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Cadernos de Arte e
Antropologia
Vol. 4, No 2 | 2015
Artivismo: poéticas e performances políticas na rua e na rede
Dossiê "Artivismo: poéticas e performances políticas na rua e na rede"
Artigos
Performances artivistas:
incorporação duma estética de
dissensão numa ética de
resistência
“Artivist” performances: Incorporating aesthetics of dissent into ethics of resistance
R M
p. 53-69
https://doi.org/10.4000/cadernosaa.938
Résumés
Português English
Ao longo da História foram-se construindo narrativas éticas e estéticas onde encaixar socialmente a
dissensão. Nomeadamente na arte e no ativismo, que num certo nível se têm aproximado. Por um
lado, com o crescente interesse da arte contemporânea pelo político, apesar de o sistema limitar
frequentemente a crítica política a uma mera estetização disciplinada. Por outro lado, com os novos
/ novíssimos movimentos sociais a recorrerem a práticas vindas das artes nos seus protestos. Neste
artigo, aponto o potencial do corpo como espaço político e artístico para integrar arte e ativismo.
Esse potencial reside na incorporação de uma emoção de entrega capaz de gerar mudanças a partir
da performance, num paradigma onde para além da “arte pela arte” emerge uma “arte atuante”.
Throughout history different forms of narratives have been used to describe dissent in a socially
acceptable way. This is especially the case within arts and activism, both of which have more and
more approached each other. On the one hand, contemporary art has become increasingly interested
in politics, even though the art industry tends to reduce political commentary to disciplined forms of
aestheticisation. On the other hand, recent social movements in their protests have been recurring to
practices borrowed from the arts world. In this article, I discuss the human body’s potential as a
political and artistic site for the integration of art and activism, a potential that derives from its
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ability to embody an emotion of commitment, capable of generating changes through performance,
within a paradigm where beyond “Art for art's sake” emerges an “acting art”.
Entrées d’index
Keywords: artivism, body, performance, social movements
Palavras chave: arte, artivismo, corpo, performance, protesto, movimentos sociais
Notes de la rédaction
Recebido em: 2014-01-31
Aceitado em: 2015-09-19
Texte intégral
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Não é por acaso que há cada vez mais tutoriais na internet e workshops em certas escolas
para os artistas melhor gerirem o seu percurso e o seu nome, isto é, a sua marca num
sistema profissional onde é vital o marketing pessoal. A propaganda artística instaura-se
portanto logo no ato de assinar a obra.5
13 Ora sendo a arte uma construção cultural – que no nosso tempo se constrói no
paradigma capitalista neoliberal vigente – assim se explica que se aceite de forma tão
pacífica propagandas individuais, mas não se dê lugar a formas de propaganda utópica
para o coletivo. Note-se que a alternativa não é a anulação do autor ou do indivíduo, pois a
liberdade é sempre um ato de escolha individual. Tão pouco se postula a obrigatoriedade
do artista apresentar preocupações sociopolíticas. E muito menos ter de servir
partidarismos. Porém pactuar com a exclusão de uma dimensão interventiva da arte, é
diminuir a liberdade numa sociedade que se queira democrática e participativa, inclusive
ao nível artístico.
14 É possível aspirar a uma espécie de pureza sagrada da arte, separando claramente as
águas entre a criação estética e a intervenção nas coisas do mundo (o que duvido que seja
possível, embora seja legítimo como escolha pessoal, não como imposição), contudo a
maioria dos artistas, curadores, críticos, galeristas, estudiosos e professores de artes,
defende atualmente um posicionamento artístico crítico e de reflexão na sociedade. Desse
modo, não se pode postular o valor da crítica e depois limitar essa crítica apenas a
composições estetizadas e superficiais de conteúdos inócuos, consensuais no meio.
Frequentemente produzem-se reflexões frouxas, desapaixonadas e desinteressantes na
moldura do politicamente correto. Nada acrescentam, nada inovam, nada abrem. Na pior
das hipóteses chegam a ser hipócritas e oportunistas. Expõem, sem se expor,
permanecendo numa posição confortável de observação crítica dos outros, mas a quem
não se pode apontar o erro de uma má-opção visto não assumirem opiniões próprias.
Exibem-se meramente num exercício de indagações intelectuais para as quais não
arriscam realmente respostas. O ónus das decisões, a responsabilidade da participação,
são eloquentemente endereçados para os outros, para os espectadores.6 Fica-se nas boas
intenções do mínimo denominador comum que é a “necessidade de refletir”, sem chegar
nunca a conclusões (nem sequer provisórias, até se apresentar nova dúvida, como
acontece por exemplo nas ciências). Tal tem a vantagem de não ameaçar lugares em
instituições e agradar a públicos diversos. Como refere Léger, aceita-se que os artistas
"operem críticas construtivas do sistema mas não ameacem as instituições públicas, as
classes hierárquicas e outros legados do liberalismo burguês; que intervenham na cultura
mas não pareçam agressivos ou seriamente preparados para lutar pela igualdade política"
(Léger 2012: 70).
15 O que questiono não é a necessidade da reflexão, nem a pertinência da dúvida
constante, mas a esterilidade de permanecer sem querer dar respostas, nem assumir que
cada trabalho artístico não deixa de transmitir explícita ou implicitamente conteúdos
políticos que dizem respeito àquilo que o artista pensa, sente e é. A colocação de subtis
barreiras ideológicas em relação ao ponto até onde convém ir a expressão política do
artista,7 traduz-se num tipo de pensamento único do que deve ser o espírito crítico e do
que não é aceitável junto dos que, pela posição privilegiada que ocupam no sistema, se
apresentam como detentores do espírito crítico apropriado ou correto (ou seja, os
produtores e mediadores especializados que dominam os códigos da arte contemporânea,
segundo discursos frequentemente herméticos e pouco claros). Paradoxalmente, estes
reproduzem de outro modo as relações de poder que predicam criticar.
16 Uma vez que a autoridade curatocrática concedida pelas principais instituições culturais
se sobrepõe, legitimando um sistema altamente hierarquizado em termos de valorização
artística, 8 compreendemos facilmente – aplicando as teorias de McLuhan ao sistema da
arte – como também aqui “o meio é a mensagem” (McLuhan 1964: 7). É no tipo de arte
que não tem visibilidade que se descortina a normatividade dominante. Por exemplo, nos
atuais sistemas capitalistas, uma das condições para uma obra de arte crítica se consagrar
dentro do espírito crítico apropriado é que se possa vender (ora quando algo que critica
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"artivismo" para nomear estas práticas na esfera pública. É um neologismo híbrido que
estabelece uma “relação orgânica entre arte e ativismo” (Latorre, Sandoval 2008: 82).
Começou a partir da primeira década do séc. XXI em pequenos círculos de meios artísticos
e académicos norte-americanos, difundindo-se entretanto a nível internacional.
21 O recurso a estratégias de dissensão que podem ser colocadas em paralelo com as
dissensões formais do campo artístico, permitem a qualquer pessoa motivada ganhar voz
na esfera pública e tornar-se num ator político, aprofundando a Democracia para além do
sistema institucionalizado de partidos, sindicatos, associações patronais ou governos. É
aliás por isso que as práticas artivistas têm estado mais ligadas ao tipo de protesto dos
novos movimentos sociais e dos novíssimos movimentos sociais. Por comparação com os
velhos movimentos sociais que se movem dentro de uma mise-en-scène de protesto mais
convencional (vendo as manifestações partidárias ou sindicais na rua reconhecemos de
imediato a sua linguagem visual, ritmos, slogans ou estrutura de operacionalização no
espaço público). Nos protestos convocados pelos denominados novos / novíssimos
movimentos sociais há toda uma força menos domesticada de atores políticos que saem à
rua, não pela chamada do sindicato ou a obrigação do partido, mas única e exclusivamente
movidos pelo próprio sentimento de indignação. Em vez de atuarem na rua como
representantes da indignação, recusam o normativo papel de se manifestarem como mero
“espectador-figurante” (Soares 2013: 106) com narrativas pré-definidas e formatadas de
propaganda organizacional.
22 O recurso a expressões simbólicas de indignação revela identidades e posturas próprias,
convertendo a encenação do protesto no espaço público em instrumento político
particularmente importante na afirmação daqueles que se encontram exteriores ao
sistema institucional. Para esses é absolutamente vital a criação de uma performatividade
marcante de contrapoder, por ser das poucas armas políticas disponíveis, o que exige uma
muito maior criatividade, irreverência e eficácia na comunicação de protesto adotada.
23 Em Portugal a performance artivista com mais repercussão mediática e impacto foi a da
“Grândola Vila Morena”15 cantada no Parlamento (15/02/2013). Esta ação do
movimento Que se Lixe a Troika16 rompeu o status quo institucional por ocasião do
discurso do primeiro-ministro Passos Coelho. Das galerias da assistência, várias pessoas
inesperadamente levantaram-se e as suas vozes ocuparam o espaço da chamada “Casa do
Povo” afirmando “o povo é quem mais ordena”. Que ecoasse para a entidade máxima do
governo, vinda da zona dos representados para a dos representantes políticos, a força
daquela canção, veio pôr em cena um conflito ideológico que colocou o primeiro-ministro
no papel metafórico de opositor dos valores democráticos do 25 de Abril, tomando-o como
involuntário performer apropriado para o interior de uma ação artivista transmitida em
todos os telejornais nacionais.17 É possível visualizar imagens desse momento aqui:
https://www.youtube.com/watch?v=OLzJ_EmKy14.
24 Apesar da separação entre o artístico e o político ser mais forte nos velhos movimentos
sociais, há que referir que as ações de velhos e de novos / novíssimos movimentos sociais
muitas vezes se contaminam mutuamente, não sendo raro encontrar membros de partidos
por entre os novos / novíssimos movimentos sociais ou membros destes movimentos em
manifestações de sindicatos e comemorações do 25 de Abril ou 1º de Maio.18
25 Há quem desvalorize os recursos artísticos em ações políticas de rua por achar que
retiram credibilidade às próprias exigências políticas. Para esses – sejam puristas críticos
da “cultura do espetáculo” (Debord 1967) ou simplesmente conservadores – o ativismo
estetizado não passa de folclore inútil, mero espetáculo alienante que distrai dos
conteúdos sociais que realmente importam. No entanto, tal parte de uma premissa de
divisão absoluta e monolítica entre arte e vida, quando podemos identificar uma profunda
interconexão recíproca entre dramas sociais e performances estéticas (Schechner 2003:
211). Nesse sentido, tanto Victor Turner como Richard Schechner, identificam um modelo
de loop infinito entre narrativas políticas e narrativas dramáticas, sendo os dramas
estéticos afetados pelos dramas sociais e os dramas sociais afetados pelos dramas
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Esse tipo de arte questionadora do status quo procura estar não só ao serviço dos
interesses de alguns, de uma subcultura, mas ao serviço da sociedade como um todo.
Numa época percecionada como sendo de crise, especulação financeira, desigualdade
social crescente, maior défice democrático, com constantes casos mediáticos de corrupção
e de desvalorização do que é de e para todos, a alternativa de uma arte à parte do mundo
envolvente ou mesmo em fuga face ao real, é válida e pode ser muito interessante – seja
pelo onírico, abstrato, fantasioso, inútil, religioso ou de que forma for – mas como
continuar a fazer arte que no seu alheamento político-social, de forma voluntária ou
involuntária, silencia de modo cúmplice, ou até alimenta, um sistema onde o real é tão
profundamente dominado pelo injusto como o da época em que vivemos?
31 Daí a emergência de uma estética aliada a uma ética, como resposta da arte mais
vanguardista a uma profunda crise de valores, integrando ao relativismo pós-moderno
algumas convicções que permitam uma vida melhor em sociedade. Este posicionamento
vai beber às próprias origens da Democracia, a filósofos gregos como Aristóteles ou Platão
para quem a essência do Belo se identifica com o Bom, tendo em conta valores morais
(Bayer 1995: 27). O ético é estético.
32 Uma arte atuante age simbolicamente quer em prol do bem comum, quer em prol da
conquista dum espaço de liberdade de expressão político-artística para a crítica dissonante
em relação ao injusto dominante. Claro que na realidade os campos da "arte pela arte" e de
uma “arte atuante” raramente são mutuamente exclusivos e estanques, no entanto o
artivismo tem-se vindo a afirmar como a vanguarda mais radical, interdisciplinar e
arriscada da ação artística no real.
33 De todas as formas possíveis de dissensão por elevados valores via meios diminutos, o
medium que me parece mais plenamente servir utopias éticas e estéticas é a performance
– pela inerente economia de recursos e impacto potencial inversamente proporcional. A
performance permite congregar as construções vindas das narrativas históricas do que é a
arte, com as construções vindas das narrativas históricas do que é o ativismo, uma vez que
recorre a um meio de expressão presente nessas duas tradições históricas: o corpo. E
corpo todos temos um. Seja qual for a ascendência, sexo, raça, língua, território de origem,
religião, convicções políticas ou ideológicas, instrução, situação económica, condição
social ou orientação sexual.21 Mesmo que seja um corpo doente ou deficiente, é um corpo.
Como afirmava Brecht: “um homem é um homem”.22 O que constitui a performance como
o mais acessível e democrático de todos os media artísticos. Do pouco permite fazer muito.
Bastam ações, atitudes e movimentos do corpo, criando uma comunicação simbólica de
expressões emocionais. Os custos financeiros são mínimos ou até nulos. Tão pouco existe a
necessidade de qualquer virtuosismo técnico ou qualidade especial que não seja estar
disponível para uma entrega emocional, pois a performance não segue o caminho do “faz
de conta” e o performer mais que representar, apresenta. Apresenta-se como indivíduo
sem máscaras e com o qual o espectador pode fazer empatia. Ao praticar a performance
assume a sua própria subjetividade. Expõe-se sem a composição de personagens, ao
contrário do que sucede na tradição teatral (Goldberg 2007: 9).
34 A performance tem a especificidade conceptual de dificultar qualquer definição exata
que vá para além da vaga afirmação de que se trata de uma atividade feita ao vivo com
uma intenção artística. Toma a presença corporal como eixo central, mas os seus
praticantes usam livremente quaisquer disciplinas e quaisquer meios como material a
articular com o corpo – literatura, poesia, teatro, música, dança, arquitetura, pintura,
vídeo, escultura, instalação, narrações, etc – utilizando-os nas mais diversas combinações.
Nenhuma outra forma de expressão artística tem um programa tão ilimitado (Goldberg
2007: 10), uma vez que cada performer cria a sua própria definição através dos processos
e modos de execução que adopta, que incorpora. Idealmente entrega-se a si próprio no ato
(Auslander 1997: 54).
35 Veja-se nesse sentido o exemplo de entrega artivista desenvolvido pelo coletivo Liberate
Tate,23 em Londres. O coletivo nasceu de um workshop de ativismo promovido pela Tate
Modern, que pretendia incentivar a consciência cívica, porém colocava limites,
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O espaço desta performance é o museu, mas convoca para o seu interior uma série de
simbolismos para além do museu. Traz a ocupação do espaço público, da Praça, da
Polis para dentro do museu e faz disso arte, evocando o espírito da Acampada do
Rossio, do Occupy Wall Street, das Acampadas espanholas e de todos os occupys
internacionais que há não muito tempo atrás, em inúmeros espaços públicos de todo
o mundo, trouxeram a discussão assembleária direta e sem representantes para a
esfera pública, utopia da sempre mítica agora grega, matriz do sonho Democrático.27
3º - em espaço e/ou tempo com significado especial, jogando com as noções artísticas
de site-specific (associado ao espaço) e de narrativa dramática (associada a datas e
eventos simbólicos);
4º - ser registada e transmitida pelos mass media e/ou pela internet, fazendo da
esfera pública e do ciberespaço público, o palco mediático que gera o público (note-se
que sem público não há performance).
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"Every man is a plastic artist who must determine things for himself." Joseph Beuys
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Notes
1 Para mais informações sobre o coletivo flo6x8 consultar: http://www.flo6x8.com. De salientar que
todo o artigo beneficiará de uma leitura combinada do texto com a consulta dos hiperlinks
sucessivamente sugeridos (vídeos, artigos, fotos, redes sociais, etc), ilustrativos e contextualizadores
das reflexões apresentadas.
2 Centrando-se este artigo sobretudo no contexto europeu.
3 Embora o uso de propaganda não seja exclusivo de regimes totalitários. Atualmente, nas chamadas
democracias ocidentais também existe, tanto com aplicações positivas, como negativas. Apenas
acontece de forma mais subtil, indireta e sofisticada. Está inevitavelmente presente em inúmeras
áreas, das mais óbvias (ex: publicidade, marketing, relações públicas, política partidária, etc) àquelas
onde ocorre de forma mais camuflada (ex: educação, economia, arte, lei, etc).
4 Se por um lado o neoliberalismo dominante e o total relativismo de valores em que nos deixou o
Pós-modernismo afetam o espaço do comum (quando necessitamos de valores para viver em
comunidade), por outro lado não podemos cair em dogmatismos fundamentalistas, esquecendo os
ensinamentos pós-modernistas: posturas críticas, relacionais e de consciência das inevitáveis
subjetividades. A importância de certos valores convém ser acompanhada do questionamento dos
mesmos, sem contudo os abandonar como referencial ético. Pessoalmente, defendo
posicionamentos que passem pelas seguintes premissas utópicas: mais liberdade para o Eu, mais
respeito pelo Outro, mais empatia intersubjetiva. Na prática, por vezes estes valores excluem-se
mutuamente (ex: há lutas por maior liberdade que podem ter que pôr em causa o civismo ou a
empatia com o Outro, tal como o moralismo do respeito pelo Outro pode colocar em causa
liberdades individuais). É necessária uma permanente consciência crítica onde as respostas não
devem ser taxativas, únicas e fechadas, mas dadas em função de cada situação. Os compromissos
éticos entre a liberdade do Eu e do Outro impõem-se particularmente em situações de violência.
Agredir a integridade física de outrem – sobretudo sem o seu consentimento – é a linha ética a partir
de onde qualquer forma artística politizada entra num nível que contará sempre com a minha
oposição. Já quando se trata de violência psicológica tudo fica menos claro e dificilmente se podem
impor limites morais que não sejam subjetivos. No entanto, arrisco colocar o limite no ataque pela
ofensa pessoal, sem que tal impeça a crítica de opiniões, ideias ou atos, inclusive ao nível caricatural.
5 Pode-se até fazer um paralelismo entre a assinatura dum quadro e o logotipo duma marca
publicitária, ou entre a linguagem de autor e a imagem de marca. Faz parte da propaganda na arte
(usando semânticas menos assumidas também lhe podemos chamar identificação, informação,
comunicação, divulgação, marketing ou promoção do artista). É isso que vai permitir a construção
de uma narrativa de carreira que publicite e divulgue o artista junto dos agentes do sistema das artes
e do público, recorrendo a ferramentas como a realização de memórias descritivas, CVs, biografias,
portefólios, catálogos, publicidade às exposições, comunicados de imprensa e eventos sociais como
vernissages ou finissages (facilitadoras das relações sociais necessárias entre jornalistas/críticos,
galeristas, colecionadores, curadores e artistas).
6 Tome-se como exemplo o que refere Hans Obrist, curador de referência mundial, no seu livro
Ways of Curating, acerca de uma exposição realizada por um autor consagrado numa instituição de
topo do sistema como é o Centre Pompidou, em Paris: "Visitors wore headphones and listened to
radio transmissions that came in and out of focus as they moved through the space. (...) The multiple
pathways led to around sixty "sites" as Lyotard called them, which were dedicated to different
subjects and questions, from painting to astrophysics. As Lyotard explained in the exhibition
catalogue: "we wanted to awaken a sensibility, certainly not to indoctrinate minds. The exhibition is
a postmodern dramaturgy. No heroes, no myths. A labyrinth of situations organized by questions:
our sites... The visitor, in his solitude, is summoned to choose his way at the crossings of the webs
that hold him and voices that call him." (Obrist 2014: 158).
7 Tal raramente é apontado de forma direta. Simplesmente há certo tipo de arte mais polémica que
não é selecionada para galerias, museus, bienais, prémios, bolsas ou residências, assim como não
obtém crítica especializada ou credibilidade dos pares. Resumindo, na esfera pública da arte não tem
grande margem para existir. E diante desse contexto, quantos artistas consciente ou
inconscientemente não se autocensurarão para corresponder a esses padrões?
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8 Há autores que defendem que estamos perante uma autêntica "curatocracy" (Sandino 2012: 87-
100). Curatocracia é um neologismo que une as palavras curator (relativo à profissão de curador,
com origem no termo curator, vindo do latim e do seu atual uso em inglês no meio internacional da
arte contemporânea) + kratos (termo grego relativo a poder). Curatocracia nomeia um sistema onde
o poder é exercido por especialistas que controlam os discursos legitimadores e os subjetivos
critérios de mediação na arte (seleção, exposição, divulgação, análise escrita, etc). Tal implica
consequências para artistas e público, confrontados com o domínio pelos curadores dos mecanismos
de inclusão e exclusão que determinam para o resto da sociedade os cânones do que é arte, categoria
maior da chamada Alta Cultura.
9 Alguns artistas, muito poucos, conseguem o oposto: materializar um certo esprit du temps onde é
o seu estilo que se impõe junto do mercado, das elites ou do estado, servindo de referência às
convenções, gostos e interesses destes.
10 Com base na minha observação do meio português, como artista, noto que por exemplo
expressões artísticas feministas, pró-LGBT ou pós-coloniais (indiretamente antirracistas) são
relativamente bem aceites na arte, promovendo de forma “natural” a inclusão, de preferência sem
fazer desse ativismo o tema central, direto e explícito. Porém expressões anticlassistas e
antimarginalização socioeconómica são pouco frequentes, pelo menos ao nível dos artistas mais
reconhecidos no atual sistema da arte em Portugal.
11 Comparativamente, a expressão artística no cinema, no teatro, na literatura ou na música está
menos limitada. É melhor aceite a possibilidade de intervenção sociopolítica (ex: do
documentarismo de Michael Moore ao rap/hip-hop de Public Enemy, do teatro de Bertolt Brecht à
poesia de Richard Wilbur, entre inúmeros exemplos possíveis).
12 Ver: http://www.labiennale.org/en/art/exhibition/
13 Ver: http://universes-in-
universe.org/eng/bien/venice_biennale/2015/tour/all_the_worlds_futures_2/rirkrit_tiravanija +
http://www.labiennale.org/en/mediacenter/video/56-44.html
14 Não é por acaso que esse reconhecimento institucional já chegou a museus de peso que geram
legitimação sociocultural de valorização artística. Por exemplo através de coleções como a da Tate
Modern em Londres ou do Musée National d'Art Moderne em Paris (com significativos acervos de
cartazes de propaganda política do séc. XX) ou de exposições temporárias com conteúdos visuais
ativistas mais sintonizados com a contemporaneidade, como "Disobedient Objects" no Victoria &
Albert Museum (patente de 26/06/2014 a 01/02/2015 em Londres) ou "global aCtIVISm" no ZKM -
Zentrum für Kunst und Medientechnologie (patente de 14/12/2013 a 20/03/2014 em Karlsruhe,
Alemanha); havendo instituições museológicas que inclusive já dedicaram simpósios ao tema, como
é o caso do "Visual Activism Symposium" organizado pelo SFMOMA - San Francisco Museum of
Modern Art (a 14/03/2014 e 15/03/2014 em São Francisco, E.U.A.).
15 Canção de resistência composta por Zeca Afonso em 1971, durante o período da ditadura do
Estado Novo. A canção foi usada como uma das senhas transmitidas pela rádio que serviu de sinal
aos militares para o avanço das movimentações que originaram a revolução de 25 de Abril de 1974. A
sua letra, afirmando coisas como “o povo é quem mais ordena dentro de ti, ò cidade”, “terra da
fraternidade”, “em cada rosto igualdade”, converteu-se num hino da Democracia, da Liberdade, da
Igualdade, da Fraternidade e da “Revolução dos Cravos”.
16 Para mais informações sobre este movimento cívico criado em 2012 com o objetivo de se opor ao
modelo económico, financeiro e social desenhado pela Troika (BCE + UE + FMI) recomenda-se a
consulta dos seguintes links: http://queselixeatroika15setembro.blogspot.pt + https://pt-
pt.facebook.com/pages/Que-se-Lixe-a-Troika-Queremos-as-nossas-Vidas/177929608998626
17 Quando a expressão simbólica dum ato como este é forte, é documentado visualmente e é
disponibilizado online, há um potencial inspirador de tocar os outros que remanesce depois
disponível na internet, espalhando-se por vezes de forma viral, o que pode levar a que se executem
“reperformances” (Raposo 2013: 2) noutro lugar, noutro momento, estritamente miméticas ou com
variações (por exemplo, depois de “grandolarem”, isto é, cantarem a “Grândola, Vila Morena” ao
primeiro-ministro no parlamento, várias pessoas cantaram a mesma música a outros membros do
governo noutros lugares e noutros contextos públicos).
18 A própria CGTP - Confederação Geral dos Trabalhadores Portugueses já aderiu, embora
pontualmente, a protestos mais teatrais. Por exemplo encenando uma praia com toalhas, chapéus-
de-sol e fatos-de-banho para funcionários públicos no Terreiro do Paço em 26/07/2012.
19 Conceito cunhado por Benjamin Constant em 1804.
20 Sem esquecer, como refere Umberto Eco, que uma obra de arte mesmo em rotura com
determinadas normas anteriores, não pode romper com todas, para ainda assim ser reconhecida
como arte (Kirshof 2008: 5).
21 Enumerado de acordo com o Princípio da Igualdade consagrado no artigo 13º da Constituição da
República Portuguesa.
https://journals.openedition.org/cadernosaa/938?lang=fr 14/16
3/12/2021 Performances artivistas: incorporação duma estética de dissensão numa ética de resistência
22 Título de uma das mais importantes peças do teatro político de Beltolt Brecht (Mann ist Mann,
1926).
23 Para mais informações sobre os Liberate Tate, consultar: http://www.liberatetate.org.uk
24 No sentido etimológico de máscara, de personagem.
25 A exposição OS NOSSOS SONHOS NÃO CABEM NAS VOSSAS URNAS esteve patente de
4/07/2014 a 28/09/2014, com curadoria de Emília Tavares, no Museu Nacional de Arte
Contemporânea - Museu do Chiado, em Lisboa. A videoinstalação multicanal exposta projetava 10
vídeos intersectados com 10 representações de performances artivistas documentadas no espaço
público português. Funcionava como metáfora visual onde cada projeção se ligava a outra e,
simultaneamente ao conjunto, num todo. A composição refletia virtualmente várias realidades
performadas, analogia do que Hannah Arendt chamou de “espaço da aparência” (Arendt 2001: 249)
– o espaço que permite estruturar a esfera pública e por ela ser estruturado, um espaço que só é
possível constituir pela pluralidade de atores. Neste caso, atores de contrapoder em diversas
performances artivistas no espaço público (Mourão 2014, 37). Para ver a documentação visual da
videoinstalação e obter mais informações sobre o conceito da obra consulte:
http://www.museuartecontemporanea.pt/pt/programacao/os-nossos-sonhos-nao-cabem-nas-
vossas-urnas . Pode-se também consultar o livro publicado pelo próprio museu: Ensaio de Artivismo
- Vídeo e Performance. Parte significativa do ensaio baseia-se na investigação que realizei para o
mestrado em Antropologia – Sociedade e Cultura, no ISCTE-IUL (orientação do Prof. Paulo
Raposo).
26 Encontra-se disponível informação detalhada sobre o projeto, com reflexões mais aprofundadas,
em: http://artecapital.net/estado-da-arte-45-rui-mourao-os-nossos-sonhos-nao-cabem-nas-vossas-
urnas-quando-a-arte-entra-pela-vida-adentro-parte-i + http://artecapital.net/estado-da-arte-46-
rui-mourao-os-nossos-sonhos-nao-cabem-nas-vossas-urnas-quando-a-arte-entra-pela-vida-
adentro-parte-ii. É possível visualizar essas 3 performances artivistas, que no seu todo funcionam
como uma só performance em 3 Actos, a partir dos seguintes vídeos online:
https://vimeo.com/119287387, https://vimeo.com/120016187, https://vimeo.com/120014664.
27 O Manifesto Artivista pode ser lido na íntegra aqui:
https://docs.google.com/document/d/1Hcz4QByYwYNdb5uQ7dy7JQHD7LQxht9UaNXogshdZp8/pub.
28 A necessidade de animar a Democracia, de lhe dar vida para além da dimensão institucional,
aumenta perante a debilidade dos vínculos do sistema institucional político com a base social. A
própria Democracia só existe se houver pressão exterior às instituições no sentido duma
manutenção democrática das estruturas públicas. Nesse sentido, qual o estado atual das relações
entre cidadãos e política institucional? Observem-se alguns dados estatísticos que ilustram a
situação. Segundo o barómetro da Edelman Trust, em 2013 apenas 7% dos inquiridos portugueses
acreditavam que os líderes governamentais “dizem a verdade” em qualquer circunstância (fonte:
http://www.gci.pt/2013/edelman-trust-barometer-2013-empresas-disputam-confianca-com-
ongs/). Registe-se ainda como são cada vez mais elevados os valores de abstenção eleitoral e
descrença nos partidos e políticos, havendo cada vez menos pessoas que se identificam e filiam em
partidos, com perda de confiança nas tradicionais instituições democráticas (incluindo os orgãos de
justiça). A taxa de abstenção para a eleição da Assembleia da República passou de 8,3% em 1975
para 41,1 % em 2011, nas Autárquicas a abstenção rondou em 2013 os 45,25%, tendo sido em 1976 de
35,4%. Na eleição do Presidente da República os valores oscilaram de 24,6% em 1976 para 53,5% em
2011. Para o Parlamento Europeu alcançou-se o valor de 66,1% em 2014 quando em 1987 foi de
27,8% (fonte: Pordata, disponível em:
http://www.pordata.pt/Tema/portugal/participacao+Eleitoral-44).
Référence électronique
Rui Mourão, « Performances artivistas: incorporação duma estética de dissensão numa ética de
resistência », Cadernos de Arte e Antropologia [En ligne], Vol. 4, No 2 | 2015, mis en ligne le 01
octobre 2015, consulté le 11 mars 2021. URL : http://journals.openedition.org/cadernosaa/938 ;
DOI : https://doi.org/10.4000/cadernosaa.938
https://journals.openedition.org/cadernosaa/938?lang=fr 15/16
3/12/2021 Performances artivistas: incorporação duma estética de dissensão numa ética de resistência
Barbosa, Inês. Lopes, João Teixeira. (2020) “O Porto não se vende”: resistências à
gentrificação através da produção artística no período pós-austeritário. Cadernos
de arte e antropologia. DOI: 10.4000/cadernosaa.3201
Auteur
Rui Mourão
Artista e investigador independente, Lisboa, Portugal
mourao.rui@gmail.com
Droits d’auteur
© Cadernos de Arte e Antropologia
https://journals.openedition.org/cadernosaa/938?lang=fr 16/16