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REVISTA CONEXÕES PARCIAIS
Vol. 1 N.1 Nov. 2011
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Conexões Parciais
Revista Digital de Antropologia e Filosofia
Volume 1 Número 1 Dezembro 2011
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Expediente
Editor-Chefe
Editores Responsáveis
Conselho Editorial
Comissão Editorial
Produção Editorial
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Editorial
A capa foi realizada pela artista plástica Aleksandra
Chaushova, nascida em 1985 na Bulgária. Atualmente ela
mora e trabalha em Bruxelas.
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Para nós é extremamente satisfatório ver que uma empreitada que parecia tão
complicada e trabalhosa (e o é!) começa a mostrar seus resultados.
Muitos se perguntam a razão pela qual decidimos iniciar uma nova revista, havendo
tantas disponíveis (e já estabelecidas) para a publicação acadêmica. Primeiro,
pensamos que iniciativas como esta nunca são demais, especialmente se levarmos em
consideração o número de graduandos, mestrandos e doutorandos que produzem
regularmente. Segundo, porque está para nascer na Universidade Estadual de São
Paulo em Araraquara um Programa de Pós-Graduação em Antropologia, e a Revista
Conexões Parciais – esperamos – será um bom modo de veicular as suas produções
textuais.
Para este Editorial de Inauguração, convidamos o Prof. Roy Wagner para escrever
sobre Antropologia e Filosofia. Gostaríamos de agradecê-lo pela cooperação e pelo
apoio. O texto segue na próxima página.
Da mesma maneira, somos gratos aos pesquisadores que enviaram suas produções e
aos pareceristas: pelo apoio à iniciativa e pela compreensão.
Abraços,
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Roy Wagner
Beginning with the philosophy of Heraclitus, and continuing through the twentieth
century work of Ludwig Wittgenstein, philosophy has been on a quest to make a self-
evident statement about itself – a single phrase or what Wittgenstein would call a
proposition, so as to make further speculation unnecessary. Philosophy is into
stopping the world.
Heraclitus: “We live the god’s deaths, and they live ours.”
Wittgenstein: Tractatus 5.631: “There is no such thing as the subject that thinks and
entertains ideas”
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After this, as Wittgenstein so blithely puts it, there is nothing more to say. The world
of philosophy has been stopped. But not the world of anthropology; the world of
anthropology has just been started; anthropology begins where philosophy leaves off.
For the unstated assumption behind philosophical statements, such as the ones quoted
above, is that they are meaningful propositions about the world, propositions that can
be tested (if only against themselves) for truth-value, and then either believed in or
disbelieved. And although the metaphysical subject in Wittgenstein’s sense is
indifferent to the content and veracity of the world experience, Wittgenstein’s
statement to that effect is not. In other words Wittgenstein, like the other philosophers
quoted above, not only expects but actually demands that you believe in the results of
his philosophy. Belief in the relative is not relative at all: it is absolute.
This brings us to the testing point of the difference between philosophy and
anthropology: philosophy demands that one believe in things – even if only its own
refusal to believe in them – whereas anthropology encourages one to believe OUT of
them.
For most of us this is unfamiliar territory; what does it mean to believe out of
something? If the philosophical subject, in Wittgenstein’s sense, is only the limit of
the world, would it not be necessary to believe out of it in order even to believe in it?
For the eye establishes its perspective in just precisely this way. The anthropologist is
faced with the task of believing out of their indigenous subject’s perspectives in order
to recapture the vision of their own, but also with the task of believing out of their
own perspectives just to be able to grasp what the indigenous folk are up to.
Now we are back in familiar territory again, thanks to Eduardo Viveiros de Castro, for
what this savant has introduced to anthropology, perspectivism, is just exactly the
thing Wittgenstein was not looking for – the vantage afforded the metaphysical
subject to see beyond the limits fixed by propositional reality.
For the bias of philosophical vision is not only absurdly literal – an inability to take
metaphor at the more-than-face value its expression demands, but also absurdly
visual. Unless the reader can “see” beyond the limits of the printed page, they will not
hear Wittgenstein. And a proposition, no matter how aptly fixed in prose, is of little
value without its resonance in other propositions.
This brings us to the work of the ethnographer Steven Feld, a prodigy fieldworker
among the Kaluli people of Mt. Bosavi, Papua New Guinea, who was the first
anthropologist to determine and describe an acoustic world-perspective. As he puts it
in his book, Sound and Sentiment: “To you they are birds; to us they are voices in the
forest.” In the context of his efforts to establish visual recognition for the various bird
species – a task that failed miserably – Feld’s confreres told him that the appearance
of the birds themselves had nothing to do with the matter; their voices were the only
thing that counted. And voice could be anything, the, the call of an identifiable bird
species, a deceased relative who chose that form for purposes of communication, or
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even the dreaded triple-whistle of a sei sorcerer. Sound is the primary carrier of
emotion, and emotion holds the central tenor of any communication. (Try this
experiment: mute the sound on a motion picture or TV commercial, and you will
wonder wherein the meaning has gone to.) As Feld once put it, the Kaluli do not
inhabit a landscape but a soundscape, a panoramic 3D lifeworld where figures have
vocal shapes, living species can change from one form to another, waterfalls are
crescendos, distances are resonances, and overtones on drums speak with the voices
of the dead.
Perspectives, in other words, are not necessarily visual ones; how much of Feld’s
discovery could be put in a proposition by Wittgenstein? Kaluli do not act out their
rituals, they dance them – advisedly so, since the organs of balance, the prime
determiners of the body’s equilibrium, are located within the inner ear, and sensitive
primarily to tactile effects, like the touch of vibrations upon the eardrum.
Believing in, we are told, is an act of commitment, regardless of the subject involved,
and the evidence is that the historical Jesus never really believed in anything, even
himself, hence his seven last words upon the cross: “Eli, Eli, Lama Sabachthani” (My
Lord, My Lord, why doest thou foresake me?”) I would worry, too, given his
situation, but the evidence is that he was not really worried about himself at all, but of
God’s ability to believe in him. Now worrying about God in that way, whatever the
consequences, is not only caring, resourceful, and charitable – Christian in the
extreme – but also prima facie evidence of the Savior’s ability to believe out of God, a
thing the Creator Himself was obliged to do in conceiving Christ in the first place. As
my New Ireland informants had often pointed out to me, Jesus Christ was first and
foremost an anthropologist.
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ÍNDICE
ARTIGOS
ENSAIO
RESENHA
O Coração e a Razão: a hipnose de Lavoisier a Lacan, ISABELLE 133
STENGERS; LÉON CHERTOK
Miky Sugiyama
TRADUÇÃO
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RESUMO: Este artigo tem como objetivo abordar a longa existência de uma moral indígena que se
preocupa com o equilíbrio, ou melhor, o reequilíbrio constante entre a comunidade humana e o que nós
chamamos de “natureza”.
Palavras-Chaves: Comunidade Indígenas, Natureza, Equilíbrio Ecológico
ABSTRACT: This paper aims to approach the long-existing indigenous moral which is worried about
the balance or, rather, the constant rebalancing between human comunities and what we’ve came to
know as “nature”
Key-Words: Indigenous Communities, Nature, Ecological Balance.
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Em1939, estive presente a uma dessas refeições, realizada simultaneamente por cinco
grupos. Uma variedade de comidas foi trazida das residências. Sugeriram-me que
levasse sal e rapadura para o fogo de Chankanepera, ao qual pertencia. A festa foi
rápida, não havendo nem cerimônias, nem cantos acompanhando a refeição. Contaram
tanto a Baldus como a mim que os Grupos de Festa reuniam-se freqüentemente no final
da estação seca, quando os homens estavam mais aptos à descoberta e recolhimento de
mel silvestre. Além do estímulo à caça e à coleta na estação seca, não descobri
qualquer outra função desses Grupos de Festa.
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Para se organizar uma caçada a antas, é preciso que toda a aldeia xavante, todos
os seus moradores, estejam de acordo. Não pode ser o empreendimento de uma
família só. Naturalmente isto se explica porque uma anta é carne suficiente para muito
mais que uma família.
Algo semelhante Mary DOUGLAS encontrou na África, entre os Lele do Kasai,
com referência à caça ao elefante: todos, desde o xamã, desde o ferreiro que fabrica as
pontas de flecha, até os outros todos da aldeia, precisam estar de acordo, para que se
faça uma caçada a elefantes. Um caçador sozinho na floresta não pode matar a não ser
animal pequeno (ave ou esquilo), o que é suficiente para ele se alimentar.
Encontramos resquícios dessas preocupações até mesmo entre os atuais caiçaras
do litoral de São Paulo: segundo Noely de Oliveira (uma minha ex-aluna caiçara), na
praia do Sahy um pescador solteiro não deve ir pescar no alto mar, só mais próximo à
terra; isto certamente por que no alto mar existem peixes grandes, cuja pesca só se
justificaria para alimentar uma família inteira. A preocupação é portanto para que não
haja desperdício de alimento, isto é, de vida animal.
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Estas observações de Hildebrand podem ser aplicadas, de uma forma geral, aos
xamãs indígenas. Eles são os intermediários entre seres humanos e o que nós
chamamos de “natureza”.
Os xamãs também são chamados quando uma pessoa doente, apesar de ser
tratada com os remédios conhecidos na aldeia, não consegue se restabelecer.
Constatou-se que, entre os Kayabi, o xamã, para estabelecer um diagnóstico,
pergunta: se alguém desrespeitou os animais caçados, matou com crueldade, sem
necessidade, matou bichos mansos, que são criação de mamãe, rompeu tabus
alimentares, maltratou os filhos, descuidou-se das crianças pequenas, foi vítima de
fofocas, etc”(LINS, p.132). Percebe- se que essas questões se alinham segundo duas
coordenadas: as relações dos homens (do caçador) com a natureza (que devem ser de
reequilíbrio e de respeito) e as relações das pessoas da aldeia entre si (que devem ser
de partilha, de solidariedade). A doença é, então, o resultado de um desequilíbrio.
Dominique GALLOIS (in LANGDON) notou que, entre os Waiapi, os xamãs
que curam muitos doentes acabam por perder poder sobre os espíritos animais, que
todo xamã tem como auxiliares. Isto certamente se explica pelo fato de que, curando
muitos seres humanos, ele desequilibra as relações favorecendo os humanos contra os
animais e outros recursos de que se serve o homem.
Isto nos faz entender porque no Alto Rio Negro se acredita que os xamãs
conseguem penetrar, em êxtase, nas cavernas onde mora Waímaxsé, o dono dos
animais. (Vide REICHEL DOLMATOFF, 1968 – Dessana) Animais de caça estão aí
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inconscientes, e o xamã procura fazer com que eles sejam animados e liberados para
que o seu povo possa caçar. O senhor dos animais então perguntaria ao xamã: “Mas
com que energia eu vou liberá-los?” Pois é preciso que haja humanos que estejam
morrendo para que essa energia possa passar para os animais. O xamã responderá que
há muitas pessoas velhas que estão para morrer: é então uma espécie de hipoteca, uma
vez que a cosmovisão indígena é a de um circuito de energias limitadas que passam –
via alimentação – dos animais e plantas para os homens e vice-versa.
5. A COUVADE
Entre os povos Tupi, que concebem a criança como sendo produzida só pelo pai
(sendo o útero materno apenas uma espécie de vaso em que a criança cresce), quando
um indígena tem um filho, é ele que tem que ficar de resguardo: não pode sair para
caçar nem pescar, fica na rede, geralmente cuidando do bebê, deitado sobre o seu
corpo. Alguns psicólogos ou psicanalistas acham que se trata de uma tentativa de se
“apoderar” de uma maternidade que o homem não pode ter. Parece-me que é porque,
se um homem põe no mundo uma nova boca humana (um futuro caçador ou uma
futura mãe de novos seres humanos), ele não deve ao mesmo tempo ainda matar
animais ou peixes (seria uma hybris, um exagero para o lado humano). A mulher que
dá à luz pode perfeitamente trabalhar: o trabalho dela na roça é dar vida a plantas.
Entre os Guayaki, de língua aparentada ao guarani, Pierre Clastres não
relacionou o costume da couvade. O recém pai é mesmo obrigado a ir à caça; só que
ele vai muito preocupado, com medo mesmo: é que se crê que as onças percebem que
ele teve um filho e o procuram para devorá-lo. Portanto, a crença é a mesma.
Christine HUGH-JONES relata que no Alto Rio Negro “insemination is like
death” (p.128), isto é, a idéia de que após se reproduzir se deveria morrer, o que
corresponde a uma certa idéia de limitação da população humana, que era comum aos
nossos indígenas, antes do contato. No caso do Alto Rio Negro o casal, após ter um
filho, não pode ter relações sexuais durante três anos (p.131), ou ainda durante todo o
tempo em que a mãe amamentar o filho (p.140).
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Os exemplos acima não esgotam o que se poderia indicar como atitudes e ações
ecológicas dos nossos indígenas, mas creio que é suficiente. Pode-se ainda para
finalizar, acrescentar a informação dada por Marivaldo A. Carvalho:
Como exemplo podemos citar uma reportagem do caderno “Mais” do jornal
Folha de São Paulo, do dia 03 de outubro (2001). Nessa reportagem se falava do
seminário realizado em Macapá, seminário este que discutia a questão da
biodiversidade na Amazônia e a necessidade de se criarem novas unidades de
conservação ambiental. O levantamento dessas novas unidades de conservação
mostraram um fato muito interessante para o nosso estudo, principalmente no que se
refere á ligação entre os povos indígenas e a preservação da biodiversidade.
6. ÍNDIOS E BIOZELADORES
Com o mapa final, surgiram algumas surpresas. Descobriu-se, por exemplo, que
121 das 378 áreas definidas coincidiam com terras indígenas. No início do seminário,
isso ainda provocava arrepios nos “biológicos“, os que põem a conservação de
ecossitemas e espécies acima de tudo. ‘Estamos ferrados’, chegou a dizer um dos
conservacionistas extremados ao notar o número de superposições no primeiro (e
único) dia dedicado à identificação de áreas só com base em sua importância
biológica. No último dia todos já propunham o estudo de uma nova figura jurídica –
algo como conservas naturais indígenas – para garantir a preservação de recursos
biológicos e, também, seu usufruto exclusivo pela população indígena”(Carvalho,
2002, pág. 33).
O modo de produção de caça-coleta, pesca e horticultura de floresta implica em
todas essas preocupações e crenças relacionadas acima: o respeito pelos animais e
plantas, cujo ciclo de vida não deve ser cortado. Há regras severas para a caça: não se
pode caçar uma espécie animal quando ela está em fase de acasalamento e
reprodução, não se pode matar uma fêmea com filhotes, não se pode matar com
crueldade. Até mesmo na pesca tradicional, que preservou até hoje práticas milenares,
se deve evitar que os peixes sofram. Um exemplo disso, não do Brasil, mas do Alasca,
nos relata J. Waterman, a respeito de Herb, um caçador nativo athapasko:
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After Herb pulled his salmon ashore, He killed them immediately by smashing his
knife handle against their forehead... (porque) ... age-old traditions... mandated that
all animals be treated with respect. Even after fish are killed, their remains had to be
cared for properly. The spirits of animals could linger for days around their bodies
(...) (p.137).
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Bibliografia
BALDUS, Herbert.1970. Tapirapé: Tribo Tupi no Brasil Central. São Paulo: EDUSP,
Ed. Nacional.
CLASTRES, Pierre.1995. Crônica dos Índios Guayaki. São Paulo: Editora 34.
DOUGLAS, Mary.1999. “The Lele of Kasai”, In: Daryll FORDE (org.) African
Worlds. Berlim: Lit Verlag.
GALLOIS, Dominique 1996. Artigo sobre os Waiapi, In: LANGDON, Esther (org.)
Xamanismo no Brasil: Novas Perspectivas. Florianópolis: Editora da UFSC, 1996.
GOLDMAN, Lucien. 1980. Ciências Sociais e Filosofia. São Paulo: Editora Difel.
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VIDAL, Lux.1977. Morte e Vida de uma Sociedade Indígena Brasileira. São Paulo:
Hucitec-EDUSP .
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Clark Mangabeira
RESUMO: O conceito de complexidade trouxe novos desafios à Antropologia. O objetivo deste artigo
é pensar sobre a relação entre agência individual e estrutura sob o escopo da complexidade a partir do
caso histórico do guerreiro espartano Aristodamos. Para uma compreensão da relação entre este
indivíduo e a sociedade grega, não apenas a teoria antropológica foi considerada: elementos de outras
esferas das Ciências Sociais e da Filosofia foram usados para uma melhor compreensão dos fatos
culturais. Busca-se ressaltar alguns possíveis olhares sobre o entendimento histórico e filosófico da
relação entre Cultura e Indivíduo.
PALAVRAS-CHAVE: Complexidade; Evento Pessoal; Aristodamos; Agência; Sociedade grega;
Esparta.
ABSTRACT: The concept of complexity has brought new challenges to Anthropology. The aim of this
paper is to think about the relationship between individual agency and structure under the scope of the
concept of complexity stemming from the historical case of the Spartan warrior Aristodamos. For an
understanding of the relationship between this individual and the Greek society, anthropological theory
was not the only one considered: elements from others spheres of the Social Sciences and Philosophy
were used to achieve a better understanding of cultural facts. This paper aims to highlight some
possible views on the historical and philosophical understanding of the relationship between Culture
and Individual.
KEYWORDS: Complexity; Personal event; Aristodamos; Agency; Greek society; Sparta.
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A história da vida individual de cada pessoa é acima de tudo uma acomodação aos padrões
de forma e de medida tradicionalmente transmitidos na sua comunidade de geração para
geração. Desde que o indivíduo vem ao mundo os costumes do ambiente em que nasceu
moldam a sua experiência dos fatos e a sua conduta. (Benedict 1934, p. 15)
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“Aristodamos o covarde”; mas na batalha de Platéia ele se reabilitou da acusação que lhe
fora feita. (Heródoto 1988, p. 405)
Outro dos Trezentos também se salvara: Pantites teria levado uma mensagem
à Tessália e sobrevivido. Regressando a Esparta, recebido também em desonra,
enforcou-se.
Continua Heródoto narrando a estória de Aristodamos afirmando que, na
Batalha da Platéia, posterior, o guerreiro foi, de longe, na opinião do historiador, o
mais valente. Ao lado de Poseidônios, Filocíon e Amonfáretos, os espartanos
discutiram sobre qual teria sido o mais bravo. Contudo, “Aristodamos, abandonando o
seu posto como um possesso, tinha praticado grandes feitos por que procurava
claramente a morte para escapar ao labéu que o marcava sempre, enquanto
Poseidônios se portou como um bravo sem procurar a morte” (Heródoto 1988, p.
474). Dentre todos os espartanos mortos que receberam as honras fúnebres,
Aristodamos continuou na desonra, sendo o único a não recebê-las. Suas condutas
individuais e o abandono do posto não tinham conexão com a realidade do hoplita
espartano.
As ações desses três espartanos, em especial a de Aristodamos, confluem para
percebermos o horizonte cultural da sociedade grega. Enquanto hoplita, a formação
do guerreiro obedecia a determinadas regras sociais. A sociedade espartana, muito
embora tenha se fechado em si com a revolução hoplítica, tornando-se uma sociedade
militar, tem relações com o mundo espiritual grego, da qual é fruto e para o qual flui
em termos culturais. As relações entre a Grécia e Esparta, o mundo simbólico que
rege a cultura grega – com todas as incoerências que este termo abrange – a partir da
constituição da polis, e o tipo de individualismo que é resultante das tradições
culturais gregas devem ser considerados para compreendermos as atitudes dos
espartanos para com Aristodamos e a noção de honra versus desonra que caracterizou
sua vida.
Antes, contudo, o plano de fundo para se entender as atitudes de Aristodamos
pressupõe uma concepção de sujeito que lhe dê base. No âmbito da interpretação aqui
proposta, a concepção de Michel Foucault (1985 e 2005), que parte necessariamente
do entendimento do conceito de sujeito como uma instância discursiva, elucida a
dinâmica do caso em questão, já que o trabalho do filósofo francês começa não de um
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sujeito dado, mas dos processos de sujeição que antecedem a formação daquele
sujeito.
Com a lente analítica no nível da sujeição, Foucault define o sujeito tanto
como um ente “sujeito a alguém” pelo controle, ressaltando o domínio que diversas
instituições de poder exercem sobre o indivíduo e o consequente processo de
assujeitamento por relações exteriores, quanto como um sujeito preso a uma
identidade que lhe fora atribuída como sua. Na interpretação de Dreyfus e Rabinow
(1995), este (possível) sujeito foucaultiano é duplo: um sujeito-objeto produto de
relações de poder e, também, um sujeito-livre, parâmetro no qual prevalece a
possibilidade de insubmissão, de liberdade, que resiste ao assujeitamento.
Sem esgotar a problemática foucaultiana e focando nela sem elucidar as
inúmeras críticas possíveis a partir de noções como práxis, história e invenção,
incabíveis no escopo deste trabalho, a ideia do sujeito histórico constituído em
relações de poder é capital para entendermos Aristodamos. Enquanto guerreiro,
hoplita e espartano, sua concepção como sujeito-objeto mantém-se atrelada ao seu
momento histórico e às forças que o “assujeitaram” enquanto processos disciplinares.
Como sujeito-livre, são suas atitudes em ambas as batalhas – Termópilas e Platéia –,
que se iluminam enquanto confronto contra aquele assujeitamento. No meio-termo,
sua morte e seu legado aparecem no centro da tensão entre sujeição e liberação,
mostrando o panorama mais amplo da multiplicidade de convenções e ambiguidades
da própria “cultura grega”.
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o universo simbólico a partir do qual os gregos pautavam suas vidas. Apesar das
particularidades dos diversos estados1 que compõem a complexa sociedade grega,
frutos de tradições culturais diferentes que para lá confluíram – encontramos
elementos minóicos, micênicos e asiáticos fundidos –, é a polis que passa a comandar
todas as esferas da vida social, cultural e política, com traçados mais ou menos
marcantes e diferenciados entre as cidades-estados, mas a mesma essência.
Werner Jaeger (1986) expõe que há duas formas fundamentais que
representaram a totalidade da cultura política grega: de um lado, Atenas, a partir das
influências jônica e ática, com repercussão na esfera filosófica e artística; e, de outro,
Esparta, do ponto de vista do ideal de educação política e formação dos homens
gregos. Embora a última não tenha autonomia na história da filosofia, sua
contribuição marcante é a força educadora do seu estado, baseada na preparação
militar que atravessa as fronteiras dessa polis. Destarte, um Estado Grego, enquanto
unidade de várias cidades, em sua essência, só pode ser compreendido se atentarmos
para essa multiplicidade das formas que o compõem – nos termos já citados de Barth,
as streams of cultural traditions –, embora seja exatamente a instituição da cidade e a
vida em comunidade, conforme já citado, seus marcos estruturais: “só na polis se
pode encontrar aquilo que abrange todas as esferas da vida espiritual e humana e
determina de modo decisivo a sua estrutura” (Jaeger 1986, p.73).
A estrutura da vida passa a ser guiada por dois pólos: com o desaparecimento
da ánax, o rei micênico, inicia-se um período de desordem marcado pela oposição de
duas forças – retratadas na instabilidade entre as comunidades aldeãs e a aristocracia
guerreira – para as quais se busca um equilíbrio, cujas reflexões tomam por objeto o
mundo humano e a redefinição da ordem a partir do conflito. O corpo social,
heterogêneo, deve, contudo, unir-se, fusionar-se, e, entre o poder de conflito (eris) e o
poder de união (philia), irrompe a polis, a ágora, a política, a oratória, o debate
público, a força da persuasão (peithó) e um espaço social novo: não há mais o
comando único do palácio real micênico, mas o espaço público que ocupa o centro da
cidade onde as decisões são tomadas com base nas discussões. “A cultura grega
constitui-se dando a um círculo sempre mais amplo – finalmente ao demos todo – o
1
Seguimos o entendimento de Werner Jaeger de que os vocábulos “estado” e “polis” são sinônimos
entre o fim do período patriarcal e a fundação do Império Macedônio (Jaeger 1986, p.73).
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1992, p.27). Por fim, voltando-nos para as características específicas dos espartanos, o
que nos dará um segundo pilar para a explicação das atitudes de Aristodamos, ressoa,
ainda, uma pergunta: qual o espaço do indivíduo, no sentido stricto do termo, nessa
sociedade, ou melhor, na cidade?
***
A marca distintiva das batalhas gregas veio com a reforma hoplítica, a partir
do século VI a.C., quando a função guerreira foi estendida a certos setores do
campesinato. Na polis, o status de cidadão coincidiu com o de guerreiro, surgindo o
cidadão-guerreiro, ao mesmo tempo em que, no apogeu de Esparta, que vai do século
VI ao século IV a.C., destaca-se a Segunda Guerra Messênia como o evento que
impôs a todos os cidadãos espartanos a forte disciplina militar, a agoge.
A guerra na época clássica era um evento natural para os gregos. A
confrontação entre os poderes de união e os de conflito estendia-se até o plano da
política entre as cidades, sendo a guerra uma expressão de rivalidade normal. Se, com
a polis, as famílias se achavam ligadas umas às outras por outros e novos laços
cívicos, a guerra passou a ser negócio de estado, e “a organização militar se inscreve
sem corte no exato prolongamento da organização cívica” (Vernant 1992, p.32).
Estamos diante de um novo nível que, portanto, integra a reforma que o
aparecimento da cidade trouxe para os gregos: a reforma hoplítica coloca no contexto
das guerras os mesmo valores coletivos que a cidade, a política e a religião trouxeram
para os planos mental, espiritual e social. A cidade incorporou no seu ethos a
disciplina guerreira, coletivizando e uniformizando-a, fazendo prevalecer a philia. Se,
na época homérica, a façanha individual, o heroísmo solitário do combate singular,
impunha-se, agora o guerreiro, misturado, confundido, miscigenado ao cidadão,
desaparece enquanto herói de façanhas individuais. Os valores guerreiros passam a ser
os do cidadão e vice-versa, e agora não é mais a hybris, o lado inquietante do herói
homérico, expressão da eris, o furor, o êxtase, a “possessão” – nos termos de
Heródoto sobre Aristodamos – que deve tomar conta do guerreiro em campo. A
virtude da batalha, de conformidade com o cosmos da polis, é, agora, o princípio da
falange, a luta lado a lado, os guerreiros iguais que batalham sempre em conjunto e
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Desse ponto de vista, guerra e paz não constituem dois estados radicalmente opostos, não
inaugurando a abertura de hostilidades uma ruptura completa com o estatuto de direito
anterior, o abandono de regras reconhecidas nas relações entre grupos, a entrada num mundo
religioso inteiramente diferente. A guerra não é nem pode ser anomia, ausência de regras
(Vernant 1992, p. 38).
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advento da polis deu para a Grécia clássica inteira. A primazia do todo sobre as
partes, a semelhança entre os cidadãos, a ordenação dos espaços mental, espiritual e
social, tudo se refletia em Esparta que, na tradição de cidade de hoplitas, manteve-se
coerente com o resto do mundo grego (Vernant 1977 e Romeo 2006). Havia
permanente busca de equilíbrio entre as forças opostas até aqui destacadas, entre as
virtudes que deveriam sobressair e os instintos que deveriam permanecer
adormecidos, os limites que os lacedemônios eram talhados para respeitar.
Ao contrário de Atenas, na qual houve a emergência de um plano político mais
abstrato, uma divisão completa do poder de comandar entre os cidadãos livres através
da peithó, uma polis voltada para o mar, fator que estimulou o espírito empreendedor
dos citadinos, Esparta manteve-se no tradicionalismo militar, subjugada totalmente ao
princípio da ordem, à supremacia do direito, à semelhança que compõe a cidade e a
defenderá dos perigos da diferença. Nesta polis e na guerra é o indivíduo quem deve
curvar-se à lei do grupo: a falange e o cidadão-guerreiro são o centro a vida dos
lacedemônios e, por exemplo, ao passo que em Atenas a educação estará ligada à vida
doméstica, em Esparta a philia impõe-se principalmente pelo agoge, educação estatal
de formação militar encarada como atividade cívica (Vernant 1987):
Quando uma criança nascia, o pai não tinha o direito de criá-la. Devia levá-la a um lugar
chamado lesche. Lá assentavam-se os Ancião da tribo. Eles examinavam o bebê. Se o
achavam bem encorpado e robusto, eles o deixavam. Se era mal nascido e defeituoso,
jogavam-no [de um penhasco]. Julgavam que era melhor, para ele mesmo e para a cidade,
não deixar viver um ente que, desde o nascimento, não estava destinado a ser forte e
saudável [...]. Ninguém tinha permissão para criar e educar os filhos a seu gosto. Quando os
meninos completavam sete anos, [eram arregimentados] em tropas, [submetidos] a um
regulamento e a um regime comunitário para acostumá-los a brincar e trabalhar juntos. [...]
Ensinavam a ler e escrever apenas o estritamente necessário. O resto da educação visava
acostumá-los à obediência, torná-los duros à adversidade e fazê-los vencer no combate.
(Plutarco 1998, p. 108-9)
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leis solenes escritas, conhecidas como Rhetra. A Lacedemônia deixara para outras
cidades o desenvolvimento pleno da palavra como manifestação da democracia
política, enquanto encarnara e tomara para si como centro basilar da sua vida os
princípios de ordem e submissão igualitária dos cidadãos às leis – hómoioi.
Vale ressaltar que a igualdade espartana esboçou-se num fundo de
desigualdade, segregando aqueles que não participavam do princípio de semelhança:
os periecos, os hipoméionas, os hilotas e os escravos. Apenas os cidadãos-guerreiros
plenos, hoplitas, viviam na semelhança e tinham plenos poderes na polis. Contudo,
destacava-se na cidade espartana que esta não era um universo separado da Grécia: a
exacerbação da ordem, da semelhança, da philia, tudo era um reflexo mais
condensado, cristalizado, homogêneo, forte, compacto da Grécia clássica. A
Lacedemônia, através da agoge, transformou-se em uma espécie de acampamento
militar cujo centro era a organização e a disciplina, sendo a guerra uma das formas de
exercício da política, ou melhor, a própria política. Prevalecia o público, um tipo de
holismo que, conforme e dentro da tradição grega, estruturava a vida estatal e social,
separava rigidamente os estratos da população, protegia a ordem interior. O político
incorporara o militar, o cidadão virara também guerreiro, como já dito, e, “tal como
num acampamento militar, na cidade todos tinham as suas ocupações e modo de vida
regulamentados em função das necessidades do Estado e tinham consciência de não
pertencerem a si próprios, mas à Pátria” (Jaeger 1986, p. 77).
A mentalidade espartana e seu holismo peculiar tiveram como reflexo um tipo
também datado de individualismo. De acordo com Vernant, os gregos – em especial
os lacedemônios – possuem uma experiência interior cuja organização difere
sobremaneira da nossa. Não há introspecção, um sujeito que enxerga a si mesmo
como um mundo fechado, mas, ao contrário, extroversão, na qual o indivíduo observa
e se espelha no outro para se compreender. A consciência de si está atada ao exterior e
“o mundo do indivíduo não adquiriu a forma de uma consciência de si, de um
universo interior que define, na sua origem radical, a personalidade de cada um”
(Vernant 1987, p. 39), estando, contrariamente, em conformidade com o universo da
polis, do público sobre o privado.
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formara a grandeza militar de Esparta, teria sido um enviado de Apolo, de modo que
suas normas seriam de inspiração divina, regras fundamentais da totalidade humana,
uma força espiritual de amor a pátria. Reiterava-se, pois, os já citados elementos de
ordem, a philia, o lado apolíneo – literalmente – do homem, e a comunidade surgia
magnata. Esparta era uma cidade vinda diretamente de Apolo e, assim, toda a
harmonia daquele deus reinava imperante.
Foi contra essa polis como a suma de todas as coisas da terra aos céus, muito
mais do que apenas contra sua própria reputação, que Aristodamos lançou-se. Na
Termópilas, sua fuga, tal qual descrita por Heródoto, representou, por um lado, a
ruptura da unidade que a falange representava, e, de outro, uma “fraqueza de alma”
que fazia sobressair, em um plano maior do que a unidade militar, o princípio da eris:
a fragmentação vencia a totalização. Nosso covarde representava a desordem, o
descontrole, o medo, o desrespeito à tradição militar, enfim, todos os defeitos que a
honra guerreira mais plena rejeitava.
A rede coerente de significados através da qual o indivíduo podia mover-se
restava incoerente com a atitude do guerreiro: sua pretensa covardia rompia os limites
da equalização de todos diante das leis e da ordem, o princípio igualitário que regia a
vida de todos os espartanos. Por um lado, Euritos, mesmo enfermo, lutara e morrera
ao lado dos seus semelhantes. Não havia para este outra possibilidade se não a de
render-se a Apolo, a semelhança e a “desindividualização” que garantia a
impenetrável falange e era maior do que quaisquer doenças ou males de que pudesse
estar sofrendo: ele realizou-se na comunidade, imortalizou-se com a continuação de
Esparta.
Por outro, Pantites, em situação de desonra similar a de Aristodamos,
enforcou-se e escolheu o holocausto pessoal por saber impossível voltar ao status
anterior de cidadão-guerreiro honrado. Numa sociedade com um tipo de
individualismo pautado no outro, no todo social, traí-lo, descaracterizar a cidade,
levava incomensuravelmente à tragédia. Não existia indivíduo fora do todo e Pantites
não era mais, por conseguinte, um ser. Tornara-se um “nulo social” e entendia isso:
sabia ser um indivíduo descolado da teia de significados que lhe dava a base da sua
existência. Sabia que não era mais um espartano, no sentido pleno da palavra, e sua
opção pela morte do corpo físico era apenas um prolongamento da morte social que
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selara com suas atitudes durante a batalha, atitudes há muito já condenadas pelo poeta
enviado de Apolo:
É belo que o homem bravo, combatendo por sua pátria, tombe na linha de frente; mas o que
deserta da sua cidade e de seus campos férteis e vai mendigar, errando com sua querida mãe,
seu velho pai e seus filhos, esse é o mais miserável dos homens (...). Nós, corajosamente,
combatemos por esta terra; morremos por nossos filhos; não poupamos a nossa vida. Ó
jovens! Combatei unidos uns aos outros e não temais senão a vergonha da fuga; estimulai
em vossos corações uma valente e sólida coragem e não vos inquieteis com a vida, na luta
contra o inimigo (...). Combatemos, pois, com coragem, por esta terra; morramos por nossos
filhos, sem jamais poupar nossas vidas (Tirteu apud Arruda 1993, p.139).
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Assim como aqueles cujas reações naturais mais se aproximam do comportamento que
caracteriza a sociedade a que pertencem são favorecidos, assim também aqueles cujas
reações naturais caem dentro do arco do comportamento que não é adotado pela sua cultura
são “desqualificados” (Benedict 1934, p. 283).
Ele estava possesso, conforme escreveu Heródoto. Uma possessão que pode
ser compreendida no contexto dionisíaco, de êxtase, falta de razão e furor que
carregava em si o traço negativo de ressaltar as desigualdades e estimular a distância
entre os indivíduos. Ao lançar-se contra os inimigos saindo do seu posto na falange,
Aristodamos quebrara a unicidade do grupo militar e do ethos que ele representava.
Condenou-se à desonra e à tragédia pela segunda vez: se na Batalha das Termópilas
não observara o ideal da philia, a semelhança e a unidade do grupo, as virtudes que
Tirteu cantava nas suas elegias e que representava a honra espartana através da agoge,
na Plateia continuou a romper com o grupo agora buscando sobressair-se, entregando-
se à hybris e embebedando-se no impulso dionisíaco que enfraquecia a ordem
apolínea. Não lutou com moderação visando o bem maior, com pleno domínio de si
na sophrosyne.
Por fim, morreu sozinho, sem receber homenagens fúnebres. Morreu próximo
dos outros hoplitas, mas distante do ideal espartano que eles defendiam ferrenhamente
e a partir do qual o estado consumava-se em sua plenitude. Não era mais um hoplita:
era um entusiasta, um homem entregue às paixões, um ser possuído pelo dionisismo
no sentido de que não observava a ordem, a razão; um indivíduo distante do mundo
social que ditava todas as regras do tipo de individualismo permitido e construído a
partir de tradições múltiplas e estabelecido com a emergência da polis e tudo aquilo
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que ela representava. Não era mais um cidadão-guerreiro. Fora enterrado na vala
comum daqueles que não estavam amarrados na teia de significados da cultura grega
em geral e da espartana em particular. Seu destino, por duas vezes, o traíra, e ele se
deixou levar pela traição sem dominar a si mesmo, sem entregar-se a Apolo.
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Bibliografia
BARTH, Fredrik. 2000. A análise da cultura nas sociedades complexas. In: O guru, o
iniciador e outras variações antropológicas. Rio de janeiro: Contra Capa Livraria.
FOUCAULT, Michel. 1985. História da Sexualidade, vol III - O cuidado de si. Rio
de Janeiro: Graal.
GEERTZ, Clifford. 1978. A Interpretação das Culturas. Rio de Janeiro: Jorge Zahar
Ed.
GINZBURG, Carlo. 2006. O queijo e os vermes. São Paulo: Companhia das Letras.
JAEGER, Werner. 1986. Paidéia: a formação do homem grego. São Paulo: Martins
Fontes.
PLUTARCO. 1998. “A vida de Licurgo”. In: PINSKY, Jaime. 100 Textos de História
Antiga. São Paulo: Contexto, p. 108 – 109.
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______. 1987. “O Indivíduo na Cidade”. In: VEYNE, Paul; VERNANT, J.-P.; et all.
Indivíduo e poder. Lisboa: Edições 70, p. 25 – 44.
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Resumo: Este artigo focaliza um problema clássico na história da antropologia: o totemismo. Seu
ponto de partida é aquilo que poderia ter sido o destino final da questão totêmica na disciplina
antropológica: a solução classificatória operada por Lévi-Strauss, a qual foi responsável por diluir o
totemismo no escopo geral dos sistemas de classificação, esvaziando-o da pretensa realidade
institucional e religiosa até então admitida por muitos dos autores que o precederam. Analisando os
termos do debate e da abordagem levi-straussiana, o artigo visa, contudo, mostrar que a problemática
do totemismo não se encerrou com a proposição cética adotada por Lévi-Strauss, tendo sido
recentemente retomada e criticamente revista por aquele que é hoje um dos principais herdeiros do
estruturalismo francês, o antropólogo Philippe Descola. Conforme veremos, entre a solução
classificatória do primeiro e a solução ontológica do segundo, o que parece estar em questão são as
concepções antropológicas e indígenas a respeito da relação entre aqueles domínios ocidentalmente
denominamos de natureza e cultura.
Palavras-Chave: totemismo, Lévi-Strauss, Descola, sistemas de classificação, ontologias, natureza,
cultura.
Abstract: This paper focuses on a classical problem in the history of anthropology: totemism. The
starting point is what could have been the final destiny of the totemic issue in the discipline of
Anthropology: the classificatory solution operated by Lévi-Strauss, which was responsible to dissolve
totemism in the general scope of the classification systems, emptying it from the pretended institutional
and religious reality that was until then admitted by many preceding authors. Analyzing the terms of
the debate and the Levi-Straussian approach, the paper intends however to show that the problematic of
totemism has not ended by the skeptical proposition adopted by Levi-Strauss, having recently been
resumed and critically reviewed by one of the main heirs of French structuralism: the anthropologist
Phillippe Descola. As we shall see, between the classificatory solution of the former and the
ontological solution of the latter, what seems to be in question are the anthropological and indigenous
conceptions about the relationship between those domains that we in the West call Nature and Culture.
Keywords: totemism, Lévi-Strauss, Descola, classification systems, ontologies, nature, culture.
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foram tão contundentes que parecem ter cessado por um longo tempo as
discussões e o próprio interesse pelo totemismo enquanto um fenômeno etnográfico,
como bem enfatizou Viveiros de Castro na passagem que serve de epígrafe a este
trabalho.
Contudo, o que busco mostrar neste artigo, uma vez analisados os termos do
debate e da abordagem levi-straussiana, é que a problemática do totemismo não se
encerrou com a proposição cética adotada pelo autor, tendo sido recentemente
retomada e criticamente revista por aquele que é hoje um dos principais herdeiros do
estruturalismo francês, o antropólogo Philippe Descola. Problematizando o tratamento
dado por Lévi-Strauss à questão totêmica e sua ênfase sobre o âmbito metafórico das
relações entre natureza e cultura, Descola se voltará aos materiais etnográficos
australianos – região que fora foco de grande parte das discussões clássicas sobre a
questão – no intuito de repensar o totemismo sobre outras bases: não mais enquanto
uma lógica classificatória, mas como um modo particular de identificação entre
humanos e não-humanos que apontaria para uma realidade ontológica específica.
Conforme veremos, entre a solução classificatória do primeiro e a solução ontológica
do segundo, o que parece estar em questão são as concepções antropológicas e
indígenas a respeito da relação entre estes domínios ocidentalmente denominados de
natureza e cultura.
Ressalto, todavia, que a proposta do artigo não é a de lidar propriamente com os
âmbitos teórico-metodológicos mais gerais dos trabalhos de Lévi-Strauss e Philippe
Descola. O intuito é apenas o de tentar compreender os termos da (dis)solução do
primeiro ao problema totêmico para, a partir disso, verificar como e porque o
tratamento levi-straussiano do totemismo enquanto lógica classificatória será
criticamente revisto por Descola – primeiramente, através do resgate da velha noção
de animismo, mas, sobretudo, pela reconsideração do próprio totemismo enquanto um
fenômeno ontológico (e etnográfico). Desse modo, mesmo lidando tangencialmente
com os pressupostos teórico-metodológicos mais gerais do trabalho de ambos os
autores, é para o problema específico do totemismo que o artigo busca se voltar: um
problema, digamos, propriamente etnológico.
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É comum ouvir dizer que Lévi-Strauss teria sido o grande responsável pela
dissolução do totemismo, ao abordá-lo enquanto “um caso particular do problema
geral das classificações” (Lévi-Strauss 1989, p. 78). Diluído assim na atividade
classificatória do pensamento selvagem, o totemismo deixaria de se referir a qualquer
realidade institucional ou fenômeno religioso, para tornar-se um modo de
classificação cujo princípio geral seria o da utilização metafórica das
descontinuidades empiricamente observáveis no mundo natural como, antes de tudo,
um método para a concepção e a organização da vida social. Com tal abordagem,
Lévi-Strauss afastou a idéia de que o totemismo pudesse ser caracterizado por algum
tipo de identificação substancial entre os grupos sociais e seus totens, além de solapar
as interpretações biologizantes e utilitaristas que viam no fenômeno as conseqüências
naturais do primado da razão prática: animais e vegetais, na famosa expressão do
autor, não se tornariam totens por serem “bons para comer”, mas antes por serem
“bons para pensar”.
Sabe-se quanta tinta foi gasta com a questão totêmica pelos antropólogos
clássicos. Desde que McLennan trouxe à cena intelectual a noção de totemismo, em
seu artigo The Worship of Animals and Plants publicado em 1869 pela britânica
Fortnightly Review, o problema totêmico não parou de inquietar as principais cabeças
do cenário antropológico, adquirindo também espaço proeminente em investigações e
especulações de outras áreas, particularmente na psicologia, com Sigmund Freud e
seu clássico Totem e Tabu. Dos evolucionistas aos funcionalistas britânicos; passando
pelos culturalistas da escola norte-americana; até a escola sociológica francesa, com
Durkheim e As Formas Elementares da vida religiosa; muitos foram os que se
pronunciaram a respeito do totemismo, seja para afirmar sua realidade e unidade
original, seja para problematizar a pretensão dos que assim o defendiam.
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O mundo animal e o mundo vegetal não são utilizados apenas porque existem, mas porque
propõem ao homem um método de pensamento. A conexão entre a relação do homem com
a natureza e a caracterização de
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grupos sociais, que Boas julga contingente e arbitrária, só aparece assim porque a ligação
real entre as duas ordens é indireta, passando pelo pensamento (ib., p.23-24).
1
“A Teoria Sociológica do Totemismo”, texto de 1929 e incluído na coletânea Estrutura e Função na
Sociedade Primitiva.
2
Assim dirá Lévi-Strauss em sua crítica a esta perspectiva: “Segundo a primeira teoria de Radcliffe-
Brown, como também para Malinowski, um animal só se torna ‘totêmico’, quando, em primeiro lugar,
é ‘bom para comer’” (1975, p. 68).
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3
Lembremos da famosa passagem de Malinowski a respeito do totemismo exposta em Magia, Ciência
e Religião: “O caminho do mato até a barriga do selvagem e, consequentemente, até ao seu cérebro é
muito curto e para ele o mundo é um ambiente indiscriminado no qual se destacam as espécies úteis,
principalmente as comestíveis, de animais e plantas” (1988, p. 47).
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naturais; de outro, e paralelamente, a série formada por grupos sociais, que apesar de
diferenciados entre si, não apareceriam marcados por qualquer diferença significativa
no plano das qualidades sensíveis. Daí, a primeira série de diferenças, por seu caráter
empiricamente descontínuo, forneceria um poderoso modelo formal no qual se
apoiaria a série social para simbolizar sua diferenciação interna.
Desse modo, antes que por qualquer relação de identidade entre os termos das
duas séries, a lógica totêmica operaria pela estipulação de uma homologia entre os
elementos diferenciais que existem, de um lado, entre uma espécie x e uma espécie y,
e, de outro, entre um grupo A e um grupo B. Pois, como dirá Lévi-Strauss, a conexão
entre espécies totêmicas e grupos sociais “não é arbitrária; e também não é uma
relação de contiguidade” (1975, p. 82). E mesmo permanecendo a tese de que ela seja
fundada na percepção de uma semelhança, “é preciso saber ainda onde se situa esta
semelhança e em que plano ela é apreendida” (ib. pp.82). Assim, concluirá o autor:
“Se nos é permitida a expressão, não são as semelhanças, mas sim as diferenças que
se assemelham (...). A semelhança que as representações ditas totêmicas supõem é
entre estes dois sistemas de diferenças” (ib., p. 83) – o das espécies naturais e o dos
grupos sociais.
E isto, segundo Lévi-Strauss, seria afirmado pela própria teoria nativa, o que
poderia ser facilmente verificado prestando-se atenção ao que dizem os mitos de
origem de certos povos considerados totêmicos. Assim, dirá o autor, depois de
analisar um mito ojibwa sobre a origem dos clãs:
Enfim, ela [a teoria indígena] nos previne contra a tentação de construir um sistema
totêmico pela adição de relações tomadas cada uma separadamente e unindo cada vez um
grupo de homens a uma espécie animal, enquanto a relação primitiva é entre dois sistemas:
um baseado na distinção dos grupos, outro, na distinção das espécies, e de tal maneira que,
por um lado, uma pluralidade de grupos e, por outro, uma pluralidade de espécies, são
colocadas imediatamente em correlação e em oposição (1975, p.29).
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entre os termos da série natural e os termos da série social seria uma relação
metafórica, mediada pelo sistema de relações globais estabelecidas entre as duas
séries.
E colocando o problema desse modo, a teoria indígena ajudaria a esclarecer um
equívoco de longa data na história das hipóteses totêmicas, cujo fundamento estaria
num mal-entendido etnográfico: a confusão entre totem e manido, que apesar de
remeterem a fenômenos inteiramente distintos da cultura ojibwa, foram confundidos e
tomados enquanto aspectos de um mesmo complexo geral. Pois, de um lado, a palavra
totem (ou, mais exatamente, ototeman) exprimiria simplesmente a filiação aos clãs
(designados em sua maioria por espécies animais) e remeteria, portanto, a um sistema
de denominações coletivas. De outro lado, haveria a crença ojibwa em certos espíritos
guardiões em forma de animal, com os quais os indivíduos poderiam estabelecer uma
série de relações pessoais, e que, conforme o autor, não teria “nada a ver com a
palavra totem ou outra expressão do mesmo tipo” (1975, p. 28).
Desse modo, a caracterização do totemismo pela crença em uma relação íntima
e mística entre os homens e os totens animais, seria, de fato, fruto desta confusão
original entre dois fenômenos que, apesar de aparecerem frequentemente combinados,
se situariam em planos distintos. Pois, atenta Lévi-Strauss, é “a própria teoria
indígena, tal como a exprime o mito, que nos convida a separar os totens coletivos dos
espíritos guardiões individuais, e a insistir no caráter mediador e metafórico da
relação entre o homem e o epônimo do clã” (1975, p. 29). Enquanto que a relação
com os espíritos suporia um contato direto, fruto de uma busca individual e solitária.
Ou, colocando o problema de outro modo, no primeiro caso a relação entre os termos
se limitaria a uma equivalência na posição ocupada por cada qual em sua própria
série; no segundo, haveria um borramento da distinção entre as séries natural e social
pela presença da séria sobrenatural, levando ao estabelecimento de sucessivas
relações de contiguidade entre os termos – aqui não mais espécies e grupos, mas
indivíduos humanos, animais e espíritos.
Estaríamos, assim, em presença de dois sistemas de relações que, apesar de
aparecerem frequentemente combinados, se encontrariam distintamente situados: um
num plano ‘sócio-lógico’ e outro num plano religioso. No Totemismo Hoje isto
aparecerá como uma oposição entre totemismo e religião, que em termos mais
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Reencontramos, portanto, sob uma forma transposta, a distinção entre totemismo e religião,
que já se nos apresentou através de uma oposição entre semelhança e contiguidade. Como
entre os ojibwa, o totemismo de Tikopia se expressa por meio de relações metafóricas
(1975, p. 35).
4
Assim dirá o autor, se referindo a mitos Ojibwa e Tikopia: “Nos dois casos, o totemismo, enquanto
sistema, é introduzido como o que resta de uma totalidade empobrecida, o que pode ser uma maneira
de exprimir que os termos do sistema só valem se são separados uns dos outros, sendo os únicos a
mobilizar um campo semântico primitivamente melhor servido, e dentro do qual a descontinuidade se
introduziu” (1975, p. 35).
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5
“Como os fonemas, os termos de parentesco são elementos de significação; como eles, só adquirem
esta significação sob a condição de se integrarem em sistemas” (Lévi-Strauss 1975, p. 48): substituindo
“termos de parentesco” por “espécies naturais” poderíamos ter aqui uma síntese desta idéia.
6
Ou, com base nas argumentações feitas por Lévi-Strauss alguns anos mais tarde e expostas no
“Finale” de O homem nu, poderíamos dizer que é justamente por meio destas identificações sucessivas
que se tem a ilusão de restabelecer um contínuo sobre o que é, de fato, um descontínuo.
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igualmente apropriadas para exprimir o recorte diferencial entre os grupos sociais que
conotam. No entanto, isto estaria longe de implicar qualquer confusão entre os
termos. Pelo contrário, “eles só podem cumprir esse papel quando (em oposição ao
sacrifício) o totemismo os declara diferentes, portanto, não-substituíveis entre si”
(Lévi-Strauss 1989, p. 250). A importância das espécies naturais nos sistemas
totêmicos, como já destacamos, estaria justamente em suas características distintivas,
que as tornaria apropriadas para simbolizar a diferenciação social. No sacrifício, por
sua vez, estas seriam importantes por constituírem o intermédio de um continuum
orientado ligando os homens e os deuses. Em suma, enquanto o totemismo
estabeleceria uma relação de semelhança entre duas séries paralelas e descontínuas de
termos; o sacrifício implicaria o estabelecimento de uma relação de contigüidade
entre termos polares por meio de uma série contínua: o primeiro estaria no plano da
metáfora e o segundo da metonímia.
Porém, dirá Lévi-Strauss, “essa anti-simetria ainda as deixa no mesmo plano,
quando, de fato, de um ponto de vista epistemológico, estão situados em níveis
diferentes” (ib., p. 253). Segundo o autor, o totemismo enquanto sistema
classificatório teria um duplo fundamento objetivo, já que as espécies naturais de que
se serve realmente existem e, de fato, enquanto série descontínua; do mesmo modo, os
segmentos sociais também existem. Portanto, a homologia que postula entre as duas
séries seria inteiramente legítima, limitando-se a uma correlação formal. De outro
lado, o sacrifício, além de pré-supor um termo inexistente, a divindade, adotaria uma
concepção objetivamente falsa da série natural ao tomá-la como contínua. Ou, como
concluirá o autor:
Mais exatamente, os sistemas classificatórios estão situados no nível da língua: são códigos
mais ou menos bem elaborados mas sempre visando exprimir sentidos, ao passo que o
sistema do sacrifício representa um discurso específico e desprovido de bom sentido, ainda
que seja proferido frequentemente (1989, p. 254).
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Compreenderíamos que essa noção pode fornecer um modo de apreensão sensível de uma
combinatória objetivamente dada na natureza e que a atividade do espírito e a própria vida
social nada mais fazem do que tomá-la de empréstimo para aplicá-la à criação de novas
taxonomias. A fascinação obscura exercida pelo totemismo sobre o pensamento dos
etnólogos constituiria apenas um caso particular dessa fascinação exercida sobre os homens,
sempre e em toda parte, pela noção de espécie, cujo mistério seria assim desvendado (Lévi-
Strauss 1989, p. 158).
Seria isto, enfim, o totemismo: uma lógica classificatória regida pelos mesmos
princípios fundamentais de toda atividade intelectual, independente de lugar e época.
Nele não estaria implicada qualquer confusão entre a sociedade e a natureza, entre o
homem e o animal: as relações que envolve seriam relações metafóricas, que
expressam uma equivalência formal entre as duas ordens, e não qualquer identidade
substancial. Seu modo de proceder obedeceria, assim, ao mecanismo de todo
pensamento simbólico: operar por meio de distinções e de oposições – condições
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O animismo reconsiderado
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Animic systems do not treat plants and animals as mere signs or as privileged operators of
taxonomic thought; they treat them as proper persons, as irreducible categories. The relation
of plants and animals to humans is not metaphorical, as in totemism, but at the most, and
then only in certain cases, metonymic (Descola 1992, p.114)7.
7
Lembremos que Viveiros de Castro fará uma aproximação do animismo assim definido por Descola
com o sacrifício tal como foi especificado por Lévi-Strauss: ambos implicariam a idéia de uma única
série contínua que abarcaria tanto humanos quanto não-humanos (e também os espíritos) e que seria
marcada por relações não de semelhança metafórica, como no totemismo, mas de contiguidade
metonímica (2002 pp. 466-467).
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Il fallait donc se déprendre du préjugé sociocentrique et faire le pari que les réalités
sociologiques – les systèmes relationnels stabilisés – sont analytiquement subordonnés aux
réalités ontologiques – les systèmes de propriétés imputées aux existants. C’est à ce prix que
l’animisme et le totémisme peuvent renaître dans une acception nouvelle... (2005, p. 180).
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Há ainda, é importante ressaltar, o naturalismo e o analogismo, que junto com o animismo e
totemismo formariam o que Descola definiu como as quatro combinações possíveis do jogo das
semelhanças e diferenças entre ‘mim’ e ‘outrem’ sobre o plano da interioridade e da fisicalidade. Não
há espaço aqui para entrarmos nos pressupostos teóricos dessas formulações de Descola. Para uma
apreciação desta discussão, conferir a segunda parte de Par-delà nature et culture (2005), Structures de
l’expérience, particularmente o capítulo cinco intitulado “Rapport à soi, rapport à l’autre”.
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Bref, autant le totémisme se situe sur un tout autre plan que l’animisme quand il est pris
dans sa version classificatoire (l’homologie des rapports), autant sa dimension “fusionelle”
(l’homologie des termes) peut offrir une piste interessante pour le traiter avec légitimité
comme un mode d’identification (Descola 2005, p. 205).
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Num tal estado de coisas, tanto humanos quanto não-humanos seriam uma
espécie de atualização desta potência híbrida original deixada pelos seres do sonho,
compartilhando entre eles uma identidade mista, ao mesmo tempo física e espiritual.
Mas sendo estes seres originários já diferenciados entre si, a potencialidade deixada
por cada um seria diferente daquela deixada pelos demais, e é isto o que garantiria a
perenidade das subdivisões ontológicas do cosmos:
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comparativos feitos pelo linguista Carl G. von Brandenstein9, segundo os quais isto
que se convencionou chamar de totem seria designado nas línguas aborígines
australianas por termos que fariam referência à predicados físicos e qualidades morais
bastante explícitos, antes que por termos denotando alguma forma de segmentação ou
de pertença (como era o caso do ototeman ojibwa que, conforme Lévi-Strauss,
significaria algo como “aquele de minha parentela”). Além disso, os termos que
designariam cada totem em particular também remeteriam a certas qualidades físicas
e morais (atributos de comportamento, humor, temperamento, caráter, aparência e
etc.) as quais seriam partilhadas por todos os membros do grupo totêmico, tanto
humanos quanto não-humanos. Pois, como mostrou Brandenstein, na maioria dos
casos eram estas qualidades que emprestavam o nome à espécie totêmica (e ao
próprio grupo) e não o contrário. Ou seja, os nomes dos grupos totêmicos não seriam
emprestados da taxonomia zoológica ou botânica, de onde, então, seriam inferidos os
seus atributos típicos, mas, ao invés, as classes totêmicas seriam nomeadas por termos
que denotariam propriedades e atributos que designariam também a espécie epônima:
En effet, la différence première est ici entre des agrégats d’attributs communs à des humains
et des non-humains au sein de classes désignées par des termes abstraits, non entre des
espèces animales et végétales susceptibles de fournir naturellement par leurs discontinuités
ostensibles un gabarit analogique servant à ordonner les discontinuités sociales (Descola
2005, p. 222).
9
Descola se baseia em um trabalho do autor chamado Names and Substance of the Australian
Subsection System. Chicago et Londres: The University of Chicago Press, 1982.
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compartilhadas do que a uma lógica das qualidades sensíveis. É assim que, para
Descola, as análises de Brandenstein apontariam para o modus operandi daquelas
presumidas hibridizações totêmicas que já Elkin havia intuído:
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diferentes, contudo, das que seriam compartilhadas pelos membros de uma outra
semi-metade.
Estes mitos não se reportariam, portanto, a um estado original indiferenciado no
seio do qual se introduziram as descontinuidades, mas a um estado original já dividido
em essências substantivas que se atualizam em classes de entidades híbridas, mas
singularizadas por um princípio comum. E isto deixaria mais nítida a especificidade
da ontologia totêmica em relação ao animismo, pois se nos dois casos os seres míticos
cujas aventuras são relatadas são mistos de humanos e não-humanos vivendo em um
regime já marcado pelos traços da cultura, os mitos anímicos, como os ameríndios por
exemplo, descreveriam eventos que marcam a instauração das descontinuidades
(corpóreas) entre as espécies a partir de um contínuo originário; enquanto que a
mitologia australiana, conforme dirá Descola:
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O trabalho da autora referido por Descola chama-se Um long chemin semé d’objets cultuels: lê cycle
initiatique aranda, Paris, Éditions de I’É.H.E.S.S, de 1995.
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De même que l’animisme est anthropogénique parce qu’il emprunte aux humains le
minimum indispensable pour que des non-humains puissent être traités comme des
humains, le totémisme est cosmogénique car il fait procéder de groupes d’attributs
cosmiques préexistants à la nature et à la culture tout ce qui est nécessaire pour que l’on ne
puisse jamais démêler les parts respectives de ces deux hypostases dans la vie des
collectives (ib., pp. 368-369)
Considerações finais
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Abstract: This article aims to reflect about the “state of art” of contemporary anthropological
production, its ethic, political and aesthetical implications in its critical and analytical conceptual
reinvention of constitutive categories of discipline like: “nature”, “culture”, “individual” and “society”.
From a mono-naturalistic classical anthropology and its stable differences, to anthropologies that
valorize dialectics and intensive and extensive continual differentiations. Between those perspectives, I
wish to point the problems about occidental modernity, the essential human symbolic and the
maintenance of purified dualism into autonomous units. I'll to conclude with some reflection about the
reciprocal implications of those movements in anthropological discipline, in the direction to an
indigenization of occidental thought and vice versa, as well as the native reformulations about culture
concept.
Keywords: Anthropological Theory, History of Anthropology, Post-Structuralism
1
Lattes: http://lattes.cnpq.br/6551882107174591
E-mail: leobertolossi@bol.com.br, leobertolossi@usp.br
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para citar alguns, nos mostra Ortner (1984, pp. 144-160), através de abordagens
bastante diferentes mas que conciliam o problema das tensões dialéticas entre
estrutura/convenção e prática/invenção. Mitopráxis, habitus, encaixe/desencaixe e
convenção/invenção apontam para tentativas de deslindar a economia das relações
sociais, culturais e naturais entre ações e controles. No entanto, já apontava Wagner
(2010) que estas são terminologias conceituais de nossa “antropologia”, que ao
estendermos para pensamentos e imaginários nativos, contribuiríamos para reafirmar
nosso narcisismo e obliterar as criatividades e diferenciações alheias, colonizando-as.
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para pensar”, de que nos falava Lévi-Strauss noutro momento, Ingold parece agora
ressuscitar o “bom para comer” que encontramos nos nativos de Malinowski, mas
sem utilitarismo. O que o autor está querendo nos dizer é que “mente”, enquanto
encarnação materialista da transcendência do espírito, se dá através do corpo. Vale
notar que a capacidade cognoscente que constitui a “condição moral humana” é trans-
específica para Ingold (1994) e não apenas da “espécie humana”, já que o autor evita
o que ele chama de um “antropocentrismo etnocêntrico”.
Para o autor, a corporalidade se constitui em relações totais com o mundo, é
corpo expandido e apreendido através de habilidades e experiências nas ações que
empreende, ao invés de ser simulacro de operações a priori dadas por mecanismos
cerebrais. Se tudo é cerebral-mental, como esta biologia se constituiu?, pergunta-se
Ingold.
Ingold aposta que o conhecimento enquanto “cognição” se dá na ação do
corpo como um todo no mundo, um “empacotamento” nas relações e atenções que
constituem habilidades e reaprendizagens contínuas, para além de apriorísticas
capacidades mentais constitutivas de ações enquanto reflexos neurais. Portanto, tudo
está em jogo nesta “antropologia da atenção” em que as habilidades corporais são
“incorporadas” através da maturação no interior de campos de prática, constitutivos
de sistemas de desenvolvimento/sistemas ambientais expandidos.
Nesta abordagem, os conhecimentos são memorizados através das ações que
constituem um ambiente habilitador, “taskcape” na conceitualização do autor (ib., pp.
22), constitutivo de destrezas motoras experimentadas e continuamente
implementadas, que implicam no funcionamento dinâmico do sistema total de
relações do homem no meio ambiente. Ao invés de falar de “idéias”, “conceitos”,
“categorias” e “elos”, próprios de uma ciência moderna que escrutiniza e fabrica uma
mente totalizadora, Ingold (2010, pp. 21) afirma que todo este processo cognoscível
diante do mundo é um sistema complexo em que é mais apropriado se referir às
noções de “fluxos”, “contornos” e “intensidades” incorporadas e corporificadas em
contínuas relações agentivas.
Na abordagem ecológica do autor não há “transmissão cultural” ou
“inculturação”, como em Sperber. Há uma contínua redescoberta orientada,
improvisação e sensibilização do sistema perceptivo que é entendido como o corpo no
mundo e não uma mente transcendente e absoluta. Os saberes são práticas e
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Ao propor uma antropologia perspectivista a partir da etnografia Ameríndia, Viveiros de Castro se
afastou do substancialismo ocidental moderno de um espírito humano encarnado na mente/cérebro,
ainda presente na antropologia cognitivista, como apresentado aqui nas reflexões de Sperber e Boyer.
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Tal antropologia possui por sua vez uma ascendência na obra “O Pensamento Selvagem” (1989), de
Claude Lévi-Strauss, que afirmava que todo pensamento é associativo e mental, fosse o científico dos
ocidentais modernos, fosse o mítico dos povos “primitivos”, antes vistos como “pré-lógicos” por Lévy-
Bruhl e ainda hoje vistos como “aparentemente racionais” por Sperber. Para as filosofias Ameríndias
evocadas por Viveiros de Castro não há mente universal (como “caixa-preta” naturalista) manifesta em
versões culturais locais, mas pluriversos, múltiplas naturezas. Seguindo o pensamento castriano
poderíamos dizer, portanto: “Jamais fomos selvagens!”
3
O perspectivismo ameríndio possui conexões parciais possíveis com as ontologias variáveis de Latour
(1994), os grupos de transformação de Lévi-Strauss, as noções de cismogênese em Gregory Bateson
(2008), os pluriversos e das variações universais em Gabriel Tarde (2007), e também da monadologia
de Leibniz (2009), para citar alguns exemplos.
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Entendidas aqui de maneira lato sensu como propõe Roy Wagner (2010) em “A Invenção da
Cultura”. Para o autor, nativos também têm a sua própria “antropologia”. Dessa forma, o encontro no
campo entre antropólogo e nativo pode ser entendido como uma troca de perspectivas ou ainda uma
troca de antropologias.
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E não mais sociabilidade como propuseram algumas escolas da antropologia clássica, pois aqui são
divíduos transespecíficos que se relacionam, e não mais indivíduos interessados, possessivos,
posicionados e autônomos (ou ainda interdependentes) que se representam num teatro social com
sínteses ora em conflito e ruptura, ora em homeostases sociais.
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divíduos6. No entanto, tais conexões “singulares” acabam por ser canibalizadas para
dentro de cada antropologia relacionante, intra-específica, constituindo e expandindo
sua multiplicidade.
Nas redes de relações melanesistas as experiências perspectivas evocadas e
intercambiadas são interespecíficas e tudo “contém” e está “contido”
simultaneamente. Strathern (2004) nos fala de árvores que contém pessoas, homens
que contém canoas, flautas que são extensões corporais humanas, fluídos que
constituem homens pássaros e espíritos que saem de plantas, para citar alguns
exemplos.
Como formular comparações diante dos fluxos trans-ontológicos desta
antropologia nativa? Através de um “corte nas redes”, mas à moda nativa, afirma
(Strathern 1996). Mas como localizar ou “obviar” nativos em diferenças discretas,
exteriores ou “inter-étnicas”? À maneira castriana: potencializando equivocações
como extensões ou próteses das antropologias relacionantes, comparando diferentes
antropologias (e suas comparações/antropologias internas) produzindo novos
“ciborgues” de modo a não colonizar tais tradições com as nossas versões modernas
da comparação antropológica, que é multiculturalista.
Tudo está “se decompondo” e “se recompondo” nos mundos melanésios em
relações fractais que constituem “excrescências” recíprocas, periferias que se tornam
centros e vice-versa (não há “local” ou “global” definido, por exemplo), já que todas
as formas, saberes e corpos estão conectados e compostos entre si e de forma
dinâmica através de jogos dialéticos de figura e fundo, de fazer ver e ocultar, num
mundo de presenças e expansões contínuas, tais como as próteses expandidas dos
ciborgues harawayanos (2009).
6
Divíduos strathernianos só se tornam “indivíduos” em rituais de passagem, uma liminaridade às
avessas do que propõe Victor Turner e Van Gennep, dentre outros nomes da antropologia estrutural-
funcionalista britânica.
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Para Além das Diferenças Intensivas: Cultura com Aspas (e seus Dilemas)
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Escola antropológica que produziu diversas reflexões sobre a relação entre os povos indígenas e o
Estado brasileiro no tocante à sua incorporação dos primeiros por este último, bastante influenciada por
teorias de etnicidade através de autores como Fredrik Barth e operando ideias e conceitos hoje bastante
criticados como o de aculturação (como perda cultural e não como transformação afirmativa e
agenciada) e que os índios no Brasil se tornariam camponeses com o desenvolvimento do país etc.
Roberto Cardoso de Oliveira, Darcy Ribeiro, João Pacheco de Oliveira, Antonio Carlos Souza de Lima
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Cunha afirma que ao invés de uma “cultura em si” é como se os índios reclamassem
uma “cultura para si”, termos de uma dicotomia marxiana evocados pela autora. O
que se dá neste processo ambíguo, tenso e em andamento neste momento, ela afirma,
é que a “cultura” intervém sobre a cultura e vice-versa, numa “culturalização” da
cultura indígena e na indigenização cultural da “cultura” interétnica. Entre uma lógica
inscrita no parentesco e na economia do dom e outra mercantil advém o curto-circuito
entre cultura e “cultura”: o cunhado vira patrão!
Diante dos paradoxos de um mundo globalizado em que se vêem os índios
contemporâneos – ainda que tal noção de globalização não seja perspectiva de
relações sociocosmológicas indígenas que operam “sem aspas” – para onde seguem
os futuros indígenas? E para onde vão os antropólogos que os seguem?
É hora de cortar a rede e finalizar a breve digressão deste artigo. Não pretendi
aqui, entretanto, esgotar as questões e dilemas que atravessam a antropologia
contemporânea. Na seleção dos autores e reflexões traçadas, pretendi “obviar e
exagerar algumas diferenças” para visibilizar alguns dos dilemas que atravessam a
disciplina em seus deslocamentos de uma antropologia moderna com pretensões
científicas para uma antropologia dialética e disjuntiva que concebe diferentes modos
de pensamento ou inventividades como o diálogo entre perspectivas antropológicas
singulares.
A imagem da gira, ritual de abertura dos trabalhos presente em cultos afro-
brasileiros e que se remete aos movimentos cósmicos do universo me pareceu
apropriada para pensar as reviravoltas da antropologia contemporânea, suas
inventividades e (re)convencionalizações. Como toda rota, toda guia que se faça,
alguns pontos são tracejados, conexões encruzilhadas e também, é claro, a obliteração
ou o não-aprofundamento de outros percursos possíveis. Mas não pretendi nenhuma
abstração de totalidade e sim uma experiência afetiva, crítica e analítica diante dessa
literatura, tal como uma “conexão parcial”, de que fala Strathern, que permitisse mais
que buscar soluções, apontar algumas questões das giras atuais da disciplina. Após
são alguns expoentes do contatualismo que foi por sua vez bastante criticado por Eduardo Viveiros de
Castro no artigo “Etnologia Brasileira” (1999).
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Conceito utilizado por Marilyn Strathern para se referir ao que outros autores chamam de cultura
ocidental moderna. Poderíamos dizer nos termos de Roy Wagner que se trata de uma “obviação” ou
uma “exageração das diferenças” de todo a tornar visível as contradições e similitudes entre o mundo
europeu e o americano nessa antropologia relacionados.
9
Uso aqui o conceito de “jaguarificação” presente na etnologia dos povos das Terras Baixas da
América do Sul de forma alegórica e genérica para falar de uma possível “domesticação” indígena
diante da modernização de seus mundos (assim como ocorre o movimento recíproco, a indigenização
da modernidade de que nos fala Sahlins). Vários autores apontam a “vocação” indígena à
transformação – de Lévi-Strauss a Viveiros de Castro – decorrente do interesse contínuo na alteridade
(alguns autores chamaram de “o ponto de vista do inimigo”). Um exemplo possível do uso efetivo do
conceito de “desjaguarificação” pode ser identificado em Fausto (2005) quando ele se refere à negação
do canibalismo como condição de reprodução sociocosmológica dos Guarani contemporâneos
decorrente do contato desse povo com o cristianismo, tendo sido substituído um xamanismo guerreiro
por uma ética do amor e da mansidão.
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Bibliografia
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RESUMO: Este artigo tem por objetivo apresentar um debate acerca de uma noção corrente em muitos
trabalhos antropológicos, a de crença, construído a partir do ponto de vista de habitantes do povoado
de Ribanceira, localizado no Vale do São Francisco, no norte de Minas Gerais. Inicialmente, são
apresentados alguns eventos etnografados na localidade acerca de possessão por espíritos e feitiçaria.
Em seguida são tratados os limites do uso da noção de crença para pensar episódios deste tipo. Por fim,
esboça-se uma alternativa analítica baseada na pragmática dos modos de pensar nativos acerca da
proteção contra agências danosas.
Palavras-chave: Crença, Conhecimento Antropológico, Agência, Possessão, Feitiçaria, Vale do São
Francisco.
ABSTRACT: This article intends to present a debate about a current anthropological notion, the belief,
built by the point of view of inhabitants of the village of Ribanceira, in São Francisco River Valley,
north of Minas Gerais. Initially, are presented some events about spirit possession and sorcery,
described by the fieldwork in the village. After, it points out the limits of use of the idea of belief to
deal with these events. Then, it draws an analytic alternative based in the pragmatic of the native about
protection against mischievous agencies.
Key words: Belief, Anthropological Knowledge, Agency, Possession, Sorcery, São Francisco River
Valley.
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1 – Introdução
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agências causadoras de danos. A acusação daquele que provoca o mal não oblitera
que é a exposição a tais agências, e a sua conseqüente neutralização, o eixo
pragmático de problematização de uma visão de mundo na qual a forma de lidar com
sistemas transcendentes, tal como a feitiçaria ou os regimes de possessão e, mesmo
que sob outro contexto, a política, passa pela criação de meios e práticas de proteção e
enfrentamento.
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No sábado quando cheguei à casa do rapaz, ele pediu aos filhos de um vizinho
que chamassem minha amiga. Então, uma criança foi buscá-la. Enquanto isso,
permaneci lá observando a crise na qual a garota era imobilizada pela força física do
rapaz e por um pano com uma mistura de álcool, ervas, fumo, etc. que ele lhe
colocava no nariz . Naquele momento, ele nos contou que, apenas na crise daquele
dia, o espírito da mãe teria se expressado verbalmente por meio da menina,
manifestando que a queria “levar”, juntamente com o ex-marido e pai da menina.
Nossa amiga chegou algum tempo depois com um terço em volta do punho e
duas folhas de uma planta, chamada espada de São Jorge. A menina estava mais
controlada e já se debatia menos, no momento em que minha amiga havia chegado.
Ela colocou o terço em volta do pescoço da garota e, em seguida, começou a indagar
ao espírito da mãe o que ele queria, ponderando que não seria justo ela “fazer aquilo
com sua filha”, bem como o alvo do seu acerto de contas deveria ser outra pessoa. A
hipótese de minha informante era que o espírito da falecida desejava atingir o seu ex-
marido, por meio do tormento causado à filha. Entretanto, ela alertou-nos que o pai
pouco se importava com a menina, motivo que justificava o fato da garota não residir
com ele, e que isto, portanto, não o atingiria. Inclusive, ela buscava comunicar e
convencer ao espírito da mãe, diante da menina que apenas chorava face às palavras
ali enunciadas.
Desde que minha interlocutora começou a tentar falar com o espírito, seu
amigo pediu que nos afastássemos para ver se o espírito conversava com ela. Depois
de muito ela insistir, a mãe da garota teria se manifestado, através do corpo da
menina, chorando e balbuciando o mesmo que tinha dito ao anfitrião da casa, que iria
“levar” a garota e o pai dela. Este acontecimento foi anunciado posteriormente por
minha amiga a todos, pois nós, à distância, não o acompanhamos.
Depois de, mais ou menos, uns quarenta minutos após a chegada de minha
amiga e o início de suas ações ritualizadas, a menina começou a voltar ao estado de
consciência de si mesma. Minha informante fez uma oração dentro da casa que
também não pude observar. Após a menina ter restabelecido seu estado normal, minha
amiga lhe preparou um café com alho. A menina bebeu e deixou os pedaços de alho
no fundo da xícara. O rapaz e sua esposa estavam à procura de mais dentes de alho
para colocar na entrada da casa e nas janelas para evitar que o espírito voltasse. Nossa
amiga em comum lhes recomendou que orassem muito para se fortalecerem e para
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que o espírito não retornasse. Passada a crise, minha informante e seu amigo,
indignados, voltaram a conversar sobre o que julgavam um erro na atitude do espírito
da mãe da garota. Eles defendiam o acerto de contas com o ex-marido da falecida e
não com a menina.
Minha amiga ficou de voltar ao final da tarde para ensinar uma oração à
menina e dar um “banho de descarrego” nela. Quando saíamos perguntei-lhe onde ela
aprendeu aquelas coisas. Ela disse que não aprendeu, apenas sentia que tinha que
fazer as coisas e fazia. Indaguei-lhe se era algo como uma intuição e ela ,
prontamente, deu-me resposta afirmativa. Perguntei-lhe ainda, se ela sentia que algo
agia por meio dela. Ela afirmou que não sabia, contudo, também queria entender. O
assunto não se prolonga e a conversa muda de registro. Minha interlocutora, então,
conta-me ainda que o falecimento da mãe da garota ocorreu devido ao
desenvolvimento de um aneurisma. Certo dia ela “passou mal”, foi levada ao hospital,
vindo a falecer depois de pouco tempo.
Já em sua casa, perguntei à minha amiga se poderia acompanhar a sessão de
“descarrego”. Sem demonstrar surpresa pela minha ignorância em relação ao referido
procedimento, ela disse que não poderia acompanhá-la, pois a menina estaria nua para
o banho. Contudo, descreveu-me o que faria. Ela colocaria a menina embaixo de uma
árvore na qual a menina costumava brincar, que de acordo com seu conhecimento, e
lá lhe daria um banho de só uma vez. Derramaria sobre a garota um preparado para o
banho sem tocar ou esfregar-lhe o corpo, composto de água, sal e uma mistura, que
podia incluir várias ervas,tantas quanto ela conseguisse obter, tais como o “tipi”, o
“comigo-ninguém-pode”, etc. Recordo-me ainda, que minha interlocutora copiou de
um livrinho de orações católicas, uma oração para dar à menina para que a mesma
rezasse diariamente. Tal oração solicitava a proteção de Deus e tinha o nome, salvo
me engano, de oração de final dia. Por volta das 18 horas, ela dirigiu-se até a casa da
menina. Tal como afirmei, não pude acompanhá-la, mas fiquei sabendo
posteriormente que a menina não mais sofreu das crises atribuídas à possessão do
espírito da mãe, por alguns meses.
Outro caso interessante para pensar a relação de alguém possuído com a
entidade que lhe possui, encontra-se na seguinte narrativa de Seu Sabiá, benzedor,
vindo de Divinópolis, que se auto-define como “pai-de-santo”, embora assuma não
pertencer a nenhum terreiro. Nesta parte da entrevista que me concedeu, ele fala de
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como o seu corpo é agenciado pelos exus que ele afirma “trabalhar” em casos de
expulsão de espíritos ou entidades que tomam o corpo das vítimas que recorrem à sua
ajuda.
É porque eles ficam muito na sua cabeça, sabe. Tipo assim, vamos pelo
exemplo que eu vou te dar aqui, agora. Um exemplo, eu trabalho com um
exu que chama Rebento. Então eu dou uma parada, então esse exu, se eu
ficar muito tempo sem comunicar com ele, ele já começa a me deixar eu com
a cabeça meio atrapalhada, sabe? Eu tenho que tá sempre mantendo ele de
bebida, as coisas que eles gostam, eu tenho que tá sempre pondo pra eles.
Pra eles deixarem eu em paz. Vamos supor um exemplo, se eu for tomar
uma cachaça, por exemplo, aí eu peço “Cês bebem essa pinga”. Posso beber
a pinga inteira que eu não fico tonto. Mas se eu for tomar e não parar pra
pedir pra eles tomar, rapidinho eu tô tonto. Quer dizer, então eles me ajudam
muito numa parte, entendeu? E me prejudicam em outra. Porque eu posso
fazer as coisas pra você, mas pra mim eles me dão a hora que eles querem,
sabe. Por exemplo, chega você ou chega o João [amigo e auxiliar do
entrevistado], que tá aqui, e me pede alguma coisa, aí eu peço pra vocês e
rapidinho acontece. Mas já pra mim, eu não posso pedir. Eu tenho que
esperar eles me darem. Quer dizer que se eu tô precisando daquilo, eles me
dão.
O senhor não pede, então, pra entidade?
Não, pra mim não. Pra minha necessidade nós não podemos. Eu não peço.
Pra qualquer pessoa eu posso pedir, entendeu? Mas pra mim próprio, eu já
não peço. Porque eles não dão. Só a hora que eles querem. Quer dizer, na
hora que eu tô precisando daquilo eles me dão. Entendeu. Esse é um sistema
deles. Agora os Preto Velho, que é a linha banca, é mais benzimento, pra tira
um mal-olhado, um quebrante, um retirado... Assim, uma pessoa que ta aí,
de corpo ruim, de corpo mole, a gente dá um benzimento, já é mais com a
linha branca, tá. Pra pessoa volta ao normal. [...]
Agora, você vê, quando a gente incorpora a gente pega um peso danado. A
gente desliga do corpo da gente, tipo assim, o corpo da gente fica
emprestado a eles. Aí eles entram. Agora, a fala é deles. Quem conversa são
eles. E cada um vem do jeito que eles são. Uns são todos tortos, outros ficam
só de joelho, outros ficam retinho, então eles vem de vários jeitos. E da
forma que eles vêem, que é o jeito deles, eles vêm pro corpo da pessoa aqui.
[...] o João já me ajudou várias vezes. Que, ás vezes, quando tá incorporado
ele pegava o papel e ia escrevendo tudo que falava lá, que pedia, que era,
que estava acontecendo. Escrevia. Quando era, quando era hora deles ir
embora, eles me avisavam, chamam eu. Aí chamam, a pessoa volta ao
normal e aí que vai saber o que estava acontecendo. Que na medida que eu
faço um trabalho até o nome da pessoa eu esqueço. Eles mesmo tiram da
minha cabeça. Tudo que eu fizer eles já limpam. Eu não fico nem sabendo o
nome da pessoa depois. Se chegar a procura pelo nome eu já nem sei mais. É
só na hora ali [...].
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Nossa senhora... Nossa senhora, você não sabe o que é. Você tá sentado em
cima dum formigueiro. Aqui por causa de um centavo a pessoa manda fazer
um feitiço pro outro. Aqui é complicado.
O senhor já fez algum?
Assim, você fala, contra a pessoa?
É, um feitiço...
Não, não. Pra pessoa fazer feitiço assim eu não faço, não.
E tem quem faça aí?
Aqui tem. Tem outro senhor aí que faz, tem uma outra senhora que vem de
vez em quando aí e faz. Eles fazem e depois vem aqui tira. Às vezes do outro
lado do rio também tem umas dona também que fazem. Eles fazem lá e eu
venho cá e tiro. Não é por que ... Mas assim, maldade eu não gosto de fazer,
porque eu tenho amizade com todo mundo, todo mundo é amigo. Então,
você vai fazer maldade pra uma pessoa? Você conhece aquela pessoa, como
é que você vai fazer uma coisa dessas? Então, você não faz um bem, como é
que você vai fazer um mal? Pra mal não tá certo. Eu sempre aconselho as
pessoas “Não, não faz isso. Não faz isso”. Aqui é um tal de vir pedir pra
retirar vizinho de terra, sabe. Por exemplo, no vizinho que chega e fala
“Olha, tem uma vizinha lá e eu queria que você fizesse ela muda de lá”.
“Mas pra quê?”, “Ah, que me inferniza, briga comigo, não sei o que”. “Ah,
então o negócio é o seguinte, a partir de hoje ela não vai briga com você
mais. Não precisa fazer mal, não. Nós vamos fazer um benzimento nela lá,
pra ela acalma e fica tudo bem...” [...]
Aqui em São Romão, aqui é feroz, o pessoal aqui não é fácil, não.
Então assim, do outro lado do rio tem uma, do outro lado do rio ainda tem
umas duas ou três dona que mexe com isso também.
Tem gente que vem de Pirapora?
Tem uma outra que vem e fica num hotel aí e faz pro pessoal. Essa já faz
coisa ruim. Quando ela vai embora o povo me procura pra tira. Então é uns
colocando e outros tirando. Então a coisa funciona assim desse jeito, sabe.
Apresento, então, um episódio em que uma “reza” foi agenciada para produzir
mal a alguém. Em uma noite de setembro, após jantar, convido dois amigos para
tomarmos uma cerveja na comunidade de Ribanceira. Vamos até o bar de Nô que,
mesmo tendo fechado seu estabelecimento, gentilmente, permite o nosso ingresso e
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Termo que, necessariamente, não se refere a uma relação consangüínea de parentesco, mas antes ao
reconhecimento de respeito e afeto a uma pessoa mais velha. Contudo, em muitos casos, inclusive no
citado, o termo diz respeito à irmã do avô ou da avó.
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esta benzedeira de São Bento. A mulher lhe disse que isto foi por causa de um frango
que havia lhe sido oferecido num fim de semana. O frango havia sido “rezado”, mas
os dois sujeitos que tinham rezado o frango erraram uma palavra e por isso Nô não
morreu. O feitiço era para que ele morresse. Nô me disse que realmente, dois sujeitos
que diziam ser amigos dele, tinham lhe oferecido um frango. A mulher teria feito
rezas e lhe dado um remédio com o qual ele teria se curado. Nô disse que um ano
depois o sujeito que lhe deu o frango veio lhe pedir desculpas, que não sabia que o
outro amigo tinha “rezado” o frango.
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Uma obra tem um destaque especial para esta reflexão sobre a crença, pois
delineia um amplo esforço de sistematização para constituir um estudo “crítico”, no
sentido kantiano do termo, das práticas discursivas e não-discursivas que envolvem a
magia: Um esboço de uma teoria geral da magia, escrito por Marcel Mauss e Henri
Hubert (2003) 5. A forma adotada pelos autores para problematizar a magia neste
texto é, em muitos momentos, simétrica, no sentido dado por Latour, fazendo com
que eles possam aproximá-la por vezes da técnica (quando se referem à dimensão dos
procedimentos), outras da ciência (enquanto saber sistematizado) e até da medicina e
do direito. Contudo, a problemática da crença emerge na análise de Mauss e Hubert
imbricada no interesse pelas condições nas quais a magia, enquanto ação sobre o
mundo, adquirindo o reconhecimento social de existência e eficácia.
A magia, para os autores, é uma crença a priori, pois sua autoridade é tal que
experiências contrárias não abalam a fé na sua existência e eficácia. Neste sentido, ela
5
Tal obra pode ser considerada como precursora de uma tradição que inclui variantes como as análises
de Lévi-Strauss (1975) e Bourdieu (2002).
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difere da crença na ciência. Sua força reside na credulidade pública a priori, ela
mesma fundante da própria crença do mágico. Isto é, não há diferença de crença entre
os dois (público e especialista). A crença coletiva na magia que permite o exercício da
atividade do mágico. Levando em conta que os autores entendem a crença como: “[...]
adesão do homem inteiro a uma idéia e, por conseguinte, estado de sentimento e ato
de vontade, ao mesmo tempo que fenômeno de ideação” (Mauss & Hubert 2003,
p.131-132), são as vontades e sentimentos compartilhados coletivamente a força
social que valida as crenças. Os elementos que permitiram encontrar a força social da
magia poderiam ser transpostos, caso pudéssemos generalizar esta teoria, para outras
análises que envolvam crenças, se pensarmos que neles sempre encontraríamos
articulados atores/agentes (especialistas ou não), ações ou condutas dos envolvidos e
um conjunto de representações coletivas que legitimassem as práticas dos atores.
Em outro pólo de reflexão, Jeanne Favret-Saada (1977) desenvolve sua
problematização a partir de elementos e condições distintos daqueles que envolvem os
escritos de Mauss e Hubert. Enquanto seus antecessores franceses desenvolveram um
empreendimento de dimensão teórica, a partir da análise de um conjunto diversificado
de monografias, a antropóloga investe na elaboração de uma etnografia sobre
feitiçaria cuidadosamente circunscrita aos camponeses da região do Bocage, na
França. Logo, as pretensões dos dois trabalhos diferem substancialmente. Além disso,
são as formulações dos camponeses, quando da ocorrência de uma crise de feitiçaria,
que orientam o interesse de pesquisa de Favret-Saada. Tal interesse, à medida que seu
trabalho de campo foi se desenrolando, conduziu-a a conferir relevância às posições e
situações de enunciação. E é ciente das implicações deste sistema de lugares, a partir
dos quais os discursos sobre a feitiçaria são proferidos, que ela constrói sua crítica ao
uso da idéia de crença.
O debate sobre a pertinência do uso da idéia de crença empreendido pela
autora tem como principal foco de crítica os estudos dos folcloristas europeus. A
posição assumida por estes em suas pesquisas não se afasta, no que diz respeito aos
fundamentos do seu argumento, da posição de outros representantes dos saberes
oficiais no Bocage (médicos, jornalistas, padres). A autora previne o leitor já no início
de seu texto que os camponeses que estuda freqüentemente são tomados por
“crédulos, atrasados ou ingênuos” (Favret-Saada 1977, p. 16). Então, ela percebe que
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O fato empírico não é outra coisa senão um processo de fala e minhas notas
tomaram a forma de uma narrativa.
Descrever a feitiçaria do Bocage, não poderia ser outra coisa que revelar
estas situações por meio das quais me foi designado um lugar. As únicas
provas empíricas que eu posso fornecer da existência destas posições e das
relações que elas mantêm, são fragmentos de narrativa. Meus erros e, por
vezes, minhas recusas e desvios, fazem parte do texto, bem como a resposta
que, a cada vez, dei aos meus interlocutores é constitutiva do fato
considerado, do mesmo modo que o seu questionamento. (Favret-Saada
1977, p. 51).
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pergunta se é preciso acreditar ou não” (Latour 2002, p. 15), e passa a ser os modos de
existência de quase-sujeitos e quase-objetos, ou ainda, das ontologias de geometria
variável (idem, p. 80). Ou seja, o autor nos propõe um deslocamento de um problema
de epistemologia para um problema de ontologia. Ontologia aqui entendida não como
uma teoria absoluta sobre o ser ou o mundo, mas como campo aberto a ontologias
Pode-se negar que o desejo e a crença sejam forças? Acaso não se percebe
que, com suas recíprocas combinações, as paixões e os desígnios, eles são os
perpétuos ventos das tormentas da história, as quedas d’água que fazem girar
os moinhos da política? O que é que conduz e impele o mundo senão as
crenças, religiosas ou outras, as ambições e cupidez? Esses supostos
produtos são de tal modo forças que, por si sós, produzem as sociedades,
vistas ainda por tantos filósofos atuais como verdadeiros organismos. (Tarde
2006, p. 72)
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das forças coletivas que buscamos” (Mauss & Hubert 2003, p. 132). Tudo indica que
para os autores, perfeitamente engajados na perspectiva de Durkheim, é o caráter
coletivo que determina que os sentimentos e as ideações possam ser encarados como
forças.
Gabriel Tarde, por sua vez, não parte do coletivo constituído, mas vai buscar
os elementos que levam à associação entre os atores. Neste sentido, a crença e o
desejo são:
[...] quantidades que, servindo de ligação e suporte a qualidades, fazem estas
participarem de seu caráter quantitativo: são, em outros termos, identidades
constantes que, longe de impedir a heterogeneidade das coisas imersas em
seu meio, as valorizam, as penetram inteiramente sem, no entanto, constituí-
las; elas as unem sem confundi-las e subsistem inalteráveis no meio delas
apesar da intimidade estreita dessa união (Tarde 1895, p.192).
Mais importante que fazer uma definição deste tipo é notar que a crença, não
mais que o desejo, é nem logicamente nem psicologicamente subseqüente à
sensação; que a crença, longe de surgir para fora de um agregado de
sensações, é indispensável em sua formação e em seu arranjo; que ninguém
sabe o que resta de sensação quando o julgamento é removido; e que no som
mais elementar, no ponto colorido mais indivisível, há já uma duração e uma
sucessão, uma multiplicidade de pontos e momentos contíguos cuja
integração é um enigma (Tarde 1895, p. 198).
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Nesta leitura dos filósofos da diferença, crença e desejo constituem fluxos que
“são o fundo de toda a sociedade” ou, em outras palavras, “dois aspectos de todo
agenciamento” (Deleuze & Guattari 2004, p. 98). Neste sentido, a sociologia
infinitesimal de Tarde abre outro campo de possibilidades para a relação do ponto de
vista do antropólogo com o dos interlocutores pesquisados: a de retirar a idéia de
crença, assim como a de desejo, do registro das representações e das sensações e
realocá-la no plano conceitual molecular dos fluxos e devires, no plano do virtual6.
Tal operação constitui um procedimento de simetrização, que de um ponto de vista
pragmático, permite contornar a hierarquia entre o discurso do antropólogo e dos
sujeitos pesquisados, pois a crença deixa de ser o elemento definidor da relação entre
os dois discursos, isto é, um recurso para definir quem está com a razão, e passa a
estar compreendida na dimensão do virtual, cuja atualização pode efetuar-se de
múltiplas formas para ambas as posições (de etnógrafo e de seu interlocutor de
campo). Os fluxos de crença e desejo atravessam as representações de ambos,
conformam suas sensações e, inclusive, operariam no plano dos afetos não-
representáveis, de que fala Favret-Saada (2005).
Penso que seja essa a alternativa em relação à noção de crença: conectá-la a
um agenciamento molecular de produção ontológica, tal como fez Gabriel Tarde.
Caso contrário, seu uso direto ou disfarçado (sob exclusão da palavra que a nomeia,
mas com a manutenção do modo de pensar que lhe é característico) conduzirá a uma
forma de lidar com a alteridade, produzida nas relações construídas durante o trabalho
de campo, que exprime uma espécie de vibração nostálgica derivada de uma postura
de tolerância, como afirma Isabelle Stengers (1997, p.7). Nas palavras desta autora:
“Tolerante é aquele, ou aquela, que mede o quanto, dolorosamente, nós pagamos pela
perda das ilusões, das incertezas que nós atribuímos àqueles que pensamos que
6
Cabe salientar que o plano molecular em questão não remete a um plano de análise micro por
oposição ao macro, mas a um sistema de referência em que os elementos constituintes de qualquer
realidade não se encontram plenamente associados, cristalizados ou mesmo codificados por alguma
força que os transcende. Ele diz respeito ao domínio do virtual, este entendido não como oposição ao
real, mas como campo fluído de possíveis inscrito em toda realidade e que, a partir de múltiplas
correlações, podem efetuar-se e instaurar novas formações do real.
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(1935) que a agência das palavras, isto é, sua capacidade de agir, está correlacionada à
força que lhe é investida quando estas são enunciadas de um determinado modo, com
uma estrutura de ritmos, simetrias, oposições, sob um determinado contexto. O autor
está se referindo às palavras mágicas enunciadas pelos trobriandeses sob uma fórmula
mágica, cuja performance está ligada à sua estruturação.
Recordemos o que a benzedeira de Bentópolis falou para Nô: ele permanecia
vivo porque quem rezou o frango que lhe fez mal errou a enunciação de uma palavra.
Isto é, as palavras são agenciadas de modo diferente da linguagem coloquial, mas
devem ser estruturadas, ordenadas de uma determinada forma, cuja exata combinação
lhe confere o reconhecimento mágico. (ibidem) Contudo, Malinowski instaura a
diferença entre saber e crer na relação entre o domínio da palavra e o exercício do
poder. No seu ponto de vista, o poder deve estar ligado à crença na sacralidade da
palavra mágica (op. cit., p. 234-235). Tal como na perspectiva de Durkheim e Mauss,
a idéia de crença para Malinowski está operando como um tipo de representação da
realidade.
Se mudarmos nosso sistema de referência e o deslocarmos para as direções
propostas por Favret-Saada e Latour, ao invés de representação da realidade teremos
um sistema de posições e afetos relacionáveis e práticas que fazem fazer coisas.
Vejamos duas situações. Nô havia passado mal e não identificava as causas das
câimbras que atingiam várias partes de seu corpo e do sangue que expelia pela boca.
Procurou o atendimento médico no hospital, onde ocupou o lugar de paciente, tornado
objeto de investigação diagnóstica e intervenção pelos recursos técnicos e científicos
utilizados por indivíduos (médico e enfermeiros) que ocupam o lugar de agentes
oficiais de cura. Seus parentes, concomitantemente, levaram-no a benzedores locais.
Nenhum dos expedientes resolveu seu problema. Em situação de desespero, lhe foi
sugerido consultar uma benzedeira considerada poderosa por um conhecido seu, em
uma localidade próxima à São Romão. Certamente, Nô, seus familiares e amigos que
diagnosticaram que seu problema transcendia à intervenções limitadas ao plano
corporal, compartilham de um sistema simbólico em que as posições (vítima da ação
de uma força alheia, anunciador do problema, acusador da origem do mal, indicador e
manipulador de processos de cura, etc.) estão sujeitas à ação de forças que atingem
tais lugares. Como afirmou Favret-Saada (1977, p.51), o fato empírico que se pode
extrair deste sistema de lugares é o processo de fala. Aí podemos reencontrar Bruno
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Latour e dar um novo sentido à performance das palavras referida por Malinowski.
Em um “sistema feiticeiro”, a prática de enunciar certos discursos opera, em contextos
como o do caso de Nô, como um dispositivo de fazer fazer7, ou seja, de fazer falar (o
que se sente pela vítima), de fazer diagnosticar (pela leitura de indícios de um
anunciador do problema), de fazer acusar (um responsável pelo mal que aflige a
vítima, por um acusador), fazer curar (pelo especialista, no caso um benzedor, que
neutraliza o ataque por meio de rezas e receitas de remédios e práticas auto-
terapêuticas à vitima). Diante do exposto, podemos pensar que os “sistemas
feiticeiros” são sistemas de influência, no sentido que operam dispositivos capazes de
modificar a ação dos outros (Nathan 1999).
No que tange aos casos de possessão e despossessão por espíritos ou
entidades, no contexto estudado, creio tratar-se também de regimes em que operam
procedimentos e técnicas de influência. Neste ponto, a influência pode ser associada a
uma exterioridade não-estrutural que faz agir. Primeiramente, tomo os rituais para a
expulsão do espírito que havia se apossado da menina como uma prática equivalente a
um dispositivo terapêutico, tal como os procedimentos de Tobie Nathan que Latour
tomou para desenvolver sua análise sobre fetiches (2002). Se para Nathan a cura
equivalia a fazer passar os pavores8, não permitindo que ele se detenha sobre o
paciente, o dispositivo em questão também visou à eliminação do problema a partir da
não fixação do espírito da mãe da garota. Neste sentido, creio que é possível refinar, a
partir do jogo entre os elementos envolvidos na despossessão (pessoas, ervas e
plantas, espíritos, orações, conversas, objetos santos, etc.), os movimentos, não só de
passagem (fabricação-realidade), mas de recomposição de territórios existenciais
Vejamos, o próprio Latour havia chamado atenção para a relação entre
divindades e forças de modificação (2002, p. 95), contudo, ele não desenvolve a
7
Creio que o avanço obtido por Bruno Latour (2002, 2005) consiste no conjunto de deslocamentos
analíticos dedicados a colocar a ação em um entre. A agência não seria um privilégio humano, no
sentido de que não é nele que está sua origem. Tampouco dos não-humanos. Tal como afirmei
anteriormente, o ator não age, é feito agir, isto é, é investido de agências. Na ação há sempre algo de
criativo, um evento, a passagem de um virtual para um atual. Se o ator é investido por várias agências
temos uma idéia de exterioridade que, contudo, não se cristaliza em “estruturas”, mas antes em outros
atores, outras ações.
8
De acordo com o autor: “os pavores passam, atravessam, saltam sobre o sujeito; caso eles se prendam
a este último, será por engano, quase por inadvertência; caso eles o possuam, será por que se
enganaram de alvo. Série de substituições sem lei, os pavores podem transmutar, a todo instante,
qualquer ser em outro ser. Donde o terror que, com razão, suscitam” (Latour 2002, p.96).
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reflexão sobre estas forças. No caso em questão, penso que podemos tratar a expulsão
do espírito de forma análoga aos processos de desenfeitiçamento que Favret-Saada
(1977) analisou na região do Bocage. A força designaria o que faz circular e também
o que circula numa crise de feitiçaria (Favret-Saada 1977, p. 332), cuja posse (da
força) é maior ou menor conforme a posição dos sujeitos (feiticeiros, enfeitiçados e
desenfeitiçadores). Como não há referências êmicas à ação de forças, prefiro
considerar que tal modelo pode ser útil se conectarmos sua lógica operativa para o
embate entre as agências acionadas. Assim, o embate entre o espírito, a menina
possuída e aqueles que buscavam curá-la também constitui, em um determinado nível,
uma relação de forças, no sentido de relações de poder, de ações sobre ações.
As agências em questão devem nos remeter à delimitação das diferenças entre
os elementos humanos e não-humanos em jogo. Em uma perspectiva Tardiana, sugiro
que desloquemos a atenção do que são estes elementos, para o que eles têm ou
possuem. São as propriedades (virtuais ou atuais) dos elementos e as relações que
podem ser estabelecidas entre eles, que permitem elucidar o caráter compósito das
ações e o que está sendo criado por meio delas. Cabe salientar que tais propriedades
não constituem capitais, tal como nas teorizações de Bourdieu, pois não se dispõem
numa estrutura que serve de recurso aos atores. Antes, “a verdadeira propriedade de
um proprietário qualquer é um conjunto de outros proprietários” (Tarde 2006, p. 115).
Logo, a propriedade, como a ação, é compósita e, portanto, só pode ser apreendida a
posteriori como relação e não a priori como determinação.
Estabelecer o que o espírito da mãe, o alho, o terço ou as orações proferidas e
sugeridas por minha interlocutora à garota possuem é extrair relações de relações, em
um dispositivo no qual suas funções são produzidas. Diante dos aspectos da
socialidade local trabalhados em Benites (2010), apresento pelo menos duas destas
relações. Uma é a relação de parentesco, cujos vínculos de filiação e afinidade – afinal
o pai da garota também possui um lugar no diagnóstico das intenções do espírito
possessor – não se extinguem com a morte. Outra relação que é possível extrair, diz
respeito ao regime cosmológico cristão e suas mesclas com traços do espiritismo,
presente no diagnóstico e na prática de expulsão do espírito da mãe.
Segundo Brandão (1987), as práticas do catolicismo popular amalgamam-se a
lógicas operatórias espíritas. Segundo o autor, tanto para o catolicismo popular quanto
para o espiritismo, a sociedade dos vivos mantém relações com a sociedade dos
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entender”. Ele diz que a pessoa pode saber algo, ter conhecimento, “ser um doutor, se
formar”, mas pode não ter “entendência”. Isto é, o conhecimento é uma propriedade,
algo que se pode possuir, mas que nem todos sabem acionar para compreender e agir
no mundo. A formulação do meu interlocutor supõe um hiato, ou distância, entre
propriedade e agência, isto é, entre possuir um saber, mas não saber usá-lo, e colocá-
lo em ação, como por exemplo, para entender uma situação e desencadear ações a
partir deste entendimento. Nesta perspectiva, entender já é agir, é ação de pensar, de
pôr o pensamento em movimento.
A que diz respeito tal sabedoria, ou “entendência”? Que viver é perigoso e esta
condição é generalizável, dependendo das posições que os sujeitos ocupam em
sistemas de relações, cujo contexto de conflito pode determinar a exposição à
agências capazes de produzir danos. Neste sentido, poderíamos falar que o lado
complementar à influência é a vulnerabilidade. A noção de vulnerabilidade em
questão tomo emprestado da formulação dos filósofos Philippe Pignarre e Isabelle
Stengers (2005). Os referidos autores se colocam como herdeiros dos movimentos
altermundistas que se manifestaram contra a Organização Mundial do Comércio, em
Seattle, no fim da década de 1990. Preocupados em entender os modos de operação
do capitalismo e se engajar em uma pragmática que lhe oponha resistências, eles vão
realizar um deslocamento analítico criativo ao introduzir a idéia de feitiçaria na
análise do funcionamento capitalista.
Segundo Pignarre e Stengers, o sistema capitalista é um sistema social e
econômico produtor de alternativas infernais entendidas como “um conjunto dessas
situações que parecem não deixar outra escolha senão a resignação ou uma denúncia
que soa um pouco vazia, como que marcada pela impotência [...]. (PIGNARRE;
STENGERS, 2005, p. 40) Neste sentido, eles assumem o capitalismo como um tipo
de sistema feiticeiro, contudo, sem feiticeiros, porque sustentado a pequenas mãos
(petite mains), isto é, por um exército de pequeno colaboradores, de almas
capturadas. A questão da vulnerabilidade para este autores está articulada ao
aprendizado de práticas de proteção que evitem à captura pelas forças capitalistas. Os
autores alertam que tomar o capitalismo como um tipo de sistema feiticeiro não tem
nada metafórico (creio que num sentido fraco da expressão) nem de subordinado à
crença ou não em feitiçaria. O que estaria em jogo é a melhor descrição que a idéia de
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9
Chamarei assim, desde este momento, tanto os regimes de possessão por espíritos ou entidades
investidas em provocar malefícios aos possuídos, os lançamentos de “mal-olhado”, os objetos
“rezados” destinados a produzir danos à terceiros, quanto as práticas de benzimento, de manipulação
ritualizada de objetos e plantas, de despossessão e de possessão terapêutica de entidades ou espíritos.
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atos de pessoas próximas, pelas quais se alimente algum tipo de desconfiança), mas
ao necessário enfrentamento quando do diagnóstico da atuação de tais agências. A
pragmática deste pensamento talvez merecesse ser estendida para as próprias
operações intelectuais do antropólogo. Quem sabe assim, nos colocaríamos em
condição de expandir os limiares do nosso saber e elaborar uma “entendência”
antropológica.
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Bibliografia
FAVRET-SAADA, Jeanne. 1977. Les mots, la mort, les sorts. Paris: Gallimard.
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GUATTARI, Félix; ROLNIK, Suely. 1986. Micropolítica: cartografias do desejo.
Petrópolis: Vozes.
LATOUR, Bruno. 2000. Factures/fractures : de la notion de réseau à celle
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Mágicas em uma cidade do Vale do Jequitinhonha. Brasília: DAN/UnB.
STENGERS, Isabelle. 1997. Cosmopolitiques VII: Pour en finir avec la tolerance.
Paris: La Découverte/Les Empëcheurs de Penser en Rond.
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WAGNER, Roy. 1981. The Invention of Culture. Chicago: The University of Chicago
Press.
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O célebre conto de Kafka (Um relatório para uma academia), publicado no livro Um
Médico Rural em 1919, é mais do que uma leitura agradável. Afora as conclusões
comumente extraídas deste trabalho do artista tcheco, afora os moralismos que nos
apresentam o óbvio, as mais levianas conexões, afora a mediocridade das leituras, este
conto parece ainda incognitu. Seria realmente de primeira instância a associação do
conto com o debate biológico da evolução, em voga na época, em que se vêem
confrontadas a teoria de Darwin e a posição soberana do animal humano. Por outro
lado, pode-se também revelar no texto as conexões com as teorias do aprendizado por
imitação assim como a capacidade símia de realizar atos humanos. Mas uma obra
complexa como a de Kafka oferece sempre duas qualidades de leitura, uma bastante
cômoda e outra bastante implicada e desconfortável. O ‘x’ da questão é o que menos
nos interessa aqui, precisamente porque o tema mais geral de um conto, claramente
expresso ou oculto, nunca supera os miúdos processos pelos quais o conto se
desenvolve. A ver que, por exemplo, logo de início o símio começa por deferir o
pedido da Academia. Começa assim com certa nobreza. Ele foi invocado a relatar-
lhes sobre sua vida pregressa de símio, ao que ele se diz incapaz de realizar porque
somente esquecendo esta vida ele poderia adentrar na vida humana. Ou seja, se acaso
o símio fizesse um questionamento das teorias biológicas da evolução ele haveria de
relatar-lhes as maravilhas da evolução animal, o que, aliás, aparece somente, e
vagamente, quando o símio comenta de seu asco pela própria macaca-esposa, cujo
olhar tem ‘a loucura do perturbado animal amestrado’.
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Todavia é desde o título do conto que o macaco inaugura seu campo discursivo. Já aí
ele implica uma Academia, e inicia por “senhores da Academia”. Está aí a ordem
geral dasAcademias, como instância geral e abstrata do conhecimento – a Academia;
mas também uma academia, na sua singularidade, respectivamente ocupada pelos
senhores que a efetuam no espaço e no tempo. Questão de simultaneidade, o relatório
do macaco, vale arriscar, visa um público ao mesmo tempo coletivo e singular,
múltiplo mas referido a um corpo unitário. Diz respeito obviamente a uma dupla
natureza do processo que o conto vai revelar, já que este se diz de muitas formas. Ora,
afinal, o interesse da Academia, como instância maior, por um relatório dessa
natureza, sabe o símio, é de grande importância para a Humanidade, de grande valor
científico. É também ao final do conto que se pode perceber a nebulosidade do
público, sua generalidade esfumaçada, a quem o símio se dirige: “quero apenas
difundir conhecimentos; faço tão-somente um relatório; também aos senhores,
eminentes membros da Academia, só apresentei um relatório”. É assim que,
paradoxalmente, se quebram os limites formais do Relatório em direção ao conto.
Desde sua captura o símio, conhecido por Pedro Vermelho, se pergunta pela saída.
Ele até mesmo se preocupa com o sentido de saída: ‘tenho medo de que não
compreendam direito o que entendo por saída’. A questão do macaco neste contexto
jamais foi a sua evolução ao humanismo, nem mesmo falsear as teses darwinistas,
mas sim a resolução de um problema da liberdade. Ele leva dois tiros, que já lhe
marcam para sempre o corpo e a memória, para depois ficar trancafiado num caixote
dentro do navio de seus caçadores. A pergunta sobre a liberdade que o macaco se faz
já aparece desde o começo quando ele nos diz que ‘enquanto macaco livre’ se
submeteu à renúncia ao seu passado. É precisamente depois de capturado e preso que
essa liberdade pode figurar-se. Mas não porque ela lhe foi negada com a prisão e as
barras de ferro da jaula; não é o cárcere literal que o prende. Pois a liberdade não é
definida aí pelos preceitos de valores democráticos ou por princípios políticos
superiores; muito menos por um primeiro gênero de liberdade de movimento
impedido. Ela foi antes colocada a partir de um problema; a saída do problema é a
liberdade e a liberdade é sempre uma saída, e não um estado.
Kafka, portanto, coloca a ideia da liberdade de seu modo, como associada a um
campo problemático: ‘pela primeira vez na vida estava sem saída’. Estamos sempre
dispostos em contextos obstruídos e vazantes, campos de implicações cujos limites
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oferecem soluções aos problemas que o compõe. Aos problemas temos saídas, e aqui
o símio está sem uma. Aqui, literalmente, o símio encontra-se encaixotado. Mas seu
problema-saída não é o de sair da caixa, não é sair do navio, estranhamente ele
percebe sua saída enquanto saída da condição de macaco, sua saída é uma mutação
existencial. Assim, ele coloca o problema da liberdade; não em relação à animalidade-
humana, mas em direção a ela, no horizonte móvel do destino. Entretanto não é assim
tão racionalmente que o macaco percebe sua saída. A genialidade de Kafka está
exatamente em mostrar que a saída nunca é a resolução de um cálculo estrito, de uma
avaliação objetiva e criteriosa. Pois em nosso amigo símio ela já se anunciava
misteriosamente como o sentido dos atos, lhe parecia no “mínimo pressentido que
precisava achar uma saída”. E como uma fruta que amadurece a saída se torna nítida
no decorrer de um processo.
“não, liberdade eu não queria. Apenas uma saída.” É o único desejo do símio
capturado. Foi sua maneira de diferir a Saída de uma mistura com a Fuga e com a
Liberdade, recriando a liberdade num plano mutacional. Ao mesmo tempo sua
referência à construção da Saída é constante. Não havia promessas declaradas de que
se humanizar era a saída, embora existisse virtualmente uma grande recompensa;
porém enquanto símio não se pode ter essa certeza. Mas Pedro Vermelho observava
atentamente aqueles homens no navio e a ‘saída que se mostrava no turvo olhar
daqueles homens’ foi uma porta construída, o ponto comum, pela fricção de dois
universos relacionais.
Imitar inicialmente foi o único recurso do triste macaco. E por uma surpreendente
sobreposição as animalidades dos marinheiros, que cospem e bebem e tem voz
gutural, foram as primeiras humanidades de Pedro Vermelho, que as aprendeu com
maestria. Nesse encontro, implicado nessa proximidade e intersecção animal-homem,
a luta de Pedro se torna a mesma que a dos marinheiros, a porta relacional estava
feita; ambos estavam juntos na batalha contra a natureza do macaco e finalmente tudo
se confirma após a vitória da fala. Foi depois de beber uma garrafa inteira de
aguardente e jogá-la ao chão artisticamente que o símio, diante da atenção crescente
dos marinheiros, prorrompe num som humano: ‘alô!’.
Vejamos então a constituição do processo de maturação da saída. Ela foi em parte
produzida como horizonte e destino, com parcela da exterioridade dos marinheiros e
resultados na interioridade do macaco, como que o dotando cada vez mais de
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Bibliografia
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Miky Sugiyama1
Bacharel em Ciências Sociais pela UNESP, Faculdade de ciências e Letras,
departamento de Antropologia, Política e Filosofia, campus Araraquara.
Torcendo caminhos
1
miky.sugiyama@gmail.com
2
Ganhador do prêmio Nobel de química, Ilya Prigogine foi orientador de Isabelle Stengers. Juntos eles
escreveram A Nova Aliança (1984 [1979]). Livro que, segundo Bruno Latour, atraiu uma “massa de
lunáticos” da qual Stengers passou a vida tentando se livrar (Latour, B. Stengers' shibbolet. Foreword
for Isabelle Stengers ' Power and Invention, University of Minnesota 1998).
3
Antropologia simétrica é um título provisório para a proposta metodológica que deve incluir as
pesquisas em antropologia das ciências, os “social studies in science” (Stengers, 2002), a Teoria Ator-
Rede (Latour, 2005) e mais recentemente, as análises de controvérsia, e os desenvolvimentos da
Etnopsiquiatria entre outros.
4
Por dirigir-se em especial aos psicanalistas, a apresentação de Chaim Samuel Katz, Psicanálise: Saber
e Singularidade centra-se na questão da separação entre prática e teoria articulada por Freud,
constituindo-se como um resumo de um dos argumentos do livro.
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5
Todas as indicações numéricas entre parênteses fazem referências a páginas do livro resenhado.
6
DELEUZE, G.; GUATTARI, F. mil platôs vol.2, São Paulo: Ed34, 1995. 53p.
7
A questão da exigência constará dez anos mais tarde no glossário Latouriano em seu livro Políticas da
Natureza (2004[1999]) dedicado a Stengers, doravante filósofa da exigência.
8
Cf. Latour, B. Reassembling the social. New York, United States: Oxford University Press, 2005
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Insuficiência moderna
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A invenção da psicanálise
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Proposições
Aproximações
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Neo-kantiana, no sentido de que “Lacan transpôs para a cena analítica, [...] aquilo que constitui a
precondição da leitura kantiana da ‘revolução copernicana’: que as categorias da interrogação sejam
também os princípios do objeto. (211)
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Leif Grünewald
PPGA/UFF
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BIBLIOGRAFIA
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Martin Holbraad
Morten Axel Pedersen1
Resumo: Este artigo visa discutir a natureza singular da comparação na obra de Marilyn Strathern. O
contraste entre sua abordagem e argumentos mais conhecidos sobre o papel da reflexibilidade e da
etnografia multisituada como parte da agenda comparativa da antropologia contemporânea, permitirá
que elucidemos os princípios lógicos e metafísicos subjacentes à maneira particular através da qual
Strathern conecta e desconecta materiais etnográficos (inclusive suas justaposições entre a etnografia
melanésia e europeia). Focando-nos em sua reiterada distinção entre abordagens “plurais” e “pós-
plurais” no que diz respeito à análise, exploraremos o papel da “escala”[scaling] no seu projeto
antropológico. Esta, entre outros aspectos, permite que a autora estabeleça comparações trans-
temporais entre “momentos etnográficos” que, de outra maneira, estariam separados pela história.
Palavras-chave: abstração, comparação, etnografia, antropologia pósplural, representação,
temporalidade
1
MARTIN HOLBRAAD trabalha para o Departamento de Antropologia da University College
London. Desde 1998 tem como foco o socialismo e a religião afro-cubana em Havana. É co-editor de
Thinking Through Things: Theorising Artefacts Ethnographically (Routledge, 2007) e Technologies of
the Imagination (Volume especial da Ethnos, Primavera 2009). É autor do livro Ifá Never Lies: Cuban
Divination and Anthropological Truth. Endereço: Department of Anthropology, University College
London, 14 Traviton Street, London WCC1H OBW, UK. E-mail: m.holbraad@ucl.ac.uk
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Introdução
2
Este artigo resulta de muitas horas, senão anos, de atrito colaborativo constante entre dois autores.
Uma versão mais curta apareceu na Cambridge Anthropology. Nós agradecemos a Morten Nielsen
pelos comentários instigantes e provocadores à versão mais recente, assim como ao revisor anônimo da
Anthropological Theory, periódico responsável pela publicação do presente artigo em língua inglesa.
Somos profundamente gratos a Priscila Santos da Costa pelo extenso e cuidadoso trabalho de tradução
para a língua portuguesa.
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infinitude é uma via de mão dupla – dirige-se tanto para o exterior quanto para o
interior de forma que uma escala que pretenda limitá-la acaba agindo como seu
conduto – então as próprias distinções entre pluralidade e singularidade, todo e parte,
complexidade e simplicidade, assim como o infinito e o finitude, perdem o sentido.
Isso ocorre porque também desaparece a pressuposição pluralista básica da qual
depende cada uma destas distinções, a saber, a ideia de que o mundo é formado por
uma multiplicidade infinita de ‘coisas’ que podem ou não se relacionar umas com as
outras. Se sobre qualquer coisa pode-se questionar não só com que outras coisas esta
se relaciona (o projeto comparativo pluralista) mas também de que coisas ela é
composta, então a própria metafísica das ‘muitas coisas; também se mostra
incoerente. Pode-se depreender disto que tudo é ao mesmo tempo mais e menos do
que si mesmo. ‘Mais’ porque o que parece uma ‘coisa para a metafísica pluralista
acaba, pós-pluralisticamente, sendo composta por outras coisas – infinitude interna –,
e ‘menos’ porque ao mesmo tempo ela também contribui para a composição de outras
coisas – infinitude externa.
Desta forma, coloca-se a questão: no que consistiria a comparação em um
mundo sem ‘coisas’? E se não há coisas, então sobre o que as comparações devem
operar? Segundo tal imagem o que seriam, digamos, a Melanésia e a Inglaterra, ou o
Ocidente e as Terras Altas Ocidentais da Papua Nova Guiné, ou os diferentes tipos de
flauta (ou os métodos de iniciação, os modos de troca, ou o que quer que seja) que
gostaríamos de comparar? Em Partial Connections, Strathern apresenta inúmeras
imagens sugestivas: os ‘ciborgues’ de Donna Haraway, a ‘poeira de Cantor’ e de
forma mais abstrata, a imagem do fractal. Neste artigo queremos nos ater à seguinte
formulação paradoxal: coisas que são o que são em virtude de serem ao mesmo tempo
mais e menos do que elas mesmas. Gostaríamos de propor que a verdadeira virtude
deste paradoxo é que torna ele incoerente a metafísica pluralista das coisas ao mesmo
tempo em que serve também como uma versão coerente da alternativa pós-plural.
Certamente podemos presumir que as coisas não podem ser ao mesmo tempo mais e
menos do que si mesmas. ‘Mais’ e ‘menos’ são, afinal de contas, relativos e, se já é
difícil ver sentido na comparação de uma coisa a si mesma, imagine achá-la diferente
de si. Mas isto seria o mesmo que dizer que a alternativa pós-plural à ‘coisa’ é,
precisamente, a comparação. Despojada da pressuposição de que ela deve operar em
coisas diferentes de si mesmas, é exatamente assim que a comparação se pareceria:
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algo que é tanto mais quanto menos do que si mesma. O que significa dizer que em
consonância com a versão pós-plural, as diferenças que as comparações plurais
medem ‘entre coisas’ agora emergem como constitutivas das mesmas coisas e podem
portanto ser pensadas como residindo dentro delas. Isto, por fim, também implica que
a distinção pluralista entre as coisas e as escalas que as medem desmoronará sobre si
mesma: dizer que as diferenças devem ser pensadas como internas antes que externas
às comparações é também dizer que não existe um ponto pós-plural exterior a partir
do qual as comparações poderiam ser vistas, medidas ou, de fato, comparadas.
Portanto as comparações são, por assim dizer, coisas que agem como suas próprias
escalas – coisas que dimensionam [to scale] e portanto, comparam a si mesmas.
Ora, ficará evidente que esta linha de pensamento nos leva quase diretamente
à conceitualização pela qual o trabalho de Strathern é provavelmente mais conhecido
e na qual ela finca sua bandeira com mais firmeza, a saber, “a relação” (e.g. Strathern,
1995). Não é necessário dizer que as comparações são relações no sentido
stratherniano. Por exemplo, a característica que coloca Strathern evidentemente nas
proximidades do pós-estruturalismo – o fato de que as relações são logicamente
anteriores às entidades – seria uma maneira de interpretar o seu argumento sobre
escalas e suas relações com as coisas. Aqui, entretanto, nós queremos nos ater a uma
noção aparentemente mais estreita da comparação. Isto decorre, em certa medida, do
fato de que queremos mostrar que interpretar o universo relacional de Strathern como
‘comparativo’ adiciona algo a ele (na verdade, nós sustentaremos que a habilidade de
adicionar aos pensamentos estreitando-os está na base da noção stratherniana de
comparação). Em particular, o foco na noção de comparação no que concerne ao
trabalho de Strathern retifica uma fonte potencial de insatisfação face ao conceito de
relação e ao universo que ele implica, a saber, o de uma maleabilidade aparentemente
excessiva – o modo como este universo parece fazer da complexidade “desenfreada”
uma virtude, para retomar uma das formulações de Strathern. Do ponto de vista da
exegese, nós acreditamos que a vantagem de um enfoque mais preciso da noção de
comparação na obra de Strathern (sobre o da relação) torna-se evidente quando
articulamos o contraste entre as versões ‘plurais’ e ‘pós-plurais’ da comparação
segundo termos mais crus do que aqueles que a própria autora mesma utiliza. Na
verdade, como explicaremos adiante, parece que um dos motivos pelo qual a posição
de Strathern (tipicamente colocada em termos da noção mais embotada de “relação”)
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é por vezes facilmente confundida com um tipo de relativismo que cheira a pós-
modernismo, é o fato de que ela não oferece uma defesa firme e explícita deste
contraste.
Consideremos um contraste entre imagens. Por um lado, retratando o ímpeto
para controlar a complexidade do qual os modos de comparação pluralista retiram sua
força, Strathern apresenta duas imagens que correspondem ao que nós chamamos de
escalas comparativas ‘quantitativas’ e ‘qualitativas’: respectivamente, o mapa e a
árvore (Strathern 2004, p. xvi-xvii). Ampliar ou reduzir a escala para alterar o escopo
de uma forma em detrimento do conteúdo corresponde imediatamente ao que se quer
definir como ‘escala’ quando alguém se refere a um mapa: a proporção que existe
entre um território (conteúdo) e a sua representação (forma). Analogamente, as
alterações qualitativas de uma forma de comparação em outra (e.g. focar na dimensão
econômica em oposição à religiosa de um certo conjunto de dados) pressupõem que
cada uma destas formas está relacionada às outras segundo relações laterais ou
verticais, formando uma árvore genealógica. Por exemplo, enquanto alguém poderia
imaginar que as escalas econômica e religiosa pertencem à mesma “geração”, como
irmãos, outros poderiam apresentar a escala do “social” como contendo estas duas,
como se fosse um pai. Mesmo estas duas imagens se relacionam lateralmente (em
uma árvore elas seriam irmãs) visto que ambas tornam possível o controle dos dados
em virtude, nas palavras de Strathern, das “constâncias”4 que elas sugerem:
[O mapa] sugere a existência de certos pontos ou áreas, como muitos povoados ou campos
vistos do ar, que permanecerão identificáveis não importa o quanto suas características sejam
reconfiguradas; tudo o que muda é a perspectiva do observador. [A árvore] sugere um tipo de
proximidade que define um sistema de conceitos e sua transformação potencial a partir de
dentro, na medida em que apenas trajetórias particulares são “geneticamente” possíveis
segundo os princípios que escolhidos como ponto de partida. (2004, p. xvii).
4
“Controle” casado com “Constância” seriam seus pais!
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Abstração Plural
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reveladora) em uma descrição seu próprio conceito de comparação, mas sim ao longo
de seu comentário mais detalhado a propósito de um exemplo de comparação
pluralista que o seu conceito desloca. Nos referimos aqui à sua discussão sobre as
tentativas de fornecer um quadro integrador para comparar sociedades de toda a
região das Terras Altas da Papua Nova Guiné tendo como base um tema que elas
supostamente possuem em comum, a saber, a associação do uso das flautas de bambu
ao poder masculino (p.ex., Hays 1986). Strathern afirma que o problema destas
comparações transculturais é que ainda que elas certamente iluminem conexões
etnográficas e históricas significantes, elas também – necessariamente – implicam em
um deslizamento entre níveis. De onde, alguém poderia se perguntar, estas
comparações retiram as características do fio condutor cujas variações elas desejam
determinar? Se, por exemplo, em alguns casos as flautas são centrais para a iniciação
masculina, e em outros esta importância é menor ou inexistente; ou se, de acordo com
o lugar, as próprias flautas são concebidas como masculinas, ou femininas ou ambos;
ou se as flautas de bambu simplesmente inexistem, então a partir de qual desses casos
a ideia supostamente comum de que as flautas são um importante elemento do poder
masculino retira sua força? Strathern escreve:
A dificuldade desta comparação é que nossa suposta cultura regional comum é composta pelas
mesmas características que constituem nosso objeto de estudo, os ‘significados’ que os povos
dão a estes instrumentos, as analogias que eles estabelecem...O núcleo cultural comum, os
temas comuns às variações, não são um contexto ou nível independente do uso local. (2004, p.
73).
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5
Strathern afirma: “Meu interesse está nas proporções que sustentam a convicção dos relatos
antropológicos” (Strathern 2004, p. 75).
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Abstração pós-plural
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abstensão, é apenas torná-lo (dimensioná-lo [to scale it]) algo diferente, a saber, uma
coisa-também-escala que poder-se-ia querer hifenizar: ‘cachorro-enquanto-
6
quadrúpede’. Este novo ‘terceiro’ elemento é uma autocomparação semelhante
àquela esboçada anteriormente: ele é ‘mais do que si mesmo’ porque, qua cachorro-
enquanto-quadrúpede, é um cachorro de verdade: e também ‘menos do que si mesmo’
porque de novo, qua cachorro-enquanto-quadrúpede, é meramente um quadrúpede
‘abstraído’ (ainda que queiramos dizer abstendido)7.
Para ressaltar a peculiar característica ‘cortante’ da abstensão, nós podemos
adicionar à gama de imagens que Strathern utiliza para demonstrar a sua noção de
comparação (o fractal, o ciborgue, e assim por diante) uma que pode-se dizer ser a sua
forma mais rudimentar – o molde de um cone deitado de lado (ver figura 1).
Imaginar as abstensões desta maneira serve, em primeiro lugar, para ilustrar a
diferença crucial entre a abstração pós-plural e a sua contraparte plural, que Strathern
retrata de acordo com imagens gêmeas do mapa e da árvore. Como já vimos, as
comparações pós-plurais estabelecem distâncias (ou ‘intervalos’ [gaps]) que separam
tanto as coisas umas das outras, quanto estas das generalizações cada vez mais
abstratas em cujas ‘extensões’ elas se incluem. Além do mais, esta última relação (por
ie., entre as coisas e suas generalizações) é irredutivelmente hierárquica ou ‘vertical’
uma vez que o que torna as generalizações apropriadas enquanto escalas para
comparar coisas é o fato delas serem mais abstratas que as coisas comparadas. Como
vemos na figura 1, entretanto, as abstensões estão isentas das duas características
apresentadas pelas abstrações convencionais. Aquilo que na abstração ‘plural’ se
assemelha a intervalos [gaps] extensivos ‘entre’ coisas (e entre coisas e escalas),
6
Existem ecos do conceito de terceiridade de Charles Peirce: “A terceiridade é o modo de ser daquilo
que é tal como é, colocando em relação recíproca um segundo e um terceiro.” (Peirce, 1958, p. 328).
7
Importante notar que as intuições de alguém sobre o que, aqui, conta como ‘mais’ e como ‘menos’
devem também ser invertidas sobre si mesmas. Imaginar um cachorro como sendo mais do que um
cachorro-enquanto-quadrúpede (“mais ‘de verdade’”) e o quadrúpede como menos do que este (‘mera
abstração’) é pensar no cachorro-enquanto-quadrúpede como uma abstensão-coisa em analogia ao
cachorro. Mas as abstensões são, como vimos, definidas como tipos de coisas que são simultaneamente
escalas (e dizer ao dizer isto já estamos, por assim dizer, abstendendo a própria noção de abstensão –
uma abstensão da abstensão). Mas se alguém pensar no cachorro-enquanto-quadrúpede como uma
escala, em analogia ao quadrúpede, as coordenadas do que é ‘mais’ e do que é ‘menos’ viram de
cabeça pra baixo. Agora pode-se pensar no cachorro como sendo menos do que um cachorro-enquanto-
quadrúpede (‘um mero particular’) e no quadrúpede como sendo mais do que este (mais ‘geral’ ou
‘universal’). Na verdade, pode-se afirmar – bem superficialmente – que se a primeira imagética (coisal)
expressa, digamos, uma estética característica da fenomenologia e a última (escalar) expressa a estética
do formalismo (ou mesmo da lógica formal), então o pensamento de Strathern também seria o
‘terceiro’ destes últimos.
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de modo a se tornar mais afiada, tomando forma de escala – assim, ainda a mesma
massa, mas ‘menos’ do que ela mesmas em sua extremidade – (para visualizar isso,
imagine como o cone da Figura 1 pode ser esculpido a partir da massa de um cilindro
circular à direita). Em segundo lugar, mesmo que esta ‘derivação interna’ da escala a
partir da coisa não envolva a abertura de uma distância (externa) entre as duas, ela
ainda assim engendra um ato de remoção, a saber, a remoção ‘interna’ das proporções
autotransformadoras do cone na medida em que move-se de sua extremidade mais
larga para a mais estreita (de novo, para visualizar isto, imagine o movimento da
goiva do escultor enquanto ele talha uma massa cilíndrica para dar a ela a forma de
um cone). Portanto, o que na imagem plural eram distâncias ‘entre’ agora se tornam
transformações formais ‘dentro’ (trans-formações, para sermos mais exatos), que
podem ser concebidas como ‘movimentos internos’ – movimentos que talvez não
sejam muito diferentes daqueles que os classicistas apreciam nos ‘ritmos’ das antigas
colunas.
‘Coisa-também-Escala’: cachorro-enquanto-quadrúpede
“Extremidade- “Extremidade-
coisa” escala”
(cachorro: (quadrúpede:
mais) menos)
Figura 1. Abstensão
Nota: A penumbra cinza mostra que a correlação, por um lado, entre a ‘coisidade’ e a ‘escalicidade’ e,
por outro, entre ‘mais’ e ‘menos’ podem se inverter, como explicado na nota 6.
164
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fique claro o caráter essencialmente oximórico desta frase – em cujo termo “ciência”
conota, precisamente, abstração. E assim como Lévi-Strauss defendia fervorosamente
a sofisticação irredutível desta ciência – ainda que “selvagem” – nós pensamos que as
abstensões strathernianas não são em nenhum sentido inferiores às abstrações
‘plurais’ quando consideramos a completa agilidade das comparações que elas
fornecem. Apenas agora esta agilidade não é mais uma questão de adotar diferentes
escopos sobre as coisas a partir do ponto de vantagem que as escalas mais abstratas
possibilitam (por ex., agrupar gatos e cachorros com base na sua quadrupicidade
comum e depois contrastá-los, digamos, a partir do ponto de vista de sua locomoção).
Antes, o potencial para a comparação é acentuado pela potencialidade (do que a
metafísica plural chamaria de) das ‘coisas’ (por ex., o cachorro) de serem
transformadas ao serem ‘cortadas’ de determinadas maneiras, ‘estreitadas’ de forma a
terem determinados aspectos de si mesmas revelados (por ex., o cachorro-enquanto-
quadrúpede). E o efeito de tal transformação é fornecer, não um ponto mais vantajoso
em generalidade mas antes, outro de partida. Tão parecido com coisa (e com escala)
quanto o cachorro do qual se deriva, o cachorro-enquanto-quadrúpede apresenta
possibilidades adicionais para a transformação comparativa em uma gama imensa de
direções – incluindo gatos, locomoção, mamíferos e outros.
Ora, esta conclusão – talvez intensamente abstrata – pode parecer escolástica
em sua insistência no contraste entre as metafísicas das comparações plurais e
pósplurais. Nós queremos mostrar, entretanto, que ela vai ao âmago de uma das
características mais marcantes de Strathern no que diz respeito à forma como ela
conduz suas comparações, a saber, o que nós chamamos anteriormente de sua
completa originalidade. É evidente que ninguém precisa ser stratherniano para ser
original. Entretanto, acreditamos que o trabalho de abstensão é inerentemente
orientado à originalidade. Assim, uma maneira de tornar explícito o contraste entre a
abstração plural e a abstensão pós-plural é dizer que enquanto a primeira implica em
um movimento ‘ascendente’ (como na árvore) ou ‘para fora’ (como no mapa) do
particular ao universal, a última se movimenta para os dois lados, por assim dizer, do
particular (-também-universal) ao particular (-também-universal). Isto ocorre, como
vimos, em decorrência das capacidades transformativas particulares que a abstensão
revela. Assim, a comparação deixa de ser uma questão de identificar as escalas gerais
que podem agir como “denominadores comuns” que relacionam coisas (como
165
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II
Uma vez estabelecida na Parte I a premissa que transpassa este artigo – a saber
que o projeto comparativo de Strathern funciona de acordo com a lógica da ‘abstração
intensa’ – agora nos deteremos na consideração de dois “lembretes” [remainders] (no
sentido em que ela utiliza este termo) que este debate coloca em evidência. O
primeiro se refere ao papel peculiar que o tempo desempenha no pensamento de
Strathern. O segundo se refere as suas técnicas, não menos incomuns, de escrita. Para
antecipar de alguma forma o argumento, pode-se dizer que Strathern faz com o tempo
o mesmo que ela faz com outros meios de abstensão, a saber, transformar em virtude
o que seria a sua incapacidade de funcionar como uma escala comparativa mais geral
ou ‘abstrata’. Ao tratar o tempo como uma coisa-também-escala de análise como
outra qualquer – como uma escala nem mais nem menos independente de um
contexto quanto, digamos, flautas – ela torna possível um tipo de particular e novo de
comparação entre sociedades ao longo do tempo. Em consonância com a análise já
feita da lógica da abstensão, nós mostraremos como a originalidade destas
comparações decorre da habilidade que Strathern possui – evidente tanto em sua
escrita quanto no seu pensamento – de evitar o estabelecimento de conexões óbvias
entre o material Melanésio e seus análogos Ocidentais, ‘abrindo por corte’ –
lateralmente – feixes de comparação menos óbvios (mais originais) de acordo com a
lógica que viemos de estabelecer.
Comparação trans-temporal
Já se sabe que o trabalho de campo de Strathern na área Mt. Hagen nas Terras
Altas da Papua Nova Guiné ocupa um lugar especial no seu pensamento
antropológico (p.ex., Strathern 1999, pp. 6-11). Uma vez que a maior parte do seu
trabalho de campo foi realizado anos de 1960 e 1970, um problema (automaticamente
166
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crescente) de cunho metodológico pode ser detectado: a natureza cada vez mais
‘histórica’ do seu material não tornaria o seu projeto comparativo cada vez mais
duvidoso? Certamente – esta seria uma objeção comum do cientista social – não se
pode incluir simultaneamente como parte da mesma análise a comparação entre dois
lugares diferentes (como a Melanésia e a “Euro-América”) e duas épocas diferentes
(como, por exemplo, a terminologia de parentesco Hagen nos anos de 1970 e o
parentesco britânico hoje). Um dos eixos – o temporal ou o espacial – deve ser
mantido estável para que coisas semelhantes possam ser se comparadas.
A resposta de Strathern a objeções deste tipo (p.ex., Carrier 2005) tem sido,
como é de se esperar, indireta. Ao invés de procurar refutar a afirmação de que o seu
material não é contemporâneo (fazendo referência, talvez, ao seu trabalho de campo
mais recente), ela se declara culpada; satisfeita em admitir que muitas das práticas
inicialmente observadas em Hagen já mudaram ou desaparecem por completo (cf.
Strathern 1999, p. 142). Mas isto não significa dizer que Strathern aceita a premissa
desta crítica. Pelo contrário, a sua resposta a James Carrier e a outros revela os
principais pressupostos relativos à natureza (e, em particular, à temporalidade) da
comparação antropológica convencional, pressupostos que permanecem invisíveis
para si mesmos:
O conhecimento que os antropólogos extraíram dos seus encontros com os Melanésios... não
deixa de se tornar objeto de interesse contemporâneo apenas porque as práticas mudaram. Eu
o caracterizaria como atemporal neste sentido. O argumento de Carrier é o de que a mudança
histórica é crucial, porque... destacaria a localização social e conceitual de práticas passadas, e
isto deve ser parte – e não excluído do – conhecimento com qual se trabalha. Ainda assim,
desde outra perspectiva, a sua própria categoria de análise permanece atemporal, como o que
ocorre...com a sua noção de que existe algo como “a relação entre pessoas e coisas.” Ao invés
disso, meu interesse se direciona ao posicionamento histórico dos construtos analíticos, uma
vez que nenhum dos construtos mais importantes que utilizamos existe sem a sua
história.(Strathern 1999, p. 143)
167
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metafísica plural) uma ‘escala’ que ocupa uma posição transcendente e vertical em
relação às ‘coisas’ cuja comparação ele facilita? Nós sugerimos que certos escritos de
Strathern representam tentativas acertadas de facilitar comparações (a-crônicas)
através do tempo, fornecendo uma alternativa tanto para o projeto sincrônico de
comparação transcultural quanto para a comparação diacrônica entre diferentes
momentos históricos em uma mesma sociedade.
Para compreender o papel que o tempo desempenha no pensamento de
Strathern seria útil considerar a crítica velada que ela faz ao método etnográfico
multi-situado em Property, Substance and Effect (Strathern 1999, pp. 161-78). O
problema de tentativas como as de George Marcus (1993), ou outros, de “modernizar”
o trabalho de campo etnográfico é a pressuposição pluralista subjacente à noção de
que uma escala limitada “do local” será automaticamente superada ao se fazer
trabalho de campo em diversas localidades diferentes. A pressuposição seria a de que
“seguindo as pessoas”, o etnógrafo multi-situado ganharia uma nova perspectiva a
partir da qual diferentes fenômenos “locais” poderiam ser reunidos em uma narrativa
singular (ainda que fragmentária) escrita por uma pessoa cuja perspectiva (escala)
fosse suficientemente global para fazê-lo.
Se a abordagem multi-situada implica “traçar fenômenos percorrendo
diferentes cenários” para “revelar a contingência do que começou como uma
identidade inicial” (Strathern 1999, p. 163), o objetivo das comparações strathernianas
entre os arranjos de propriedade dos Melanésios e dos Euro-Americanos em Property,
Substance and Effect é muito diferente. Ao invés de estabelecer conexões ‘globais’
entre fenômenos ‘locais’ dispersos, sua estratégia deliberada é
evitar conexões discursivas, a criação de uma história, para evitar tanto a falsa aparência
negativa de um encadeamento de similaridades de superfície quanto a falsa aparência positiva
de ter descoberto um fenômeno novo. Pois aquilo todas as localidades apresentadas aqui
possuem em comum ainda não aconteceu necessariamente. O que eu acredito que elas tenham
em comum é o potencial para a reconceitualização da propriedade, e especificamente o
potencial para suscitar a possibilidade de existência de pessoas enquanto propriedade. O que
ainda não ocorreu é a maneira pela qual estas localidades podem se conectar no futuro... São
exatamente os caminhos que elas percorrem ou os tipos de cadeias de associação que elas
estabelecem que será o tema de futura indagação etnográfica. (Apenas) o potencial está
presente. (Strathern, 1999, p. 163; ênfase no original)
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Em qual tempo está o antropólogo? De qual época histórica eu deveria retirar minhas
ferramentas de análise?... Um dos momentos no qual os euro-americanos crêem estar apenas
vêm de acontecer para eles. Mas pode ter “ocorrido” há muito tempo na Papua Nova Guiné.
Eu me pergunto se algumas das considerações feitas por Kanepa – principalmente aquelas
profundamente enraizadas no passado Hagen – não antecipariam algumas direções
econômicas futuras da busca euro-americana pela propriedade. (Strathern, 1999, p. 150-1)
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que transcenderiam o temporal, mas porque as lembranças que Strathern possui sobre
o seu trabalho de campo original podem ser continuamente mobilizadas para a
construção de analogias produtivas com as formas de propriedades emergentes na
Inglaterra e em outros lugares. Logo, se a analítica plural advogada por Marcus trata o
conhecimento etnográfico como geral mas não abstrato (permitindo que uma narrativa
reúna fenômenos que de outra forma estariam dispersos), a abordagem pós-plural de
Strathern trata o conhecimento etnográfico como abstrato mas não como geral. As
comparações trans-temporais revelam ligações entre sociedades. Estas ligações, longe
de serem possibilitadas pelas mudanças de escalas multi-situadas, são criadas no
colapso da distinção entre o local e o global, ou outras ficções (pós)modernistas.
Em respaldo a esta conclusão, nós consideraremos outra instância na qual
Strathern se refere explicitamente às implicações temporais da sua análise pós-plural.
Nós nos referimos a certas passagens de Partial Connections nas quais ela discute
uma artigo muito citado de Kirsten Hastrup (1990). Este artigo proporciona uma
defesa enfática do contestado uso do “presente etnográfico” como estratégia de escrita
antropológica. O que mais interessa Strathern é a provocativa afirmação de Hastrup
de que o antropólogo “não possui nenhuma outra alternativa de tempo verbal”
(Strathern 2004, p. 48) uma vez que “apenas o presente etnográfico preserva a
realidade do conhecimento antropológico” (Hastrup 1990, p. 45). Afinal de contas,
Hastrup pergunta retoricamente, “qual seria o sentido da antropologia se a sua
verdade houvesse terminado no momento da escrita?” (ibid., p. 56) Tendo em mente o
trabalho de Ardener sobre a profecia, Hastrup responde da seguinte maneira: “através
da natureza dual da prática, da experiência e da escrita antropológica um novo mundo
é criado – um mundo de...entres que coloca a antropologia em uma condição
profética, e que força-a a falar no presente etnográfico”.(Hastrup, 1990, p. 56)
Ainda que Strathern sem dúvidas simpatize com a defesa do presente
etnográfico feita por Hastrup, não fica claro como estas idéias sobre a temporalidade
da escrita antropológica se relacionam as suas ideias referentes à ‘atemporalidade’ do
conhecimento antropológico. No entanto, poder-se-ia perguntar: como deveria ser o
conceito de presente etnográfico para que ele permitisse que um certo passado
(Melanésio) ‘predissesse’ um potencial futuro (euro-americano)? Aqui seria útil
considerar outra instância na qual Strathern discute o funcionamento do tempo no
pensamento antropológico, a saber, suas reflexões sobre o ‘escândalo; do método
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holístico (Strathern 1999, pp. 3-11). É precisamente por causa do ideal holístico (o
escândalo) de querer saber “qualquer coisa” – em oposição à “tudo” (ibid., p. 8) – que
o exercício do trabalho de campo é
antecipatório...aberto ao que virá depois. Neste meio tempo, o aspirante a etnógrafo reúne
materiais cujo uso não pode ser previsto, fatos e questões coletadas com pouco conhecimento
sobre as suas conexões. O resultado é um “campo” de informações ao qual é possível retornar,
intelectualmente falando, para colocar questionamentos sobre desenvolvimentos subseqüentes
cujas trajetórias não eram evidentes no início....com sorte, muitas informações serão
acumuladas pelo etnógrafo em campo que possui intenções específicas em mente. Mas ao
mesmo tempo, ter em mente que não se pode saber em sua totalidade o que será pertinente no
momento da re-organização subseqüente do material requerido pelo processo da escrita possui
seu próprio efeito. Cria-se uma expectativa de surpresa. (ibid, p. 9-10).
8
Vale notar o que parece ser o pressuposto claramente anti-fenomenológico desta conclusão. Parece
que para Strathern o potencial que possui o trabalho de campo/ o campo de informações do etnógrafo
de produzir insights surpreendentes aumenta com o tempo. Isto vai de encontro à já estabelecida
sabedoria fenomenológica sobre a trágica e inevitável perda do sensorial da experiência de campo uma
vez presumida que a memória de quem a viveu diminui gradualmente em intensidade com o passar do
tempo.
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“Extremidade-coisa”
(observação de campo): “Extremidade-escala”
mais (momento etnográfico): menos
9
Mas sobre qual ‘coisificação’ estamos falando – que tempo é este, digamos, o do momento
etnográfico? Uma abordagem apropriada desta questão está para além do escopo deste artigo mas a
resposta não pode ser o tempo linear e cronológico. Se assim fosse, Strathern seria na verdade culpada
na acusação de anacronismo que lhe é lançada quando ela extrai analogias entre reais passados hagen e
potenciais futuros ocidentais. Mas é óbvio que não é isto o que ela faz. Antes, ela parece conduzir suas
comparações trans-temporais ao longo de um tempo duracional, no sentido bergsoniano (e deleuziano).
Ao invés de utilizar o tempo como um contexto comum para tudo o que é descrito, ela o utiliza
alternadamente como primeiro e segundo planos, figura e fundo, cinzelando escalas temporais a partir
das coisas enquanto, simultaneamente, as posiciona no tempo. Portanto, o transformar as coisas em
escalas (sua temporalização) e a coisificação das escalas (tempo) estão lado a lado: apenas ao se revelar
(tornar escala) a observação de campo enquanto momento etnográfico é que se torna possível encobrir
(“coisificar’”) tais momentos de insight ‘para dentro’ do presente etnográfico. Compreendido em
termos duracionais, o que acontece ‘no momento’ não está de maneira alguma restrito ao ‘presente’.
Diferente deste, o momento não é definido por um tempo verbal único. Este, de forma paradoxal, é
precisamente o motivo pelo qual o momento etnográfico não permite generalizações que tem como
objetivo transcender a história. Entretanto, o que o conceito de momento etnográfico de fato permite é
que se mergulhe em um mar de analogias potenciais que serão extraídas a partir das experiências de
campo passadas e dos objetos futuros do estudo comparativo (em oposição ao conceito de presente
etnográfico que permanece eternamente aprisionado em si mesmo, incapaz de se autotransformar –
para propósitos comparativos – em diferentes versões passadas e futuras de si).
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Hesitação Profunda
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muitas vezes temos que parar antes de terminar uma de suas frases, incertos se
podemos avançar para a próxima.
Isto refletiria uma estratégia deliberada? Não há dúvidas de que Strathern é
profundamente reflexiva quando o assunto é a sua escrita e a dos outros, ainda que ela
considere a “virada literária” associada à crise da representação como uma alternativa
empobrecedora para as convenções obsoletas da antropologia moderna (Strathern
2004, pp. 7-16; cf. também Reed 2004, pp. 19). No prefácio à edição atualizada de
Partial Connections, ela explica como o livro foi composto de forma que “cada seção
seja um corte, uma lacuna: temas similares serão encontrados em ambos os lados, mas
eles não encaixam entre si” (Strathern 2004, p. xxii). Nota-se aqui o sentido
característico de ‘cortar’, não enquanto redução da complexidade (o sentido
convencional, ‘plural’ de fazer uma generalização), mas como um meio particular
para (uma escala para) a complexidade:
Ainda que denote um experimento particular, esta rara autodescrição pode ser
estendida a toda obra de Strathern. Na verdade pode-se falar de uma forma estética
distinta – que poderia ser chamada de corte criativo – que se replica fractalmente,
digamos, em cada nível do seu trabalho, estendendo-se desde as conexões parciais
entre os seus livros até o que seria uma espécie de fricção irredutível entre as suas
frases, quando não entre palavras.10 Isto talvez explique a tendência que Strathern
possui de pensar indiretamente, utilizando o que às vezes dá a impressão de ser um
sintaxe desnecessariamente embotada. Se os estilo de Strathern converge com os
critérios de uma estética pós-plural segundo a qual ‘cortes’ autosimilares devem
transpassar todas as dimensões do texto, poder-se-ia talvez afirmar que ela sempre
escreve a mesma sentença duas vezes (Riles, 1998). Existe a possibilidade de que
10
Como observa Adam Reed, O Gênero da Dádiva (1988) é “um texto cuja significância e rigor
derivam daquilo que é omitido. Dicotomias orientadoras da análise social...são...deliberadamente
escondidas. O Gênero da Dádiva é um livro sobre este desaparecimento, um livro que versa sobre sua
própria limitação. Ele convida o leitor – tanto através de demonstrações quanto de explicações – a
considerar os contornos destas dicotomias ausentes” (Reed 2004, p. 11).
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Conclusão
Este artigo tratou do que teria sido o debate antropológico sobre a “crise da
representação” caso ele não tivesse permanecido prisioneiro da metafísica pluralista e,
ao invés disso, tivesse se desdobrado de acordo com a alternativa pós-plural
desenvolvida por Marilyn Strathern. Para compreender integralmente o caráter radical
do projeto antropológico de Strathern, assim como as formas analíticas e retóricas
subversivas (quando não, absolutamente inquietantes) que ele implica, nos voltamos
agora para o contraste com o qual iniciamos este artigo entre a obra de Strathern e a
literatura da “crise da representação.”
11
De acordo com Agamben (1999), os dois pontos realizam um propósito específico em certos escritos
de Gilles Deleuze: “Se considerarmos a metáfora de Adorno dos dois pontos como o sinal verde no
trânsito da linguagem... podemos dizer que [o seu uso por Deleuze] é uma espécie de travessia sem
distância ou identificação, algo como uma passagem desprovida de movimento espacial” (Agamben
1999, p. 223).
12
A relação estranha entre duas unidades de texto no trabalho de Strathern traz à mente o que ela
descreveu como o “uma hesitação diante do umbral” (em oposição às barricadas) entre o feminismo e a
antropologia: “Cada um, em certo sentido, zomba do outro, porque ambos quase alcançam o que o
outro projeta como sendo uma relação ideal com o mundo” (Strathern 1987, p. 286).
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13
A idéia de que um aspecto de alguma coisa (por ex., o eu como sujeito) deve ser eliminado para que
outro possa aparecer de forma mais proeminente (por ex., o eu como objeto) retoma o próprio
vocabulário de Strathern do “eclipsado” e do “revelado” (e suas inúmeros pares de sinônimos e
corolários). Este léxico marca as coordenadas conceituais do que em O Gênero da Dádiva ela chama
de “objetificação”, ou seja “ a maneira pela qual as pessoas e as coisas são construídas algo que tem
valor, ou seja, enquanto objetos do olhar subjetivo das pessoas ou objetos de sua criação (Strathern,
1988, p. 176). Ao nosso ver é revelador que a “licença binária” de Strathern – como recentemente
denominado por ela (Strathern, no prelo) – não se estenda à própria noção de objetificação.
Considerando a proliferação de distinções binárias no seu trabalho, por que a preocupação de Strathern
com a objetificação não se articula em relação ao seu termo contrastante – presumivelmente, a
“subjetivação”? Nós sustentamos que a lacuna [gap] é consistente, visto que corrobora a idéia de que
sujeitos (em oposição aos eus) são a única coisa sobre a qual não se pode falar.
14
Como observou um leitor anônimo deste artigo, O Gênero da Dádiva (1988) foi algumas vezes
como um “texto sem autor” (uma expressão que traz à mente o outrora acalorado debate sobre o
chamado “anti-humanismo” de Lévi-Strauss, Foucault e outros pensadores franceses). É de se presumir
que esta e outras caracterizações similares da obra de Strathern nem sempre tiveram a intenção de
serem elogiosas – e ainda assim pode-se dizer que é precisamente pela ausência de voz do autor/ do
sujeito reflexivo que o seu trabalho alcança um radicalismo extremo. Seria por isso que Strathern
chegou à conclusão que, por mais atraente que seja, o noção de Tyler de etnografia evocatória falha ao
tentar sugerir uma forma textual na qual “uma mente emergente que não possui nenhum lócus” (Tyler,
1986, p. 133, apud. Strathern, 2004, p. 14) pudesse emergir? A autora prossegue com um notável
comentário sobre os méritos do que chamamos de extrospecção: afinal de contas, para que um autor
produza um evento textual “que não se passe nem dentro nem fora da pessoa, ele deve exteriorizar de
forma muito mais literal esta mente emergente sem nenhum lócus individual: imaginar uma pessoa
como um “alguém”. “É preciso restaurar a percepção de outras presenças – daqueles que dão
empurrões, pressionando para entrar; outros concretos e particulares que não partirão nem se fundirão
conosco. Entre um evento que se passa em lugar nenhum...e o sujeito individual....Eu gostaria de
sugerir uma terceira maneira de personificar a experiência etnográfica, traçar uma figura que parece ser
mais do que uma pessoa, na verdade, mais do que qualquer pessoa... A noção de manter ao alcance o
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que não pode ser capturado.... de levar um corpo a fazer mais do que ele de fato pode – de fazer
conexões sabendo que a experiência que se terá delas não as incluirá jamais em sua integralidade.
(Strathern, 2004, p. 26-27)
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Abstract: This article examines the peculiar nature of comparison in the work of Marilyn Strathern.
Contrasting her approach to more familiar arguments regarding the role of reflexivity and multi-sited
ethnography in the comparative agenda of contemporary anthropology, we elucidate the logical and
metaphysical tenets that underlie the particular manner in which Strathern connects and disconnects
ethnographic materials (not least her juxtapositions of Melanesian and European ethnography).
Focusing on her abiding distinction between ‘plural’ and ‘postplural’ approaches to analysis, we
explore the role of ‘scaling’ in her anthropological project, and argue that this allows for a
characteristically intense form of abstraction, which, among other things, enables her to make trans-
temporal comparisons between ‘ethnographic moments’ otherwise separated by history.
Key Words: abstraction • comparison • ethnography • post-plural anthropology • representation •
temporality
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REVISTA CONEXÕES PARCIAIS
Vol. 1 N.1 Nov. 2011
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