Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
EDITORIAL
Esta edição da Carandá tem alguns destaques para os quais chamamos a atenção:
3. A seção Resenha. Abre a edição texto que trata da Aula Magna do Mestrado em
Letras da UFMS proferida, em Três Lagoas, em março deste ano. As lições do
professor Roberto Acízelo de Souza, publicadas em edição especial da Guavira
Letras, devem ensejar reflexão a professores universitários, a alunos da pós-
graduação e a graduandos que se dedicam à pesquisa.
No entanto, há, ainda, números mais expressivos a comemorar. Com esta edição, a quarta
em dois anos e meio, são 132 autores publicados, de dezenas de instituições diferentes, a quase
totalidade deles ligados a programas de pós-graduação, cobrindo todas as regiões do país e com
contribuição de pesquisadores do exterior, em afluxo que nos obrigou — prazerozamente, diga-
se — a redimensionar a nossa estrutura, ampliando a equipe científica e o quadro de consultores
ad hoc.
Mas, se há motivo para comemorar, a comemoração maior é a leitura dos textos que se
seguem. Pois, como disse o prof. Acízelo, na aula que mencionamos acima,
Por muito tempo a pesquisa em literatura foi exercida como uma atividade
subsidiária ou diletante. Hoje corresponde a uma profissão, e essa virada, como
quase todas as mudanças sociais, apresenta os inevitáveis prós e contras. Não
acho que devemos ter saudades dos bons tempos do amadorismo, “que os anos
não trazem mais”, porém tampouco convém embarcar sem resistência no atual
produtivismo que nos assola.
Portanto, buscando no estudo o que nos é prazer, desejamos a todos boa leitura.
Endereço:
CARANDÁ – Revista do Curso de Letras
Câmpus do Pantanal / UFMS
Profs. Angela e Rauer – editores
Av. Rio Branco, 1270 – sala 217, Bloco H
79304-902 – Corumbá – MS
(67) 3234-6830
revistacaranda@gmail.com
SUMÁRIO
RESENHA
Um percurso essencial: pré-requisitos e obstáculos na formação do
pesquisador em literatura 9
Cícera Rosa Segredo Yamamoto
Fabian Castilho Cossio
ARTIGOS
A ucronia enquanto narrativa histórica 19
Rogério Bianchi de Araújo
LITER’ARTES
Poesia
Trilogia das Verdades: 237
Doxa
Minas
As Horas
DOSSIÊ:
O MICROCONTO
Luciene Lemos de Campos
(Org.)
“Epitáfio”
Rauer Ribeiro Rodrigues — Retrato 252
Alex Melo Diniz
O artista e o meio
Antonio Candido — Retrato 263
Alex Melo Diniz
“Lacraia”
Manoel de Barros – Retrato 276
Alex Melo Diniz
“Aula de canto”
Katherine Mansfield — Retrato 287
Alex Melo Diniz
“Angústia”
Anton Thékhov — Retrato 295
Alex Melo Diniz
O soturno
Edgar Allan Poe — Retrato 301
Alex Melo Diniz
Marçal Aquino
Retrato 314
Alex Melo Diniz
Teses do Conto
Ricardo Piglia — Retrato 322
Alex Melo Diniz
SERVIÇO
Resenha
carandá
Revista do Curso de Letras do Câmpus do Pantanal – UFMS,
Corumbá, MS, novembro 2011, n. 4, p. 9
UM PERCURSO ESSENCIAL
PRÉ-REQUISITOS E OBSTÁCULOS NA FORMAÇÃO DO PESQUISADOR EM LITERATURA 1
Esta resenha tem por objetivo apresentar um roteiro com elementos básicos,
porém essenciais, na formação do pesquisador em Literatura. Tomamos por fundamento
a plaquete A formação do pesquisador em Literatura: proposição de um itinerário,
que contém a Aula Magna de 2011 do Mestrado em Letras da Universidade Federal de
Mato Grosso do Sul, proferida pelo professor Roberto Acízelo de Souza no dia 24 de
março no Campus de Três Lagoas. Retomamos, ainda, a discussão que se seguiu à
conferência, destacando pontos fundamentais aprofundados neste momento.
O professor Roberto Acízelo de Souza (UERJ/CNPQ) é Licenciado em Inglês
pela Universidade Santa Úrsula, em 1970, Licenciado em Português e suas Literaturas
1
O texto que aqui se apresenta não teria a abrangência que eventualmente possa ter sem as discussões na
disciplina Seminários de Dissertação, do primeiro semestre de 2010, no Mestrado em Letras da UFMS,
Câmpus de Três Lagoas, ministrada pelo professor Rauer Ribeiro Rodrigues. Em especial, com as
intervenções do prof. Rauer e a contribuição de todos os colegas, em particular de Michele Ester de
Campos Furlan (aluna especial), Sandro Luís Ferreira Rotiroti, Maria do Socorro Pereira Soares
Gonzaga (aluna ouvinte), Cátia Mendes Pereira (aluna especial), Daniela Galli dos Santos, Jorge
Augusto Balestero, Michela Mitiko Kato Meneses de Souza, Raquel Celita Penhalves dos Reis e
Rosana da Silva Araújo.
2
Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Letras (Área de Concentração: Estudos Literários) da
Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS), do Câmpus de Três Lagoas;
yamacissa@hotmail.com.
3
Aluno ouvinte do Mestrado em Letras da UFMS, Campus de Três Lagoas, na disciplina Seminários de
Dissertação, ministrada pelo prof. Rauer no primeiro semestre de 2010; fabiancc7@hotmail.com.
carandá
Revista do Curso de Letras do Câmpus do Pantanal – UFMS,
Corumbá, MS, novembro 2011, n. 4, p. 10
alerta o professor, “não será tão divertido”, mas de valor único para o aprimoramento da
sistemática da técnica de escrever. O professor reitera a importância do ato de escrever
fazendo menção a um texto de Graciliano Ramos:
Deve-se escrever da mesma maneira como as lavadeiras lá de Alagoas
fazem seu ofício. Elas começam com uma primeira lavada, molham a
roupa suja na beira da lagoa ou riacho, torcem o pano, molham-no
novamente, voltam a torcer. Colocam o anil, ensaboam e torcem uma,
duas vezes. Depois enxáguam, dão mais uma molhada, agora jogando
a àgua com a mão. Batem o pano na laje ou pedra limpa, e dão mais
uma torcida e mais outra, torcem até não pingar do pano uma só gota.
Somente depois de feito tudo isso é que elas dependuram a roupa
lavada na corda ou no varal, para secar. Pois quem se mete a escrever
devia fazer a mesma coisa. A palavra não foi feita para enfeitar,
brilhar como ouro falso; a palavra foi feita para dizer. (Ramos,
Graciliano. Entrevista em 1948. In: Vidas secas. 102. ed. Rio de
Janeiro: Record, 2007, contracapa).
É importante ressaltar que, seja qual tema seja a que se dedique um estudo, é
imprescindível o conhecimento de línguas, da teoria dessa matéria, das disciplinas a
serem estudadas e o conhecimento, mesmo que básico, das teorias das várias disciplinas
que compõem os núcleos do Curso de Letras. Tudo isso faz as pessoas melhores
conhecedoras de si mesmas e também do mundo a sua volta. Aliás, o conhecimento
básico dessas matérias aumenta o campo de análise do ser humano e o faz, não somente
mais crítico em relação aos assuntos, mas também torna o entendimento de
determinadas questões mais fácil. Questões essas que podem ser cruciais para o
desenvolvimento do projeto de pesquisa.
A nosso ver, o professor Acízelo, de maneira habilidosa, se esgueira dos
métodos tradicionais, das morbidades acadêmicas, e se põe numa linha de compreensão
visionária e honesta para expor e traçar sua proposição de itinerário aos acadêmicos,
pesquisadores e futuros especialistas dos Estudos Literários. O caminho parece árduo e
íngreme, mas se trata de um planejamento a ser seguido durante os anos de formação,
da graduação ao final do doutorado.
Após algumas considerações que o professor Acízelo denominou de
“observações avulsas”, houve o momento do debate, em que as dúvidas e os
questionamentos puderam ser feitos em relação aos apontamentos apresentados. De
forma sucinta, discutiu-se o seguinte:
1) O possível fim da disciplina;
2) O perfil dos alunos que cursam letras, especialmente os dos cursos noturnos;
3) A contribuição das pesquisas para a valorização da literatura;
4) A presença da filologia no programa de estudos proposto;
5) Das adaptações de obras literárias para o cinema, a tevê e o teatro;
6) A influência da mídia na literatura;
7) A utilização literária na prática pedagógica em sala de aula.
Sobre o primeiro item, em uma pergunta, o professor Rauer destacou seu
desconforto com a afirmação de Terry Eagleton (2003) de que “a teoria da literatura
tende a auto anular-se”. Acízelo salientou como a modernidade imersa na globalização
capitalista propicia uma composição de conhecimento “híbrido” nos meios acadêmicos.
E destacou o papel do crítico literário em delimitar sua área, desde que esteja consciente
carandá
Revista do Curso de Letras do Câmpus do Pantanal – UFMS,
Corumbá, MS, novembro 2011, n. 4, p. 15
REFERÊNCIAS:
BUNGE, Mário. Epistemologia; curso de atualização. São Paulo: T.A Queiroz, 1987 [1980].
EAGLETON, Terry. Introdução à Teoria da Literatura. São Paulo: Martins Fontes, 2003.
RAMOS, Graciliano. Entrevista em 1948. In: Vidas secas. 102. ed. Rio de Janeiro: Record,
2007, contracapa.
SOUZA, Roberto Acízelo de. Iniciação aos estudos literários. São Paulo: Martins Fontes,
2006. 191 p.
APÊNDICE:
Artigos
carandá
Revista do Curso de Letras do Câmpus do Pantanal – UFMS,
Corumbá, MS, novembro 2011, n. 4, p. 19
Resumo: Este artigo tem por objetivo pensar a ucronia, também entendida como história
contrafactual ou história virtual, como uma forma de pensar a história. Não é objetivo deste
artigo fazer uma discussão sobre metodologia de pesquisa ou sobre a epistemologia
historiográfica, mas demonstrar que o campo do imaginário pode também ser um elemento de
reflexão e análise. Pretendo ainda demonstrar que a subjetividade, sobretudo no campo das
ciências do espírito, é um elemento que deve ser levado em conta ao fazermos uma
interpretação do mundo ao qual estamos inseridos. Por isso, novos paradigmas no campo
científico, - embora sofram muitas resistências-, aos poucos são incorporados no nosso modo
de fazer ciência. Neste sentido, a ucronia pode ser classificada como uma narrativa histórica
que tem seu valor, não só no campo da ficção, mas na construção de conhecimento histórico.
Abstract: This article is aimed at reflecting the uchronia, also understood as counterfactual
history or virtual history, as a way of thinking about history. The aim is not to make a
discussion paper on research methodology or on the epistemology of historiography, but
demonstrate that the field of imagery can also be an element of reflection and analysis. I
intend to further demonstrate that the subjectivity, especially in the sciences of the spirit, is an
element that must be taken into account in making an interpretation of the world to which we
belong. Therefore, new paradigms in science, - although they suffer much resistance-, are
gradually incorporated into our way of doing science. In this sense the uchronia to be
classified as a historical narrative that has its value, not only in the field of fiction, but the
construction of historical knowledge.
Introdução
1
Rogério Bianchi de Araújo, Doutor em Antropologia pela Pontifícia Universidade de São Paulo – PUCSP e
Mestre em Filosofia Social pela Pontifícia Universidade de Campinas – PUCCAMP, é professor do curso de
Ciências Sociais da Universidade Federal de Goiás – Campus Catalão (UFG/CAC); rogerbianchi@uol.com.br.
carandá
Revista do Curso de Letras do Câmpus do Pantanal – UFMS,
Corumbá, MS, novembro 2011, n. 4, p. 20
A expressão ucronia foi empregada pela primeira vez na obra do filósofo francês
Charles Renouvier, que a utilizou no título de seu romance Uchronie (L'Utopie dans
l'histoire) de 1876. Renouvier considera a ucronia numa perspectiva histórico-filosófica
relativa a um passado que pode ser suposto, mas não totalmente inventado, marcado por fatos
que podem ter acontecido ou não. Entendia a ucronia como a “utopia do tempo”. Sua base de
inspiração era imaginar o desenvolvimento da civilização ocidental caso o cristianismo não
houvesse triunfado a partir do aparato militar do império romano do século II. Esboçou em
Uchronie um mundo no qual, em 165 d.C., o imperador-filósofo Marco Aurélio adotou como
sucessor o filósofo Avídio Cássio, em vez de seu desastroso filho Cômodo. A decadência de
Roma e a Idade Média foram evitadas, as artes e as ciências avançaram muito mais
rapidamente e o cristianismo jamais se tornou a religião hegemônica.
As suposições da ucronia implicam no campo da imaginação. É composta de variações
da História que se baseiam em condicionantes. Por exemplo, o que aconteceria se um
determinado fato histórico tivesse percorrido outro caminho? Remete a uma espécie de Efeito
Borboleta, princípio que afirma que um pequeno evento pode ter conseqüências imprevisíveis,
pois o resultado final é determinado por ações interligadas de forma quase aleatória.
Entretanto, a ucronia tem como característica desordenar sem desorganizar.
A ucronia permite transformar os vencidos em vencedores. Não se trata de um alento
ou uma alienação de pensamento, mas um condicionante imaginário para vislumbrarmos
outras realidades que não somente aquelas da chamada “história real”.
Remete a um mundo alternativo e a uma outra história. Nesse sentido, a ucronia carrega em si
um grande potencial de questionamento do status quo, das hierarquias, das estruturas e das
formas de organização social.
Considerando a ucronia como fenômenos não situados nem no tempo nem no espaço,
mesmo assim os escritores não deixam de transparecer parte da realidade em que estão
inseridos. A ucronia, ou historias alternativas, vale-se de mudanças dos fatos históricos para
apresentar um presente diferente do atual.
História alternativa é uma alternativa à história “oficial” que serve para contradizer,
questionar e indagar os fatos que estão postos. Isso rompe com a perspectiva linear da história
e cria uma cadeia imaginativa condicionada pela partícula “se”. E se as coisas tivessem
ocorrido de outra forma?
As possibilidades são infinitas e, ao invés de serem acusados de alienados ou
manipuladores ao deturpar fatos históricos, os ucronistas poderiam ser interpretados como
carandá
Revista do Curso de Letras do Câmpus do Pantanal – UFMS,
Corumbá, MS, novembro 2011, n. 4, p. 21
visionários, críticos ou idealistas, dado que a história passa a ser imaginada sob outro viés que
não a tradicional ótica dos vencedores. Na busca por uma linha temporal alternativa, o
passado histórico é alterado em pontos significativos criando uma espécie de universo
paralelo.
Em seu livro A Oeste do Éden, Harry Harrison afirma que a grande catástrofe cósmica
que exterminou os dinossauros há 65 milhões de anos nunca chegou a acontecer, com isso os
grandes répteis continuaram a evoluir e o cérebro a crescer. O polegar tornou-se oponível, até
culminarem nas Yilanè, a raça sauróide mais inteligente da Terra. A partir daí forma-se uma
civilização baseada em sofisticadas técnicas de engenharia genética com grande estabilidade
social e integração ecológica, uma sociedade extremamente equilibrada e com grande controle
do meio ambiente.
Cidades “orgânicas” surgem por boa parte do mundo, mas diante das pressões climáticas e de
uma era glacial intensa, há uma gradativa diminuição dos recursos energéticos e alimentares.
Os Yilanè são obrigados a explorar o oceano Atlântico e colonizar o Novo Mundo, mas se
deparam com mamíferos eretos e que possuem o dom da palavra. Não demora muito para que
o ódio se espalhe entre as duas culturas.
Os répteis têm tudo: conhecimento, tecnologia e ciência, e povoam todo o mundo, à
exceção das Américas. Os seres humanos parecem condenados: são pequenos grupos
dispersos e ignorantes, e a maior parte nem sabe da tragédia que lhes está reservada quando os
répteis decidem extinguir o gênero humano. Nesse romance, a crítica ao antropocentrismo é
evidente.
Segundo Veyne (2008), a história é uma construção; as informações a serem
historicizadas são recortadas por aquele responsável pelo relato. Assim, o historiador se torna
o construtor de uma trama. Propõe que se veja a história como um romance que narra
acontecimentos cujo centro é o homem, não sendo, portanto, uma ciência explicativa,
metodologicamente neutra.
Veyne afirmou que a história não passa de um “conto verdadeiro”. Se história e
narrativa têm muito em comum, os recursos dos quais um historiador dispõe não diferem
muito de um novelista. Portanto, ela não tem nada de neutro, é parcial e subjetiva. Assim
como o romance, a história não faz reviver o que conta, isto é, o que está contado não foi o
vivido pelos atores envolvidos, eliminando dessa maneira o que considera superficial e
irrelevante ao fato histórico em si.
carandá
Revista do Curso de Letras do Câmpus do Pantanal – UFMS,
Corumbá, MS, novembro 2011, n. 4, p. 22
1. História e Pós-modernidade
Muitos analistas referem-se a esse modo de pensar a história como fruto da pós-
modernidade, já que parece que tudo que foge às tradições iluministas é prontamente
caracterizado como pós-moderno, se configurando como um clichê acadêmico. Não me
proponho a pensar tais caracterizações, com o risco de desvirtuar o encaminhamento dessa
discussão. Por outro lado, podemos afirmar que essa forma ucrônica de pensar e que anda de
braços dados com a ficção científica, promove um regresso à própria história e problematiza a
noção de conhecimento histórico, as certezas humanistas e as referências temporais.
Nesse sentido, essa perspectiva história nos traz o paradoxo e a contradição como
fonte analítica dos fatos históricos. Não se trata em hipótese alguma de se evitar o
questionamento ou de criar uma nova totalidade interpretativa unificadora em substituição ao
que já está dado, mas sim explorar outros pontos de vista e outros sujeitos que estavam até
então como personagens meramente figurantes da história oficial ou em outros contextos.
Segundo Lyotard (1989), as metanarrativas perdem sua força de persuasão na
contemporaneidade. As ideologias iluministas e marxistas na sociedade pós-industrial já não
têm o mesmo vigor empírico de outros tempos. As verdades totalizadoras que levam a um
saber globalizante com uma solução única não conseguem fazer frente a uma época em que se
mesclam fragmentos de várias histórias contraditórias e antagônicas sobre um determinado
assunto. A pluralidade de possibilidades dá fim à história pensada nos moldes anteriores.
Metanarrativas tais como o iluminismo e o marxismo, na visão de Lyotard, não trouxe a
emancipação humana, pelo contrário, ficamos atrelados a outros totalitarismos e controles que
minaram qualquer possibilidade de liberdade e igualdade.
Para a pesquisadora canadense Linda Hutcheon, a principal característica do pós-
modernismo é a metaficção historiográfica. Segundo a autora, não se trata de negar a história,
invalidando-a:
Segundo Vattimo (1997), para que o mundo pós-moderno pudesse se configurar foi de
fundamental importância o avanço do desenvolvimento dos meios de comunicação onde as
pessoas têm acesso a uma pluralidade de visões e, consequentemente, um maior
questionamento comparativo entre as diversas realidades que estão à mostra. Não há,
portanto, mais uma única história, mas várias histórias que podem ser relatadas de acordo com
o ponto de vista de quem as narra, e essa narrativa no mundo pós-moderno é sempre passível
de questionamento e interpretação.
Vattimo chama de ontologia do declínio o fato de não existir mais nenhuma certeza
absoluta, nem nada meta-histórico que explicará a história através da razão ou um sujeito
racional que pode ser apontado como o protagonista de qualquer ação. Isso faz parte de um
pensamento que não leva em conta qualquer fundamento e origem, não podendo, pois, haver
carandá
Revista do Curso de Letras do Câmpus do Pantanal – UFMS,
Corumbá, MS, novembro 2011, n. 4, p. 25
qualquer ontologia que não passe pelos discursos numa espécie de círculo hermenêutico como
condição essencial para a possibilidade de qualquer reflexão.
2. História contrafactual
Não saberia dizer se essa postura descrita acima pelo colunista representa de fato a
prática dos melhores historiadores, mas a verdade é que os historiadores profissionais foram
durante muito tempo hostil a tais procedimentos. Hoje, é possível afirmar que invocar a
história contrafactual deixou, contudo, de ser um procedimento tabu, já que todas as análises
históricas são construções transitórias e são constantemente submetidas à revisões.
A história contrafactual provoca uma problematização complexa da articulação dos
fatores objetivos e subjetivos e, sobretudo, traz a dimensão da subjetividade, outrora renegada
a pepéis secundários na historiografia oficial. Esse campo de análise implica numa
reconstrução que o presente faz do passado, pois as fontes históricas não falam sozinhas.
É muito comum fazermos exercícios contrafactuais no nosso cotidiano. “E se tivesse
aceitado aquele emprego”? “E se tivesse me casado com Maria, aos 20 anos”? Explicitamos o
contrafactual para validarmos o argumento de nossas decisões, tanto para legitimá-las quanto
para refutá-las.
carandá
Revista do Curso de Letras do Câmpus do Pantanal – UFMS,
Corumbá, MS, novembro 2011, n. 4, p. 28
sido e que impacta numa reflexão crítica do presente, do que está posto na
contemporaneidade.
Um exemplo clássico de ucronia no cinema vem de um filme recente de Quentin
Tarantino, Bastardos Inglórios (Inglorius Basterds, EUA, 2009). Definitivamente, Tarantino
não tem por premissa seguir uma lógica linear em seus filmes. Tem por hábito misturar
linguagens, épocas e estilos de fazer cinema (drama, comédia e ação) que são por muitas
vezes destoantes. Suas influencias são várias, de distintas épocas, e isso influencia sua obra
cinematográfica. Segundo o diretor, o longa é uma mistura de filme de guerra com western
spaghetti italiano.
Trata-se de um filme intenso com um modo diferente (fragmentária e hibrida) de
contar uma história que estamos acostumados a assistir. A história começa na França ocupada
pelos nazistas, onde Shosanna Dreyfus (Mélanie Laurent) testemunha a execução de sua
família pelas mãos do coronel nazista Hans Landa (Christoph Waltz). A jovem consegue
escapar e foge para Paris, onde cria uma nova identidade como dona de cinema.
Simultaneamente, na Europa, o tenente Aldo Raine (Brad Pitt) persegue ao lado de seu grupo
de soldados judeus os nazistas. Conhecido por seus inimigos como Os Bastardos, o esquadrão
de Raine se junta à atriz alemã e agente infiltrada Bridget Von Hammersmark (Diane
Kruger) em uma missão para derrubar os líderes do Terceiro Reich. E os destinos convergem
para o cinema onde Shosanna está planejando a sua própria vingança. O filme conta a história
de dois planos para assassinar os líderes políticos da Alemanha nazista. Em três dias Joseph
Goebbels fará uma pré-estréia de gala do novo filme dele em Paris. Todo o alto comando
alemão estará lá: “Todos os ovos podres dentro de uma mesma cesta.” O objetivo é detonar a
cesta. Hitler irá à pré-estréia. É nesse ponto do filme que a ambição de Shosanna Dreyfus e
dos Bastardos convergem para um mesmo local.
O filme de guerra de Tarantino é uma releitura do italiano “Assalto ao Trem Blindado”
(Quel Maledetto Treno Blindato, Itália, 1977) de Enzo Catellari, que conta a história de um
grupo de soldados americanos de origem judaica enviados a uma missão suicida. Na versão
do cineasta americano, Brad Pitt faz o papel do tenente Aldo Raine, que organiza um grupo de
soldados judeus para lutar contra os nazistas. O grupo tem como missão assassinar soldados
de Hitler da forma mais cruel possível.
É uma fantasia sobre um pelotão de elite do exército americano formado apenas por
judeus, oito soldados e um tenente, cuja missão é penetrar nas linhas inimigas e matar nazistas
de forma bárbara e selvagem, para espalhar o medo entre os oficiais e os soldados alemães.
carandá
Revista do Curso de Letras do Câmpus do Pantanal – UFMS,
Corumbá, MS, novembro 2011, n. 4, p. 31
“Se ouviram falar de nós já sabem que não fazemos prisioneiros. Nosso negócio é matar
nazistas e somos bem-sucedidos.”, diz Raine.
Num pronunciamento para sua tropa, Raine inflama:
Considerações Finais
1
Illya Prigogine, físico-químico russo (25/1/1917-), nascido em Moscou e naturalizado belga em 1949. Prêmio
Nobel de Química em 1977 por suas contribuições à termodinâmica e, em especial, pela Teoria das Estruturas
Dissipativas.
carandá
Revista do Curso de Letras do Câmpus do Pantanal – UFMS,
Corumbá, MS, novembro 2011, n. 4, p. 32
ao temporal e ao complexo. Afirma que na nossa era as coisas estão mudando a uma
velocidade jamais vista.
Prigogine mostra que a ciência clássica enfatizou a estabilidade e o equilíbrio, mas
agora o que vemos são instabilidades, flutuações e tendências evolucionárias. Por isso,
defende as novas ciências da complexidade que têm por tendência negar o determinismo onde
o futuro não é dado.
Nesse sentido, certezas devem ser substituídas por possibilidades, por isso a divisão entre as
ciências exatas que falariam de certezas e as ciências “inexatas” que tratariam das
possibilidades, vai deixando de existir. Saímos de um passado de certezas conflitantes para
uma época de polêmica, de novas aberturas.
Nas ciências, prevalecia uma visão determinista das leis da natureza. Hoje,
privilegiamos as bifurcações, flutuações, as instabilidades, complexidade e criatividade, ou
seja, passamos por uma mudança de paradigma. Segundo Prigogine, hoje estamos longe do
mundo newtoniano, regular, das trajetórias lineares. Essa mudança ocorre porque a sociedade
humana também está mudando, devido aos intercâmbios culturais e econômicos promovidos
pela globalização.
A partir do momento em que estivermos sob o imperativo do paradigma cartesiano e
sob o determinismo das leis causais da ciência, há uma separação significativa da objetividade
e da subjetividade no nosso campo de análise. Descartes quis atingir uma certeza fundada
sobre as matemáticas, uma certeza que todos os seres humanos poderiam partilhar. Mais
tarde, as leis newtonianas serviriam de modelo para encontrar essas certezas.
Prigogine nos diz que estamos saindo da visão geométrica clássica para uma descrição
da natureza na qual o elemento narrativo é essencial. Ocorre a mudança do ponto de vista
determinístico para uma visão que reconhece o papel central das probabilidades e
irreversibilidade.
Pensar o incerto é, também, ter consciência da condição humana com seu duplo aspecto de
liberdade e angústia. Assim como a arte, a música, a literatura, a ciência faz parte da procura
do transcendental.
No entanto, as fronteiras entre o “real” e o “imaginário” são muito tênues. Ainda
estamos construindo novas formas do pensar interdisciplinar e que faça dialogar o irracional e
o racional, a ordem e a desordem, o sapiens e o demens, não no sentido de dualidades
incompatíveis, mas de contextos conflituosos, contraditórios, porém complementares e
intercambiáveis.
carandá
Revista do Curso de Letras do Câmpus do Pantanal – UFMS,
Corumbá, MS, novembro 2011, n. 4, p. 33
É nesse sentido que a ucronia é um elemento importante para fazer pensar e refletir
não só exclusivamente no âmbito historiográfico, mas no sentido de pensar a condição
humana por meio de obras literárias e/ou cinematográficas que nos remete a uma articulação e
religação de vários saberes que até então foram desprestigiados pela ideologia cientificista.
O foco de crítica não é contra o método historiográfico em si, proposta a partir da
ucronia, história alternativa e história contrafactual ou virtual, mas sim contra as deturpações
da história que são pensadas e repassadas como a história oficial. Como por exemplo, em dois
casos recentes de distribuição de material didático nas escolas brasileiras. No primeiro, a
história oficial contada aos alunos dos 12 colégios militares do país omite a tortura praticada
na ditadura, entende que o golpe de 1964 foi uma revolução democrática contra a atuação de
grupos subversivos que perturbavam a ordem pública e que vitimaram numerosas pessoas
com sua estratégia de assaltos a banco, seqüestros e ataques a quartéis e postos policiais.
Além disso, a censura à imprensa e as cassações políticas era condição necessária ao
progresso do país. “Embora o governo pregasse o retorno à normalidade democrática, a
intransigência do partido oposicionista motivou a necessidade de algumas cassações
políticas”, diz trecho sobre o governo Ernesto Geisel (1974-79). Para o historiador Carlos
Fico1 da Universidade Federal do Rio de Janeiro, esse exemplo sé considerado graves porque
narra a história como uma “história factual” carente de análise, focada apenas na ação dos
governos. Permanece assim aberta a questão do estatuto epistemológico da história e o grau
de objetividade de seus juízos.
Por outro lado, em 2007, setores da mídia conservadora protestaram contra os
excessos esquerdistas de um livro didático, Nova História Crítica para 8ª. série, distribuído
gratuitamente pelo MEC a 750 mil alunos da rede pública. O livro faz a crítica explícita ao
capitalismo e tenta resolver os problemas sociais sob a ótica da revolução marxista. Enaltece a
figura de Mao-Tsé Tung como um grande estadista e comandante militar, além de entender
que a Revolução Cultural Chinesa fora uma experiência socialista muito original. Também
coloca Cuba quase como uma ilha paradisíaca de prosperidade e riqueza coletiva, e critica a
derrocada da URSS, não esclarecendo de fato os motivos que levaram a esse processo
histórico.
1
Carlos Fico é professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro e autor dos livros "Como eles agiam: os
subterrâneos da ditadura militar" (2001) e "O Grande Irmão: da operação brother sam aos anos de chumbo, o
governo dos EUA e a ditadura militar brasileira” (2008).
carandá
Revista do Curso de Letras do Câmpus do Pantanal – UFMS,
Corumbá, MS, novembro 2011, n. 4, p. 34
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ABSTRACT: The present article intends to revisit the development of the expression Ut
picture poesis, suggested by Horácio, within the different artistic movements. Under this
perspective, we intend to demonstrate that Horácio’s words passed to designate a series of
comparative studies between the arts, which includes the comparison between Literature and
Painting; Literature and Music, among others. It will be discussed, also, the importance of the
binomial Mimesis/Semiosis assumes in the interior of the comparison between Literature and
Painting. We will search to revisit Horácio’s tradition proportioning the interlocution with the
current discussions in the Letters field, Aesthetic and Semiotic.
Keywords: Horácio; Comparison between arts; Mimesis/Semiosis; Aesthetic; Semiotic.
Desde que fora enunciada, a expressão horaciana, ut pictura poesis (A poesia é como
pintura), tem sido empregada como um preceito estético, um topos, a partir do qual, propõe-se
a comparação entre a Poesia e as Artes Plásticas. Com Horácio, instaura-se, de forma mais
sistemática, a prática de comparação entre as diferentes artes, pois os críticos amparando-se
nas palavras de Horácio procurarão discutir a relação entre as artes irmãs, quer seja para
aproximá-las quer seja para distanciá-las. Nesse sentido, pensamos, que a própria questão do
paragone das artes, tão comum à época de Alberti e Da Vinci, não poderá ser considerada
1
Doutor em Literatura Comparada pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) em Co-tutela com
a Universitat de Barcelona. Professor da FAP. E-mail: npedrosojunior@yahoo.com.br
carandá
Revista do Curso de Letras do Câmpus do Pantanal – UFMS,
Corumbá, MS, novembro 2011, n. 4, p. 36
fora de um contexto reflexivo aberto pelo ut pictura poesis horaciano. Registramos, ainda,
que apesar de o termo paragone ser empregado, muitas vezes, com o propósito de designar a
comparação entre a Literatura e as Artes plásticas, em sua acepção original, o termo referia-se
à comparação entre a pintura e a escultura. Com isso, o paragone pode ser pensado na esteira
da tradição ut pictura poesis, na medida em que, o lugar ocupado pela pintura em relação à
poesia é análogo ao lugar ocupado pela escultura em relação à pintura.
Aliás, entendemos que, ao nos colocarmos diante do ut pictura poesis, estaremos, não
apenas diante de um topos, mais ou menos definido da História da Arte ou da Estética,
tampouco estaríamos diante de uma simples questão temática, segundo a qual analisar-se-ia a
forma por meio da qual determinadas obras literárias ou pictóricas iam buscar fonte de
inspiração e motivos em outras artes. Acreditamos, todavia, que, para além dessas questões, o
ut pictura poesis aponta para uma discussão e re-definição dos sistemas artísticos de um modo
geral, na medida em que, ao centrar-se na representação do real – tanto pela Literatura quanto
pela Pintura - potencializa as discussões acerca da Mímesis, questão esta nodal para os estudos
literários e, inclusive, para a estética. Assim, dessas discussões abertas pelo ut pictura poesis
não podem desvencilhar-se nem os artistas muito menos os estudiosos.
Se, em um primeiro momento as palavras de Horácio foram empregadas para
comparar a Pintura à Literatura, ao longo dos séculos e dos diferentes movimentos artísticos,
o adágio horaciano passou a designar toda uma série de estudos comparativos entre as
diferentes artes, não apenas circunscritos às analogias entre Pintura e Literatura, mas, agora,
entre Literatura e Música, Pintura e Música, Literatura e Cinema, entre outros. Nesse sentido,
devemos observar que os estudos das relações entre Literatura e Música receberam uma
rubrica específica: ut musica poesis ou em alguns casos ut musica pictura. A primeira
expressão é utilizada para comparar a Literatura à Música, enquanto que a segunda expressão
é frequentemente usada com o propósito de se associar a Música à Pintura. Essas mudanças
das palavras de Horácio foram sugeridas por Jon de Green. Segundo Solange Ribeiro de
Oliveira, o autor, ao cunhar aquelas duas expressões, pretendia, com a primeira, indicar “a
supremacia das aproximações entre a música e a poesia” próprias do período romântico,
enquanto que a segunda expressão, usada na fase moderna, “privilegia as relações entre a
música e as artes plásticas, num momento em que estas, como sempre aconteceu com a
música, tendem a favorecer a abstração” (Oliveira, 2002, p.25).
Horácio inicia, então, uma tradição de comparações entre Literatura e Pintura,
apresentada sob a rubrica ut pictura poesis (Poesia é como pintura). Recentemente, a tradição
carandá
Revista do Curso de Letras do Câmpus do Pantanal – UFMS,
Corumbá, MS, novembro 2011, n. 4, p. 37
Poesia é como pintura: uma te cativa mais, se te deténs mais perto; outra, se
te pões mais longe; esta prefere a penumbra; aquela quererá ser contemplada
em plena luz, porque não teme o olhar penetrante do crítico; essa agradou
uma vez; essa outra, dez vezes repetida, agradará sempre (Horácio, 1997, p.
65).
Essa passagem fora retomada inúmeras vezes ao longo da história com o propósito de
se salientar uma maior dificuldade de recepção de um texto do que de um quadro, assim
como, de um maior valor que assumiria aquele com relação a este. Os críticos partiam da
ideia, segundo a qual, em relação a um quadro, bastaria contemplá-lo, já as letras, dispostas na
página em branco, exigiriam não apenas contemplação, mas, principalmente revolveriam o
espírito e a mente, pois seria necessário entender o que significam (como se a um quadro
também não fosse necessário correr atrás de seu significado). Assim, o tom das reflexões
baseava-se na distinção entre os signos naturais, utilizados pela pintura, e os signos
arbitrários, utilizados pela Poesia. Com isso, instaura-se a supremacia desta sobre a Pintura,
pois, enquanto que a imagem encarnada pela pintura,
carandá
Revista do Curso de Letras do Câmpus do Pantanal – UFMS,
Corumbá, MS, novembro 2011, n. 4, p. 38
(...) sólo representa una efígie humana, el poema puede representar también lo
inimaginable, o sea, un pensamiento, mientras que un cuadro sólo lo logra mediante
un símbolo; el poema está realizado con un material que no resiste mucho y que deja
más liberdad que un cuadro; también excita e ilusiona al receptor, más facilmente,
mediante efectos acústicos, y no como un cuadro, que sólo se dirige al sentido de la
vista exigiendo una intensa impresión visual (Markiewicz, 2000, p.53).
En efecto, cuando el autor latino enunciaba esta ley, proponía sobre todo al poeta
que buscara conseguir con sus versos efectos tan asombrosos como los que obtenía
la pintura: dicho de otro modo, proponía el ideal de una poesía hecha de imágenes
fulgurantes, inesperadas, lo suficientemente fuertes como para provocar verdaderas
“visiones” o, en términos más sobrios, establecía para el poeta la tarea de crear
verdaderos cuadros, de producir lo que la retórica denomina hipotiposis y que
consiste en poner con vivacidad e inmediatez en el espíritu del oyente aquello de lo
que se habla (Aumont, 1998, p.106).
(...) a frase cria um privilégio em favor das artes da imagem, com as quais são
relacionadas as artes da linguagem. Ao retomarem a frase de Horácio, os teóricos do
Renascimento inverteram o sentido da comparação: a poesia tornou-se o termo
comparativo e a pintura o termo comparado. Ut pictura poesis erit tornou-se, para
eles, tu poesis pictura, a pintura é como a poesia, o quadro é como um poema. E
esse foi o sentido, ou melhor, essa inversão de sentido, que a tradição conservou
(Lichtenstein, 2005, p. 10-11).
Ora, vemos que as observações de Horácio sobre a unidade em Pintura e em Literatura podem
ser aplicadas às obras de arte que tinham como modelo a representação fiel da Natureza, as
artes clássicas, por exemplo. Entretanto, nós não podemos aplicá-las com tanta propriedade
aos diferentes movimentos da arte moderna, sobretudo, à pintura abstrata ou não-figurativa,
pois, há uma certa crise e discussão acerca das estruturas da arte. Todavia, notamos que a não
aceitação do quadro proposto pelo poeta latino devido à falta da “unidade”, leva-nos a atestar,
sobretudo tendo os olhos voltados para movimentos como o Surrealismo, o Cubismo e o
Dadaísmo, que cada obra de arte apresenta uma lógica interna, que comanda a sua
composição. Neste ponto, retomar a reflexão de Roger Fry proposta em “Um ensaio de
estética”, quando registra que
carandá
Revista do Curso de Letras do Câmpus do Pantanal – UFMS,
Corumbá, MS, novembro 2011, n. 4, p. 40
Um dos principais aspectos da ordem numa obra de arte é a unidade; algum tipo de
unidade é indispensável para a nossa contemplação tranquila da obra de arte como
um todo, pois se não houver unidade não poderemos contemplá-la em sua inteireza,
pois acabamos passando ao largo dela na busca de outros elementos para completar
a unidade (Fry, 2002, p.65).
Mais adiante, o crítico de arte britânico continua sua reflexão sobre a questão da
representação nas artes plásticas e acentua, inclusive, a íntima relação existente entre a
representação e a necessidade de unidade de uma obra de arte. Todavia, a unidade proclamada
por Fry muito se difere daquela exigida por Horácio, pois, para Fry
ressalva com relação à etimologia da palavra mimesis e o emprego dos termos imitar e
representar, pois, de acordo com Maria Ozomar Ramos Squeff,
DA MIMESIS À SEMIOSES
(...) foi questionada pela teoria literária que insistiu na autonomia da literatura em
relação à realidade, ao referente, ao mundo, e defendeu a tese do primado da forma
sobre o fundo, da expressão sobre o conteúdo, do significante sobre o significado, da
significação sobre a representação, ou ainda, da sèmiosis sobre a mimèsis
(Compagnon, 1999, p.97).
Nesse contexto, tanto a Poesia quanto a Pintura tomam como ponto de partida a
realidade – o real – assim, ao raciocínio horaciano sobre a representatividade poética ou
pictórica podemos associar a reflexão aberta por Jan Mukarovisky, quando afirma que a
“capacidad de expresar los fenómenos de la realidad externa mediante signos conectados en
una contextura continua” (Mukarovisky apud Steiner, 2000, p.35) une a Literatura e a Pintura
sob qualquer situação de desenvolvimento. Para reforçar esse caráter mimético tanto de uma
como de outra arte, Mukarovisky salientará que a Música, a Escultura e a Arquitetura não
carandá
Revista do Curso de Letras do Câmpus do Pantanal – UFMS,
Corumbá, MS, novembro 2011, n. 4, p. 42
apresentam aquela “contextura continua” da qual são dotadas a Literatura e a Pintura, pois,
em ambos os casos, “aunque la expressión de una realidad externa en la literatura o la pintura
sea sólo virtual, es sin embargo esencial para ellas” (Steiner, 2000, p. 35).
Pensamos que, apesar de a Literatura e a Pintura tomarem como ponto de partida o
Real, a representação tanto no plano da página quanto no plano da tela não prova a existência
do objeto. Assim, a referência à existência ou não do objeto representado tornou-se questão
nodal não apenas para os estudos literários, mas, principalmente, tornou-se objeto de interesse
da estética e semiótica modernas e, também, dos estudos comparativos entre as artes. Neste
ponto, podemos estender nossa reflexão no sentido de esclarecer acerca da utilização da
palavra objeto, uma vez que não se pode confundir objeto com coisa, sobretudo porque a
noção de objeto é muito mais complexa e não pode, de forma alguma, ser confundida com o
que quer que possamos entender por coisa. Diante disso, optamos por recorrer à semiótica de
Peirce para forjarmos uma reflexão acerca do objeto, pois, em vários momentos de nosso
trabalho, sobretudo quando tocamos na questão da representação, aquele termo será bastante
frequente. Duas passagens de Peirce são elucidativas:
A palavra Signo será usada para denotar um Objeto perceptível, apenas imaginável
ou mesmo insuscetível de ser imaginado em um determinado sentido a palavra
“cabo” que é um signo, não é imaginável, pois não é essa palavra mesma que pode
ser inscrita no papel ou pronunciada, mas apenas um dos aspectos que pode revestir;
trata-se da mesmíssima palavra quando escrita e quando pronunciada, mas é uma
palavra quando significa “posto de hierarquia militar”, outra quando significa “ponta
de terra que entra pelo mar” e terceira quando se refere a “parte por onde se segura
objeto ou instrumento”. [...] Um Signo pode ter mais de um Objeto. Assim a
sentença “Caim matou Abel”, que é um Signo, refere-se pelo menos tanto a Abel
quanto a Caim, ainda que não a encaremos como deveríamos encará-la, isto é, como
tendo “um assassínio” na qualidade de terceiro Objeto. O conjunto de objetos pode
ser visto Omo compondo um Objeto complexo. No que se segue (e muitas vezes
depois), os signos serão considerados como tendo apenas um Objeto, no intuito de
reduzir as dificuldades de estudo.
Os Objetos pois um Signo pode ter qualquer número deles podem ser uma
coisa singular existente e conhecida ou coisa que se acredita tenha anteriormente
existido ou coisa que se espera venha a existir ou uma coleção dessas coisas ou uma
qualidade ou uma relação ou fato conhecido cujo Objeto singular pode ser uma
coleção ou conjunto de partes ou pode revestir algum outro modo de ser, tal como
algum ato permitido, cujo ser não impede que sua negação seja igualmente
verdadeira ou algo de natureza geral, desejado, exigido ou invariavelmente
encontrado sob certas circunstâncias comuns (Peirce apud Santaella, 1995, p.48).
Podemos pensar, por exemplo, que tanto Simônides quanto Horácio, ao compararem a
Poesia à Pintura, apontam para o fato de que ambas tomam como ponto de partida o real e,
então, o que as diferenciaria seria a forma como ambas representam esse mesmo real. Com
carandá
Revista do Curso de Letras do Câmpus do Pantanal – UFMS,
Corumbá, MS, novembro 2011, n. 4, p. 43
isso, podemos ressaltar que a arte poderá ser realista, surreal, abstrata, documental, etc, mas
ela nunca estará desvinculada da realidade empírica. Assim, vemos que . “as coisas da arte
começam geralmente ao contrário das coisas da vida. A vida começa por um nascimento, uma
obra pode começar sob o império da destruição” (Didi-Huberman, 2001, p.9).
Vemos, então, que a arte e, mais precisamente a Literatura e a Pintura, não se
contentam simplesmente em estar presente no mundo real, a arte, então,
Assim, é diante de uma dupla falta que nasce a literatura, pois, como bem demonstrou
Leyla Perrone-Moisés, em um primeiro momento há uma falta sentida no mundo em que
vivemos, que não é satisfatório. Esta falta sentida no real tentará ser suprida pela linguagem,
ai reside a outra falta pela qual nasce a Literatura, na medida em que esta é um sistema que
também opera em falso. Neste ponto, não podemos deixar de mencionar um texto de Jacques
Lacan intitulado “Televisão”, no qual o psicanalista francês irá atentar para o fato de a
linguagem ser um sistema que opera em falso, pois, para Lacan, “Digo sempre a verdade: não
toda, porque dizê-la toda não se consegue. Dizê-la toda é impossível, materialmente faltam as
palavras. É justamente por esse impossível que a verdade provém do real. (...) Falhado,
portanto, mas por isso mesmo bem-sucedido em relação a um erro, ou melhor dizendo, a um
error” ( Lacan, 1993, p.11) A passagem lacaniana irá ao encontro do raciocínio de Leyla
Perrone-Moisés acerca da criação do texto literário e, mais precisamente, sobre o nascimento
da Literatura. Dessa forma, vemos que o psicanalista francês tanto quanto a crítica brasileira
apontam para o fato de a língua ser um sistema que opera em falso.
As palavras de Jimenez, citadas anteriormente, apontam para uma característica muito
importante não apenas relativa à arte, mas, ao próprio homem, a tendência própria deste em
imitar, inclusive, seus pares. Logo, entendemos que “el hombre es un animal de imitación, un
animal mimético: tenemos una tendencia espontánea a reproducir algo que nuestros sentidos
nos dan a percibir, y esta tendencia, este instinto o pulsión es tan fuerte que no tiene
significación de objeto, como lo subraya la observación a las cosas displanceteras o feas, cuya
imagen puede considerarse bella (Aumont, 1998, p.196).
carandá
Revista do Curso de Letras do Câmpus do Pantanal – UFMS,
Corumbá, MS, novembro 2011, n. 4, p. 44
Como já afirmamos anteriormente, podemos entender, até certo ponto, que a Epístola
aos Pisões, de Horácio, participa de uma discussão acerca da Mímesis aberta, sobretudo pela
Poética, de Aristóteles, na medida em que este entende que o homem, quase que por
necessidade, apresenta uma tendência à imitação. A arte seria, segundo a visão aristotélica,
uma atualização dessa pulsão mimética apresentada pelo homem na imitação das ações
humanas. Com isso, vemos que
(...) la mímesis de Aristóteles es distinta que la del espejo platônico: si hay algo que
el animal humano no puede prescindir de imitar es él mismo o, más exactamente, su
comportamiento en sociedad. La imitación, y más allá, la actividad que se conoce
como “arte”, es por tanto un juego que obedece a reglas, tan necessário como otros
para la cohesión de la ciudad porque proporciona la ocasion de encuentros entre
ciudadanos, y porque, al reproducir las aciones humanas, permite describirlas de otra
manera, enfocarlas en todos sus aspectos (comprendidos los virtuales y los
imposibles), y por tanto pensarlos de manera completa (Aumont, 1998, p.96).
desenvolvimento da arte não figurativa tem mostrado a imitação não ocorre hoje em dia em
concomitância à arte, e ainda menos uma propriedade essencial” (Dickie, 1992, p.10).
Seguindo o raciocínio aberto pelas palavras de Dickie, podemos pensar, então, que,
tanto no plano da estética como no plano dos estudos comparativos entre as artes, instaura-se
uma problemática relativa à representação. De um lado, podemos registrar que a noção/ideia
de mimesis foi, ao longo dos séculos, reduzida à simples noção de cópia ou
representação/figuração mais ou menos fiel do mundo empírico. Todavia, essa noção de
mimesis começou a ser combatida pelos artistas, a partir do momento em que a arte começa a
se afastar do ideal realista ou da arte figurativa de um modo geral. Assim,
Nesse contexto, podemos recorrer a Giulio C. Argan quando registra que o fato que
separa “nitidamente, com um autêntico salto qualitativo, a arte do nosso século de toda a arte
do passado, pelo menos na área da cultura ocidental, é a passagem do carácter figurativo ao
não figurativo, ou como é corrente dizer-se, à abstracção” (Argan, 1995, p.105). Pensamos
que a pintura abstrata coloca em discussão, de maneira singular, menos a questão da
figurativização, mas sim, seu próprio médium pictórico, ou seja, o objetivo da arte abstrata é
tornar “(...) visível não a relação entre o objeto pictórico e as coisas do mundo, mas as
possibilidades de codificação de seu próprio código, a sua realidade plástica” (Oliveira, 2004,
p.117). Com isso, assistimos, por parte dos pintores, à uma reflexão mais sistemática de seu
oficio, de seu trabalho, reflexão esta que será transposta para a superfície da tela, ou melhor, a
reflexão sobre a pintura será, agora, tema para os pintores. Diante disso, veremos que “os
pintores se lançam numa busca não mais de recobrir a tela através das ilusões óticas para, por
exemplo, conseguir na sua inerente bidimensionalidade, a tridimensionalidade do mundo
natural, mas de descobri-la na sua planitude, plano sob plano, plano no plano” (Oliveira,
2004, p.117).
Com isso, se anteriormente pensava-se na pintura como espelho a representar o real,
essa ideia não é mais sustentada, principalmente se pensarmos na arte moderna e na pintura
denominada abstrata, na medida em que estarão dispostas na tela as reflexões sobre questões
técnicas, tais como, a estruturação geométrica e a estruturação cromática, responsáveis por
carandá
Revista do Curso de Letras do Câmpus do Pantanal – UFMS,
Corumbá, MS, novembro 2011, n. 4, p. 46
(...) um quadro de extraordinária beleza, brilhando com uma luz interior. Fiquei
paralisado, depois me aproximei desse quadro-mistério onde só via formas e cores e
cujo teor me era incompreensível. Encontrei rapidamente a chave do mistério: era
um quadro meu, que tinha sido dependurado ao contrário. (...) Soube, então,
expressamente que os “objetos” eram prejudiciais a minha pintura (Kandinky apud
Compagnon, 1996, p. 66).
Nesse sentido, pode-se evocar a epígrafe de Água viva, de Clarice Lispector, que
sintetiza o sentimento da necessidade de libertar-se da dependência do objeto. A epígrafe é de
Michel Seuphor:
Tinha que existir uma pintura totalmente livre da dependência da figura — o objeto
— que, como a música, não ilustra coisa alguma, não conta uma história e não lança
um mito. Tal pintura contenta-se em evocar os reinos incomunicáveis do espírito,
onde o sonho se torna pensamento, onde o traço se torna existência (Seuphor apud
Lispector, 1980. Epígrafe).
A epígrafe de Água viva pode ser tomada aqui como um comentário sobre todas as
manifestações da arte moderna e mais precisamente das artes não figurativas, que tendiam
para o abstracionismo, pois, estas são marcadas por essa liberdade frente à representação do
objeto. Por outro lado, a Literatura também se desvencilha da necessidade (ou imposição) de
representação fiel do real, para voltar-se a si mesma. Com isso, distanciando-se da tradição de
fundo realista, o que vemos, hoje, é que a própria linguagem é colocada em cena, o que
resulta em textos que, longe de procurarem “representar o real” voltam-se para a discussão
acerca da linguagem. Em outras palavras, “é exatamente a linguagem, tornando-se, por sua
vez, a protagonista dessa festa um pouco misteriosa, que se substitui ao real, como se fosse
necessário, ainda assim, um real. E, na verdade, salvo se reduzirmos toda a linguagem a
onomatopéias, em que sentido ela pode copiar? Tudo o que a linguagem pode imitar é a
linguagem: isso parece evidente” (Compagnon, 1999, p.97).
Ou seja, hoje
(...) é fácil perceber uma nova evocação da realidade nas tendências expressivas da
literatura e das artes, que procuram criar efeitos de realidade na transgressão nos
limites representativos do realismo histórico. Tanto na literatura quanto nas artes
visuais, assistimos a uma preocupação de se colocar a referencialidade na ordem do
dia, abrindo caminho para um novo tipo de realismo que, em vez de seguir o cânone
mimético do realismo histórico, nos moldes do cientificismo positivista, procura
realizar o aspecto performático da linguagem literária, destacando o efeito afetivo da
questão representativa (Compagnon, 1999, p. 97).
A passagem acima corrobora, uma vez mais, a ideia de Genette segundo a qual os
meios, para a arte moderna e contemporânea, são tão importantes quanto os fins.
Acreditamos, então, que essa mudança no paradigma artístico, no sentido de centrar-se nos
meios de cada arte, caminha em direção ao abandono da mimesis e ao encontro da semioses.
Em outras palavras, se as diferentes artes voltam-se agora à reflexão sobre si mesmas,
promovendo discussões técnicas e metodológicas, com isso haverá trocas e intercâmbios entre
carandá
Revista do Curso de Letras do Câmpus do Pantanal – UFMS,
Corumbá, MS, novembro 2011, n. 4, p. 48
artes distintas, vemos, contudo, que essa correspondência interartística manifesta-se, não
apenas no plano teórico, mas, principalmente, de forma prática.
A reflexão, ao longo da pesquisa interartística, que vise a analisar os caminhos
percorridos pela Literatura e pela Pintura de uma tradição mimética a um produtivo processo
de semiose, ou seja, um processo ou uma rede de significação, no qual se entrecruzam
diferentes linguagens, sujeitos, meios e materiais, deve considerar, então, as batalhas que
ambas as artes travaram em nome dessa nova situação. Se a literatura, de um lado, precisou
desvencilhar-se da forma narrativa do romance tradicional, no qual o enredo desempenhava
papel central, a pintura, por outro lado, travou uma acirrada batalha no sentido de libertar-se
dos ditames da ilusão da terceira dimensão, por meio da perspectiva. Assim,
A passagem acima pode ser tomada como uma emblemática da Arte Moderna, no
sentido em que aponta, de um lado, para a libertação mimética sofrida pela pintura, análoga
àquela empreendida pela literatura, por outro lado, a afirmação de Aguinaldo Gonçalves traz
para o plano da discussão a antiga oposição entre Literatura e Pintura baseada,
principalmente, na ideia de que esta seria uma arte do Espaço, enquanto aquela estaria
relacionada ao tempo. Tal noção norteou, durante muito tempo, as pesquisa interartística,
tendo sido, inclusive, empregada para melhor se atestar a divisão entre as artes. Todavia, ao
recorrer, não apenas às Artes Modernas, mas, também, aos próprios escritos dos artistas,
vemos que essa divisão não se sustenta mais, na medida em que a Literatura pode ser,
também, uma arte do espaço e, por outro lado, a Pintura pode relacionar-se ao Tempo. Para
melhor exemplificarmos esse estado de obliteração de limites no qual se encontra inserida a
Arte Moderna, podemos recorrer a Paul Klee que, com lucidez teórica posiciona-se diante das
teses defendidas por Lessing em Laokoon ou sobre os limites da poesia e da pintura,
principalmente quando este escritor germânico radicaliza as determinações entre tempo e
espaço na poesia e na pintura, respectivamente –, assim se pronuncia Klee:
carandá
Revista do Curso de Letras do Câmpus do Pantanal – UFMS,
Corumbá, MS, novembro 2011, n. 4, p. 49
Assim, a nossa atitude de recorrer à reflexão teórica de Paul Klee para discutir a
divisão entre artes temporais e as artes espaciais harmoniza-se, de certa maneira, com a
análise que Michel Foucault faz deste pintor, pois, como bem assinala o filosofo francês, Klee
é um dos mais férteis representantes do princípio da conjunção entre a representação plástica
(que implica semelhança) e representação linguística (que implica diferença) dos tempos
modernos. Pensamos, então, que Paul Klee, assim como Virginia Woolf, revitaliza uma
dialética em que se inter-relacionam ato criador, obra e decodificação, de maneira a ampliar o
universo artístico dentro de um grau de compreensão não dos limites, mas da especificidade
de cada arte, atestando, dessa forma, a mobilidade entre as fronteiras interartísticas. Logo,
Conduzidas por essa idéia de mobilidade, as posições do pintor, escritas tantos anos
atrás, já subvertiam, sabiamente, argumentações de alguns críticos da atualidade que
ainda se mantêm numa postura antiquada ao tratarem tais questões. O seu
pensamento nos atinge como portas que se abrem, como espaços que podem ser
compostos na direção do novo. São aberturas que não podem ser confundidas com
facilidades; pelo contrário, abrem-se portas para o desamparo, quer do pintor quer
do poeta ou do músico, para a difícil e até mesmo dolorosa viagem da criação
(Gonçalves, 2004, p.33).
(...) diz respeito à apropriação, pela literatura, dos procedimentos inerentes a outros
sistemas de significação e atua, dessa forma, no âmago das transformações ocorridas
carandá
Revista do Curso de Letras do Câmpus do Pantanal – UFMS,
Corumbá, MS, novembro 2011, n. 4, p. 50
REFERÊNCIAS
Greenberg, Clement, 1989. Arte e cultura – ensaios críticos. [Trad. Otacílio Nunes]. São Paulo: Ática.
Horácio,1997. Arte poética, in Brandão, José Ribeiro (Org.). A poética clássica: Aristóteles, Horácio e
Longino. [Trad. Jaime Bruna]. São Paulo: Cultrix.
Jimenez, Marc,1999. O que é estética? [Trad. Fulvia M. L. Moreto]. São Leopoldo/RS: Ed.
UNISINOS,1999.
Lacan, Jacques, 1993. Televisão. [Trad. Antonio Quinet]. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1993.
Lescourret, Marie-Anne, 2002. Introduction à l’esthétique. Paris: Champs Université Flammarion.
Lichtenstein, Jacqueline, 2005. A pintura – textos essenciais, o paralelo das artes. [Trad. Magnólia
Costa]. São Paulo: Ed. 34.
Lispector, Clarice, 1980. Água viva. Rio de Janeiro: Nova Fronteira.
Markiewicz, Henryk, 2000. “ ‘Ut pictura poesis’: historia del topos y del problema”, in Monegal,
Antonio (Org.). Literatura y pintura. Madrid: Arco/LIBROS.
Oliveira, Ana Cláudia de, 2004. “As semioses pictóricas”, in Oliveira, Ana Claudia de (Org.).
Semiótica Plástica. São Paulo: Hacker Editores.
Oliveira, Solange Ribeiro de,1993. Literatura e Artes Plásticas: o künstlerroman na ficção
contemporânea. Ouro Preto: Ed. UFOP.
______. 2002. Literatura e Música. São Paulo: Perspectiva.
Santaella, Lucia, 1995. A teoria geral dos signos: semiose e autogeneração. São Paulo: Ática.
Squeff, Maria Ozomar Ramos, 2003. “Mimesis na arte: os limites da crítica”, in Zielinsky, Mônica
(Org.). Fronteiras: arte, crítica e outros ensaios. Porto Alegre: Editora da UFRGS.
Steiner, Wendy, 2000. “La analogia entre la pintura y la literatura”, in Monegal, Antonio (Org.).
Literatura y pintura. Madrid: Arco/LIBROS.
carandá
Revista do Curso de Letras do Câmpus do Pantanal – UFMS,
Corumbá, MS, novembro 2011, n. 4, p. 53
Resumo: O presente trabalho tem por objetivo apresentar brevemente algumas considerações
acerca das relações entre História e mito, através da oposição das concepções de mundo do
homem arcaico – também chamado de “primitivo” –, e do homem “moderno” ou histórico.
Pretendemos mostrar como essas relações ocorrem no contexto da cultura indígena e como se
refletem em suas manifestações literárias contemporâneas. Para isso, apresentaremos como a
literatura escrita indígena tem se configurado no Brasil; faremos um estudo da teoria do
“eterno retorno” do autor Mircea Eliade e mostraremos como ela se relaciona aos textos
indígenas.
Abstract: This paper aims to briefly present some considerations about the relationship
between history and myth, through the opposition of views on the world of archaic man - also
called "primitive" - and "modern" man, or historical. We intend to show how these
relationships occur in the context of indigenous culture and how it is reflected in its
manifestations of contemporary literature. For this, we will present how the indigenous writen
literature has been set in Brazil; we will study the theory of "eternal return" of the author
Mircea Eliade and show how it relates to indigenous texts.
INTRODUÇÃO:
Depois de muito refletir acerca das envolventes e complexas relações entre Literatura
e História, decidi me aventurar a pensar como ocorrem as relações entre a História e o mito,
principalmente no contexto da cultura indígena e de seu “movimento literário”, que tem se
delineado de forma ainda acanhada, mas ao mesmo tempo firme, no cenário cultural e
literário brasileiros.
1
Aluna regular do Programa de Pós-Graduação em Estudos Literários (Doutorado) da Faculdade de Ciências e
Letras – UNESP – Campus Araraquara/SP, sob orientação da Profª Drª Karin Volobuef; bolsista FAPESP. E-
mail: kasinhaguesse@hotmail.com.
carandá
Revista do Curso de Letras do Câmpus do Pantanal – UFMS,
Corumbá, MS, novembro 2011, n. 4, p. 54
Sendo assim, o presente trabalho está organizado de forma a desenvolver três tópicos.
Tendo em vista que a literatura escrita indígena não é tema recorrente nos meios acadêmicos,
principalmente na Região Sudeste do Brasil – da qual fazemos parte –, o primeiro tópico
apresentará um panorama geral dessa escrita indígena, mostrando de que modo esse processo
tem se configurado em nosso país. Essa contextualização faz-se necessária para que possamos
entender, posteriormente, como a relação entre História/ mito se reflete nesses textos. O
segundo tópico abordará diretamente as relações existentes entre a História e o mito, tendo
como base teórica os estudos do autor Mircea Eliade, que opõe as concepções de mundo do
homem primitivo/ mítico às do homem moderno/ histórico. Por fim, o último tópico tratará da
forma como podemos vislumbrar essas concepções opostas e essas relações na cultura
indígena, principalmente em suas manifestações literárias contemporâneas.
Como essas reflexões, pesquisas e estudos estão, para mim, ainda numa fase inicial, o
que apresentarei neste trabalho são, por enquanto, apenas impressões pessoais, baseadas em
leituras e interpretação de teorias. Os estudos voltados à escrita/ literatura indígena e sua
ligação com as teorias literárias “oficiais” e solidificadas ainda são veio acadêmico pouco
explorado; por isso, aqueles que se dispõem a se dedicar a essa linha de pesquisa são, antes de
tudo, experimentadores e desbravadores de um longo caminho a ser trilhado.
A escrita é uma técnica. É preciso dominar esta técnica com perfeição para
poder utilizá-la a favor da gente indígena. Técnica não é negação do que se
é. Ao contrário, é afirmação de competência. É demonstração de capacidade
de transformar a memória em identidade, pois ela reafirma o Ser na medida
em que precisa adentrar o universo mítico para dar-se a conhecer o outro.
[...] Há um fio tênue entre oralidade e escrita, disso não se duvida. Alguns
querem transformar este fio numa ruptura. Prefiro pensar numa
complementação. Não se pode achar que a memória não se atualiza. É
preciso notar que ela – a memória – está buscando dominar novas
tecnologias para se manter viva. A escrita é uma dessas técnicas...
(Munduruku, 2008).
O que gostaria de salientar é que essa produção escrita indígena tem se configurado
como um novo movimento literário. Mesmo que esse processo venha ocorrendo ainda de
forma tímida e pouco visível, vários estudiosos acadêmicos têm se dedicado a analisar e
compreender essa recente expressão literária, como as professoras Maria Inês de Almeida e
Sônia Queiroz, ambas docentes e pesquisadoras da Universidade Federal de Minas Gerais.
Veremos, a seguir, algumas de suas considerações sobre a escrita/ literatura indígena no
Brasil.
carandá
Revista do Curso de Letras do Câmpus do Pantanal – UFMS,
Corumbá, MS, novembro 2011, n. 4, p. 57
Antes de pensarmos nas relações entre História e mito na literatura escrita indígena,
apresentaremos algumas considerações do autor Mircea Eliade, contidas em sua célebre obra
O Mito do Eterno Retorno, de 1969. Esses estudos servirão como base para as reflexões que
desenvolveremos no próximo tópico.
Já na introdução da obra, Eliade salienta que pretende investigar as concepções das
sociedades primitivas que não aceitam o tempo histórico, sem regulamentação arquetípica,
preferindo retomar o tempo mítico das origens.
Segundo o autor (1984, p. 19), o homem arcaico só conhece e reconhece atos de
comportamento que já foram feitos antes, num tempo primordial, por um outro que não era
um homem comum – deuses, heróis ou antepassados. Assim, a vida do homem primitivo é
uma constante repetição dos gestos fundadores, ou seja, a realidade sempre retoma uma ação
primordial, constituindo-se como a imitação de um arquétipo celeste. Nesse sentido, o
símbolo, o mito e o rito exprimem esse complexo sistema da realidade das coisas.
Desta maneira, todo o mundo que nos rodeia, com a presença e as obras do homem,
tem um modelo celeste, extraterrestre; o mundo – as cidades, os templos, as casas, as
montanhas, os rios, os campos... – é, portanto, uma réplica, uma realidade duplicada, baseada
num modelo arquetípico. Já os territórios desabitados, inexplorados, como as regiões
desérticas, por exemplo, são marcados pelo caos. São necessárias a conquista e a posse,
imitações do ato mítico da criação, para que esses lugares se tornem reais e sejam
transformados de caos em cosmos (Eliade, 1984, p. 25).
Outra concepção importante para o homem arcaico é o simbolismo do “Centro”.
Segundo o autor, o “inferno, o centro da terra e a ‘porta’ do céu encontram-se portanto no
mesmo eixo, e é esse eixo que serve de passagem de uma região cósmica para outra” (1984, p.
27). Neste contexto, o Céu e a Terra encontrar-se-iam no centro do Mundo, onde estaria a
Montanha Sagrada. Por extensão, qualquer cidade, templo ou residência sagrada ocuparia o
lugar da Montanha e estaria, por sua vez, no centro do Mundo, fazendo a ligação entre Céu,
Terra e Inferno. Vale salientar que esse simbolismo sobreviveu nas concepções ocidentais até
ao limiar dos tempos modernos; templos que representam a essência do Universo e são
carandá
Revista do Curso de Letras do Câmpus do Pantanal – UFMS,
Corumbá, MS, novembro 2011, n. 4, p. 59
A partir dessa concepção, vamos refletir o que acontece em relação ao tempo. Quando
o homem arcaico repete um arquétipo, o tempo profano, cronológico, histórico é abolido e
aquele que imita o ato exemplar é transportado ao tempo mítico em que esse gesto foi
carandá
Revista do Curso de Letras do Câmpus do Pantanal – UFMS,
Corumbá, MS, novembro 2011, n. 4, p. 60
revelado pela primeira vez. Essa abolição do tempo profano ocorre nos momentos dos rituais
ou das ações consideradas sagradas (alimentação, caça, pesca, guerra, dança,...). O tempo
restante é desprovido do significado primordial. Por isso, podemos dizer, de acordo com
afirmações de Eliade (1984, p. 51), que o homem primitivo não aceita bem a história e se
esforça para aboli-la periodicamente.
Neste momento de nossa reflexão, o que concluímos previamente é que uma visão
mítica do mundo e uma visão histórica se relacionam apenas por oposição. No entanto, outras
relações nos são apresentadas nos estudos de Eliade. Segundo ele (1984, p. 52), quando a
tradição ainda faz parte da concepção de mundo dos homens, os grandes soberanos da
História consideram-se imitadores dos heróis primordiais; assim ocorreria o processo de
transfiguração da História em mito, através do qual personagens históricas se transfigurariam
em personagens míticas. Neste caso estaríamos diante da “concepção de uma elite que
interpreta a história através de um mito” (Eliade, 1984, p. 53).
O que o autor defende é que uma personagem histórica só se mantém “viva” na
memória popular e inspira a imaginação poética na medida em que se aproxima e se identifica
com um modelo mítico; a personagem histórica se metamorfoseia em herói mítico. Sendo
assim, a memória coletiva seria a-histórica:
Para o homem arcaico, que vive no mundo ideal dos arquétipos, no qual o tempo
nunca revela a irreversibilidade histórica dos acontecimentos, a renovação periódica da vida
se dá pela expulsão dos males e pela confissão dos pecados. Essa necessidade de regeneração
periódica prova que, para essas sociedades primitivas, a memória histórica, desprovida de um
modelo arquetípico, é insuportável (Eliade, 1984, p. 90). Por isso, para obter a renovação do
tempo, esses povos primitivos conheciam e praticavam outros métodos, como os ritos de
construção, o início de um novo reinado, a consumação de um casamento, o nascimento de
uma criança.
As novas construções, por exemplo, reatualizavam também a cosmogonia. Todas as
espécies de construção eram reproduções do ato primordial da criação do mundo. O homem
volta ao momento do princípio para suprir sua necessidade de se regenerar; o tempo passado é
anulado e a história é abolida através do retorno contínuo ao tempo mítico da origem. Os
rituais de cura também envolvem a repetição da cosmogonia na medida em que requerem a
recitação do mito cosmogônico.
Como essência da concepção de mundo do homem arcaico está, portanto, a
necessidade de se renovar periodicamente anulando o tempo (Eliade, 1984, p. 100). Podemos
verificar uma recusa desse homem primitivo de se aceitar como “ser histórico”, de se
carandá
Revista do Curso de Letras do Câmpus do Pantanal – UFMS,
Corumbá, MS, novembro 2011, n. 4, p. 62
enquadrar numa visão de mundo que tome como base o tempo concreto dos acontecimentos
invulgares (sem modelo arquetípico). Esse homem anula o tempo, repetindo constantemente
os atos míticos e voltando periodicamente ao tempo mítico desses atos e vivendo, assim, num
presente contínuo.
Essa concepção cíclica em relação ao tempo se aplica também para o desaparecimento
e reaparecimento da humanidade. Acredita-se que as catástrofes nunca são definitivas e que o
homem precisa da morte para sua regeneração; assim, nada ocorre por conta do acaso –
profano –, tudo tem uma razão sagrada de ser.
Por isso, é mais provável que o desejo que o homem das sociedades
tradicionais tem de recusar a “história” e de se confirmar a uma imitação
constante dos arquétipos revele a sua sede do real e o seu pavor de se
“perder” ao deixar-se invadir pela insignificância da existência profana.
Pouco importa que as fórmulas e as imagens através das quais o “primitivo”
exprime a realidade nos pareçam ingênuas ou até ridículas. É o sentido
profundo do comportamento primitivo que é revelador: esse comportamento
rege-se pela crença numa realidade absoluta que se opõe ao mundo profano
das “irrealidades”; em última instância, aquele não é verdadeiramente um
“mundo”, mas o “irreal” por excelência, o não-criado, o não-existente, o
nada. (Eliade, 1984, p. 106).
Mesmo recusando a História, o homem arcaico não pode evitá-la, por isso tem que
conviver com catástrofes cósmicas, derrotas em guerras, injustiças sociais, desgraças pessoais.
Como encara e suporta então esses sofrimentos inevitáveis? Acreditando que cada sofrimento
tem um sentido, fosse qual fosse a sua causa e natureza (Eliade, 1984, p. 110).
Os povos primitivos acreditam que os sofrimentos sejam ação mágica de um inimigo,
resultado da infração a um tabu, expressão da cólera de um deus ou então vontade do Ser
Supremo. Sendo assim, os sofrimentos são compreensíveis e aceitáveis, porque não são
absurdos ou obra do acaso e porque aquele que sofre sabe que o sofrimento não é definitivo;
depois dele virão os “bons tempos”.
Os hebreus acreditavam que qualquer calamidade histórica que os afetava era um
castigo enviado por Deus (Iavé) para os reconduzir ao bom caminho e redobrar sua fé, ou
seja, os acontecimentos passaram a ganhar um significado religioso. É neste momento que,
pela primeira vez, os profetas valorizam a história, ultrapassando a visão tradicional do ciclo e
da eterna repetição, descobrindo um tempo com sentido único. Certamente, essa nova
concepção não foi aceita prontamente pelos judeus e as concepções antigas ainda se
mantiveram por bastante tempo. No entanto, podemos dizer que os Hebreus foram os
carandá
Revista do Curso de Letras do Câmpus do Pantanal – UFMS,
Corumbá, MS, novembro 2011, n. 4, p. 63
“moderno”, tentarei mostrar de que modo vejo essas duas reflexões se relacionarem. Para
isso, devemos considerar que as comunidades indígenas brasileiras 1 pertencem ao grupo que
Eliade denomina de “povos primitivos”, portanto suas concepções de mundo seriam
pertinentes àquelas desenvolvidas no tópico anterior como sendo características desses povos
arcaicos. E, nós, “os brancos civilizados”, somos pertencentes ao grupo dos “homens
modernos ou históricos” e possuiríamos, assim, suas respectivas peculiaridades – também
apresentadas no tópico anterior.
Sendo assim, poderíamos dizer que o que ocorre no cenário brasileiro é que o homem
arcaico está em contato com o homem moderno desde o descobrimento. No entanto, não
podemos afirmar que essa relação tenha sido admiravelmente harmônica. Pelo contrário, o
que aconteceu foi que o homem moderno, com sua concepção de mundo aparentemente
histórica, não soube assimilar, aceitar ou mesmo respeitar a visão de mundo mítica do
indígena/ primitivo.
No início, os indígenas eram a grande maioria, mas mesmo assim sua concepção de
mundo não prevaleceu, já que o homem branco/ moderno tinha a força da arma de fogo, da
religião, do idioma. Desta forma, mesmo que o índio tenha contribuído substancialmente para
a formação da cultura, da língua, enfim, para a formação da pátria brasileira, essa contribuição
não foi devidamente valorizada justamente pelo fato dos indígenas serem considerados pelos
brancos civilizados como gente inferior, cuja forma de pensar o mundo é atrasada e, de certo
modo, inconcebível para a sociedade moderna.
Assim, o que prevaleceu foi a maneira de pensar – que se supõe histórica, linear e
moderna – do homem branco, ficando os povos indígenas entregues à marginalização e
exclusão. Aqui, gostaria de retomar a estudiosa Linda Hutcheon que, em seu renomado texto
1
Acreditamos que essas considerações sejam pertinentes às comunidades indígenas em geral, no entanto, neste
trabalho as que nos interessam como objeto de estudo são especificamente as comunidades indígenas
brasileiras.
2
Deve ficar claro que, aqui, as autoras fazem uso do vocábulo “primitivo” com intenção pejorativa,
diferentemente do que faz Mircea Eliade ao classificar uma sociedade como “primitiva”.
carandá
Revista do Curso de Letras do Câmpus do Pantanal – UFMS,
Corumbá, MS, novembro 2011, n. 4, p. 66
de seus meios” (Almeida e Queiroz, 2004, P. 211). Foi então que o processo de escrita/
literatura indígena no Brasil se iniciou e vem se desenvolvendo como apresentamos no
primeiro tópico de nosso trabalho.
O que fez com que, historicamente, a voz escritural indígena não fosse ouvida até
pouco tempo foi o fato de sua matéria literária ser impedida de configurar uma literatura.
Todo o material que poderia constituir uma literatura indígena, se fosse escrito por um índio,
foi – indevidamente – apropriado pelo discurso do branco, catequista, lingüista, etnólogo,
antropólogo, agente nas aldeias (Almeida e Queiroz, 2004, p. 208-209) e transformado em
folclore, isto é, em literatura em suspensão (Almeida e Queiroz, 2004, p. 205).
a ser apresentado à sociedade civilizada a partir de seu próprio olhar de índio e através da
apropriação dos meios modernos, como o livro, por exemplo.
O que podemos perceber é que as concepções opostas de mundo, desenvolvidas por
Eliade e representadas aqui pelo indígena primitivo e pelo branco moderno, conviveram no
contexto brasileiro de forma paralela e, muitas vezes, até conflituosa. Com o surgimento do
processo de escrita/ literatura indígena, essas duas concepções passam a coexistir dentro de
uma mesma cultura – a do índio. E o branco, por sua vez, também tem diante de si uma nova
oportunidade de contemplar mais de perto uma forma predominantemente mítica de ver o
mundo e assimilar dela elementos que possam conviver mais harmonicamente com sua
própria forma de ver a vida.
A partir dessa coexistência da importância tanto do mito quanto da História, os
indígenas dividem suas narrativas em dois grandes grupos: as histórias de hoje e as histórias
de antigamente. As histórias de hoje são narrativas históricas, que tratam de fatos e
acontecimentos situados no presente atual, como por exemplo, a luta pela demarcação de
territórios. Esses textos narram, geralmente, o contato do índio com o homem branco, por isso
o predomínio do caráter histórico e linear das narrativas, bem como do modelo de autoria
individual.
Já as histórias de antigamente são narrativas originadas da oralidade performática e
mítica, que tratam de fatos e acontecimentos situados no “tempo de antigamente”, também
chamado de presente anterior ou tempo mítico, segundo Souza (s.d., on-line). Essas histórias
revelam o caráter arcaico, segundo a teoria de Eliade, dos povos indígenas, expressando como
os modelos arquetípicos são preservados como essência das comunidades. A autoria desses
textos é, em sua grande maioria, coletiva, o que mostra que o conteúdo deles faz parte do
legado de conhecimentos e concepção de mundo de toda a coletividade. No momento das
histórias de antigamente, tudo ainda estava sendo criado, por isso os seres não têm uma forma
definida, podendo se metamorfosear constantemente. No presente atual, por outro lado, cada
ser já possui sua forma definida e os processos de transformações cessaram.
Essas narrativas de origem mítica têm como objetivo a preservação das tradições
indígenas e a revalorização do passado através do mito. Os índios esperam mostrar – e
revalorizar –, através dos textos escritos, a “verdadeira” e ideal forma de viver, antes do
contato e da influência do branco. Esse processo, de alguma maneira, constitui uma crítica da
História e do progresso (Almeida e Queiroz, 2004, p. 228), assim como fazem as sociedades
carandá
Revista do Curso de Letras do Câmpus do Pantanal – UFMS,
Corumbá, MS, novembro 2011, n. 4, p. 69
Para os índios, os mitos permeiam a vida cotidiana, não como criação alheia
e alienadora, mas como base sobre a qual se desenvolvem as sabedorias,
como se houvesse, desde tempos imemoriais, vozes mestras que, hoje, e em
português, denominadas Tradição, ensinam ou contam como as coisas
devem ser. (Almeida e Queiroz, 2004, P. 235).
CONSIDERAÇÕES FINAIS:
de um mesmo ideal: manter viva a essência mítica das comunidades indígenas, inserindo-a
nas linhas literárias e históricas da sociedade do homem moderno.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
ALMEIDA, Maria Inês de; QUEIROZ, Sônia. Na captura da voz: As edições da narrativa oral no
Brasil. Belo Horizonte: A Autêntica; FALE/UFMG, 2004.
ELIADE, Mircea. O Mito do Eterno Retorno. São Paulo: Edições 70, 1984.
MUNDURUKU, Daniel. Literatura Indígena e o tênue fio entre escrita e oralidade, 2008. Disponível
em: <http://www.overmundo.com.br/overblog/literatura-indigena>. Acesso em: 08 jul. 2010.
SOUZA, Lynn Mario T. Menezes de. As visões da anaconda: a narrativa escrita indígena no Brasil,
2003. Revista Semear 7. Disponível em: <http://www.letras.puc-rio.br/catedra/revista/semiar_7.html>.
Acesso em: 18 jun. 2010.
SOUZA, Lynn Mario T. Menezes de. Uma outra história, a escrita indígena no Brasil, s.d. Disponível
em: <http://pib.socioambiental.org/pt/c/iniciativas-indigenas/autoria-indigena/uma-outra-historia,-a-
escrita-indigena-no-brasil>. Acesso em: 18 jun. 2010.
carandá
Revista do Curso de Letras do Câmpus do Pantanal – UFMS,
Corumbá, MS, novembro 2011, n. 4, p. 71
Abstract: When we consider the question of influence and assimilation in Latin American Literature
it’s always taken into account the supposed debt that the latin american writer has with the European
literature. By taking this into consideration we are giving a certificate of artistic inferiority to the latin
american writers. Latin literature can only be accused of being a copy of European literature if we are
not aware of the real meaning that the function of duplication has for Latin literature. This article aims
to show that the assimilation of European influence in the Americas did not occur passively, but rather
in a violent way, since the beginning of the colonial period when the colonizers came to the natives
catechism, until these days when the concepts of assimilation and influence take on new connotations.
For when we deal with assimilation and influence in Latin literature we have now the discussion of
national identity and difference.
1
Graduanda do curso de Letras (Habilitação em Língua Portuguesa) da Universidade Federal do Pará. Bolsista
PIBIC/CNPq pelo projeto “Tradução e Antropofagia em Haroldo de Campos”, orientado pela Profª. Drª.
Izabela Leal. Email: geovanna_marcela@yahoo.com.br
carandá
Revista do Curso de Letras do Câmpus do Pantanal – UFMS,
Corumbá, MS, novembro 2011, n. 4, p. 72
houvesse a representação dos símbolos cristãos que eles desconheciam, enquanto que para os
europeus era mais pertinente a conversão milagrosa passiva dos credos religiosos cristãos.
Pensando nisso, na melhor assimilação da religião cristã pelos indígenas, o padre
jesuíta José de Anchieta volta a sua poesia para a função catequética, que se realizava através
da conversão dos símbolos tupis para facilitar a aproximação do índio do imaginário europeu.
Anchieta não faz apenas a conversão lingüística como também faz a conversão religiosa. Na
aculturação lingüística os signos indígenas são usados para escrever a catequese através das
homologias, o que significa traduzir a cultura do outro através de elementos da sua própria. E
é a partir desse processo, e de muitos outros de assimilação, que a doutrina e língua europeia
dominaram o pensamento selvagem. É como afirma Santiago: “Pouco a pouco as
representações [...] propõem uma substituição definitiva e inexorável: de agora em diante na
nova terra o código lingüístico e o código religioso se encontram intimamente ligados.”
(SANTIAGO, 1978, p.16).
Essa mesma ligação ocasionou de forma drástica a perda, para os indígenas, de sua
língua e de seu sistema sagrado devido à troca que foi feita pelos europeus dos dois principais
sistemas: lingüístico e religioso. A imposição dos valores europeus faz a América Latina se
transformar, num certo sentido, numa cópia da metrópole colonizadora, que nesse caso é a
Europa. Isto é ocasionado pois a América não possui os padrões culturais iguais aos dos
países do Velho Mundo.
É ressaltado por Santiago que o poder colonialista ampara-se na base do uno, ou seja,
na noção de apenas uma única língua, um único rei e único Deus. Entretanto, com o
colonialismo, é formada uma nova sociedade: a dos mestiços. É a partir da idéia de
mestiçagem que não podemos associar à América Latina uma cultura metropolitana e
homogênea, mas sim uma cultura universal e heterogênea.
A mestiçagem das culturas europeia e latina fez com que a América Latina fosse vista
como uma civilização assimiladora que não pode impedir a entrada das influências
estrangeiras e, tampouco, pode fechar-se em si mesma. Para que os povos latino-americanos
fossem nacionais eles deveriam ser, até certo ponto, universais. É por esse motivo que ocorre
a abertura ao que vem de fora. Essa noção entra plenamente em contato com o que diz Leyla
Perrone-Moisés: “sem abertura, nenhuma cultura, nenhuma literatura pode existir” (MOISÉS,
1990, p. 96).
Com o processo de mestiçagem, os códigos lingüísticos e religiosos que nos foram
impostos pelos colonizadores sofreram uma metamorfose e, em decorrência disso, perderam a
carandá
Revista do Curso de Letras do Câmpus do Pantanal – UFMS,
Corumbá, MS, novembro 2011, n. 4, p. 73
sua suposta pureza e integridade. A destruição da unidade e pureza dos europeus, por
ocasionar um desvio da norma que era a representação de um certo padrão imutável, foi o
maior trunfo da América Latina para a sua inserção no mapa da civilização ocidental. Isso
torna necessária a substituição do modelo das influências, que se prende ao passado e
inferioriza os padrões culturais latinos por buscarem e contraírem dívidas com/em outras
obras por um novo modelo que negligenciará esses pormenores, estabelecendo como ponto
único o valor crítico da diferença.
Haroldo de Campos, em seu ensaio “Da Razão Antropofágica: Diálogo e Diferença na
Cultura Brasileira”, toma a diferença como sinônimo do nacional, isto é, como sendo aquilo
que caracteriza justamente a heterogeneidade da cultura brasileira. É como ele diz: “A
diferença podia agora pensar-se como fundadora” (CAMPOS, 1992, p. 247). Para
compreendermos melhor a teoria haroldiana da diferença como o nacional, devemos sair do
campo cultural e adentrar no campo literário, pois Haroldo de Campos valoriza a diferença
como sendo o fator fundador da literatura latina em geral, e da brasileira, em particular,
porque é através dela que temos o nacional, a explicação e a visão do caminho percorrido pela
literatura através da historia.
Isso poderá ser pensado e entendido, por exemplo, através da já tão falada
Antropofagia cultural de Oswald de Andrade, que tem em Haroldo de Campos um de seus
grandes entusiastas. Para Campos, a antropofagia não pode ser apenas compreendida no
contexto brasileiro, pois a antropofagia é um processo universal e violento de assimilação
daquilo que é exterior, pois é com ela que há a tomada de uma visão crítica sobre a história
nacional da literatura latina e do lugar de diferença que esta deveria assumir perante a
literatura européia.
O “Manifesto Antropófago”, quando é lançado por Oswald de Andrade, defende a
criação de uma poesia simples e local e, o mais importante, a criação de uma literatura que
não fosse cópia de nenhuma outra. Oswald queria uma literatura que fosse criativa, criadora e,
nas palavras de Audemaro Goulart e Oscar da Silva (1976), surpreendente. E é isso o que
fazem alguns romances latino-americanos, tais como Macunaíma, quando nos mostram toda a
heterogeneidade decorrente do encontro das várias linguagens pertencentes à história do início
das Américas. Essas linguagens são as indígenas, negras, mamelucas e européias, que ao se
encontrarem nas obras latinas tornam-se dinâmicas. É como diz Carlos Fuentes:
carandá
Revista do Curso de Letras do Câmpus do Pantanal – UFMS,
Corumbá, MS, novembro 2011, n. 4, p. 74
Para tornar essas linguagens dinâmicas foi necessário da parte da literatura latina o
mesmo que foi necessário da parte de sua cultura: a literatura latina também abriu as suas
portas àquilo que vinha de fora. Dessa maneira ela se torna uma literatura assimiladora de
quase tudo aquilo que é bom e pertinente para a sua constituição como uma literatura
nacional. E é partindo desse processo de assimilação que temos o início do chamado processo
Antropofágico cultural proposto por Oswald de Andrade em 1928. “A antropofagia é antes de
tudo o desejo do Outro, a abertura e a receptividade ao alheio, desembocando na devoração e
na absorção da alteridade” (MOISÉS, 1990, p.95)
Tomemos de forma geral a Antropofagia cultural, que é um conceito que pode ser
levado além das fronteiras do Brasil, o seu país de origem. A antropofagia oswaldiana assume
não aquela imagem do bom selvagem que recebe tudo passivamente do colonizador, mas sim
aquela do selvagem antropofágico, devorador e canibal que escolhe o devorado por suas
virtudes, força e coragem. A escolha do mal selvagem é a explicação de que essa apropriação
de outra cultura não se dá da forma passiva como ocorria antigamente, mais especificamente,
nos romances indianistas brasileiros, principalmente nos romances de José de Alencar, onde
as culturas européias e indígenas se encontram e o indígena assimila a cultura europeia de
forma passiva, submetendo-se ao europeu colonizador de modo espontâneo e sublime. O mal
selvagem, por sua vez, nos ensina que o encontro entre culturas se dá com a violência e
destruição de ambas as partes envolvidas no processo.
Alfredo Bosi, em seu Dialética da Colonização, no capítulo “Um mito sacrificial: O
indianismo de Alencar”, diz que no período romântico do século XIX havia a necessidade de
se ressuscitar o passado das origens nacionais, tanto no romantismo europeu quanto no
romantismo americano. Especificamente no caso brasileiro, o escolhido para tão importante
papel foi o indígena. Bosi observa que no início do XIX a América estava vivendo um
momento de forte tensão entre as colônias e suas respectivas metrópoles, que resultou na
oposição entre os dois lados que defendiam os seus próprios interesses: a colônia levantava a
bandeira da sua independência, enquanto a metrópole resistia em aceitar a liberdade de sua
colônia. De acordo com esse panorama histórico, Bosi esperava que o retrato do índio, nos
carandá
Revista do Curso de Letras do Câmpus do Pantanal – UFMS,
Corumbá, MS, novembro 2011, n. 4, p. 75
O que deve ser levado em conta na obra de um autor não é sua nacionalidade ou
influência e sim, como diz Carlos Fuentes, a comunicabilidade da sua linguagem e a
qualidade de sua imaginação. As verdadeiras e importantes qualidades em um autor são
linguagem e imaginação. Ao falar sobre as duas como sendo essenciais na obra de um
determinado autor, Carlos Fuentes intertextualiza-se mutuamente com Ezra Pound, quando
este diz que sem a imaginação e a linguagem do escritor as nações perderiam a sua fala e
idioma. Fuentes e Pound defendem a literatura como um precioso tesouro de uma nação e
país. Portanto, a literatura latino-americana não pode e nem poderia fechar-se em si mesma,
pois o processo de troca entre as culturas é essencial. As culturas, ou melhor, as sociedades
não são homogêneas. Caso ocorresse o isolamento e o fechamento da América Latina àquilo
que vinha de fora poderíamos imaginar que a literatura latina ficaria estagnada, sofreria um
tipo de asfixia pela falta de contato com o outro, com o que vem de fora.
Temos que levar em consideração que não podemos criar algo a partir do nada em
termos literários e, além do mais, não podemos apagar o nosso passado de povos colonizados,
mesmo que ele tenha sido cruel. Não devemos ter medo de assumir nossas influências, pois
até as literaturas metropolitanas que “são vistas como ameaçadoras de uma identidade
nacional (...)” (MOISÉS, 1990, p. 98) também sofreram influência de outras literaturas
anteriores a ela. E até os grandes nomes da literatura foram inspirados por outros grandes
nomes da literatura.
REFERÊNCIAS
ANDRADE, Mário de. Macunaíma: o herói sem nenhum caráter. São Paulo: Martins. 7° edição,
1972.
ANDRADE, Oswald de. “Manifesto Antropófago”. Acessado em: 04/ 02/2011, 18:09.
http://www.lumiarte.com/luardeoutono/oswald/manifantropof.html.
BOSI, Alfredo. “Um mito sacrificial: O indianismo de Alencar”. In: Dialética da Colonização. São
Paulo: Companhia das Letras, 1992, p.176-193.
CAMPOS, Haroldo de. “Da Razão antropofágica: Diálogo e diferença na cultura Brasileira” In:
Metalinguagem e outras metas. São Paulo: Perspectiva, 1992, p. 231-255.
FUENTES. Carlos. “O Romance Morreu?”. In: Geografia do Romance. Tradução: Carlos Nougué.
Rio de Janeiro: Rocco, 2007, p. 9-33.
GOULART, Ademaro; SILVA, Oscar da. Estudo Orientado de Língua e Literatura. São Paulo: Ed. do
Brasil. 3° edição. 1976.
MOISÉS, Leyla Perrone. “Literatura Comparada, Intertexto e Antropofagia”. In Flores da
Escrivaninha: Ensaios. São Paulo: Companhia das Letras, 1990, p.91-99
carandá
Revista do Curso de Letras do Câmpus do Pantanal – UFMS,
Corumbá, MS, novembro 2011, n. 4, p. 77
POUND, Ezra. ABC da Literatura. Tradução: Augusto de Campos e José Paulo Paes. São Paulo:
Cultrix, 1990.
SANTIAGO, Silviano. “O entre lugar do discurso latino americano”. In: Uma Literatura nos
Trópicos: ensaios sobre dependência cultural. Perspectiva. São Paulo. 1978.
carandá
Revista do Curso de Letras do Câmpus do Pantanal – UFMS,
Corumbá, MS, novembro 2011, n. 4, p. 78
RESUMO: Samuel Beckett fez uma carreira acadêmica breve, seu livro Proust, de 1931,
marca o final deste período como professor e aponta para uma estética embrionária já em
plena gestação. Deste modo, nesta crítica ao romance Em busca do tempo perdido, podemos
notar que as considerações de Beckett extravasam as fronteiras de uma simples recepção para,
em alguns momentos, assumir a forma de prenúncios de uma estética própria. Com base nesta
intuição, este artigo procura discutir e discernir os pontos de contato e dispersão do crítico
com o seu objeto, além de aproximar tais indícios de criação com o monólogo A última
gravação, de 1958. Para tanto, alguns dispositivos da teoria literária são requisitados para a
caracterização da corrosão temporal que age sobre as criaturas de ambas as obras, que tomam
o passado como foco de seu desenvolvimento. Para a compreensão e legitimação do cotejo
realizado, isto é, entre romance e drama, neste estudo serão desenvolvidos, sucintamente,
alguns apontamentos sobre a crise do drama moderno, tal como a definiu Peter Szondi na
Teoria do drama moderno.
ABSTRACT: Samuel Beckett had a short academic career; his book Proust, 1931, marks the
final of this period as a teacher and points to an embryonic aesthetical in full pregnancy. So,
in this criticism to novel In Search for lost time, we may notice that Beckett considerations
overpass the frontiers of a simple reception for, in some moments, it assumes the form of
prediction of a proper aesthetics. Based on this intuition, this paper attempts to discuss and
discern matching points and scatteration of the critic with his object, besides approaching
such indexes of creation along with monologue Krapp’s last tape of 1958. For that much,
some devices of literary theory are requested for the characterization of the temporal
corrosion which works over the characters of either works, that take past as focus of its
development. For the understanding and legitimateness of the confrontation made, that is to
say, between novel and drama, we will briefly developed in this study some notes regarding
about crisis of modern drama, as defined by Peter Szondi in Theory of the modern drama.
1
Graduado pela UFOP em licenciatura em Língua Portuguesa, atualmente cursa o bacharelado em Estudos
Literários nesta mesma instituição, estudando a obra de Samuel Beckett. Este artigo integra os resultados
parciais da iniciação científica “Tempo em camadas: Krapp’s last tape e o dominante romanesco”, realizada
com subsídios da Fundação de Amparo à Pesquisa de Minas Gerais (FAPEMIG). Contato:
jaainda@yahoo.com.br
carandá
Revista do Curso de Letras do Câmpus do Pantanal – UFMS,
Corumbá, MS, novembro 2011, n. 4, p. 79
embrionária do que viria a ser a sua própria obra. Esta crítica literária sintomatiza, pois, a
busca de Beckett por postulados estéticos próprios em um trabalho que transborda frente à
simples tarefa de uma resenha acadêmica, em que a interpretação subjuga a criação. É a partir
desta ressonância da obra do crítico no texto criticado que discutirei como Beckett, ao ler
Proust, aponta para o estilhaçamento do sujeito romanesco que - ao ser despedaçado pelo
tempo – se torna estranho para si mesmo nos diferentes momentos narrativos, dispersado em
camadas irreconciliáveis. Tal concepção crítica será seminal para a configuração madura de
Samuel Beckett, exemplificada aqui no drama A Última gravação.
Com efeito, neste artigo pretende-se pontuar algumas distinções entre as formulações
teóricas de Samuel Beckett e o romance que lhe serve de objeto, com o intuito de assinalar
como algumas destas considerações se avizinham mais da obra do próprio crítico do que do
autor criticado. Desta forma, serão retomados alguns conceitos consagrados da teoria literária
para melhor caracterizar e, posteriormente, distinguir as diferentes ações corrosivas do tempo
sobre as criaturas de Beckett e Proust. Faz-se necessário, por conseguinte, algumas reflexões
acerca do caráter de dominante do romance frente às configurações do drama moderno, para
que se entenda como a sobredeterminação estrutural romanesca afeta as formas da
dramaturgia de Samuel Beckett.
Logo no início do livro Proust, Beckett coloca o tempo como a clave que designa a
multiplicidade e o perspectivismo na obra Em busca do tempo perdido, tempo do qual as
criaturas são vítimas e ao qual se encontram subordinadas, pois, para Beckett,
não há como fugir das horas e dos dias. Nem do amanhã nem de
ontem. Não há como fugir de ontem porque ontem nos deformou, ou
foi por nós deformado. O estado emocional é irrelevante. Sobreveio
uma deformação. Ontem não é um marco de estrada ultrapassado, mas
um diamante na estrada batida dos anos e irremediavelmente parte de
nós, dentro de nós, pesado e perigoso. Não estamos mais cansados por
causa de ontem, somos outros, não mais o que éramos antes da
calamidade de ontem. (BECKETT, 2003, p.11.)
irremediavelmente a fazer parte de nós, dentro de nós, pesado e perigoso. Apesar disto - mas
vale ressaltar que logo em seguida -, já “não estamos mais cansados por causa de ontem,
somos outros”, ou seja, o passado indestrutível da frase anterior, inultrapassável, não nos pesa
mais hoje; haja vista que, de alguma forma, não somos os mesmos, pois neste breve período
de tempo nos tornamos diferentes daqueles “que éramos antes da calamidade de ontem.” A
corrosão contemplada, que se dá praticamente ao vivo nesta citação, exerce uma força de
tamanha violência que beira o paradoxo, em que se contrapõe o passado indelével ao
esquecimento fruto da ação do tempo, que transforma os sujeitos em um movimento rápido e
implacável, deslocando o passado para as outras camadas da subjetividade.
Erich Auerbach estabelece a concepção de personagens dispostas em camadas em seu
célebre livro Mimesis, no capítulo “A cicatriz de Ulisses”, ao confrontar as narrativas
homéricas às narrativas bíblicas. Para Auerbach, Homero configurou fenômenos em suas
narrativas que sempre ocorrem em primeiro plano, dispostos em pleno presente espacial e
temporal, sem a possibilidade de diferentes perspectivas - apenas em uma camada, portanto.
Assim, é do estilo homérico:
O sujeito, segundo Beckett, morre várias vezes antes que consiga chegar a qualquer
realização, de maneira que esta morte não significa sua destruição ou aniquilação completa. A
morte, tal como vista aqui, tem um efeito contrário ao do simples falecimento, uma vez que
ela estilhaça e cria novas perspectivas de um mesmo sujeito, diferente de si mesmo nos
diversos períodos de sua vida, possibilitando inclusive que Beckett faça sua divisão em sujeito
“A” e sujeito “B”. Por conseguinte, este estilhaçamento da subjetividade se dá por um
esfacelar de sua unidade em vários pedaços irreconciliáveis, cada um estranho ao outro, mas
mesmo assim partes de um todo, no qual pesa o passado concomitantemente com a sua
suspensão ocasionada pelo esquecimento. A realização, considerada como a identificação do
sujeito com o objeto de seu desejo, pode ser vista desta forma como um ponto aglutinador
para o qual converge uma subjetividade movediça e disposta em camadas. Este ponto, uma
vez alcançado, não corresponde ao resultado almejado pela subjetividade originária que
tomou o impulso rumo ao seu objeto de desejo, já que esta se encontra deslocada e sobreposta
pela superfície cambiante do sujeito.
O hábito figura em Proust como a anestesia que acompanha a corrosão dos sujeitos, o
antídoto com o qual os sofrimentos do passado são automatizados e esquecidos. A respeito do
hábito, afirma Beckett:
1
Embora na edição brasileira o termo empregado em oposição à “automatização” tenha sido traduzido como
“singularização”, neste trabalho usarei a palavra “desautomatização” para precisar a oposição existente os
conceitos.
carandá
Revista do Curso de Letras do Câmpus do Pantanal – UFMS,
Corumbá, MS, novembro 2011, n. 4, p. 84
Mas essa aparência nunca durava muito; ao cabo de alguns dias aquele
olhar brilhante e falso ia perdendo o fulgor e a duplicidade, aquela
imagem de uma Odette execrada dizendo a Forcheville: “Como ele
está furioso, hem!”, começava a empalidecer, a apagar-se. Então,
carandá
Revista do Curso de Letras do Câmpus do Pantanal – UFMS,
Corumbá, MS, novembro 2011, n. 4, p. 85
No trecho acima, o narrador de Proust toma consciência de que não poderá escapar da
automatização provocada pelo hábito, e passa a compreender que a automatização permitirá
tanto o acalento da morte de seus entes queridos, quanto o esquecimento do sofrimento
consequente de cada uma delas. Além disso, demonstra como esta subjetividade, ao se
encontrar livre dos grilhões do hábito, consegue se desautomatizar e pensar sobre a ação da
automatização sobre si mesma, em uma reflexão prospectiva que delineia a superação dos
sofrimentos futuros, isto é, a perda não só dos objetos de sua feição, mas também da própria
feição a estes objetos irrecuperáveis.
carandá
Revista do Curso de Letras do Câmpus do Pantanal – UFMS,
Corumbá, MS, novembro 2011, n. 4, p. 86
A memória, em Proust, também se liga ao hábito, uma vez que “o homem de boa
memória nunca se lembra de nada, porque nunca esquece de nada. Sua memória é uniforme,
uma criatura de rotina, simultaneamente condição e função de seu hábito impecável, um
instrumento de referência e não de descoberta.” (BECKETT, 2003, p.29). Desta forma, a
memória voluntária é a reminiscência daquilo que parece constante e passível de controle por
parte do sujeito, que lhe aplica o protocolo rotineiro nas rememorações conscientes. Esta
forma de memória é construída pela sustentabilidade do hábito e pelo esforço de apreensão da
realidade, com o intuito de capturar aquilo que parece útil ao sujeito.
Por isso, a curiosidade, segundo Beckett, é um reflexo não condicionado, que em suas
manifestações mais primitivas é uma reação a estímulos perigosos: “a curiosidade é a
salvaguarda, não a morte do gato, esteja ele à beira do telhado ou à frente da lareira.”
(BECKETT, 2003, p.30). Portanto, a curiosidade tem uma aplicabilidade utilitária e
automatizante para o sujeito. Beckett coloca a curiosidade em cena para demonstrar como os
registros da memória relacionam-se diretamente com o empenho de atenção do sujeito, pois
“quanto mais comprometido nosso interesse, mais indeletável o registro de suas impressões.”
(BECKETT, 2003, p.30). Em contrapartida, os momentos de distração não se submetem às
leis da rememoração, nem às leis do hábito, mas ainda assim são armazenados naquele último
e inacessível calabouço de nosso ser. É neste reduto inacessível que Beckett acredita estar
armazenada
Szondi na obra Samuel Beckett, por isso o escopo do teórico será ampliado ao discutirmos a
crise do drama moderno ainda em vigor na peça A última gravação, de 1958.
Em A última gravação, a história de Krapp emerge por intermédio de registros feitos
em outros tempos. Este protagonista – velho, esfarrapado, bêbado e debilitado fisicamente -,
apresenta reações dúbias aos acontecimentos por ele gravados, ora rechaçando-os
violentamente, ora tomando-os como certos. Assim, incapaz de narrar o curso de vida e de se
posicionar definitivamente frente às rememorações daquele que fora outrora, Krapp é
impotente tanto ao acerto de contas a que se propõe, em uma espécie de contabilidade de sua
vida, quanto a uma ação no presente, que modifique o decurso do presente cênico. Portanto,
Krapp, assim como o narrador de Proust, está no encalço do tempo perdido, em pleno
abandono do presente para uma busca nas profundezas do passado. Com isso, a atualidade
cênica encontra-se marcada pela esterilidade de acontecimentos, dando a sensação de
paralisia, visto que de fato nada acontece, pois tudo já aconteceu no passado de Krapp. Esta
anomalia cênica, de um drama que não se passa diante dos expectadores, mas que está
encarcerado na subjetividade do protagonista ou em um tempo distante, decorre da
assimilação do épico no drama moderno, isto é, das premissas estruturais romanescas na
dramaturgia de Samuel Beckett.
Nos Cursos de estética, Hegel apontou o romance como o legítimo representante da
arte romântica. Para Hegel, a arte romântica pode ser caracterizada, de maneira sintética, pela
configuração da subjetividade infinita e pela incorporação do elemento contingente em suas
formas. A subjetividade infinita desenvolve-se fechada em si mesma, sem uma conexão
essencial com o mundo que lhe circunda, ou seja, o que as subjetividades românticas
executam, suas finalidades e ações partem somente de sua individualidade, “são estes ânimos
substanciais que encerram em si mesmo uma totalidade, mas em sua densidade simples eles
realizam cada movimento profundo apenas neles mesmos, sem desenvolvimento e explicação
para fora.” (HEGEL, 2000, p.316). Enquanto totalidade, cada subjetividade encerra um
mundo completo e fechado, desta forma as subjetividades do romantismo estão desatadas do
mundo circundante. Por isso seus movimentos se desencadeiam sem a ignição exterior, de
forma que nem mesmo há explicitação ou justificação destes movimentos na efetividade.
Como exemplo, podemos retomar o que acontece com o narrador do romance de Proust no
episódio do hotel: a sua angústia nasce apenas de seu estranhamento ao ambiente não familiar,
uma vez que ele é tomado pelo desespero sem qualquer acontecimento efetivo na realidade.
Além disso, sua subjetividade consegue desdobrar-se sobre si mesma e dar contornos à sua
carandá
Revista do Curso de Letras do Câmpus do Pantanal – UFMS,
Corumbá, MS, novembro 2011, n. 4, p. 89
futura e inescapável conformidade com as tragédias vindouras, que de fato ainda não
aconteceram; desta forma, a subjetividade infinita do narrador proustiano fornece a causa da
ação romanesca, sustenta o movimento em si mesma, além de refletir a respeito de sua própria
condição, aprofundando-se, deste modo, no infinito de seu ânimo, sem o esgotamento de seu
interior nas representações romanescas.
O exterior, na arte romântica, também alcança liberdade para mover-se por si mesmo,
alheio à subjetividade. Neste mundo prosaico as ações podem se apresentar as mais triviais ao
mesmo tempo em que podem desencadear um movimento profundo e autônomo na
subjetividade. O mundo romanesco nasce como lugar estranho ao sujeito desde seu início em
Dom Quixote, como espaço em que a vontade da personagem encontra apenas resistência e
inadequação: “pois cada um encontra diante de si um mundo encantado, para ele
completamente inapropriado, o qual ele deve combater, pois este mundo fecha-se para ele e
em sua firmeza áspera não cede às paixões, mas impõe a vontade de um pai, de uma tia, das
relações civis etc.” (HEGEL, 2000, p. 328). Samuel Beckett, representante característico do
drama épico, configura o mundo contingente do romance em sua esterilidade absoluta e literal
por meio da representação do deserto natural ou de espaços que retratam a devastação humana
e seus despojos em suas peças centrais como Esperando por Godot, Fim de partida e Dias
felizes.
A capacidade de configurar a dissonância do mundo, e de incorporar às suas
configurações todas as outras formas, torna o romance o gênero moderno por excelência. Com
isso, suas formas emergem como o “dominante” frente às configurações do drama, que sofre
o contágio das premissas estruturais romanescas em sua produção moderna, período da crise
de suas formas. O conceito de “dominante”, segundo Roman Jakobson, pode ser visto como
“sendo o centro de enfoque de um trabalho artístico: ele regulamenta, determina e transforma
os seus outros componentes.” (JAKOBSON, 2002, p.513). Em uma dimensão maior, isto é,
como determinante da arte de uma época, o dominante pode definir e modificar
substancialmente a série de valores culturais dos trabalhos artísticos comparados aos trabalhos
de outras épocas.
A sobredeterminação do romance nas configurações do drama moderno toma relevo
na Teoria do drama moderno, obra na qual a crise do drama pode ser lida como a inexorável
emersão do elemento épico na dramaturgia moderna. Neste livro, Peter Szondi demonstra
como o drama moderno assimila a cisão do sujeito com o seu mundo, incorporando
características romanescas que se tornam problemáticas para a representação cênica. No
carandá
Revista do Curso de Letras do Câmpus do Pantanal – UFMS,
Corumbá, MS, novembro 2011, n. 4, p. 90
Assim, o drama que a princípio configurava apenas o presente em suas formas, com
intuito de dramatizar determinada narrativa, assimila o passado romanesco. Contudo, este
passado, devido à essência do drama, não avança abarcando o passar do tempo, pois o
passado dramático é possível somente enquanto relato “sobre” o tempo, uma vez que cabe
unicamente ao romance focar diferentes épocas em suas configurações. Logo, o drama
assimila o passado como narrativa acabada e encerrada, que se realiza não pela efetivação
cênica, mas pelo seu resgate à cena através das subjetividades das personagens, que
abandonam suas ações presentes para se entregarem às rememorações de acontecimentos que
justifiquem sua situação na atualidade cênica.
Neste ponto, com incorporação do passado no drama, podemos discutir o quanto a
crítica de Samuel Beckett serve de prenúncio estético, em considerações que às vezes
derrapam em contato com o seu objeto. Pois, se por um lado, em Proust as diferentes camadas
de seu narrador conseguem atar de fato o presente ao passado, na construção de pontes
carandá
Revista do Curso de Letras do Câmpus do Pantanal – UFMS,
Corumbá, MS, novembro 2011, n. 4, p. 91
memorialísticas, ou até mesmo criar antevisões do futuro, que dão acesso a qualquer tempo
dentro do romance, por outro lado, as considerações de Samuel Beckett sobre uma corrosão
violenta, na qual o sujeito a cada momento torna-se outro, estranho a si mesmo, encontram
certa contestabilidade. Isso porque o sujeito narrativo proustiano consegue manter uma
unidade subjetiva, mesmo que modificada. Quando uma memória se assoma em seu
horizonte, ele a reconhece como uma extensão de seu ser. O contrário pode ser vislumbrado
em A última gravação, pois o sujeito de anos atrás que é escutado na gravação, é um outro, de
familiaridade discutível para a criatura do presente:
A Fita
A Fita
Krapp não consegue se lembrar do que foi a viuvez de sua mãe, e no intuito de
compreender do que se trata, consulta o dicionário. Desta forma, a personagem mostra-se
incapaz de concatenar assim os fatos mais relevantes de sua vida com o presente. Por
conseguinte, Beckett, ao pensar sobre a dicotomia radical entre passado/esquecimento na obra
de Proust, constrói um pensamento que soa como um eufemismo se projetado na obra Em
carandá
Revista do Curso de Letras do Câmpus do Pantanal – UFMS,
Corumbá, MS, novembro 2011, n. 4, p. 93
busca do tempo perdido, mas que por outro lado adéqua-se muito bem a sua própria criação.
Continua a citação:
Krapp
(lendo o dicionário)
- Estado – ou condição – de quem é – ou permanece viúvo – ou viúva.
(Levanta a cabeça. Intrigado). Quem é – ou permanece?... (Pausa.
Inclina-se de novo sobre o dicionário, volta as páginas). Viúvo...
viúvo... viuvez (Lendo). Os véus espessos da viuvez... Diz-se de um
animal, particularmente de um pássaro... Viùvinha ou viúva... A
plumagem negra dos machos... (Levanta a cabeça. Com deleite).
A viùvinha!
(Ibidem)
Krapp
O trecho acima condensa duas diferentes camadas de Legrandin: uma na qual emerge
espontaneamente o esnobe Legrandin, e que é mantida oculta no fundo da própria
personagem, que sabe da inconveniência de suas opiniões; e outra, a qual é conhecida pelo
narrador como um bom conservador, que busca remediar a sensação dissonante causada pela
sua impulsividade. Assim, encontramos a sobreposição destas camadas em frases que
desenvolvem a contradição das camadas simultaneamente. O poder de articulação do qual se
serve o narrador de Proust evidencia-se na reflexão que procura atenuar o movimento em
falso dado por Legrandin ao deixar emergir sua faceta esnobe. Vemos que neste romance
ainda é possível convergir o pensamento de subjetividades cindidas para a expressão da
corrosão da personagem, que mesmo disposta em diferentes camadas, ainda consegue tornar o
resultado de sua composição heterogênea exprimível. Deste modo, o distanciamento crítico de
Legrandin consegue enlaçar uma dissonância presente em sua subjetividade e remediá-la na
medida do possível. As frases de Proust comportam as dissonâncias, o distanciamento crítico
e as observações de seu narrador em grandes períodos que parecem abarcar tudo a sua volta e
dentro de si mesmo.
Samuel Beckett não nos apresenta uma obra crítica incoerente em Proust, mas um
ímpeto criativo em germinação que transborda frente ao seu objeto. Pois a potência de sua
própria estética, que foi concretizada de fato anos mais tarde, parece ter impregnado a crítica
acerca de Proust a tal ponto que podemos voltá-la à sua própria obra, ou decompô-la em
pontos nos quais o objeto de sua análise escapa ao radicalismo de suas considerações. Não por
acaso este livro assinala a renúncia de seu esforço docente para a dedicação à criação de sua
própria obra, isto é, o abandono da simples recepção para a criação de uma obra única e
incontornável na história da literatura.
carandá
Revista do Curso de Letras do Câmpus do Pantanal – UFMS,
Corumbá, MS, novembro 2011, n. 4, p. 96
Referências
_____. Esperando por Godot. São Paulo: Cosac & Naify, 2005.
EIKHENBAUM, Boris. et al. Teoria da literatura: formalistas russos. Porto Alegre: Editora Globo,
1978.
HEGEL, G. W. F. Cursos de Estética. 4vols. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2000.
JAMESON, Fredric. Modernidade singular: ensaio sobre a ontologia do presente. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 2005.
JAKOBSON, Roman. O dominante. In: LIMA, Luiz Costa. Teoria da literatura em suas fontes. 2vols.
Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002.
PROUST, Marcel. Em busca do tempo perdido. 7vols. São Paulo: Globo, 2006.
SZONDI, Peter. Teoria do drama moderno (1880-1950). São Paulo: Cosac Naify Edições, 2003.
carandá
Revista do Curso de Letras do Câmpus do Pantanal – UFMS,
Corumbá, MS, novembro 2011, n. 4, p. 97
Resumo: Este trabalho apresenta uma análise do conto A dama do lotação, de autoria de Nelson
Rodrigues, de modo a observar como a temática amorosa foi explorada pelo autor em um contexto
moderno que perpassava por profundas alterações comportamentais. O conto extraído da coluna A
vida como ela é..., do extinto jornal Última Hora, aborda um assunto recorrente em suas quase duas
mil histórias: traição. Do casamento pautado nos moldes tradicionais até à liberdade sexual vivenciada
pela protagonista do enredo, encontramos a crítica Rodriguiana ao florescer de uma revolução sexual
que defendia igualdade entre os sexos. Solange, a “dama” do lotação, será retratada pelo autor como
uma mulher dúbia, capaz de manter uma conduta em casa e, outra, na rua.
Abstract: This paper presents an analysis of the short story A dama do lotação, written by
Nelson Rodrigues. The author discusses how the theme of love has been explored in a modern
context that pervaded by profound behavioral changes. The tale drawn from Última Hora newspaper
column, A vida como ela é ..., discusses the reoccurring theme of treason in his nearly two thousand of
his stories. Wedding lined up along traditional lines for sexual freedom experienced by the
protagonist of the plot, we find the critical Rodriguean, the blossoming of a sexual revolution
that advocated gender equality. Solange, the "lady" of the stocking, will be portrayed by the
author as a dubious woman, able to maintain proper conduct at home and another type of conduct on
the street.
1
Mestre em Literatura e Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Literatura e Cultura da Universidade
Federal da Bahia. Professora de Literatura Brasileira da União Metropolitana de Educação.
andreaborde@hotmail.com
carandá
Revista do Curso de Letras do Câmpus do Pantanal – UFMS,
Corumbá, MS, novembro 2011, n. 4, p. 98
de sua esposa. Dias após o “incidente”, ele encontra seu amigo Assunção na rua e este conta
que havia se encontrado, por acaso, com Solange, precisamente dentro de um lotação.
Intrigado com a situação, Carlinhos mente e afirma que a esposa já havia lhe contado sobre o
encontro. Em casa, questiona a mulher se ela teria visto Assunção por aqueles dias e ela,
entretida em pintar as unhas, afirma que não via o tal amigo há algum tempo. Carlinhos
dirige-se para o escritório da casa, saca uma arma e chama Solange aos berros para uma
conversa. Após trancar a porta, tem início um diálogo intimidador – através da presença da
arma –, e ele lança uma pista falsa para sua esposa, afirmando que já sabia de todo o seu caso
com Assunção. Ela, “até então passiva e apenas espantada” (RODRIGUES, 1992, p. 221),
tenta negar a suposta traição, mas quando Carlinhos ameaça matar o amigo como forma de
vingança, Solange, desesperada, se agarra ao marido e confessa que Assunção não era o
único; existiam mais amantes. Assim, a esposa começa a confessar o que fazia cotidianamente
dentro dos lotações, afirmando que parecia que não era ela mesma quem ia para aqueles
encontros fortuitos. Nas palavras do próprio Carlinhos, quase que a metade do Rio de Janeiro
já havia se deitado com Solange e, sem conseguir expressar palavras ou gestos de ódio, o
marido apenas declara que, a partir daquele dia, estava morto para o mundo. Dirige-se então
para seu quarto, veste-se formalmente e deita-se na cama, recriando a posição de um morto. A
esposa, ao ver tal cena, fica estarrecida e, logo após, produz-se com uma indumentária
peculiar: iria velar seu marido vivo. No dia seguinte, pela tarde, ela veste-se tranquilamente,
como todos os outros dias de sua vida, e se dirige para o lotação. No fim da tarde, volta para
casa e continua a velar o marido vivo.
Toda a narrativa é contada por um narrador irônico e mordaz, que, conhecedor da
história, narra-a com tal destreza que consegue encadear as tensões do conto, de modo a
culminar em um final surpreendente. A linguagem é tida como inovadora para seu contexto de
produção, apresentando diálogos curtos e rápidos, os quais acabam ecoando o ritmo acelerado
das cidades e encontra nos jornais local profícuo para sua circulação.
Assim, a produção e a análise do conto trazem em si elementos que podem servir de
base para a visualização de um período de transição. Solange, personificando a imagem do
perigo que uma esposa dúbia podia oferecer, trata-se da denúncia de Nelson Rodrigues: os
maridos deveriam ficar atentos às suas mulheres, por mais puras e angelicais que elas
pudessem se mostrar. A graça e a limpidez de Solange, descritas pelo narrador e alicerçadas
através do diálogo do pai de Carlinhos, apresentam uma figura que consegue manter uma
carandá
Revista do Curso de Letras do Câmpus do Pantanal – UFMS,
Corumbá, MS, novembro 2011, n. 4, p. 100
aparência dentro de casa e outra na rua. Tratava-se da nova mulher que despontava no final na
década de 50: uma mulher sagaz, conhecedora e perseguidora de seus desejos mais secretos.
A personagem Solange constitui-se, destarte, como uma figura emblemática,
representando o medo que a “nova” mulher despertava nos homens mais conservadores. Na
década de 50, a honra feminina estava atrelada à manutenção de um corpo puro e destituído
de desejos, mantendo a “moça de família” como o modelo de garota a ser seguido, ao
contrário do homem, que mantinha sua honra através dos exercícios constantes de virilidade,
como a façanha de inúmeros adultérios, os quais ainda eram vistos como algo próprio da
natureza masculina. Já o adultério feminino, se constituía como uma ruptura com todo o
sistema dominante, na medida em que reformulava novos tipos de comportamentos sexuais
para as mulheres, além de, no pensamento da época, estampar a incapacidade de
gerenciamento da mulher e do lar por parte do homem, que tinha a sua virilidade posta à
prova, uma vez que a cônjuge precisava encontrar fora de casa um amante capaz de suprir
suas “necessidades”, o que denunciava algum tipo de “incapacidade” por parte do marido
traído.
De tal modo, a personagem Solange é marcada por dualidades: vida privada x vida
pública; esposa fiel x esposa infiel; manutenção de uma imagem social x uma imagem
clandestina.
A análise do conto em questão nos permite discutir a nova configuração que o
casamento atravessava nos idos de 1950. Calcado em uma concepção cristã de mundo, no
Brasil, ao longo do tempo, foi reproduzida uma percepção pecaminosa de sexo, exigindo a
criteriosa proibição de tudo o que implicasse e resultasse em prazer. Assim, o casamento, nos
moldes do cristianismo, era concebido como um sacramento, em que uma “mulher de
princípios, nada deveria saber sobre sexo” (Priore, 2006, p. 198), cabendo tão somente ao
homem o papel de professor de sua esposa durante a tão sonhada lua-de-mel, uma vez que o
homem era tido como o gestor da autoridade moral, e à mulher cabia o papel de salvaguardar
a afetividade e o controle de sua sexualidade, baseada, sobretudo, em uma honra inatingível,
afinal, ela era o “sexo frágil”.
Segundo a historiadora Mary Del Priore, “o desejo sexual constituía-se em um direito
exclusivo do homem, cabendo às esposas, a submissão e a virtude.” (Priore, 2006, p. 31).
Assim, uma série de códigos regia a vida de homens e mulheres dessa época, ficando relegada
às mulheres uma extrema submissão de suas vontades em prol de um casamento “saudável” e
adequado às normas do “bem viver”. Para Priore, “como esposa, seu valor perante a sociedade
carandá
Revista do Curso de Letras do Câmpus do Pantanal – UFMS,
Corumbá, MS, novembro 2011, n. 4, p. 101
estava diretamente ligado à ‘honestidade’ expressa em seu recato, pelo exercício de suas
funções no lar e pelos numerosos filhos que daria ao marido” (Priore, 2006, p. 145).
Nesta conjuntura coercitiva, o sexo era visto como a principal questão tabu da
sociedade. O ser feminino era criado simplesmente para compor um casamento, ser mãe e
condutora de um lar harmonioso e tranquilo para seu marido. O signo “mulher” estava
atrelado à significação da maternidade, a reprodutora de um lar repleto de uma numerosa e
virtuosa descendência. Vale lembrar que, nos moldes desse casamento de meados do século
XX, pressupunha-se uma sexualidade normalizada, que tinha como único fim a procriação da
espécie. As questões concernentes ao orgasmo, principalmente o feminino, não eram
discutidas, ficando na base dos interditos de uma sociedade opressora e machista. Fora do
casamento, nenhuma sexualidade “normal” tinha o direito de se exprimir.
A partir do começo da década de 60 tem início um dos maiores movimentos da
sociedade: a Revolução Sexual, gestada ao longo de anos e impulsionada por mulheres que,
cansadas de séculos de opressão por parte da sociedade, inventam novos moldes de encarar o
amor, o sexo, o casamento, a maternidade, o trabalho. O estopim surge com a circulação da
pílula anticoncepcional, com os escritos de Simone de Beauvoir e o consequente desligamento
da figura da mulher associada à maternidade, garantindo que questões tabus, como o orgasmo,
fossem discutidas por outras mulheres, as quais começam a partir em busca de suas
satisfações.
Nesse contexto, a dominação masculina estava tão impregnada como algo natural de
nossa sociedade, que diversas questões relacionadas ao poder simbólico do sexo masculino
passavam despercebidas. Homens e mulheres viviam uma situação hierarquizada e inabalável
(também não podemos pensar que essa dinâmica, arquitetada como um constructo social
naturalizado, era unilateral. O poder era e é opressor sim, mas muitas vezes a mulher também
contribuiu para esse conjunto de domínio de forma passiva, assumindo uma identidade
feminina basilada na pureza e na castidade, como na expressão “sou moça de família”).
Em decorrência dessa revolução, hoje temos o que é chamado de “família mutilada”,
caracterizada pela “inversão” dos papéis sexuais, constituindo-se em um novo paradigma da
família afetiva contemporânea.
É de se notar que a revolução criou profundas máculas nos homens, que viram seu
poder ser destituído e apossado por mulheres que abriram mão de uma seguridade e
estabilidade em casamentos que não traziam a felicidade tão almejada e vendida nos
romances, estes que também já denunciavam há tempos mulheres insatisfeitas em casamentos
carandá
Revista do Curso de Letras do Câmpus do Pantanal – UFMS,
Corumbá, MS, novembro 2011, n. 4, p. 102
sensivelmente na trama e a agilidade dos diálogos traduz o ritmo acelerado da cidade. Na rua,
podem-se revelar segredos que não são ditos dentro de casa, estabelecendo uma divisão entre
o público e o privado, e a metrópole possibilita ao indivíduo a confissão de certas coisas,
encontrando na multidão e no anonimato o conforto para suas confissões.
O automóvel, um dos símbolos da modernidade, aparece desse modo, como também
símbolo recorrente na obra de Nelson Rodrigues. Estar “dentro” de um automóvel é deter
poder, mesmo que por um curto período de tempo, e a “dama do lotação” aproveita esse
espaço para poder selecionar os seus amantes anônimos, tendo a possibilidade de fugir de sua
realidade de dona do lar.
Portanto, Solange parte à procura de seus possíveis amantes justamente neste símbolo
da modernidade, o lotação, que no contexto moderno das grandes cidades é quem leva a
grande massa de trabalhadores para seus respectivos empregos. No conto, Solange relata que
seu primeiro amante foi um mecânico desconhecido, “de macacão azul, que saltaria pouco
adiante” (Rodrigues, 1992, p. 222), seguido por outros trabalhadores, como o motorista de um
dos ônibus, que já conhecia a fama da dama do lotação e que “fingiu um enguiço, para
acompanhá-la” (Rodrigues, 1992, p. 222).
A personagem Solange, instada pelo marido a contar como foi que tudo começou,
passa a narrar “sem excitação, numa calma intensa”, os detalhes de sua sórdida procura.
Todos os dias, pela tarde, saía para procurar suas “vítimas” e, assim, a temática do adultério é
explorada ao longo da narrativa, apresentando uma jovem esposa que tinha problemas em
lidar com sua sexualidade. O mais fantástico da história é que durante dois anos,
religiosamente todos os dias pela tarde, ela cometia seu “crime” e ainda conseguia assegurar
sua imagem de esposa fiel no lar.
Segundo Eduardo Leal, a família é o território de fronteira entre o público e o privado,
constituindo-se o adultério como uma violação de um contrato estabelecido entre duas
pessoas – o próprio casamento. A mulher é tratada como um lugar reservado, essencialmente
doméstico e a sociedade é alicerçada em pactos, em contratos, que garantem ao indivíduo uma
sensação de pertencimento. No adultério, o elemento central trata-se da entrada de um terceiro
na relação, uma figura estranha, “estrangeira”, que acaba ameaçando o equilíbrio do contrato
matrimonial. Em A dama do lotação não existe a figura una de um amante, mas de vários, o
que impossibilita que o esposo possa “limpar” a sua honra, recorrendo, dessa forma, a uma
morte simbólica, a uma morte social.
carandá
Revista do Curso de Letras do Câmpus do Pantanal – UFMS,
Corumbá, MS, novembro 2011, n. 4, p. 104
Após saber dos tórridos encontros amorosos de sua esposa, Carlinhos dirige-se para
seu quarto e dá início ao seu próprio velório. Interessante é notar essa reação do marido, ao
saber das “verdades” enunciadas por sua esposa. Matar um único amante seria mais fácil para
limpar sua honra, mas “a metade do Rio de Janeiro” seria impossível, ainda mais que a
identidade do indivíduo nem devia mesmo ser conhecida pela própria Solange. Consternado
com a avalanche de acontecimentos, Carlinhos decide cuidar do seu próprio funeral e tem
início alguns ritos funerários, como a colocação da indumentária e a recorrente posição de
morto – “Entrou no quarto, deitou-se na cama, vestido, de paletó, colarinho, gravata, sapatos.
Uniu bem os pés; entrelaçou as mãos, na altura do peito; e assim ficou” (Rodrigues, 1992, p.
223).
Percebe-se nos textos de Rodrigues uma clara compulsão pela temática da morte.
Neste conto, a decisão tomada por Carlinhos de fingir-se de morto, revela uma significativa
saída para seu problema. Ser traído por muitos homens não lhe possibilitava restituir sua
própria honra, assim, a decisão de se fingir de morto denuncia a tentativa de morrer
carandá
Revista do Curso de Letras do Câmpus do Pantanal – UFMS,
Corumbá, MS, novembro 2011, n. 4, p. 105
socialmente, já que sua honra masculina, sua virilidade tinham sido abaladas a partir do
desenfreado apetite sexual de sua esposa e seria impossível restituí-la.
A partir da análise do texto Luto e Melancolia, de Freud, pode-se estabelecer um
paralelo com a situação do personagem Carlinhos, que dá início aos ritos do seu próprio
funeral. Freud, em seu texto, contrasta os ritos de um funeral e o conseqüente estado “normal”
de tristeza por parte daquele que perde um ente querido, com as do indivíduo melancólico,
que tem por traço distintivo um pesaroso desânimo e uma cessação de interesse pela vida. O
indivíduo melancólico é caracterizado por uma extrema autopunição e uma auto-estima baixa.
Segundo Freud,
dama consegue ter a artimanha de camuflar um valor moral que pode não existir, com seus
deleites constituindo-se como algo efêmero, fugaz.
A temática amorosa exposta nesse conto mostra como o amor e as formas de amar
foram se transformando ao longo dos tempos, e como a inversão de papéis amorosos é
reveladora de profundas transformações da sociedade. Seguindo a linha de pensamento de
Priore, existia no Brasil colônia “uma tradição portuguesa que interpretava o casamento como
uma tarefa a ser suportada” (Priore, 2006, p.13). Com isso, o protótipo de mulher ideal estava
atrelado a um padrão de pureza, castidade, generosidade, fidelidade e, sobretudo, a um corpo
assexuado, livre de desejos “pecaminosos”, remetendo à imagem da Virgem Santíssima como
modelo feminino a ser seguido e cultuado. À mulher cabia a necessidade e o dever de ser
disciplinada, com uma domesticação dos impulsos, a “educação dos sentidos”. No conto de
Rodrigues, A dama do lotação está entregue a um destino de procura, sendo totalmente
deslocada e desvinculada de um papel de mulher casta, esposa e mãe.
No novo cenário vislumbrado e tão temido por Nelson Rodrigues, a mulher começa a
se desatrelar de papéis que lhe eram designados como naturais e obrigatórios. Ser mulher era
sinônimo de ser mãe e à medida que o acesso ao prazer era totalmente dissociado da
reprodução (o uso de contraceptivos assinalava esse momento), ocorria consequentemente o
declínio do poder patriarcal. Segundo Elisabeth Roudinesco,
Assim, Solange representa a nova mulher que despontava nos finais da década de 50 e
início da década de 60, desembocando na irrupção do ser feminino, desatrelada da autoridade
do marido, da subordinação feminina e da dependência dos filhos. Sua sexualidade não é dada
carandá
Revista do Curso de Letras do Câmpus do Pantanal – UFMS,
Corumbá, MS, novembro 2011, n. 4, p. 108
em consequência de uma função materna, mas de desejos que não conseguem se controlar,
devido a todo um poder sufocante que atuou (e atua) no corpo feminino. A dessacralização de
instituições como o casamento, o pai, a mãe, o amor, o sexo, corroboraram para a nova
configuração da sociedade contemporânea, com mulheres no mercado de trabalho exercendo
profissões que até bem pouco eram tidas como “profissões de homem”, assumindo produções
independentes e exercendo a sua própria sexualidade da forma como achar mais conivente,
sem estar necessariamente presa a certas dualidades, como no exemplo exposto por Nelson
Rodrigues, em A dama do lotação.
REFERÊNCIAS
CASTRO, Ruy. O anjo pornográfico: a vida de Nelson Rodrigues. São Paulo: Companhia das Letras,
1992.
CUNHA, Eduardo Leal. Adultério: a família diante do estrangeiro. Disponível em
<http://www.ebep.org.br/artigos/3Cunha_-_a_familia.pdf> acesso em 08.12.2010.
DRAGO, Niuxa Dias. Espaços da cidade na dramaturgia de Nelson Rodrigues. In ______ Espaço e
Teatro: do edifício teatral à cidade como palco. Org. Evelyn Furquim Werneck Lima. Disponível em
<http://books.google.com/books?hl=pt-
BR&lr=&id=xc2BG6i9AVAC&oi=fnd&pg=PA97&dq=a+fam%C3%ADlia+em+cena:+um+estudo+a
ntropol%C3%B3gico+da+dramaturgia+de+Nelson+Rodrigues%22&ots=U2fViPLQ52&sig=8AUVU
wWKPDtSIzomyuHs3EkFl3M#PPA116,M1> acesso em 05.01.2011.
FOUCAULT, Michel. Não ao Sexo Rei. In____ Microfísica do Poder. 22ª Ed. Rio de Janeiro, Edições
Graal, 1979.
FREUD, Sigmund. Além do princípio de prazer. Obras psicológicas de Freud – edição eletrônica, s/d.
FREUD, Sigmund. Luto e melancolia. . Obras psicológicas de Freud – edição eletrônica, s/d.
PRIORE, Mary Del. História do Amor no Brasil. 2ª. Ed. São Paulo: Contexto, 2006.
Revista BRAVO! Junho 2007. Ano 10. Nº 118 – Nelson Rodrigues.
RODRIGUES, Nelson. A vida como ela é...: O homem fiel e outros contos. Seleção de Ruy Castro.
São Paulo: Companhia das Letras, 1992.
RODRIGUES, Nelson. Teatro Completo. Organização geral de Sábato Magaldi. Rio de Janeiro: Nova
Aguilar, 2003.
ROUDINESCO, Elisabeth. A família em desordem. Tradução de André Telles. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar, 2003.
carandá
Revista do Curso de Letras do Câmpus do Pantanal – UFMS,
Corumbá, MS, novembro 2011, n. 4, p. 109
Resumo: O objetivo desse artigo é abordar a temática da viagem na obra Viagens na minha
terra de Almeida Garrett como uma questão que vai além do âmbito físico e referencial. A
intenção é estabelecer uma linha de interpretação capaz de mostrar que o tipo de
deslocamento operado pelo narrador do livro não é apenas referencial, mas principalmente
formal, pois o que sê na composição da obra é um movimento de constante alternância entre
vários métodos de narração e técnicas de composição. A partir de uma relação com a chamada
“forma shandeana”, inaugurada por Lawrence Sterne, se buscará compreender como a viagem
do narrador de Garrett se torna interessante se entendida como um turismo pelas formas
narrativas.
Abstract: The objective of this article is to tackle the travel theme at the book Viagens na
minha terra, writed by Almeida Garrett, as a question that goes beyond of the physical and
empirical scope. The intention is to establish a way of interpretation capable to show that the
type of dislocation performed by the romance’s narrator it’s not only physical, but principally
aesthetical, because as we can see at the book’s formal structure is a constant movement of
alternating between many methods of narration and techniques of composition. Trough an
relation with the “shandean form” initialized by Lawrence Sterne, we will try to understand
how the travel of the Garret’s narrator can be interesting if considered like a travel by the
narrative forms.
1. INTRODUÇÃO
uma vez que a figura do indivíduo que percorre espaços até então desconhecidos e descobre
novas paragens, sempre habitou o ideário dos homens. Ideário onde sempre teve figuração
1
Mestrando do Programa de Pós-Graduação em Estudos Literários da Universidade Federal de Minas Gerais
(UFMG). Email: alexfogal@yahoo.com.br.
carandá
Revista do Curso de Letras do Câmpus do Pantanal – UFMS,
Corumbá, MS, novembro 2011, n. 4, p. 110
No âmbito da criação literária, essa ânsia do ser humano em desbravar novos lugares,
em lidar com o novo, apresenta algumas nuances importantes de serem observadas, já que
nem sempre o ato de viajar foi representado unicamente no plano das viagens referenciais ou
de caráter físico, topográfico. Nesse caso, pode-se dizer que nem sempre a viagem será apenas
Para que fique mais claro o que está sendo dito, basta fundamentar-se em alguns
autores que, apesar de se utilizarem da forma estética de obras literárias que trazem como
se prendem estritamente à formula tradicional dos “livros de viagem”, uma vez que adotam
estratégias narrativas que destoam das construções literárias que tratam o ato de viajar do
modo tradicionalmente concebido. Dentre esses é possível encontrar escritores como Xavier
No caso desses autores, o que se nota é um tipo de viagem peculiar, diversa da idéia de
viagem épica na qual o indivíduo é movido por ações que o levará a conquistas, nas quais a
reflexivas. Seus movimentos não são mais plenos de substância, não podem ser vistos mais
Em contraposição aos tipos de narradores que podem ser observados nas obras dos
autores citados no parágrafo anterior, o herói da epopéia nunca será visto puramente como
indivíduo, já que a epopéia possui como um de seus traços mais marcantes o destino de toda
uma comunidade, de uma pátria, e não apenas um destino pessoal. O todo do cosmos épico é
orgânico demais para que uma de suas partes possa ser representada como isolada de si
carandá
Revista do Curso de Letras do Câmpus do Pantanal – UFMS,
Corumbá, MS, novembro 2011, n. 4, p. 111
mesma através das impressões de um narrador como ocorre na literatura moderna (LUKÁCS,
2006, p.60-67).
Para observar melhor tais questões e analisar de modo pertinente esse tipo de “viagem
como proposta a construção de uma linha de interpretação de tal tópico a partir do estudo da
Garrett servir como exemplo que ilustra esse modelo específico de viajante, tão recorrente nas
narrativas modernas. Ou seja, ao contrário do típico narrador das viagens épicas, este segue
um percurso nada linear, baseado quase que unicamente em suas impressões sobre o que vê,
dando tom próprio ao mundo pelo qual circula. O narrador passa a apresentar como principais
Na mesma trilha dos romancistas formados pelo método de composição das narrativas
antigas, como por exemplo, as luciânicas, o narrador de Viagens na minha terra se utiliza de
leitor, fazendo uso das artimanhas da prepotência narrativa (BRANDÂO, 2005, p. 41- 62). A
narrativa do romance escolhido como base se filia à linha daqueles narradores que preferiram
colocar a História para fora da cena central, não apresentando cerimônias em subverter datas,
Para alcançar uma perspectiva de análise que ajude a elucidar tais questões de modo
pertinente, o trabalho será estruturado de forma que suas partes estejam em consonância, ou
seja, tudo será desenvolvido de modo que os pontos abordados se complementem uns aos
outros. Para que isso seja compreendido de maneira mais clara, torna-se importante uma
Garrett, pois conforme se pretende demonstrar aqui, a narrativa de Viagens na minha terra
não pode ser concebida como uma viagem puramente referencial (embora o narrador da obra
realmente empreenda uma curta viagem de Lisboa até Santarém, ao contrário de Xavier de
Maistre que nem ao menos sai de seu quarto), mas sim como uma viagem pelos próprios
extraídos do romance, como a narrativa do autor português não tem seu centro de tensão na
pequena viagem realizada, uma vez que “As Viagens” do título servem apenas como pretexto
para que o narrador possa estabelecer um amplo painel das transformações ocorridas em
Portugal nas primeiras décadas do século XIX. Conforme se pode observar no prefácio que
Carlos Felipe Moisés escreve para o romance1, a obra pode ser observada em dois planos
diferentes: num primeiro plano, mais artificial, no qual a obra pode ser vista como simples
relato de viagem e num segundo plano, onde o espaço que se percorre funciona apenas como
pano de fundo. Porém, apesar desse apontamento ser importante, a perspectiva que será
estabelecida aqui pretende observar os dois planos funcionando numa interação dialética, pois
as viagens de algum modo dão forma ao estilo narrativo sinuoso, entrecortado e permeado por
divagações. Nesse ponto, tentarei compreender a forma da obra não apenas como um
invólucro do conteúdo, mas como estrutura significativa para o entendimento total da estética
da obra.
O segundo ponto a ser abordado consiste numa análise da tradição narrativa que
Para a constituição dessa parte do trabalho será de grande relevância a teorização de Sergio
1
A edição utilizada no presente trabalho é a de 1992, da editora Nova Alexandria.
carandá
Revista do Curso de Letras do Câmpus do Pantanal – UFMS,
Corumbá, MS, novembro 2011, n. 4, p. 113
Paulo Rouanet na obra Riso e Melancolia (2007), haja vista que o crítico empreende um
estudo sobre o que ele denomina como “forma shandeana” do romance. Para ele, o autor de
Viagens na minha terra é um dos escritores modernos que assimilaram esse método de
composição tornado famoso na literatura ocidental por meio da obra de Lawrence Sterne.
Tratar de tal questão será de grande valia para compreender o estilo narrativo de Garrett já
que ajudará a entender quais as técnicas narrativas empregadas para que o método não-
Garrett. Um estudo sobre tal ponto, mesmo sem a devida profundidade que o tema merece,
pode ser considerado como um auxílio para a compreensão da viagem pelas formas narrativas
empreendida por Garrett. Isso pode ser dito devido ao fato de que se entendermos o
estético da obra do autor, fica nítido que assim como Machado de Assis, Diderot, Sterne e
Xavier de Maistre, o escritor português também fornece ao leitor todos os elementos para
definir a forma de sua obra, mesmo quando isso é feito de maneira sutil.
Conforme foi dito anteriormente, todos esses três pontos que serão abordados na
questão do tipo peculiar de viagem que Almeida Garrett realiza em sua narrativa é a porta de
entrada para que possam ser suscitados apontamentos sobre a tradição narrativa ligada a esse
Já esse segundo ponto, além de demonstrar como as técnicas narrativas utilizadas pelo
narrador de Garrett em sua viagem peculiar foram assimiladas, servirá também para deixar
Assim sendo, esse segundo ponto encontra-se também ligado ao terceiro, no qual serão
tratadas algumas questões sobre a ironia formal como técnica de estruturação das obras
literárias, o que será importante para entender de que forma tal elemento de construção serve
para realizar uma exposição do esqueleto da obra tornando-a aberta aos seus receptores. Desse
modo, será possível compreender como o autor expõe seu método diferenciado de se viajar,
Logo de início é possível responder a pergunta feita no subtítulo acima dizendo que
em Viagens na minha terra os dois tipos de viagem são perceptíveis. Porém, uma
peculiaridade já referida aqui anteriormente consiste naquilo que foi apontado por Carlos
Felipe Moisés no prefácio da obra do autor, quando afirma que se retirarmos as divagações,
resposta de caráter duplo dada à pergunta feita no subtítulo dessa parte do trabalho pretende
estética que Garrett fornece à sua obra. Para que isso fique mais claro, o que pretendo deixar
claro é que, de algum modo, os pequenos traços de viagem referencial que aparecem no
romance do autor português também dão forma ao estilo narrativo empregado na obra, uma
vez que, se observarmos atentamente, notaremos que o narrador garrettiano imprime em sua
técnica narrativa o mesmo espírito vagabundo, curioso e distraído dos viajantes. A narrativa
ser observável na rota de um viajante que tateia por um terreno desconhecido ou então que
carandá
Revista do Curso de Letras do Câmpus do Pantanal – UFMS,
Corumbá, MS, novembro 2011, n. 4, p. 115
deseja tornar esse espaço que percorre conhecido para outros. Nesse ponto é importante
pensar num conceito de forma estética semelhante ao trabalhado por Eikhenbaum , um dos
Torna-se importante explicitar tal conceito para tentar elucidar um viés de análise um
pouco diverso daquele adotado por Carlos Felipe Moisés, no qual o crítico separa
Numa outra instância, mas ainda paralelamente ao que está sendo dito, o tema da
viagem em Garrett pode ser entendido também como alegoria de uma postura existencial
Tais apontamentos podem ficar mais claros a partir de vários trechos da obra, porém
um, em especial deixa isso bem claro. Logo nas primeiras páginas do romance o narrador fala
sobre a questão de Vila Franca e seu nome, enquanto faz considerações sobre o movimento da
Restauração em Portugal e o “reviramento por que vai passando o mundo” (GARRETT, 1992,
p.26). Logo em seguida, o narrador, sem nenhum aviso prévio, muda seu foco para dissertar
sobre o prazer existente no ato de viajar enquanto se fuma a bordo, o que espanta o narrador
nunca ter sido algo observável por Lord Byron, o “poeta mais embarcadiço, mais marujo que
ainda houve” (GARRETT, 1992, p.26). Logo no trecho posterior, a narrativa já se envereda
para a descrição de um “campino” que acende o cigarro do narrador, o que leva a narração
para uma disputa travada entre “ílhavos” e “campinos” para ver quais dos dois grupos pode
ser considerado mais vigoroso, os primeiros, que lidam com o mar, ou os segundos, que lidam
carandá
Revista do Curso de Letras do Câmpus do Pantanal – UFMS,
Corumbá, MS, novembro 2011, n. 4, p. 116
com os touros. Nota-se que apenas em três páginas (da pagina vinte e seis até a página vinte e
sete) o fio da narrativa passa por três assuntos totalmente diversos e sem conexão alguma
Durante toda a obra, a narrativa se estabelecerá dessa forma, entrecortada e ébria, com
o narrador sempre mudando seus focos de modo indiscriminado. Conforme Sergio Paulo
Roaunet aponta:
Com base nessa afirmação do crítico, torna-se pertinente dizer que o narrador de
Garrett apresenta uma postura marcada pela volubilidade, pela inconstância, assim como é o
passo do viajante prototípico, daquele que realmente deseja conhecer sem seguir rotas pré-
estabelecidas.
planos do romance é importante abordar de que modo esse narrador se comporta para
estruturar esse tipo de viagem que escapa daquilo considerado como padrão nas obras do
gênero.
tipo de estrutura narrativa que faz com que a as intrusões ou digressões do narrador se
destaquem em relação ao desenrolar do enredo (embora, como vimos aqui anteriormente, não
deixe de existir uma dialética entre esses dois planos) o que, de algum modo faz com que o
narrador aproveite a estória para falar de si e do que diz respeito à sua subjetividade , “do
carandá
Revista do Curso de Letras do Câmpus do Pantanal – UFMS,
Corumbá, MS, novembro 2011, n. 4, p. 117
próprio acto literário que está a executar, conseqüente da relação entre a ficção e a realidade,
Desse ponto de vista pode-se afirmar que, diversamente de um livro onde as viagens
devaneios do narrador que dão o tom. Nas palavras do próprio narrador da obra observa-se o
seguinte: “Vou nada menos que a Santarém: e protesto que de quanto vir e ouvir, de quanto eu
algo que o narrador tenha desenvolvido fortuitamente, pois chega a argumentar em favor de
sua causa, ou melhor em favor da forma narrativa que decide adotar. O trecho que vem a
Isto pensava, isto escrevo; isto tinha na alma, isto vai no papel: que doutro
modo não sei escrever.Muito me pesa, leitor amigo, se outra coisa esperava
das minhas Viagens, sem o querer, as promessas que julgaste ver nesse
título, mas que eu não fiz decerto.
Queria talvez que te contasse, marco a marco, as léguas da estrada? Palmo
a palmo, as alturas e as larguras dos edifícios? Algarismo por algarismo, as
datas de sua fundação? Que te resumisse a história de cada pedra, cada
ruína?
Vai-te ao padre Vasconcelos; e quanto há de Santarém, peta e verdade, aí o
acharás em amplo fólio e gorda letra: eu não sei compor desses livros, e
quando soubesse, tenho mais que fazer. (GARRETT, 1992, p.189)
A partir desse exemplo, fundamentado nas próprias palavras do narrador, fica visível
como as Viagens de Garrett podem ser entendidas mais como uma viagem pela narrativa ou
pelas formas de narrar do que propriamente por sua terra. Para finalizar esse ponto e já se
iniciar a passagem para a próxima questão, é pertinente lembrar do que diz Rouanet sobre
esse tipo peculiar de narrador viajante e a subjetivação que este realiza em relação ao tempo e
ao espaço:
Até aqui vimos como a forma narrativa adotada por Garrett torna seu livro uma
viagens. Entretanto, nessa parte do trabalho será buscada mais a semelhança do que a
diferença, uma vez que entender a tradição por trás do método de composição observável no
Assis, o que Sergio Paulo Rouanet optou por chamar de “forma shandeana” no romance, visto
que a avenida teria sido aberta pelo romancista inglês. Acertadamente, o crítico identifica
muitos elementos em comum no que tange a estrutura de organização da obra desses autores,
sendo que centralizarei aqui aqueles que contribuem de forma mais clara para entender o tipo
modo, os altos e baixos do cotidiano para comporem suas obras, muito raramente fazendo uso
de assuntos elevados ou grandiosos. Desse ponto de vista, tais escritores podem ser vistos
como parceiros de viagem que conduzem suas ferramentas de bordo pelo âmbito do
com o tom documental. Em todos eles se pode notar a expansão através do trabalho com o
A volubilidade é um ponto comum a todos eles, pois como vimos no caso de Garrett,
esses tipos de narradores não conseguem se fixar em ponto algum. Conforme vemos em
num espaço infinito e no tempo da eternidade”. (ROUANET, 2007, p.44). Observando-se isso
nos outros autores basta notar o que faz o narrador de Sterne em relação à “vida e as opinões”
de Tristram Shandy, pois apesar desse ser o título do romance, terminamos a leitura sabendo
muito pouco sobre o personagem. Ou então se pode lembrar também da famosa retórica da
preterição em Machado, quando o narrador aponta um caminho para o leitor, mas opta por
Garrett faz aos autores dessa linha shandeana, como por exemplo a epígrafe de Viagens na
minha terra que é um trecho de Viagem à roda de meu quarto, de Xavier de Maistre e o início
Que viaje à roda do seu quarto quem está à beira dos Alpes, de inverno, em
Turim, que é quase tão frio como São Petersburgo- entende-se. Mas com
este clima, com este ar que Deus nos deu, onde a laranjeira cresce na horta,
e o mato é de murta, o próprio Xavier de Maistre que aqui escrevesse, ao
menos ia até o quintal. (GARRETT, 1992, p.23)
Nesse ponto é possível notar também uma distinção, visto que diferentemente de
Xavier de Maistre, Garrett de certo modo já anuncia que sua viagem também terá algo de
A referência à obra de Sterne, logicamente, também não poderia ficar de fora. O autor
lusitano deixa bem claro em quais fontes recorreu para estruturar seu estilo peculiar de viajar:
Além dessa referencias textuais que não são nada gratuitas, o que pode ser notado
também em Viagens na minha terra como ponto de associação com a estética shandeana de
Num único exemplo extraído da obra é possível notar a confluência das duas ocorrências,
como no trecho a seguir, quando o narrador se utiliza de várias referências literárias para
Não havia ainda então românticos nem romantismo, o século estava muito
atrasado. As odes de Victor Hugo não tinham desbancado as de Horácio;
achavam-se mais líricos e poéticos os esconjuros de Canídia do que os
pesadelos de um enforcado no oratório; choravas-se com as Tristes de
Ovídio, porque se não lagrimejava com as meditações de Lamartine
(GARRETT, 1992, p.51).
natureza dupla do homem, dividido entre um lado angélico e outro bestial (ROUANET, 2007,
p.26). Assim como nos outros autores da linhagem shandeana (principalmente em Xavier de
Maistre, basta lembrar do tema da “bête”) essa natureza bipartida do ser humano também é
abordada por Garrett em sua narrativa, como pode ser visto no trecho que fala da descoberta
de um filósofo do Reno sobe a marcha da civilização. Segundo essa idéia desenvolvida pelo
Pança. Porém, bem ao modo da linhagem shandeana, os dois princípios são entendidos como
relação entre besta e alma. Esse é o trecho de Garrett: “Mas, como na história do malicioso
Cervantes, estes dois princípios tão avessos, tão desencontrados, andam, contudo juntos
Vários outros elementos poderiam ser observados para aproximar ainda mais a obra de
Garrett à tradição shandeana, como por exemplo o uso das reticências ( comum em Xavier de
Maistre e Sterne) e o tom narrativo adquirido dos grandes moralistas da filosofia ensaística,
como Montaigne, o que pode ser notado no multiperspectivismo que o narrador apresenta em
Porém, é importante frisar aqui um outro ponto comum de grande relevância entre os
escritores que adotaram essa forma shandeana, o que também servirá como conexão para o
processo. Como foi dito anteriormente, seria ingenuidade dizer que esse método de
composição se iniciou com os autores dessa linhagem, pois é algo que remete aos escritores
da antiguidade. Porém, no que tange um estudo menos ambicioso (como é o caso desse) é
importante lembrar que a referência mais próxima para a literatura moderna ocidental é
Não é necessário muito esforço para notar esse movimento na obra de Almeida
Garrett, já que, como se sabe, durante todo o tempo o narrador-autor revela os princípios de
organização de sua obra durante o mesmo tempo que narra. Mas isso será visto em seguida.
Conforme observávamos no tópico anterior, Viagens na minha terra é uma obra regida
que as chaves para o entendimento acerca do que se narra são fornecidas ao leitor, quebrando
carandá
Revista do Curso de Letras do Câmpus do Pantanal – UFMS,
Corumbá, MS, novembro 2011, n. 4, p. 122
conseguir, o âmbito da vida e a forma literária. O narrador de Garrett deixa sempre bem claro
que tudo o que diz e todo o material que lida é “apenas” literatura.
Esse tipo de postura do narrador faz com que a forma do romance se mostre aberta,
deixando visíveis todos os dispositivos utilizados. Daí a importância de tratar tal ponto num
trabalho que possui como objetivo entender o tipo peculiar de viagem empreendida por
Garrett, uma vez que a utilização da ironia em relação à estrutura formal do romance nos
bom exemplo de uma passagem na qual isso ocorre, está logo no início da obra, quando o
Nesse trecho o narrador demonstra sem mais delongas como pretende estabelecer o
sentido de suas viagens e também como devem ser entendidas, ou seja, de modo simbólico.
Sob esse aspecto fica bem claro que o tipo de ironia utilizado por Garrett, ou seja, a
ironia romântica ou formal consiste numa reflexão também irônica sobre a própria utilização
da ironia, o que nos remete a uma idéia de quebra da ilusão, da ruptura com uma idéia de
Para que esse ponto seja abordado com maior clareza é importante entender a ironia
em Viagens na minha terra como princípio de construção da obra de arte, o que de algum
modo transcende os estudos tradicionais sobre o tema, que se limitam a entendê-lo como
tropo retórico (SOUZA, 2000, p.27). Numa narrativa irônica como a de Garrett, observa-se
um narrador autoconsciente:
texto que constrói, dando significados múltiplos para o que narra. Desse modo, o narrador
garrettiano demonstra como a sua viagem deve ser interpretada, esboçando em Viagens na
minha terra um modo de viajar pelas formas narrativas, pelas digressões, pelas divagações
filosóficas, pelos caracteres dos personagens e pelo drama romanesco de Carlos e Joaninha,
obra nos mostra como uma curta viagem de Lisboa a Santarém pode ir bem mais longe, desde
5. CONCLUSÃO
que a obra apresenta uma estrutura bastante diversa do que se observa naquilo considerado
peculiar” utilizado ao longo do trabalho fazer sentido quando aplicado à referida obra de
carandá
Revista do Curso de Letras do Câmpus do Pantanal – UFMS,
Corumbá, MS, novembro 2011, n. 4, p. 124
Almeida Garrett, pois apesar do termo “viagens” constar no título da obra, não é na viagem
referencial realizada no plano do enredo do livro que se encontra o “esqueleto” da obra, mas
sim na relação formal desse caráter de viagem com a estética narrativa adotada.
Além dessa constatação, foi possível observar também como esse mecanismo que
permite a composição do estilo de viagem adotada no livro se estabelece, o que foi feito a
partir da análise do modo pelo qual Garrett se enquadra na chamada tradição shandeana e
também por meio dos apontamentos sobre a ironia formal como princípio configurador do
REFERÊNCIAS:
BAKHTIN, Mikhail. Questões de literatura e estética: a teoria do romance. São Paulo: Hucitec, 1993.
BRANDÃO, Jacyntho Lins. A invenção do romance. Brasília: Unb, 2005.
EIKHENBAUM, B. A teoria do método formal. In: TOLEDO, Dionísio Oliveira de (org.) Teoria da
Literatura-formalistas russos. Porto Alegre: Editora Globo, 1976
FERRAZ, Maria de Lourdes A. A ironia romântica. Lisboa, Imprensa Nacional- Casa da Moeda,
1987.
GARRET, Almeida.Viagens na minha terra. São Paulo: Editora Nova Alexandria, 1992.
LUKÁCS, Georg. A teoria do romance. São Paulo: Duas Cidades; ed. 34, 2000.
ROUANET, Sergio Paulo. Riso e Melancolia. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.
SOUZA, Ronaldes de Melo e. “Introdução à poética da ironia”. In: Revista Linha de Pesquisa. Rio de
Janeiro, vol. 1, n. 1, out. 2000, p.27- 48.
carandá
Revista do Curso de Letras do Câmpus do Pantanal – UFMS,
Corumbá, MS, novembro 2011, n. 4, p. 125
RESUMEN: El propósito del artículo es analizar el poema de José, publicada en 1942, el escritor Carlos
Drummond de Andrade, teniendo en cuenta el contexto de la producción, la ideología histórica y social que
siempre que la producción textual. Posteriormente, se apresenta el poema y la interpretación estructural de la
obra, ya que nos permite verificar que los actos de la palabra poética como una participación decisiva en la
vida y como una representación histórica y social. Hemos elegido este poema con el fin de demostrar la
importancia de Carlos Drummond de Andrade en la literatura brasileña ya que las señales poema a una
situación de crise que experimentan los indivíduos normales, pertenecientes a la mayoria de la población.
INTRODUÇÃO
Sabemos que o reino das palavras é fato. Elas nascem do nosso pensamento de
maneira espontânea, não temos a preocupação de organizar o que falamos ou até mesmo o
que escrevemos. As palavras, todavia podem ultrapassar suas fronteiras de significação.
Podemos, assim, conquistar novos espaços e passar novas possibilidades de perceber a
realidade.
O caminho que a literatura percorre é este. O artista sente, escolhe e manipula as palavras, as organiza
para que produzam um efeito que vá para além da sua significação objetiva procurando aproximá-las do
imaginário.
1
Graduada em Pedagogia pela UFJF, Pós Graduada em Alfabetização pela PUCMG, Mestranda do Curso de
Mestrado do CESJF , Professora da Rede Municipal de Juiz de Fora. E-mail dirceplelis@hotmail.com
carandá
Revista do Curso de Letras do Câmpus do Pantanal – UFMS,
Corumbá, MS, novembro 2011, n. 4, p. 126
esperança, mas logo se acrescenta a descrença diante dos acontecimentos. Nega a fuga da
realidade e por isso volta para o tempo presente. Dotado de uma percepção aguçada, capta a
realidade através de seus sentimentos e a expressa, através da palavra, da linguagem.
Carlos Drummond de Andrade é considerado um dos maiores representantes da
literatura brasileira do século XX. Na década de 20, quando Drummond começou a
publicação de seus poemas, o Brasil estava passando pela fase inicial de comoção modernista.
Alguns escritores, como por exemplo, Anita Malfatti, Villa-Lobos, Manuel Bandeira, Mário
de Andrade, se manifestavam com atitudes de inovação artística e literária, mas eram gestos
isolados, que só ganhariam espaço na Semana de Arte Moderna, realizada em São Paulo, em
1922. A partir daí, o movimento se expandiu por grande parte do país. Com a implantação de
novas atitudes culturais, sucedeu um período de consolidação e diversificação, em meio a
agitado contexto social. Sua estréia oficial deu-se em 1930, com Alguma poesia. Com esta
obra, Drummond inaugura a segunda fase do Modernismo. Escreveu também prosa que se
caracteriza pela riqueza e expressividade da linguagem e do tema, impregnados de senso de
humor. Atribuem-se essas qualidades, igualmente, à sua obra poética.
Para Bosi, “Drummond possui uma percepção precisa do hiato entre as
convenções e a realidade, entre o parecer e o ser das coisas e dos indivíduos,
o que se transforma em objeto privilegiado do humor, seu traço principal. O
conjunto de sua obra é complexo e vasto, do qual, pela freqüência, é
possível destacar certas características e tendências”. (Bossi, 1994).
Ainda se referindo ao poeta, Bosi, considera que “a obra de Drummond
alcança como Fernando Pessoa ou Jorge de Lima, Herberto Helder ou
Murilo Mendes um coeficiente de solidão, que o desprende do próprio solo
da história, levando o leitor a uma atitude livre de referências, ou de marcas
ideológicas ou prospectivas.” (Bossi, 1994).
Affonso Romano de Sant’Anna (2004), costuma estabelecer que a poesia de Carlos
Drummond a partir da dialética “eu x mundo” desdobrando-se em três atitudes:
A primeira, Eu maior que o mundo, marcada pela poesia irônica.
Segundo Telles, na poesia de Carlos Drummond de Andrade (1902-1987),
“o humor e a ironia atuam como elementos poéticos e esta comicidade,
muitas vezes, consegue outro grau de beleza, uma beleza às avessas, que
escapa quase sempre aos esquemas das poéticas tradicionais, ou seja, que
desconcerta todo o conhecimento sobre a poesia”. (Teles,1970).
carandá
Revista do Curso de Letras do Câmpus do Pantanal – UFMS,
Corumbá, MS, novembro 2011, n. 4, p. 127
A segunda, Eu menor que o mundo, marcada pela poesia social. A terceira, Eu igual
ao mundo, abrange a poesia metafísica onde o poeta volta-se para um simbolismo abstrato,
mediante um processo de interrogações e negações, e a poesia objectural que representa uma
ruptura em relação à fase anterior, o poeta abandona a forma fixa, radicaliza os processos
estruturais que sempre marcaram seu modo de escrever.
. Na obra de Drummond, exprimem-se os dois pontos da problemática do homem no
mundo moderno: os conflitos individuais do ser e a inserção conflituosa deste na sociedade.
De modo geral, a obra de Drummond reflete a grande importância do autor que, em suas
diversas fases poéticas, sintetizou a postura do homem frente ao mundo moderno.
De acordo com Moriconi, “na literatura moderna, há registro do
cotidiano, valorizando os elementos diferenciados, tais como: a
linguagem coloquial, a associação livre de idéias, a mescla de
sentimentos contrastantes que revelam o subconsciente e o
nacionalismo. Os poetas não se pautam mais por uma atitude
programática, e sim pela possibilidade de criação em todas as
direções, utilizando o verso livre e o "poema-piada". (Moriconi,
2002).
Na fase final, em suas últimas produções, o poeta Drummond, reelabora alguns temas
e formas dos primeiros livros, mas também acrescenta algumas vertentes novas.
Sua obra, elaborada ao longo de mais de seis décadas, compreende, como já visto,
poesia e prosa. Apesar das qualidades e da quantidade da prosa (17 livros de crônicas e
contos, fora o que ficou nos jornais), o núcleo de sua produção é a poesia. Drummond
também escreveu contos e crônicas.
Alguns temas são típicos da poesia Drummondiana:
Além disso, escolhemos o poeta Carlos Drummond de Andrade, cuja escrita se faz
com senso de humor, emoção e com fragmentos da memória ativa do passado. O poeta,
iniciou seus versos num ambiente de mundo moderno, que se arrasta até a
contemporaneidade. Seus poemas procuram resgatar a significativa experiência do homem.
Extraímos da poética de Drummond elementos que nos remetem à idéia de buscas e dúvidas a
respeito das certezas de antes, e que, agora, são postas em questionamento e já não trazem
carandá
Revista do Curso de Letras do Câmpus do Pantanal – UFMS,
Corumbá, MS, novembro 2011, n. 4, p. 129
mais a marca do definido e sim das incertezas em que o poeta se lançou. Muitos poemas de
Drummond mostram um homem ao mesmo tempo torturado pelo passado e assombrado pelo
futuro. Ora cético e melancólico, ora irônico e bem-humorado, lucidez e calma, filtrados
numa linguagem flexível e rica de dimensões humanas, além de ter sido um grande crítico.
A leitura do poema que se segue permite verificar a afirmação de que a palavra
poética atua de maneira decisiva como participação na vida e como forma de representação
histórico-social.
JOSÉ
E agora, José?
A festa acabou,
a luz apagou,
o povo sumiu,
a noite esfriou,
e agora, José?
e agora, você?
você que é sem nome,
que zomba dos outros,
você que faz versos,
que ama, protesta?
e agora, José?
E agora, José?
Sua doce palavra,
seu instante de febre,
sua gula e jejum,
sua biblioteca,
sua lavra de ouro,
seu terno de vidro,
sua incoerência,
seu ódio – e agora?’
carandá
Revista do Curso de Letras do Câmpus do Pantanal – UFMS,
Corumbá, MS, novembro 2011, n. 4, p. 130
Se você gritasse,
se você gemesse;
se você tocasse
a valsa vienense,
se você dormisse,
se você cansasse,
se você morresse ...
Mas você não morre,
você é duro, José!
Sozinho no escuro
qual bicho-do-mato,
sem teogonia,
sem parede nua
para se encostar,
sem cavalo preto
que fuja a galope,
você marcha, José!
José para onde?
ANÁLISE DO POEMA
Nos versos 45 a 51, a utilização dos verbos no imperfeito do subjuntivo compondo orações
condicionais, anuncia a possibilidade de mudança que o verso seguinte desmente,
evidenciando que não há resolução para a dúvida em relação ao futuro, já que nem mesmo
morrer vale a pena , pois não resolveria o problema.
Nos versos finais, há sensação de um futuro, mesmo porque José no final marcha, não
fica parado, apesar de toda situação adversa e negativa; embora todo o momento anterior seja
de reflexões e angústias e indique um momento estático (não há festa, nem bonde, mar, ou
cavalo) José é duro e não desiste: marcha. O uso do verbo marcha expressa a única reação de
José, que, sem ter nenhuma forma de liberdade, recorre ao seu próprio corpo.
O texto “José”, de Drummond, é um poema bastante conhecido, tanto que sua frase-
refrão, “E agora José?”, é repetida em muitas situações do cotidiano, fazendo parte do senso
comum.
CONCLUSÃO
REFERÊNCIAS
Resumo: Este estudo tem por objetivo tecer algumas considerações sobre a poética de Walt Whitman
em relação a sua resposta à Guerra Civil Americana e contrastar alguns trechos de seu grupo de
poemas intitulado “Drum Taps” com dois poemas de Emily Dickinson que possam sugerir uma alusão
ao mesmo contexto histórico: “My Portion is Defeat – today –” e “Our journey had advanced –” .
Percebemos, contudo, que Whitman faz referência explícita à Guerra Civil, enquanto Dickinson
privilegia imagens que possivelmente se relacionam ao ambiente de guerra. Assim, nossas reflexões
partem do conhecimento de que os poetas foram contemporâneos e, portanto, vivenciaram a Guerra
Civil cada um a seu modo, mas não perdemos de vista o fato de que a obra poética produzida por
Dickinson e por Whitman apresenta maiores diferenças do que semelhanças. Ainda assim, acreditamos
que a Guerra Civil possa ser lida como um tema comum dentre as diferenças que as duas poéticas
estabeleceram entre si.
Abstract: This study aims to take into account the poetics of Walt Whitman in relation to his response
to the American Civil War in order to contrast some excerpts of his cluster of poems entitled “Drum
Taps” with two poems by Emily Dickinson that may suggest an allusion to the same historical context:
“My Portion is Defeat – today –” and “Our journey had advanced –”. However, we observe that
Whitman refers to the Civil War explicitly, whereas Dickinson privileges images that are possibly
related to the war environment. Thus, our considerations start from the awareness that the poets were
contemporary and, therefore, they experienced the Civil War in their own ways, but we must keep in
mind that the poetic work produced by Dickinson and by Whitman presents more differences than
similarities. Yet we believe that the Civil War may be read as a common theme among the differences
that these two poetics established with each other.
APRESENTAÇÃO
Este trabalho tem por objetivo contrastar a poética de Walt Whitman (1819-1892) no
que concerne a sua resposta à Guerra Civil Americana com alguns poemas de Emily
Dickinson (1830-1886) em que se pode identificar uma possível referência a esse mesmo
acontecimento da história dos Estados Unidos.
1
Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Estudos Literários da Faculdade de Ciências e Letras, UNESP,
campus de Araraquara-SP. Bolsista Fapesp. Contato: nataliahw@hotmail.com.
carandá
Revista do Curso de Letras do Câmpus do Pantanal – UFMS,
Corumbá, MS, novembro 2011, n. 4, p. 136
Para isso, tomamos por base o fato de os dois poetas terem sido contemporâneos e,
cada um a sua maneira, terem tido algum contato com a Guerra Civil e com seus efeitos na
sociedade norte-americana. Nesse sentido, teceremos algumas considerações sobre excertos
de “Drum Taps”, conjunto de poemas de Whitman dedicado à Guerra Civil Americana, e
sobre dois poemas de Emily Dickinson: “My Portion is Defeat – today –” e “Our journey had
advanced –”1. Os poemas de Dickinson serão apresentados conforme a edição de Thomas H.
Johnson e os de Whitman seguirão a edição divulgada no site do The Walt Whitman Archive,
acompanhados da tradução de Luciano Alves Meira.
Entendemos, contudo, que a obra de Emily Dickinson e de Walt Whitman são
marcadamente distintas, e, portanto, não nos parece haver pontos de convergência em que
possamos nos apoiar para defendermos que seus poemas revelem releituras de ou respostas a
poemas de um ou de outro. Ainda assim, o fato de os dois poetas terem sua produção
localizada no mesmo contexto histórico nos permite sugerir que ambos tenham respondido às
mesmas questões de seu tempo.
Diante disso, é preciso destacar que essa resposta à Guerra Civil Americana é visível
em Whitman, uma vez que o poeta dedicou, inclusive, um conjunto de poemas a esse tema,
expressando-se ora de maneira elogiosa à Guerra, ora lamentando-a. Em Dickinson, ao
contrário, não há referências explícitas, mas, sim, poemas que notadamente privilegiam
imagens relativas a um contexto de guerra e que foram produzidos durante os anos da Guerra
Civil2.
Desse modo, acreditamos que a Guerra possa se revelar um tema comum diante das
diferenças que as poéticas de Dickinson e de Whitman estabelecem entre si. O que buscamos
com este trabalho é, portanto, partir do modo como Whitman se expressa sobre a Guerra Civil
Americana e contrastá-lo com o modo como Dickinson teria, supostamente, feito o mesmo. A
escolha por essa perspectiva de estudo se justifica por ser Emily Dickinson também um nome
de grande importância na formação da poesia norte-americana e por ser a Guerra Civil um
marco na história dos Estados Unidos e na poesia de Walt Whitman.
2
Outros poemas de Emily Dickinson que também pode ser lidos como referências à Guerra Civil são “It feels a
shame to be Alive —”; "They dropped like Flakes“; "It don't sound so terrible, quite, as it did," e "When I was
small, a woman died”.
2
É importante lembrar que os poemas de Emily Dickinson não foram datados por ela, mas por editores que
compararam a evolução de sua escrita poética e de suas cartas para identificar o suposto ano de produção dos
poemas. Enfatize-se, também, que mais da metade de seus poemas teriam sido escritos durante os anos da
Guerra Civil Americana (1861-1865).
carandá
Revista do Curso de Letras do Câmpus do Pantanal – UFMS,
Corumbá, MS, novembro 2011, n. 4, p. 137
Por fim, salientamos que este trabalho se iniciará com algumas reflexões acerca das
diferenças mais comumente apontadas entre a escrita poética de Whitman e de Dickinson para
chegarmos, então, aos poemas referentes à Guerra Civil. Durante essas primeiras discussões,
serão destacados alguns trechos de “Song of myself”, que é talvez o poema mais conhecido de
Walt Whitman, e os poemas de Emily Dickinson “I’m Nobody! Who are you?” (288J) e
“Death is a Dialogue betwewn” (976J).
1
É preciso lembrar que seus 1775 poemas somente foram encontrados após a morte da poeta e editados em
1893.
carandá
Revista do Curso de Letras do Câmpus do Pantanal – UFMS,
Corumbá, MS, novembro 2011, n. 4, p. 138
Por sua vez, em “I’m Nobody! Who are you?”, os versos curtos são entrecortados por
travessões que impõem pausas mais bruscas e tornam o ritmo do poema de certo modo
quebrado e até mesmo um pouco incômodo. Além disso, os travessões parecem isolar os
carandá
Revista do Curso de Letras do Câmpus do Pantanal – UFMS,
Corumbá, MS, novembro 2011, n. 4, p. 139
termos no verso de maneira a dar maior ênfase para os seus possíveis significados: “Que triste
– ser – Alguém! / Que pública – a Fama – [...]” (Dickinson, 2008, p.41). Esse tipo de
pontuação é característico do estilo de Dickinson e responsável por infindáveis discussões por
parte da crítica. Além disso, a poeta se apropria de termos aparentemente simples, como, por
exemplo, a rã e a lama e os reveste de novos significados muitas vezes de difícil
compreensão: “O que seus críticos quase sempre subestimam é a espantosa complexidade
intelectual dela. Nenhum lugar-comum sobrevive às suas apropriações; o que ela não
renomeia ou redefine, revisa além do fácil reconhecimento” (Bloom, 1995, p.284).
Dessa forma, se colocarmos o eu-lírico de Whitman ao lado do eu-lírico de Dickinson,
observaremos o contraste entre um eu universal, público, e um eu individual, privado. Em
outras palavras, a identidade de Whitman é cumulativa, pois ela se expande de modo a estar
sempre em contato com tudo e ser tudo: ele é o amante masculino e o feminino, o poeta, o
profeta, o líder, uma voz das massas, um médium, o corpo e a alma, o passivo e o ativo, o
espiritual e o científico, enfim, um organismo vivo em constante mobilidade.
Por outro lado, o eu-lírico dos poemas de Dickinson parece fechar-se em si e debruçar-
se sobre momentos particulares de sua existência: “She [Dickinson] tends to focus her poems
on single moments, and the isolation of an individual event in her poem corresponds to her
sense of the self’s ultimate loneliness” (Salska, 1985, p. 47). Esse isolamento de um
acontecimento particular que se torna matéria de poesia faz com que a escrita de Dickinson
seja também atemporal, mas em um sentido diferente da atemporalidade assumida por
Whitman. Enquanto o poeta universal condensa em si o seu próprio tempo, o tempo de seus
antepassados e o dos que ainda estão por vir e se torna, portanto, atemporal, em Dickinson
essa atemporalidade não se dá em um movimento expansivo, mas sim de concentração em si e
no isolamento do momento presente que, sem referências temporais diretas, torna-se, assim,
atemporal.
Diante disso, Walt Whitman e Emily Dickinson são considerados precursores da
modernidade poética na literatura norte-americana, tanto pela forma poética utilizada – em
Whitman, por exemplo, os versos muito longos e o estilo prosaico, e em Dickinson o uso
exacerbado do travessão1 - como pelos temas – a exemplo, o amor homossexual em Whitman
e a maneira de retratar a morte em Dickinson. Assim, o nome dos dois poetas tem grande peso
na história literária dos Estados Unidos e do Ocidente em geral, como afirma Bloom: “Nada
1
Note-se que apesar dessa inovação na forma poética, Emily Dickinson retoma a tradicional balada inglesa,
característica dos hinos religiosos, muito provavelmente por causa da educação religiosa que ela recebera.
carandá
Revista do Curso de Letras do Câmpus do Pantanal – UFMS,
Corumbá, MS, novembro 2011, n. 4, p. 140
na metade do século 19, ou no nosso quase concluído século, se iguala à obra de Whitman em
poder e sublimidade diretos, a não ser talvez Emily Dickinson” (Bloom, 1995, p.257).
Apesar das diferenças marcantes na escrita dos dois poetas, é possível identificar
temas similares entre ambos. No entanto, essas possíveis aproximações não podem deixar de
considerar as formas distintas que os temas tomaram na poesia de cada um. Nesse sentido, as
duas principais aproximações temáticas a que a crítica tradicionalmente se refere são em
relação à morte e à religião.
Para nenhum dos poetas a morte é tida como intimidadora, isto é, não há uma postura
de temor em relação a ela, mas sua presença na poesia de ambos é quase que uma obsessão:
Dickinson, the poet of dashes and telegraphic urgency, and
Whitman, the poet of the deep breath and the long line, are alike in the extent
to which they obsess about death. For both, the problem of human mortality
is an insistent challenge, not an abstraction but an experience somehow to be
endured. (Lehman, 2008, p. 12)
Para Whitman, a morte não representa um final, mas, sim, renovação, pois a energia
da vida não pode ser destruída, apenas modificada. Além disso, Lehman afirma que: “The
vision he proposes is of a self that will not die, and the reason he will not die is that he is a
poet and lives on his poetry” (Lehman, 2008, p.13).
Em oposição a isso, a morte é retratada nos poemas de Dickinson ora como elemento
personificado (a morte se coloca, por exemplo, como um senhor ou um amante), ora narrada
pelo próprio sujeito que estaria vivenciando essa situação de morte. A morte como fim
absoluto é, por vezes, negada e, outras vezes, ironizada, mas sem que se caia em pretensões
espirituais. Contudo, o sujeito lírico de Dickinson também não vê a morte com implicações
negativas e, sim, com serenidade e sem perturbações maiores.
Ligada ao tema da morte está a religião, que no século XIX ainda era uma questão
dominante nos EUA e mais especificamente na Nova Inglaterra, região onde viveu Emily
Dickinson e onde os puritanos ingleses estabeleceram suas primeiras colônias ao saírem da
Inglaterra por questões de perseguição religiosa.
Para Whitman, a religião e a espiritualidade de maneira mais abrangente estão em cada
indivíduo, em cada ser ou coisa existente no universo, não em uma entidade superior. O
próprio poeta se coloca, em alguns poemas, como Deus. Já nos poemas de Dickinson nota-se
com freqüência um questionamento irônico acerca da existência de um Deus e de sua
importância caso ele exista:
carandá
Revista do Curso de Letras do Câmpus do Pantanal – UFMS,
Corumbá, MS, novembro 2011, n. 4, p. 141
Contudo, apesar do tom irônico com que o sujeito lírico de Dickinson muitas vezes
trata a figura de Deus e as questões religiosas, ainda assim há muito em sua poesia de um
sentimento religioso que, no entanto, não pensa a religião como uma simples declaração de fé,
mas como reflexão sobre a beleza da natureza, por exemplo, e das experiências de alegria e de
êxtase. Nesse ponto, Salska afirma que talvez o posicionamento de Dickinson lembre o de
Whitman, no sentido de que para um e outro a poesia toma o lugar da religião. Whitman se
coloca como a voz oficial de uma nova religião enquanto Dickinson “[...] turned to poetry as
believers do to religion, for solace and sustenance in her hours of need” (Salska, 1985, p. 24).
Em meio a essas duas poéticas tão distintas se coloca o contexto histórico que os
poetas compartilham. Como já foi mencionado, Walt Whitman viveu entre 1819 e 1892, em
Nova Iorque, e Emily Dickinson viveu entre 1830 e 1886, em Amherst, Massachussetts.
Assim, morando na região Norte do país, ambos assistiram o desenrolar dos conflitos que
resultaram na Guerra Civil Americana, cujos combates duraram de 1861 a 1865. Whitman
dedicou diversos poemas a esse fato histórico e Dickinson, apesar de não se referir
diretamente à Guerra, escreveu poemas que concentram em si imagens claramente
relacionadas ao combate militar. Passaremos, então, a discutir a maneira como os dois poetas
responderam a esse marco do século XIX norte-americano.
1
Bloom se refere, aqui, ao poema 49J, “I never lost as much but twice”.
carandá
Revista do Curso de Letras do Câmpus do Pantanal – UFMS,
Corumbá, MS, novembro 2011, n. 4, p. 142
e até angustiante com a realidade da Guerra, transcrevemos abaixo três trechos de “Drum
Taps”:
“1861”
ARM'D year! year of the struggle!
No dainty rhymes or sentimental love verses for you, terrible year!
Not you as some pale poetling, seated at a desk, lisping cadenzas piano;
But as a strong man, erect, clothed in blue clothes, advancing, carrying a rifle on your shoulder,
With well-gristled body and sunburnt face and hands —with a knife in a belt at your side,
As I heard you shouting loud—your sonorous voice ringing across the continent;
Your masculine voice, O year, as rising amid the great cities,
Amid the men of Manhattan I saw you, as one of the workmen, the dwellers in Manhattan;
[…]
Saw I your gait and saw I your sinewy limbs, clothed in blue, bearing weapons, robust year;
Heard your determin'd voice, launch'd forth again and again;
Year that suddenly sang by the mouths of the round- lipp'd cannon,
I repeat you, hurrying, crashing, sad, distracted year.
“The Dresser”
3
On, on I go – (open, doors of time! open, hospital doors!)
The crush'd head I dress, (poor crazed hand, tear not the bandage away;)
The neck of the cavalry-man, with the bullet through and through, I examine;
Hard the breathing rattles, quite glazed already the eye, yet life struggles hard;
(Come, sweet death! be persuaded, O beautiful death!
In mercy come quickly.)
[…]
I dress the perforated shoulder the foot with the bullet wound
Cleanse the one with a gnawing and putrid gangrene, so sickening, so offensive,
While the attendant stands behind aside me, holding the trail and pail.
I am faithful, I do not give out;
The fractur’d thigh, the knee, the wound in the abdomen,
These and more I dress with impassive hand – (yet deep in my breast a fire, a burning flame.)
“Turn, O Libertad”
TURN, O Libertad, for the war is over,
(From it and all henceforth expanding, doubting no more, resolute, sweeping the world,)
Turn from lands retrospective, recording proofs of the past;
From the singers that sing the trailing glories of the past;
From the chants of the feudal world—the triumphs of kings, slavery, caste;
Turn to the world, the triumphs reserv'd and to come — give up that backward world;
Leave to the singers of hitherto—give them the trailing past;
But what remains, remains for singers for you—wars to come are for you;
(Lo! how the wars of the past have duly inured to you — and the wars of the present also inure:)
—Then turn, and be not alarm'd, O Libertad—turn your undying face,
To where the future, greater than all the past,
Is swiftly, surely preparing for you
(The Walt Whitman Archive: www.whitmanarchive.org)
carandá
Revista do Curso de Letras do Câmpus do Pantanal – UFMS,
Corumbá, MS, novembro 2011, n. 4, p. 144
“Volta, ó Liberdade”
“[...] the dominating metaphor for the war is a hospital, filled with injured men who must be
nursed or, if dying, comforted.” (Gutman, 1998, s.p.).
A descrição da situação dos feridos é bastante realista (“cabeça esmagada”, “ombro
perfurado”, “pútrida gangrena”, “fêmur fraturado”, etc.), mas se mescla a imagens poéticas
que dão o poder emocional do poema (“pobre mão louca”, “a vida luta duramente para se
manter”, “Vem, doce morte!”, etc.). Ao final, o poeta afirma que, apesar de todo o sofrimento,
ele não desiste, pois sua “mão impassível” alivia a dor alheia e seu coração possui “uma
chama ardente” que lhe dá esperanças e ânimo para prosseguir.
A imagem desenhada nesse poema parece, portanto, fotográfica e carrega em si a
experiência do próprio poeta. Assim, o sujeito lírico se coloca como participante das situações
descritas e, por isso, tem condições de retratar a guerra mais realisticamente do que no poema
anterior. É preciso mencionar, ainda, que “The Dresser” está localizado na metade de “Drum
Taps” e se diferencia significativamente dos poemas anteriores e posteriores a ele. Em outras
palavras, é visível que “The Dresser” marca a mudança de tom em “Drum Taps”, da exaltação
à Guerra para a crueza de sua realidade.
Dessa forma, parece-nos plausível afirmar que “Drum Taps” se constitui de três
conjuntos de poemas em uma sequência cuidadosamente preparada: o primeiro seria
composto por poemas de exaltação à Guerra, o segundo é o próprio “The Dresser”, com o
retrato do sofrimento advindo dos conflitos armados, e, por último, os poemas que clamam
pela liberdade e refletem sobre os efeitos dessa Guerra tão sangrenta.
Para elucidar a terceira parte de “Drum Taps” escolhemos um poema cujo título
explicita seu tema – “Volta, ó Liberdade”. Nele, o poeta canta o fim da Guerra e o desejo de
que a liberdade se restabeleça, num tom otimista e esperançoso de que as atrocidades desses
conflitos não se repitam na história. Aqui, a voz lírica se dirige à Liberdade, personificando-a,
e o pedido feito a ela é para que volte ao mundo, “registrando provas do passado” e
permanecendo para “os que hão de vir”. Note-se que a Liberdade é tratada como uma
entidade de grande poder, uma vez que as guerras, do passado e do presente, submetem-se a
ela e as guerras do futuro serão por sua preservação. Nesse sentido, os últimos versos
concentram em si a esperança do poeta de que a Liberdade seja agora permanente: “Então
retorna e não fiques alarmada, ó Liberdade – volta a tua face imorredoura / Para onde o
futuro, maior do que todo o passado, / Está, rapidamente e com certeza, se preparando para
ti.”
carandá
Revista do Curso de Letras do Câmpus do Pantanal – UFMS,
Corumbá, MS, novembro 2011, n. 4, p. 147
Com isso, “Drum Taps” se encerra cantando o retorno da paz e da liberdade. Percebe-
se, portanto, que há um caminho percorrido pelos poemas de Whitman sobre a Guerra,
iniciado com sua celebração, de um ponto de vista de observador, passando por um retrato
mais realista dos combates, a partir de seu envolvimento pessoal com a Guerra, e terminando
com a esperança de que tudo será reconstruído. Sua resposta à experiência da Guerra se
modifica ao longo dos poemas, como explica Gutman:
Ao contrário do que ocorre na poesia de Walt Whitman, não se pode afirmar que
Emily Dickinson tenha dedicado uma parte de seus poemas às questões da Guerra Civil. Isso
se deve, em primeiro lugar, à ausência de referências diretas a fatos ou pessoas ligados ao
contexto da Guerra. Soma-se também o fato de que Dickinson não datou seus poemas, o que
dificulta a comprovação de que tal ou qual poema teria sido escrito durante os anos da Guerra
Civil. Além disso, os poemas que podemos classificar como sendo sobre a Guerra falam, na
verdade, de morte, de Deus, da existência humana, de conflitos, isto é, de temas comuns em
sua poesia, o que faz com que muitos críticos rejeitem a possibilidade de ela ter se expressado
especificamente sobre a Guerra Civil. Desse modo, não se pode identificar um
posicionamento da poeta em relação ao seu contexto histórico sem que se caia em sugestões.
Emily Dickinson não teve um envolvimento direto com a Guerra como o fez
Whitman. Aparentemente, a poeta não se preocupava com questões políticas, uma vez que
não há, por exemplo, registros em suas cartas de comentários ou críticas acerca dos conflitos
entre os Estados do Sul e os do Norte, região onde ela habitava. No entanto, com o avanço dos
combates a família Dickinson viu amigos partirem para a Guerra (inclusive o amigo mais
próximo da poeta, T. W. Higginson) e serem feridos ou mortos em batalha, o que pode ter
afetado significativamente o interesse da poeta pelo assunto. Ademais, o pai de Dickinson
assinava jornais diários que traziam as notícias da Guerra e o próprio irmão da poeta pagara
uma taxa para não ter que lutar. Assim, apesar da reclusão, Emily Dickinson tinha pleno
conhecimento sobre o que estava acontecendo nos EUA, mas sua relação com a Guerra e sua
possível resposta a ela são ainda enigmáticas.
carandá
Revista do Curso de Letras do Câmpus do Pantanal – UFMS,
Corumbá, MS, novembro 2011, n. 4, p. 148
615J
Nesse poema, o sujeito lírico também parece se apropriar da voz de um soldado, mas
se diferencia do poema anterior por apresentar-se na forma do plural: “Our journey”, “Our
pace”, “Our feet”. Compreende-se, portanto, que enquanto no primeiro poema o soldado
parecia estar sozinho no momento de sua morte, aqui o sujeito lírico fala em nome de um
regimento de soldados que, em seu caminho, se deparou com a morte.
Diante dessa situação, recuar não seria possível (“Retreat – was out of Hope –”), pois
atrás dos soldados a estrada está fechada e à frente a bandeira branca da eternidade se impõe
como um símbolo da morte, retomando e ao mesmo tempo amenizando a imagem da floresta
dos mortos. A idéia de “retreat” aqui também pode ser entendida como um recuo emocional,
que não é possível por serem as imagens da guerra e da morte marcantes demais para serem
apagadas, como cicatrizes.
Por fim, é preciso enfatizar que a interpretação desse poema como a expressão de
Emily Dickinson sobre a Guerra Civil é apenas uma das possibilidades de leitura. Podemos
pensar, por exemplo, que o sujeito lírico está falando da jornada da vida, da existência
humana e da morte, que são os motivos de nossos conflitos pessoais e que, quando se
impõem, não há como recuar. Ademais, ao termos que enfrentar a morte de um modo ou de
outro, perdemos a ingenuidade da vida e passamos a enxergar sua finitude sem podermos
recuar, isto é, sem podermos voltar à nossa inocência anterior. Da mesma forma, “My Portion
is Defeat – today –” também nos coloca a possibilidade de interpretá-lo por um viés mais
subjetivo, uma vez que vitória e derrota são inerentes à nossa vivência pessoal e nos suscitam
reflexões existenciais tão complexas como as do soldado, em especial no momento em que
nos despedimos da vida.
Assim, é por essa possibilidade de dupla interpretação que a crítica com freqüência
nega que Emily Dickinson tenha, de fato, escrito sobre a Guerra Civil e argumenta que as
imagens referentes a uma situação de guerra são, na verdade, uma apropriação temática por
parte da poeta para expressar seus próprios conflitos internos. Nesse sentido, poemas como os
dois que destacamos neste trabalho seriam a expressão das dúvidas e medos da poeta sobre a
existência humana, sobre Deus e sobre ela mesma. Ainda assim, não se pode negar que esses
poemas possuem em si uma carga semântica que nos lembra o cenário bélico em questão e,
que, por isso, fundamentam a leitura aqui proposta.
carandá
Revista do Curso de Letras do Câmpus do Pantanal – UFMS,
Corumbá, MS, novembro 2011, n. 4, p. 151
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Como foi discutido, a ausência de referências contextuais nos impede de afirmar que
Emily Dickinson teria dedicado, de fato, uma parte de sua obra à Guerra Civil. Entretanto,a
leitura de “My Portion is Defeat – today –” e de “Our journey had advanced –” sob a luz dos
poemas de “Drum Taps” nos revela uma nova porta de entrada para sua poesia. Em outras
palavras, uma vez que se lêem os poemas de Whitman sobre a Guerra Civil e a eles se
sobrepõem os poemas de Dickinson, podemos ver com maior nitidez as imagens referentes a
um contexto de guerra.
É evidente, contudo, que essas imagens se constituem de modos diferentes em cada
poeta. Whitman privilegia as descrições ricas em detalhes, fazendo com que as imagens dos
soldados, por exemplo, se pareçam com fotografias e, assim, correspondam ao máximo de
realidade possível. Por outro lado, as descrições de Dickinson são obscurecidas pelo ritmo
interrompido dos travessões e pelas construções metafóricas que exigem uma leitura mais
atenta, além dos termos empregados por ela com conotações polissêmicas (a exemplo:
portion, victory, defeat, blank, journey, eternity, route, etc.).
Além disso, a leitura de “Drum Taps” nos mostra o quanto Walt Whitman se envolveu
na Guerra Civil e como ele se posiciona diante desse contexto. Já na poesia de Emily
Dickinson, é exatamente por ela não se referir claramente à guerra que muitos estudiosos
rejeitam seu envolvimento nas questões políticas e sociais de sua época. A falta de referências
diretas à Guerra não significa, no entanto, que a poeta não teria sido afetada por esse
acontecimento e, consequentemente, não teria respondido a ele, inclusive porque seus poemas
foram escritos de maneira muito reservada, o que lhe dava a possibilidade de se expressar
sobre o que desejasse e da maneira que lhe fosse mais conveniente. É precisa lembrar, ainda,
que a escrita de Dickinson é caracteristicamente elíptica e, por isso, instiga diversas
referências possíveis, o que faz com que sua poesia seja vista como enigmática.
Os poemas de Dickinson sobre a guerra também não possuem os versos
comemorativos como os que ocorrem, por exemplo, em “Mil oitocentos e sessenta e um” e
em “Volta, ó Liberdade”. Dessa forma, a poeta não só deixa de se referir a aspectos
particulares da guerra como também constrói seus poemas de modo a não se equiparar a
qualquer ideologia de perpetuar os esforços pela manutenção da unidade dos EUA.
carandá
Revista do Curso de Letras do Câmpus do Pantanal – UFMS,
Corumbá, MS, novembro 2011, n. 4, p. 152
Também nos chama atenção a maneira como a morte é apresentada nos dois poemas
de Dickinson aqui estudados e em “The Dresser”. Como foi mencionado anteriormente, a
morte não é uma questão intimidadora para os poetas e se torna quase que uma obsessão
dentro da obra de ambos. Assim, em “The Dresser” Whitman retrata a morte como um alívio
diante de todo o sofrimento causado pelos combates bélicos. A mesma postura parece ter
Dickinson em “My Portion is Defeat – today – ”, enquanto que em “Our journey had
advanced –” a morte vem como uma imposição e não há meios de não encará-la, mas ainda
assim não se deixam entrever quaisquer sentimentos de medo ou repugnância para com ela.
Ademais, a Guerra Civil causou, como se sabe, um número de mortes superior a
qualquer outro conflito envolvendo os EUA e devastou esse país de maneira assustadora. Por
isso, o retrato dessa situação é composto, em Whitman, de cabeças esmagadas, ombros
perfurados, pés feridos, dores persistentes e partes do corpo fraturadas; a mesma imagem se
constrói em Dickinson, mas de forma mais metafórica, como se observa no uso de termos
como “Forest of the dead”, “Piles of solid Moan” e “scraps of Prayer”.
É preciso observar, também, como ambos os poetas falam da morte sem implicações
religiosas. Novamente, a morte em “The dresser” e em “My Portion is Defeat – today – ”
significa o fim da realidade da guerra, sem que se mencione nenhum apego a qualquer
entidade superior capaz de confortar o soldado que sofre. Apenas em “Our journey had
advanced –” é que a figura de Deus aparece e a morte se liga à eternidade, isto é, a morte não
é considerada o fim absoluto do ser. Esse Deus está “at every gate”, mas não se sabe se Ele se
encontra ali para acolher ou para bloquear a passagem à eternidade. Se temos conhecimento
da ironia com que Dickinson costuma tratar a figura de Deus, então as duas leituras se tornam
possíveis.
Por fim, salientamos que a obra poética de Whitman e de Dickinson é de tamanha
importância para a literatura que não há meios de compará-los a não ser para mostrar as
peculiaridades de cada um e as diferenças tão grandes entre eles. O que propomos aqui foi
partir dos poemas de “Drum Taps” para poemas de uma contemporânea de Whitman que,
vivendo sob o mesmo contexto histórico e sendo possuidora de uma mente tão genial quanto a
dele, teria tido condições de refletir sobre as questões de seu tempo e de criar uma forma de
expressão para elas, ainda que enigmática. Nesse sentido, buscamos compreender melhor a
possível resposta de Emily Dickinson à Guerra Civil ao mesmo tempo em que nos
aprofundamos no posicionamento de Whitman em relação ao mesmo tema e percebemos que
carandá
Revista do Curso de Letras do Câmpus do Pantanal – UFMS,
Corumbá, MS, novembro 2011, n. 4, p. 153
a leitura do poeta universal se revela uma contribuição significativa para que se ramifiquem as
possíveis interpretações da poesia de Emily Dickinson.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BLOOM, Harold. Emily Dickinson: Vazios, Arrebatamentos, as Trevas. In: ________. O Cânone
Ocidental: Os Livros e a Escola do Tempo. Tradução de Marcos Santarrita. Rio de Janeiro: Editora
Objetiva, 1995.
____________. Walt Whitman como centro do Cânone Americano. In: ________. O Cânone
Ocidental: Os Livros e a Escola do Tempo. Tradução de Marcos Santarrita. Rio de Janeiro: Editora
Objetiva, 1995.
DICKINSON, Emily. The complete Poems of Emily Dickinson. Edição de Thomas H. Johnson. New
York: Back Bay Books, 1961.
____________. The letters of Emily Dickinson. Organizado por Thomas H. Johnson e Theadora
Ward. Cambridge: Harvard University Press, 1996.
____________. Alguns poemas. Traduções de José Lira. São Paulo: Iluminuras, 2008.
GUTMAN, Huck. Drum Taps. In: LeMASTER, J. R. e KUMMINGS, D. D. (Edição). Walt
Whitman: An Encyclopedia. New York: Garland Publishing, 1998. Disponível em
http://www.whitmanarchive.org/criticism/current/encyclopedia/entry_83.html. Último acesso:
08/101/2011.
KIRCHBERGER, Joe H. Civil War and Reconstruction: an Eyewitness History. New York: Facts
on File, 1991.
LEHMAN, David. The visionary Whitman. In: BLAKE, David Haven; ROBERTSON, Michael (Ed.).
Walt Whitman, where the future becomes present. Iowa: University of Iowa Press, 2008.
SALSKA, Agnieszka. Walt Whitman and Emily Dickinson – Poetry of the Central Consciousness.
Philadelphia: University of Pennsylvania Press, 1985.
WHITMAN, Walt. Drum Taps. In: Leaves of Grass. Disponível em
<http://whitmanarchive.org/published/other/DrumTaps.html> Último acesso em 10 de janeiro de
2011.
_______________. Folhas de Erva. Tradução de Maria de Lourdes Guimarães. Vol.1. Lisboa:
Relógio D’água Editores, 2002.
_______________. Folhas de Relva. Tradução de Luciano Alves Meira. São Paulo: Martin Claret,
2006.
carandá
Revista do Curso de Letras do Câmpus do Pantanal – UFMS,
Corumbá, MS, novembro 2011, n. 4, p. 154
RESUMO: O objetivo deste artigo é ilustrar as fases do realismo, de Courbet e Champfleury a Dumas
Filho, e caracterizar o pertencimento deste autor dramático ao movimento a partir da análise do
prefácio da peça Le demi-monde (1855). Mais do que simplesmente pertencer a um movimento
literário, Dumas Filho discorre sobre a necessidade de fazer uma arte “útil”, que mostre a realidade
dos fatos para nela identificar o certo e o errado – de acordo com sua visão de mundo. A peça Le demi-
monde, não só levou aos palcos este “mundo intermediário”, situado entre o mundo respeitável e o
mundo da prostituição, como pretendeu redefini-lo, enriquecendo o verbete para compor os
dicionários futuros.
ABSTRACT: The aim of this paper is to illustrate the phases of the realism, from Courbet and
Champfleury to Dumas Jr., and characterize the membership of this playwright to the movement from
the analysis of the preface of the play Le Demi-Monde (1855). More than simply belonging to a
literary movement, Dumas Jr. writes about the need of an useful art that shows the reality of the facts
to identify therein right and wrong – according to his world view. The play Le Demi-Monde not only
took to the stages this “intermediate world”, placed between the respectable world and the world of
prostitution, but also intended to redefine it, enriching the entry to the future dictionaries.
1
Mestre em Letras Neolatinas, área de concentração Estudos Literários Neolatinos, opção Literaturas de Língua
Francesa. Grupo PRISMA, Faculdade de Letras, Universidade Federal do Rio de Janeiro. Rio de
Janeiro/Brasil. E-mail: silviaufrj@yahoo.com.br. Este artigo é baseado na dissertação de mestrado SANTOS,
Silvia Pereira. Le demi-monde (1855) de Alexandre Dumas Filho: cenografia de um drama burguês. Faculdade
de Letras / Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2010. http://www.letras.ufrj.br/pgneolatinas/
media/bancoteses/silviapereirasantosmestrado.pdf
carandá
Revista do Curso de Letras do Câmpus do Pantanal – UFMS,
Corumbá, MS, novembro 2011, n. 4, p. 155
as quais o filme Camille, de 1936, dirigido por George Cukor, com Greta Garbo e Robert
Taylor, e uma versão de 1980, dirigida por Mauro Bolognini, com Isabelle Huppert.
A peça Le demi-monde foi escrita em 1855 e também se tornou um grande sucesso.
Porém, trata de uma realidade muito peculiar da cidade de Paris do século XIX, e por isso de
difícil tradução atualmente. O demi-monde, para Dumas Filho, se refere, conforme definição
dada no prefácio da obra, a uma “classe de [mulheres] desclassificadas”, definição esta que o
autor distingue da “multidão das cortesãs” (Dumas Fils, 1898, p. 11). 1
Trata-se de uma
redefinição do demi-monde, com a qual Dumas Filho pretende estabelecer o verbete para os
dicionários futuros. Segundo ele, “Não pertence ao demi-monde quem quer. É preciso mostrar
seu valor para ser admitida” (Dumas Fils, 1898, p. 11). Ou seja: é um mundo composto por
mulheres cujas raízes estão na “sociedade regular”, mas que resolveram desertar, sobretudo
em nome de um amor questionável. Mas é um mundo que também acolhe jovens que
começaram a vida por uma falta (como uma gravidez indesejada, por exemplo). Dumas Filho
admite que os “diferentes mundos se mesclaram nas últimas oscilações do planeta social”, e
teme que as “inoculações perniciosas” resultantes deste contato se generalizem, que sua
definição seja para as gerações futuras descendentes nada mais do que um “detalhe puramente
arqueológico”, e que eles confundam “o alto, o meio e o baixo” (Dumas Fils, 1898, p. 12).
O REALISMO
1
As traduções utilizadas são nossas e os trechos originais foram omitidos para facilitar a leitura.
carandá
Revista do Curso de Letras do Câmpus do Pantanal – UFMS,
Corumbá, MS, novembro 2011, n. 4, p. 156
Para Champfleury, um grande exemplo de operário habilidoso que une, com maestria, a
realidade inventada à realidade da natureza é Diderot. Segundo Champfleury, quando se tenta
diminuir o mérito do escritor, acusando-o de falta de imaginação, esquece-se que poucos são
capazes de tornar a história dramática, como fez Diderot. Todos os dias acontecem em nossas
vidas eventos singulares que nos tocam, mas não somos capazes de transformá-los em
romances ou comédias. O soldado que assiste à batalha é incapaz de contá-la no papel.
Diderot é um inventor ao deixar esta obra de arte, pois cem escritores no seu lugar não seriam
tocados pelo tema. E a forma que utiliza para tornar o drama possível lhe é própria
(Champfleury, 1857, p. 93).
A vida é composta por numerosos fatos insignificantes; as conversas são cheias de
detalhes que não devem ser reproduzidos sob pena de fatigar o leitor. Um drama real não
começa com uma ação interessante. O romancista é o responsável pela escolha dos fatos
interessantes, pelo seu agrupamento, distribuição e encadeamento. Os partidários da realidade
na arte sustentam que há uma escolha a fazer na natureza. Curioso, ativo, frequentador
assíduo do mundo, o autor deve ser capaz de descrever, em um ser, vários seres que encontra.
(Champfleury, 1857, p. 96).
Reconhecemos em Alexandre Dumas Filho estas principais características dos grandes
realistas nos moldes propostos por Champfleury: curioso, ativo e frequentador assíduo do
mundo, ou melhor, da sociedade parisiense de seu tempo. Tais características podem ser
notadas no prefácio da peça Le demi-monde, em que Dumas Filho narra com detalhes suas
incursões pelo submundo que dará nome à peça, demonstrando seu caráter investigativo.
Dumas conta que em uma noite de sábado de janeiro de 1853, no teatro Opéra, foi
abordado por uma dominó “muito elegante e saltitante”, que se apresentou como senhora M...
e perguntou se ele a conhecia. A seguir o diálogo que se travou:
—
— De reputação, apenas.
— E o que dizem de mim?
— Que você é muito graciosa, muito espirituosa e... muito alegre.
— Você quer ter certeza disto?
— Adoraria.
— Venha, terça-feira, para uma recepção em minha casa.
— A que horas começa a recepção?
— Como em qualquer lugar; quando as pessoas chegam.
carandá
Revista do Curso de Letras do Câmpus do Pantanal – UFMS,
Corumbá, MS, novembro 2011, n. 4, p. 158
— E termina?
— Quando se vão. (Dumas Fils, 1898, p. 5).
atuem como guias autorizados a convencer o leitor ou o espectador de sua tese. É esta a
função-padrão do raisonneur1 em suas comédias-tese.
A mais velha das senhoras, que ele chamou de baronesa V..., tinha cerca de cinqüenta
anos e era mãe das duas jovens. Viúva, ela contava com a ajuda dos antigos amigos e
depositava suas esperanças no casamento das filhas para desfrutar de uma velhice tranqüila.
Uma das filhas, porém, já tinha dado à luz um menino, que era criado às escondidas “como se
fosse o Homem da máscara de ferro” (Dumas Fils, 1898, p. 8). Ninguém à volta da jovem
mãe parecia suspeitar deste detalhe, que, na verdade, era conhecido por todos. Esta mulher, a
baronesa V..., é representada na peça pela viscondessa de Vernières. As filhas da baronesa
V... são substituídas na peça pela simpática sobrinha Marcelle, que mantém intacta sua honra
e é salva do demi-monde por Olivier, que ao final está disposto a desposá-la. Observa-se aqui
um contraponto à verdade nua e crua, que é atenuada para dar um ar de final feliz à trama,
típico da comédia.
Por outro lado, se Marcelle aparece como a “mocinha”, Valentine de Santis herda as
mesmas características da senhora S..., a terceira e última mulher descrita por Dumas Filho no
prefácio. Assim como a senhora S..., Valentine se separa do marido por causa de uma traição
e volta a utilizar o nome de solteira; mas a senhora S... tem ainda um agravante que não
aparece na peça: um filho, que cresce acreditando que sua mãe está morta, enquanto ela
recebe uma pensão para não revelar a verdade. Enfim, o autor dirá: “tudo que acabei de contar
sendo absolutamente verdadeiro, o leitor reconhecerá que apesar de nossa ousadia, ficaremos
sempre abaixo daquilo que a realidade nos oferece” (Dumas Fils, 1898, p. 9).
René Doumic, em Portraits d'écrivains (Retratos de escritores) (1892), ilustra de forma
adequada o tipo de descrição da realidade que Dumas utiliza e que destacamos aqui. Segundo
Doumic, embora todas as resoluções de Dumas Filho sigam uma lógica, elas apresentam-se
em contradição com o desfecho provável que a situação teria na vida real, ou seja, existe um
desacordo entre a lógica do teatro de Dumas Filho e a lógica da vida. Não há intenção de
mostrar como as coisas se passam ordinariamente, mas como deveriam acontecer (Doumic,
1
Raisonneur é a personagem, geralmente de comédia, da qual o autor se serve para exprimir a ideia que quer pôr
em cena.
carandá
Revista do Curso de Letras do Câmpus do Pantanal – UFMS,
Corumbá, MS, novembro 2011, n. 4, p. 160
1892, p. 48). Tais observações apresentam uma característica interessante e única no realismo
de Dumas Filho, que está perfeitamente de acordo, mais uma vez, com seus objetivos
moralistas. Trata-se da apresentação de experiências destinadas a fazer com que os exemplos
mostrem o triunfo do bem e do ideal.
Assim, Doumic conclui, de forma coerente, que Dumas Filho não é propriamente o que
se chama comumente de realista, pois, enquanto o realista atém-se à reprodução do que a vida
apresenta de ordinário e comum, Dumas Filho estudou os casos de exceção; enquanto o
realista tem por constante preocupação não intervir no jogo natural dos acontecimentos,
Dumas Filho arranja os fatos. Como bem observa o autor:
O realista fica chocado ao ver que na maior parte do tempo nossas intenções
ficam sem efeito, nossos projetos não alcançam sucesso, nossas investidas
não terminam, que tudo fica incompleto, inacabado, que tudo aborta. Dumas
nos apresenta ações completas; ela vai até o topo de suas ideias, e leva a
paixão até suas últimas consequências. (Doumic, 1892, p. 49-50).
Esta citação é a definição mesma da arte de Dumas Filho, que, segundo Doumic, parte
do realismo, mas para ultrapassá-lo, e tem como base o real, mas como fim um ideal
(Doumic, 1892, p. 50).
As habilidades investigativas de Alexandre Dumas Filho também não passaram
despercebidas por seus críticos. Na crítica da peça O Filho Natural (Le fils naturel, 1858)
Montégut (1858) comenta que a maior qualidade de Dumas Filho é saber observar e ouvir o
mundo parisiense; ver, ouvir e escrever: isto é, para ele, ser um realista. E, de acordo com sua
opinião, o realismo é detestável no teatro, que vive de ação e paixão, uma vez que, na
ausência de um narrador, como no romance, a personagem precisa transmitir seus sentimentos
com uma simplicidade que a complexa realidade não pode fornecer. Porém, admite que certos
sentimentos e condições da vida são mais aplicáveis ao realismo do que outras – para ele, o
mal e a vulgaridade são condições humanas normais e, por isso, devem ser transcritas
exatamente como são, pois serão compreendidas.
O crítico considera que a peça Le demi-monde foi um sucesso porque teve o objetivo de
mostrar os costumes deste mundo artificial que vive de mentiras e falsas aparências, e o
atingiu graças a mais uma qualidade de Dumas Filho ressaltada pelo crítico: “ele sabe
discernir o que é digno de atenção e o que é digno de desprezo” (Montégut, 1858, p. 710).
carandá
Revista do Curso de Letras do Câmpus do Pantanal – UFMS,
Corumbá, MS, novembro 2011, n. 4, p. 161
Montégut vai sublinhar ainda outra característica marcante de Dumas Filho, ao acunhá-
lo de “jacobino dramaturgo”: “É um jacobino dramaturgo que não hesita diante de meio
algum para atingir seu objetivo, e que pensa que o fim justifica todos os meios” (Montégut,
1858, p. 702).
Utilizando a nomenclatura dos grupos proeminentes de Revolução Francesa, emprega-
se o termo girondinos para aqueles grupos que, embora proponham mudanças, aplicam as
teorias políticas de forma mais tímida, e apesar de serem tidos como de direita, aceitam fazer
concessões e conjunções de interesses, posicionando-se mais ao centro e adquirindo mais
funções reformistas do que revolucionárias. Possuem um estilo sóbrio, falam lentamente, sem
paixão.
Os jacobinos, por sua vez, são os verdadeiros revolucionários no sentido puro da
palavra: são aqueles tidos como radicais, aqueles que buscam o reverso da ordem estabelecida
– são os “demolidores”.
Se considerarmos a utilização que Alexandre Dumas Filho faz de seu teatro como uma
tribuna, em que defende os valores morais de uma burguesia não reformista, há aí um
hibridismo entre a forma radical de propaganda política, típica de um jacobino, e a defesa de
valores e instituições tais como família e fidelidade. Da mesma forma, o prefácio também
apresenta um componente híbrido de um vocabulário que denota uma luta em busca de um
lugar de destaque no campo literário, enquanto a escolha pela dramaturgia já consagra tal
lugar, visto ser o teatro um gênero literário de grande prestígio.
O realismo, como precursor do naturalismo, movimento este associado a um
cientificismo positivista que busca “relatar” a “realidade” tal como ela é, aplicando à literatura
métodos das ciências matemáticas e naturais, tenderia à busca da verdade acima de tudo, o
que traria embutida uma impessoalidade, um afastamento do escritor-cientista de seu mundo-
objeto de estudo. Nas peças de Dumas Filho, ao contrário, observa-se a presença constante do
autor em suas personagens e em seus textos.
No romance A dama das Camélias (1848), seu trabalho mais famoso que foi por ele
mesmo adaptado ao teatro, inspirou-se em suas próprias relações com a cortesã Marie
Duplessis. Dumas Filho participou ativamente em uma recepção no demi-monde, nos mesmos
moldes daquelas que apresentará na peça homônima. Finalmente, no prefácio à peça O Filho
Natural (Le fils naturel, 1858) Alexandre Dumas Filho confessa que se trata de sua peça
preferida, visto tratar-se do desenvolvimento de uma tese social e de uma “pintura dos
costumes, dos caracteres, dos ridículos e das paixões”, de forma a fazer o espectador refletir, e
carandá
Revista do Curso de Letras do Câmpus do Pantanal – UFMS,
Corumbá, MS, novembro 2011, n. 4, p. 162
para tanto escolheu a questão que considera “mais interessante e mais dramática” neste
sentido, que é a questão dos filhos naturais. “É uma idéia fixa”, escreve ele (Dumas Fils,
1899, p. 5). Ao eleger a peça O Filho Natural como favorita, por seu tema e pela forma como
foi escrita, Dumas Filho mais uma vez se faz presente em seu trabalho, tendo sua situação
familiar particular de filho ilegítimo representada em cena.
A arte de Courbet apresenta-se em um momento decisivo durante o período da
Revolução de 1848. Naquele momento, ele produz uma série de telas tidas como realistas, tais
como Après-dîner à Ornans (1848-49), Les Casseurs de pierre (1849) e Un enterrement à
Ornans (1849-50), que vão consagrá-lo não só como um grande pintor mas também como um
revolucionário da vida cultural parisiense. Sua figura era incômoda, tanto pelo desprezo que
tinha pelas autoridades oficiais e por sua simpatia pela vida republicana como,
principalmente, pelo escândalo que provocava seu realismo, o qual afrontava os cânones
dominantes e os dogmas clássicos segundo os quais a arte digna deste nome implicaria mais
do que a exata reprodução das aparências naturais (Fried, 1993, p. 14).
Fried chama a atenção para a distinção que faz Diderot entre teatro, que seria uma
construção artificial, e o drama, que supõe uma descontinuidade entre representação e
público, um isolamento entre o mundo da representação e o mundo do espectador (Fried,
1993, p. 22). Diderot leva esta concepção dramática para a pintura: ela deve “esquecer” o
espectador. A arte de Courbet, segundo Fried, apresenta características desta tradição
antiteatral da pintura francesa, como ao representar figuras vistas de costas - sugerindo que
não tem consciência ou não se importa com a presença do espectador (Fried, 1993, p. 246).
Pode-se trazer esta visão antiteatral de recusa de artificialidade, esta descontinuidade
entre representação e público, para a leitura peça Le demi-monde. Uma das características do
drama sério sistematizado por Diderot e retomado por Alexandre Dumas Filho é a presença de
pantomima, ou seja, do movimento dos corpos, que, aliada ao cenário e ao figurino da peça,
colocam o espectador em uma posição de voyeur, que observa a intimidade doméstica dos
personagens. Ora, trata-se de uma estratégia do teatro de Dumas Filho de tornar seu teatro
realista no que se refere à representação, em que as cenas se passariam independentemente da
presença do espectador.
A presença recorrente de imagens de si nas pinturas de Courbet, seja explicitamente,
seja metaforicamente, leva frequentemente à caracterização de sua arte como narcisista, tese
refutada por Fried por centrar-se excessivamente no ato da visão em detrimento do ato da
pintura (Fried, 1993, p. 286), simplificando grosseiramente a dinâmica de sua obra. A
carandá
Revista do Curso de Letras do Câmpus do Pantanal – UFMS,
Corumbá, MS, novembro 2011, n. 4, p. 163
CONCLUSÃO
REFERÊNCIAS
BOURDIEU, Pierre. Les règles de l’art: genèse et structure du champ littéraire. Paris: Seuil, 1992.
DOUMIC, René. Portraits d'écrivains : Alexandre Dumas fils, Émile Augier, Victorien Sardou,
Octave Feuillet, Edmond et Jules de Goncourt, Émile Zola,Alphonse Daudet, J.-J. Weiss. Paris: Crété,
1892. Disponível em: http://gallica.bnf.fr/. Acesso em: 16 out. 2009.
DUMAS FILS, Alexandre. Théâtre complet avec préfaces inédites. T. II. Paris: Calmann Lévy, 1898.
Disponível em: <http://gallica.bnf.fr>. Acesso em: 12 jan. 2008.
FRIED, Michael. Le réalisme de Courbet. Trad. Michel Gautier. Paris: Gallimard, 1993.
MONTÉGUT, Émile. Le théâtre réaliste: Le fils naturel, comédie en cinq actes, par Alexandre Dumas
fils. In: Revue des deux mondes. T. 13, jan-fev, 1858, p. 701-716. Disponível em:
<http://gallica.bnf.fr>. Acesso em: 10 jan. 2008.
SANTOS, Silvia Pereira. Le demi-monde (1855) de Alexandre Dumas Filho: cenografia de um drama
burguês. Faculdade de Letras / Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2010. Dissertação de
Mestrado.
TOUCHARD, .P. A. Réalisme, poésie et réalité au théatre. In: JACQUOT, Jean (org). Réalisme et
poésie au théâtre. Paris: Centre National de la Recherche Scientifique, 1960.
carandá
Revista do Curso de Letras do Câmpus do Pantanal – UFMS,
Corumbá, MS, novembro 2011, n. 4, p. 165
RESUMO: Este trabalho busca entender, através de algumas observações pontuais, a relação entre
realismo e realidade em Eça de Queirós. Essa leitura visa compreender a mudança na forma do
romance na última década do século XIX por parte do escritor, além de expor os problemas vinculados
ao intento de produzir uma literatura calcada na observação do mundo como perspectiva de
representação da realidade.
ABSTRACT: This paper tries to understand, through some punctual observations, the relationship
between realism and reality in Eça de Queirós. This lecture want comprehend the change in the novel
form on the last decade of XIXth century, and explain the problems linked with the intent to produce a
literature based on the world’s observation like perspective of representation of reality.
1
Doutor em Literatura Portuguesa pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de
São Paulo, com a tese sobre A Ideia de História no Último Eça. E-mail: giuito@hotmail.br
carandá
Revista do Curso de Letras do Câmpus do Pantanal – UFMS,
Corumbá, MS, novembro 2011, n. 4, p. 166
Também, em outro artigo, este sem assinatura, sobre a conferência de Eça de Queirós
apresenta-se a afirmação de que “[a literatura] começa a reagir contra o falso, pintando a
realidade. O realismo é a arte do presente” (apud Berrini, 2000, p. 36). Neste ponto, temos o
argumento de que o realismo é uma reação contra a falsificação, já que esta noção de
literatura seria a arte da verdade, ou seja, a arte que reproduz a realidade em sua melhor
forma.
Com estas duas apreciações da apresentação de Eça de Queirós sobre a literatura
realista nas Conferências do Casino, podemos depreender que a nova literatura depende da
observação atenciosa da realidade para que sua transposição para a linguagem artística não
soe falsa. Desse ponto de vista, podemos destacar duas etapas:
1
Como aponta dos artigos coligidos por Beatriz Berrini: “é a abolição da retórica considerada como arte de
promover a comoção pela inchação do período, pela epilepsia da palavra, pela congestão dos tropos” (apud
Berrini, 2000, p. 29).
carandá
Revista do Curso de Letras do Câmpus do Pantanal – UFMS,
Corumbá, MS, novembro 2011, n. 4, p. 167
Nesta carta, ao menos no trecho destacado, notamos que é mantida a importância que a
observação tem para a produção do romance, já que, do ponto de vista do leitor, neste caso
Antero de Quental, o romance deixa transparecer a realidade natural das coisas.
Se levarmos em conta a relação entre observação, ponto crucial neste primeiro
momento do realismo, e transposição artística do real, temos que a primeira é responsável
pela representação da verdade, e, se a verdade das coisas está ligada ao mundo, obtemos que
verdade é realidade, portanto o realismo representa através da observação o mundo em si.
Num segundo momento, em prefácios a livros de amigos, Eça de Queirós faz alguns
apontamentos sobre o realismo/naturalismo, como no prefácio ao Brasileiro Soares de Luiz
de Magalhães, em que Eça de Queirós aponta para a qualidade do escritor e destaca que “o
seu livro […] tem a realidade bem observada e a observação bem exprimida – as duas
qualidades supremas, as que se devem procurar antes de tudo na obra de Arte” (Queiroz,
2000, p. 1808). Neste caso, ele aponta as categorias seguidas pelo escritor e a atualidade de
seu livro, fato que nos deixa entrever dois pontos para o julgamento, a observação e a
transposição desta para o escrito.
Em outro prefácio, nesta caso aos Azulejos do Conde Arnoso, o romancista afirma
“que o Naturalismo consiste apenas em pintar a tua rua como ela é na sua realidade e não
carandá
Revista do Curso de Letras do Câmpus do Pantanal – UFMS,
Corumbá, MS, novembro 2011, n. 4, p. 168
como tu a poderias idear na tua imaginação” (Queiroz, 2000, p. 1795, destaque do autor).
Neste ponto apresenta-se a relação que a realidade guarda com o eu, já que a pintura da obra
de arte depende da sua realidade. Aqui, já se pode perceber que a representação através da
observação não dá conta de toda a realidade envolvida, além de destacar que o processo de
criação da arte realista desprezava o “ruído” que havia entre observador/mundo e matéria
observada/produto textual.
Ambos os prefácios são datados de 1886, com uma pequena diferença de tempo
(Brasileiro Soares de 21 de maio e Azulejos de 12 de junho), mas apresentam um contraste
quanto à noção de realismo, já que no primeiro texto temos a confirmação de preceitos
apresentados anteriormente, enquanto no segundo somos sutilmente expostos ao problema de
que a observação situa-se no particular, condição que não permite dar conta da realidade
inteira que o romance tenta representar.
Passando adiante, notamos que em A Correspondência de Fradique Mendes fica
perceptível uma mudança na representação de Eça de Queirós. Isso é destacado por Carlos
Reis quando aponta que este romance “representa […] uma superação de estratégias literárias
e métodos críticos ditados pelo Realismo e pelo Naturalismo” (Reis, 2001, p. 199). É
justamente neste romance que encontramos uma carta, deste personagem para Antero de
Quental, problematizando a observação. Esta passagem chamou a atenção de A. Campos
Matos que a intitulou de alegoria do nevoeiro, afirmando que neste ponto Fradique Mendes
“pretende demonstrar as limitações da nossa capacidade de ajuizar e discernir a realidade que
vemos” (Matos, 1993, p. 425).
Antes de vermos os argumentos de Fradique Mendes, precisamos entender os
pressupostos de uma carta endereçada a Antero de Quental, afinal este breve excerto de carta
citada na primeira parte do romance faz menção ao pensamento do poeta. Dessa maneira,
como um primeiro exemplo destacamos a abertura do perfil feito por Eça de Queirós para o In
Memoriam do amigo:
Este homem era Antero. As referências ao Romantismo, com sua noite e sua lua,
demonstram mais do que o homem, expõe a impressão que o jovem Eça teve do poeta e mais
tarde amigo.
Passando a outros pontos deste perfil, ressaltamos um comentário do escritor sobre a
inteligência de Antero de Quental,
A condição colocada por Fradique dificulta a visão, levando ao engano, pois segundo
ele há um paralelo entre o homem imerso no nevoeiro e o homem imerso no mundo moderno,
já que ambos têm sua visão obstruída, o que dificulta, se não impossibilita, observar a
realidade. Se lembrarmos da atitude do jovem Eça que defendia a observação como meio para
criar o romance realista, temos, neste ponto, uma problematização desse método, já que, neste
caso, a realidade observada aparece incompleta, enganosa, pois a visão encontra-se obstruída.
Fradique Mendes coloca outra questão sobre o realismo, a linguagem, pois quando
afirma que “o verbo humano, tal como o falamos, é ainda impotente para encarnar a menor
impressão intelectual ou reproduzir a simples forma dum arbusto... Eu não sei escrever!
Ninguém sabe escrever!” (Queiroz, 1997, p. 112). Ele está pensando na relação que o signo
guarda com o mundo em si, o que nos faz lembrar a definição de Saussure de que
visão por uma mais complexa, em que problematizam justamente a apreensão do mundo pelo
homem, pois reconhecem que a realidade do mundo não é apreensível em sua completude.
Esta problematização exige que eles reformulem o modo de representar a realidade: Antero
opta por escrever ensaios filosóficos, enquanto Eça modifica a forma de seus romances.
Os romances de Eça de Queriós passam a ter uma forma calcada na complexidade
narrativa, ao invés de narradores objetivos e impessoais dos primeiros romances, o escritor
produz narradores com posições precárias, como é exemplo a função de Zé Fernandes,
narrador de A Cidade e as Serras, ou do narrador sem nome de A Correspondência de
Fradique Mendes, ou, ainda, a condição que o narrador de A Ilustre Casa de Ramires ocupa
no último capítulo, em que o protagonista, que seguiu durante toda a narrativa, se ausenta e
faz com que o narrador tenha que seguir núcleos de personagens secundários.
Desses três romances, a estrutura que mais chama a atenção é a de A Correspondência
de Fradique Mendes, pois neste romance, além de apresentar uma estrutura na forma de uma
dissertação científica, uma introdução situacional, biográfica, e uma seleção de documentos.
Além disso, o romance tem em sua contrução um personagem que possui um estatuto de
realidade, algo semelhante com os heterônimos de Fernando Pessoa. Esta condição do
personagem permite pensarmos na relação que o mundo guarda com a linguagem, pois se o
signo é arbitrário, este permite a criação de entes sem posição material no mundo, já que a
relação que o significado mantém com o significante não possui parâmetro exato.
Se pensarmos na separação entre a observação, ainda que ela seja relativizada, e a
linguagem que vai representá-la, temos um realismo ingênuo pautado somente no observável,
que não leva em conta a condição primeira de que não é possível a compreensão do mundo
sem que seja pela linguagem. Porém, ainda assim, se mantém a questão de como conciliar a
suposição de um mundo idêntico para todos os observadores se não é possível acessá-lo se
não mediado pela linguagem.
Desse ponto de vista, a observação do mundo não permite a apreensão total da
realidade, pois, se tivermos em mente a ideia de que mundo e linguagem são dois elementos
separados, se o mundo existe independente da linguagem, quer dizer que qualquer exposição
sobre o mundo será incompleta, por causa da descontinuidade intrínseca da relação.
Porém, se tivermos que o mundo já se encontra linguisticamente estruturado, teríamos
que a apreensão do mundo através da observação não atingiria a totalidade, mas seria a única
apreensão possível dele (Cf. Habermas, 2004, p. 8).
carandá
Revista do Curso de Letras do Câmpus do Pantanal – UFMS,
Corumbá, MS, novembro 2011, n. 4, p. 173
REFERÊNCIAS
QUEIROZ, Eça de. “A correspondência de Fradique Mendes”. In: __________. Obra Completa, vol
II. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1997, pp. 53-216.
carandá
Revista do Curso de Letras do Câmpus do Pantanal – UFMS,
Corumbá, MS, novembro 2011, n. 4, p. 174
QUEIROZ, Eça de. “A Nova Literatura: o Realismo como nova expressão da arte”. In: __________.
Literatura e Arte: uma antologia. Lisboa: Relógio d’Água, 2000, pp. 21-39.
QUEIROZ, Eça de. “Prefácio ao Brasileiro Soares de Luiz e Magalhães”. In: __________. Obra
Completa, vol III. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2000, pp. 1804-1809.
QUEIROZ, Eça de. “Prefácio aos Azulejos do Conde de Arnoso”. In: __________. Obra Completa,
vol III. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2000, pp. 1791-1803.
QUEIROZ, Eça de. “Um gênio que era um santo”. In: __________. Obra Completa, vol III. Rio de
Janeiro: Nova Aguilar, 2000, pp. 1761-1787.
QUEIROZ, Eça de. Idealismo e realismo. In: __________. Obras completas, vol. III. Porto: Lellos &
Irmão, 1979, p. 907-916.
QUENTAL, Antero de. Tendencias geraes da philosophia na segunda metade do século XIX. Revista
de Portugal. Porto, Editores Lugan & Genelioux, 1890, vol. II, pp. 5-20; pp. 149-171; pp. 281-306.
SAUSSURE, Ferdinand de. Curso de Lingüística Geral. São Paulo: Editora Cultrix, 2000.
carandá
Revista do Curso de Letras do Câmpus do Pantanal – UFMS,
Corumbá, MS, novembro 2011, n. 4, p. 175
INTRODUÇÃO
1
Formada em Letras no CPAN / UFMS; eherler@ibest.com.br.
2
Formada em Letras no CPAN / UFMS; mary_corumba@hotmail.com.
3
Doutor em Estudos Literários pela UNESP de Araraquara; professor no CPAN; coordenador do Grupo de
Pesquisa Luiz Vilela – gpluizvilela.blogspot.com; rauer.rauer@uol.com.br.
carandá
Revista do Curso de Letras do Câmpus do Pantanal – UFMS,
Corumbá, MS, novembro 2011, n. 4, p. 176
ENREDO
Segundo Bosi (2006), Lima Barreto sofreu com o preconceito por ser mulato e pobre.
Por causa de tudo que viveu e sofreu, ele desenvolveu certa aversão às classes dominantes e,
consequentemente, desenvolveu uma visão muito pessimista em relação à pátria. Em carta a
Georgino Avelino, ele desabafa:
A carta mostra um homem sem esperanças no seu país. Ele vê os defeitos e faz
acusações graves contra os políticos. Seria ele antinacionalista? Ou estava apenas sendo
crítico?
carandá
Revista do Curso de Letras do Câmpus do Pantanal – UFMS,
Corumbá, MS, novembro 2011, n. 4, p. 178
Se não considerássemos o fato de que a literatura de Lima Barreto tem caráter social,
poderíamos concluir que ele era antinacionalista. Mas, aqui, um novo problema se coloca:
como alguém pode denunciar os problemas de uma pátria que não ama? Lima Barreto utiliza
seus romances para combater as arbitrariedades e injustiças daqueles que realmente não se
preocupam com os problemas que então existiam no Brasil.
A crítica política e social é uma constante na obra de Lima Barreto (BOSI, 2006, p.
316-324). Em Numa e Ninfa (1923) ele também não perdoa os políticos e usa a caricatura
para mostrar os problemas sociais, econômicos e políticos da república, em especial os
desmandos dos políticos. Em Clara dos Anjos, obra inacabada, há também crítica social. A
pobreza é denunciada bem como a discriminação racial e social, tema também presente em
Recordações do escrivão Isaias Caminha (1909). Em os Bruzundangas (1923), a sátira é
contra o Brasil e a sociedade do início do século XX.
Houais afirma, no prefácio de Vidas urbanas, que a literatura de Lima Barreto é
engajada. Suas palavras têm a finalidade de “mover, demover, comover, remover e promover”
(Houais apud Lins, 1976, p. 18). Portanto, sua escrita não é apenas para divertir, mas vai
muito além, pois é também um instrumento de denúncia contra os poderosos e seus
desmandos, contra as injustiças e o descaso para com os mais pobres.
humor, a ironia, o sarcasmo”. Essa afirmação pode ser confirmada em várias passagens do
romance, tanto nas protagonizadas por Quaresma quanto por alguma outra personagem:
caricaturista nato, Lima Barreto pinta suas personagens com as cores do ridículo. Major
Quaresma é apresentado de forma histriônca. Não ridículo quanto à aparência física, mas sim
nas atitudes. A caricatura é o exagero das características de um indivíduo. No caso de
Quaresma, o que é caricaturado é o seu nacionalismo exagerado, nacionalismo cujo molde é
contrário às ideias do autor.
Rangel afirma ainda que. na obra de Lima Barreto, “[a] ironia chega ao sarcasmo, à
sátira, ao caricatural. Os tipos que ele traça são raramente tipos complexos. São almas lineares
de psicologia simples: ridículos sempre ridículos; maus sempre maus; bons sempre bons”
(Rangel, 1984, p. 97). Também essa afirmação pode ser confirmada no romance O triste fim
de Policarpo Quaresma, pois o protagonista é caricaturizado e se mostra ridículo, embora
seja uma boa pessoa. Não há mudança: Quaresma é o que é. Quando imaginamos que ele
aprendeu a lição, percebemos que não. Ele continua simples, acreditando nas pessoas e
lutando por seus ideais. Morre porque não consegue se calar ante as injustiças; no entanto,
tem a simplicidade de não perceber o perigo que corre. Bosi (2006, p. 319) diz que o cômico
acontece pelo quixotismo de Quaresma. Suas ações são sempre cômicas, além do mais, ele,
como Dom Quixote, é um visionário, como afirma Floriano quando ele pergunta se O
Marechal leu seu memorial sobre a agricultura. Ele quer fazer algo para ajudar o país, tem
boa-fé, mas não tem noção da realidade, o que o expõe a situações perigosas. Seus projetos
são de um despropósito que gera comicidade.
Há uma alternância do trágico e do cômico no romance. Segundo Aristóteles (2000, p.
39), a tragédia imita as ações de pessoas superiores e deve ter um desfecho capaz de provocar
piedade. A comédia é a imitação das ações inferiores, se volta para o cômico com a intenção
de fazer rir. Ambas fazem parte do drama. Há, em várias momentos do romance, a presença
do cômico e do trágico em alternância contínua. O projeto de mudança de idioma, os
momentos de delírio de Quaresma, sua mania de apreciar tudo que é nacional em detrimento
aos outros países, bem como os vários trechos que mostram a sociedade fútil, que apenas
vivia de aparências, são responsáveis pela comicidade da obra. Já a internação de Quaresma,
sua prisão e o desfecho são responsáveis pelo tom trágico.
Em Triste fim de Policarpo Quaresma, Lima Barreto critica o nacionalismo
exacerbado de pessoas, que como Policarpo, só conseguem ver o que o país tem de bom. Por
isso a personagem de Quaresma é caricaturada e grotesca. Lima Barreto, apesar de ser
carandá
Revista do Curso de Letras do Câmpus do Pantanal – UFMS,
Corumbá, MS, novembro 2011, n. 4, p. 181
nacionalista, não admitia os exageros, conseguia ser crítico o suficiente para perceber o que
estava errado, por isso fazia uma literatura de denúncia. Ele critica também os políticos e suas
arbitrariedades e sua pouca capacidade, bem como o positivismo, que, segundo ele, dá base
para todas as injustiças. Sua crítica se volta também para o coronelismo, praga do latifúndio
que invade as cidades, e o empreguismo, praga da vida pública para resolver questões
privadas.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Lins (1976, p. 22) afirma que Lima Barreto foi “um dos mais interessados analistas de
nossa realidade geografia, política e psicológica”.
Considerando essa afirmação e as considerações dos demais estudiosos que citamos,
percebemos que Lima Barreto sempre usou a palavra para denunciar os problemas sociais.
Sendo assim, em um primeiro momento, ao que parece, ele já não tem mais esperanças quanto
ao futuro do Brasil, o que o leva a um profundo pessimismo. Esse sentimento o faz construir
uma personagem como Policarpo Quaresma. Tudo em Quaresma é exagerado. Seu
nacionalismo ufanista, seu amor pela pátria, a valorização das belezas naturais e dos produtos
nacionais.
Quaresma não possui equilíbrio emocional, não tem limites. Seu nacionalismo é tão
absurdo e suas reações tão exaltadas que sua figura dá um tom quixotesco ao romance.
Provoca riso.
No entanto, a obra também explora o trágico, pois as mesmas atitudes que dão o tom
cômico levam a personagem a momentos trágicos, como o da sua morte, por exemplo. Outras
passagens como a morte de Ismênia e a violência após a batalha também são responsáveis
pelo tragicidade da obra. Bosi (2006, p. 320) afirma ainda que Quaresma queria “viver mais
brasileiramente em um Brasil que já estava deixando de o ser”.
Apesar da crítica de Lima Barreto ao nacionalismo isolado e doentio, em O triste fim
de Policarpo Quaresma a criatura representa alguma das ideias de seu criador, pois Lima
Barreto, como a personagem Quaresma, implica com tudo que é de fora, “até mesmo com o
futebol, porque era um jogo ‘importado’ e soltava um bando de ‘homens seminus’ correndo
carandá
Revista do Curso de Letras do Câmpus do Pantanal – UFMS,
Corumbá, MS, novembro 2011, n. 4, p. 182
diante da multidão” (Rangel, 1984, p. 93). No entanto ele não chega ao exagero de Quaresma,
consegue ser mais racional. Sabe dos problemas existentes no país e usa suas obras como
instrumento de denúncia.
Apesar desse caráter, a força da ficção de Lima Barreto está na reflexão que provoca a
partir da humanidade com que impregna suas personagens, a partir da revolução literária que
produz, incorporando à linguagem da literatura brasileira um modo de se expressar que rompe
com o academicismo até então vingente, e a partir de uma visão de mundo que amalgama a
vivência do subúrbio carioca a uma crítica que engloba da elite intelectual europeia e sua
vacuidade ao despreparo e ignorância das elites brasileiras. Neste quadro, discutir se Lima
Barreto era nacionalista quixotesco como Quaresma, ou um crítico implacável da
nacionalidade medíocre, torna-se questão menor.
REFERÊNCIAS:
BARRETO, Lima. Triste fim de Policarpo Quaresma. São Paulo: Martin Claret, 2001.
BOSI, Alfredo. História concisa da Literatura Brasileira. São Paulo: Cultrix, 2006.
LINS, Osman. Lima Barreto e o espaço romanesco. São Paulo: Ática, 1976.
RANGEL, Pascoal. Ensaios de literatura. Uma introdução à leitura de 16 autores brasileiros. Belo
Horizonte: O lutador, 1984.
carandá
Revista do Curso de Letras do Câmpus do Pantanal – UFMS,
Corumbá, MS, novembro 2011, n. 4, p. 183
ABSTRACT: This article seeks to articulate the concept of Florestan Fernandes's conservative
modernization from a comparative reading, which focuses the narrator's position in the Brazilian
Literature at two distinct moments: the entry of certain modernity in João do Rio’s amazed
dissembling and the bureaucratization of misery in Dalton Trevisan.
1
Mestre em Literatura e Crítica Literária pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP).
Professor convidado do curso de Pós-Graduação (Especialização) em Literatura pela PUC-SP, Departamento
de Literatura e Crítica Literária; sandromaio@hotmail.com.
carandá
Revista do Curso de Letras do Câmpus do Pantanal – UFMS,
Corumbá, MS, novembro 2011, n. 4, p. 184
Cronista do inicio do século, flâneur de uma belle époque deslocada frente ao cenário
de certa modernização, João do Rio procurou narrar o avesso das importações artificiosas do
carandá
Revista do Curso de Letras do Câmpus do Pantanal – UFMS,
Corumbá, MS, novembro 2011, n. 4, p. 185
O modelo europeu aqui repercutido pensa a exposição das mazelas sociais através de
imagens que buscam o efeito do choque, pois atenua o papel das figuras de autoridade que
acompanham o jornalista-personagem em suas incursões no submundo, ao mesmo tempo em
que torna agudos aspectos próprios da miséria como se fossem alheios ao reconhecimento do
processo. O crime e os criminosos ou miseráveis que compõem os quadros narrativos são
personagens que “ilustram” a modernização social, de modo a representar um traço já
previsto no modelo ideal das culturas dominantes, a partir de tensões atenuadas por um
reconhecido domínio histórico, o que é um padrão frente às mais variadas circunstâncias:
O que para o narrador é uma “lei”, uma conseqüência medida já por determinada
situação histórica, é para Florestan Fernandes outra face da mesma história:
A narrativa segue para tornar a ação policial um fato da realidade, a ser trazido para o
imaginário dessa desconhecida modernização como “espetáculo”, elencado por figuras como
o soldado e o próprio delegado que revela a violência como uma forma de relação com o
outro da História:
O soldado tornou a bater. De dentro então uma voz sonolenta
indagou:
- Quem é?
- Abra! É a polícia! Abra!
O silêncio continuou. Nervoso, o delegado atirou a bengala à
porta. (RIO, 2007, p. 146).
Logo, as condições de vida não demonstram a reforma esperada pelo narrador e, por
isso, justifica a comparação como continuidade natural de uma História que perpetua o
movimento de exclusão como norma. Tal questão parece criar espaço para a adjetivação do
narrador, no momento de sua retirada do “covil horrendo”: “Desci. Doíam-me as têmporas.
Era impossível o cheiro de todo aquele entulho humano” (RIO, 2007, p. 149). Mais uma vez o
progresso figura como signo mentor da reforma (seu produto de exclusão: o entulho), o que é
a correspondência que o narrador parece buscar enquanto identificação do herói da sua
narrativa (a figura de autoridade) e um previsto público leitor (a sociedade conservadora que
tinha acesso à leitura). O próprio espaço original de veiculação do texto – o jornal – é fonte de
construção de um imaginário que imprime pela idéia de inserção social certas proeminências:
carandá
Revista do Curso de Letras do Câmpus do Pantanal – UFMS,
Corumbá, MS, novembro 2011, n. 4, p. 188
Dalton Trevisan, escritor brasileiro que desponta nos anos 60, traz um narrador que
visita espaços e personagens à margem dos imperativos da modernização. Como revestimento
para essa voz narrativa, a consciência da concretização de uma modernização que trata o
carandá
Revista do Curso de Letras do Câmpus do Pantanal – UFMS,
Corumbá, MS, novembro 2011, n. 4, p. 189
Daí o outro do processo histórico ser mera peça de arquivo, previsível na constituição
social violenta em seus pequenos desvios cotidianos. O conto é ambientado possivelmente em
uma sala delegacia, onde vozes são recortas para a construção do texto. Percebe-se a presença
de um investigador, delegado ou mesmo escrivão que toma nota de um estupro que ocorre
“atrás da Ponte Preta”, na linha do trem. O texto preserva o tom de depoimento dos
personagens participantes a partir do recorte de vozes que organiza a narrativa. Tais
personagens, anônimos a princípio (a nomeação é sempre generalizante: Miguel de Tal,
Nelsinho de TAL, etc.) podem ser reconhecidos pela narrativa que os constroem através da
recolha burocratizada de sua voz. Cada um oferece seu traçado da “ocorrência”, forma que
obedece aos níveis de consciência e percepção, porém pontuados por certa intencionalidade,
decorrente de sua posição social. Todos justificam o crime, de uma forma ou de outra, sem
que não deixe de haver justificativa para sua existência: Miguel de Tal, foguista, diz que “Ao
carandá
Revista do Curso de Letras do Câmpus do Pantanal – UFMS,
Corumbá, MS, novembro 2011, n. 4, p. 190
cruzar a linha do trem, avistou três soldados e uma dona em atitude suspeita. Sentiu um
tremendo desejo de praticar o ato”. Logo à frente, a descrição do “ato”: “[...] retirando-lhe a
roupa e com ela mantendo relação, embora a força. Derrubou e, para abafar os gritos, tapou-
lhe o rosto com o casaco de foguista. Saciado ajudou os soldados [...]” (TREVISAN, 1985, p.
77). Apesar da aparente neutralidade daquele que escreve o depoimento, percebe-se certa
complacência: desde a “atitude suspeita” que insinua certo pacto de todos os participantes,
passando pelo “tremendo desejo” que por conseqüência justifica a utilização atenuante do
“embora a força” para a caracterização do crime. Por isso, a assertiva moral absolve de
antemão, pois o arrependimento do “mau gesto” (outra atenuação...) cria uma situação que faz
com que Miguel “[...] se oferece para casar com a menina [...] isto é, tão logo apronte os
papéis do desquite, de momento é casado” (TREVISAN, 1985, p. 77). Assim, a adversativa
“embora” se transfere para um termo explicativo “isto é” como construção de um discurso
que busca formas de reconhecimento em uma natureza violenta e arbitrária:
A narrativa encena personagens como Alfredo de Tal, Durval de Tal e Pereira, todos
eles soldados que protagonizam o crime. Para Durval “[...] a menina gostou de seu cabelo
loiro e olho azul. Aproximaram-se os colegas, um de cada vez abusou da pequena”
(TREVISAN, 1985, p.78). Discurso semelhante está no depoimento de Pereira que justifica o
crime pelo ensejo da ocasião:
A narrativa, porém, tem como fechamento não exatamente seu início – atrás da Ponte
Preta – mas, como sugere o título Embaixo da Ponte Preta. Tal expressão se impõe como
forma conclusiva da narrativa: o subsolo pelo qual escorre a história dos excluídos, a norma
do estado de exceção:
Ritinha estava chorando debaixo da Ponte Preta. Não sabia quem lha
havia feito mal, um dos soldados lhe enfiou a Túnica na cabeça [...]
Deflorada havia um mês por um soldado loiro chamado Euzébio”.
(TREVISAN, 1985, p.80).
Voz abafada que segue uma lógica de preservação das relações sociais dirigidas por
um Estado que sempre:
[…] agiu prontamente para impedir, seja pela repressão pura e simples
seja por outras formas,como a manipulação e a cooptação ou ainda por
meio da criação de instrumentos jurídico-políticos de controle e
exclusão. (SEGATTO, 2000, p. 202).
excluído: “O guarda-civil Leocádio, ao passar debaixo da Ponte Preta, viu uma negrinha
chorando” (TREVISAN, 1985, p. 81).
A voz do excluído tem sua trajetória realizada em espaços reduzidos, exposta como
uma fresta, porém intensa nos diminuídos espaços narrativos. A narrativa parece seguir um
conceito que parece estar densamente impregnado na construção histórica brasileira:
A empatia com o vencedor beneficia sempre, portanto, esses
dominadores [...] todos os que até hoje venceram participam do
cortejo triunfal, em que os dominadores de hoje espezinham os corpos
dos que estão prostrados no chão. Os despojos são carregados no
cortejo, como de praxe. Esses despojos são chamados de bens
culturais. (BENJAMIN, 1996, p. 225).
Tal identificação recolhida historicamente faz com o que o narrador traga como
matéria para sua narrativa o recalque de traumas não elaborados enquanto construção de uma
memória. O apagamento dos rastros, o solo que encobre a voz do excluído pelo qual passa o
“cortejo triunfante dos bens culturais”, faz da fantasmagoria uma constante enquanto
pesadelo, lapsos e reaparições de temas obsessivos, o que cria, conforme a narrativa propõe,
espaço para o trânsito dos discursos imobilizados na sua própria inscrição social: os papéis
estão dispostos e obedecem rigidamente ao que Sérgio Buarque de Holanda define como:
“[...] ‘ os movimentos aparentemente reformadores, no Brasil, (que) partiram quase sempre de
cima para baixo” (apud SEGATTO, 2000, p.207).
João do Rio sai às ruas para reconhecer não uma forma social, mas para a punição
daqueles que reconhecem a diferença como norma social. Nesse sentido, a rua não seria um
espaço público, mas espaço para a encenação de uma modernidade que torna o público
projeção individual de um cenário pequeno burguês de encenação de uma forma cultural de
transposição integral da internacionalização. Já Dalton mostra que a saída da rua é o
acolhimento da autoridade: de certa forma, a extensão do público é a reclusão
institucionalizada na proibição de um corpo sem espaço habitável. Daí que a cadeia ou o
isolamento – moral e social - é extensão da rua, no sentido de ser um outro pólo de exploração
e exclusão, porém regularizada formalmente e aceita como norma e conseqüência de uma
modernização que instaura a violência (em forma de fantasmagoria) como fundamento de sua
renovação – da senzala para a cela. A fantasmagoria se dá pela integração social pela
exclusão: o acolhimento é o recolhimento. O que cumpre a sentença benjaminiana de que “A
tradição dos oprimidos nos ensina que o ‘estado de exceção’ em que vivemos é na verdade
regra geral” (BENJAMIN, 1996, p.226).
carandá
Revista do Curso de Letras do Câmpus do Pantanal – UFMS,
Corumbá, MS, novembro 2011, n. 4, p. 195
REFERÊNCIAS
RESUMO: Este artigo discute o romance O quarto fechado de Lya Luft através da análise da voz
narrativa. Nossas considerações sobre o trabalho de Luft são baseadas nas contribuições feitas por
Norman Friedman em seu trabalho “O ponto de vista na ficção: o desenvolvimento de um conceito
crítico”.
ABSTRACT: This article discuss Lya Luft’s novel O quarto fechado (1984) through the narrative
voice’s analyzes. Our considerations about Luft’s work are based on the contributions made by
Norman Friedman’s article “O ponto de vista na ficção: o desenvolvimento de um conceito critic”.
1
Aluna de mestrado no Departamento de Línguas Românicas da Universidade da Geórgia, Estados Unidos da
América; clira@uga.edu.
carandá
Revista do Curso de Letras do Câmpus do Pantanal – UFMS,
Corumbá, MS, novembro 2011, n. 4, p. 197
como aquele físico onde Ella se encontra. Uma vez que a história se constitui de
“pensamentos, percepções e sentimentos à medida que eles ocorrem,” (177) desejamos
mostrar que esse espaço pode ser a mente. Logo, todos os personagens estão em seus quartos
fechados, seu universo particular e mental ao qual temos acesso pela via do romance.
Tentaremos, ainda, estabelecer um diálogo, quando possível, com a obra de Franz
Kafka, A metamorfose. Trazemos a personagem principal desta e a sua condição para dialogar
com as personagens e as situações apresentadas em O quarto fechado, sobretudo porque
consideramos que a figura grotesca de Ella (e também a de Gregor Samsa em A metamorfose)
podem ser lidas como a materialização dos nossos porões mentais. Ambos são aquilo que os
outros desejam esconder, uma mácula em um universo de aparências, algo que pode, de
repente, ruir; como as propostas de Freud sobre o inconsciente e seu conteúdo que temos que
reprimir.
Como a nossa intenção é a busca e a captura da voz narrativa no engendramento do
texto, iniciamos, pelo primeiro capítulo. O título deste é “A ilha.” A partir disso já
começamos a fazer algumas importantes inferências sobre o percurso narrativo. Inicialmente,
temos a ideia de isolamento, haja vista que segundo o Dicionário de símbolos, “[a] ilha [é o
lugar] a que se chega apenas depois de uma navegação ou de um vôo, é o símbolo por
excelência de um centro espiritual e, mais precisamente, do centro espiritual primordial”
(501). Assim, logo na abertura do capítulo temos a ideia desta movimentação que se dá rumo
à ilha, pois “[e]le dava os primeiros passos em sua Morte” (13) é a frase que abre o capítulo.
À medida que avançamos com a leitura, que é iniciada por esta voz em terceira pessoa,
vamos descobrindo que este novelo narrativo não vem de uma voz distanciada em sua
onisciência, pelo contrário, o fio monológico é quebrado com a pergunta, “[o] que está
fazendo conosco?” (13). Aqui, temos a inserção da voz narrativa, revelando que o que fora
construído anteriormente é fruto das construções mentais da voz que faz a pergunta. Além
disso, é possível dizermos que a maneira como começa resgata o pensamento da personagem
Renata, isto é, reitera a nossa observação do uso da onisciência seletiva múltipla. Ao mesmo
tempo, porém, logo depois de fazer a sua pergunta, temos, “[m]as calavam-se, procurando
ignorar um ao outro” (13). Aqui, embora pareça uma construção interna aos fatos, vemos que
ainda não há o distanciamento. Parece-nos que este comentário poderia ter sido feito tanto por
Martim quanto por Renata.
Na sequência, fala-se sobre a mulher muito cansada que toca um “teclado de vento” e
depois a respeito do homem que é um bruto e gostaria de esmurrar aquela que “reinava na
carandá
Revista do Curso de Letras do Câmpus do Pantanal – UFMS,
Corumbá, MS, novembro 2011, n. 4, p. 198
casa” (14). Com base nisso, vemos, a partir de toda a leitura do romance, que estes juízos que
são exprimidos pelo narrador são, também, reinforçados na narrativa através dos pensamentos
de Renata e Martim (e das outras personagens), do resgate que nós, leitores, temos destes.
Daí dizer, portanto, que ainda que pareça uma voz em separado, nada mais é que a
recuperação dos ecos dos pensamentos das próprias personagens a respeito dos outros e
também a respeito de si mesmas. Não se trata de um juízo externo, como em alguns
momentos a narrativa parece deslizar para isso. O que ocorre dentro do quarto fechado, em
nosso trabalho entendido, sobretudo, como o espaço mental, só é acessível ao leitor através da
penetração na mente das personagens e no conhecimento das suas vivências, não nos é
trazido, portanto, por uma voz impessoal. Quando muito, se não diretamente através da voz
das personagens, esta figura narrativa que oscila entre a presença e a ausência surge somente
para catalizar os ecos mentais, reunir os fragmentos, e devolvê-los em forma de ponte,
conectando os pensamentos de uma personagem a outra personagem.
Seguindo com a nossa análise, logo após a abertura em que temos acesso ao
pensamento de Renata, temos a transição entre o pensamento dela e o de Martim. Para que
isso ocorra, temos acesso aos seus questionamentos, depois o olhar de quem observa a cena,
como já mencionamos, mas que pode partir, também, de Renata para Martim ou de Martim
para Renata e, na sequência, adentramos a mente de Martim. Em um primeiro momento,
através do externo, uma maneira de compreender isso seria entendermos como o próprio olhar
de Renata capturando-o de relance, “o pai, ao lado dele, esticou as pernas procurando uma
posição melhor” (14). Daí em diante, uma nova pergunta, “[q]uem era sua adversária?,”
questão esta que pode, de fato, ser emitida por uma voz externalizada, mas que também pode
ser da própria personagem em relação a si mesma. Vemos, já desde o princípio da narrativa,
que o trabalho de construção desta se faz através desta ambiguidade, mas sempre visando a
nossa entrada nos pensamentos, desejos e pulsões das personagens.
Como podemos ver, ainda nesta primeira parte, o pensamento volta para Renata e há
uma série de questionamentos sendo construídos. Contudo, entre eles, permanece a sensação
de falência, primeiro por nunca ter conseguido cessar o distanciamento que existe entre ela e
Martim, segundo porque desconhece o que fez com o próprio filho. Logo, há representações
da sua falência no papel de esposa, mas também no papel de mãe. No libelo de seu
pensamento, questões são levantadas, fragmentos são trazidos à tona, a atmosfera que se
criara ali, o velório de Camilo, permite as incursões mentais às personagens.
carandá
Revista do Curso de Letras do Câmpus do Pantanal – UFMS,
Corumbá, MS, novembro 2011, n. 4, p. 199
Martim também está explorando seus porões mentais, “nunca amei assim outra
mulher” (16). Parece-nos que existe uma espécie de diálogo entre as personagens, ainda que
seja um diálogo silencioso, feito, justamente, do silêncio no plano do real. As cobranças,
frustrações e também a falência amorosa, a sensação de impotência e de desamor, ficam,
assim, reservadas à exploração do leitor. Este é que avança na narrativa, tal qual a chegada à
ilha, posto que esta “é um mundo em miniatura, uma imagem do cosmo completa e perfeita,”
(Chevalier e Gheerbrant 501) ou seja, adentramos a mente das personagens, através da sua
própria abertura na exibição de seus pensamentos. Somos nós os responsáveis, ao lado deste
narrador oscilante entre a presença e a ausência, por tecermos os fios que conectam a trama e
vão desembocar, do micro para o macro, na visão ampla desta família aprisionada em seu
quarto fechado.
A questão da presença narrativa, também na análise da obra de Lya Luft pode ser
considerada dado interessante, haja vista que segundo apontamentos de Donizete Batista em
“Espaço e identidade em Lya Luft,” os romances de Luft anteriores a O quarto fechado são
todos narrados em primeira pessoa. Portanto, sendo este o primeiro em que “utiliza um
narrador em terceira pessoa, mas mesmo assim, ainda promove, com extrema crueldade, uma
devassa na intimidade dos personagens desse romance” (9). No entanto, se considerarmos a
fundação da nossa análise, vemos que este não pode ser redutivamente considerado um
narrador de terceira pessoa, trata-se, no nosso ponto de vista, como já observamos, de um voz
narrativa de onisciência seletiva múltipla.
Assim, se pensarmos na constituição da obra de Luft, sempre de acordo com os
apontamentos de Batista, vemos que não há uma verdadeira mudança de foco narrativo.
Existe, porém, quando muito, um formato mais informal de adquirir os pensamentos das
personagens sem a ciência destas se prostrarem per se em análise. Retomando Friedman, “[a]
aparência dos personagens, o que eles fazem e dizem, o cenário – todos os materiais da
estória, portanto – podem ser transmitidos ao leitor unicamente através da mente de alguém
presente” (177). Debruçando-nos novamente em O quarto fechado, o viés de como aquela
sala está dividida, das pessoas que entram e saem do velório, a névoa que insiste em invadir a
casa, tudo que ali está sendo posto vem da mente das próprias personagens, ora desnuda e
declarada, normalmente através do uso explícito de perguntas, ora de maneira ambígua, como
já pontuamos anteriormente.
Além disso, uma vez que a mente é o espaço privilegiado ao qual temos acesso, o
quarto fechado que entramos, observamos a importância do uso da metáfora do quarto.
carandá
Revista do Curso de Letras do Câmpus do Pantanal – UFMS,
Corumbá, MS, novembro 2011, n. 4, p. 200
Batista, valendo-se dos apontamentos de Vanessa Kukul, informa que “tanto no âmbito do
território privado como no existencial, ‘o quarto é um dos espaços mais introspectivos que
existem,’” (63) daí a importância deste lugar para apontamento da reserva física de onde
armazenamos aquilo que nós é mais próprio e pessoal, a mente. Para iluminarmos a questão
do espaço, é possível trazermos as considerações de Lins na obra Lima Barreto e o espaço
romanesco, centrando-nos, porém, nos apontamentos dos capítulos IV, V e VI a saber,
“Espaço romanesco: conceito e possibilidades,” “Espaço romanesco e ambientação” e,
finalmente, “Espaço romanesco e suas funções.” Iniciamos com a dicotomia apontada por
Nelly Novaes Coelho citada por Lins.
Conforme Coelho, o ambiente natural equivale à paisagem, natureza livre, já o
ambiente social relaciona-se à natureza modificada pelo homem como, por exemplo, a
construção de uma casa, castelo, prédio, tenda. Entretanto, Lins amplia a questão do ambiente
social aplicando a este, também, os efeitos de ordem social, econômica e até mesmo histórica.
Dessa maneira, é através da oposição entre o ambiente natural, que pode, em O quarto
fechado, ser representado pela fazenda, uma vez que é o espaço onde o animal, o sentido
primevo dos homens é realçado, com o ambiente social, que aqui pode ser representado pela
casa de Mamãe, ampliando-se, porém, a sua atmosfera à mente, que vamos ter acesso ao
reverso da medalha das personagens. Do ponto de vista físico, ambos os espaços são
marcados pela morte.
No primeiro, temos a morte de Camilo que se locomove do ambiente da casa para,
possivelmente, suicidar-se no ambiente natural. Dessa maneira, se ampliarmos este
movimento para uma leitura alegórica, é possível dizer que este se liberta das amarras do
quarto, do inconsciente e permite que tudo o que estava dentro venha à tona. Este processo
ocorre, sobretudo, através dos humores humanos que ele libera na hora da morte:
natureza humana que pode aflorar dos porões interiores, lembremos, ainda, os encontros
furtivos entre Martim e Ella, um deles, aliás, que, antes da chegada de Martim, resultou na
“queda fatal” de Ella, condenando-a àquela vida vegetativa.
Em contra partida, mas em certa medida complementar, haja vista que a casa está
maculada pela presença bestial de Ella em seu quarto fechado, temos o espaço da casa. Este,
considerado ambiente social, é o lugar onde as aparências precisam ser mantidas. Entretanto,
esta condição não o impede, também, de ser cenário para a morte. Na casa ocorre a morte
(assassinato?) daquele que é nomeado na obra como anjo Rafael, “Clara já saía novamente do
quarto quando ouviu um baque surdo, mais outro e outro, alguma coisa rolando nos degraus.
Uma pancada final, um gemido fraquinho, como um miado” (Luft 91). Interessante é
observarmos que as memórias do anjo Rafael são durante a narrativa, recuperadas, sobretudo,
pela mente de Renata na tentativa de reconstruir o percurso frustrado do ato materno. As
outras personagens, na sua recuperação de seus mundos interiores, não se estendem muito à
condição do anjo. Notamos, ainda, que uma vez que ele é recuperado como anjo, vê-se
também a condenação da casa, posto que este ambiente é aquele onde ocorrera a morte de um
enviado divino, alegoria discreta da falência divina no manejar destas vidas também.
Continuando com a questão da construção narrativa, vemos que através do processo da
onisciência seletiva múltipla, nós temos acesso à história através da construção mental de
todas as personagens. No romance de Luft, como já apontamos, inicialmente, adentramos a
mente de Renata, depois incursinamos pela mente de Martim, ao passo que retornamos à
mente de Renata e através das construções que esta estabelece, conectamo-nos com a mente
do morto, “Camilo estava apaixonado [ . . . ] ‘é meu para sempre agora’ [ . . . ] Toda a beleza,
a ternura, o amor iam-se misturando numa nuvem, imprecisa noção de felicidade possível”
(22). Essa confissão é possível, através do relato único da mãe. Sem a reconstrução de toda a
atividade que envolve Camilo, não seria possível adentrarmos este universo, não fosse a
utilização do recurso do discurso fixo entre aspas, recuperando as memórias da própria
personagem, ainda que os verbos que introduzam estes discursos em via direta não sejam
enfáticos, como “imagina,” “pensava,” “sabia,” revelando que embora diálogos, são
monólogos mentais.
Além das personagens supracitadas, ainda temos, através do mesmo recurso, acesso à
mente de outras personagens. Na segunda parte do capítulo “A ilha,” adentramos o universo
de Carolina, “[e]ra uma moça? Um rapaz?”. Ainda que a sequência impersonalize o discurso,
“[o] sexo não se definia na pessoa deitada na cama,” (28) dando elevações de alguém que
carandá
Revista do Curso de Letras do Câmpus do Pantanal – UFMS,
Corumbá, MS, novembro 2011, n. 4, p. 202
observa a pessoa deitada na cama, compreendemos ser completamente possível que estas
observações sejam construções feitas dos ecos emitidos pelos juízos das outras personagens,
haja vista que o que está sendo dito não é algo que entre em dissonância com o que fora
pregrado até o momento a respeito de Carolina. Além disso, uma vez que a atmosfera é
construída, o acesso aos pensamentos da personagem se torna evidente. Alguns exemplos
disso são os momentos em que a construção narrativa declara “me deram uma injeção” ou, até
mesmo, quando a personagem fala com esta ausência, “_Não vá embora, Camilo” (29),
fazendo uma ligação entre o seu processo mental e o de outra personagem.
Entre os meandros que conectam os pensamentos das personagens umas as outras
nesta densa atmosfera, há momentos em que a voz coletiva, ou um sentimento que perpassa a
todos, é capturado. Algumas ilustrações possíveis deste ponto são recuperadas pelo soar da
campainha, nomeada como “instrumento de tortura” de Mamãe. Além desta, temos aquela em
que Mamãe e Carolina estão na escada e a voz ambígua do narrador, seriam os pensamentos
de Renata ou de Martim?, atesta “[u]ma velha gorda e bizarra, uma adolescente magra, de ar
doente. Nos calcanhares delas o bafo da repugnante goela que acossava atrás e aguardava no
fim do caminho. ‘Todos iremos para lá um dia.’ Todos” (63). Logo, vemos que o temor da
morte e também certa atração por este desconhecido incompreensível é assimilado através do
processo de recuperação de que todos os seres presentes passarão pelo mesmo processo, trata-
se de algo que os irmana em certa medida, uma vez que para a morte não existe nenhum tipo
de remédio, é um mal irreparável.
Ainda com relação à voz narrativa, ainda temos que discutir o momento em que a
mente de Mamãe e Clara são as mentes expostas em evidência na narração. Embora Mamãe
seja recuperada durante muitos momentos da tessitura narrativa, observamos que esta é
composta das construções dos outros, sobretudo os sentimentos de admiração por parte de
Martim e os de repulsa/adoração por parte de Renata. Durante boa parte da narrativa, tudo o
que temos dessa personagem nos é trazido pelas mentes de ambos, daí dizer que Mamãe é,
portanto, uma construção.
O acesso à mente dela é retardado na narrativa e só vamos penetrar este espaço, uma
vez que Mamãe é como uma entidade que circunda aquele espaço e é recuperada pelas outras
personagens, por volta da terceira parte. O acesso a este processo já começa com um antítese
grotesca, “[b]ela merda,” (98) em forma de discurso direto que é dirigido em forma
monológica, uma vez que Mamãe fala consigo mesma. A partir daí o capítulo irá recuperar o
carandá
Revista do Curso de Letras do Câmpus do Pantanal – UFMS,
Corumbá, MS, novembro 2011, n. 4, p. 203
itinerário do amor entre Ella e Martim, o qual já fora fornecido previamente pela mente de
Martim, mas aqui assume uma nova perspectiva, isto é, o olhar de Mamãe.
Além disso, a imagem um tanto quanto mítica e ambígua que é construída dela por
Renata e Martim da sua devoção e amor incondicional por todos, “Mamãe é de uma grandeza
comovente” (52) ou “Mamãe sempre queria compreender e perdoar” (72), mostra as ruínas da
sua fundação. Assim, acaba por pender totalmente para a ridicularização e a aproximação com
o universo caricatural e grotesco, haja vista que o adentramento do leitor ao seu universo é,
justamente, quando esta começa a se desnudar. Assim, este pode ser lido de maneira alegórica
também. Uma vez que Mamãe é capturada como esta mulher capaz de se desdobrar e fazer
tudo pelos outros, é ao “tirar a pintura com algodão passado e creme. Já [de cílios
desgrudados que vemos] os olhos nus [que] eram tristes entre dobras de pele murcha” (98)
que as suas verdades íntimas começam a aflorar. Portanto, uma vez que ela está já quase sem
qualquer retoque superficial, “Mamãe gemeu; deixara um resto de pintura no rosto, a cara de
um velho palhaço infeliz” emerge à superfície mental aquilo que ela tentara repelir e que, uma
vez desprovida da sua artificialidade, não é possível esconder, “[s]e ao menos Ella tivesse ido
em lugar de Camilo, pensou sem remorso” (99). Por conseguinte, acessamos seus
pensamentos secretos, penetramos seu porão mental e vemos a verdadeira face de Mamãe: o
palhaço infeliz que precisa entreter em um processo de punição infinita, aquele ser que se
transformara em animal, a filha que nunca amara.
Além de Mamãe, ainda temos o percurso narrativo de onisciência seletiva múltipla,
capturando os pensamentos de Clara. É através deste que temos acesso, também, ao indizível,
àquilo que os convivas desta não conhecem, isto é, sua breve e ambígua relação com o Padre.
Inicialmente, a visão que temos de Clara é aquela que chega até nós através das outras
personagens. Renata, por exemplo, ao trazer a construção familiar até nós, afirma sobre Clara,
“a irmã mais moça: bonita, solteira, cabelo branco em torno do rosto liso, um pouco fraca dos
nervos por algum desgosto de amor na juventude” (47). Além disso, ainda pelo pensamento
de Renata, temos a cena em que esta chega à casa de Mamãe logo depois de ter sido
comunicada sobre a morte de Camilo e sua visão de Clara a recrimina, “Clara esperando na
porta da casa, aparentemente calma, o rosto de boneca maquilado. ‘Ela nunca se descompõe’”
(66). Assim, partindo desta teia construída pelas outras personagens, vamos capturando uma
vaga ideia a respeito dela e do seu papel na narrativa. Entretanto, é somente ao termos acesso
à sua voz que vamos descobrir os meandros da sua vida, adentrando o seu quarto fechado.
carandá
Revista do Curso de Letras do Câmpus do Pantanal – UFMS,
Corumbá, MS, novembro 2011, n. 4, p. 204
A mente de Clara se desnuda pouco a pouco para nós ao final da segunda parte,
iniciando pelo processo em que esta escreve no “vidro embaciado: Clara. Por baixo, um
grande P elaborado” (75). Aqui, ainda como alguém que observa a cena em sua externalidade,
a voz narrativa prepara o adentramento à mente de Clara. Sua iniciação dá-se no rasgo do
discurso direto em forma monológica que se reproduz durante toda a obra, “‘Ele vai voltar’,
repetia. ‘Vai voltar’” (77). A partir daqui temos a permissão para ver os fatos a partir do ponto
de vista de Clara, da sua memória dolorida dos fatos. Clara reconstrói o amor que sentira pelo
Padre, a entrega de ambos e, finalmente, sua decepção ao saber que aquele que era objeto de
seu amor, não a desejava para possuir, senão para ver: “Ele precisava ver, só isso, ver” (84).
Aqui, partindo do percurso narrativo, é possível fazermos uma leitura freudiana a respeito da
função escópica. De acordo com Freud em Os instintos e as suas vicissitudes,
Logo, quando o padre pede somente para ver aquele que é símbolo do nascimento universal, o
sexo de Clara, haja vista que o Padre diz que “seria quase uma visão, uma visão mística,”
(Luft 84) temos a ideia exposta por Freud reforçada. Somente o olhar implica a satisfação.
Ainda de acordo com os apontamentos do teórico, o olhar adquire a função de gozo, uma vez
que é a realização da pulsão escopofílica, por ser posto no lugar de outro objeto. Logo, no
caso específico que estamos examinando, é possível dizer que a visão do sexo de Clara, teria,
para o Padre, a mesma pulsão sexual que possui-lo ou a mesma natureza sexual.
Uma vez que apresentamos o percurso narrativo de quase todas as personagens, resta-
nos, ainda, debruçarmo-nos na personagem que oscila, mesmo no universo narrativo, entre o
escopo de ser personagem ou somente uma menção, quase uma memória coletiva. Se Ella não
é assim, na nossa opinião, é simplesmente pelo fato de poder tocar a campainha e, tal qual
despertar as personagens de seus universos particulares, despertar, também, a nós leitores.
Essa personagem, tanto quanto as outras, é construída, inicialmente, pelo processo mental dos
presentes naquele ato cênico, “inaugural” de Camilo.
Como vemos com a narrativa, a primeira aparição de Ella no romance, dá-se através
do adentramento de um pensamento coletivo, “_O que será de Carolina?” ao que a voz
narrativa nos informa, “Todos indagavam-se, sussurravam na sala, diziam baixo na cozinha,
carandá
Revista do Curso de Letras do Câmpus do Pantanal – UFMS,
Corumbá, MS, novembro 2011, n. 4, p. 205
no jardim. ‘O que será de Carolina?’ A pergunta pairava no ar, arfava.” Assim, trata-se de
algo que era possível a Renata pensar, mas também a Martim, como também a Mamãe ou
como a Clara. Daí, por consequência, a ideia de totalidade reproduzida pela utilização do
pronome indefinido, “Todos”. Interessa-nos, porém, que a partir desta indagação e da
utilização do verbo “arfava,” que está relacionado intimamente a ideia de “respiração forçada”
(Aurélio), tenhamos, “[t]alvez a moradora do quarto no fim do corredor, no andar de cima,
percebesse que algo mudara na casa e no mundo; porque sua campainha tocara várias vezes
naquela noite” (Luft 23). Logo, embora possamos entender a pergunta como algo que pulsa
em todos os presentes, também é possível pensarmos como sendo o próprio questionamento
de Ella. Ela, a personagem, assume a sua voz através do uso daquela campainha, participando
da exposição dos porões daquelas personagens, sendo ela, porém, a própria personificação do
porão, uma vez que é um ser que os outros repelem e fica aprisionada ao seu universo dentro
daquele quarto fechado.
Para além desta nossa leitura da presença de Ella no romance, temos as considerações
de Maria Osana Costa em A mulher, o lúdico e o grotesco em Lya Luft. Segundo a autora,
Se tomarmos isso como uma maneira de olhar, temos o grotesco como síntese desta
presença, ou seja, Ella personifica todos os desejos reprimidos, os sentimentos ocultos, dentre
eles, em processo de extensão, o próprio ato da prática da escritura por parte de Luft. Logo, o
ato de escrever assume uma característica catártica e de transmutação, uma vez que é através
dele que é possível transformar a matéria estranha em algo reconhecível.
Partindo deste ponto, aliás, sobre a questão do estranho e tomando as observações de
Freud em seu artigo, “O estranho” é que vemos as relações possíveis entre Kafka e Luft,
sobretudo, pela presença de Ella e Gregor Samsa. De acordo com Freud, “o tema do
‘estranho’ [ . . . ] relaciona-se indubitavelmente com o que é assustador – com o que provoca
medo e horror.” Analisando o caso de ambas as personagens, elas passam do universo
familiar ao universo do estranho. Segundo Freud, embora ele vá desenvolver as suas ideias
em contraponto, mas antes de fazê-lo, estabelece, “o estranho é aquela categoria do assustador
carandá
Revista do Curso de Letras do Câmpus do Pantanal – UFMS,
Corumbá, MS, novembro 2011, n. 4, p. 206
que remete ao que é conhecido, de velho, e há muito familiar.” Assim, temos Gregor Samsa
era um filho exemplar e muito trabalhador, porém, “numa manhã, ao despertar de sonhos
inquietantes [ . . . ] deu por si na cama transformado num gigantesco inseto” (Kafka). Logo,
ocorreu um trânsito, ele deixa de ser o filho exemplar e adorado, aquele que traz o pão para
casa, para se tornar algo abominável, completamente estranho e que causa horror e repulsa.
Chegando, somente, a ser tolerado, “pelo dever familiar que impunha que esquecessem o
desgosto e tudo suportassem com paciência” (Kafka). Processo semelhante ocorre com Ella
em O quarto fechado, “‘[s]erá que ela sabe que sempre atendo porque tenho medo? Nunca me
queixo, não reclamo: medo’” (Luft 101). Essas personagens não são reconhecidas pelos laços
do passado ou pelo que têm de semelhantes àqueles que a circundam, senão pelo medo e pelo
terror que impõem aos presentes, isto é, são o “estranho” proposto por Freud personificado.
Aliás, julgamos importante o fato de que uma vez que são o “estranho,” ainda que no
caso de Gregor Samsa ele tenha sido metamorfoseado em um inseto, no caso de Ella, esta
também seja descrita como um inseto: “Martim tremeu ao zumbido do inseto gigante cujas
instalações permeavam a casa toda” (45). À primeira vista, a ideia que temos da construção
narrativa é o desejo de criar a repulsa, trazer o grotesco como forma de afastamento.
Entretanto, a escolha do inseto parece ser bastante significativa, haja vista que de acordo com
o Dicionário de Símbolos, os “insetos voadores são considerados frequentamente como as
almas dos mortos que visitam a terra” (507). Ainda que não exista referência ao fato de ser
voador ou não, no caso de O quarto fechado, temos a ideia de gigantesco, isto é, remete-nos à
impossibilidade do voo. No caso da Metamorfose de Kafka, sabemos que é um inseto que
rasteja, daí, talvez, se ampliarmos a leitura do dicionário, termos a noção de que talvez, por
estarem “pregados” à terra, são seres apegados a aspectos materiais. No caso de Ella, o sexo, e
o fato do desejo pelo “quase irmão” é que a leva ao seu estado vegetativo. Já no caso de
Gregor Samsa, existe a questão da avareza em certa medida, pois ele não para de trabalhar e,
de repente, contra a sua vontade, seu corpo se metamorfoseia, fazendo com que ele tenha que
parar.
Buscando ainda relações entre essas duas personagens, Gregor Samsa e Ella, podemos
falar a respeito da aparição pública de ambas quase ao final das obras. No caso de Gregor
Samsa, vemos que a irmã dele estava tocando música e a família tinha visita, mas, atraído
pelo som, ele decide sair do seu quarto fechado, “fora-se o tempo em que se orgulhava de ser
discreto” (Kafka). Este processo de saída do quarto pode ser compreendido em várias esferas,
haja vista, por exemplo, a exposição deste porão social que a família desejava esconder. Para
carandá
Revista do Curso de Letras do Câmpus do Pantanal – UFMS,
Corumbá, MS, novembro 2011, n. 4, p. 207
os parentes de Gregor, ele era um bicho e deveria ser mantido fora do convívio social. Porém,
tal e qual as aparições do inconsciente humano, ele decide sair e transitar pelo universo
proibido, humanizando-se, inclusive, neste processo, “poderia ser realmente um animal,
quando a música tinha sobre si tal efeito?” (Kafka). Seu surgimento, porém, desperta o horror
daquela que ele pensava ser a sua única aliada, sua irmã. Ao final, resta-lhe a morte e o
retorno daquele círculo fechado, à família, ao seu universo de aparências que por ser tão
tênue, pode ruir a qualquer momento, resultando no total apagamento das evidências, “[h]oje
à noite vamos despedi-la,” (Kafka) mas reconhecido da impossibilidade de interromper o
fluxo do inconsciente, resultando somente no processo das tentativas, até que este volte,
novamente, à tona.
No caso específico de O quarto fechado, este processo ocorre com a risada bestial ao
final do romance. Dentro daquela atmosfera extremamente pesada e compenetrada pela
grande anfitriã da noite, A Morte, o grotesco se rompe e invade o espaço, “Ella estava rindo:
sacudia o corpanzil de tanto rir, premia as pálpebras, virava a cabeça freneticamente no
travesseiro.” Ella, através da sua risada deixa de ser apenas uma presença recuperada pela
mente das outras personagens e se torna voz. Esta é recuperada pela narrativa como sendo “o
coração doente da casa [que] explodia” (Luft 110). Com isso, é como se todos as personagens
se irmanassem naquele rompimento, naquela explosão e ainda que não seja como no caso de
Gregor, isto é, através da morte, todas as repressões são trazidas ao espaço externo e todas as
pulsões escondidas e reprimidas são banidas de seus secretos espaços e os “novelos de poeira
e teias longamente tecidas agitaram-se” (110). Rompe-se, assim, qualquer possibilidade de
retorno à frágil e falsa estabilidade que se impusera até aqui, mostrando a sua verdadeira face.
Para concluirmos, vemos que todas as histórias que exploramos em nosso trabalho
revelam que no terreno destinado à mente nem sempre existe a possibilidade de mantermos o
quarto fechado. Nas edificações onde são construídas estas possibilidades sempre existe a
fragilidade de que aquilo que vem sendo escondido e enterrado nos nossos cemitérios mentais
retorne, de repente, à vida.
REFERÊNCIAS
Resumo: Durante muito tempo a variação lingüística esteve ausente na proposta pedagógica de ensino
de língua materna. Entretanto, com a democratização do ensino surgiu a necessidade de que esse
fenômeno lingüístico fosse tema de discussões no meio educacional. Dessa forma, o Manual Didático
de Português (MDP), como instrumento auxiliar a prática docente, é orientado a tratar da língua em
seu uso efetivo. Neste sentido, o presente trabalho possui como objetivo principal a realização de uma
análise descritiva, para observar a abordagem que o MDP confere à variação lingüística. Verificou-se
que os manuais apresentam significativo avanço quando garantem espaço a essa inovadora temática e
primam pelo reconhecimento e respeito às diferentes formas de fala e escrita distintas da considerada
como padrão.
Abstract: During many years, linguistic variation was absent in the educational proposal of teaching
mother tongue. However, with expansion of teaching arised the necessity that this linguistic
phenomenon was theme of discussion of teaching and learning. So the manual teaching methodology
of Portuguese, like auxiliary instrument of teaching, is direct to use the mother tongue actually. And
then, this essay has a main goal to realize a descriptive analysis, observing how way the manual
didactic of Portuguese check the linguistic variation. We verify that manuals present an important
advance when give a space to new thematic, it is free of prejudice about language, it respects all of
differences about speaking and writing.
INTRODUÇÃO
1
Especialista em Língua, Linguística e Literatura pela FIP — Faculdades Integradas de Patos, na Paraíba; e-
mail: jefersoncarlos23@bol.com.br.
carandá
Revista do Curso de Letras do Câmpus do Pantanal – UFMS,
Corumbá, MS, novembro 2011, n. 4, p. 210
trazidas pela nova clientela, tentando imprimir nesta a variedade padrão como enfatiza Bagno
(2007, p. 30).
Por outro lado, os avanços das pesquisas em estudos da linguagem permitiram que a
variação linguística não ficasse mais à margem do ensino de língua materna. Essa perspectiva
passou a integrar as propostas pedagógicas do ensino de língua, na tentativa de validar o
pensamento de que, no ensino-aprendizagem de diferentes maneiras de fala e escrita, o que se
deve buscar não é a introdução, quase que mecânica, de regras e mais regras gramaticais.
Pelo contrário, parece mais justo permitir que os educandos, levando em consideração as
características e condições do contexto de produção, possam escolher a forma de fala ou
escrita que considerarem mais adequada.
Dessa maneira, configura-se como imprescindível a realização de uma análise em
torno do material mais utilizado no processo de ensino de língua materna: os MDP’s1. Esse
material consolidou-se como um dos principais instrumentos auxiliares dos educadores no
desenvolvimento de sua prática. Dessa forma, observar e descrever como os manuais
abordam o fenômeno da variação linguística consiste no principal objetivo dessa
investigação.
Para tanto, considera-se de suma importância a Teoria da Variação, segundo a qual as
línguas são frutos das relações estabelecidas entre seus usuários através da linguagem, seja
em sua modalidade oral ou escrita. Sobre essa perspectiva Labov apud Hora (2004, p. 9)
esclarece que “A Teoria da Variação enfatiza a variabilidade e concebe a língua como
instrumento de comunicação usado por falantes da comunidade, num sistema de associações
comumente aceito entre formas arbitrárias e seus significados”.
Nesse sentido, é relevante reconhecer a manifestação do fenômeno da variação
linguística na Língua Portuguesa, mais precisamente no português brasileiro. As diferenças
nas falas dos brasileiros podem ser constatadas sob a ótica de alguns fatores como idade,
classe social, nível de escolarização ou localização geográfica. Tais peculiaridades não
permitem a consolidação dessa língua como uniforme ou homogênea. O que corrobora com o
pensamento de Possenti (2002, p. 23) ao enfatizar que todas as línguas variam.
Na verdade o ensino de língua portuguesa ainda considera como prioritário o estudo
de regras gramaticais. Não menos importante é o fato de que os estudos linguísticos já têm
espaço no ensino de língua materna. Tal postura deve-se ao fato de o próprio estado brasileiro
1
Leia-se Manuais Didáticos de Português.
carandá
Revista do Curso de Letras do Câmpus do Pantanal – UFMS,
Corumbá, MS, novembro 2011, n. 4, p. 211
Por ser uma das características inerentes aos seres humanos, a linguagem configura-se
desde muito tempo, mais precisamente com os gregos, como dado relevante às reflexões em
torno das línguas. Essas são consideradas instrumentos indispensáveis às relações
estabelecidas entre os participantes das mais diversas sociedades.
A ciência linguística surge com o objetivo principal de descrever as línguas, livre de
qualquer forma de preconceito, visto que, como as demais ciências, procura não desenvolver
especulações em torno do seu objeto de estudo, mas descrevê-lo. Nesse caso, visa tão
somente, uma análise descritiva acerca das línguas e não como essas poderiam vir a ser.
Reconhecer que uma língua apresenta variedades é validar seu caráter heterogêneo
motivado não só por fatores internos à língua, mas também pelos externos que correspondem
a fatores sociais através dos quais o reconhecimento das variedades linguísticas torna-se
menos complicado. Esses fatores procuram estabelecer parâmetros segundo os quais a língua
varia conforme a posição geográfica, status socioeconômico, grau de escolarização, idade,
sexo ou profissão, característica de cada falante. Portanto não existem variedades melhores
ou piores do que outras, pois todas se equivalem.
Cabe destacar também o preconceito provocado pelas diferenças nos falares de cada
região, à medida que um estado federativo quer se sobressair ao outro, linguisticamente
falando. Fato que acaba transformando a variação linguística em um fenômeno gerador de
disputas sobre quem melhor fala português.
Essa realidade vem se modificando, à medida que inovadoras posturas pedagógicas
defendem o reconhecimento e estudo em torno das variedades presentes no português
brasileiro. Contudo, essas teorias ainda penetram de forma tímida carecendo, também, de
pesquisas analíticas sobre como as novas metodologias fundamentadas na sociolinguística
estão sendo desenvolvidas.
mundo letrado. Não só para aceitá-lo, mas também para questioná-lo e mudá-lo estando
conscientes das variedades linguísticas presentes em sua língua materna.
É preciso que as escolas adotem uma postura de validação dos hábitos linguísticos
trazidos pelos educandos, priorizando um estudo reflexivo em torno das variedades
constituídas por fatores aqui já expostos. Com isso, o educando compreenderá que a sua
maneira de falar ou escrever é apenas diferente das outras e não inferior, podendo, a partir
daí, estar aberto à conscientização de que existe uma norma padrão da língua, tanto na sua
forma escrita quanto oral, a qual deve ser utilizada em determinadas situações comunicativas
que exigem o uso desta variante.
Ver considerado na escola seu modo próprio de falar, ser sensibilizado para a aceitação da
variedade lingüística que flui do outro, saber escolher a variedade adequada a cada situação
– estes são os ideais da formação da lingüística do cidadão numa sociedade democrática.
[...] A escola é o primeiro contacto do cidadão com o Estado, e seria bom que ele não se
assemelhasse a um “bicho estranho”, a um lugar onde se cuida de coisas fora da realidade
cotidiana. Com o tempo o aluno entenderá que para cada situação se requer uma variedade
lingüística, e será assim iniciado no padrão culto, caso já não o tenha trazido de casa
(Castilho, 2000, p. 21).
Nesse sentido, acredita-se que não há melhor material didático para que os estudos
linguísticos possam ser introduzidos em sala de aula do que os MDP´s que ao longo dos anos
vêm se consolidando como instrumento fundamental no processo de ensino-aprendizagem.
Entretanto, o que se observou durante algum tempo foi uma reclamação dos
educadores em torno do fato de que os textos, da maioria dos MDP’s, ainda configuravam-se
distantes da realidade dos educandos, como coloca Caporalini (2003, p. 99) ao afirmar que
“os textos apresentam apenas uma face da realidade, a qual é pouco representativa para a
maioria dos alunos”. Assim, as propostas apresentadas nos MDP’s podem ser questionadas
evitando o enfado ou desmotivação por parte dos educadores, bem como dos educandos.
carandá
Revista do Curso de Letras do Câmpus do Pantanal – UFMS,
Corumbá, MS, novembro 2011, n. 4, p. 214
A gente percebe, em muitas obras, uma vontade sincera dos autores de combater o
preconceito lingüístico e de valorizar a multiplicidade lingüística do português brasileiro.
Mas a falta de uma base teórica consistente e, sobretudo, a confusão no emprego dos termos
e dos conceitos prejudicam muito o trabalho que se faz nessas obras em torno dos
fenômenos de variação e mudança (Bagno, 2007, p. 119).
reflexão’, seguido por um subtítulo (Linguagem, comunicação e interação) que reafirma todo
o pensamento e tem a linguagem como meio de interação entre os membros das sociedades.
O que demonstra a importância dessa faculdade para os seres humanos.
Nesse sentido há, de início, a apresentação dos tipos de linguagem, seguidas do que
seria código, até a formação de um conceito para língua, então passam a tratar das variedades
lingüísticas tentando elucidar alguns fatores geradores de tal variação, deixando claro que,
dependendo da situação comunicativa a que o falante está exposto, pode fazer uso da
variedade que considerar mais adequada, à medida que, enquanto falante competente, deve
estar atento ao estabelecimento do uso efetivo da língua. Livre de qualquer forma de
preconceito, já que a linguagem deve ser tida como instrumento de aproximação entre as
pessoas e não como elemento de discriminação.
Os autores fazem questão de demonstrar que cada grupo social acaba desenvolvendo
uma forma específica de comunicação que consegue caracterizar os seus membros. É o caso,
por exemplo, das gírias que se consolidam, cada vez mais, como uma das variedades
encontradas na língua portuguesa brasileira. Ainda destacam que as gírias, diferentemente do
que muitos acreditam, não fazem parte apenas do repertório lingüístico de falantes
pertencentes às classes sociais menos favorecidas, mesmo porque quando relacionadas a
profissões, essas maneiras de fala denominam-se jargões.
Merece destaque, também, o trabalho desenvolvido em torno das variedades
linguísticas na construção do texto, onde, através de atividades contextualizadas, pôde-se
perceber o interesse acerca da discussão sobre o fenômeno da variação lingüística, de maneira
a conscientizar os educandos a respeito do fato de que tal fenômeno se faz presente na língua
materna. Nesse sentido esclarecem que, apesar do estabelecimento de um padrão exigido em
situações formais de comunicação, as demais maneiras de fala não são melhores nem piores,
mas, simplesmente, diferentes e merecem respeito, à medida que são construções, cujos
arquitetos são falantes que o tempo todo acrescentam novas falas ao seu repertório
linguístico.
A 1ª edição do manual analisado consegue abordar a variedade lingüística de maneira
esclarecedora, quando apresenta uma linguagem acessível expondo claramente as diferenças
entre variedade padrão e não padrão. É de suma importância ressaltar que essa temática não é
trabalhada apenas no capítulo destinado, mas também ao lado de outras temáticas que permite
tal vinculação. Como, por exemplo, quando no Capítulo V ao trabalharem o gênero texto
teatral os autores retomam a abordagem linguística indagando os leitores sobre qual
carandá
Revista do Curso de Letras do Câmpus do Pantanal – UFMS,
Corumbá, MS, novembro 2011, n. 4, p. 217
variedade predomina no texto trabalhado. Dessa feita é perceptível o desejo dos autores em
tentarem desmistificar, junto aos educandos, algumas obscuridades existentes em torno das
variedades linguísticas.
Na 2ª edição, do mesmo manual, constatou-se que, assim como na 1ª edição, a
abordagem dispensada ao estudo em torno das variedades lingüísticas configura-se como
objetivo claro, quando visa ao reconhecimento desse fenômeno na língua portuguesa
brasileira. Dessa maneira, busca-se garantir que os educandos entrem em contato com uma
realidade caracterizadora do repertório linguístico, inquestionavelmente, adotado pelos
falantes brasileiros conforme a região geográfica, classe social, idade, sexo ou profissão em
que cada indivíduo está inserido.
Observou-se que a abordagem realizada pela edição de 2005 se assemelha à
desenvolvida pela edição de 2003, visto que ambas trabalham com a variedade das gírias
repetindo, inclusive, alguns exercícios. Porém, é preciso esclarecer que, no referente ao
tratamento das variedades linguísticas relacionadas a textos, comprova-se a ocorrência de um
aprofundamento, pois na 2ª edição esse trabalho se dá de maneira mais detalhada através de
uma maior exploração, visto que os autores utilizam-se de vários textos como anúncios
publicitários e, até mesmo, textos de cunho humorístico. Tal fato consolida as metodologias
que primam por um ensino de língua materna marcado pela contextualização das atividades,
aliadas às abordagens conscientes do caráter heterogêneo das línguas.
Dentre as atividades, destacou-se uma em que, por meio de um anúncio publicitário,
os autores conseguem explorar não só o gênero em trabalhado, mas colocam os educandos
diante de questões que visam direcioná-los a refletirem sobre como, dependendo da situação
comunicativa a que possam estar expostos, podem utilizar-se do repertório lingüístico que
entenderem mais adequado. O texto a seguir compõe a 2º edição do manual analisado.
tivesse pedido tudo isso separado, o peso que seria no seu saco. Tks,
___________________
seu e-mail
CONSIDERAÇÕES FINAIS
materna. Então, começaram a surgir propostas pedagógicas que primam por um ensino de
Desde seu surgimento, o manual didático de português passou por transformações que
contribuíram significativamente para sua evolução, enquanto instrumento auxiliar à prática
docente. É através desse material que os educandos entram em contato com os diversos
conteúdos referentes ao ensino de língua materna. Dessa forma, é preciso ressaltar a
importância desse material se adequar às novas posturas pedagógicas pautadas na reflexão em
torno do uso efetivo da língua.
Apesar de muitos manuais ainda resistirem à idéia de tratar da variação lingüística,
constatou-se que esse material didático tem conseguido desenvolver uma abordagem
consciente em torno da referida temática. Nos manuais analisados, verificou-se que ambos
abordam o tema de forma esclarecedora, visando garantir que os educandos realmente
compreendam a temática proposta.
Essa conclusão deve-se ao fato de ter-se tomado como referência, principalmente, a
maneira como o conteúdo é disposto, junto às atividades propostas, os conceitos apresentados
e, também, a relação estabelecida entre a temática da variedade lingüística e os conteúdos
relativos ao estudo dos aspectos gramaticais. Dessa forma, verificou-se que os manuais
analisados apresentam uma abordagem pautada na reflexão em torno da língua em seu uso
efetivo.
Percebeu-se, ainda, uma preocupação em tentar sanar qualquer nível de preconceito
linguístico buscando, tão somente, a consolidação do respeito às variedades da língua. Nesse
carandá
Revista do Curso de Letras do Câmpus do Pantanal – UFMS,
Corumbá, MS, novembro 2011, n. 4, p. 220
REFERÊNCIAS
BAGNO, Marcos. Português ou Brasileiro? Um convite à pesquisa. 5ª ed. São Paulo: Parábola Editorial,
2001.
_____. Nada na língua é por acaso: por uma pedagogia da variação lingüística. São Paulo: Parábola
Editorial, 2007.
BEZERRA, Maria Auxiliadora. DIONÌSIO, Ângela Paiva. O livro didático de Português: múltiplos olhares.
3ª ed. Rio de Janeiro: Lucerna, 2005.
BEZERRA, Maria Auxiliadora. Livros didáticos de Português e suas concepções de ensino e de leitura:
Uma retrospectiva. In: Texto, escrita, interpretação: Ensino e pesquisa. João Pessoa: Idéia, 2001
CAPORALINI, Maria Bernadete Santa Cecília. Na dinâmica interna da sala de aula: O livro didático. In:
Repensando a didática. 20ª ed. São Paulo: Papirus, 2003.
CASTILHO, Ataliba T. de. A língua falada no ensino de português. São Paulo: Contexto, 2000.
CEREJA, William Roberto. MAGALHÃES, Thereza Cochar. Português: Linguagens. 1ª ed. São Paulo: Atual,
2003.
HORA, Dermival da. Teoria da Variação: Trajetória de uma proposta. In: HORA, Dermival da. Estudos
Sociolingüísticos: perfil de uma comunidade. João Pessoa, 2004.
MARCUSCHI, Luiz Antônio. Da fala para a escrita: atividades de retextualização. São Paulo: Cortez,
2001.
POSSENTI, Sírio. Por que (não) ensinar gramática na escola. 9ª ed. Campinas: Mercado das Letras, 2002.
ABSTRACT: The dynamics of the lexicon of linguistic creativity is a result of the speaker and the
needs of representing reality. The neologisms are created from the use of processes of word formation
and the emergence of these new lexical units in language is tied to the innovations from the outside
world, since the lexical level corresponds to the language more directly connected to extra-linguistic
reality. This article presents a reflection on the lexical formation neological observed in journalistic
and political texts written in the press in contemporary portuguese in the first decade of this century.
This investigation of the lexicon, aims to describe the neology in print media and its internal and
external factors related to the training vocabulary.
Considerações preliminares
1
Graduado em Letras: português / inglês pelo Centro Estudos Superiores de Maceió - CESMAC, especialista em
língua portuguesa e mestre em linguística pela Universidade Federal de Alagoas - UFAL. Atualmente, é
professor assistente de língua portuguesa e linguística da Universidade Estadual de Alagoas - UNEAL e da
Faculdade São Vicente de Pão de Açúcar - FASVIPA. E-mail: petrus2007@ibest.com.br.
carandá
Revista do Curso de Letras do Câmpus do Pantanal – UFMS,
Corumbá, MS, novembro 2011, n. 4, p. 222
palavras do português brasileiro não terão status de neologismos nas observações realizadas
neste estudo.
Finalizando esta apresentação, destacamos que a neologia consiste em um tema
fundamental para descrição do léxico segundo uma ótica científica, contribuindo para um
melhor entendimento desse sistema, visto que sua evolução lexical, embora constante, passa
despercebida ao próprio usuário da língua geral.
Na verdade, a língua é neológica por natureza, já que toda sociedade evolui,
consequentemente também evolui o seu código linguístico, sendo incontestável que a língua
se vale fundamentalmente de mecanismos lexicais, em lato sensu, para cumprir os propósitos
comunicativos de seus usuários.
operacionais, por meio dos quais os indivíduos de cada geração podem pensar e explicar seus
pensamentos e ideias.
O sistema lexical de uma dada língua dispõe de diferentes regiões linguísticas,
a saber: as gírias (linguagem comum a um mesmo grupo social); os jargões (vocabulário
típico de uma dada especialidade profissional); os estrangeirismos (palavras estrangeiras
incorporadas à língua); os arcaísmos (vocábulos e/ou expressões que caíram em desuso) e os
neologismos (palavras recentemente formadas e/ou criadas).
Segundo Carvalho (2009, p. 19), o léxico é “a menos sistemática das estruturas
linguísticas, o léxico depende, em grande parte, da realidade exterior, não-linguística”, ele
reflete a cultura da comunidade, a qual serve de meio de expressão, visto que, no momento
em que se cria algo de novo ou surgem novos fatos sócio-político-culturais, há uma
necessidade de nomeá-los, formando-se novas palavras; esses itens lexicais, por serem uma
criação individual, podem ser aceitos ou não, ter vidas breves, caindo no esquecimento.
A constituição do acervo lexical do Português é basicamente latina. A Língua
Portuguesa representa o estado atual do sermo vulgaris passado por inúmeras transformações
na Lusitânia; por isso não é de estranhar que a língua dos romanos constitua o substrato de
nossa língua. O idioma dos romanos sobrevive nas atuais línguas românicas como antecedente
imediato dessas línguas, sua dinâmica lexical se apresenta como um fenômeno linguístico de
caráter universal, já que todas as línguas vivas estão em constante transformação e ampliação.
Isso ocorre de maneira lenta e gradual que geralmente passa despercebida ao falante/leitor.
(MELO, 2008)
No entanto, não só do acervo latino se valeu a Língua Portuguesa, já que houve
também a influência de outros idiomas de povos invasores (ou não-invasores), em seu acervo
lexical. Podemos detectar a existência de elementos aloglóticos pré-romanos e pós-romanos,
introduzidos na fase da formação da língua; elementos aloglóticos das modernas línguas
europeias, latinas e não-latinas; elementos aloglóticos de línguas extra-europeias, resultado
dos descobrimentos (CARVALHO, 2009).
E ainda houve, na Língua Portuguesa, variante usada no Brasil, pelas condições
de ocupação e colonização, uma grande influência dos substratos indígenas e dos falares
africanos, justamente no campo lexical, pelas necessidades comunicativas surgidas. Portanto,
também se enriqueceu a Língua Portuguesa do Brasil de uma gama considerável de palavras
não registradas no Português falado em outros continentes.
carandá
Revista do Curso de Letras do Câmpus do Pantanal – UFMS,
Corumbá, MS, novembro 2011, n. 4, p. 225
apresenta inerte. Em outros termos, Freitas (2007) explica-nos que, toda língua é o produto de
forças que sobre ela atuam: a centrífuga, que corresponde à força externa, e a centrípeta, que
corresponde à força interna.
Desse modo, A inovação lexical, ampliando e/ou renovando o léxico, torna-se
verificável na medida em que signos linguísticos são criados e/ou formados ou sofrem
modificações e/ou acréscimos em seus significados. Trata-se de um processo inerente à língua
e não uma ameaça à sua continuidade.
Na verdade, essa dinâmica é uma característica necessária a todas as línguas e
poucos se dão conta dessa evolução, porque é feita de modo inconsciente e coletivo. No
entanto, o aparecimento de novos termos e significados é fácil de ser constatado, sobretudo
nos meios de comunicação escrita.
Para corroborar o supradito, faz- se necessário citarmos Barbosa apud
Isquerdo; Oliveira (1998, p. 34) quando afirma que
lexicais do sistema aberto são formados e/ou criados na língua. Esses recursos linguísticos
atuam em nível fonético-fonológico, morfossintático e semântico-lexical.
No português contemporâneo, variante usada no Brasil, os processos mais
produtivos na formação neológica são a Derivação e a Composição, que, apesar de
completamente diferentes no procedimento de formar palavras, unem-se na função de formá-
las e, consequentemente, tornam-se os mais fecundos na ampliação e/ou renovação do acervo
lexical do sistema linguístico em questão.
A derivação consiste no mecanismo pelo qual as novas unidades lexicais são
formadas a partir da anexação de afixos (prefixo e/ou sufixo) a uma base autônoma. Basilio
(2007) explica-nos que os afixos apresentam funções sintático-semânticas definidas: essas
funções delimitam os possíveis usos e significados das palavras a serem formadas pelos
diferentes processos de derivação.
Vale destacarmos que todo processo derivacional ocorre em torno de uma só
palavra primitiva, de um só radical. A tradição gramatical considera afixos apenas as formas
presas (não-autônomas). Todavia, registram-se ocorrências de palavras novas formadas a
partir de unidades léxicas que não são reconhecidas como prefixos, mas palavras autônomas
com categorias gramaticais definidas. Porém, podem ser detectadas na função prefixal, sendo
assim inclusas na derivação, formando neologismos. Dentre esses itens lexicais as formas
NÃO- e RECÉM-, tradicionalmente classificados como advérbios ou substantivos, anexam-se
a bases autônomas, não com a função de adjunto, mas para formarem nas sentenças em que
são registrados unidades lexicais novas.
Na Língua Portuguesa do Brasil, geralmente, os morfemas prefixais não
mudam a categoria gramatical da base a que se unem. Entretanto, é possível registrarmos em
textos jornalísticos escritos na primeira década século XXI, os prefixos ANTI- e MACRO-
unidos a uma base substantiva atribuindo-lhe função de adjetivo, ocorrendo o processo de
recategorização. Portanto, podemos afirmar que em certos casos os prefixos mudam a classe
da palavra a que se agregam na função de formar neologismos.
Como também, os prefixos MACRO-, MICRO- e VICE-, no português
brasileiro atual, podem ser usados como formas autônomas (formas livres). Na verdade, os
referidos elementos prefixais se desprendem de suas bases para formar novas unidades
lexicais substantivas a partir do processo de abreviação vocabular.
carandá
Revista do Curso de Letras do Câmpus do Pantanal – UFMS,
Corumbá, MS, novembro 2011, n. 4, p. 228
Considerações finais
REFERÊNCIAS
ALVES, Ieda Maria. Neologismo : criação lexical. São Paulo : Ática, 1990.
ALMEIDA, Napoleão Mendes de. Gramática metódica da língua portuguesa. 33. ed. São Paulo :
Sairava, 1985.
BECHARA, Evanildo. Moderna gramática portuguesa. 37. ed. Rio de Janeiro : Nova Fronteira/
Lucerda, 2009.
BIDERMAN, Maria Tereza Camargo. A estrutura mental do léxico. In: Estudos de filosofia e
linguística. São Paulo : T. A. Queiroz / Universidade de São Paulo, 1981, p. 131-45.
BUENO, Francisco da. Gramática normativa da língua portuguesa. 7. ed. São Paulo : Saraiva,
1968.
CARVALHO, Nelly. Empréstimos linguísticos na língua portuguesa. São Paulo : Cortez, 2009.
CUNHA, Celso; CINTRA, Lindley. Nova gramática do português contemporâneo. 5. ed. Rio de
Janeiro : LEXIKON, 2008.
carandá
Revista do Curso de Letras do Câmpus do Pantanal – UFMS,
Corumbá, MS, novembro 2011, n. 4, p. 235
FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Novo dicionário Aurélio da língua portuguesa. 4. ed.
Curitiba : Positivo, 2009.
FREITAS, Horácio Rolim de. Princípios de morfologia. 5. ed. ver. e ampl. Rio de Janeiro : Lucena,
2007.
LIMA, Rocha, Gramática normativa da língua portuguesa. 38. ed. Rio de Janeiro : J. Olympio,
2000.
MESQUITA, Roberto Melo. Gramática da língua portuguesa. 5. ed. São Paulo : Saraiva, 1996.
NUNES, José Horta. IN: GUIMARÃES, Eduardo (org). A Palavra e a Frase. Campinas, SP, Pontes
Editores: 2006.
SILVA, José Pereira da. Gramática histórica da língua portuguesa. Rio de Janeiro : Edição do
Autor, 2010.
carandá
Revista do Curso de Letras do Câmpus do Pantanal – UFMS,
Corumbá, MS, novembro 2011, n. 4, p. 236
LITER’ARTES
Poesia
carandá
Revista do Curso de Letras do Câmpus do Pantanal – UFMS,
Corumbá, MS, novembro 2011, n. 4, p. 237
TRILOGIA DAS
VERDADES
Rogério Lobo Sáber
Mestrando do curso de Teoria e História Literária do Instituto de
Estudos da Linguagem (IEL) da Universidade Estadual de
Campinas (Unicamp), SP. E-mail:
rogeriosaber@gmail.com.
carandá
Revista do Curso de Letras do Câmpus do Pantanal – UFMS,
Corumbá, MS, novembro 2011, n. 4, p. 238
DOXA
E hoje, manhã ainda custando a ceder espaço para o dia,
E olhos ainda preguiçosos, buscando o escuro ou quem sabe,
um ponto, além do horizonte, estático, que não desse trabalho para ser observado…
E foi hoje que, acordando com a intenção de mudar o mundo,
sofri o que chamei de “momento mais revelador de minha vida”.
MINAS
Acalmei-me em caráter temporário.
Aceitei-me. Entendi-me: sou uma farsa.
Hesitei, desde o início, estas palavras.
Mal pude conseguir rimas esparsas.
Dilúvio-sangue. Dilúvio-vermelho.
Não estamos preparados: já vivemos.
— E frise-se enquanto é tempo.
AS HORAS
( — E o relógio a passar).
carandá
Revista do Curso de Letras do Câmpus do Pantanal – UFMS,
Corumbá, MS, novembro 2011, n. 4, p. 241
Dossiê:
O MICROCONTO
Luciene Lemos de Campos (org.)
carandá
Revista do Curso de Letras do Câmpus do Pantanal – UFMS,
Corumbá, MS, novembro 2011, n. 4, p. 242
Luciene.
carandá
Revista do Curso de Letras do Câmpus do Pantanal – UFMS,
Corumbá, MS, novembro 2011, n. 4, p. 247
Da introdução a
Os cem menores contos brasileiros do século:
Se “conto vence por nocaute”, como dizia Cortázar,
então toma lá.
(Marcelino Freire)
carandá
Revista do Curso de Letras do Câmpus do Pantanal – UFMS,
Corumbá, MS, novembro 2011, n. 4, p. 248
ISSN - 2176-6835
OS AFORISMOS
EPITÁFIO
Sultão, gozei festas, carrões, consumo, mulheres
mil. Deixo filhos às dezenas, para que
acabem logo com o planeta.
(RAUER, 2010)
carandá
Revista do Curso de Letras do Câmpus do Pantanal – UFMS,
Corumbá, MS, novembro 2011, n. 4, p. 253
ISSN - 2176-6835
INTRODUÇÃO
1
Fabrina Martinez de Souza é graduada em jornalismo, mestranda no Programa de Pós-Graduação em Letras na
área de Estudos Literários da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul – Campus de Três Lagoas, e
Bolsista Capes/Reuni; fabri_na@yahoo.com.br.
2
Rauer Ribeiro Rodrigues é professor de Literatura Brasileira na UFMS, doutor em Estudos Literários pela
UNESP de Araraquara e professor no Mestrado em Letras da UFMS, em Três Lagoas, onde coordena o Grupo
de Pesquisa Luiz Vilela (www.gpluizvilela.blogspot.com); rauer.rauer@uol.com.br.
carandá
Revista do Curso de Letras do Câmpus do Pantanal – UFMS,
Corumbá, MS, novembro 2011, n. 4, p. 254
ISSN - 2176-6835
Nas últimas
duas décadas, a
quantidade de
livros e anto-
logias de mi-
crocontos no
Brasil cresceu
vertiginosamente. A pesquisa não. Sequer temos uma linha do tempo dos autores que em
algum momento dedicaram-se ao subgênero. E não são poucos. Ou insignificantes. A
carandá
Revista do Curso de Letras do Câmpus do Pantanal – UFMS,
Corumbá, MS, novembro 2011, n. 4, p. 255
ISSN - 2176-6835
pesquisadora afirma ainda que o “truque” para acompanhar os novos tempos é historicizar.
Nesse caso, na busca de resposta a essas questões fulcrais, propomos voltar nossa visada
contemporânea à Inglaterra do século XVIII com um questionamento em área das mais
exploradas nos estudos literários: o romance é uma forma literária nova?
Ironicamente, essa foi a época em que o ofício da escrita deixou de ser restrito a quem
se dedicava a aprender ou ao menos aparentava isso. As pessoas comuns estavam trabalhando
e não tinham tempo para aprender a ler, o que dirá imaginar. Mas esse foi o século dos
autores, quando homens de “todos os níveis de capacidade, todo tipo de instrução, toda
profissão e todo emprego se dedicaram com tamanho ardor à palavra impressa” (Dr. Johnson
apud Watt, 2010, p. 61).1
Numa época na qual as pessoas mal conseguiam enxergar os tipos sobre o papel,
escrever virou profissão. Relativamente bem remunerada, uma vez que os livreiros — um
cargo semelhante ao do atual editor — pagavam por página produzida. Os livreiros não
1
Eis a fonte de Watt: H. J. Habakkuk, “English land owership, 1680-1740”, Economic History Review, X
(1940), p. 2-17. Em seu trabalho, Watt referencia também as seguintes obras: 1) Londres, 1904, p. 26. 2) Helen
Sard Hughes, “The middle class reader and the English novel”, JEGP, XXV (1926), p. 362-378. 3) Cross,
Fielding, I, p. 315-316.
carandá
Revista do Curso de Letras do Câmpus do Pantanal – UFMS,
Corumbá, MS, novembro 2011, n. 4, p. 256
ISSN - 2176-6835
faziam distinção entre poema e prosa, o que eles viam era a página escrita, prestes a ser
impressa e vendida. Tornou-se comum, na época, dizer que as obras eram desnecessariamente
alongadas para que o autor pudesse ganhar mais com o trabalho.
1
GILDON, Charles. Robinson Crusoe examin’d and Criticis’d, Ed. Dottin (Londres e Paris, 1923), p. 71-2.
carandá
Revista do Curso de Letras do Câmpus do Pantanal – UFMS,
Corumbá, MS, novembro 2011, n. 4, p. 257
ISSN - 2176-6835
Amor
humor
Ele teve precursores ilustres — e inesperados: por exemplo, em Canções sem metro,
volume de contos de Raul Pompéia, muitos deles de meia página, ou menos. Destaquemos
“Uma impressão” (1881):
Bonvincino, “‘Cota zero’ é peça que representa o espírito crítico, a vanguarda, para além da
própria ‘vanguarda’, e fala para o presente” (Bonvicino, 2009).
Mais sintéticos, foram, nos anos 90, Millôr Fernandes e Dalton Trevisan. Com seus
haikais narrativos, com suas frases pícaras ou fesceninas, com a redução da narrativa a
cacoetes linguísticos cuja reiteração ampliava as cargas semânticas das escolhas lexicais,
produziram microcontos — dir-se-ia — quase que em série. Se muitas dessas narrativas são
antológicas, a opção pelo riso ou pelo escatológico produziu epígonos também em série,
desgastando o modo, transformado em modelo.
Por isso, é somente no século XXI que o microconto brasileiro — enquanto subgênero
narrativo — ganhou fôlego, no momento em que uma geração de autores brasileiros na faixa
dos vinte anos começa a migrar da internet para o papel. Não nos interessa, aqui, discutir o
suporte, as novas tecnologias ou a convergência da mídia: não é caminho necessariamente
novo, se lembrarmos que muitos romancistas do século XVIII publicavam em jornais para
depois publicarem seus folhetins em livros. O que nos importa, nesse momento, é pensar na
leveza e agilidade da revolução anunciada por Calvino, pois ela traz consigo elementos que
estão na raiz do microconto.
O AUTOR SE EXPLICA
A afirmação do escritor Daniel Galera, que nasceu em 1979 e publica na rede desde
1996, pode ser lida como uma epígrafe de toda uma geração. Entre os anos de 1998 e 2001,
antes do twitter e do blog, Galera criou e foi colunista do mailzine Cardosonline (COL), que
revelou — no mínimo — dois outros escritores: Daniel Pellizzari, nascido em 1974, e Clarah
Averbuck, que nasceu em 1979. Galera, com Pellizzari e o artista plástico Pilla, fundou em
2001 o selo editorial independente Livros do Mal, onde lançou a coletânea de contos Dentes
Guardados (2001) e a novela Até o Dia em que o Cão Morreu (2003), que deu origem ao
premiado filme Cão sem Dono. Três anos depois, Mãos de Cavalo, seu primeiro romance, foi
publicado pela Companhia das Letras, uma das maiores editoras comerciais do Brasil. Desde
então, sua novela foi reeditada (2007), lançou um segundo romance, Cordilheira (2008), e a
graphic novel Cachalote (2010). Atualmente trabalha em seu terceiro romance, ainda sem
data prevista de lançamento. Além disso, fez parte de diversas antologias focadas nos novos
autores e mantém um site pessoal, uma conta no twitter e um perfil no facebook,
prioritariamente voltados para sua atividade literária.
O escritor, ainda jovem com seus 31 anos, é visto como um referencial para aspirantes e
iniciantes. Em 2004, participou da antologia Os Cem Menores Contos Brasileiros do Século,
com um microconto sem título. Ei-lo:
1
Site Estante Virtual, < http://estantevirtual.com.br/livrariapassos/Daniel-Galera-Dentes-Guardados-52213941
>, consultado em 05 de outubro de 2011.
carandá
Revista do Curso de Letras do Câmpus do Pantanal – UFMS,
Corumbá, MS, novembro 2011, n. 4, p. 260
ISSN - 2176-6835
Após a extinção do COL, muitos participantes migraram para sites pessoais ou blogs e
mais recentemente para as redes sociais. Cabe aqui uma hipótese interessante, que merece ser
devidamente pesquisada, já que foge do objetivo deste artigo: aparentemente, a quantidade de
1
O arquivo do COL, que inclui as 278 edições regulares, especiais e fotos, está disponível para download no
endereço http://qualquer.org/col/. Acesso em 27 de setembro de 2011.
carandá
Revista do Curso de Letras do Câmpus do Pantanal – UFMS,
Corumbá, MS, novembro 2011, n. 4, p. 261
ISSN - 2176-6835
informações sobre a vida pessoal dos autores é tão abundante que acabamos por saber mais do
autor do que da obra. Essa (por falta de opção assim a chamaremos) nova fronteira entre o
público e privado pode tanto iluminar quanto deixar opaca a leitura dos microcontos.
Para verificar o modo como o privado invade o público na nova literatura brasileira,
vamos percorrer caminho que perpassa a relação entre literatura e sociedade, ficção e história,
a partir de exemplos da literatura brasileira dos anos 60 aos nossos dias.
O PÚBLICO E O PRIVADO
O poeta não é uma resultante, nem mesmo um simples foco refletor; possui o
seu próprio espelho, a sua mônada individual e única. Tem o seu próprio
núcleo e o seu órgão, através do qual tudo o que passa se transforma, porque
ele combina e cria ao devolver a realidade. (Bady apud Candido, 1976, p.
18).1
1
René Bady, Introduction à l’étude de la literature françoise, Friburgo, Éditions de La Librairie de
l’Univerisité, 1943, p. 31.
carandá
Revista do Curso de Letras do Câmpus do Pantanal – UFMS,
Corumbá, MS, novembro 2011, n. 4, p. 262
ISSN - 2176-6835
Dessa forma, considera-se que o poeta — e aqui estenderemos essa definição a todos
os escritores — não são mônadas, mas possuem uma dentro de si. Um núcleo criador que
funciona como filtro entre o mundo, ele e sua produção literária. Consequentemente, para
acessar sua obra dos mais diversos ângulos, é preciso olhar para esse núcleo. Visão que
muitas vezes fica disponível quando atravessamos a linha que divide o público e o privado na
produção literária. Biografias, memórias, entrevistas, cartas, crônicas e, mais recentemente,
blogs, redes sociais, sites, são instrumentos que não apenas podem iluminar um poema ou
uma narrativa, mas principalmente podem fornecer novas perspectivas de crítica e
interpretação de um texto literário. É material que sempre contém a valiosa voz do autor a
respeito da sua obra e de si mesmo. Ainda que se mantenha a saudável postura da dúvida, de
ceticismo quanto ao que o autor diz de si mesmo e de sua obra, é preciso reconhecer o valor
que esse instrumental oferta.
— Ai, que fadiga! Com essa coisa de escrever um artigo por semana para A
Província e uma coisa ou outra para a Ilustração e Para Todos fico pregado.
Só faço isso porque pagam bem. [...] Escrevo o diabo do artigo e num
instante a outra semana chega! (Carta de Manuel Bandeira, in: Moraes,
2000, p. 407).
Ao apontar para esse processo acelerado da mídia e a influência que ela gera nos
escritores, nossa primeira reação é pensar na geração de escritores surgida a partir da década
de 90 do século passado. E ainda que tenham se passado apenas vinte anos, o peso dos séculos
se faz sentir quando pensamos que Nelson de Oliveira referenciou essa geração como aquela
1
Recentemente, a editora Cosac Naify lançou três volumes com as crônicas de Manuel Bandeira. São eles:
Crônicas da Província do Brasil (2006; a primeira edição saiu em 1937); Crônicas Inéditas 1 (2008); e
Crônicas Inéditas 2 (2009).
carandá
Revista do Curso de Letras do Câmpus do Pantanal – UFMS,
Corumbá, MS, novembro 2011, n. 4, p. 265
ISSN - 2176-6835
que produzia “manuscritos de computador”. Uma geração que não mais escreve a lápis,
utilizando caneta ou em máquinas de escrever. Que nasceu à margem da internet e fez dela
seu suporte de publicação, divulgação, crítica e relacionamento com o leitor. O que, de certa
forma, obriga a crítica a olhar para sites especializados, pessoais, blogs ou redes sociais não
como modismo, mas como instrumentos de formação do escritor, de conformação da
linguagem do escritor, e de possibilidades autorais e editorias sem paralelo nas obras nascidas
para o suporte papel, em especial com a constituição de links, de hipotextos e hipertextos, de
simultaneidade de formas de representação, de interconexão com outras artes, além de
recursos de interrelação com o leitor ainda inexplorados esteticamente. Além, claro, de
espaços capazes de fornecer informações sobre os autores e suas obras.
No extremo, dois outros autores, Daniel Galera (1979- ) e Ivana Arruda Leite (1951- ),
que teriam contribuído para a mudança no que até então entendíamos como fronteira entre o
público e o privado ao exporem informações íntimas simultaneamente à construção de sua
obra ao mesmo tempo em que abrem espaços para o contato direto com o leitor, deixando
“rastros” de sua intimidade na internet. Para isso, temos em nosso horizonte os microcontos
“Feijoada” de Leite e o já mencionado [Sem título], de Galera, ambos publicados na antologia
Os Cem Menores Contos Brasileiros do Século (Freire, 2004). Vejamos os textos:
carandá
Revista do Curso de Letras do Câmpus do Pantanal – UFMS,
Corumbá, MS, novembro 2011, n. 4, p. 266
ISSN - 2176-6835
FEIJOADA
Confesso.
Fui eu que enfiei a faca
na barriga desse porco.
Para a leitura do microconto de Galera, elegemos os “e-mails”1 que o autor trocou com
o editor André Conti a pedido do Instituto Moreira Salles 2. A correspondência se deu entre os
meses de janeiro e abril de 2011.
1
A denominação “e-mail” foi mantida em função do suporte onde foi publicado, um site.
2
http://blogdoims.uol.com.br/correspondencia/. Acesso em 20 de novembro de 2011, às 00h17.
3
http://blogdoims.uol.com.br/daniel-galera/a-morte-num-corpo-vigoroso-e-saudavel/. Acesso em 20 de
novembro de 2011, às 00h17.
carandá
Revista do Curso de Letras do Câmpus do Pantanal – UFMS,
Corumbá, MS, novembro 2011, n. 4, p. 267
ISSN - 2176-6835
Seria esse relato uma chave para a leitura do conto? Ainda que exista a possibilidade
de aproximação e leitura é preciso considerar alguns fatores. Embora essa troca de e-mails
entre Galera e Conti seja farta de detalhes, não podemos deixar de ponderar que (a) ela foi
uma encomenda de uma instituição privada, e (b) não teria o mesmo grau de naturalidade que
uma ação espontânea teria; portanto, (c) essa reprodução não apenas elimina completamente a
liberdade do autor em dizer o que pretende, mas (d) faz com que ele seja a representação
pública, idealizada até quando desidealizada, de si mesmo. Considerando esses elementos, é
preciso seguir adiante na pesquisa e buscar novas fontes. E, consequentemente, a chave para a
leitura. Nesse caso, outro lugar, o mesmo suporte.
1
O arquivo do COL, que inclui as 278 edições regulares, especiais e fotos, está disponível para download no
endereço http://qualquer.org/col/. Acesso em 27 de setembro de 2011.
carandá
Revista do Curso de Letras do Câmpus do Pantanal – UFMS,
Corumbá, MS, novembro 2011, n. 4, p. 268
ISSN - 2176-6835
enunciado referencial em cinco palavras e dois verbos. Uma imagem, inúmeras dúvidas, e um
desafio, quase uma charada, constituem o microconto.
Já o microconto de Leite (in Freire, 2004) fornece mais subsídios para análise
estrutural. A presença de um título — “Feijoada” — permite duas possibilidades de leitura. A
primeira com temática gastronômica, o cozimento de um prato típico, e a segunda de um
assassinato. O tipo de porco esfaqueado fica a critério do leitor. Contudo, uma pesquisa no
blog Doidivana1, não só aponta as duas direções como reforça as possíveis leituras
supracitadas. No blog que mantém desde agosto de 2007, Leite publica fotos de lançamentos
de livros, palestras, seminários, reuniões íntimas em sua casa (na de parentes ou amigos),
premiações e viagens; e, também, relatos, memórias, divulgação de seus livros, informes
sobre outros escritores, atividades culturais, receitas culinárias ou contos. Rápida pesquisa no
sistema de busca do blog mostra catorze resultados para a palavra “Feijoada”. Aliás,
considerando as categorias do blog, é preciso dizer que ele registrava 2 110 textos falando de
restaurantes, comidas e gastronomia. Mas, antes de optarmos pela leitura de uma escritora da
área dos comes & bebes, é preciso dizer que existem 35 crônicas — publicadas na Revista da
Folha entre fevereiro e novembro de 2004 — e 93 contos, retirados de seus dois livros de
contos e inúmeras antologias. Além deles, Leite publicou um romance, uma novela, quatro
livros juvenis, um infantil e organizou duas antologias, além de participar de outras. Nos
contos cadastrados no blog, a temática da violência aparece. Como no conto a seguir,
publicado em 31 de dezembro de 2009:
1
http://doidivana.wordpress.com. Acesso em 20 de novembro de 2011, às 23h15
2
Acesso em 20 de novembro de 2011
carandá
Revista do Curso de Letras do Câmpus do Pantanal – UFMS,
Corumbá, MS, novembro 2011, n. 4, p. 269
ISSN - 2176-6835
O conto “Receita para comer o homem amado”, publicado inicialmente no livro Falo
de Mulher, em 2002, tem a mesma estrutura textual de “Feijoada”. Relaciona o homem com
uma comida e o ato de comer a uma ação violenta. Se considerada a teoria da história secreta
— todo conto conta duas histórias — do escritor argentino Ricardo Piglia, é possível
entrelaçar essa relação entre gastronomia e violência. Como se ambas as personagens fossem
antropofágicas e não apenas carnais. E ao acionarmos outros instrumentos de análise, como o
blog, percebemos que a comida tem um papel muito mais importante do que alimentar. Tem a
função de celebrar, vivenciar, experimentar e compartilhar — no que, aliás, segue a
construção simbólica universal do ato de comungar refeições.
Portanto, é possível dizer que a leitura dos microcontos tende a ser enriquecida pelas
informações disponíveis de ambos os autores. Somente através da trajetória pessoal de Galera,
que tem detalhes pessoais publicados em vários sites, é que a opacidade de seu texto se dilui e
podemos enxergar o que há naquela frase além da evocação inicial. No caso de Leite, há um
aprofundamento das temáticas, pois elas estão presentes tanto em seus textos literários quanto
nos registros pessoais.
Em “Novas geografias narrativas”, Maria Zilda Ferreira Cury afirma que a literatura
contemporânea mudou e que é preciso fazer uma reflexão sobre “novas cartografias
literárias”. Eis a reflexão da pesquisadora:
Muitos desses escritores têm, hoje, uma inserção maior ou mais visível na
imprensa, fazem apresentações em festivais de literatura (como a Flip, por
exemplo), participam de performances, exercem a função de críticos
literários em revistas especializadas, alargando enfim, o espaço de sua
participação para outros que não o exclusivo do livro, caracterizando-se
como agentes culturais, transitando por espaços que não estritamente
literário, o que, inevitavelmente, interfere na escrita dos seus textos. (Cury,
2007, p. 7).
carandá
Revista do Curso de Letras do Câmpus do Pantanal – UFMS,
Corumbá, MS, novembro 2011, n. 4, p. 270
ISSN - 2176-6835
Escritores não são mônadas. Podem ter sua mônada particular, seu núcleo. Mas não
são mônadas. Ao contrário, esses artistas estão em todos os lugares, exercendo inúmeras
funções, falando de suas obras e de si mesmo. Intimidade, memórias, biografia e confissões.
Está tudo disponível paralelamente à construção da obra. A historiografia literária do futuro
haverá de mostrar os impactos permanentes dessa mudança, mas cabe desde já, a críticos e
pesquisadores, observar, considerar e trabalhar com essas novas fontes. A função da literatura
permanece a mesma, contudo essas novas fronteiras entre público e privado ampliaram o
conceito de relacionamento e produzem novos modos de leitura. No caso do microconto, um
subgênero cuja maior característica é a concisão extrema, a disponibilidade de informações
privadas enriquece a leitura e desafia o leitor a entender os limites entre o escritor e sua obra,
bem como dos elementos que constituem a narrativa
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Sob esse aspecto notamos uma grande diferença entre Oswald e Galera. E não está na
forma, mas no contexto. Oswald fala com todos e Galera fala aos seus. Amor é um tema
comum, mês nem por isso ordinário, e sim universal. O poema de Oswald é transparente
quando pensamos nas reações que o amor provoca no indivíduo. Todas as oscilações de
humor que provoca. O verso de Oswald é transparente aos nossos olhos, enquanto o
microconto de Galera é quase 100% evocação, o que a princípio está inacessível ao leitor.
Antonio Candido afirma que a produção literária é formada por quatro momentos: “a) o
artista sob o impulso de uma necessidade interior, orienta-o segundo os padrões de sua época,
b) escolhe certos temas, c) usa certas formas e d) a síntese resultante age sobre o meio”
(Candido, 1976, p. 21).
Nossas questões básicas, talvez por falta de distanciamento entre pesquisadores e objeto
de pesquisa, permanecem inapreensíveis. O microconto é um subgênero da narrativa de
ficção, sendo uma nova forma, mas sua constituição, sua formatação, exige autor e leitor com
a memória de toda a literatura precedente. Ao mesmo tempo, em poemas antigos, ou mesmo
em narrativas do século XIX, vislumbramos traços indiciadores de conto com um único nó
narrativo.
Assim, do ponto de vista da construção estética, o microconto não decorre tão só das
exigências da mídia eletrônica e das possibilidades advindas da revolução tecnológica digital
iniciada no final do século XX e ainda em plena florescência. Embora tal contexto modifique
o modo como os leitores se relacionam com a literatura, o entendimento do que é a literatura
segue seu curso natural, em via de mão dupla entre a autonomia estética e as implicações do
contexto sobre a criação artística. Sendo claro que há mudanças no fenômeno social da
literatura e no comportamento dos indivíduos dada a prevalência da internet e do controle
computacional no dia-a-dia social, ocorreram — e com o passar do tempo, ocorrem ainda
mais acentuadamente — deslocamentos conceituais quanto ao que é público e quanto ao que
deve permanecer privado. Em decorrência disso, tanto a produção de microcontos como a de
outros artefatos artísticos e gêneros literários experimentam soluções estéticas devedoras
desse novo quadro.
carandá
Revista do Curso de Letras do Câmpus do Pantanal – UFMS,
Corumbá, MS, novembro 2011, n. 4, p. 272
ISSN - 2176-6835
Mas, sendo como descrito nos últimos parágrafos, o que é o microconto?, como o
definir?, como o descrever?, como o caracterizar?, como o distinguir dos demais gêneros e
formas? Seria a internet determinante na sua gênese ou tão só um suporte privilegiado para a
sua eclosão? Quais os seus precursores na literatura brasileira e na literatura universal de
todos os tempos? Essa introdução historiográfica não pretende responder a essas questões,
antes pretende colocá-las com clareza, para que o debate possa ser instaurado.
Parece-nos que a visada externa à obra, biográfica, é importante, mas não pode ser
condição sine qua non: antes de tudo, é preciso olhar para o enunciado, e ele precisa ter
autonomia comunicativa e estética. Parece-nos, também, que o microconto não é uma forma
literária nova. Seja no gênero narrativo ou gênero poético, as narrativas breves são constantes
na Literatura Brasileira. Raul Pompéia, Carlos Drummond de Andrade, Dalton Trevisan,
Manoel de Barros, Oswaldo França Júnior, Millôr Fernandes, Marçal Aquino, Ivana Arruda
Leite e Marcelino Freire, são alguns dos muitos escritores brasileiros que em algum momento
dedicaram-se ao microconto.
Para colocar mais uma pitada, quase uma provocação, o que são diversos dos capítulos
(tais como os “LXXXVI – O mistério”, “CVII – Bilhete” e “CXXXIX – De como não fui
ministro d’Estado”) das Memórias póstumas1 do Bruxo do Cosme Velho se não microcontos?
Referencial:
ANDRADE, Carlos Drummond de. Alguma poesia – o livro em seu tempo. Org. Eucanaã Ferraz. São Paulo:
Instituto Moreira Salles, 2010. 389 p.
ANDRADE, Oswald. Obras completas VII: Poesias reunidas. 5 ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,
1971.
BANDEIRA, Manuel. Estrela da vida inteira. 4. ed. Rio de Janeiro: Jose Olympio, 1973. 485 p.
1
Machado de Assis, 1998, p. 117, 136 e 160; a primeira edição do romance é de 1881.
carandá
Revista do Curso de Letras do Câmpus do Pantanal – UFMS,
Corumbá, MS, novembro 2011, n. 4, p. 273
ISSN - 2176-6835
BONVICINO, Régis. O poema antifuturista de Drummond. In: Sibila, 28 abr. 2009. Disponível em:
http://www.sibila.com.br/index.php/critica/486-o-poema-antifuturista-de-drummond, acesso em 28 jul. 2010.
CALVINO, Italo. Seis Propostas Para o Próximo Milênio. Trad. Ivo Barroso. 2 ed. São Paulo: Companhia das
Letras, 1990.
CANDIDO, Antonio. Literatura e Sociedade. 5 ed. São Paulo: Nacional, 1976.
Correspondência Daniel Galera e André Conti. Blog IMS (Instituto Moreira Sales). Disponível em:
<http://blogdoims.uol.com.br/correspondencia>. Acesso em: 20/11/2011.
CURY, Maria Zilda Ferreira. Letras de hoje. Novas geografias narrativas. PUCRS, Porto Alegre, n4, v42, p. 7-
17, out/dez. 2007.
FREIRE, Marcelino (Org.). Os cem menores contos brasileiros do século. São Paulo: Ateliê Editorial, 2004.
GALERA, Daniel. “Não sei como estaria hoje sem a internet’, diz escritor Daniel Galera. Blog A Cultura na
Era Digital. Disponível em: < http://culturanaeradigital.wordpress.com/2009/09/15/nao-sei-como-estaria-hoje-
sem-a-internet-diz-escritor-daniel-galera/>. Acesso em: 27/06/2011.
HOLLANDA, Heloísa Buarque de Hollanda. Matraga. Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro,
n27, v17, p. 134-148, jul/dez. 2010.
LEITE, Ivana. Receita para comer o homem amado. Blog Doidivana, em 31 dez. 2009. Disponível em:
<http://doidivana.wordpress.com/2009/12/31/receita-para-comer-o-homem-amado/>. Acesso em: 20/11/2011.
MACHADO DE ASSIS. Memórias póstumas de Brás Cubas. São Paulo: Ática, 1998.
MORAES, Marcos Antonio de (org.). Correspondência Mário de Andrade & Manuel Bandeira. São Paulo:
Edusp, 2000.
POMPÉIA, Raul. Canções sem metro. Org. Afrânio Coutinho. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira; FENAME,
1982. 209 p. (Obras, v. IV).
RESENDE, Beatriz. Contemporâneos: Expressões da literatura brasileira no século XXI. Rio de Janeiro, Casa
da Palavra, 2008.
SIMON, Luiz Carlos Santos Simon. O estudo da crônica sob o foco da crítica contemporânea. In: GRÁCIA-
RODRIGUES, Kelcilene; BELON, Antonio Rodrigues; RAUER [Rauer Ribeiro Rodrigues]. O universal e o
regional: literatura em perspectiva 1. Campo Grande: UFMS, 2009.
VILELA, Luiz. No bar. 6 ed. Rio de Janeiro: Bloch, 1968.
WATT, Ian. A Ascensão do Romance. Trad. Hildegard Feist. São Paulo: Companhia das Letras, 2010.
carandá
Revista do Curso de Letras do Câmpus do Pantanal – UFMS,
Corumbá, MS, novembro 2011, n. 4, p. 274
ISSN - 2176-6835
INTRODUÇÃO
1
Doutoranda em Estudos Literários na UNESP de Araraquara; mestre em Estudos de Linguagens pela UFMS.
carandá
Revista do Curso de Letras do Câmpus do Pantanal – UFMS,
Corumbá, MS, novembro 2011, n. 4, p. 275
ISSN - 2176-6835
1
Utilizamos a proposta de microconto elaborada por Karla Paniagua-Ramírez (2000) em “Propuestas para una
lectura minicuentísticas de prosa poética”, publicada no El cuento en Red.
2
São os seguintes os livros de Rauer já publicados: Lugares intoleráveis (1982), E foram felizes para sempre
(1989), Cenas de amor e paixão (1997), Iceberg (1999), A gota d’água (1999), Ilusão & trevas (2005) e
Qohelet (2006); o escritor tem anunciadas diversas outras obras, entre romances, contos, e crítica literária.
Mais informações podem ser encontradas em < http://lattes.cnpq.br/0639290942591728 >, e nos diversos links
de < http://rauer.rauer.sites.uol.com.br/index.html >.
carandá
Revista do Curso de Letras do Câmpus do Pantanal – UFMS,
Corumbá, MS, novembro 2011, n. 4, p. 276
ISSN - 2176-6835
LACRAIA
Manoel de Barros
Um trem de ferro com
vinte vagões quando
descarrila, ele sozinho
não se recompõe. A
cabeça do trem ou seja a
máquina, sendo de ferro
não age. Ela fica no
lugar. Porque a máquina
é uma geringonça
fabricada pelo homem. E
não tem ser. Não tem
destinação de Deus. Ela
não tem alma. É
máquina. Mas isso não
acontece com a lacraia.
Eu tive na infância uma
experiência que
comprova o que falo. Em
criança a lacraia sempre
me pareceu trem. A
lacraia parece que
puxava vagões. E todos
os vagões da lacraia se
mexiam como os vagões de trem. E ondulavam e faziam curvas como os
vagões de trem.
Um dia a gente teve a má idéia de descarrilar a lacraia. E fizemos essa
malvadeza. Essa peraltagem. Cortamos todos os gomos da lacraia e
deixamos no terreiro. Os gomos separados como os vagões da máquina. E os
gomos da lacraia começaram a se mexer.
O que é a natureza! Eu não estava preparado para assistir àquela coisa
estranha. Os gomos da lacraia começaram a se mexer e se encostar um no
outro para se emendarem. A gente, nós, os meninos, não estávamos
preparados para assistir àquela coisa estranha. Pois a lacraia estava se
recompondo. Um gomo da lacraia procurava o seu parceiro parece que pelo
carandá
Revista do Curso de Letras do Câmpus do Pantanal – UFMS,
Corumbá, MS, novembro 2011, n. 4, p. 277
ISSN - 2176-6835
AS FORMIGAS
Luiz Vilela
Foi a coisa mais bacana a primeira vez que as formigas conversaram
com ele. Foi a que escapuliu da procissão que conversou: ele estava olhando
para ver aonde que ela ia, e aí ela falou para ele não contar pro padre que ela
tinha escapulido ― o padre ele já tinha visto que era o formigão da frente, o
maior de todos, andando posudo.
Isso aconteceu numa manhã de muita chuva em que ele ficara no
quentinho das cobertas, com preguiça de se levantar, virado para o outro
canto observando as formigas descendo em fila na parede. Tinha um rachado
ali perto por causa da chuva, era de lá que elas saíam, a casa delas.
Toda manhã aquela chuva sem parar, pingando na lata velha lá fora
no jardim, barulhinho gostoso que ele ficava ouvindo, enrolado no cobertor,
olhando as formigas e conversando com elas, o quarto meio escuro, tudo
escuro de chuva.
A conversa ficava interessante quando ele lembrava de perguntar
uma porção de coisas e elas também perguntavam pra ele. (Conversavam
baixinho para os outros não escutarem.) Mas às vezes não lembrava nada
para conversarem e ficava chato, ele acabava dormindo ― formiga tinha
hora que era feito gente mesmo.
O bom é que ninguém precisava gritar nem também mentir, como as
pessoas estavam sempre fazendo. E também poder ficar olhando assim sem
falar nada, só olhando, sem precisar falar. Gente, se tinha outra perto, logo
uma tinha que falar, ninguém aguentava ficar calado: vaca amarela, pulou a
janela, cagou na tigela, mexeu mexeu, quem falar primeiro come a bosta
dela: logo uma falava ou ficava fazendo hum hum e ria ― ninguém
aguentava. Ficar só assim olhando, tão bom que nem sabia direito se estava
acordado mesmo ou sonhando, as formigas uma atrás da outra, descendo, a
fila certinha.
Uma tarde entrou no quarto e viu a mancha de cimento novo na
parede, brutal, incompreensível.
― Pra quê que o senhor fez isso? pra quê que o senhor fez assim
com minhas formigas?
O pai não entendia, e o menino chorando, chorando. Então o pai deu
no espalho. Mas a mãe pediu para ele ter paciência: nesse tempo de chuva as
crianças ficam muito excitadas porque não podem sair à rua e não têm onde
brincar.
De manhã o menino acordava e olhava para a mancha de cimento na
parede. Ficava olhando, até que sentia um bolo na garganta e cobria a cabeça
com o cobertor.
(VILELA, 1983, p. 128–129).1
1
A primeira edição do livro em que está este conto é de 1970.
carandá
Revista do Curso de Letras do Câmpus do Pantanal – UFMS,
Corumbá, MS, novembro 2011, n. 4, p. 278
ISSN - 2176-6835
Os amantes da grande poesia tiveram, nas últimas décadas, o prazer de ver o poeta
Manoel de Barros sair do anonimato das conchas (de caramujo-flor) e entrar para o mundo da
Literatura. Para elaborar sua narrativa, o poeta das vazantes e dos corixos pantaneiros possui
prazer em colher, ao rés do chão, certas palavras “já muito usadas, como as velhas prostitutas,
decaídas, e arrumá-las num poema, de forma que adquiram nova virgindade” (MAYRINK,
1994).
Considerado um dos maiores poetas brasileiros da atualidade, Manoel de Barros
nasceu em Cuiabá (MT), no ano de 1916, e mudou-se, ainda bebê, para Corumbá (MS).
Fixou-se tão bem na “cidade branca” (como Corumbá também é conhecida) que chegou a ser
considerado corumbaense.
O primeiro livro publicado nasceu em 1937, com o título virginal de Poemas
concebidos sem pecado. Em 1942, logo depois de se formar bacharel em Direito, no Rio de
Janeiro, o poeta apresenta Face imóvel. Dentre outros, nas décadas seguintes, publica Poesias
(1946), Compêndio para uso dos pássaros (1961), Gramática expositiva do chão (1969),
Matéria de poesia (1974), Livro de pré-coisas (1985), Retrato do artista quando coisa
(1998), Livro sobre Nada (1996), O fazedor de amanhecer (2001), a trilogia Memórias
inventadas: a infância (2003), Memórias inventadas: segunda infância (2004), Memórias
inventadas: terceira infância (2008) e Menino do mato (2010). Recebeu diversas láureas por
sua obra: o Grande Prêmio da Crítica/Literatura, concedido pela Associação Paulista de
Críticos de Arte, o Prêmio Jabuti de Poesia, de 1989, pelo livro O guardador de águas,
concedido pela Câmara Brasileira do Livro, e o Prêmio Nestlé. Recentemente recebeu os
títulos de Doutor Honoris Causa da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul e da
Universidade Católica Dom Bosco.1
Ao rés do chão, por entre corixos e lagoinhas teimosas por nascer em meio à terra
1
Informações biográficas detalhadas podem ser encontradas em < http://www.releituras.com/manoeldebarros
_bio.asp >, acesso em out. 2011.
carandá
Revista do Curso de Letras do Câmpus do Pantanal – UFMS,
Corumbá, MS, novembro 2011, n. 4, p. 279
ISSN - 2176-6835
rachada, entre cheias que se espelham no céu pantaneiro, lateja a poesia de Manoel de Barros,
em linguagem que se retorce como a vegetação do cerrado: sintaxe invertida, palavras
forjadas nos seus próprios refolhos, cotidiano recortado de um olho de pequenas jias. O
Pantanal, além de cenário de peraltagens infantis, é fala, ser, coisa, mutação, transubstância,
caminho e retorno, movimento em um único ato, cena de paixões e estática. O diretor,
fragmentado em inúmeros Outros, comanda o ensaio cujo espetáculo se presencia no
momento do abrir da capa. Sons e silêncios envolvem a poética de Manoel de Barros como
lírios que convidam os leitores a se entregarem aos pântanos para sujar matizes no branco das
garças pernetas.
Luiz Vilela nasceu em Ituiutaba, em dezembro de 1942. Formou-se em Filosofia na
cidade de Belo Horizonte e
lançou sua primeira obra aos 24
anos. O livro de estreia tremeu
com os alicerces da literatura
brasileira ao receber o Prêmio
Nacional de Ficção, em Brasília
— o título não poderia ser outro,
Tremor de terra (1967). Vilela
foi premiado no I e no II
Concurso Nacional de Contos,
realizados no Paraná no final da
década de sessenta, e, em 1974,
recebeu o Prêmio Jabuti pelo
livro de contos O fim de tudo,
lançado no ano anterior.
Traduzido para diversas línguas,
o escritor tem várias de suas
obras adaptadas para o cinema, o
teatro e a tevê.
Dentre outros títulos,
Luiz Vilela publicou No
bar (contos, 1968), Tarde da
carandá
Revista do Curso de Letras do Câmpus do Pantanal – UFMS,
Corumbá, MS, novembro 2011, n. 4, p. 280
ISSN - 2176-6835
noite (contos, 1970), Os novos (romance, 1971), O fim de tudo (contos, 1973), Lindas
pernas (contos, 1979), O inferno é aqui mesmo (romance, 1979), Entre amigos (romance,
1983), Graça (romance, 1989), Te amo sobre todas as coisas (novela, 1994), A
cabeça (contos, 2002), Bóris e Dóris (novela, 2006), e diversas antologias, sendo a mais
recente Amor e outros contos (2009).1
A obra de Vilela é como um turbilhão em fúria, em meio a tempestades filosóficas e
a acontecimentos ironicamente perturbadores, que fazem emergir o ser no mundo e sua
incompreensão como humano. Nesse universo ficcional, a linguagem de Luiz Vilela desnuda
os valores sociais, arrepia os puritanos, escancara mentiras e despedaça verdades. A ironia é o
tom escolhido para as mais diversas ocasiões: seja na morte sentida, seja no estupro
consentido, seja na mudança radical da vida e dos sentimentos, seja na conversa
despropositada de freiras — em tudo, o fio cortante do sarcasmo perpassa os romances,
novelas e contos de Vilela.
Dono de uma sintaxe equilibrada e de uma atmosfera em plena queda, em constante
desequilíbrio psicológico, o alvo do escritor Luiz Vilela não é o leitor, mas a consciência, a
verdade e a criticidade de quem o lê. Capaz de narrar a mais leve perturbação que subjaz em
singelas conversas entre amigos, Vilela expõe de maneira enviesada, mas sóbria, as verdades
incomodativas mascaradas pela humanizada convivência social, em tudo sórdida e desumana.
Escritores cujas paralelas geográficas os distanciam, o poeta pantaneiro e o
ficcionista mineiro se encontram no plano desconcertante da ficção brasileira, nos diálogos
com a contemporaneidade, nos entremeios dos sujeitos ficcionais e pessoais: Manoel de
Barros e Luiz Vilela desconcertam o transcurso do cotidiano, ressaltam o imagético e
potencializam o discurso narrativo como instrumento sócio-político e cultural — e é nesse
quadro, e nessas pegadas, se também se instauram os microcontos de Rauer.
Edgar Allan Poe acreditava que a brevidade e a concisão do conto levariam o leitor
da short story à totalidade do discurso (MOSCOVICH, 2005). Hemingway, Cortázar e Piglia,
1
Biobibliografia completa do escritor, com fortuna crítica e diversos outros serviços, estão disponíveis no blog
do GPLV – Grupo de Pesquisa Luiz Vilela, nos links disponíveis em < gpluizvilela.blogspot.com >, acesso em
outubro de 2011.
carandá
Revista do Curso de Letras do Câmpus do Pantanal – UFMS,
Corumbá, MS, novembro 2011, n. 4, p. 281
ISSN - 2176-6835
partindo dos pressupostos de Poe, propõem novas diretrizes para o gênero — tais percursos,
mais tarde, serão ainda mais precisos e justos para estabelecer os alicerces discursivos do
conto curto, do miniconto, do microconto, das micronarrativas com apenas uma palavra, etc.
Cortázar insistia na tensão como principal elemento para a composição do conto,
emprestando, assim, maior vivacidade ao texto:
[...] se não possuirmos uma idéia viva do que é o conto, teremos perdido
nosso tempo, pois um conto, em última instância, se desloca no plano
humano em que a vida e a expressão escrita dessa vida travam uma batalha
fraternal, se me permitem o termo; e o resultado desta batalha é o próprio
conto, uma síntese viva e ao mesmo tempo uma vida sintetizada, algo como
o tremor de água dentro de um cristal, a fugacidade numa permanência.
(CORTÁZAR, 1993, p. 147).
Hemingway ressaltara, antes, a importância do efeito que esta tensão causaria, não na
totalidade textual, mas no leitor. Sua contribuição mais significativa é a teoria do iceberg, cuja
comparação metafórica apresenta um emaranhado de elementos, “submersos”, que não são
evidentes, à primeira vista, na tessitura do texto. Cada elemento, cada detalhe deve exercer
uma função pré-concebida pelo escritor, de maneira que cada pormenor existente no conto
esteja ao serviço do efeito que se pretende.
Para Hemingway, o verdadeiro valor do conto está na proeza econômica, revelando
muito pouco e guardando os principais fatos, deixando-os subentendidos. Espalhadas na
narrativa de maneira discreta, certas palavras seriam como que cristalizações em linhas que
aprofundam o sentido, e que formam o desfecho e informam ao leitor o que está além do final,
embora este ainda se apresente de maneira surpreendente. Cabe, então, ao leitor preencher as
elipses, a partir de micropistas textuais. Por isso, a economia vocabular e a precisão de cada
palavra na narrativa são essenciais para que o efeito tenha assegurada sua intensidade e o
iceberg submerso brilhe à luz do sol.
era dia ou noite: — é o leitor que completa as cenas. Há um jogo silencioso entre a ocultação
total e a revelação parcial, como percebemos em “Dantesco”, microconto de Rauer:
DANTESCO
(Rauer, 2008-2011).1
1
Outros microcontos, bem como os haicais, podem ser lidos no twitter (sendo reproduzidos no facebook) do
próprio autor, em: < http://twitter.com/#!/rauer_rauer >, acesso em novembro de 2011.
2
Narratividade significa, por óbvio, narrar algo, contar a passagem de uma personagem de um estado a outro,
implicitamente ou explicitamente. Sem narratividade, o texto corre sempre o risco de ser uma simples
descrição de cena e não um conto, conto curto ou microconto.
carandá
Revista do Curso de Letras do Câmpus do Pantanal – UFMS,
Corumbá, MS, novembro 2011, n. 4, p. 283
ISSN - 2176-6835
ausência da esperança de algo que não mais voltará. Há, na verdade, esperança catártica de
que os bons sejam recompensados. Cai por terra toda a positividade e fica apenas o silêncio da
constatação. A atmosfera pesada provoca sentimento angustiante e dúbio no leitor. Não se
sabe quem cai, ou o que cai. Temos apenas a certeza de que não volta.
O narrador é diluído no texto e se fragmenta apenas no olhar, na exposição do
acontecimento captado pela brevidade do instante de vida e morte — início e fim; o início, o
título (transmutado na elocução do cair da morte), é o fecho em elipse, presentificado quando
o olhar do leitor, chamado a complementar a leitura, repousa o olhar novamente no título que
já lera. O “dantesco” é hipérbole da vida e da inexistência. É caminho que perfaz todo sujeito
diante da dúvida de sua existência enquanto ser.
E é pensando em elementos que dialogam com o leitor que o autor elenca palavras
que norteiam o microconto e que permeiam os estados de espírito da personagem: “Por aquele
amor que os uniu e se esvai, que não perdoa se não lhe volta amor, morto cai, como um corpo
morto cai” (destaque nosso). É “aquele amor”, e não “este”, que distancia o sujeito de suas
relações afetivas. A negatividade é a atmosfera escolhida. Contudo, não se pode precisar os
acontecimentos anteriores e nem posteriores, sendo as molduras iniciais e finais anuladas e/ou
marcadas pela tragédia. Tal procedimento suga da vida toda a profundidade que a cerca, suga
a vida de toda alma que lhe animava. Tudo o mais se torna plasmação de um outro realismo.
Tudo o mais, o quê? Parece-nos que, ontologicamente, o ser que se apresenta está
exausto do próprio significado de ser, de sua existência sem sentido e sem norte, gratuita e vã.
Há uma simetria de aliteração (forte recorrência de letras fechadas e oclusivas) que
evoca a destruição interna da personagem; e, nos parece, tal destruição arrasta em seu bojo
uma “morte” íntima. Há, nessa narrativa apresentada em versos que invocam de modo
intertextual o poema de Dante Aleghieri, um eixo mortuário que corrobora para a síntese
comunicativa e para a limpidez textual — elementos importantes para o microconto.
A convivência, mesmo que por um período curto, entre estes seres inusitados e a
personagem ou o narrador, foram recortados do cotidiano infantil. O início da aventura dá-se
sem que haja nota prévia. É o estado bruto do verbo ser: os infantes são agentes de ações
diretamente inaugurais e marcantes. As molduras narrativas (elementos que sinalizam o
início e o fim de um discurso) são suspensas da narrativa, de maneira que o leitor tende a
preenchê-las. É o leitor que determinará, dentro de sua leitura, a cor dos cabelos, se a criança
é fraca ou gordinha, se sempre acompanhou a trajetória biológica dos insetos.
Em “As formigas” e em “Lacraia”, o silêncio que exala das narrativas apresenta a
impossibilidade comunicativa com o mundo exterior. Esse silêncio fundador, inquietante e
mútuo antecipa a necessidade do poeta Manoel de Barros e do ficcionista Luiz Vilela em
percorrer a palavra não-dita, o mundo perturbador e inaugural da criança. O acontecimento
que marca a infância é lançado pelos escritores de maneira indeterminada, situando o leitor
num espaço quase mítico, de exemplaridade. A indeterminação temporal acontece nos
seguintes trechos das narrativas: “Um dia [...]” (Barros, Lacraia, 2004), “Isso aconteceu numa
manhã de muita chuva [...]” (Vilela, 1983, p. 128). Indeterminação temporal e espacial
também marca o microconto de Rauer, mas em universo adulto da ontologia do ser, o que
também faz a narrativa ter sua configuração de exemplaridade.
A lacraia, inseto peçonhento e extremamente ágil, foi “poetizada” por Manoel de
Barros no momento que lhe emprestou corpo ao “desalmado” invento humano — a máquina
trem. No “conto curto”, bem como no “microconto”, a seleção vocabular é ainda mais precisa
e a concisão torna-se elemento caro à narrativa curta.
Para Manoel de Barros, a lacraia é o espaço imagético e particular da criança, é a
parte “humanizada” de uma sociedade fria, encarrilhada nos trilhos econômicos. A
comparação, aparentemente ingênua, é movida pela criticidade social. É através da metáfora
ensaística do poeta que o menino experimenta da maldade humana, do inusitado, da epifania,
da comunhão divinal, como verificamos nos trechos seguintes: “Um dia a gente teve a má
carandá
Revista do Curso de Letras do Câmpus do Pantanal – UFMS,
Corumbá, MS, novembro 2011, n. 4, p. 285
ISSN - 2176-6835
idéia de descarrilar a lacraia. E fizemos essa malvadeza”; “Eu não estava preparado para
assistir àquela coisa estranha”; “A gente, nós, os meninos, não estávamos preparados para
assistir àquela coisa estranha”; “A gente como que reconhecia a força de Deus”.
A formiga, que apresenta organização parecida com a sociedade humana, foi o inseto
escolhido por Luiz Vilela. Eleita desde a célebre fábula da “cigarra cantante” para representar
a alegoria do trabalho, do esforço coletivo em benefício de uma sociedade, a formiga aparece
no discurso de Luiz Vilela para desordenar o sistema. A fábula que recrimina a cigarra, que
passa os dias a cantar, enquanto as formigas trabalham constantemente, é — muitos já o
demonstraram — uma apologia ao processo capitalista.
A formiga de Vilela sai da normalidade, desestrutura e subverte o espaço natural,
caminhando para o imagético infantil. É no mundo particular e silencioso da criança que a
formiga, ou a metáfora do ficcionista-narrador, apresenta o acontecimento, nem palpável nem
visível, apenas em silêncio fundador, aquele que diz o não-dito, como podemos evidenciar
nos seguintes trechos: “Foi a coisa mais bacana a primeira vez que as formigas conversaram
com ele. Foi a que escapuliu da procissão que conversou”; “formiga tinha hora que era feito
gente mesmo”; “O bom é que ninguém precisava gritar nem também mentir, como as pessoas
estavam sempre fazendo. E também poder ficar olhando assim sem falar nada, só olhando,
sem precisar falar”. A criança, cuja visão é crítica, prefere os bichos “humanizados” à
sociedade real.
Se há antropomorfia em Barros e em Vilela, em Rauer constatamos fábula de
movimento inverso: a dolorosa percepção da nulidade do ser. O homem vê-se diante de um
doloroso fim, e os sentimentos familiares e pessoais são dilacerados pela mortalidade da
existência: o outro torna-se “dantesco”, e o substantivo torna-se adjetivo que nomeia o modo
pelo qual o eu-lírico, despojado do amor que sente, se situa no mundo. Se no conto o ponto de
partida da narrativa está a meio passo do clímax, no microconto a sequência causal se
apresenta já no próprio clímax, que fulgura como uma epifania.
Mas o microconto pode ser um estado que se torna ação imprevista, denunciadora,
elíptica. É o que Rauer faz em outro microconto, ao subverter a ordem natural do discurso, da
lógica criada pelo pensamento do leitor, ao animalizar o conhecido “E foram felizes para
sempre”:
carandá
Revista do Curso de Letras do Câmpus do Pantanal – UFMS,
Corumbá, MS, novembro 2011, n. 4, p. 286
ISSN - 2176-6835
CONTO DE FADAS
(Rauer, 2008-2011).
salientar a proposição de Bauman (2007, p. 43), concordando com Sartre, de que a identidade
é um “projeto para toda a vida”, um construto que mescla vários elementos sociais, culturais,
até mesmo econômicos e políticos, consolidando, efetivamente, um reconhecimento de nós
mesmos.
Os limites identitários da lacraia e das formigas são corrompidos: ora trem com alma,
ora entidade sobrenatural que demonstra a força de Deus; ora inseto que se organiza como
uma sociedade humana, ora rebeldia diante do biologicamente tradicional; ora como gente de
verdade, ora inseto. Seres diferentes, identidades desiguais, estados que estão “entre” uma
coisa e outra, como, em Barros, na lacraia que parecia trem e com a qual o menino se
identifica. Já em Vilela, há alegoria, do humano e da sociedade, e a identidade como que se
constrói em antropomorfia, com as formigas reverberando sentimentos e a sociedade
humanos.
O que se presencia, entre lacraias, formigas e crianças, é um universo imagético, um
espaço outro de troca de experiências e de convívio. Não há limites estabelecidos, nem
mesmo o dentro e o fora, tão somente o antes e o depois. Neste microcosmo, o isolamento dá
lugar ao imaginário e à destituição da hierarquia biológica ou social.
Tudo o mais se amplia, e o ser humano sente-se cada vez mais pequeno diante da
imensidão divinal (“A gente como que reconhecia a força de Deus”) ou da maldade humana
(“[...] e viu a mancha de cimento novo na parede, brutal, incompreensível”). A indiferença
diante do universo e da expectativa que a criança gera em torno dos animais é recorrente na
Mansfield,
autora do antológico
“Aula de canto”, conto
com diversas traduções
para o português
carandá
Revista do Curso de Letras do Câmpus do Pantanal – UFMS,
Corumbá, MS, novembro 2011, n. 4, p. 288
ISSN - 2176-6835
literatura, não só na infantil. A narrativa de Luiz Vilela parece comunicar-se com o conto de
Tchekhov (2005), “O acontecimento”, no qual duas crianças ficam maravilhadas com o
nascimento dos gatinhos. Planejam, sonham, criam expectativas. Contudo, um cão, Nero,
devora os filhotes e destrói todo universo criado pelos infantes. Inconformados com o
“acontecimento”, as crianças esperam a condenação do criminoso. De maneira insensível, a
mãe os manda para o quarto.
Os contos curtos de Barros e Vilela transitam livremente entre os reinos — a lacraia
no animal, mineral e espiritual; e a formiga, apesar de permanecer apenas no reino animal,
fica entre a categoria do “racional falante” e a categoria do “irracional”. O poeta e o
ficcionista metaforizam a multiplicidade identitária, presente nas discussões da
contemporaneidade. As narrativas apresentam, diante do conciso espaço textual, uma seleção
vocabular que permite ao leitor acionar inúmeras outras leituras; tudo decorre do momento
sócio-cultural e do esforço de percepção que leitor e plateia dispensam ao conto como
espetáculo da própria leitura.
No microconto, ainda mais conciso que o conto curto, a indeterminação da
personagem contribui para atmosfera de solicitude do leitor, chamado, desde o momento de
leitura do título, à coautoria da narrativa. O exemplo abaixo, de Rauer, exemplifica:
FIM DE CASO
(Rauer, 2008-2011).
é o anúncio feito, ou a constatação dada pelo espaço da casa, o externo e o interno, esses
espaços físicos do ato sofrido ou da atitude tomada reverberam no sentimento do/da
protagonista, pois se há vida que segue, ela segue sem alegria, totalmente disfórica, pois que a
personagem nunca mais volta a sorrir, expressão que deixa entrever que havia, antes, motivos
para sorrir. O universo das relações pessoais e conjugais, em Rauer, é o universo dantesco do
castigo permanente, em um silencioso hui-clos sartriano vivido em vida.
O já mencionado convívio de experiências e identidades plurais também acontece no
campo cultural. Segundo Hutcheon (1991), há uma ampliação e um atrito nas fronteiras das
artes que permitem a coexistência ou amálgama dos gêneros, dos discursos e das
manifestações artísticas, assinalando, assim, para a convivência dos plurais. Os gêneros
literários apresentam-se, por vezes, mesclados ou interagindo em harmonia, sem que haja uma
fusão simplória, ou uma sobreposição hierárquica dos formatos textuais. Sendo assim, a
fluidez indicia a passagem de um estado para o outro, de um gênero ao outro, de um discurso
para o outro, de um ser que era, e que agora já não se é nem mais se sabe.
O ser — na visão de Rauer — se extingue: em “Fim de caso”, o ser deixa de ser,
obedece às normas, sucumbe no desejo e subsiste em anomia, se é que se pode dizer que
subsiste. No entanto, outros microcontos de Rauer evidenciam a construção de diversos
sujeitos, com a inauguração de outras possibilidades, de outros indivíduos. O humano
construído nos microcontos de Rauer experimenta — como veremos em mais um exemplo, à
frente — múltiplas sensações, condensadas em momentos de autoconhecimento, êxtase,
indignação, resignação e epifania.1
1
Para conhecer outros microcontos de Rauer, confira a antologia no final deste Dossiê. (Nota da Org.).
carandá
Revista do Curso de Letras do Câmpus do Pantanal – UFMS,
Corumbá, MS, novembro 2011, n. 4, p. 291
ISSN - 2176-6835
outros gêneros textuais, tais como — entre outros — a fábula, o lírico e o científico. Os
gêneros, no momento camaleões, figuram conforme a perspectiva de leitura do leitor. Sendo
assim, o jogo enunciativo tende, inevitavelmente, a fazer uma re-visitação de delimitações
ditas canônicas.
Poderíamos encontrar, nos textos “Lacraia” e “As formigas”, características que
figuram de modo pertinente no conto, ou no conto curto. Quanto ao microconto, suas bases
teóricas e literárias ainda estão por ser definidas. Contudo, elencamos algumas das evidências
mais constantes no que se diz do “conto curto” nas obras analisadas, assim como o que
depreendemos como característico do “microconto” a partir dos exemplos de Rauer com que
trabalhamos:
QUERIDO,
Eu.
(Rauer, 2008-2011).
uma vez a nulidade absorve os sentidos, mastiga-os, devora-os de maneira fria e transforma o
gênero carta em informação impessoal, intransponível na sua contraditória doçura e frialdade.
A redução da personagem a apenas pronome assegura o ser como múltiplo, fragmentado em
outros “eus” ficcionais ou pessoais. Uma mistura inquietante de gêneros e discursos que
impede o leitor de firmar sua certeza narrativa.
Nessa mistura de discursos, as narrativas se apóiam em frames discursivos, em
idioletos particulares e em jargões de determinadas áreas, liquidificando não só os gêneros
literários, mas também reproduzindo textualmente o vocabulário das mais diversas atividades:
o microconto “Querida,” é um recado, cujo vocativo tornou-se o título, moldura inicial do
gênero textual bilhete ou carta, e cuja moldura final é a assinatura. Ambas as molduras, em
sua indeterminação, coloca também esta narrativa no âmbito da exemplaridade, no contexto
modelar que recobre o ser humano de todos os tempos e de qualquer lugar. São dois actantes
em guerra conjugal, no inferno dantesco antropológico de sofrimento perene, enquanto vida
houver, das personagens de Rauer.
Certo aparato cientificista do senso comum está subentendido no contexto das
narrativas de Vilela e de Barros. A comparação metafórica do trem com o corpo da lacraia
aponta uma analogia de cunho técnico: “Em criança a lacraia sempre me pareceu trem. A
lacraia parece que puxava vagões. E todos os vagões da lacraia se mexiam como os vagões de
trem. E ondulavam e faziam curvas como os vagões de trem” (BARROS, 2004, “Lacraia”). A
descrição que o poeta faz da movimentação dos “gomos” da lacraia indica uma aparência de
teor científico — cada um dos “gomos” da lacraia possui terminações nervosas que, se
separadas, continuam a movimentação corpórea: “Os gomos da lacraia começaram a se mexer
e se encostar um no outro para se emendarem”.
No caso de Luiz Vilela, certo substrato sociológico emerge da organização “social”
das formigas: “(...) as formigas uma atrás da outra, descendo, a fila certinha” (VILELA, 1983,
p. 129). Entendida como um microcosmo de uma sociedade humana, a forma de agir das
formigas segue regras estabelecidas pelo grupo social e obedece, de maneira radical, os
comandos ditados pela rainha e por formigas diretamente ligadas ao poder: “[...] o padre ele já
tinha visto que era o formigão da frente, o maior de todos, andando posudo” (VILELA, 1983,
p. 128).
Nos diversos exemplos de Rauer, percebemos uma retomada constante de autores, de
obras, de gêneros literários e textuais os mais diversos: o microconto, a julgar pela amostra, é
antropofágico e se vale de toda a tradição literária e cultural pré-existente para, na síntese
carandá
Revista do Curso de Letras do Câmpus do Pantanal – UFMS,
Corumbá, MS, novembro 2011, n. 4, p. 294
ISSN - 2176-6835
CONSIDERAÇÕES FINAIS
1
O Microcontos, de Rauer, work in progress (2008-2011), é composto no momento por pouco mais de centena e
meia de narrativas, a menor delas com um único caractere, e a maior — até onde nos foi dado conhecer — com
58 palavras e 339 caracteres (incluídos os espaços). Há uma narrativa que só tem o título, com uma única
palavra, “Deus”, seu efeito de sentido, ambíguo e instigante, sendo dado pela página em branco e pela
sequência anterior de textos, definida com cuidado milimétrico.
carandá
Revista do Curso de Letras do Câmpus do Pantanal – UFMS,
Corumbá, MS, novembro 2011, n. 4, p. 295
ISSN - 2176-6835
ressalta na atualidade, sempre tivemos presente certa lição de que “a análise é suplemento,
catalogação, enquanto a obra [literária] é [que é] literatura, vida” (Rauer, 2006, p. 300).
Em uma perspectiva narrativa, os contos elaborados por Edgar Allan Poe estariam no
âmbito dos chamados contos de enredo, cujos fatos se desdobram e ressaltam a intensidade
dos acontecimentos, que “saltam sobre nós e nos agarram” (Pontieri, 2001, p. 95). As
personagens apresentam-se de maneira incomum e em situações extraordinárias. Os
sentimentos despertados no leitor se sustentam na intensidade e na unidade de impressão que,
súbita e inexorávelmente, aproximam os protagonistas de um desfecho surpreendente.
O denominado conto de atmosfera, explorado de forma pioneira por Tchekhov,
Machado de Assis, Virgínia Woolf e Katherine Mansfield, apóia-se na tensão, no estado
psicológico discursivo, para, de maneira lenta, aproximar a leitura de um desfecho que não
termina na narrativa, ao continuar no imaginário do leitor. Em “Angústia”, de Tchekhov, para
exemplificarmos, o
cocheiro Popatov
tenta contar a dor
pela perda de seus
filhos a diversos de
seus passageiros,
sendo impedido
pela pressa ou
desinteresse de
cada um deles,
deixando no leitor
a angústia do
homem que conta
somente com seu
cavalo para, sob a
neve enregelante,
partilhar suas
lágrimas — ou seja, nada acontece na narrativa, não há transformação, não há causa e efeito,
há somente um homem e seu sofrimento, o homem e sua pobre existência.
Para Piglia, tecnicamente um conto sempre entrelaça duas histórias, de maneira que
só no desenlace e revelado, de modo surpreendente, a história que se construiu subjacente à
primeira. Não há que se confundir essa segunda história, secreta, de Piglia, com o iceberg
carandá
Revista do Curso de Letras do Câmpus do Pantanal – UFMS,
Corumbá, MS, novembro 2011, n. 4, p. 296
ISSN - 2176-6835
proposto por Hemingway. A tensão do conto, em Kafka, se dá justamente por ele contar “com
clareza e simplicidade a história secreta”, enquanto narra “sigilosamente a história visível, até
convertê-la em algo enigmático e obscuro” (Piglia, 2004, p. 92).
Vimos que, nos dias atuais, a sociedade se vê confrangida, “tensionada” numa
relação tempo-espaço que evidencia a rapidez dos acontecimentos, a incerteza das posições, o
sujeito em metamorfose e os discursos camalotes, ou seja, discursos que flutuam sobre as
águas do sentido em eterna mutação. Piglia talvez tivesse agora de considerar que as duas
histórias, tanto a evidente quanto a secreta, constituem uma só torrente, ambas, de modo
simultâneo, evidentes e secretas, verdadeiras e falsas, coalescentes e fractais.
Têm-se, hoje, contos curtos, narrativa curta, minicontos, microcontos, literatwitter e
micronarrativas que procuram condensar — conforme os microcontos de Rauer — em uma
dezena de sílabas, ou em apenas uma palavra de três toques (“Amor / dor”), ou no também
citado “Homem”, com um único caractere (“ ! “), ou no vazio “Deus”, toda a miserável
vivência humana do século XXI, assim como a mundividência do ficcionista. São narrativas
que ainda carecem de uma conceituação adequada no âmbito dos estudos literários. Apesar
disso, parece-nos que o microconto, e talvez o conto curto, são os subgêneros que, nos dias
atuais, melhor expressam nosso tempo quanto à mobilidade discursiva que repensa o
indivíduo em seus planos sociais, políticos e culturais.
Vimos, em especial, que o microconto tem amplo diálogo com a contemporaneidade,
por transitar, facilmente, nas ondas instantâneas do celular, do msn e de outras redes sociais,
devido sua compressão tempo-espaço. O microconto de Rauer amalgama tensão,
inconformidade, surpresa, tragédia, humor, nulidade, suspensão dos limites direcionais — e
são esses os elementos que aparecem e explodem no ritual silencioso da leitura do microconto
contemporâneo.
A brevidade, a tensão e a intensidade constituem características do conto, e desses
atributos resulta a esfericidade peculiar da narrativa curta; para Cortázar (1993), o conto deve
enunciar e despertar no leitor uma “idéia viva” que, paradoxalmente, flutue entre a fugacidade
e a permanência. O microconto — como vimos nos exemplos de Rauer — potencializa todos
esses aspectos.
Na atualidade, a compressão do espaço-tempo está diretamente ligada à relação que
se estabelece entre inovações tecnológicas, o ser humano e seus discursos. O microconto
apresenta-se como um caldeirão de todas as possibilidades já evidenciadas no conto moderno
e suas categorias narrativas. Tal diálogo com a contemporaneidade deste início de terceiro
carandá
Revista do Curso de Letras do Câmpus do Pantanal – UFMS,
Corumbá, MS, novembro 2011, n. 4, p. 297
ISSN - 2176-6835
milênio desvela uma sociedade cuja clausura ao tempo cronológico é uma variável cada vez
maior, menos racional e mais subjetiva.
Capazes de caber em apenas uma linha na tela do celular, os microcontos são
carregados de frequências sensoriais que despertam no leitor o instante da brevidade num
curto espaço. Os elementos do microconto contemporâneo — que, como vimos nas
microficções de Rauer, coalescem tensão, inconformidade, surpresa, tragédia, humor,
nulidade e suspensão dos limites direcionais — aparecem de maneira condensada e explosiva,
em meio ao babélico caos urbano e midiático, no ritualístico momento silencioso da leitura.
Nos exemplos estudados, o conto de Barros poetiza a memória e o de Luiz Vilela,
conforme a lição de Cortázar, após poucos rounds, vence a luta por nocaute; já o microconto
de Rauer leva o leitor à lona, com um único e decisivo golpe, no instante mesmo em que o
gongo dá início ao combate.
REFERÊNCIAS:
BARROS, Manoel de. Memórias inventadas: segunda infância. São Paulo: Planeta, 2004.
BAUMAN, Zygmunt. Vida líquida. Trad. Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janeiro: Jorge Zahar,
2007.
BAUMAN, Zygmunt. A utopia possível na sociedade líquida. Cult, n. 138, São Paulo, ago. 2009, p.
14-18. Entrevista a Dennis de Oliveira.
CAPAVERDE, T. Intersecções possíveis: o miniconto e a série fotográfica. 2004. 100 p. Dissertação
(Mestrado em Letras) — Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2004. Disponível
em < http://hdl. handle .net/10183/6117 >, acesso em: 24 ago. 2008.
CORTÁZAR, Júlio. Alguns aspectos do conto. In: ______. Valise de cronópio. Trad. Davi Arrigucci
Jr. e João Alexandre Barbosa. 2. ed. São Paulo: Perspectiva, 1993. p. 147-163.
HUTCHEON, Linda. Poética do Pós-Modernismo. Trad. Ricardo Cruz. Rio de Janeiro: Imago, 1991.
JOLLES, André. Formas simples. São Paulo: Cultrix, 1976.
MAYRINK, Geraldo. Com lama, suor e solidão. Veja, São Paulo, 5 jan. 1994, p. 96.
MIGUEL, Pedro. El microrrelato: ese arte pigmeo. Revista Elmundo es. Disponível em <
http://elmundolibro.elmundo.es/elmundolibro/microrrelatos/ >, acesso em: 28 set. 2008.
MOSCOVICH, Cíntia. De Poe a Piglia: em busca das teorias sobre o conto e o encontro de uma
gramática do silêncio. In: ______. Micronarrativas, 2005. Disponível em < http://zurdo-
zurdo.blogspot.com/2008/01/de-poe-piglia-em-busca-das-teorias.html >, acesso em: 24 ago. 2009.
PANIAGUA RAMIREZ, Karla. Propuestas para una lectura minicuentísticas de prosa poética. El
cuento en Red, n. 1, México, primavera 2000. Disponível em <
http://webs.uolsinectis.com.ar/rosae/breve8.htm >, acesso em: 28 set. 2008.
PIGLIA, Ricardo. Formas breves. Trad. José Marcos Mariani de Macedo. São Paulo: Cia das Letras,
2004.
carandá
Revista do Curso de Letras do Câmpus do Pantanal – UFMS,
Corumbá, MS, novembro 2011, n. 4, p. 298
ISSN - 2176-6835
PONTIERI, Regina. Formas históricas do conto: Poe e Tchekhov. In: BOSI, Viviana et alli (Orgs).
Ficções: leitores e leituras. São Paulo: Ateliê, 2001. p. 91-112.
RAUER [Rauer Ribeiro Rodrigues]. Faces do contos de Luiz Vilela. Araraquara, SP, 2006. 2 v. xix,
547 f. Tese (Doutorado em Estudos Literários) — FCL-Ar, Unesp. Disponível em
<http://www.dominiopublico.gov.br/pesquisa/Detalhe ObraForm.do ?selectaction.=&co_obra=91329
>, acesso em: 7 agosto 2009.
RAUER. Microcontos. Work in progress (2008-2011). Volume inédito em arquivo doc. Diversos
microcontos foram publicados no twitter, com reprodução no facebook.
TCHÉKHOV, Anton. Angústia. In: ______. A dama do cachorrinho e outros contos. Trad. e posf.
Boris Schnnaiderman. 5. ed. São Paulo: 34, 2005. p. 132-138.
TCHÉKHOV, Anton. O acontecimento. In: ______. A dama do cachorrinho e outros contos. Trad. e
posf. Boris Schnnaiderman. 5. ed. São Paulo: 34, 2005. p.148-154.
VILELA, Luiz. As formigas. In: ______. Tarde da noite. 3. ed. São Paulo: Ática, 1983. p. 128-129.
carandá
Revista do Curso de Letras do Câmpus do Pantanal – UFMS,
Corumbá, MS, novembro 2011, n. 4, p. 299
ISSN - 2176-6835
PALAVRAS-CHAVE:
Entre-lugar; Intertextualidade; Literatura brasileira.
1
Mestre em Estudos Fronteiriços pela UFMS (2010), ingressou no Mestrado em Letras da UFMS
(2012-2014). Atua na SED-MS; versão menor deste trabalho foi apresentado na Abralic, em Curitiba,
em julho de 2011; lucienelemos10@yahoo.com.br.
carandá
Revista do Curso de Letras do Câmpus do Pantanal – UFMS,
Corumbá, MS, novembro 2011, n. 4, p. 300
ISSN - 2176-6835
1 Eis a introdução ao livro: “Quando acordou, / o dinossauro ainda estava lá. / Augusto Monterroso //
O mais famoso microconto do mundo, acima, tem só 37 letrinhas. Inspirado nele, resolvi desafiar
cem [103] escritores brasileiros, deste século, a me enviar histórias inéditas de até cinquenta letras
(sem contar título, pontuação). Eles toparam. O resultado aqui está. Se ‘conto vence por nocaute’,
como dizia Cotazár, então toma lá.” (Marcelino Freire).
carandá
Revista do Curso de Letras do Câmpus do Pantanal – UFMS,
Corumbá, MS, novembro 2011, n. 4, p. 303
ISSN - 2176-6835
BALA PERDIDA
A silente,
desesperada e
agônica música
de Virgínia
Woolf
carandá
Revista do Curso de Letras do Câmpus do Pantanal – UFMS,
Corumbá, MS, novembro 2011, n. 4, p. 305
ISSN - 2176-6835
DISQUE-DENÚNCIA
— Cabeça?
— É.
— De quem?
— Não sei. O dono não tá junto.
(AQUINO, 2004, p. 55).
AMOR
Maria,
quero caber todo
em você.
(BARROS, 2004, p. 54).
SONATA AO LUAR
COITO INTERROMPIDO
EPITÁFIO
(RAUER, 2010).
1 Zavala (2000) define fractalidade como “la idea de que un fragmento no es un detalle, sino
un elemento que contiene una totalidad que merece ser descubierta y explorada por su
cuenta”.
carandá
Revista do Curso de Letras do Câmpus do Pantanal – UFMS,
Corumbá, MS, novembro 2011, n. 4, p. 312
ISSN - 2176-6835
MARÇAL AQUINO
carandá
Revista do Curso de Letras do Câmpus do Pantanal – UFMS,
Corumbá, MS, novembro 2011, n. 4, p. 315
ISSN - 2176-6835
1
Mestres do conto. Entre outros: Poe, Tchékhov, Maupassant, Machado, Joyce, Kafka, Mansfield, Woolf,
Borges, Hemingway, Cortázar e Vilela.
carandá
Revista do Curso de Letras do Câmpus do Pantanal – UFMS,
Corumbá, MS, novembro 2011, n. 4, p. 317
ISSN - 2176-6835
REFERÊNCIAS
ASSIS, Machado de. Memórias Póstumas de Brás Cubas. 18. ed. São
Paulo: Ática, 1992.
ISER, Wolfgang. O jogo do texto. in: Lima, Luiz Costa (Seleção, tradução e
notas.). 2. ed. A Literatura e o leitor: textos de estética da
recepção. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979. p 105-118.
VILELA, Luiz. A cabeça. São Paulo: Cosac & Naify, 2002. 132 p.
carandá
Revista do Curso de Letras do Câmpus do Pantanal – UFMS,
Corumbá, MS, novembro 2011, n. 4, p. 321
ISSN - 2176-6835
© 2008 - 2011
Esperançoso saudoso
Quando — intran- Era uma vez um exausto, o soldado
quilo sono — acordou, príncipe encantado, mo- voltava da guerra
o Verbo já o esprei- ço respeitador, e sua quando pisou no explo-
sivo.
tava. donzela, moça de puro
recato. Nas núpcias,
ela flutuava, feliz para
sempre.
Então sentiu no
peito, de cima abaixo
rasgaçalhando o ves-
tido de noiva, as mãos
dele.
!
e(n)ternece,
corpo, não a
se o lábio fino mim, pois não
enlouquece, mais me sou:
por que o olhar
Eu.
não
permanece?
em branco.
FEIJOADA
Confesso.
Fui eu que enfiei a faca
na barriga desse porco.
(Ivana Arruda Leite)
carandá
Revista do Curso de Letras do Câmpus do Pantanal – UFMS,
Corumbá, MS, novembro 2011, n. 4, p. 328
ISSN - 2176-6835
NORMAS DE SUBMISSÃO