Você está na página 1de 5

Como toda boa estudante de comunicação, no último ano da faculdade tive que

procurar estágio. Nessa época eu tinha mais ou menos 20 anos e nunca tinha trabalhado
até então. Quer dizer, não assalariada. Nos 3 primeiros anos da faculdade, construí o
currículo mais impecável do que qualquer aluno da minha classe, trabalhando duro sem
descansar.
Trabalhei voluntariamente em uma produtora da faculdade. Fui roteirista, câmera,
editora de vídeos, escritora e até diretora de programa. Gerenciei uma equipe de estagiários
com organização impecável, participava de reuniões com os gerentes de marketing
daqueles prédios do campus que só gente importante vai.
Enquanto isso, me inscrevi em todas oficinas de jornalismo que poderia fazer.
Publiquei em jornal impresso, apresentei um programa ao vivo, fui crítica de cinema. Sem
contar as palestras que participava, disciplinas optativas que acrescentei. Ah, e a monitoria
de edição de vídeos, em que ensinava alunos a fazer no premiere o que nem o professor de
vídeo sabia.
Já tinha certificação de espanhol como segunda língua e só não fiz o TOEFL porque
minha família não teve condições financeiras de arcar com as duas provas juntas. Mas
sabia falar inglês. A minha intenção era ter um currículo “a prova de balas”, sem nenhum
problema para qualquer lugar que quisesse entrar. Até descobrir que o mercado de trabalho
não é exatamente assim.
A primeira entrevista de emprego que participei foi na Globo. Processo seletivo com
milhares de candidatos e fui passando fase por fase. Embora tivesse me esforçado muito
para chegar ali, vinha-me a sensação de “insuficiência” a cada fase. Pensava eu que
alguma hora descobririam que eu não era tudo aquilo que imaginavam. Cheguei até a
última fase com 3 candidatos, mas o “não” veio algumas semanas depois.
Para mim foi o sentimento de “descobriram a minha farsa, eu realmente não era tudo
isso”.
Depois dessa, fiz inúmeras outras entrevistas nos mais diversos lugares. Record,
RedeTV, TV Cultura, Editora Abril… Em todas, me desempenhava eximiamente nas provas,
mas entrava em colapso nas entrevistas. Meu emocional foi ficando um caco.
Quando eu achei que já tinha sofrido o suficiente, uma amiga me indicou para uma
vaga de estagiária na revista Exame e me pediram que fizesse um texto sobre o Governo
Temer. Minhas palavras sobre o peemedebista foram bem vistas e me chamaram para a
tão esperada entrevista.
Logo que me sentei no sofá da recepção, me chamaram. Conversei com duas
moças do Rh sobre benefícios e plano de carreira lá dentro… Até então, tudo tranquilo! Meu
terror começou quando entrei na sala com o editor-chefe da revista e um diretor.
Ele não sorriam, não se expressavam (nem quando eu fiz entrevista no escritório de
advogados que trabalho hoje me senti tão assustada com a seriedade que eles tinham).
- Bom, Isabel. Eu queria já começar te fazendo uma pergunta. Que jornal você lê? -
iniciou o editor-chefe.
- Exame, Folha, Estadão… - respondi trêmula enquanto me sentava.
- Ah sim. Percebi que você tem um blog chamado “The Typewriter” (até então meu
blog era no medium e estava em inglês por ser um plataforma norte-americana). Você fala
inglês?
- Sim, falo sim.
- So, should we talk in english?
- Yes, of course.
Riu-se das minhas palavras enquanto olhava um papel que deveria ser meu
currículo.
- Na verdade, fiz essa pergunta porque eu vi no seu currículo que você tem o inglês
avançado, mas aqui na prova que fez na Editora Abril, chegou quase lá, mas não chegou…
Nunca tive acesso ao resultado das minhas provas, então não sabia como tinha ido.
Imaginei-me, várias vezes, abrindo a porta e saindo correndo dali. Não havia nada que eu
pudesse dizer que fosse me ajudar naquele momento, mas tentei.
- Desculpe-me. É que aqueles testes online são um pouco de pressão, já que tenho
15s para responder a cada questão. Mas falo inglês, leio livros, assisto filmes sem legenda
ou com legenda em inglês. Qualquer demanda que me der será atendida, sem falta.
Sua expressão não pareceu de convencimento. Fez mais umas duas ou três
perguntas sobre política e me dispensou. Saí dali atormentada. Sentei-me no chão do
terminal de ônibus ofegante, com as mãos na cabeça. Liguei para meu ex namorado que
estava lotado de coisas no trabalho.
- Calma, meu amor. Você só não é boa em entrevistas, precisa melhorar nisso.
Tenta respirar, vai para casa e eu te ligo mais tarde.
Acreditava fielmente que não era boa para estar ali. A questão é que, até 2017, eu
nunca tinha ouvido falar sobre a expressão “síndrome da impostora”, que é o que me
classifica até hoje em qualquer âmbito da minha carreira. Fui saber o que era só em 2020,
vendo um TEDx Talks da Rafa Brites, que tem um livro sobre o assunto. Dizia ela que foi
chamada para um estágio, mas não foi porque pensava que a qualquer momento
“descobririam” que ela não era tão boa assim.
A questão é que essa síndrome acomete mais mulheres do que podemos imaginar.
Uma pesquisa feita pela Universidade da Geórgia chamada “The impostor phenomenon in
high achieving women: dynamics and therapeutic intervention” fez sessões de psicoterapia
durante 5 anos com cerca de 150 mulheres bem sucedidas. O resultado mostrou que,
embora essas mulheres tivessem diplomas, reconhecimento de colegas e de grandes
autoridades, por dentro se sentiam como impostoras.
Essa pesquisa está em inglês e li as 7 páginas de introdução sozinha sem Google
Tradutor. Agora, se um entrevistador igual àquele da Exame me perguntasse se falo a
língua, provavelmente diria “mais ou menos”. Não é falta de conhecimento. É alguma coisa
que prende.
Ávida a entender o porquê de me sentir assim, corri até minha terapeuta.
- Tem algo de errado comigo e eu não sei o que é - chorei na primeira sessão.
E sim, ela tinha a resposta. Nem eu acreditava que teria. Disse ela (e tem dito) que
eu fui colocada nesse espaço de impostora desde minha infância.
Fui criada com um irmão um ano mais velho, inteligentíssimo. E eu também era. Até
os meus 10 anos, ganhei concursos na cidade em que morava e tinha até um quadro meu
na escada como “aluna exemplar”. Nossos pais nos deram as mesmas oportunidades, as
mesmas cobranças, mesmos livros e músicas. Nós dois vemos filmes em inglês sem
legenda, falamos três línguas, debatemos política, somos formados e conseguimos falar em
público sem medo.
Só que, quando estávamos no Ensino Médio, as coisas começaram a mudar. Ele é
muito bom em exatas e eu, em humanas. Portanto, eu era ruim em exatas e ele em
humanas. Eu sofria pressão e descrédito por minhas dificuldades, ele não.
Como nossos professores eram os mesmos, comecei a sentir uma comparação
assustadora. Teve vezes em que chegava à escola com a lista de química faltando um
exercício e dizia
- Professor, eu tive dificuldade. Posso tirar um tempinho da sua aula para me
ajudar?
- Por que não pediu para seu irmão te ajudar? Isso é falta de vontade… - não há
pessoa que me faça engolir esse professor até hoje. Não acreditariam se eu mencionasse o
dia em que ele gritou comigo na sala por uma lista que tive dificuldade de fazer e saiu atrás
de mim quando fui até o banheiro correndo e chorando. Aos poucos, comecei a
desacreditar da minha capacidade e quase reprovei o segundo ano do Ensino Médio por me
sentir uma impostora, uma farsa, um erro.
Em nossa casa, éramos páreos. Para a sociedade não.
Meu irmão nunca passou por isso! Ele nunca precisou provar para um professor que
era realmente bom. Até hoje, nossos familiares me espantam com a credibilidade que dão a
ele e nunca nem acessaram meu blog, no mínimo. Ou dizem que ele “lida bem com
dinheiro”, enquanto eu, que pago minha faculdade (houve momentos em que só me
sobrava o VR que eu vendia para meus pais) e nunca me meti em uma dívida a vida toda,
não tenho esse título.
O cenário que vi por anos dentro da minha casa é um recorte do que é a realidade
feminina. Às vezes sinto que tenho que percorrer 3 vezes mais o caminho que ele percorreu
para chegar “lá”.
O que minha terapeuta disse é real: segundo a pesquisa da Universidade da
Geórgia, esse problema realmente começa durante a infância. “Nós acreditamos que o
estereótipo da sociedade que diz que mulheres são menos intelectuais do que os homens
começa a exacerbar e confirmar, quando mais velhas, as dúvidas que começaram a ser
desenvolvidas lá no contexto familiar”, explica.
Um outro estudo chamado “Journal of Personality and Social Psychology”, feito por
Nicholls, em 1975, afere que há uma diferença entre percepções do que é considerado
“brilhante” ou não, entre homens e mulheres. Segundo ele, as conquistas femininas são
vistas como “sorte”.
Não consigo dizer quantas vezes já me peguei atribuindo os mesmos termos a mim.
Quando passei na prova do certificado de espanhol como segunda língua logo de cara: foi
sorte, a entrevistadora foi legal e não era o certificado mais difícil. Quando, aos 21, passei
na proficiência do mestrado na USP e nas provas de política que vi colegas do meu pai
tentarem mais de uma vez e não conseguirem: foi sorte e o tema estava a meu favor.
Quando, inúmeras vezes, na empresa que trabalhava até ano passado, fechava em
primeiro lugar no ranking: foi sorte. Quando entrei no estágio em Direito que estou agora: foi
sorte, precisavam de alguém como a minha formação e talvez não tivesse outra pessoa.
Mas há sim como retirar de si esse sentimento, aos poucos.
“A impostora está tão convencida das suas crenças, que acha que nada pode ser
feito para mudar essa realidade”, a pesquisa aponta. Mais para frente, diz que a terapia
pode sim desmistificar certas crenças e trazer uma nova realidade. Comigo tem sido assim.
Nos últimos meses, descobri que fazer terapia seria o impulso que eu precisava na
carreira, porque sozinha não consegui tirar de mim essa construção social. Lembro-me de
dizer à minha psicóloga que tinha ficado ansiosa na última entrevista que fiz.
- Você acha que eles são melhores que você, por isso se sente mal.
- Mas talvez isso seja verdade, eles são melhores que eu. Imagina um chefe
olhando para uma pessoa como eu... - respondi baixinho.
- Bel, você tem 23 anos. Para ser seu chefe, ele provavelmente deve ter no mínimo
uns 5 anos a mais do que você. Nesse meio tempo, ele aprendeu coisas que você ainda
não teve a oportunidade, pois ainda não tem a idade que ele tem hoje. Ou seja, ele não é
melhor do que você, apenas tem mais experiência. No final das contas, você está no
mesmo caminho.
É importante reconhecer esses comportamentos para não acontecer a tal da auto-
sabotagem, como a Rafa Brites conta. Deixou de entrar em um estágio por essa crença.
Reflita sobre a história, sobre esse texto. Se você se sente assim, procure um
profissional da psicologia para te fazer entender o quanto a sua infância influencia nos seus
comportamentos atuais. Mas entenda que, mesmo que sua “síndrome” não seja mais um
problema, ainda temos um longo caminho para trazer igualdade às mulheres e precisamos
fazer isso juntas. Como? Entendendo as desigualdades de gênero, apoiando o trabalho
umas das outras, evitando a competitividade feminina, conversando sobre nossas
fragilidades e tornando-as força para atingir novos patamares.

Você também pode gostar