você fez essa pergunta, devia
guardá-la para si, agora estragou tudo e não há mais nada a fazer, bastava
que conseguisse ficar calado, mas não foi capaz disso e agora eu preciso ir
embora, agora tenho que ir de qualquer jeito.
Não sei o que aconteceu com ele. Talvez tenha se convencido de ter
realmente cometido um erro que, agora, por motivos obscuros, arriscava
arruinar para sempre nossa relação. Ou então de repente me enxergou como
um organismo grosseiro, eu espedaçava a frágil superfície do discurso e me
manifestava de modo pré-lógico, uma mulher em sua expressão mais
alarmante. O certo é que eu devo ter lhe parecido um espetáculo
insuportável, que o fez se levantar abruptamente e entrar em casa. Mas corri
atrás dele e continuei gritando de tudo: o amor por Nino desde a infância, as
novas possibilidades de vida que me havia revelado, as energias inutilizadas
que eu sentia dentro de mim e a esqualidez em que ele me afundara por anos,
a responsabilidade por ter me impedido de viver plenamente.
Quando esgotei minhas forças e me prostrei num canto, o encontrei em
minha frente com as faces encavadas, os olhos fundos em manchas roxas, os
lábios brancos, o bronzeado que se tornara como uma crosta de lama. Só
então compreendi que o havia transtornado. As perguntas que ele me fizera
não admitiam nem por hipótese respostas afirmativas do tipo: sim, flertei
com o tocador de bateria e até fui além; sim, Nino e eu fomos amantes.
Pietro só as formulara para ser desmentido, para quietar as dúvidas que o
tinham invadido, para ir dormir mais sereno. No entanto eu o aprisionara em
um pesadelo do qual, agora, não sabia mais como sair. Perguntou quase
sussurrando, em busca de salvação:
“Vocês fizeram amor?”
De novo tive pena dele. Se eu tivesse respondido afirmativamente, teria
recomeçado a gritar e diria: sim, uma primeira vez enquanto você dormia,
uma segunda no carro dele, uma terceira em nossa cama em Florença. E
pronunciaria aquelas frases com a voluptuosidade que aquelas frases me
causavam. No entanto fiz sinal que não.
118.

Retornamos a Florença. Reduzimos a comunicação entre nós a frases


indispensáveis e a tons amigáveis na presença das meninas. Pietro foi dormir
no escritório como nos tempos em que Dede nunca pregava os olhos, eu, na
cama de casal. Ruminei sobre o que fazer. A maneira como o casamento de
Lila e Stefano tinha acabado não constituía um modelo, tratara-se de um
episódio de outros tempos, gerido sem lei. Eu contava com um procedimento
civilizado, segundo as normas do direito, adequado aos tempos e à nossa
condição. Mas de fato continuava não sabendo o que fazer e, assim, não fazia
nada. Tanto mais que, assim que voltei, Mariarosa já me telefonou para dizer
que o livrinho francês estava adiantado, me mandaria as provas em breve, ao
passo que o sério e caviloso redator de minha editora me anunciava questões
sobre várias passagens do texto. No momento fiquei contente, tentava
recobrar a paixão pelo meu trabalho. Mas não conseguia, tinha a impressão
de estar com problemas bem mais graves que um verso mal interpretado ou
algum trecho claudicante.
Depois, numa manhã, o telefone tocou e Pietro atendeu. Disse alô,
repetiu alô, pôs o fone no gancho. Meu coração começou a bater feito louco,
me preparei para correr até o aparelho e me antecipar a meu marido. Não
tocou mais. Passaram-se as horas, tentei me distrair relendo meu texto. Foi
uma péssima ideia, aquilo me pareceu um monte de tolices, me veio um
esgotamento que me fez dormir com a cabeça sobre a escrivaninha. Mas
então o telefone tocou de novo, e meu marido atendeu mais uma vez. Gritou
apavorando Dede: alô, e pôs o fone no gancho como se quisesse arrebentar o
aparelho.
Era Nino, eu sabia, Pietro sabia. A data do congresso se aproximava,
com certeza queria tornar a insistir para que o acompanhasse. Teria tentado
me atrair mais uma vez para a materialidade dos desejos. Teria me
demonstrado que nossa única possibilidade era um relacionamento
clandestino, a ser vivido até o osso, entre más ações e prazeres. A vida era
trair, inventar mentiras, partir juntos. Pela primeira vez eu pegaria um avião,
me apertaria a ele enquanto a aeronave decolasse, como nos filmes. E por
que não, depois de Montpellier poderíamos ir até Nanterre, encontraríamos a
amiga de Mariarosa, eu falaria com ela sobre meu livro, combinaria
iniciativas, lhe apresentaria Nino. Ah, sim, ser acompanhada por um homem
que eu amava e que emanava em torno de si uma potência, uma força que não
escapava a ninguém. O sentimento hostil se abrandava. Eu estava tentada a
ir.
No dia seguinte Pietro foi à universidade, e eu esperei que Nino
tornasse a ligar. Isso não aconteceu, e então, com uma guinada irracional, eu
telefonei. Esperei vários segundos, estava muito agitada, não tinha mais nada
em mente a não ser a urgência de ouvir sua voz. Quanto ao resto, não sabia.
Talvez o agredisse, talvez recomeçasse a chorar. Ou teria gritado: tudo bem,
vou com você, serei sua amante, serei até você se cansar. Entretanto, naquele
momento, eu só exigia que ele atendesse.
Atendeu Eleonora. Segurei minha voz a tempo, antes que se dirigisse ao
fantasma de Nino, correndo sem fôlego pela linha telefônica com sabe-se lá
que palavras comprometedoras. Moldei-a num tom alegre: alô, aqui é Elena
Greco, como vai, como foram as férias, e Albertino? Ela me deixou falar em
silêncio e então berrou: você é Elena Greco, hein, a vagabunda, a vagabunda
hipócrita, deixe meu marido em paz e não se atreva a ligar nunca mais,
porque eu sei onde você mora e juro por Deus que vou aí e quebro sua cara.
Depois disso, cortou a ligação.
119.

Continuei não sei quanto tempo ao lado do telefone. Estava transbordando de


ódio, só tinha em mente frases do tipo: sim, venha, venha logo, cretina, só
espero por isso, de que porra de lugar você é, de via Tasso, de via
Filangieri, de via Crispi, da Santarella, e quer se meter comigo, sua vagaba,
sua marafa, não sabe com quem está se metendo, putinha. Um outro eu queria
se insurgir lá do fundo, onde fora sepultado sob a crosta da docilidade, e se
debatia em meu peito misturando italiano e vozes da infância — eu era toda
um clamor. Se Eleonora se atrevesse a aparecer em minha porta, eu lhe
cuspiria na cara, a empurrava pelas escadas, a arrastava pelos cabelos até a
rua, quebrava aquela sua cabeça entupida de merda na calçada. Sentia dores
no peito, as têmporas latejavam. Tinham começado uma reforma embaixo de
casa, da janela vinha o calor e um martelar intenso, o pó e um barulho
insuportável de não sei que maquinário. Dede estava brigando com Elsa no
outro cômodo: você não precisa fazer tudo o que eu faço, parece uma
macaca, só os macacos agem assim. Lentamente entendi. Nino se decidira a
falar com a mulher, e ela me agredira por isso. Passei da raiva a uma alegria
incontrolável. Nino gostava de mim a ponto de ter falado sobre nós com a
esposa. Tinha arruinado o casamento, tinha renunciado com plena
consciência aos confortos daquela vida, tinha desequilibrado toda sua
existência optando por impor um sofrimento a Eleonora e a Albertino, e não
a mim. Então era verdade, ele me amava. Suspirei de felicidade. O telefone
tornou a tocar, atendi imediatamente.
Agora era Nino, era a voz dele. Me pareceu calmo. Disse que seu
casamento tinha acabado, que estava livre. Me perguntou:
“Você falou com Pietro?”
“Comecei.”
“Ainda não contou a ele?”
“Sim e não.”
“Vai querer recuar?”
“Não.”
“Então se apresse, precisamos partir.”
Já dava por certo que eu viajaria com ele. Nos encontraríamos em
Roma, estava tudo pronto, hotel, passagens aéreas.
“Tenho o problema das meninas”, disse baixinho, mas sem convicção.
“Mande-as para sua mãe.”
“Isso está fora de cogitação.”
“Então leva-as com você.”
“Está falando sério?”
“Estou.”
“Você me levaria de qualquer jeito, mesmo com minhas filhas?”
“Claro.”
“Você realmente me ama”, murmurei.
“Sim.”
120.

De repente me redescobri invulnerável e invencível, como numa época


passada de minha vida, quando me parecera que tudo me era permitido.
Tinha nascido com sorte. Até quando a sorte parecia adversa, de fato estava
trabalhando para mim. Claro, eu tinha meus méritos. Era disciplinada, tinha
memória, trabalhava com afinco, aprendera a usar os instrumentos
elaborados pelos homens, sabia conferir coerência lógica a qualquer
amontoado de fragmentos, sabia agradar. Mas a sorte contava acima de tudo,
e eu tinha orgulho de senti-la a meu lado como uma amiga fiel. Tê-la de novo
a meu lado me dava segurança. Tinha me casado com um homem direito, não
com uma pessoa como Stefano Carracci ou, pior, Michele Solara.
Entraríamos em confronto, ele sofreria, mas no final chegaríamos a um
acordo. Com certeza mandar pelos ares o casamento, a família, seria algo
traumático. E como por motivos diversos não tínhamos nenhuma vontade de
comunicar a coisa aos nossos parentes, ao contrário, certamente a
manteríamos em segredo pelo maior tempo possível, não podíamos nem
mesmo contar em um primeiro momento com a família de Pietro, que em
todas as circunstâncias sempre sabia o que fazer e a quem recorrer para
enfrentar situações complexas. Mas me sentia tranquila, finalmente. Éramos
dois adultos razoáveis, teríamos um confronto, discutiríamos, nos
explicaríamos. No caos daquelas horas somente uma coisa, agora, me
parecia irrenunciável: eu iria a Montpellier.
Falei com meu marido naquela mesma noite, confessei que Nino era
meu amante. Ele fez de tudo para não acreditar. Quando o convenci de que
era verdade, ele chorou, me implorou, se enfureceu, levantou o tampo de
vidro da mesinha e o arremessou contra a parede sob os olhos aterrorizados
das meninas, que tinham acordado com os gritos e estavam incrédulas na
soleira da sala de estar. Fiquei transtornada, mas não voltei atrás. Levei
Dede e Elsa de novo para a cama, as tranquilizei, esperei que dormissem.
Depois voltei a enfrentar meu marido, cada minuto se tornou uma ferida.
Para piorar, Eleonora passou a nos perseguir com telefonemas, noite e dia,
me insultando, insultando Pietro por não saber ser homem, anunciando-me
que seus parentes achariam um meio de nos deixar, a nós e a nossas filhas,
sem nem os olhos para chorar.
Mas não me abati. Estava num tal estado de exaltação que não
conseguia me sentir em erro. Ao contrário, me pareceu que até as dores que
eu causava, as humilhações e agressões que sofria, estivessem trabalhando
em meu favor. Aquela experiência insuportável contribuiria não só para que
eu me transformasse em algo de que me orgulharia, mas ao final, por vias
imperscrutáveis, também serviria para quem agora penava. Eleonora
compreenderia que não havia nada a fazer com o amor, que é insensato dizer
a uma pessoa que quer ir embora: não, você tem de ficar. E Pietro, que com
certeza já conhecia em tese aquele preceito, só precisaria de tempo para
assimilá-lo e transformá-lo em sabedoria, em prática da tolerância.
Somente com as meninas percebi que tudo era difícil. Meu marido
insistia em que lhes disséssemos as razões de nossas brigas. Eu era
contrária: elas são pequenas — eu dizia —, o que poderiam compreender?
Mas ele a certa altura me gritou: se você decidiu ir embora, precisa dar
explicações a suas filhas, e, se não tiver coragem, fique — quer dizer que
você mesma tem pouca segurança do que quer fazer. Murmurei: vamos falar
com um advogado. Rebateu: temos tempo para os advogados. E, à traição,
convocou em voz alta Dede e Elsa, que ao ouvirem nossos gritos iam
imediatamente se fechar em seu quarto, muito companheiras.
“A mãe de vocês precisa lhes dizer uma coisa”, Pietro principiou,
“fiquem sentadas e escutem.”
Comecei:
“Eu e o papai gostamos um do outro, mas não nos entendemos mais e
por isso decidimos nos separar.”
“Não é verdade”, me interrompeu Pietro com calma, “é a mãe de vocês
quem decidiu ir embora. E também não é verdade que gostamos um do outro:
ela já não gosta mais de mim.”
Fiquei agitada:
“Meninas, não é assim tão simples. É possível continuar se querendo
bem mesmo não se vivendo mais juntos.”
Ele me interrompeu de novo:
“Isso também é falso: ou queremos bem um ao outro, e então
continuamos vivendo juntos e sendo uma família, ou não nos queremos bem,
e então nos deixamos e não somos mais uma família. Se você contar
mentiras, o que é que elas vão entender? Por favor, explique de verdade e
com clareza por que estamos nos separando.”
Falei:
“Eu não estou deixando vocês, vocês são a coisa mais importante que
eu tenho, não poderia viver sem vocês. Tenho apenas alguns problemas com
o papai.”
“Quais?”, insistiu ele. “Esclareça quais são esses problemas.”
Suspirei, murmurei:
“Eu me apaixonei por outro homem e quero viver com ele.”
Elsa espiou Dede para entender como devia reagir àquela notícia e,
como Dede continuou impassível, ela também permaneceu impassível. Já
meu marido perdeu a calma, berrou:
“O nome: diga como se chama essa outra pessoa. Não quer falar? Tem
vergonha? Então digo eu: vocês conhecem essa pessoa, é Nino, se lembram
dele? A mãe de vocês que ir morar com ele.”
Então começou a chorar desesperadamente, enquanto Elsa murmurava
um tanto assustada: me leva com você, mamãe? Mas não esperou que eu
respondesse. Quando a irmã se levantou e deixou a sala quase correndo, ela
a seguiu imediatamente.
Naquela noite Dede gritou durante o sono, acordei sobressaltada, corri
para ela. Estava dormindo, mas tinha molhado a cama. Precisei acordá-la,
trocá-la, trocar os lençóis. Quando a recoloquei na cama, murmurou que
queria dormir na minha. Permiti, fiquei ao lado dela. De vez em quando
estremecia no sono, verificava se eu continuava ali.
121.

A data da partida se aproximava, mas as coisas com Pietro não melhoravam;


qualquer acordo, nem que fosse apenas para aquela viagem a Montpellier,
parecia impossível. Se você for, ele me dizia, nunca mais vai ver as
meninas. Ou: se você levar as meninas, eu me mato. Ou: vou denunciá-la por
abandono do teto conjugal. Ou: vamos fazer uma viagem nós quatro, vamos
para Viena. Ou: meninas, sua mãe prefere o senhor Nino Sarratore a vocês.
Comecei a não aguentar mais. Lembrei-me das resistências de Antonio
quando tinha decidido deixá-lo. Mas Antonio era um rapaz, tinha herdado a
cabeça frágil de Melina e sobretudo não recebera a mesma educação de
Pietro, não tinha sido adestrado desde a infância a identificar regras no caos.
Talvez — pensei comigo — eu tenha atribuído um peso excessivo ao uso
cultivado da razão, às boas leituras, à língua bem governada, à filiação
política; talvez, diante do abandono, sejamos todos iguais; talvez nem mesmo
uma cabeça muito disciplinada consiga suportar a descoberta de não ser
amada. Meu marido — não havia o que fazer — estava convencido de que
devia me proteger a todo custo da mordida venenosa de meus desejos e,
assim, contanto que continuasse sendo meu marido, estava disposto a
recorrer a qualquer meio, mesmo ao mais abjeto. Ele, que tinha querido o
casamento no civil, ele, que sempre fora a favor do divórcio, por um
desgovernado movimento interno pretendia que nossa relação durasse
eternamente, como se tivéssemos nos casado diante de Deus. E, como eu
insistia em pôr um ponto final em nossa história, ele primeiro tentava todas
as vias da persuasão, depois quebrava coisas, se estapeava, de repente
começava a cantar.
Quando se excedia daquele modo, eu ficava furiosa e lhe gritava
insultos. E ele como sempre mudava num instante, feito um bichinho
assustado, e se punha ao meu lado, me pedia desculpas, dizia que não era
comigo, era sua cabeça que não funcionava bem. Adele — me revelou uma
noite entre lágrimas — sempre traíra seu pai, foi uma descoberta que ele fez
ainda na infância. Aos seis anos flagrara a mãe beijando um homem enorme,
vestido de azul, na grande sala de estar em Gênova com vista para o mar.
Lembrava-se de todos os detalhes: o homem tinha grandes bigodes que eram
como uma lâmina escura; na calça despontava uma mancha brilhante que
parecia uma moeda de cem liras; sua mãe, apertada a ele, parecia um arco
tão tenso que arriscava se quebrar. Eu o escutei em silêncio, tentei consolá-
lo: se acalme, são falsas lembranças, você sabe que são, eu nem preciso lhe
dizer. Mas ele voltou a insistir: Adele estava com uma saída de praia rosa,
uma alça escorregara de seu ombro bronzeado; as unhas compridas pareciam
de vidro; tinha feito uma trança negra que lhe pendia da nuca feito uma
serpente. Finalmente me disse, passando do sofrimento à ira: entende o que
você me fez, entende em que horror você me atirou? E eu pensei: Dede
também vai se lembrar, Dede também vai gritar algo parecido quando for
grande. Mas depois me esquivei, me convenci de que Pietro estava me
contando aquilo sobre sua mãe só agora, depois de tantos anos, justamente
para me induzir àquele pensamento, me ferir, me segurar.
Segui em frente extenuada, dia e noite, não se dormia mais. Se meu
marido me atormentava, Nino por sua vez não ficava atrás. Quando me
percebia provada pelas tensões e preocupações, em vez de me consolar,
ficava nervoso e dizia: você acha que para mim é mais fácil, mas aqui está
um inferno que nem aí, tenho medo por Eleonora, tenho medo pelo que possa
vir a fazer, por isso não pense que estou com problemas menores que os
seus, talvez minha situação seja até pior. E exclamava: mas eu e você, juntos,
somos mais fortes que qualquer um, nossa união é uma necessidade
imprescindível; você tem clareza disso, me diga, quero ouvir, tem clareza?
Eu tinha clareza. Mas aquelas palavras não me ajudavam muito. O que me
dava força mesmo era imaginar o momento em que finalmente o
reencontraria e pegaríamos o avião para a França. Preciso resistir até lá,
dizia a mim mesma, depois veremos. Por agora eu só almejava uma
suspensão da dor, não aguentava mais. No ápice de uma briga violentíssima,
diante dos olhos de Dede e Elsa, eu disse a Pietro:
“Chega. Vou viajar por cinco dias, somente cinco dias, depois volto e
vamos ver o que faremos. Tudo bem?”
Ele se virou para as meninas:
“A mãe de vocês disse que vai embora por cinco dias, mas vocês
acreditam nisso?”
Dede fez sinal que não com a cabeça, e Elsa também.
“Nem elas acreditam”, disse então Pietro, “todos nós sabemos que você
vai nos deixar e não vai voltar mais.”
Nesse instante, como se tivessem combinado, tanto Dede quanto Elsa se
lançaram contra mim, abraçando minhas pernas e implorando que eu não
fosse, que ficasse com elas. Não aguentei. Fiquei de joelhos, as abracei pela
cintura, disse: tudo bem, não vou viajar, vocês são minhas menininhas, vou
ficar com vocês. Aquelas palavras as acalmaram, aos poucos Pietro também
se acalmou. Me recolhi no meu quarto.
Ah, meu Deus, como tudo estava fora dos eixos, eles, eu, o mundo ao
redor: só era possível uma trégua recorrendo a mentiras. Faltavam dois dias
para a partida. Primeiro escrevi uma longa carta a Pietro, depois uma breve
para Dede, recomendando que ela também a lesse para Elsa. Preparei uma
mala, coloquei-a no quarto de hóspedes, debaixo da cama. Comprei de tudo,
abarrotei a geladeira. No almoço e no jantar preparei pratos que Pietro
adorava, e ele comeu com gratidão. As meninas, aliviadas, voltaram a brigar
por qualquer coisa.
122.

Nesse meio tempo, justamente quando se aproximava o dia da partida, Nino


parou de ligar. Tentei eu mesma telefonar, torcendo para que Eleonora não
atendesse. Quem atendeu foi a empregada, e no momento senti alívio,
perguntei pelo professor Sarratore. A resposta foi direta e hostil: vou chamar
a senhora. Pus o fone no gancho, esperei. Esperava que o telefonema se
tornasse uma ocasião de desentendimento entre o casal e, assim, Nino
soubesse que eu o estava procurando. Dez minutos depois o telefone tocou.
Corri para atender, tinha certeza de que era ele. No entanto era Lila.
Não nos falávamos há tempos, e eu não tinha vontade de conversar com
ela. Sua voz me irritou. Naquela fase até mesmo seu nome bastava para me
atravessar a cabeça feito uma víbora, me confundindo e tirando as forças. De
resto, não era um bom momento para conversas: se Nino ligasse, encontraria
a linha ocupada, e a comunicação já era bastante difícil.
“Posso ligar para você daqui a pouco?”, lhe perguntei.
“Vocês está ocupada?”
“Um pouco.”
Ignorou meu pedido. Como sempre, achava que podia entrar e sair de
minha vida sem a mínima preocupação, como se ainda fôssemos uma coisa
só e não houvesse necessidade de perguntar como vai, tudo bem, estou
atrapalhando. Falou com um tom cansado que acabara de ter uma péssima
notícia: a mãe dos Solara tinha sido assassinada. Falou lentamente, como se
estivesse atenta a cada palavra, e eu a escutei sem interromper. Suas frases
puxavam atrás de si como numa procissão a agiota com um vestido de festa
sentada à mesa dos noivos quando Lila e Stefano se casaram, a senhora
irrequieta que me abrira a porta quando fui procurar Michele, a sombra de
mulher de nossa infância que apunhalava dom Achille, a idosa com uma flor
falsa entre os cabelos que se abanava com um leque azul enquanto repetia
distraída: eu estou com calor, vocês também? Mas não senti nenhuma
emoção, nem quando Lila mencionou os boatos que tinham chegado a seus
ouvidos e os relatou a mim com seu modo eficaz. Tinham matado Manuela
degolando-a com uma faca; ou lhe tinham dado cinco tiros de pistola, quatro
no peito e um no pescoço; ou a massacraram a murros e pontapés,
arrastando-a por todo o apartamento; ou os assassinos — os chamou assim
— nem sequer tinham entrado na casa, atiraram nela assim que abrira a
porta. Manuela tinha caído de cara no chão do patamar, e o marido, que
estava vendo televisão, nem se deu conta. O certo — disse Lila — é que os
Solara ficaram alucinados, estão concorrendo com os policiais na busca
pelos culpados, chamaram gente de Nápoles e de fora, todas as atividades
deles foram interrompidas, eu mesma não trabalho hoje, e aqui está um
horror, não se pode nem respirar.
Como sabia dar importância e espessura ao que acontecia com ela e em
torno dela: a usurária assassinada, os filhos transtornados, seus capangas
prontos a derramar mais sangue, e sua figura vigilante em meio à maré dos
acontecimentos. Por fim chegou ao motivo real de seu telefonema:
“Amanhã mando Gennaro para aí. Sei que estou abusando, você tem
suas filhas, suas coisas, mas eu aqui, agora, não posso e não quero ficar com
ele. Vai perder uns dias de escola, paciência. Ele é afeiçoado a você, se
sente bem aí, você é a única pessoa em quem confio.”
Pensei por uns segundos naquela última frase: você é a única pessoa
em quem confio. Tive vontade de rir, ela ainda não sabia que eu me tornara
inconfiável. De modo que, diante daquele pedido que dava por certa a
imobilidade de minha existência dentro da mais serena das normalidades,
como se minha vida fosse a de uma baga vermelha sobre o galho-folha da
gibardeira, não tive hesitações e lhe respondi:
“Estou para viajar, estou deixando meu marido.”
“Não entendi.”
“Meu casamento acabou, Lila. Reencontrei Nino e nós dois
descobrimos que sempre nos amamos, desde jovenzinhos, sem perceber. Por
isso estou indo embora, para começar uma vida nova.”
Houve um longo silêncio, e então me perguntou:
“Você está brincando?”
“Não.”
Ela deve ter achado impossível que eu estivesse pondo desordem em
minha casa, em minha cabeça bem organizada, e agora já me perseguia
agarrando-se mecanicamente a meu marido. Pietro — disse — é um homem
extraordinário, bom, inteligentíssimo, você é louca de deixá-lo, pense no mal
que vai fazer a suas filhas. Falava e não citava Nino, como se aquele nome
tivesse parado no pavilhão de seu ouvido sem lhe chegar ao cérebro. Tive de
pronunciá-lo de novo, dizer: não, Lila, não posso mais viver com Pietro
porque não posso mais ficar sem Nino, não importa o que acontecer, vou
embora com ele — e outras frases desse tipo, que exibi como se fossem uma
honra. Então ela começou a estrilar:
“Você vai jogar tudo fora por causa de Nino? Vai arruinar sua família
por conta dele? Sabe o que vai acontecer? Ele vai te usar, te chupar o
sangue, te tirar a vontade de viver e depois vai te abandonar. Para que você
estudou tanto? De que merda me serviu imaginar que você teria uma vida
linda inclusive por mim? Eu me enganei, você é uma cretina.”
123.

Pus o fone no gancho como se queimasse. Está com ciúmes — disse a mim
mesma —, está com inveja, me odeia. Sim, a verdade era essa. E se passou
um longo cortejo de segundos, não me voltou mais à memória a mãe dos
Solara, seu corpo se esfumou marcado de morte. Em vez disso me perguntei
ansiosa: por que Nino não telefona, será possível que justo agora que contei
tudo a Lila ele recue, me tornando ridícula? Por um instante me vi exposta a
ela em toda minha eventual pequenez de pessoa que se arruinara por nada.
Então o telefone começou a tocar. Por dois ou três longos toques permaneci
sentada, fixando o aparelho. Quanto tirei o fone do gancho, tinha na ponta da
língua palavras prontas para Lila: não se preocupe nunca mais comigo, você
não tem nenhum direito sobre Nino, me deixe errar do jeito que eu quiser.
Mas não era ela. Era Nino, e eu o cobri de frases entrecortadas, feliz de
ouvi-lo. Disse-lhe em que pé estavam as coisas com Pietro e as meninas,
disse que era impossível chegar a um acordo com calma e racionalidade,
disse que tinha preparado a mala e não via a hora de abraçá-lo. Ele me
contou suas brigas furiosas com a mulher, as últimas horas tinham sido
insuportáveis. Murmurou: embora esteja muito assustado, não consigo pensar
em minha vida sem você.
No dia seguinte, enquanto Pietro estava na universidade, perguntei à
vizinha de porta se podia ficar com Dede e Elsa por algumas horas. Deixei
na mesa da cozinha as cartas que tinha escrito e fui embora. Pensei: está
acontecendo algo de grandioso, que vai dissolver completamente o velho
modo de viver, e eu sou parte dessa dissolução. Alcancei Nino em Roma,
nos encontramos em um hotel a poucos passos da estação. Enquanto o
abraçava, me dizia: nunca me habituarei a esse corpo nervoso, é uma
contínua surpresa, ossos longos, a pele de um cheiro excitante, uma massa,
uma força, uma agilidade de todo estranhas ao que Pietro é, aos costumes
que havia entre nós.
Na manhã seguinte, pela primeira vez em minha vida, subi num avião.
Não sabia apertar o cinto, Nino me ajudou. Como foi emocionante segurar
com força sua mão enquanto o ronco dos motores aumentava, aumentava,
aumentava, e o avião começava sua corrida. Como foi comovente descolar-
se do chão com um choque e ver as casas se transformando em
paralelepípedos, e as ruas se transmudando em finas faixas, e o campo se
reduzindo a uma mancha verde, e o mar se encurvando como uma chapa
compacta, e as nuvens se precipitando para baixo num desmoronamento de
rochas macias, e a angústia, e a dor, e a própria felicidade que se tornavam
parte de um movimento único, muito luminoso. Tive a impressão de que voar
submetesse todas as coisas a um processo de simplificação e suspirei, tentei
me abandonar. De vez em quando perguntava a Nino: está contente? E ele
fazia sinal que sim, me beijava. Às vezes tinha a impressão de que o piso
sob nossos pés — a única superfície com a qual era possível contar —
tremia.
[1] Nos anos 1960 os atuais computadores eram chamados de calculadores ou cérebros eletrônicos. (n.
e.)
[2] Referência ao mundo ínfero dos gregos, Hades (Ade, em italiano). (N.T.)

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