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Como o identitarismo está afetando a saúde mental de

uma geração
Não é de hoje que os efeitos da cultura do cancelamento se fazem sentir nas universidades,
nas artes, na política e, principalmente, nas redes sociais. A divisão do mundo entre oprimidos
e opressores, canceladores e cancelados ou, no jargão dos mais jovens, “fadas sensatas” e
“pessoas tóxicas”, hoje, tem sua face mais caricata exposta no reality show Big Brother Brasil,
no qual alguns dos participantes se valem de seu pertencimento a um determinado grupo
identitário para humilhar outros colegas.

Enquanto esta reportagem é escrita, o principal expoente deste comportamento na casa “mais
vigiada do Brasil” é a psicóloga Lumena Aleluia, escolhida para o programa por sua militância e
um bom humor que nunca deu as caras: deu lugar ao dedo em riste. O festival de discussões
agressivas fomentadas pelo identitarismo pregado pela psicóloga e outros participantes
levantou o debate sobre as consequências das teorias pós-modernas para além das políticas
públicas: o que está em risco são os relacionamentos e o bem-estar de uma geração.

Há evidências abundantes de que a geração Z, a turma que hoje está na casa dos vinte e
poucos, que foi para a escola com celular no bolso e chegou à faculdade quando termos como
"interseccionalidade" e “representatividade” ganhavam espaço no currículo e no Twitter, é a
geração com mais altos índices de ansiedade e depressão da história, bem como as mais altas
taxas de suicídio.

Vários fatores ajudam a explicar esse quadro, resultado de um ciclo vicioso composto por
aplicativos viciantes, jovens inseguros, pais e professores superprotetores cada vez mais
dispostos a proteger os rebentos de “discursos que ameaçam sua existência” ao invés de
ensiná-los que, às vezes, trata-se apenas de discordância. E a divisão do mundo entre grupos
de vilões e mocinhos só ajuda a aprofundar o problema.

Culpa por ser branca


Membro da Heterodox Academy e doutor em psicologia clínica pela Universidade de Long
Island, o psicólogo Andrew Hartz explica que ver a vida em termos de “tudo ou nada” é um
fator de desregulação emocional, conhecido pelos pesquisadores como “clivagem”. “O
mecanismo da clivagem é estudado por pesquisadores da saúde mental há mais de 80 anos.
Sabe-se que quando um paciente divide grupos de pessoas ou ideais políticos como ‘preto no
branco’, quase sempre está distorcendo a realidade”, explica Hartz, à Gazeta do Povo.
A consequência desta divisão, diz o psicólogo, é a adoção de comportamentos agressivos ou
depreciativos, bem como a dificuldade crescente de avaliar e resolver problemas reais com
parcimônia. Se, de um lado, o Brasil assiste aos exemplos do Big Brother, do outro, Hartz conta
que, há poucos anos, atendeu uma paciente que sentia profunda culpa por ser branca.

“Em muitos casos, essas pessoas não estão exagerando: absolutamente tudo o que elas
pensam e sentem com relação a outro espectro político, outra etnia ou outra orientação
sexual é imoral, negativo, revoltante ou deprimente”, descreve o psicólogo, que compara a
condição à forma como pacientes com depressão ou ansiedade se comportam.

“Se você aponta algo positivo do outro lado, eles se sentem atacados. É como se você
estivesse invalidando todas as queixas e isso soa ofensivo. Além disso, para essas pessoas,
sentir algo positivo sobre si mesmas ou sobre o grupo que odeiam é desconfortável, quase
doloroso, mas é preciso fazê-las entender que é parte do remédio”. A clivagem, portanto, é
sintoma de problemas de saúde mental — e não a solução.

“Criamos esse mecanismo porque, no curto prazo, lidar com sentimentos contraditórios sobre
pessoas e causas é difícil e confuso. Dividir o mundo, portanto mais simples: você sabe quem é
e sabe quem está errado. No longo prazo, entretanto, vem as desvantagens, inclusive na forma
do contágio social que temos visto: progressistas exageram de um lado, conservadores
exageram de outro”, completa o psicólogo.

Negritude e feminismo
O identitarismo também compromete o desenvolvimento da resiliência, área de estudos do
psicólogo Dennis Relojo-Howell, membro da British Psychological Society e fundador do portal
Psychreg. “Uma das premissas básicas da psicologia é que um paciente que procura terapia só
é capaz de alterar o próprio comportamento - e não esperar que o mundo inteiro mude. O
problema das teorias pós-modernas é que elas removem toda a responsabilidade da pessoa e
a ensinam que, por ser uma vítima, ela nunca estará errada. Na prática, estamos
recompensando jovens por anular as próprias capacidades e destruindo sua fonte primária de
resiliência”, explica.

Outro elemento agravante deste ciclo é o impacto das teorias identitárias na formação de
psicólogos. “Eu me lembro de quando ouvia, na faculdade, que devíamos buscar práticas
baseadas em evidências. Hoje tudo tem a ver com experiência pessoal. O estudo da saúde
mental e a psicologia como um todo se tornaram um campo extremamente subjetivo”, explica
Relojo-Howell.
A proliferação das teorias sócio-construtivistas na academia, em detrimento do conhecimento
baseado em evidências calcadas no método científico, não é prerrogativa dos consultórios
americanos ou britânicos: ela afeta também o Brasil. Formado na Universidade Federal do Rio
de Janeiro (UFRJ), o psicólogo F., que pediu para não ser identificado, recorda que, durante
uma das greves pelas quais passou na faculdade, os estudantes pediam por disciplinas “menos
conteudistas” e mais focadas em estudos de negritude ou feminismo.

“A psicologia é uma área de estudo recente e, por isso, mais suscetível às teorias pós-
modernas, calcadas apenas nas experiências pessoais e nas chamadas relações de poder. Não
por acaso, algumas das áreas da psicologia que contam com estudos mais sólidos, como a
psicologia evolucionista, vêm sendo deixadas de lado por abordar diferenças entre grupos com
base em dados empíricos, ao invés de pregar o igualitarismo cósmico pregado pela esquerda”,
explica F.

A psicologia evolucionista é o ramo que ajuda, por exemplo, a entender as diferenças entre os
sexos — sumariamente negadas pela militância identitária — e fornecer dados importantes
para a aplicação de tratamentos adaptados às necessidades de homens e mulheres. A terapia
cognitivo comportamental, outra abordagem com farta evidência científica, ajuda os pacientes
a reverterem pensamentos catastróficos e disfuncionais, o oposto da lógica militante que
incentiva seus adeptos a jamais desconfiarem de seus próprios sentimentos e impressões e a
inferir, o tempo todo, quais são as intenções maléficas por trás de qualquer fala que os
desagrade.

Problema de “privilegiado”
Um terceiro efeito do identitarismo que ameaça a saúde mental da geração do cancelamento
é a deterioração da relação entre terapeuta e paciente, dado que as teorias identitárias
ordenam que se veja o próximo como integrante de um grupo a ser exaltado ou
desmoralizado. F. conta que já trocou de terapeuta por relatar uma dificuldade para se
relacionar com colegas de classe e ter sua queixa classificada como um problema de
“privilegiado”. “É esperado que, às vezes, a psicoterapia exponha verdades que não estamos
dispostos a aceitar. O problema é que no identitarismo o terapeuta já tem na cabeça um
modelo pré-estabelecido de quem está certo e errado”, conta.

Em Nova York, Hartz conta que já atendeu um paciente que relatou ao terapeuta anterior que
era contrário a ações afirmativas (como cotas raciais) e ouviu que deveria “rever suas posições
racistas”. “Trata-se de uma linha tênue, mas não é nosso dever alterar a crença política do
paciente — o que podemos avaliar é a forma como ele se engaja com ela”, explica.
O especialista também procura tratamento para pessoas que se sentem ostracizadas no
ambiente de trabalho por terem opiniões impopulares. “Não há nada no mercado para elas”,
lamenta. “Se você não está preso no mundo do tudo ou nada, você precisa ouvir todos os
pontos. Isso ajuda, inclusive, a evitar o ressentimento por parte dos que são excluídos do
debate — e que podem, por isso, adotar posturas mais extremas”, diz.

"Isentão"
Na semana passada, uma pesquisa da Universidade de Cologna que contou com mais de 1.800
participantes demonstrou que pessoas capazes de lidar com a ambivalência — a capacidade de
enxergar nuances em pessoas e causas — fazem menos julgamentos enviesados e tendem a
acreditar menos em notícias falsas. Em entrevista à Gazeta do Povo, a autora do estudo, Iris
Schneider, afirmou que, embora este não tenha sido o foco da pesquisa, é sabido que
experimentar emoções contraditórias com frequência traz benefícios para a saúde física.
“Também sabemos que experimentar sentimentos contraditórios pode contribuir para um
estado de bem-estar perene”, explica.

“Ser ambivalente, entretanto, pode fazer você se sentir inseguro e talvez um pouco ‘isentão’.
Mas está tudo bem. A vida pode ser incômoda e precisamos aceitá-la, porque é somente a
partir desse incômodo que podemos começar a aprender”, define a pesquisadpra. “O que
também pode ajudar é perceber que a ambivalência não é sinônimo de ser sem graça. É ser
informado, matizado, equilibrado e atencioso. Basta lembrar de Scott Fitzgerald: 'o teste de
uma inteligência de primeira classe é a capacidade de manter duas ideias opostas na mente ao
mesmo tempo e ainda reter a capacidade de funcionar'”.

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a-saude-mental-de-uma-geracao/

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