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carandá

Revista do Curso de Letras do Câmpus do Pantanal – UFMS,


Corumbá, MS, novembro 2011, n. 4, p. 2

EDITORIAL

Esta edição da Carandá tem alguns destaques para os quais chamamos a atenção:

1. O Dossiê sobre o microconto. O microconto é tema ainda rarefeito na academia e


nos periódicos de estudos acadêmicos, mas que lateja, repercute e se multiplica
como criação nas mídias sociais e em milhares de páginas na internet. Confira a
partir da página 241.

2. As ilustrações no Dossiê. Essas ilustrações retratam contistas e estudiosos,


colocando-os no cenário de suas obras. O autor é Alex Sandro Melo Diniz, jovem
artista de Minas Gerais a que, com orgulho, lançamos.

3. A seção Resenha. Abre a edição texto que trata da Aula Magna do Mestrado em
Letras da UFMS proferida, em Três Lagoas, em março deste ano. As lições do
professor Roberto Acízelo de Souza, publicadas em edição especial da Guavira
Letras, devem ensejar reflexão a professores universitários, a alunos da pós-
graduação e a graduandos que se dedicam à pesquisa.

4. Dezenove instituições. Nesta edição, contamos vinte e nove nomes, de dezenove


diferentes instituições, sendo uma do exterior. São vinte e cinco textos, cujos
autores são dos seguintes estados: AL, BA, GO, MG, MS, PA, PB, RJ e RS, além
de um ligado à Universidade da Geórgia, nos EUA.

No entanto, há, ainda, números mais expressivos a comemorar. Com esta edição, a quarta
em dois anos e meio, são 132 autores publicados, de dezenas de instituições diferentes, a quase
totalidade deles ligados a programas de pós-graduação, cobrindo todas as regiões do país e com
contribuição de pesquisadores do exterior, em afluxo que nos obrigou — prazerozamente, diga-
se — a redimensionar a nossa estrutura, ampliando a equipe científica e o quadro de consultores
ad hoc.

Mas, se há motivo para comemorar, a comemoração maior é a leitura dos textos que se
seguem. Pois, como disse o prof. Acízelo, na aula que mencionamos acima,

Por muito tempo a pesquisa em literatura foi exercida como uma atividade
subsidiária ou diletante. Hoje corresponde a uma profissão, e essa virada, como
quase todas as mudanças sociais, apresenta os inevitáveis prós e contras. Não
acho que devemos ter saudades dos bons tempos do amadorismo, “que os anos
não trazem mais”, porém tampouco convém embarcar sem resistência no atual
produtivismo que nos assola.

Portanto, buscando no estudo o que nos é prazer, desejamos a todos boa leitura.

Angela Varela Brasil Pessoa


Rauer Ribeiro Rodrigues
Editores
COMISSÃO EDITORIAL:
Angela Varela Brasil Pessoa (Coordenadora; Letras-CPAN-UFMS)
Rauer Ribeiro Rodrigues (Vice-Coordenador; Letras-CPAN-UFMS)
Rita Maria Baltar Van de Laan (Letras-CPAN-UFMS)
Teresa Cristina Varela Brasil de Almeida (Letras-CPAN-UFMS)
COMISSÃO CIENTÍFICA:
Rauer Ribeiro Rodrigues (Coordenador; Letras-CPAN-UFMS)
Fabiana Portela de Lima (Vice-Coordenadora; Letras-CPAN-UFMS)
Angela Varela Brasil Pessoa (Secretariado; Letras, CPAN-UFMS)
Auredil Fonseca dos Santos (Letras, CPAN-UFMS)
Dimair de Souza França (Pedagogia, CPAN-UFMS-UFMS)
Edgar Aparecido da Costa (Geografia/Mestrado em Estudos Fronteiriços, CPANUFMS)
Eduardo Gerson de Saboya Filho (História, CPAN-UFMS)
Elaine Aparecida Cancian de Almeida (História, CPAN-UFMS)
Elizabete Bilange (Letras, CPAN-UFMS)
Fortunato Pastore (História, CPTL-UFMS)
Joanna Durand Zwarg (Letras, CPAN-UFMS)
Kelcilene Grácia-Rodrigues (Letras/Mestrado em Letras, CPTL-UFMS)
Luciene Lemos de Campos (Mestre em Estudos Fronteiriços, SED, Três Lagoas, MS)
Luciene Paula M. Pereira (Letras, CPAN-UFMS)
Marcelo Dias de Moura (Matemática, CPAN-UFMS)
Márcia Regina do Nascimento Sambugari (Pedagogia, CPAN-UFMS)
Marco Aurélio Machado de Oliveira (Mestrado em Estudos Fronteiriços-CPAN-UFMS)
Marcos Rogério Heck Dorneles (Letras, CPAN-UFMS)
Maria Adélia Menegazzo (Letras/Mestrado em Estudos de Linguagens, CCHS-UFMS)
Maria Auxiliadora Negreiros de Figueiredo Nery (Pedagogia, CPAN-UFMS)
Mônica de Carvalho Magalhães Kassar (Mestrado em Educação Social-CPAN-UFMS)
Regina Baruki (Letras, CPAN-UFMS)
Rita Baltar Van der Laan (Letras, CPAN-UFMS)
Sandra Hahn (Letras, CCHS-UFMS)
Suzana Vinícia Mancilla Barreda (Letras, CPAN-UFMS)
Teresa Cristina Varela Brasil de Almeida (Letras, CPAN-UFMS)
Vanessa Bivar (História, CPAN-UFMS)
Waldson Luciano Corrêa Diniz (História, CPAN-UFMS)
PERIODICIDADE: Semestral ― ISSN: 2176-6835
Mês de Circulação: maio e novembro
Editoração: Rauer Ribeiro Rodrigues
Capa — foto e arte: Rauer
Ilustrações: Alex Melo Diniz (Alex Sandro)

Endereço:
CARANDÁ – Revista do Curso de Letras
Câmpus do Pantanal / UFMS
Profs. Angela e Rauer – editores
Av. Rio Branco, 1270 – sala 217, Bloco H
79304-902 – Corumbá – MS
(67) 3234-6830
revistacaranda@gmail.com

A responsabilidade de cada artigo, no que se refere ao


teor, à formatação e à revisão do texto, é do autor.
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Corumbá, MS, novembro 2011, n. 4, p. 4

SUMÁRIO

RESENHA
Um percurso essencial: pré-requisitos e obstáculos na formação do
pesquisador em literatura 9
Cícera Rosa Segredo Yamamoto
Fabian Castilho Cossio

ARTIGOS
A ucronia enquanto narrativa histórica 19
Rogério Bianchi de Araújo

Ut Pictura Poesis, de Horácio: por uma arqueologia da comparação entre


as artes 35
Neurivaldo Campos Pedroso Junior

Literatura escrita indígena: do mito à história ou da história ao mito? 53


Érika Bergamasco Guesse

Assimilação e influência na literatura latino-americana: a “devoração” da


cultura européia 71
Geovanna Marcela da Silva Guimarães

Beckett leitor de Proust: da crítica à criação 78


Gleydson André da Silva Ferreira

A Dama do Lotação: um caso de amor, infidelidade e morte 97


Andréa Beraldo Borde

O narrador viajante de Garrett 109


Alex Alves Fogal
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Texto Literário e Contexto Social: análise do Poema “José” de Carlos


Drummond de Andrade
Dirce Pereira Lelis 125

Walt Whitman, Emily Dickinson e a Guerra Civil Americana 135


Natalia Helena Wiechmann

O Realismo na Peça Le Demi-Monde (1855), de Alexandre Dumas Filho 154


Silvia Pereira Santos

Realismo e realidade: algumas proposições de Eça de Queirós 165


Giuliano Lellis Ito Santos

Lima Barreto: crítico da vacuidade da elite intelectual europeia e do


despreparo das elites brasileiras 175
Ione Eler E Herler
Rosemary Sousa Cáfaro
Rauer Ribeiro Rodrigues

Mudança e institucionalização: o lugar do narrador no espanto dissimulado e


burocratizado em João do Rio e Dalton Trevisan 183
Sandro Roberto Maio

O Quarto Fechado e a Mente Desnuda: desvendando a Narrativa 196


Cristiane Barbosa de Lira

A variação linguística nos manuais didáticos de português 209


Jeferson Carlos Cordeiro de Brito

A dínâmica lexical da linguagem jornalístico-política em textos escritos


em língua portuguesa contemporânea na primeira década do Século XXI 221
Pedro Antonio Gomes De Melo

LITER’ARTES
Poesia
Trilogia das Verdades: 237
Doxa
Minas
As Horas

Rogério Lobo Sáber


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DOSSIÊ:

O MICROCONTO
Luciene Lemos de Campos
(Org.)

Contistas, Microcontistas e Críticos — Retratos 242


Alex Melo Diniz

Apresentação — Dossiê: o microconto 243


Luciene Lemos de Campos

Os Cem Menores Contos Brasileiros do Século


Marcelino Freire — Retrato 247
Alex Melo Diniz

Apontamentos sobre o microconto 248


Rauer Ribeiro Rodrigues

“Epitáfio”
Rauer Ribeiro Rodrigues — Retrato 252
Alex Melo Diniz

Uma introdução historiográfica ao estudo do microconto brasileiro 253


Fabrina Martinez de Souza
Rauer Ribeiro Rodrigues

A crítica corre atrás do seu objeto


Helopisa Buarque de Hollanda – Retrato 254
Alex Melo Diniz

O artista e o meio
Antonio Candido — Retrato 263
Alex Melo Diniz

Intensidade, Brevidade e Coalescência: das vertentes do conto, o


microconto 274
Waleska Rodrigues de Matos Oliveira Martins
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“Lacraia”
Manoel de Barros – Retrato 276
Alex Melo Diniz

Biobibliografia (após o conto “As formigas”)


Luiz Vilela — Retrato 279
Alex Melo Diniz

“Aula de canto”
Katherine Mansfield — Retrato 287
Alex Melo Diniz

“Angústia”
Anton Thékhov — Retrato 295
Alex Melo Diniz

Entre frinchas, a poética do microconto brasileiro 299


Luciene Lemos de Campos

O soturno
Edgar Allan Poe — Retrato 301
Alex Melo Diniz

Silente, desesperada e agônica


Virginia Woolf — Retrato 304
Alex Melo Diniz
“Amor”
Manoel de Barros — Retrato 307
Alex Melo Diniz

Marçal Aquino
Retrato 314
Alex Melo Diniz

Teses do Conto
Ricardo Piglia — Retrato 322
Alex Melo Diniz

Microcontos (seleção com 33 narrativas) 323


Rauer [Rauer Ribeiro Rodrigues]

Ivana Arruda Leite


Retrato 327
Alex Melo Diniz

SERVIÇO

Carandá — Chamada e Normas Para Colaborações 328


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Resenha
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Corumbá, MS, novembro 2011, n. 4, p. 9

UM PERCURSO ESSENCIAL
PRÉ-REQUISITOS E OBSTÁCULOS NA FORMAÇÃO DO PESQUISADOR EM LITERATURA 1

Cícera Rosa Segredo Yamamoto 2


Fabian Castilho Cossio 3

SOUZA, Roberto Acízelo de. A Formação do Pesquisador em


Literatura: Proposição de um Itinerário. Guavira Letras
(volume especial), Mestrado em Letras, 2011. 36 p.
(Aula Magna do Mestrado, proferida, em Três
Lagoas, em 24 de março de 2011).

Esta resenha tem por objetivo apresentar um roteiro com elementos básicos,
porém essenciais, na formação do pesquisador em Literatura. Tomamos por fundamento
a plaquete A formação do pesquisador em Literatura: proposição de um itinerário,
que contém a Aula Magna de 2011 do Mestrado em Letras da Universidade Federal de
Mato Grosso do Sul, proferida pelo professor Roberto Acízelo de Souza no dia 24 de
março no Campus de Três Lagoas. Retomamos, ainda, a discussão que se seguiu à
conferência, destacando pontos fundamentais aprofundados neste momento.
O professor Roberto Acízelo de Souza (UERJ/CNPQ) é Licenciado em Inglês
pela Universidade Santa Úrsula, em 1970, Licenciado em Português e suas Literaturas

1
O texto que aqui se apresenta não teria a abrangência que eventualmente possa ter sem as discussões na
disciplina Seminários de Dissertação, do primeiro semestre de 2010, no Mestrado em Letras da UFMS,
Câmpus de Três Lagoas, ministrada pelo professor Rauer Ribeiro Rodrigues. Em especial, com as
intervenções do prof. Rauer e a contribuição de todos os colegas, em particular de Michele Ester de
Campos Furlan (aluna especial), Sandro Luís Ferreira Rotiroti, Maria do Socorro Pereira Soares
Gonzaga (aluna ouvinte), Cátia Mendes Pereira (aluna especial), Daniela Galli dos Santos, Jorge
Augusto Balestero, Michela Mitiko Kato Meneses de Souza, Raquel Celita Penhalves dos Reis e
Rosana da Silva Araújo.
2
Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Letras (Área de Concentração: Estudos Literários) da
Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS), do Câmpus de Três Lagoas;
yamacissa@hotmail.com.
3
Aluno ouvinte do Mestrado em Letras da UFMS, Campus de Três Lagoas, na disciplina Seminários de
Dissertação, ministrada pelo prof. Rauer no primeiro semestre de 2010; fabiancc7@hotmail.com.
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pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro, em 1971, e Bacharelado em Ciências


Jurídicas e Sociais, em 1972. Fez Mestrado e doutorado em Letras - Teoria da
Literatura, concluindo-os em 1974 e 1980, pela Universidade Federal do Rio de Janeiro.
Fez estudos de pós-doutorado, na área de literatura brasileira, na Universidade de São
Paulo, no período de 1994 a 1995. Foi professor de teoria da literatura, de 1977 a 2002,
na Universidade Federal Fluminense, e atualmente é professor titular de Literatura
Brasileira na Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Dedica-se aos estudos de
Literatura Brasileira e Teoria da Literatura, com diversas obras publicadas.
Em A formação do pesquisador em Literatura: proposição de um itinerário,
o professor Roberto Acízelo de Souza relaciona critérios da formação básica do aluno
universitário de letras que pretende se dedicar à pesquisa. Esses critérios vão desde as
condições e disciplinas oferecidas pelas faculdades até a proficiência em habilidades
específicas como o ato da leitura e a escrita, as Línguas estrangeiras e o conhecimento
epistemológico necessário para se tornar um especialista universitário no campo dos
estudos literários.
O Prof. Acízelo inicia sua exposição com clareza e propriedade, delineando
uma proposta de elementos e ferramentas básicas para a vida do graduando e do pós-
graduando como aluno apto a produzir trabalhos científicos nos padrões metodológicos
e conceituais da produção de artigos, dissertações e teses, em especial no estudo da
literatura: a crítica literária, a historiografia das literaturas nacionais e a análise de textos
ficcionais ou de textos de poesia.
Adotando uma perspectiva de análise histórico-comparativa sobre a formação
de doutores que remonta à década de 1970, o Prof. Acízelo conta que, naquela época, a
produção científica nas universidades encontrava sérias dificuldades para a confecção
de textos científicos padronizados, até mesmo para entender o que era um fichamento,
fato que, em tom solidário, descreve como experiência própria.
Embora o notável teor democrático da conferência, pelo discurso acessível e
permeável, o aspecto da restauração da dignidade da disciplina também se faz presente
(algo que desagradaria àqueles de áreas diferentes?), visto que há uma flexibilidade de
áreas de graduados que concorrem à especialização dentro dos estudos literários, com
muitos graduados de outras áreas procurando os estudos literários para seus estudos de
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pós-graduação. Isto poderia causar, segundo o professor Acízelo, um declínio da


qualidade da área. A pertinente sugestão de Acízelo é a de contarmos na pós com mais
alunos graduados em Letras, sem descartar o caráter multidisciplinar do programa de
pós-graduação.
Outro item destacado foi o processo para desenvolver um senso profundo da
linguagem geral e particularmente da língua portuguesa. Ao mesmo tempo sugere a
proficiência em outras línguas, como — entre outras — o Inglês, o Espanhol, o Italiano,
o Latim e até mesmo o Alemão. As línguas estrangeiras são importantes pela sua
aplicabilidade na decodificação de referências e alusões estrangeiras, sem necessidade
de traduções, área que ainda deixa a desejar editorialmente no Brasil.
O domínio de línguas clássicas e estrangeiras é entendido como uma
instrumentalização para o especialista em literatura, proporcionando, a esse profissional,
ferramentas básicas de trabalho na decodificação de referências e alusões de várias
ordens. O conhecimento amplo da língua vernácula — e de outras, mesmo que não
fluente — proporciona uma maior perspicácia no entendimento dos aspectos do
fenômeno linguístico, principalmente do texto, garantindo ao pesquisador um acesso
menos restrito a bibliografias técnicas e obras literárias.
De uma forma geral, a importância da gramática para o professor Acízelo está
em sua capacidade de desenvolver um profundo conhecimento da linguagem e da
língua, em particular, nos seus mais diversos níveis estruturais: fonológico, semântico,
morfológico e sintático.
Embasado nas teorias de Medawar (1979) e Bunge (1980), Acízelo frisou a
necessidade de dedicação integral do pesquisador que pretende se dedicar ao universo
das letras. Em dez tópicos, delimitados por especificidade de áreas, a palestra teve por
meta construir em palavras uma trajetória científica e realista sobre a aquisição do
knowledge [conhecimento] literário do pesquisador, apontando a importância de cada
campo de conhecimento na “boa formação” do especialista.
O requisito mandatório, grifado com conhecimento de causa pelo Prof.
Acízelo, foi o da necessidade de escrever. “Este é um elemento central e não uma
singularidade do especialista”, aponta o professor Acízelo. Para tal efeito, a leitura
atenta de pelo menos dois manuais de estilo de grandes jornais é necessário, o que,
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alerta o professor, “não será tão divertido”, mas de valor único para o aprimoramento da
sistemática da técnica de escrever. O professor reitera a importância do ato de escrever
fazendo menção a um texto de Graciliano Ramos:
Deve-se escrever da mesma maneira como as lavadeiras lá de Alagoas
fazem seu ofício. Elas começam com uma primeira lavada, molham a
roupa suja na beira da lagoa ou riacho, torcem o pano, molham-no
novamente, voltam a torcer. Colocam o anil, ensaboam e torcem uma,
duas vezes. Depois enxáguam, dão mais uma molhada, agora jogando
a àgua com a mão. Batem o pano na laje ou pedra limpa, e dão mais
uma torcida e mais outra, torcem até não pingar do pano uma só gota.
Somente depois de feito tudo isso é que elas dependuram a roupa
lavada na corda ou no varal, para secar. Pois quem se mete a escrever
devia fazer a mesma coisa. A palavra não foi feita para enfeitar,
brilhar como ouro falso; a palavra foi feita para dizer. (Ramos,
Graciliano. Entrevista em 1948. In: Vidas secas. 102. ed. Rio de
Janeiro: Record, 2007, contracapa).

Tratou em seguida do requisito da apropriação de Metodologia Científica


como ponto crucial do roteiro, já que capacitará o aluno para o automatismo na
elaboração dos aspectos mecânicos do processo da escritura científica, isto é,
subdivisões, sistemas de referências, disposição de citações, etc. Segundo o professor, o
domínio da Metodologia Científica possibilita uma concentração maior no plano
criativo, da elaboração conceitual na produção de projetos e melhores condições para
definir com clareza a fundamentação metodológica e teórica.
Segundo Acízelo, a disciplina Metodologia Científica se constituiu em um
grande beneficio na década de 1970, quando fazia parte dos currículos, proporcionando
aos alunos uma dimensão técnica da escrita, do como fazer. Porém, com o passar dos
anos foi aos poucos se extinguindo, o que faz falta na formação do estudioso em
literatura, cabendo a ele montar um estudo paralelo dessa técnica, pois, assim como a
escrita, o cuidado com a metodologia é componente essencial ao trabalho intelectual,
proporcionando ao estudioso uma melhor reflexão teórica, delimitação do tema e
utilização das fontes no desenvolvimento de trabalhos acadêmicos. Para o professor
Acízelo, a fundamentação metodológica assegura melhorias no desempenho dos
aspectos operacionais e práticos dos pesquisadores, os conduzindo à tríade disciplinar
da área de Letras: filologia, lingüística e teoria literária.
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Acízelo acredita que o estudo metodológico direciona o pesquisador para o


campo da Filosofia, a qual não pode ser fragmentada e deve ser estudada por conta
própria, com o auxílio de um bom dicionário de termos filosóficos.
A História, a Psicanálise ou a Antropologia, segundo Acízelo, renderá ao
pesquisador pelo menos três benefícios:
1) Dispor de elemento de comparação útil para compreender melhor a
arquitetura conceitual das disciplinas de sua alçada mais direta;
2) Ver o macro-objeto de sua eleição — a linguagem — sob novas luzes;
3) Dominar condições para testar a transposição dos conceitos dela para a
investigação de problemas da sua área.
De acordo com professor Acízelo, podemos entrar na Literatura pela história
literária ou pela teoria da Literatura. A primeira maneira serve-se da forma narrativa, o
concreto e particular; a segunda utiliza a exposição conceitual, com tendências para o
abstrato e universal. No entanto, a configuração atual do conhecimento acadêmico
sugere, imperativamente, a dedicação profunda à teoria da Literatura e a capacitação
constante do pesquisador, seguindo o caminho sugerido nesta resenha.
Esse caminho que um bom pesquisador do campo dos estudos literários deve
seguir, idealizado pelo Roberto Acízelo, tem como amparo teórico sua própria
experiência da longa jornada que adquiriu durante sua profissão dentro da área literária.
O método é prático e simples, pois o autor estabelece para cada capítulo um
tema relacionado ao requisito que ele propõe a ser seguido pelo especialista do campo
de literatura. Faz os questionamentos de forma isolada com tópicos curtos e objetivos.
Ao narrar em primeira pessoa, o faz tranquilamente, como se estivesse conversando
pessoalmente com o leitor
De forma conclusiva, faz um discurso contundente quanto à formação do
pesquisador frente aos estudos literários, defendendo a importância da boa formação do
graduando em letras e a fiel dedicação e responsabilidade do estudioso que atuar na
área. Salienta ainda que, para o objetivo do acadêmico em formação seja alcançado com
êxito, um currículo enxuto, bem delimitado e profundo nos campos estudados é a
solução mais coerente no cenário acadêmico dos estudos literários da atualidade.
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É importante ressaltar que, seja qual tema seja a que se dedique um estudo, é
imprescindível o conhecimento de línguas, da teoria dessa matéria, das disciplinas a
serem estudadas e o conhecimento, mesmo que básico, das teorias das várias disciplinas
que compõem os núcleos do Curso de Letras. Tudo isso faz as pessoas melhores
conhecedoras de si mesmas e também do mundo a sua volta. Aliás, o conhecimento
básico dessas matérias aumenta o campo de análise do ser humano e o faz, não somente
mais crítico em relação aos assuntos, mas também torna o entendimento de
determinadas questões mais fácil. Questões essas que podem ser cruciais para o
desenvolvimento do projeto de pesquisa.
A nosso ver, o professor Acízelo, de maneira habilidosa, se esgueira dos
métodos tradicionais, das morbidades acadêmicas, e se põe numa linha de compreensão
visionária e honesta para expor e traçar sua proposição de itinerário aos acadêmicos,
pesquisadores e futuros especialistas dos Estudos Literários. O caminho parece árduo e
íngreme, mas se trata de um planejamento a ser seguido durante os anos de formação,
da graduação ao final do doutorado.
Após algumas considerações que o professor Acízelo denominou de
“observações avulsas”, houve o momento do debate, em que as dúvidas e os
questionamentos puderam ser feitos em relação aos apontamentos apresentados. De
forma sucinta, discutiu-se o seguinte:
1) O possível fim da disciplina;
2) O perfil dos alunos que cursam letras, especialmente os dos cursos noturnos;
3) A contribuição das pesquisas para a valorização da literatura;
4) A presença da filologia no programa de estudos proposto;
5) Das adaptações de obras literárias para o cinema, a tevê e o teatro;
6) A influência da mídia na literatura;
7) A utilização literária na prática pedagógica em sala de aula.
Sobre o primeiro item, em uma pergunta, o professor Rauer destacou seu
desconforto com a afirmação de Terry Eagleton (2003) de que “a teoria da literatura
tende a auto anular-se”. Acízelo salientou como a modernidade imersa na globalização
capitalista propicia uma composição de conhecimento “híbrido” nos meios acadêmicos.
E destacou o papel do crítico literário em delimitar sua área, desde que esteja consciente
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de que a fragmentação e o surgimento de novas tendências e disciplinas serão eminentes


e inevitáveis, mas que tal fato não anula as bases da crítica literária contemporânea: ao
contrário, a ela se somam.
Pergunta bastante pertinente foi levantada pela plateia: como atingir o aluno que
não pode seguir este itinerário por trabalhar ou por outros motivos? Esta questão
confronta com a realidade do aluno inserido no contexto da sala de aula do Brasil de
nossos dias, no qual a maioria dos alunos dispõe de pouco tempo para dedicar-se aos
estudos, uma vez que carregam longas jornadas de trabalho diário. Acízelo argumentou
sobre a importância do planejamento curricular dos cursos de graduação, a fim de
pensá-los de maneira flexível, para atender aos alunos e suas respectivas necessidades,
considerando desnecessário sobrecarregar os alunos com várias disciplinas, deixando-os
sem tempo, por exemplo para leitura de textos.
Com um estilo claro, coerente e conciso, Acízelo aponta caminhos para uma
solução integrada dos problemas enfrentados no campo de letras. Embora pareça um
sonho idealizado pelo autor, uma utopia muito difícil de ser alcançada, pois não se trata
apenas de uma reforma de currículo, devendo fazer parte do pacote social e político do
país. Mas, em qualquer circustância, o pesquisador precisa amadurecer, preencher suas
lacunas de formação acadêmica e avançar com as pesquisas. Desse modo, os passos e
exigências formulados parecem fundamentais para a formação e o trabalho do
pesquisador de nossa área de estudos.
Não se trata apenas de uma simples proposta, com passos que devem ser
seguidos, mas um discurso que apresenta fundamentos necessários para nos tornarmos
realmente um especialista em literatura. São ferramentas importantes que contribuem
para nosso desenvolvimento intelectual, ou seja, é um percurso essencial que todos os
formandos do campo de literatura precisam percorrer.
E, enquanto a base da graduação de letras não estiver bem estruturada e que
novas reformas não sejam feitas dentro de um sistema educacional que o torne mais
eficiente, só nos resta correr atrás do prejuízo e agradecer ao professor Roberto Acízelo
de Souza pelos ótimos apontamentos, muito bem elaborados, resultantes de sua rica
experiência e bagagem profissional.
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A palestra foi de grande valia para as pessoas que desejam se formar


pesquisadores, que gostam de estudar e querem contribuir para o melhor conhecimento
de fatos, pessoas, assuntos e avanços tecnológicos. Um programa de estudos nos moldes
apresentado pelo professor Acízelo revela-se extremamente necessário àqueles que
desejam se tornar um profissional de alto nível.
Enfim, a publicação da palestra proporciona oportunidade para discutir
alternativas e oferecer sugestões para estudantes universitários e pesquisadores, a fim de
que possam, planejar, desenvolver E realizar as próprias pesquisas, na graduação e pós-
graduação, de forma plena, confiante, rica e satisfatória. É, portanto, de grande
utilidade, principalmente àqueles que desenvolvem trabalhos acadêmicos no campo
literário. Ressaltamos ainda que as exigências formuladas (apresentadas abaixo, como
apêndice, em Quadro Sinóptico) servem bem para um público que vai desde estudantes
iniciantes até pesquisadores em processo de formação de alto nível, pois o professor
Acízelo enfoca não só a pós-graduação universitária, mas toda uma realidade complexa
e difusa no cenário acadêmico do Brasil contemporâneo.

REFERÊNCIAS:

BUNGE, Mário. Epistemologia; curso de atualização. São Paulo: T.A Queiroz, 1987 [1980].

EAGLETON, Terry. Introdução à Teoria da Literatura. São Paulo: Martins Fontes, 2003.

MEDAWAR, P.B. Conselho a um jovem cientista. Brasília: EdUnB, 1982 [1979].

RAMOS, Graciliano. Entrevista em 1948. In: Vidas secas. 102. ed. Rio de Janeiro: Record,
2007, contracapa.

SOUZA, Roberto Acízelo de. Iniciação aos estudos literários. São Paulo: Martins Fontes,
2006. 191 p.

SOUZA, Roberto Acízelo de. A Formação do Pesquisador em Literatura: Proposição de um


Itinerário. Guavira Letras (volume especial), Mestrado em Letras, 2011. 36 p. (Aula Magna do
Mestrado, proferida, em Três Lagoas, em 24 de março de 2011). Acesso à revista Guavira
Letras pelo site do Mestrado: http://www.posgraduacaoletras.com.br/UFMS/.
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APÊNDICE:

QUADRO SINÓPTICO DAS EXIGÊNCIAS MÍNIMAS PARA


O PESQUISADOR EM ESTUDOS LITERÁRIOS
(Formulado a partir de Roberto Acízelo de Souza, 2011)

Passo Exigência Observações:


1º Ser graduado em Letras. Para aqueles que são de outra área, é necessário
estudo complementar concomitante à pós-
graduação.
2º Consolidar certas competências. Ter domínio da linguagem em geral, em
particular da própria língua (filologia, gramática,
retórica, etc.).
3º Dominar a língua inglesa e mais uma. Não só porque a legislação nacional prescreve o
conhecimento de no mínimo duas línguas
estrangeiras para se cursar o doutorado, mas para
dinamizar a leitura e ampliar as relações
culturais.
4º Conhecer um pouco da língua latina. É também importante dominar algo do grego.
5º Dominar a escrita. Ter leitura de bons manuais de redação e
manuais de estilo. Não existe bom pensamento
sem boa expressão linguística desse pensamento.
6º Estudar as bases conceituais e teóricas de Por exemplo: História, Sociologia, psicanálise ou
uma ciência social. antropologia.
7º Estudar Filosofia. Ser capaz de compreender fundamentos
epistemológicos, evitando equívocos conceituais
e sincretismos contraproducentes.
7º Ter domínio da metodologia científica. Escrever naturalmente, internalizando os
procedimentos, para deixar que aflorem o
pensamento e a criatividade cognitivos.
8º Dedicar-se profundamente à teoria da Sem fundamentação teórica, qualquer análise se
literatura. torna impressionismo insubsistente.
9º Ter tempo para estudo. A pesquisa não pode ser uma tarefa a mais, deve
ser o cerne da existência do pós-graduando.
10º Colaborar nas atividades administrativas. Servir à sua instituição, ao seu grupo de pesquisa,
ao trabalho coletivo.
11º Evitar modismos. Evitar aderir de forma automática e acriticamente
às novidades como publicações, correntes
teóricas, temas e problemas emergentes.
12º Selecionar congressos e similares Escolher eventos que sejam de fatos importantes.
Evite participar de muitos eventos, congressos,
bancas de defesas; priorizar o que acrescenta na
formação.
13º Dedicar-se a diversos temas de outras Isso permite ter uma ideia nítida do foco no qual
especialidades. se torna especialista, mas compreendendo as
demais disciplinas da grande área das Letras.
14º Estar atento à mídia Manter uma análise crítica das mudanças, do
contexto social, cultural e político. E,
principalmente, tomar conhecimento e valorar as
novidades, os novos poetas, ficcionistas e
críticos.
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Artigos
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Corumbá, MS, novembro 2011, n. 4, p. 19

A UCRONIA ENQUANTO NARRATIVA HISTÓRICA


Rogério Bianchi de Araújo1

Resumo: Este artigo tem por objetivo pensar a ucronia, também entendida como história
contrafactual ou história virtual, como uma forma de pensar a história. Não é objetivo deste
artigo fazer uma discussão sobre metodologia de pesquisa ou sobre a epistemologia
historiográfica, mas demonstrar que o campo do imaginário pode também ser um elemento de
reflexão e análise. Pretendo ainda demonstrar que a subjetividade, sobretudo no campo das
ciências do espírito, é um elemento que deve ser levado em conta ao fazermos uma
interpretação do mundo ao qual estamos inseridos. Por isso, novos paradigmas no campo
científico, - embora sofram muitas resistências-, aos poucos são incorporados no nosso modo
de fazer ciência. Neste sentido, a ucronia pode ser classificada como uma narrativa histórica
que tem seu valor, não só no campo da ficção, mas na construção de conhecimento histórico.

Palavras-Chave: ucronia, história, narrativa, interpretação e contrafactual.

THE UCHRONIA AS NARRATIVE HISTORY

Abstract: This article is aimed at reflecting the uchronia, also understood as counterfactual
history or virtual history, as a way of thinking about history. The aim is not to make a
discussion paper on research methodology or on the epistemology of historiography, but
demonstrate that the field of imagery can also be an element of reflection and analysis. I
intend to further demonstrate that the subjectivity, especially in the sciences of the spirit, is an
element that must be taken into account in making an interpretation of the world to which we
belong. Therefore, new paradigms in science, - although they suffer much resistance-, are
gradually incorporated into our way of doing science. In this sense the uchronia to be
classified as a historical narrative that has its value, not only in the field of fiction, but the
construction of historical knowledge.

Keywords: Uchronia, history, narrative, interpretation and counterfactual.

Introdução

Etimologicamente, a ucronia está composta do grego ou (não) e cronos (tempo), ou


seja, “tempo que não existe”. Um período é considerado ucrônico quando é hipotético, isto é,
não está claramente definido no tempo e na cronologia tradicional. Pode ou não ser fictício,
depende do contexto e das categorias temporais que estamos trabalhando.

1
Rogério Bianchi de Araújo, Doutor em Antropologia pela Pontifícia Universidade de São Paulo – PUCSP e
Mestre em Filosofia Social pela Pontifícia Universidade de Campinas – PUCCAMP, é professor do curso de
Ciências Sociais da Universidade Federal de Goiás – Campus Catalão (UFG/CAC); rogerbianchi@uol.com.br.
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A expressão ucronia foi empregada pela primeira vez na obra do filósofo francês
Charles Renouvier, que a utilizou no título de seu romance Uchronie (L'Utopie dans
l'histoire) de 1876. Renouvier considera a ucronia numa perspectiva histórico-filosófica
relativa a um passado que pode ser suposto, mas não totalmente inventado, marcado por fatos
que podem ter acontecido ou não. Entendia a ucronia como a “utopia do tempo”. Sua base de
inspiração era imaginar o desenvolvimento da civilização ocidental caso o cristianismo não
houvesse triunfado a partir do aparato militar do império romano do século II. Esboçou em
Uchronie um mundo no qual, em 165 d.C., o imperador-filósofo Marco Aurélio adotou como
sucessor o filósofo Avídio Cássio, em vez de seu desastroso filho Cômodo. A decadência de
Roma e a Idade Média foram evitadas, as artes e as ciências avançaram muito mais
rapidamente e o cristianismo jamais se tornou a religião hegemônica.
As suposições da ucronia implicam no campo da imaginação. É composta de variações
da História que se baseiam em condicionantes. Por exemplo, o que aconteceria se um
determinado fato histórico tivesse percorrido outro caminho? Remete a uma espécie de Efeito
Borboleta, princípio que afirma que um pequeno evento pode ter conseqüências imprevisíveis,
pois o resultado final é determinado por ações interligadas de forma quase aleatória.
Entretanto, a ucronia tem como característica desordenar sem desorganizar.
A ucronia permite transformar os vencidos em vencedores. Não se trata de um alento
ou uma alienação de pensamento, mas um condicionante imaginário para vislumbrarmos
outras realidades que não somente aquelas da chamada “história real”.
Remete a um mundo alternativo e a uma outra história. Nesse sentido, a ucronia carrega em si
um grande potencial de questionamento do status quo, das hierarquias, das estruturas e das
formas de organização social.
Considerando a ucronia como fenômenos não situados nem no tempo nem no espaço,
mesmo assim os escritores não deixam de transparecer parte da realidade em que estão
inseridos. A ucronia, ou historias alternativas, vale-se de mudanças dos fatos históricos para
apresentar um presente diferente do atual.
História alternativa é uma alternativa à história “oficial” que serve para contradizer,
questionar e indagar os fatos que estão postos. Isso rompe com a perspectiva linear da história
e cria uma cadeia imaginativa condicionada pela partícula “se”. E se as coisas tivessem
ocorrido de outra forma?
As possibilidades são infinitas e, ao invés de serem acusados de alienados ou
manipuladores ao deturpar fatos históricos, os ucronistas poderiam ser interpretados como
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visionários, críticos ou idealistas, dado que a história passa a ser imaginada sob outro viés que
não a tradicional ótica dos vencedores. Na busca por uma linha temporal alternativa, o
passado histórico é alterado em pontos significativos criando uma espécie de universo
paralelo.
Em seu livro A Oeste do Éden, Harry Harrison afirma que a grande catástrofe cósmica
que exterminou os dinossauros há 65 milhões de anos nunca chegou a acontecer, com isso os
grandes répteis continuaram a evoluir e o cérebro a crescer. O polegar tornou-se oponível, até
culminarem nas Yilanè, a raça sauróide mais inteligente da Terra. A partir daí forma-se uma
civilização baseada em sofisticadas técnicas de engenharia genética com grande estabilidade
social e integração ecológica, uma sociedade extremamente equilibrada e com grande controle
do meio ambiente.
Cidades “orgânicas” surgem por boa parte do mundo, mas diante das pressões climáticas e de
uma era glacial intensa, há uma gradativa diminuição dos recursos energéticos e alimentares.
Os Yilanè são obrigados a explorar o oceano Atlântico e colonizar o Novo Mundo, mas se
deparam com mamíferos eretos e que possuem o dom da palavra. Não demora muito para que
o ódio se espalhe entre as duas culturas.
Os répteis têm tudo: conhecimento, tecnologia e ciência, e povoam todo o mundo, à
exceção das Américas. Os seres humanos parecem condenados: são pequenos grupos
dispersos e ignorantes, e a maior parte nem sabe da tragédia que lhes está reservada quando os
répteis decidem extinguir o gênero humano. Nesse romance, a crítica ao antropocentrismo é
evidente.
Segundo Veyne (2008), a história é uma construção; as informações a serem
historicizadas são recortadas por aquele responsável pelo relato. Assim, o historiador se torna
o construtor de uma trama. Propõe que se veja a história como um romance que narra
acontecimentos cujo centro é o homem, não sendo, portanto, uma ciência explicativa,
metodologicamente neutra.
Veyne afirmou que a história não passa de um “conto verdadeiro”. Se história e
narrativa têm muito em comum, os recursos dos quais um historiador dispõe não diferem
muito de um novelista. Portanto, ela não tem nada de neutro, é parcial e subjetiva. Assim
como o romance, a história não faz reviver o que conta, isto é, o que está contado não foi o
vivido pelos atores envolvidos, eliminando dessa maneira o que considera superficial e
irrelevante ao fato histórico em si.
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Para Veyne, existem acontecimentos históricos, mas não existem explicações


históricas. Nesse sentido, a história existe apenas em relação às questões que nós lhe
formulamos. O historiador reterá o que considera antropologicamente interessante. Assim
como Geertz (2008) diz que as culturas devem ser interpretadas como textos, algo semelhante
ocorre ao historiador, quando ressalta os aspectos que considera mais interessantes para serem
relatados. A história é uma interpretação dos acontecimentos de acordo com o posicionamento
do historiador. Assim como o narrador de um romance, o historiador opera pelo princípio da
seleção, escolhendo determinados aspectos e refutando outros. Para qualquer explicação
então, o historiador flerta com as Ciências Sociais e com a Filosofia.
Veyne afirma que pensando as variáveis, pode-se recriar a diversidade das
modificações históricas e fazer emergir o não-pensado e, consequentemente, trazer à tona o
que era vagamente concebido ou não bem elaborado ou pressentido. É por isso que a criação
da história alternativa ou o pensamento ucrônico trazem traços de distinção histórica que
podem ser um profundo objeto de reflexão crítica sobre as variáveis históricas que podem ter
se dispersado numa análise mais ambiciosa.
Paul Ricouer, filósofo francês, também identifica o vinculo indireto entre a
historiografia e a competência narrativa. Aponta traços que ficcionalizam a história e
historicizam a ficção, onde seríamos leitores de história e de romances simultaneamente. Para
Ricouer (1968), o historiador ao escrever uma obra, lança mão de recursos ficcionais próprio
dos romancistas ao fazer uso da imaginação e construir tipos ideais.
Segundo Raymond Aron (1938), “todo historiador para explicar o que foi, pergunta-se
o que poderia ter sido”. O historiador pertence ao devir que descreve. Toda a atividade
espiritual se insere numa tradição na qual e pela qual o indivíduo se define. Aron, afirma que
não existe uma realidade histórica, já feita antes da ciência, que conviesse simplesmente
reproduzir com fidelidade. A realidade histórica, por ser humana, é equívoca e inesgotável.
É importante ressaltar que, para Ricouer, o pertencimento à estrutura narrativa não
diminuiria o estatuto científico da história e que é possível distinguí-la da ficção. A história
não se limita a uma tessitura de intrigas, lógico-conceitual e abstrata, sem referência ao
tempo, posição defendida por Paul Veyne.
No entanto, não é objetivo desse artigo implicar numa discussão sobre a historiografia,
mas o de demonstrar como a ucronia, enquanto construto ficcional, pensada no sentido de
uma antropologia do imaginário, pode ser relevante para incitar a crítica, o questionamento da
realidade e a velha reflexão sobre a natureza humana.
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1. História e Pós-modernidade

Muitos analistas referem-se a esse modo de pensar a história como fruto da pós-
modernidade, já que parece que tudo que foge às tradições iluministas é prontamente
caracterizado como pós-moderno, se configurando como um clichê acadêmico. Não me
proponho a pensar tais caracterizações, com o risco de desvirtuar o encaminhamento dessa
discussão. Por outro lado, podemos afirmar que essa forma ucrônica de pensar e que anda de
braços dados com a ficção científica, promove um regresso à própria história e problematiza a
noção de conhecimento histórico, as certezas humanistas e as referências temporais.
Nesse sentido, essa perspectiva história nos traz o paradoxo e a contradição como
fonte analítica dos fatos históricos. Não se trata em hipótese alguma de se evitar o
questionamento ou de criar uma nova totalidade interpretativa unificadora em substituição ao
que já está dado, mas sim explorar outros pontos de vista e outros sujeitos que estavam até
então como personagens meramente figurantes da história oficial ou em outros contextos.
Segundo Lyotard (1989), as metanarrativas perdem sua força de persuasão na
contemporaneidade. As ideologias iluministas e marxistas na sociedade pós-industrial já não
têm o mesmo vigor empírico de outros tempos. As verdades totalizadoras que levam a um
saber globalizante com uma solução única não conseguem fazer frente a uma época em que se
mesclam fragmentos de várias histórias contraditórias e antagônicas sobre um determinado
assunto. A pluralidade de possibilidades dá fim à história pensada nos moldes anteriores.
Metanarrativas tais como o iluminismo e o marxismo, na visão de Lyotard, não trouxe a
emancipação humana, pelo contrário, ficamos atrelados a outros totalitarismos e controles que
minaram qualquer possibilidade de liberdade e igualdade.
Para a pesquisadora canadense Linda Hutcheon, a principal característica do pós-
modernismo é a metaficção historiográfica. Segundo a autora, não se trata de negar a história,
invalidando-a:

O que a escrita pós-moderna da história e da literatura nos ensinou é que a


ficção e a história são discursos, que ambas constituem sistemas de
significação pelos quais damos sentido ao passado. (“aplicações da imaginação
modeladora e organizadora”). Em outras palavras, o sentido e a forma não
estão nos acontecimentos, mas nos sistemas que transformam esses
“acontecimentos” passados em “fatos” históricos presentes. Isso não é um
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“desonesto refúgio para escapar a verdade”, mas um reconhecimento da função


de produção de sentido dos construtos humanos. (Hutcheon, 1991, p. 122).

Toda metaficção historiográfica tem por característica ser auto-reflexiva e, ao mesmo


tempo, paradoxalmente, ela se apropria de acontecimentos e personagens históricos. Essa
auto-reflexividade dá-se de diversas maneiras e com variados artifícios narrativos. Para
Hutcheon, trata-se de um gênero que está profundamente ligado à estética pós-moderna que
não tem a ambição de construir um novo paradigma, já que nesse caso seria uma contradição
a nossa própria época pós-moderna, onde “não há fatos, só interpretações”, parafraseando
Nietzsche.
Para Linda Hutcheon, a metaficção historiográfica mantém o engajamento com a
história política, social e ética, partilhando e discutindo fontes históricas. No entanto, parte do
princípio de que a realidade social é inaccessível como tal e que qualquer discussão dela é
necessariamente exclusiva e parcial.
O filósofo italiano Gianni Vattimo caracteriza um mundo pós-moderno visto como o
fim da história, no sentido de uma história unitária que contemple a noção de progresso da
humanidade, a dissolução dos pontos de vista únicos e excludentes e a possibilidade de
emancipação humana, num mundo menos totalitário. O pós-modernismo inclui ainda a
negação da existência de significados estáveis, da correspondência entre a linguagem e o
mundo, e de realidades, verdades ou fatos que devam ser fixados como objetos de
investigação.

Segundo Vattimo (1997), para que o mundo pós-moderno pudesse se configurar foi de
fundamental importância o avanço do desenvolvimento dos meios de comunicação onde as
pessoas têm acesso a uma pluralidade de visões e, consequentemente, um maior
questionamento comparativo entre as diversas realidades que estão à mostra. Não há,
portanto, mais uma única história, mas várias histórias que podem ser relatadas de acordo com
o ponto de vista de quem as narra, e essa narrativa no mundo pós-moderno é sempre passível
de questionamento e interpretação.

Vattimo chama de ontologia do declínio o fato de não existir mais nenhuma certeza
absoluta, nem nada meta-histórico que explicará a história através da razão ou um sujeito
racional que pode ser apontado como o protagonista de qualquer ação. Isso faz parte de um
pensamento que não leva em conta qualquer fundamento e origem, não podendo, pois, haver
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qualquer ontologia que não passe pelos discursos numa espécie de círculo hermenêutico como
condição essencial para a possibilidade de qualquer reflexão.

O pós-moderno de Vattimo não dá mais atenção ao avanço do progresso, pois a


história vista como um processo progressivo e unitário fica dissolvida. A modernidade é
marcada como a época da história e a herança judaica cristã é quem oferece a dimensão
ontológica à história. A idéia de história na pós-modernidade traz a noção de progresso e de
superação. Traz a experiência do fim da história. Não existe mais o movimento progressivo
linear do Ser. Estamos diante da queda dos paradigmas absolutos e fixos. Ocorre o que
chamamos de desvelamento do Ser, a abertura do Ser para suas infinitas possibilidades e sem
estruturas fixas, possibilitando o aparecimento de entes particulares.

L’ esistenza infatti è progetto, apertura al futuro, ricordo, attesa, speranza, paura,


angoscia ... Tutto ciò non può esssere colto in termini di oggetività e calcolabilità.
Dunque bisogna pensare un altro concetto di essere, più ampio di quello che vale
nella nostra mentalità “oggettivisitca”, dominata nella modernità dal modelo del
sapere positivo delle scienze. (Vattimo, 1997, p. 30)

De acordo com as proposições vattimianas é perfeitamente factível a aproximação


entre história e ficção, embora seja comumente associado falsidade à ficção científica, por
isso não seria passível de um entendimento fidedigno da história.
Ricoeur (2007) como filósofo da história, oferece a alternativa de concebê-la
essencialmente como uma narrativa, mas sem rejeitar aspectos objetivos da produção do
conhecimento histórico. A imaginação produtora, na visão de Ricouer, constrói as narrativas
que recobrem o tempo, e a leitura, é o ato pelo qual o trabalho da imaginação revela toda a sua
força.
Procuramos a unidade de sentido da história e, quanto mais procuramos, encontramos
apenas pedaços dispersos onde só há diversidade, variação, contradição, mutabilidade. A
verdade na história surge como um princípio de possibilidade que se perde sem cessar e que
se recupera na medida em que se transforma a própria significação da história. Portanto,
pensar historicamente não exclui a imagética e as ressignificações e reconstruções ao longo do
processo, isso não significa cair no mero relativismo sem fundamentos, mas no exercício
constante da análise crítica em respeito às diversidades, pluralidade e na simbiose de
objetividade e subjetividade humanas.
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2. História contrafactual

A história contrafactual (do latim: contra facta = contra os fatos), é o resultado de um


exercício mental científico. A pergunta «O que teria acontecido se...?» é comum na história
contrafactual, sendo o ponto de partida para especulações históricas como (entre outros). É
muito comum dizer não só na historiografia em particular, mas também no nosso cotidiano
que o “se” não existe. Isso ficaria restrito então a uma literatura meramente especulativa.
A intenção não é problematizar a epistemologia historiográfica e julgar se é ou não um
método válido na ciência histórica. O concreto é que os contrafactuais geram polêmica,
sobretudo no meio acadêmico. Entretanto, servem perfeitamente para derrubar muitas ideias
consideradas inquestionáveis acerca dos fatos históricos.
A história contrafactual, denominada por muitos de história virtual, tem como
conseqüência dois aspectos: é polêmica e é inovadora. É uma ferramenta no campo da
imagética que permite compreender melhor e interpretar com maiores possibilidades o que
efetivamente ocorreu na história. Por isso, é um exercício mental científico, pois permite
mudar os enfoques e alternar os pontos de vista acerca de um objeto de estudo.
E se a revolução Americana não tivesse acontecido? E se a Inglaterra tivesse se
mantido fora da Primeira Guerra Mundial?... Questões como estas têm sido intensamente
exploradas na ficção cientifica literária e cinematográfica. Menos frequente é verem-se
analisadas numa perspectiva mais fundamentada, rigorosa e cientifica. Em “História Virtual”
de Niall Fergusson é isso que se passa.
Segundo Niall Fergusson (2006), historiador britânico e um dos maiores defensores da
história contrafactual enquanto método, a história virtual é um dos antídotos mais poderosos
frente aos determinismos. A chamada história virtual não representa o reino do arbítrio, mas
uma cuidadosa construção das várias alternativas da história humana e das inúmeras
contingências do processo histórico. Do seu ponto de vista, as “alternativas históricas” devem
ser “plausíveis – substituindo assim o enigma do “acaso” pelo cálculo das probabilidades.
Dessa forma, os cenários contrafactuais são simulações baseadas em cálculos sobre a
probabilidade de resultados plausíveis num mundo caótico. Fergusson, portanto, escreve
como se fosse um historiador do futuro, sugerindo desenvolvimentos diversos daqueles que
efetivamente ocorreram e que, de acordo com o curso sugerido, poderiam ter provocado
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outras conseqüências. O historiador teria a liberdade de divagar e idealizar um novo desfecho


para o fato, como resultados das circunstâncias e ações anteriormente criadas.
A história contrafactual não é uma invenção de Fergusson, já em 29 a.C., o historiador
romano Tito Lívio, ao descrever os primórdios da expansão romana em sua História de Roma,
não resistiu e por um momento deixou de lado o apego aos fatos para divagar: o que teria
acontecido se, trezentos anos antes, Alexandre, o Grande, tivesse se voltado para o Ocidente e
atacado a República Romana, ainda restrita às terras do Lácio? Esse teria sido o primeiro
ensaio da história contrafactual ou virtual.

Hoje, os melhores profissionais da História não tentam mais encaixar a força os


eventos numa narrativa mestra ou em suas “leis”. Não estava escrito que as coisas
iriam acontecer como aconteceram. Cada fato histórico é de uma complexidade única,
pois as condições em que se deram – forças sociais, mentalidades, tecnologias,
conjunturas ambientais e demográficas, personalidade dos líderes – são
irreproduzíveis. Daí o fascínio atual pela chamada micro-história, isto é, a
reconstituição de pequenos fatos – eventos esportivos, vidas pessoais, hábitos
cotidianos, crimes, modas – que oferecem janelas para se compreender uma época.
Admitir a complexidade não significa o abandono da teoria. Ao contrário, significa a
completa abertura à teoria de outras ciências – demografia, epidemiologia, sociologia,
antropologia, ciências ambientais, geografia, psicologia, matemáticas, entre outras –
para arejar o conhecimento histórico. (Bustamante, 2010).

Não saberia dizer se essa postura descrita acima pelo colunista representa de fato a
prática dos melhores historiadores, mas a verdade é que os historiadores profissionais foram
durante muito tempo hostil a tais procedimentos. Hoje, é possível afirmar que invocar a
história contrafactual deixou, contudo, de ser um procedimento tabu, já que todas as análises
históricas são construções transitórias e são constantemente submetidas à revisões.
A história contrafactual provoca uma problematização complexa da articulação dos
fatores objetivos e subjetivos e, sobretudo, traz a dimensão da subjetividade, outrora renegada
a pepéis secundários na historiografia oficial. Esse campo de análise implica numa
reconstrução que o presente faz do passado, pois as fontes históricas não falam sozinhas.
É muito comum fazermos exercícios contrafactuais no nosso cotidiano. “E se tivesse
aceitado aquele emprego”? “E se tivesse me casado com Maria, aos 20 anos”? Explicitamos o
contrafactual para validarmos o argumento de nossas decisões, tanto para legitimá-las quanto
para refutá-las.
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No entanto, em termos de construções historiográficas, muitos historiadores e filósofos


recusam valores científicos a tais cenários hipotéticos, pois eles nada nos revelariam sobre a
realidade, mas apenas sobre preconceitos e preferências ideológicas de seus autores.
A reconstrução das hipóteses por meio da história contrafactual não seria, portanto,
uma falta de compromentimento com os preceitos cientítifcos, nem simplesmente uma
fantasia de ficção histórica, mas uma outra via para interpretar o que ocorreu por outras óticas
não convencionais.

3. História alternativa: o exemplo da Segunda Guerra Mundial

É importante frisar que a ficção científica não é apenas um gênero literário


descompromissado com o real, que teria por objetivo único e exclusivo gerar entretenimento e
prazeres lúdicos sem maiores ambições.
A função da ucronia é analisar condicionalmente fatos históricos que já são por demais
conhecidos de toda a humanidade. A novidade é imaginar uma história alternativa àquela que
já fora estudada a exaustão. Embora em algumas situações alguns personagens ilustres da
história contemporânea neguem fatos históricos como, por exemplo, o líder iraniano
Mahmoud Ahmadinejad que disse que o Holocausto não passa de um “mito” e que o
acontecimento foi forjado pelos judeus, e também o bispo inglês radicado na Argentina
Richard Williamson, que negou o Holocausto e a existência de câmaras de gás e campos de
concentração e que foi obrigado a deixar o país depois de suas declarações. No entanto, isso
não pode ser considerado uma ucronia, mas um delírio ou uma tentativa de apagar traços
obscuros da história.
O impacto causado pela Segunda Guerra Mundial, o morticínio e a carnificina
promovida pelos nazistas, sem dúvida, são marcos impagáveis de um período trágico da
história da humanidade. Há algumas ucronias que foram criadas a partir desses impactos,
especulando e imaginando como ficaria o mundo se o resultado da Segunda Guerra Mundial
fosse outro.
Podemos exemplificar isso ao fazer uma reflexão a partir da obra O Homem do
Castelo Alto, de Phillip K. Dick (2009). Dick apresenta a realidade como um simulacro que
extrapola a linha divisória entre as noções de passado, presente e futuro. Trata-se de um
mundo alternativo em que a Alemanha nazista e o Japão fascista venceram a Segunda Guerra
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Mundial e partilharam o mundo em zonas de influência. O romance tem como ambientação os


Estados Unidos - no ano de 1962, 15 anos depois que os Aliados capitularam na Segunda
Guerra Mundial. A costa oeste dos Estados Unidos agora, pertence ao império nipônico, e a
costa leste ao Reich nazista, numa analogia à época da Guerra Fria, concentra-se ao Centro
(chamado de Rocky Mountain States) uma área independente.
Além de apresentar o mundo nesta realidade alternativa, Dick também explora
preconceitos e orgulhos dos estadunidenses, visões de um mundo mais avançado
cientificamente, porém ainda desequilibrado em termos de poder. Dessa forma, a história
alternativa, nos traz por meio da construção de novos imaginários, uma crítica ferrenha da
realidade e da política.
No romance de Dick, o Mediterrâneo foi drenado, a população do continente africano
foi eliminada e os Estados Unidos da América divididos entre nazis e japoneses. Nesse
ambiente, os nazistas fizeram uma corrida espacial que os levaram até Marte e Vênus, uma
realidade assustadora, onde os negros e os judeus foram quase todos exterminados – o
Holocausto foi quase completo, os poucos judeus se escondem com novas identidades e a
África fora exterminada, os que sobreviveram se tornaram escravos. Além disso, Franklin D.
Roosevelt é assassinado, Hitler sobrevive num asilo, corroído pela sífilis e fornos para a
aniquilação de judeus são construídos em Nova York. Enquanto isso, como alento, o oráculo
do I Ching, o livro chinês das transmutações, é obsessivamente consultado pelos personagens.
Os efeitos da Segunda Guerra sob essa nova possível perspectiva traz uma ambientação de um
futuro distópico para a maior parte da humanidade.
Na zona neutra que divide as duas superpotências vive o homem do castelo alto, autor
de um bestseller de culto, uma obra de ficção que oferece uma teoria alternativa da história
mundial em que o Eixo perdeu a guerra. Ou seja, há um romance utópico escrito numa
realidade paralela, dentro de um romance distópico assombroso.
O método de Dick é realmente instigante, faz com que sua obra de ficção científica
seja um grande objeto de estudo e reflexão para cientistas sociais, psicólogos, historiadores.
Há outro romance dentro do romance. Um obscuro escritor de ficção científica lança uma
história, banida nas áreas de influência nazista, sobre uma realidade alternativa, em que os
Aliados teriam vencido a Guerra. Afinal, somos levados a imaginar um mundo que teve outro
direcionamento histórico no passado, ao mesmo tempo em que imaginamos um mundo que
poderia ser sido construído com outros valores muito mais propícios e relevantes no sentido
mesmo de uma construção utópica de realidade, projetando para um futuro que poderia ter
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sido e que impacta numa reflexão crítica do presente, do que está posto na
contemporaneidade.
Um exemplo clássico de ucronia no cinema vem de um filme recente de Quentin
Tarantino, Bastardos Inglórios (Inglorius Basterds, EUA, 2009). Definitivamente, Tarantino
não tem por premissa seguir uma lógica linear em seus filmes. Tem por hábito misturar
linguagens, épocas e estilos de fazer cinema (drama, comédia e ação) que são por muitas
vezes destoantes. Suas influencias são várias, de distintas épocas, e isso influencia sua obra
cinematográfica. Segundo o diretor, o longa é uma mistura de filme de guerra com western
spaghetti italiano.
Trata-se de um filme intenso com um modo diferente (fragmentária e hibrida) de
contar uma história que estamos acostumados a assistir. A história começa na França ocupada
pelos nazistas, onde Shosanna Dreyfus (Mélanie Laurent) testemunha a execução de sua
família pelas mãos do coronel nazista Hans Landa (Christoph Waltz). A jovem consegue
escapar e foge para Paris, onde cria uma nova identidade como dona de cinema.
Simultaneamente, na Europa, o tenente Aldo Raine (Brad Pitt) persegue ao lado de seu grupo
de soldados judeus os nazistas. Conhecido por seus inimigos como Os Bastardos, o esquadrão
de Raine se junta à atriz alemã e agente infiltrada Bridget Von Hammersmark (Diane
Kruger) em uma missão para derrubar os líderes do Terceiro Reich. E os destinos convergem
para o cinema onde Shosanna está planejando a sua própria vingança. O filme conta a história
de dois planos para assassinar os líderes políticos da Alemanha nazista. Em três dias Joseph
Goebbels fará uma pré-estréia de gala do novo filme dele em Paris. Todo o alto comando
alemão estará lá: “Todos os ovos podres dentro de uma mesma cesta.” O objetivo é detonar a
cesta. Hitler irá à pré-estréia. É nesse ponto do filme que a ambição de Shosanna Dreyfus e
dos Bastardos convergem para um mesmo local.
O filme de guerra de Tarantino é uma releitura do italiano “Assalto ao Trem Blindado”
(Quel Maledetto Treno Blindato, Itália, 1977) de Enzo Catellari, que conta a história de um
grupo de soldados americanos de origem judaica enviados a uma missão suicida. Na versão
do cineasta americano, Brad Pitt faz o papel do tenente Aldo Raine, que organiza um grupo de
soldados judeus para lutar contra os nazistas. O grupo tem como missão assassinar soldados
de Hitler da forma mais cruel possível.
É uma fantasia sobre um pelotão de elite do exército americano formado apenas por
judeus, oito soldados e um tenente, cuja missão é penetrar nas linhas inimigas e matar nazistas
de forma bárbara e selvagem, para espalhar o medo entre os oficiais e os soldados alemães.
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“Se ouviram falar de nós já sabem que não fazemos prisioneiros. Nosso negócio é matar
nazistas e somos bem-sucedidos.”, diz Raine.
Num pronunciamento para sua tropa, Raine inflama:

Membros do Partido Nacional Socialista conquistaram a Europa com mortes,


intimidação, tortura e terror. E é exatamente isso o que faremos com eles.
Seremos cruéis com os alemães. E através dessa crueldade eles saberão quem
somos. Verão a evidência de nossa crueldade nos corpos estripados,
desmembrados e desfigurados dos próprios irmãos. Os alemães não
conseguirão nem imaginar a crueldade que seus irmãos sofreram em nossas
mãos, sob as solas de nossas botas e nos fios de nossas navalhas. Os alemães
vão ficar cansados de nós. Os alemães falarão de nós. Os alemães terão medo
de nós. Os nazistas não têm compaixão e eles têm que ser destruídos. Todo
homem sob meu comando me deve 100 escalpos nazistas! E quero os meus
escalpos! Parece bom?

Todos concordam e respondem em uníssono:


“Sim, senhor!”
Vê-se que aqui a história alternativa de Tarantino difere do romance de Phillip Dick.
Agora, ao invés de se transformarem em escravos, os judeus se vingam de seus algozes e
fazem justiça com as próprias mãos. Tarantino reescreve a história, Hitler é fuzilado e os
judeus têm sua revanche física e brutal.
Tarantino recorre comumente à violência com o objetivo não só de chocar numa
perspectiva estética, mas de criticar de maneira satírica e grotesca as incongruências da
história real. A reescrita da história no filme de Tarantino resgata sentimentos antagônicos e
reflexões sobre a condição humana de maneira poderosa. Consegue revigorar um tema
extremamente explorado, a ponto de deixar de ser problematizado pelas gerações mais novas.

Considerações Finais

A humanidade não é um destino: a humanidade é uma reinvenção contínua. Segundo


I. Prigogine1, nossa visão do futuro vem sofrendo uma modificação radical rumo ao múltiplo,

1
Illya Prigogine, físico-químico russo (25/1/1917-), nascido em Moscou e naturalizado belga em 1949. Prêmio
Nobel de Química em 1977 por suas contribuições à termodinâmica e, em especial, pela Teoria das Estruturas
Dissipativas.
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ao temporal e ao complexo. Afirma que na nossa era as coisas estão mudando a uma
velocidade jamais vista.
Prigogine mostra que a ciência clássica enfatizou a estabilidade e o equilíbrio, mas
agora o que vemos são instabilidades, flutuações e tendências evolucionárias. Por isso,
defende as novas ciências da complexidade que têm por tendência negar o determinismo onde
o futuro não é dado.
Nesse sentido, certezas devem ser substituídas por possibilidades, por isso a divisão entre as
ciências exatas que falariam de certezas e as ciências “inexatas” que tratariam das
possibilidades, vai deixando de existir. Saímos de um passado de certezas conflitantes para
uma época de polêmica, de novas aberturas.
Nas ciências, prevalecia uma visão determinista das leis da natureza. Hoje,
privilegiamos as bifurcações, flutuações, as instabilidades, complexidade e criatividade, ou
seja, passamos por uma mudança de paradigma. Segundo Prigogine, hoje estamos longe do
mundo newtoniano, regular, das trajetórias lineares. Essa mudança ocorre porque a sociedade
humana também está mudando, devido aos intercâmbios culturais e econômicos promovidos
pela globalização.
A partir do momento em que estivermos sob o imperativo do paradigma cartesiano e
sob o determinismo das leis causais da ciência, há uma separação significativa da objetividade
e da subjetividade no nosso campo de análise. Descartes quis atingir uma certeza fundada
sobre as matemáticas, uma certeza que todos os seres humanos poderiam partilhar. Mais
tarde, as leis newtonianas serviriam de modelo para encontrar essas certezas.
Prigogine nos diz que estamos saindo da visão geométrica clássica para uma descrição
da natureza na qual o elemento narrativo é essencial. Ocorre a mudança do ponto de vista
determinístico para uma visão que reconhece o papel central das probabilidades e
irreversibilidade.
Pensar o incerto é, também, ter consciência da condição humana com seu duplo aspecto de
liberdade e angústia. Assim como a arte, a música, a literatura, a ciência faz parte da procura
do transcendental.
No entanto, as fronteiras entre o “real” e o “imaginário” são muito tênues. Ainda
estamos construindo novas formas do pensar interdisciplinar e que faça dialogar o irracional e
o racional, a ordem e a desordem, o sapiens e o demens, não no sentido de dualidades
incompatíveis, mas de contextos conflituosos, contraditórios, porém complementares e
intercambiáveis.
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É nesse sentido que a ucronia é um elemento importante para fazer pensar e refletir
não só exclusivamente no âmbito historiográfico, mas no sentido de pensar a condição
humana por meio de obras literárias e/ou cinematográficas que nos remete a uma articulação e
religação de vários saberes que até então foram desprestigiados pela ideologia cientificista.
O foco de crítica não é contra o método historiográfico em si, proposta a partir da
ucronia, história alternativa e história contrafactual ou virtual, mas sim contra as deturpações
da história que são pensadas e repassadas como a história oficial. Como por exemplo, em dois
casos recentes de distribuição de material didático nas escolas brasileiras. No primeiro, a
história oficial contada aos alunos dos 12 colégios militares do país omite a tortura praticada
na ditadura, entende que o golpe de 1964 foi uma revolução democrática contra a atuação de
grupos subversivos que perturbavam a ordem pública e que vitimaram numerosas pessoas
com sua estratégia de assaltos a banco, seqüestros e ataques a quartéis e postos policiais.
Além disso, a censura à imprensa e as cassações políticas era condição necessária ao
progresso do país. “Embora o governo pregasse o retorno à normalidade democrática, a
intransigência do partido oposicionista motivou a necessidade de algumas cassações
políticas”, diz trecho sobre o governo Ernesto Geisel (1974-79). Para o historiador Carlos
Fico1 da Universidade Federal do Rio de Janeiro, esse exemplo sé considerado graves porque
narra a história como uma “história factual” carente de análise, focada apenas na ação dos
governos. Permanece assim aberta a questão do estatuto epistemológico da história e o grau
de objetividade de seus juízos.
Por outro lado, em 2007, setores da mídia conservadora protestaram contra os
excessos esquerdistas de um livro didático, Nova História Crítica para 8ª. série, distribuído
gratuitamente pelo MEC a 750 mil alunos da rede pública. O livro faz a crítica explícita ao
capitalismo e tenta resolver os problemas sociais sob a ótica da revolução marxista. Enaltece a
figura de Mao-Tsé Tung como um grande estadista e comandante militar, além de entender
que a Revolução Cultural Chinesa fora uma experiência socialista muito original. Também
coloca Cuba quase como uma ilha paradisíaca de prosperidade e riqueza coletiva, e critica a
derrocada da URSS, não esclarecendo de fato os motivos que levaram a esse processo
histórico.

1
Carlos Fico é professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro e autor dos livros "Como eles agiam: os
subterrâneos da ditadura militar" (2001) e "O Grande Irmão: da operação brother sam aos anos de chumbo, o
governo dos EUA e a ditadura militar brasileira” (2008).
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Nesses dois exemplos, a história já vem interpretada, como um pacote ou um kit de


esquerda ou de direita, pronto para o aluno utilizar. Não abre espaços para uma reflexão
crítica ou para que o estudante possa se sentir como um sujeito ativo da história dotado de
poder de pensamento reflexivo, analítico e dialético e que possa desenvolver seu próprio
discernimento.
A história oficial sempre poderá ser revista de acordo com novas interpretações. É
nesse sentido que o pensamento ucrônico, tanto na literatura, quanto no cinema ou na ficção
podem ser considerados métodos apreciáveis de análise crítica e contundente sobre os fatos
históricos disponibilizados à humanidade, não como verdades absolutas, mas como objetos de
estudo passíveis de desconstrução e reconstrução.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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BUSTAMANTE, Luis. História contra os fatos. Disponível em
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GEERTZ, Clifford. A Interpretação das Culturas. Rio de Janeiro: LTC, 2008.
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HUTCHEON, Linda. Poética do Pós-Modernismo - História - Teoria – Ficção. Rio de Janeiro:
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MORA, José Ferrater. Dicionário de Filosofia. São Paulo: Editora Edições Loyola, 2001.
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_________, Paul. História e Verdade, Rio de Janeiro: Companhia Editora Forense, 1968.
VATTIMO, Gianni. Tecnica ed Esistenza. Torino: Editori G.B.Paravia & C.S.p.A., 1997.
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Corumbá, MS, novembro 2011, n. 4, p. 35

UT PICTURA POESIS, DE HORÁCIO: POR UMA ARQUEOLOGIA DA


COMPARAÇÃO ENTRE AS ARTES
Neurivaldo Campos Pedroso Junior1

RESUMO: O presente artigo pretende revisitar o desenvolvimento da expressão Ut pictura


poesis, proposta por Horácio, ao longo dos diferentes movimentos artísticos. Sob essa
perspectiva, pretendemos demonstrar que as palavras horacianas passaram a designar uma
série de estudos comparativos entre as artes, em que se incluem a comparação entre Literatura
e Pintura, Literatura e Música, entre outras. Será discutida, também, a importância que o
binômio Mimesis/Semiosis assume no interior da comparação entre Literatura e Pintura.
Procuraremos revisitar a tradição horaciana proporcionando a interlocução com as atuais
discussões na área de Letras, Estética e Semiótica.

Palavras-chave: Horácio; Comparação entre as artes; Mimesis/Semiosis; Estética; Semiótica

HORÁCIO’S UT PICTURA POESIS: FOR AN ARCHEOLOGY


OF THE COMPARISON BETWEEN ARTS

ABSTRACT: The present article intends to revisit the development of the expression Ut
picture poesis, suggested by Horácio, within the different artistic movements. Under this
perspective, we intend to demonstrate that Horácio’s words passed to designate a series of
comparative studies between the arts, which includes the comparison between Literature and
Painting; Literature and Music, among others. It will be discussed, also, the importance of the
binomial Mimesis/Semiosis assumes in the interior of the comparison between Literature and
Painting. We will search to revisit Horácio’s tradition proportioning the interlocution with the
current discussions in the Letters field, Aesthetic and Semiotic.
Keywords: Horácio; Comparison between arts; Mimesis/Semiosis; Aesthetic; Semiotic.

A poesia é como pintura (ut pictura poesis)


Horácio

Desde que fora enunciada, a expressão horaciana, ut pictura poesis (A poesia é como
pintura), tem sido empregada como um preceito estético, um topos, a partir do qual, propõe-se
a comparação entre a Poesia e as Artes Plásticas. Com Horácio, instaura-se, de forma mais
sistemática, a prática de comparação entre as diferentes artes, pois os críticos amparando-se
nas palavras de Horácio procurarão discutir a relação entre as artes irmãs, quer seja para
aproximá-las quer seja para distanciá-las. Nesse sentido, pensamos, que a própria questão do
paragone das artes, tão comum à época de Alberti e Da Vinci, não poderá ser considerada

1
Doutor em Literatura Comparada pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) em Co-tutela com
a Universitat de Barcelona. Professor da FAP. E-mail: npedrosojunior@yahoo.com.br
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Corumbá, MS, novembro 2011, n. 4, p. 36

fora de um contexto reflexivo aberto pelo ut pictura poesis horaciano. Registramos, ainda,
que apesar de o termo paragone ser empregado, muitas vezes, com o propósito de designar a
comparação entre a Literatura e as Artes plásticas, em sua acepção original, o termo referia-se
à comparação entre a pintura e a escultura. Com isso, o paragone pode ser pensado na esteira
da tradição ut pictura poesis, na medida em que, o lugar ocupado pela pintura em relação à
poesia é análogo ao lugar ocupado pela escultura em relação à pintura.
Aliás, entendemos que, ao nos colocarmos diante do ut pictura poesis, estaremos, não
apenas diante de um topos, mais ou menos definido da História da Arte ou da Estética,
tampouco estaríamos diante de uma simples questão temática, segundo a qual analisar-se-ia a
forma por meio da qual determinadas obras literárias ou pictóricas iam buscar fonte de
inspiração e motivos em outras artes. Acreditamos, todavia, que, para além dessas questões, o
ut pictura poesis aponta para uma discussão e re-definição dos sistemas artísticos de um modo
geral, na medida em que, ao centrar-se na representação do real – tanto pela Literatura quanto
pela Pintura - potencializa as discussões acerca da Mímesis, questão esta nodal para os estudos
literários e, inclusive, para a estética. Assim, dessas discussões abertas pelo ut pictura poesis
não podem desvencilhar-se nem os artistas muito menos os estudiosos.
Se, em um primeiro momento as palavras de Horácio foram empregadas para
comparar a Pintura à Literatura, ao longo dos séculos e dos diferentes movimentos artísticos,
o adágio horaciano passou a designar toda uma série de estudos comparativos entre as
diferentes artes, não apenas circunscritos às analogias entre Pintura e Literatura, mas, agora,
entre Literatura e Música, Pintura e Música, Literatura e Cinema, entre outros. Nesse sentido,
devemos observar que os estudos das relações entre Literatura e Música receberam uma
rubrica específica: ut musica poesis ou em alguns casos ut musica pictura. A primeira
expressão é utilizada para comparar a Literatura à Música, enquanto que a segunda expressão
é frequentemente usada com o propósito de se associar a Música à Pintura. Essas mudanças
das palavras de Horácio foram sugeridas por Jon de Green. Segundo Solange Ribeiro de
Oliveira, o autor, ao cunhar aquelas duas expressões, pretendia, com a primeira, indicar “a
supremacia das aproximações entre a música e a poesia” próprias do período romântico,
enquanto que a segunda expressão, usada na fase moderna, “privilegia as relações entre a
música e as artes plásticas, num momento em que estas, como sempre aconteceu com a
música, tendem a favorecer a abstração” (Oliveira, 2002, p.25).
Horácio inicia, então, uma tradição de comparações entre Literatura e Pintura,
apresentada sob a rubrica ut pictura poesis (Poesia é como pintura). Recentemente, a tradição
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Corumbá, MS, novembro 2011, n. 4, p. 37

ut pictura poesis ganhou com a Semiótica e a Literatura Comparada novas ferramentas e


formas de abordagem. Lembramos ainda que a expressão cunhada por Horácio “renasce nos
nossos dias, como disciplina acadêmica. Denominada, precisamente, A Literatura e as Outras
Artes, é ministrada em universidades como a de Indiana, nos EUA” (Oliveira, 1993, p. 40),
aparecendo, inclusive, como tópicos específicos em Congressos Internacionais como os da
MLA (Modern Language Association of América), IACL (International Association of
Comparative Literature) e ainda nos recentes congressos da ABRALIC (Associação
Brasileira de Literatura Comparada). Veremos, em seguida, os rumos que as palavras
horacianas tomaram durante o curso dos diferentes movimentos artísticos. Tentaremos, ainda,
mostrar que a tradição ut pictura poesis tem contribuído com os estudos de Literatura, ao
proporcionar paralelos entre a Literatura e as demais artes, enfatizando os pontos em que as
diferentes artes convergem e em que elas divergem, considerando questões outras, como as
fontes, o estilo, os temas e o efeito das obras de arte sobre o espectador e o leitor.
Todavia, devemos registrar que, inicialmente, as palavras de Horácio foram
empregadas com um outro propósito, pois, quando o poeta, na Arte Poética, comparou a
Poesia à Pintura, tal atitude fora adotada no sentido de aconselhar três jovens poetas da
família dos Pisões com relação à escrita de um poema. Assim, Horácio ressalta que:

Poesia é como pintura: uma te cativa mais, se te deténs mais perto; outra, se
te pões mais longe; esta prefere a penumbra; aquela quererá ser contemplada
em plena luz, porque não teme o olhar penetrante do crítico; essa agradou
uma vez; essa outra, dez vezes repetida, agradará sempre (Horácio, 1997, p.
65).

Essa passagem fora retomada inúmeras vezes ao longo da história com o propósito de
se salientar uma maior dificuldade de recepção de um texto do que de um quadro, assim
como, de um maior valor que assumiria aquele com relação a este. Os críticos partiam da
ideia, segundo a qual, em relação a um quadro, bastaria contemplá-lo, já as letras, dispostas na
página em branco, exigiriam não apenas contemplação, mas, principalmente revolveriam o
espírito e a mente, pois seria necessário entender o que significam (como se a um quadro
também não fosse necessário correr atrás de seu significado). Assim, o tom das reflexões
baseava-se na distinção entre os signos naturais, utilizados pela pintura, e os signos
arbitrários, utilizados pela Poesia. Com isso, instaura-se a supremacia desta sobre a Pintura,
pois, enquanto que a imagem encarnada pela pintura,
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Corumbá, MS, novembro 2011, n. 4, p. 38

(...) sólo representa una efígie humana, el poema puede representar también lo
inimaginable, o sea, un pensamiento, mientras que un cuadro sólo lo logra mediante
un símbolo; el poema está realizado con un material que no resiste mucho y que deja
más liberdad que un cuadro; también excita e ilusiona al receptor, más facilmente,
mediante efectos acústicos, y no como un cuadro, que sólo se dirige al sentido de la
vista exigiendo una intensa impresión visual (Markiewicz, 2000, p.53).

Ou, ainda como bem observa Jacques Aumont

En efecto, cuando el autor latino enunciaba esta ley, proponía sobre todo al poeta
que buscara conseguir con sus versos efectos tan asombrosos como los que obtenía
la pintura: dicho de otro modo, proponía el ideal de una poesía hecha de imágenes
fulgurantes, inesperadas, lo suficientemente fuertes como para provocar verdaderas
“visiones” o, en términos más sobrios, establecía para el poeta la tarea de crear
verdaderos cuadros, de producir lo que la retórica denomina hipotiposis y que
consiste en poner con vivacidad e inmediatez en el espíritu del oyente aquello de lo
que se habla (Aumont, 1998, p.106).

Com efeito, pensando em termos da tradição do ut pictura poesis, podemos observar


que,
En su version más general, el significado de esta fórmula se reduciría a la tesis de
que la poesia, al igual que las outras artes, produce, mediante un lenguaje natural,
representaciones visuales. En la maioria de los casos se tenía en cuenta la pintura y
las artes plásticas en general; tales representaciones visuales, propias de la poesía, se
caracterizabam como imaginarias, visuales o plurisensoriales, a diferencia de las
representaciones sólo visuales provocadas por las artes plásticas (Markiewicz, 2000,
p. 52).

Neste ponto, ressaltamos que há algumas divergências com relação ao pensamento


horaciano, na medida em que, de um lado, há aqueles que acreditam que, ao cunhar a
expressão ut pictura poesis, Horácio estava tomando a pintura como modelo de inspiração
para a poesia, ou, a supremacia daquela sobre esta, na medida em que caberia ao poeta basear-
se na tarefa empreendida pelo pintor, ou seja, ao comparar a poesia à pintura,

(...) a frase cria um privilégio em favor das artes da imagem, com as quais são
relacionadas as artes da linguagem. Ao retomarem a frase de Horácio, os teóricos do
Renascimento inverteram o sentido da comparação: a poesia tornou-se o termo
comparativo e a pintura o termo comparado. Ut pictura poesis erit tornou-se, para
eles, tu poesis pictura, a pintura é como a poesia, o quadro é como um poema. E
esse foi o sentido, ou melhor, essa inversão de sentido, que a tradição conservou
(Lichtenstein, 2005, p. 10-11).

Assim, podemos pensar, de um lado, que Horácio “parece contestar a supremacia


instalada da poesia em detrimento dos méritos imputados à pintura” (Lescourret, 2002,
p.176). Nesse sentido, registramos que, tanto a pintura quanto a música eram vistas, até então,
sob a égide de um raciocínio proveniente da Antiguidade Grega, a partir do qual, ambas
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apenas ganhavam relevo e importância no âmbito da Tragédia, ou seja, no âmbito da


representação cênica das paixões humanas. Todavia, a partir da comparação horaciana, ambas
as artes ganham uma autonomia que permitirá, então, a comparação e, diante disso, “a
aproximação entre poesia e pintura visa individualizar cada arte e propõe-se a estabelecer a
superioridade de uma sobre a outra” (Lescourret,2002, p.176-177).
Horácio, em seguida, ainda na mesma Epistola aos Pisões chama a atenção para o fato
de que apesar de poetas e pintores possuírem certa liberdade, com relação aos seus respectivos
ofícios, eles deveriam também preocupar-se com aspectos quer da pintura quer da poesia que,
se não fossem observados, poderiam pôr a “obra” toda a perder, logo, a questão da unidade
entre as partes deveria ser observada tanto pelo poeta como pelo pintor. Horácio, em sua Ars
Poética, centra-se em alguns pontos básicos da poética clássica, tais como: os atributos do
poeta; o imperativo do modelo apropriado; os ideais estéticos e pragmáticos; a necessidade de
unidade, harmonia e proporção dentro da obra. Além disso, havia, no poeta latino, uma
preocupação mais pontual relativa à poesia dramática, traduzidas pelas questões da
versificação, número de atores, uso do coro e música.
Horácio, para demonstrar o que pode acontecer com um quadro ou com um poema que
não observasse a unidade na obra, sugere a seguinte situação:

Suponhamos que um pintor entendesse de ligar a uma cabeça humana um pescoço


de cavalo, ajuntar membros de toda procedência e cobri-los de penas variegadas, de
sorte que a figura, de uma mulher formosa em cima, acabasse num hediondo peixe
preto; entrados para ver o quadro, meus amigos, vocês conteriam o riso? Creiam-me,
Pisões, bem parecido com um quadro assim seria um livro onde se fantasiassem
formas sem consistência, quais sonhos de enfermo, de maneira que o pé e a cabeça
não se combinassem num ser uno (Horácio, 1997, p.55).

Ora, vemos que as observações de Horácio sobre a unidade em Pintura e em Literatura podem
ser aplicadas às obras de arte que tinham como modelo a representação fiel da Natureza, as
artes clássicas, por exemplo. Entretanto, nós não podemos aplicá-las com tanta propriedade
aos diferentes movimentos da arte moderna, sobretudo, à pintura abstrata ou não-figurativa,
pois, há uma certa crise e discussão acerca das estruturas da arte. Todavia, notamos que a não
aceitação do quadro proposto pelo poeta latino devido à falta da “unidade”, leva-nos a atestar,
sobretudo tendo os olhos voltados para movimentos como o Surrealismo, o Cubismo e o
Dadaísmo, que cada obra de arte apresenta uma lógica interna, que comanda a sua
composição. Neste ponto, retomar a reflexão de Roger Fry proposta em “Um ensaio de
estética”, quando registra que
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Um dos principais aspectos da ordem numa obra de arte é a unidade; algum tipo de
unidade é indispensável para a nossa contemplação tranquila da obra de arte como
um todo, pois se não houver unidade não poderemos contemplá-la em sua inteireza,
pois acabamos passando ao largo dela na busca de outros elementos para completar
a unidade (Fry, 2002, p.65).

Mais adiante, o crítico de arte britânico continua sua reflexão sobre a questão da
representação nas artes plásticas e acentua, inclusive, a íntima relação existente entre a
representação e a necessidade de unidade de uma obra de arte. Todavia, a unidade proclamada
por Fry muito se difere daquela exigida por Horácio, pois, para Fry

Parece igualmente provável que nossa apreciação da unidade do desenho pictórico


seja de dois tipos. Estamos tão habituados a considerar apenas a unidade que resulta
do equilíbrio de várias atrações apresentadas simultaneamente ao olhar num quadro
emoldurado que nos esquecemos da possibilidade de outras formas pictóricas.
(...) Na literatura e na música, evidentemente, estamos habituados com essa unidade
sucessiva, que tem seu papel nas artes figurativas. Ela depende de as formas nos
serem apresentadas em tal seqüencia que cada elemento sucessivo manifeste uma
relação harmoniosa e fundamental com os precedentes. Minha sugestão é a de que
nosso sentimento de unidade pictórica, ao contemplarmos desenhos, é em grande
parte dessa natureza; quando o desenho é bom, sentimos que cada modulação da
linha percebida por nosso olhar confere ordem e variedade a nossas sensações. Um
desenho assim pode ser quase inteiramente desprovido daquele equilíbrio
geométrico que estamos acostumados a esperar nos quadros, e ao mesmo tempo eles
posssuem um extraordinário grau de unidade (Fry, 2002, p.66).

Consequentemente, deve-se considerar a ordem dos componentes dispostos ao longo


das obras, sejam elas literárias ou pictóricas. Com isso, observa-se que a “presunción de que
las representaciones del artista corresponden a unidades que se pueden localizar en el mundo
en lugar de a disposiciones imposibles de elementos reales es una defensa de Horacio de la
consigna de realismo.” (Steiner, 2000, p.35). Logo, o artista debe ser sensivel à relação
existente entre o “tema” e a realidade existente.
A exigência de Horácio, de que o artista – tanto o poeta quanto o pintor – tenha como
ponto de partida a realidade, aponta para uma problemática que dominou, por longo tempo, as
discussões antigas e modernas acerca da correspondência das artes – a Mímesis, considerando
que, para o poeta latino, tanto a Poesia quanto a Pintura têm como tema a realidade existente e
são, de certa forma, limitadas em sua adequação mimética a essa realidade. Vemos, então, que
passa a existir uma estreita e íntima conexão entre a correspondência das artes e a questão da
verossimilhança. Horácio contribui com as discussões abertas por Aristóteles com relação à
representação, pois, entendemos que o emprego, por parte do poeta latino, do termo
“representar” seria um homônimo ao “imitar” aristotélico, nesse ponto, podemos fazer uma
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ressalva com relação à etimologia da palavra mimesis e o emprego dos termos imitar e
representar, pois, de acordo com Maria Ozomar Ramos Squeff,

(...) da análise etimológica de mimesis, em seus vínculos com as idéias de engano e


ilusão, destaco o significado original de ‘representação’, ‘imitação’ e, em especial –
a partir de sua raiz indo-européia – o sentido de ‘mudança’, ‘transformação’ que o
termo conota. A tradução latina, imitatio, e suas sucessivas derivações em outras
línguas, sofreu acentuado desgaste através da história e passou a significar,
principalmente, reprodução, cópia de algo. O termo ‘representação’ tem se revelado
como menos comprometido, de modo a poder traduzir, com os devidos
complementos restritivos (posto que há outras formas de representação), o sentido
original do termo grego. Acentua-se na formação mimética a característica de ser re-
presentação de algo, isto é, um modo de trazer algo à presença do sujeito, por outro
meio que não pelo próprio objeto visado, o que implicado transformação. Trata-se
de uma segunda presença que, de algum modo, replica a presença primitiva do
objeto ou de algum de seus aspectos (Squeff, 2003, p.106-107).

DA MIMESIS À SEMIOSES

Como pretendemos mostrar anteriormente, o adágio horaciano do ut pictura poesis


abre-se para a possibilidade de uma reflexão centrada na questão da mimesis. Diante dessa
observação, pretendemos, agora, propor uma discussão que procure observar a passagem da
mimesis a semioses. Essa reflexão impõe-se, neste artigo, com uma dupla força, pois, se de
um lado, toda arte, e, mais precisamente, a Literatura e as Artes Plásticas sempre tiveram que
enfrentar o problema da representação, seja para segui-la seja para afastar-se dela.
Poderíamos, iniciar, então, voltando-nos à Mimesis, na medida em que esta,

(...) foi questionada pela teoria literária que insistiu na autonomia da literatura em
relação à realidade, ao referente, ao mundo, e defendeu a tese do primado da forma
sobre o fundo, da expressão sobre o conteúdo, do significante sobre o significado, da
significação sobre a representação, ou ainda, da sèmiosis sobre a mimèsis
(Compagnon, 1999, p.97).

Nesse contexto, tanto a Poesia quanto a Pintura tomam como ponto de partida a
realidade – o real – assim, ao raciocínio horaciano sobre a representatividade poética ou
pictórica podemos associar a reflexão aberta por Jan Mukarovisky, quando afirma que a
“capacidad de expresar los fenómenos de la realidad externa mediante signos conectados en
una contextura continua” (Mukarovisky apud Steiner, 2000, p.35) une a Literatura e a Pintura
sob qualquer situação de desenvolvimento. Para reforçar esse caráter mimético tanto de uma
como de outra arte, Mukarovisky salientará que a Música, a Escultura e a Arquitetura não
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apresentam aquela “contextura continua” da qual são dotadas a Literatura e a Pintura, pois,
em ambos os casos, “aunque la expressión de una realidad externa en la literatura o la pintura
sea sólo virtual, es sin embargo esencial para ellas” (Steiner, 2000, p. 35).
Pensamos que, apesar de a Literatura e a Pintura tomarem como ponto de partida o
Real, a representação tanto no plano da página quanto no plano da tela não prova a existência
do objeto. Assim, a referência à existência ou não do objeto representado tornou-se questão
nodal não apenas para os estudos literários, mas, principalmente, tornou-se objeto de interesse
da estética e semiótica modernas e, também, dos estudos comparativos entre as artes. Neste
ponto, podemos estender nossa reflexão no sentido de esclarecer acerca da utilização da
palavra objeto, uma vez que não se pode confundir objeto com coisa, sobretudo porque a
noção de objeto é muito mais complexa e não pode, de forma alguma, ser confundida com o
que quer que possamos entender por coisa. Diante disso, optamos por recorrer à semiótica de
Peirce para forjarmos uma reflexão acerca do objeto, pois, em vários momentos de nosso
trabalho, sobretudo quando tocamos na questão da representação, aquele termo será bastante
frequente. Duas passagens de Peirce são elucidativas:

A palavra Signo será usada para denotar um Objeto perceptível, apenas imaginável
ou mesmo insuscetível de ser imaginado em um determinado sentido  a palavra
“cabo” que é um signo, não é imaginável, pois não é essa palavra mesma que pode
ser inscrita no papel ou pronunciada, mas apenas um dos aspectos que pode revestir;
trata-se da mesmíssima palavra quando escrita e quando pronunciada, mas é uma
palavra quando significa “posto de hierarquia militar”, outra quando significa “ponta
de terra que entra pelo mar” e terceira quando se refere a “parte por onde se segura
objeto ou instrumento”. [...] Um Signo pode ter mais de um Objeto. Assim a
sentença “Caim matou Abel”, que é um Signo, refere-se pelo menos tanto a Abel
quanto a Caim, ainda que não a encaremos como deveríamos encará-la, isto é, como
tendo “um assassínio” na qualidade de terceiro Objeto. O conjunto de objetos pode
ser visto Omo compondo um Objeto complexo. No que se segue (e muitas vezes
depois), os signos serão considerados como tendo apenas um Objeto, no intuito de
reduzir as dificuldades de estudo.
Os Objetos  pois um Signo pode ter qualquer número deles  podem ser uma
coisa singular existente e conhecida ou coisa que se acredita tenha anteriormente
existido ou coisa que se espera venha a existir ou uma coleção dessas coisas ou uma
qualidade ou uma relação ou fato conhecido cujo Objeto singular pode ser uma
coleção ou conjunto de partes ou pode revestir algum outro modo de ser, tal como
algum ato permitido, cujo ser não impede que sua negação seja igualmente
verdadeira ou algo de natureza geral, desejado, exigido ou invariavelmente
encontrado sob certas circunstâncias comuns (Peirce apud Santaella, 1995, p.48).

Podemos pensar, por exemplo, que tanto Simônides quanto Horácio, ao compararem a
Poesia à Pintura, apontam para o fato de que ambas tomam como ponto de partida o real e,
então, o que as diferenciaria seria a forma como ambas representam esse mesmo real. Com
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isso, podemos ressaltar que a arte poderá ser realista, surreal, abstrata, documental, etc, mas
ela nunca estará desvinculada da realidade empírica. Assim, vemos que . “as coisas da arte
começam geralmente ao contrário das coisas da vida. A vida começa por um nascimento, uma
obra pode começar sob o império da destruição” (Didi-Huberman, 2001, p.9).
Vemos, então, que a arte e, mais precisamente a Literatura e a Pintura, não se
contentam simplesmente em estar presente no mundo real, a arte, então,

(...) significa também uma maneira de representar o mundo, de figurar um universo


simbólico ligado à nossa sensibilidade, à nossa intuição, ao nosso imaginário, aos
nossos fantasmas. É este seu lado abstrato. Em suma, a arte ancora-se na realidade
sem ser plenamente real, desfraldando um mundo ilusório no qual, freqüentemente –
mas não sempre – julgamos que seria melhor viver do que viver na vida cotidiana
(Jimenez, 1999, p.10).

Assim, é diante de uma dupla falta que nasce a literatura, pois, como bem demonstrou
Leyla Perrone-Moisés, em um primeiro momento há uma falta sentida no mundo em que
vivemos, que não é satisfatório. Esta falta sentida no real tentará ser suprida pela linguagem,
ai reside a outra falta pela qual nasce a Literatura, na medida em que esta é um sistema que
também opera em falso. Neste ponto, não podemos deixar de mencionar um texto de Jacques
Lacan intitulado “Televisão”, no qual o psicanalista francês irá atentar para o fato de a
linguagem ser um sistema que opera em falso, pois, para Lacan, “Digo sempre a verdade: não
toda, porque dizê-la toda não se consegue. Dizê-la toda é impossível, materialmente faltam as
palavras. É justamente por esse impossível que a verdade provém do real. (...) Falhado,
portanto, mas por isso mesmo bem-sucedido em relação a um erro, ou melhor dizendo, a um
error” ( Lacan, 1993, p.11) A passagem lacaniana irá ao encontro do raciocínio de Leyla
Perrone-Moisés acerca da criação do texto literário e, mais precisamente, sobre o nascimento
da Literatura. Dessa forma, vemos que o psicanalista francês tanto quanto a crítica brasileira
apontam para o fato de a língua ser um sistema que opera em falso.
As palavras de Jimenez, citadas anteriormente, apontam para uma característica muito
importante não apenas relativa à arte, mas, ao próprio homem, a tendência própria deste em
imitar, inclusive, seus pares. Logo, entendemos que “el hombre es un animal de imitación, un
animal mimético: tenemos una tendencia espontánea a reproducir algo que nuestros sentidos
nos dan a percibir, y esta tendencia, este instinto o pulsión es tan fuerte que no tiene
significación de objeto, como lo subraya la observación a las cosas displanceteras o feas, cuya
imagen puede considerarse bella (Aumont, 1998, p.196).
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Como já afirmamos anteriormente, podemos entender, até certo ponto, que a Epístola
aos Pisões, de Horácio, participa de uma discussão acerca da Mímesis aberta, sobretudo pela
Poética, de Aristóteles, na medida em que este entende que o homem, quase que por
necessidade, apresenta uma tendência à imitação. A arte seria, segundo a visão aristotélica,
uma atualização dessa pulsão mimética apresentada pelo homem na imitação das ações
humanas. Com isso, vemos que

(...) la mímesis de Aristóteles es distinta que la del espejo platônico: si hay algo que
el animal humano no puede prescindir de imitar es él mismo o, más exactamente, su
comportamiento en sociedad. La imitación, y más allá, la actividad que se conoce
como “arte”, es por tanto un juego que obedece a reglas, tan necessário como otros
para la cohesión de la ciudad porque proporciona la ocasion de encuentros entre
ciudadanos, y porque, al reproducir las aciones humanas, permite describirlas de otra
manera, enfocarlas en todos sus aspectos (comprendidos los virtuales y los
imposibles), y por tanto pensarlos de manera completa (Aumont, 1998, p.96).

Longe de pretendermos, no âmbito desse texto, fazer um estudo detalhado da obra


aristotélica, o que queremos mostrar que a sua teoria acerca da Mímesis encontrará em
Horácio um importante continuador e, com isso, poderemos trazê-la para a reflexão sobre a
correspondência entre as artes. Assim, a aproximação entre a Literatura e a Pintura baseada
nos preceitos de imitação fora defendida, entre outros, por Kant, quando observa que

Se puede justificar de hecho de unir el arte de la imagen y de la forma al gesto del


lenguaje (por analogia) alegando que el espíritu del artista, gracias a estas figuras, da
una expresión física de lo que ha pensado y de la manera en que lo ha pensado y en
que hace hablar a la cosa misma, en cierto modo miméticamente: es un juego muy
habitual de nuestra imaginación que supone un alma en las cosas inanimadas,
adecuada a su forma y que a través de ésta se expresa (Kant apud Aumont, 1998,
p.196).

As palavras de Kant contribuem para a discussão que propomos aqui, na medida em


que corroboram a relação entre poesia e pintura como base em uma prática mimética, que
tomaria como ponto de partida o real – este pode ser apreendido, de um lado, a partir de
paradigmas religioso ou científico e, por outro lado, pode ser apreendido também em sua
aparência sensível ou transfigurada imageticamente. Observamos, então, que mimetizar o real
sempre foi uma das tarefas da arte. Todavia, não queremos, aqui, compactuar com a teoria que
procurava definir o termo “arte” centrada, exclusivamente, na imitação, ou, como denomina
George Dickie “la théorie de l’imitation”, pois, de acordo com o autor, esta “concentra-se em
uma propriedade relacional manifesta entre as obras de arte, a saber, a relação existente entre
arte e o assunto tratado” (Dickie, 1992, p.10), mais adiante, Dickie ressaltará que o
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desenvolvimento da arte não figurativa tem mostrado a imitação não ocorre hoje em dia em
concomitância à arte, e ainda menos uma propriedade essencial” (Dickie, 1992, p.10).
Seguindo o raciocínio aberto pelas palavras de Dickie, podemos pensar, então, que,
tanto no plano da estética como no plano dos estudos comparativos entre as artes, instaura-se
uma problemática relativa à representação. De um lado, podemos registrar que a noção/ideia
de mimesis foi, ao longo dos séculos, reduzida à simples noção de cópia ou
representação/figuração mais ou menos fiel do mundo empírico. Todavia, essa noção de
mimesis começou a ser combatida pelos artistas, a partir do momento em que a arte começa a
se afastar do ideal realista ou da arte figurativa de um modo geral. Assim,

(...) quando a obra de arte começa a libertar-se da tarefa de registrar, de representar,


a realidade exterior a ela mesma e volta-se para seus próprios elementos
constitutivos, buscando realizar-se como objeto autônomo e auto-reflexivo, a
negação do caráter mimético como essencial à arte domina progressivamente o
pensamento filosófico (Squeff, 2003, p.100).

Nesse contexto, podemos recorrer a Giulio C. Argan quando registra que o fato que
separa “nitidamente, com um autêntico salto qualitativo, a arte do nosso século de toda a arte
do passado, pelo menos na área da cultura ocidental, é a passagem do carácter figurativo ao
não figurativo, ou como é corrente dizer-se, à abstracção” (Argan, 1995, p.105). Pensamos
que a pintura abstrata coloca em discussão, de maneira singular, menos a questão da
figurativização, mas sim, seu próprio médium pictórico, ou seja, o objetivo da arte abstrata é
tornar “(...) visível não a relação entre o objeto pictórico e as coisas do mundo, mas as
possibilidades de codificação de seu próprio código, a sua realidade plástica” (Oliveira, 2004,
p.117). Com isso, assistimos, por parte dos pintores, à uma reflexão mais sistemática de seu
oficio, de seu trabalho, reflexão esta que será transposta para a superfície da tela, ou melhor, a
reflexão sobre a pintura será, agora, tema para os pintores. Diante disso, veremos que “os
pintores se lançam numa busca não mais de recobrir a tela através das ilusões óticas para, por
exemplo, conseguir na sua inerente bidimensionalidade, a tridimensionalidade do mundo
natural, mas de descobri-la na sua planitude, plano sob plano, plano no plano” (Oliveira,
2004, p.117).
Com isso, se anteriormente pensava-se na pintura como espelho a representar o real,
essa ideia não é mais sustentada, principalmente se pensarmos na arte moderna e na pintura
denominada abstrata, na medida em que estarão dispostas na tela as reflexões sobre questões
técnicas, tais como, a estruturação geométrica e a estruturação cromática, responsáveis por
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fazer leitor/espectador a ver em perspectiva e em profundidade. Acontecerá, então, de a


pintura sensibilizar

(...) o olho a perceber na dimensão de sua materialidade  seus suportes, suas


pinceladas, as granulações das tintas, a inserção de outros componentes na
composição dessas, o gesto de inscrição ou não do pintor, enfim, nos constituintes
de sua corporeidade física  o que até então não era visível. Diante dessa pintura, o
olho é forçado a encontrar por si mesmo, pelo sensível, um tratamento processual do
visível através do qual ele elabora a sua significação, que, de uma vez por todas, é
fruto de sua re-construção (Oliveira, 2004, p.117).

As Artes Plásticas livram-se dessa dependência com relação à representação do objeto,


mas podem ser lidas também como um prenúncio daquilo à que viria se tornar, nos nossos
dias, a arte abstrata, pois, os artistas deram-se conta dessa dependência, passando a se
questionar acerca do figurativo e do não-figurativo, e constataram que “a presença ou
ausência de uma imagem reconhecível não tem mais nada a ver com o valor na pintura ou na
escultura do que a presença de um libretto tem a ver com o valor da música” (Greenberg,
1989, p.144). Essa afirmação lembra-nos um comentário de Wassily Kandinsky, que, certo
dia, ao chegar em casa, viu na parede

(...) um quadro de extraordinária beleza, brilhando com uma luz interior. Fiquei
paralisado, depois me aproximei desse quadro-mistério onde só via formas e cores e
cujo teor me era incompreensível. Encontrei rapidamente a chave do mistério: era
um quadro meu, que tinha sido dependurado ao contrário. (...) Soube, então,
expressamente que os “objetos” eram prejudiciais a minha pintura (Kandinky apud
Compagnon, 1996, p. 66).

As artes em geral libertaram-se, de certa forma, da dependência da representação do


objeto, tanto na pintura quanto na literatura. Pode-se dizer, inclusive, que tudo se passa como
se o abandono, compactuado pelas diferentes artes, da representação do objeto, tivesse
liberado em cada uma delas um potencial de originalidade artística que não teria ocorrido sem
essa liberação coletiva, posto que, ao desvencilhar-se da representação fiel do real, a arte
desloca seu foco de atenção menos para os fins e muito mais para seus próprios meios. Com
isso, “avec Kandinsky et Mondrian, la peinture cessait d’être “au service” d’une mimèsis et
passait d’une fonction “representative” à une fonction “presentative”, mais elle ne faisat de la
sorte que s’émanciper, et donc s’accomplier glorieusement en se recentrant, comme le
proclamera à peu prés Clement Greenberg, sur son “essence” – ce qui suppose que l’essence
d’un art consiste dans ses moyens plutôt que dans sa fin” (Genette, 2002, p.243).
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Nesse sentido, pode-se evocar a epígrafe de Água viva, de Clarice Lispector, que
sintetiza o sentimento da necessidade de libertar-se da dependência do objeto. A epígrafe é de
Michel Seuphor:

Tinha que existir uma pintura totalmente livre da dependência da figura — o objeto
— que, como a música, não ilustra coisa alguma, não conta uma história e não lança
um mito. Tal pintura contenta-se em evocar os reinos incomunicáveis do espírito,
onde o sonho se torna pensamento, onde o traço se torna existência (Seuphor apud
Lispector, 1980. Epígrafe).

A epígrafe de Água viva pode ser tomada aqui como um comentário sobre todas as
manifestações da arte moderna e mais precisamente das artes não figurativas, que tendiam
para o abstracionismo, pois, estas são marcadas por essa liberdade frente à representação do
objeto. Por outro lado, a Literatura também se desvencilha da necessidade (ou imposição) de
representação fiel do real, para voltar-se a si mesma. Com isso, distanciando-se da tradição de
fundo realista, o que vemos, hoje, é que a própria linguagem é colocada em cena, o que
resulta em textos que, longe de procurarem “representar o real” voltam-se para a discussão
acerca da linguagem. Em outras palavras, “é exatamente a linguagem, tornando-se, por sua
vez, a protagonista dessa festa um pouco misteriosa, que se substitui ao real, como se fosse
necessário, ainda assim, um real. E, na verdade, salvo se reduzirmos toda a linguagem a
onomatopéias, em que sentido ela pode copiar? Tudo o que a linguagem pode imitar é a
linguagem: isso parece evidente” (Compagnon, 1999, p.97).
Ou seja, hoje

(...) é fácil perceber uma nova evocação da realidade nas tendências expressivas da
literatura e das artes, que procuram criar efeitos de realidade na transgressão nos
limites representativos do realismo histórico. Tanto na literatura quanto nas artes
visuais, assistimos a uma preocupação de se colocar a referencialidade na ordem do
dia, abrindo caminho para um novo tipo de realismo que, em vez de seguir o cânone
mimético do realismo histórico, nos moldes do cientificismo positivista, procura
realizar o aspecto performático da linguagem literária, destacando o efeito afetivo da
questão representativa (Compagnon, 1999, p. 97).

A passagem acima corrobora, uma vez mais, a ideia de Genette segundo a qual os
meios, para a arte moderna e contemporânea, são tão importantes quanto os fins.
Acreditamos, então, que essa mudança no paradigma artístico, no sentido de centrar-se nos
meios de cada arte, caminha em direção ao abandono da mimesis e ao encontro da semioses.
Em outras palavras, se as diferentes artes voltam-se agora à reflexão sobre si mesmas,
promovendo discussões técnicas e metodológicas, com isso haverá trocas e intercâmbios entre
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artes distintas, vemos, contudo, que essa correspondência interartística manifesta-se, não
apenas no plano teórico, mas, principalmente, de forma prática.
A reflexão, ao longo da pesquisa interartística, que vise a analisar os caminhos
percorridos pela Literatura e pela Pintura de uma tradição mimética a um produtivo processo
de semiose, ou seja, um processo ou uma rede de significação, no qual se entrecruzam
diferentes linguagens, sujeitos, meios e materiais, deve considerar, então, as batalhas que
ambas as artes travaram em nome dessa nova situação. Se a literatura, de um lado, precisou
desvencilhar-se da forma narrativa do romance tradicional, no qual o enredo desempenhava
papel central, a pintura, por outro lado, travou uma acirrada batalha no sentido de libertar-se
dos ditames da ilusão da terceira dimensão, por meio da perspectiva. Assim,

Tendo como procedimento próprio a analogia, alguns ingredientes, tais como a


simultaneidade dos elementos e a concomitância da apresentação visual, fizeram-lhe
cristalizar os estatutos de uma arte espacial. Mas quanto mais a pintura foi se
distanciando da fotografia e se impondo como linguagem, mais foi se definindo
como uma forma de manifestação capaz de trazer na sua esfera de sentidos a
temporalidade. Isso não significa que a arte plástica clássica já não contivesse em
suas relações planares as marcas do tempo. Porém, é com a arte moderna,
descompromissada com a normatização mimética, que os filamentos do tempo vão-
se plasmar de modo mais intenso, mais eficaz, pela própria evolução de linguagem
(Gonçalves, 2004, p. 31-32).

A passagem acima pode ser tomada como uma emblemática da Arte Moderna, no
sentido em que aponta, de um lado, para a libertação mimética sofrida pela pintura, análoga
àquela empreendida pela literatura, por outro lado, a afirmação de Aguinaldo Gonçalves traz
para o plano da discussão a antiga oposição entre Literatura e Pintura baseada,
principalmente, na ideia de que esta seria uma arte do Espaço, enquanto aquela estaria
relacionada ao tempo. Tal noção norteou, durante muito tempo, as pesquisa interartística,
tendo sido, inclusive, empregada para melhor se atestar a divisão entre as artes. Todavia, ao
recorrer, não apenas às Artes Modernas, mas, também, aos próprios escritos dos artistas,
vemos que essa divisão não se sustenta mais, na medida em que a Literatura pode ser,
também, uma arte do espaço e, por outro lado, a Pintura pode relacionar-se ao Tempo. Para
melhor exemplificarmos esse estado de obliteração de limites no qual se encontra inserida a
Arte Moderna, podemos recorrer a Paul Klee que, com lucidez teórica posiciona-se diante das
teses defendidas por Lessing em Laokoon ou sobre os limites da poesia e da pintura,
principalmente quando este escritor germânico radicaliza as determinações entre tempo e
espaço na poesia e na pintura, respectivamente –, assim se pronuncia Klee:
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Todo acontecimento descansa no movimento. No Laokoon, Lessing confere suma


importância à diferença entre arte do tempo e arte do espaço. Porém, observando
melhor, isso não é mais que uma sábia ilusão. O espaço também é uma ilusão
temporal. A fator tempo intervém tão logo um ponto entre em movimento e se
converta em linha. O mesmo ocorre quando uma linha engendra, ao deslocar-se,
uma superfície. O mesmo se dá a respeito do movimento que leva das superfícies
aos espaços. Por acaso . . . um quadro nasce de modo súbito? ... O espectador
percorre de uma só vez toda a obra? (Muitas vezes sim, ah!)... No universo o
movimento se dá a tudo, previamente. A “paz na terra” é uma acidental detenção do
movimento da matéria . . . Também no espectador, a principal atividade é temporal.
O olho se constrói, pois, de modo que a cavidade ocular se sustente de trechos
sucessivos. Para ajustar-se a um novo fragmento, deve abandonar o fragmento
anterior.
A obra plástica apresenta o profano inconveniente de não se saber por onde
começar, porém o aficcionado possui a vantagem de poder variar de modo
abundante a ordem de leitura e tomar consciência, assim, da multiplicidade de suas
significações (Klee apud Gonçalves, 2004, p.32).

Assim, a nossa atitude de recorrer à reflexão teórica de Paul Klee para discutir a
divisão entre artes temporais e as artes espaciais harmoniza-se, de certa maneira, com a
análise que Michel Foucault faz deste pintor, pois, como bem assinala o filosofo francês, Klee
é um dos mais férteis representantes do princípio da conjunção entre a representação plástica
(que implica semelhança) e representação linguística (que implica diferença) dos tempos
modernos. Pensamos, então, que Paul Klee, assim como Virginia Woolf, revitaliza uma
dialética em que se inter-relacionam ato criador, obra e decodificação, de maneira a ampliar o
universo artístico dentro de um grau de compreensão não dos limites, mas da especificidade
de cada arte, atestando, dessa forma, a mobilidade entre as fronteiras interartísticas. Logo,

Conduzidas por essa idéia de mobilidade, as posições do pintor, escritas tantos anos
atrás, já subvertiam, sabiamente, argumentações de alguns críticos da atualidade que
ainda se mantêm numa postura antiquada ao tratarem tais questões. O seu
pensamento nos atinge como portas que se abrem, como espaços que podem ser
compostos na direção do novo. São aberturas que não podem ser confundidas com
facilidades; pelo contrário, abrem-se portas para o desamparo, quer do pintor quer
do poeta ou do músico, para a difícil e até mesmo dolorosa viagem da criação
(Gonçalves, 2004, p.33).

Podemos, inclusive, complementar as palavras de Aguinaldo José Gonçalves e


pontuar que, hoje, a viagem pela criação implica uma viagem pelos processos de significação
também, a arte moderna volta-se agora a um incessante trabalho de semioses, onde os signos
se intercambiam, se modificam, se permitem ver em metamorfose. Esse é, então, o percurso
que tínhamos em mente quando intitulamos essa parte de nosso trabalho “Da Mimesis à
Semioses”. Encontramo-nos, então, diante de um movimento, complexo, que

(...) diz respeito à apropriação, pela literatura, dos procedimentos inerentes a outros
sistemas de significação e atua, dessa forma, no âmago das transformações ocorridas
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na história das formas literárias. Não se trata de mera adaptação do poético ou do


ficcional para outras linguagens. Trata-se, agora, da própria alteração da linguagem
poética ou ficcional a partir do contato com sistemas sígnicos aparentemente
distantes. Em lugar da tradução de uma integridade significante para outra, o que se
tem é a própria literatura deixando-se banhar pelo universo não-verbal e, com isso,
fazendo a crítica de sua própria linguagem (Duarte, 1999, p.56).

Neste ponto, recorremos ao título de um dos ensaios de Virginia Woolf “O Leitor


Comum”, para registrar que Virginia Woolf fora uma voraz leitora dos clássicos e dos
modernos, leitora dos maiores e dos menores, soube imprimir a mesma argúcia crítica à
leitura dos outros sistemas semióticos, como da pintura, da música, do teatro e do cinema. A
escritora inglesa parece ter compreendido a profunda homologia que se estabelece entre os
vários sistemas, fazendo que convergissem para o meio expressivo de que se valeu: a
literatura. Nesse sentido, acreditamos que o contato com outros sistemas semióticos permitiu
a Virginia Woolf ampliar e modificar os procedimentos expressivos que lhe são próprios, na
produção de uma arte verbal, capaz de dialogar, o tempo todo, com as demais artes, no fluxo
ininterrupto de sua narrativa. Aqui, recorremos, ao verbete Texte, escrito por Roland Barthes
para a Encyclopédie Universalis, que de forma precisa traduz o trabalho com a linguagem
empreendido por Virginia Woolf. De acordo com Barthes, “O texto é uma prática
significante, privilegiado pela semiologia porque o trabalho por meio do qual ele é produzido
promove o reencontro exemplar entre a língua e o sujeito, eis a função do texto, teatralizar
qualquer tipo de trabalho. O que é uma prática significante?” (Barthes, 1999, p. 998)
O que gostaríamos de ressaltar, tendo a atenção voltada para a reflexão barthesiana, é o fato de o texto
ser entendido como uma prática significante, com isso, pensamos que, no processo de significação, outros
signos, para além dos signos verbais, serão colocados em ação. O que vemos, então, é que no processo de
produção textual – e a noção de texto com a qual operamos ao longo desse trabalho não está circunscrita apenas
ao texto escrito – os diferentes sistemas semióticos irão trabalhar em conjunto. Vale aqui registrar a passagem na
qual Julia Kristeva pretende discorrer acerca do papel a ser desempenhado pela Semiótica, pois, de acordo com a
crítica e teórica francesa

(...) num movimento decisivo de auto-análise, o discurso (científico) orienta-se,


hoje, para as linguagens para extrair seus (delas/dele) modelos. Em outros termos, já
que a prática social (isto é, a economia, os costumes, a arte etc.) é considerada um
sistema significante estruturado como uma linguagem, toda prática pode ser
cientificamente estudada enquanto modelo secundário em relação à língua natural,
velada sobre essa língua e modelando-a. É nesse ponto exatamente que a semiótica
se articula, ou melhor, atualmente se procura”(Kristeva, 2005, p. 31).
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Corumbá, MS, novembro 2011, n. 4, p. 51

Nesse sentido, entendemos que as artes, em geral, estarão em um nível semiótico,


que é o nível de axiomatização (da formalização) dos sistemas significantes, como sugere
Julia Kristeva.
Assim, ao revisitarmos a tradição horaciana do ut pictura poesis, pretendemos
demonstrar que muitas vezes, quando se procedia à comparação entre as artes, a balança
pendia para o lado de um dos termos da comparação. Ora a Literatura era o termo essencial da
comparação, ora a Pintura ocupava tal lugar. Simultaneamente à demonstração de como
aconteciam aquelas comparações, nós intentamos reconstruí-las por meio de um olhar
contemporâneo. Esse olhar promoveu a interlocução entre passado e presente, demonstrando
que algumas das teorias utilizadas ao longo dos estudos analógicos entre Literatura e Pintura,
permanecem atuais e servem, muitas vezes, como aporte aos contemporâneos estudos
comparativos entre as artes, como é o caso, por exemplo, do binômio Mimesis/Semiosis. Há
ainda teorias que comumente foram empregadas nas comparações entre as diferentes artes,
mas que mostram-se hoje ultrapassadas. O nosso olhar crítico pretendeu mostrar que apesar
de ultrapassadas, essas teorias marcaram, ou pelo menos, abriram o caminho para a crítica de
arte exercida nos últimos tempos.

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Corumbá, MS, novembro 2011, n. 4, p. 53

LITERATURA ESCRITA INDÍGENA: DO MITO À


HISTÓRIA OU DA HISTÓRIA AO MITO?
Érika Bergamasco Guesse1

Resumo: O presente trabalho tem por objetivo apresentar brevemente algumas considerações
acerca das relações entre História e mito, através da oposição das concepções de mundo do
homem arcaico – também chamado de “primitivo” –, e do homem “moderno” ou histórico.
Pretendemos mostrar como essas relações ocorrem no contexto da cultura indígena e como se
refletem em suas manifestações literárias contemporâneas. Para isso, apresentaremos como a
literatura escrita indígena tem se configurado no Brasil; faremos um estudo da teoria do
“eterno retorno” do autor Mircea Eliade e mostraremos como ela se relaciona aos textos
indígenas.

Palavras-chave: História; mito; literatura indígena.

WRITTEN INDIGENOUS LITERATURE: FROM MYTH


TO HISTORY OR FROM HISTORY TO MYTH?

Abstract: This paper aims to briefly present some considerations about the relationship
between history and myth, through the opposition of views on the world of archaic man - also
called "primitive" - and "modern" man, or historical. We intend to show how these
relationships occur in the context of indigenous culture and how it is reflected in its
manifestations of contemporary literature. For this, we will present how the indigenous writen
literature has been set in Brazil; we will study the theory of "eternal return" of the author
Mircea Eliade and show how it relates to indigenous texts.

Keywords: History; myth; indigenous literature.

INTRODUÇÃO:

Depois de muito refletir acerca das envolventes e complexas relações entre Literatura
e História, decidi me aventurar a pensar como ocorrem as relações entre a História e o mito,
principalmente no contexto da cultura indígena e de seu “movimento literário”, que tem se
delineado de forma ainda acanhada, mas ao mesmo tempo firme, no cenário cultural e
literário brasileiros.

1
Aluna regular do Programa de Pós-Graduação em Estudos Literários (Doutorado) da Faculdade de Ciências e
Letras – UNESP – Campus Araraquara/SP, sob orientação da Profª Drª Karin Volobuef; bolsista FAPESP. E-
mail: kasinhaguesse@hotmail.com.
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Corumbá, MS, novembro 2011, n. 4, p. 54

Sendo assim, o presente trabalho está organizado de forma a desenvolver três tópicos.
Tendo em vista que a literatura escrita indígena não é tema recorrente nos meios acadêmicos,
principalmente na Região Sudeste do Brasil – da qual fazemos parte –, o primeiro tópico
apresentará um panorama geral dessa escrita indígena, mostrando de que modo esse processo
tem se configurado em nosso país. Essa contextualização faz-se necessária para que possamos
entender, posteriormente, como a relação entre História/ mito se reflete nesses textos. O
segundo tópico abordará diretamente as relações existentes entre a História e o mito, tendo
como base teórica os estudos do autor Mircea Eliade, que opõe as concepções de mundo do
homem primitivo/ mítico às do homem moderno/ histórico. Por fim, o último tópico tratará da
forma como podemos vislumbrar essas concepções opostas e essas relações na cultura
indígena, principalmente em suas manifestações literárias contemporâneas.
Como essas reflexões, pesquisas e estudos estão, para mim, ainda numa fase inicial, o
que apresentarei neste trabalho são, por enquanto, apenas impressões pessoais, baseadas em
leituras e interpretação de teorias. Os estudos voltados à escrita/ literatura indígena e sua
ligação com as teorias literárias “oficiais” e solidificadas ainda são veio acadêmico pouco
explorado; por isso, aqueles que se dispõem a se dedicar a essa linha de pesquisa são, antes de
tudo, experimentadores e desbravadores de um longo caminho a ser trilhado.

1. DA ESCRITA À LITERATURA: OS ÍNDIOS AUTORES

De acordo com Souza (2003), a constituição brasileira de 1988 reconheceu


oficialmente a existência de línguas indígenas no Brasil e, como conseqüência disso, a partir
da década de 90, escolas indígenas diferenciadas começaram a ser criadas em nosso país.
Com a criação dessas escolas, algumas personagens, antes inexistentes, começaram a atuar no
cenário educacional brasileiro. Professores indígenas passaram a ser formados e a lecionar
nessas escolas para um público discente composto em sua grande maioria (quando não em sua
totalidade) por indígenas. Dessa maneira, um material didático também diferenciado se fez
necessário. Nesse contexto, além de aprenderem ou aprimorarem o domínio do língua
portuguesa escrita, muitas tribos indígenas, anteriormente ágrafas, intensificaram o processo
de construção de sistemas alfabéticos escritos de suas próprias línguas de origem.
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Corumbá, MS, novembro 2011, n. 4, p. 55

Alguns estudiosos definem a escrita como parte do comportamento


comunicativo humano de transmitir e trocar informações; ou seja, a escrita
pode ser vista como uma forma de interação pela qual uma ação das mãos
(com ou sem instrumento) deixa traços numa superfície qualquer; nesse
sentido, a escrita pode ser concebida como uma forma não apenas alfabética
para representar idéias, valores ou eventos. Entendido assim, a escrita
sempre esteve presente nas culturas indígenas no Brasil na forma de
grafismos feitos em cerâmica, tecidos, utensílios de madeira, cestaria e
tatuagens. Por outro lado, a escrita propriamente alfabética, registrando no
papel a fala e o som, foi introduzida no Brasil pela colonização européia, e
desde o século XVI está presente de formas variadas nas comunidades
indígenas; porém, foi apenas nas duas últimas décadas que surgiu o que
pode ser chamado de fenômeno da escrita indígena no sentido do
aparecimento de um conjunto de textos alfabéticos escritos por autores
indígenas (Souza, s.d., on-line).

No Brasil, existem cerca de 1500 escolas indígenas diferenciadas e também algo em


torno de 3200 professores índios, segundo Almeida e Queiroz (2004, p. 196). São esses
professores que assumiram primordialmente a confecção de seus próprios materiais didáticos,
fazendo com que suas histórias, cantos, mitos e poesias passassem do âmbito da oralidade
para o âmbito da escrita. Naturalmente, vale ressaltar que, ao escreverem suas narrativas, os
indígenas deixam de lado toda a complexidade do processo performativo de narrar oralmente,
mas outras características da oralidade, como a repetição, a condensação dos enredos, as
expressões que marcam o início e fim das histórias, a informalidade e coloquialidade da
linguagem ainda são preservadas.
Antes, toda contribuição cultural indígena era coletada, selecionada, modificada e
registrada pelos brancos; certamente, essa intermediação fazia com que muito da
originalidade das narrativas fosse perdida. A figura do índio era vista apenas como
personagem das histórias dos brancos ou os brancos se posicionavam como “donos”/ autores
das histórias dos índios. O que tem acontecido nas últimas décadas é que os próprios
indígenas têm assumido a voz narrativa, tornando-se sujeitos, autores/ criadores de seu legado
cultural escrito.
Nesse processo de escrita indígena, vários são os envolvidos. Os narradores, na grande
maioria dos casos, são os índios mais velhos – considerados mais sábios –, que narram as
histórias de seus antepassados aos indígenas mais novos, que assumem, então, o papel de
coletores (função essa ocupada anteriormente por brancos, principalmente antropólogos). O
papel do escritor, diferentemente da tradição ocidental, não é de apenas um indivíduo, mas
sim de um grupo – geralmente de professores – que, junto dos brancos ou não, discutem a
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Corumbá, MS, novembro 2011, n. 4, p. 56

escrita das histórias e compõem em conjunto os textos. Já os processos de editoração e


publicação estão designados aos brancos e têm o apoio financeiro de instituições
governamentais, já que os indígenas não possuem meios financeiros ou práticos/
instrumentais para assumirem completamente suas produções escritas. Por fim, os leitores são
compostos em maior escala pelos indígenas, principalmente os alunos das escolas
diferenciadas, mas também em menor escala pelos brancos.
As produções indígenas são escritas tanto em suas línguas de origem quanto em língua
portuguesa. Há livros que utilizam apenas a língua indígena; outros, apenas o português;
outros ainda que apresentam as narrativas na língua indígena e traduzidas para o português, e,
por fim, aqueles que apresentam duas versões (e não traduções) das histórias, uma na língua
indígena e outra em língua portuguesa. O que podemos verificar nesse processo é que a língua
do branco, utilizada anteriormente como instrumento de dominação e manipulação de saberes,
passa agora para o domínio escrito do índio. O que antes era uma “arma” contra passa agora a
ser uma “arma” favorável ao indígena, uma ferramenta que possibilita sua expressão
imaginativa, comunicativa e também um instrumento político para a divulgação e valorização
de sua cultura, seus costumes e, acima de tudo, de seus direitos.

A escrita é uma técnica. É preciso dominar esta técnica com perfeição para
poder utilizá-la a favor da gente indígena. Técnica não é negação do que se
é. Ao contrário, é afirmação de competência. É demonstração de capacidade
de transformar a memória em identidade, pois ela reafirma o Ser na medida
em que precisa adentrar o universo mítico para dar-se a conhecer o outro.
[...] Há um fio tênue entre oralidade e escrita, disso não se duvida. Alguns
querem transformar este fio numa ruptura. Prefiro pensar numa
complementação. Não se pode achar que a memória não se atualiza. É
preciso notar que ela – a memória – está buscando dominar novas
tecnologias para se manter viva. A escrita é uma dessas técnicas...
(Munduruku, 2008).

O que gostaria de salientar é que essa produção escrita indígena tem se configurado
como um novo movimento literário. Mesmo que esse processo venha ocorrendo ainda de
forma tímida e pouco visível, vários estudiosos acadêmicos têm se dedicado a analisar e
compreender essa recente expressão literária, como as professoras Maria Inês de Almeida e
Sônia Queiroz, ambas docentes e pesquisadoras da Universidade Federal de Minas Gerais.
Veremos, a seguir, algumas de suas considerações sobre a escrita/ literatura indígena no
Brasil.
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Corumbá, MS, novembro 2011, n. 4, p. 57

Assistimos atualmente a uma espécie de eclosão do que nomeio a priori uma


literatura indígena no Brasil, que, a meu ver, configura um movimento
literário, na medida em que pode ser observado nos seus aspectos coerentes,
como um grande texto que se dá a ler. Seus escritores representam uma
população de cerca de 350.000 indivíduos, falantes de aproximadamente 180
línguas diferentes, além do português, e habitam desde a fronteira brasileira
com a Venezuela até a fronteira com o Uruguai (Almeida e Queiroz, 2004, p.
195).

As autoras afirmam que as produções escritas indígenas brasileiras concentram-se na


Região Norte, havendo, assim, um deslocamento do centro; devido a isso, os próprios índios
denominam seus livros de “os livros da floresta”. Esse produto final – o livro – é resultado de
um processo de editoração e aí estaria sua pertinência para os estudos literários, a partir do
momento em que se assume um conceito mais pragmático de literatura. Para as autoras “os
textos indígenas despolarizam, até quase a dissolução, os parâmetros canônicos, deixando a
descoberto a teoria literária baseada na tradição escrita” (Almeida e Queiroz, 2004, p. 198).
Nesses textos podem ser percebidos os marcadores da tradição oral de cada povo e também a
potência do diálogo formal com a contemporaneidade artística.

A representação, o estilo, a escritura, esses mesmos conceitos que


permearam toda a existência da literatura no Ocidente, ainda que
intensamente questionados pelas teorias que regem os estudos literários na
contemporaneidade, estão na base de uma investigação que pretende trazer
para o campo da literatura uma produção que tem sido normalmente objeto
de estudo das ciências sociais (Almeida e Queiroz, 2004, p. 203).

A grande novidade das comunidades indígenas reinseridas na cultura brasileira é que


agora é possível colocar sua palavra em circulação independentemente de sua presença
corporal. Até então, o que o vinha ocorrendo com a literatura indígena era apenas um
processo de folclorização (Almeida e Queiroz, 2004, p. 205), com o intuito do ocultá-la. O
uso dos mitos indígenas nas escolas regulares é um exemplo disso; suas entidades míticas são
vistas como personagens folclóricas, desespiritualizadas. A partir do momento em que os
próprios índios escrevem seus mitos como literatura, essas entidades se reespiritualizam.
Segundo as autoras, essa nova prática escritural indígena se reveste de um caráter
literário na medida em que vai sendo publicada, lida, transitando de um público a outro, de
aldeia em aldeia, de cidade em cidade. Dessa maneira, os índios estariam reivindicando, hoje,
seu espaço na sociedade brasileira também sob o aspecto literário, já que, historicamente, toda
a matéria literária indígena teria sido expropriada por outros discursos – como veremos mais
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Corumbá, MS, novembro 2011, n. 4, p. 58

adiante –, não permitindo que a prática de sua literatura se configurasse e solidificasse


anteriormente (Almeida e Queiroz, 2004, p. 209).

2. DO MITO À HISTÓRIA: A TEORIA DO “ETERNO RETORNO”

Antes de pensarmos nas relações entre História e mito na literatura escrita indígena,
apresentaremos algumas considerações do autor Mircea Eliade, contidas em sua célebre obra
O Mito do Eterno Retorno, de 1969. Esses estudos servirão como base para as reflexões que
desenvolveremos no próximo tópico.
Já na introdução da obra, Eliade salienta que pretende investigar as concepções das
sociedades primitivas que não aceitam o tempo histórico, sem regulamentação arquetípica,
preferindo retomar o tempo mítico das origens.
Segundo o autor (1984, p. 19), o homem arcaico só conhece e reconhece atos de
comportamento que já foram feitos antes, num tempo primordial, por um outro que não era
um homem comum – deuses, heróis ou antepassados. Assim, a vida do homem primitivo é
uma constante repetição dos gestos fundadores, ou seja, a realidade sempre retoma uma ação
primordial, constituindo-se como a imitação de um arquétipo celeste. Nesse sentido, o
símbolo, o mito e o rito exprimem esse complexo sistema da realidade das coisas.
Desta maneira, todo o mundo que nos rodeia, com a presença e as obras do homem,
tem um modelo celeste, extraterrestre; o mundo – as cidades, os templos, as casas, as
montanhas, os rios, os campos... – é, portanto, uma réplica, uma realidade duplicada, baseada
num modelo arquetípico. Já os territórios desabitados, inexplorados, como as regiões
desérticas, por exemplo, são marcados pelo caos. São necessárias a conquista e a posse,
imitações do ato mítico da criação, para que esses lugares se tornem reais e sejam
transformados de caos em cosmos (Eliade, 1984, p. 25).
Outra concepção importante para o homem arcaico é o simbolismo do “Centro”.
Segundo o autor, o “inferno, o centro da terra e a ‘porta’ do céu encontram-se portanto no
mesmo eixo, e é esse eixo que serve de passagem de uma região cósmica para outra” (1984, p.
27). Neste contexto, o Céu e a Terra encontrar-se-iam no centro do Mundo, onde estaria a
Montanha Sagrada. Por extensão, qualquer cidade, templo ou residência sagrada ocuparia o
lugar da Montanha e estaria, por sua vez, no centro do Mundo, fazendo a ligação entre Céu,
Terra e Inferno. Vale salientar que esse simbolismo sobreviveu nas concepções ocidentais até
ao limiar dos tempos modernos; templos que representam a essência do Universo e são
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Corumbá, MS, novembro 2011, n. 4, p. 59

considerados o centro do Mundo são freqüentes na arquitetura sagrada da Europa cristã


(Eliade, 1984, p. 32).
Ao construir seus templos, moradias e cidades nos “centros do mundo”, o homem
repete o ato cosmogônico, ou seja, a passagem do Caos ao Cosmos. Desta forma, o homem
arcaico não só retoma o ritual realizado pela primeira vez por um deus, um antepassado ou um
herói, como também o tempo sagrado do princípio em que esse ritual aconteceu. (Eliade,
1984, p. 35). Podemos perceber que, para os primitivos, não só o comportamento ou as
construções do mundo tem um modelo extra-humano, o ritual também o tem. Assim,
posteriormente, do ritual surge o mito – que o justifica – enquanto forma; no entanto, “seu
conteúdo é arcaico e refere-se a sacramentos, isto é, a actos que pressupõem uma realidade
absoluta, extra-humana (Eliade, 1984, p. 42)”.
Deve ficar claro que, para as sociedades primitivas, todas as atividades com uma
finalidade definida, qualquer ação com um significado determinado, participam do sagrado e
constituem um ritual, já que possuem um modelo exemplar. Dentre essas atividades de
significado mítico estão a dança, as guerras, a cerimônia da sagração de um rei, as
construções, a caça, a pesca, a sexualidade, a agricultura. Todas essas ações foram reveladas
por um deus ou herói no tempo da origem e são apenas repetidas até ao infinito pelos homens
(Eliade, 1984, p. 47). Nas sociedades modernas, essas ações passaram por um longo processo
de dessacralização e se transformaram em atividades profanas, ou seja, destituídas de valor
arquetípico.
Diz Eliade sobre a concepção ontológica primitiva:

[...] um objecto ou uma acção só se tornam reais na medida em que imitam


ou repelem um arquétipo. Assim, a realidade só é atingida pela repetição
ou pela participação; tudo o que não possui um modelo exemplar é
“desprovido de sentido”, isto é, não possui realidade. Os homens teriam
então tendência para se tornarem arquetípicos e paradigmáticos. Esta
tendência pode parecer paradoxal, no sentido de que o homem das culturas
tradicionais só se reconhece como real na medida em que deixa de ser ele
próprio (para um observador moderno) e se contenta em imitar e repetir os
gestos de um outro. Por outras palavras, ele só se reconhece como real, isto
é, como “verdadeiramente ele próprio”, na medida em que deixa
precisamente de o ser. (Eliade, 1984, p. 49).

A partir dessa concepção, vamos refletir o que acontece em relação ao tempo. Quando
o homem arcaico repete um arquétipo, o tempo profano, cronológico, histórico é abolido e
aquele que imita o ato exemplar é transportado ao tempo mítico em que esse gesto foi
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Corumbá, MS, novembro 2011, n. 4, p. 60

revelado pela primeira vez. Essa abolição do tempo profano ocorre nos momentos dos rituais
ou das ações consideradas sagradas (alimentação, caça, pesca, guerra, dança,...). O tempo
restante é desprovido do significado primordial. Por isso, podemos dizer, de acordo com
afirmações de Eliade (1984, p. 51), que o homem primitivo não aceita bem a história e se
esforça para aboli-la periodicamente.
Neste momento de nossa reflexão, o que concluímos previamente é que uma visão
mítica do mundo e uma visão histórica se relacionam apenas por oposição. No entanto, outras
relações nos são apresentadas nos estudos de Eliade. Segundo ele (1984, p. 52), quando a
tradição ainda faz parte da concepção de mundo dos homens, os grandes soberanos da
História consideram-se imitadores dos heróis primordiais; assim ocorreria o processo de
transfiguração da História em mito, através do qual personagens históricas se transfigurariam
em personagens míticas. Neste caso estaríamos diante da “concepção de uma elite que
interpreta a história através de um mito” (Eliade, 1984, p. 53).
O que o autor defende é que uma personagem histórica só se mantém “viva” na
memória popular e inspira a imaginação poética na medida em que se aproxima e se identifica
com um modelo mítico; a personagem histórica se metamorfoseia em herói mítico. Sendo
assim, a memória coletiva seria a-histórica:

[...] a recordação de um acontecimento histórico ou de um personagem


autêntico não perdura por mais de dois ou três séculos na memória popular.
Isso deve-se ao facto de a memória popular ter dificuldade em reter
acontecimentos “individuais” e figuras “autênticas”. Ela recorre a outras
estruturas: categorias em vez de acontecimentos, arquétipos em vez de
personagens históricas. A personagem histórica é assimilada ao modelo
mítico (herói, etc) e o acontecimento é integrado na categoria das ações
míticas (luta contra um monstro, combate entre irmãos, etc.). Mesmo
quando alguns poemas épicos conservam o que se pode chamar “verdade
histórica”, essa “verdade” não diz quase nunca respeito a personagens e
acontecimentos determinados, mas a instituições, costumes, paisagens.
(Eliade, 1984, p. 58).

Vemos, então, que não apenas a personagem histórica se transfigura em personagem


mítica, mas um acontecimento histórico também pode se transformar em um mito; o
acontecimento é despojado de sua verdade histórica, pois o fato era, em si, insuficiente, e
transforma-se em lenda. O mito torna-se mais verdadeiro ao conferir à história um sentido
mais rico e mais profundo.
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Para a maioria das sociedades primitivas, a festa do Ano Novo corresponde à


comemoração da nova colheita, que é proclamada comestível e inofensiva para toda a
comunidade; equivale ao fim de um período de tempo e ao início de um novo período, com a
renovação periódica da vida e do mundo. Essa renovação, por sua vez, implica um novo
nascimento e a abolição do ano passado e do tempo decorrido (Eliade, 1984, p. 68-69). O Ano
Novo é considerado uma repetição da cosmogonia de forma mais evidente para os povos com
os quais começa a história propriamente dita (Babilônios, Egípcios, Hebreus e Iranianos),
restaurando-se, ainda que momentaneamente, o tempo mítico e primordial, o tempo “puro” do
instante da Criação.

Dir-se-ia que esses povos, conscientes de serem os primeiros a construir a


“história”, registraram os seus próprios actos para uso dos seus sucessores
(não, sem terem, no entanto, procedido a transfigurações inevitáveis nas
categorias e nos arquétipos [...] Esses mesmos povos parecem, de resto, ter
experimentado de um modo mais profundo a necessidade de se renovarem
periodicamente, abolindo o tempo passado e reactualizando a cosmogonia.
(Eliade, 1984, p. 89).

Para o homem arcaico, que vive no mundo ideal dos arquétipos, no qual o tempo
nunca revela a irreversibilidade histórica dos acontecimentos, a renovação periódica da vida
se dá pela expulsão dos males e pela confissão dos pecados. Essa necessidade de regeneração
periódica prova que, para essas sociedades primitivas, a memória histórica, desprovida de um
modelo arquetípico, é insuportável (Eliade, 1984, p. 90). Por isso, para obter a renovação do
tempo, esses povos primitivos conheciam e praticavam outros métodos, como os ritos de
construção, o início de um novo reinado, a consumação de um casamento, o nascimento de
uma criança.
As novas construções, por exemplo, reatualizavam também a cosmogonia. Todas as
espécies de construção eram reproduções do ato primordial da criação do mundo. O homem
volta ao momento do princípio para suprir sua necessidade de se regenerar; o tempo passado é
anulado e a história é abolida através do retorno contínuo ao tempo mítico da origem. Os
rituais de cura também envolvem a repetição da cosmogonia na medida em que requerem a
recitação do mito cosmogônico.
Como essência da concepção de mundo do homem arcaico está, portanto, a
necessidade de se renovar periodicamente anulando o tempo (Eliade, 1984, p. 100). Podemos
verificar uma recusa desse homem primitivo de se aceitar como “ser histórico”, de se
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Revista do Curso de Letras do Câmpus do Pantanal – UFMS,
Corumbá, MS, novembro 2011, n. 4, p. 62

enquadrar numa visão de mundo que tome como base o tempo concreto dos acontecimentos
invulgares (sem modelo arquetípico). Esse homem anula o tempo, repetindo constantemente
os atos míticos e voltando periodicamente ao tempo mítico desses atos e vivendo, assim, num
presente contínuo.
Essa concepção cíclica em relação ao tempo se aplica também para o desaparecimento
e reaparecimento da humanidade. Acredita-se que as catástrofes nunca são definitivas e que o
homem precisa da morte para sua regeneração; assim, nada ocorre por conta do acaso –
profano –, tudo tem uma razão sagrada de ser.

Por isso, é mais provável que o desejo que o homem das sociedades
tradicionais tem de recusar a “história” e de se confirmar a uma imitação
constante dos arquétipos revele a sua sede do real e o seu pavor de se
“perder” ao deixar-se invadir pela insignificância da existência profana.
Pouco importa que as fórmulas e as imagens através das quais o “primitivo”
exprime a realidade nos pareçam ingênuas ou até ridículas. É o sentido
profundo do comportamento primitivo que é revelador: esse comportamento
rege-se pela crença numa realidade absoluta que se opõe ao mundo profano
das “irrealidades”; em última instância, aquele não é verdadeiramente um
“mundo”, mas o “irreal” por excelência, o não-criado, o não-existente, o
nada. (Eliade, 1984, p. 106).

Mesmo recusando a História, o homem arcaico não pode evitá-la, por isso tem que
conviver com catástrofes cósmicas, derrotas em guerras, injustiças sociais, desgraças pessoais.
Como encara e suporta então esses sofrimentos inevitáveis? Acreditando que cada sofrimento
tem um sentido, fosse qual fosse a sua causa e natureza (Eliade, 1984, p. 110).
Os povos primitivos acreditam que os sofrimentos sejam ação mágica de um inimigo,
resultado da infração a um tabu, expressão da cólera de um deus ou então vontade do Ser
Supremo. Sendo assim, os sofrimentos são compreensíveis e aceitáveis, porque não são
absurdos ou obra do acaso e porque aquele que sofre sabe que o sofrimento não é definitivo;
depois dele virão os “bons tempos”.
Os hebreus acreditavam que qualquer calamidade histórica que os afetava era um
castigo enviado por Deus (Iavé) para os reconduzir ao bom caminho e redobrar sua fé, ou
seja, os acontecimentos passaram a ganhar um significado religioso. É neste momento que,
pela primeira vez, os profetas valorizam a história, ultrapassando a visão tradicional do ciclo e
da eterna repetição, descobrindo um tempo com sentido único. Certamente, essa nova
concepção não foi aceita prontamente pelos judeus e as concepções antigas ainda se
mantiveram por bastante tempo. No entanto, podemos dizer que os Hebreus foram os
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Revista do Curso de Letras do Câmpus do Pantanal – UFMS,
Corumbá, MS, novembro 2011, n. 4, p. 63

primeiros a verem a História como epifania de Deus e a compreender que os acontecimentos


históricos têm um valor em si mesmos, na medida em que são determinados pela vontade
divina (Eliade, 1984, p. 118).
Enquanto para a concepção arcaica as revelações acontecem num tempo mítico, no
instante extratemporal do princípio, momento no qual surgem os arquétipos, a revelação
monoteísta ocorre no tempo da duração histórica. Assim, os acontecimentos históricos podem
ser suportados porque expressam a vontade de Iavé e porque são necessários para a salvação
do povo eleito. A História não é mais um ciclo que se repete infinitamente, mas sim uma
seqüência de teofanias positivas ou negativas. Por outro lado,

As crenças messiânicas numa regeneração final do mundo revelam também


uma atitude anti-histórica. Como não pode continuar a ignorar ou a abolir
periodicamente a história, o Hebreu aceita-a na esperança de que ela
acabará definitivamente num momento mais ou menos longínquo. A
irreversibilidade dos acontecimentos históricos e do tempo é compensada
pela limitação da história no tempo. (Eliade, 1984, p. 125).

Sendo assim, a concepção arcaica de regeneração periódica da Criação é substituída


pela concepção moderna de uma única regeneração que acontecerá no futuro. De qualquer
forma, tanto o mito da eterna repetição, quanto o mito do fim do mundo revela uma clara
atitude anti-histórica e um posicionamento de defesa em relação à História. Para suportar,
então, a história, o homem acredita que a humanidade possuía um destino histórico, do qual
não podia escapar, já que tudo era necessário, inevitável e exigido pelo ritmo cósmico ou pela
vontade de Deus.
O que devemos ressaltar é que o homem moderno se quer histórico, já que o mundo
moderno não foi ainda conquistado totalmente pelo “historicismo”. As duas concepções de
mundo ainda caminham paralelas (Eliade, 1984, p. 154). Ainda que o cristianismo tivesse se
oposto fortemente à concepção tradicional/ cíclica, ela acabou penetrando a filosofia cristã.
As teorias dos ciclos e das influências astrais sobre o destino do homem e sobre os
acontecimentos históricos foram parcialmente adotadas por alguns padres e escritores
eclesiásticos.
Por outro lado, há os que professam a teoria do progresso linear da história. Diz o
autor (1984, p. 158) que, nos séculos XVII, XVIII e XIX é essa última vertente teórica que
mais se afirma. Apenas a partir do século XX é que as reações contra a linearidade histórica e
o interesse pela teoria dos ciclos renascem. Por exemplo, o mito do eterno retorno é retomado
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Revista do Curso de Letras do Câmpus do Pantanal – UFMS,
Corumbá, MS, novembro 2011, n. 4, p. 64

filosoficamente por Nietzsche. Poderíamos dizer até mesmo que a contemporaneidade


revaloriza as teorias cíclicas, reformulando mitos arcaicos, para tentar encontrar um
significado e uma justificação trans-histórica para os acontecimentos históricos (Eliade, 1984,
p. 160).
O autor revisita as soluções historicistas de Hegel e Marx. Para o primeiro, “o
acontecimento histórico era a manifestação do Espírito Universal (Eliade, 1984, p. 161)”.
Assim, retomamos a concepção dos profetas hebreus de que a história encerra um significado
em si mesma porque reflete uma manifestação da vontade de um ser superior; o destino de um
povo ainda continha um significado trans-histórico. Já para Marx, a história é a epifania das
lutas de classes. Ele acredita que o mal que existe nos acontecimentos históricos é um mal
necessário que desencadeará a salvação final e definitiva, acabando para sempre com o “terror
da história”. “Portanto, a filosofia marxista da história conduz à Idade do Ouro das
escatologias arcaicas (Eliade, 1984, p. 161)”.
A teoria marxista, de alguma maneira, nos apresenta uma justificativa para
suportarmos o “terror da história”, mas, fora dela, como fazê-lo? Se pensarmos que o
acontecimento histórico encontra seu significado último em sua própria realização, esse
“terror” se torna cada vez mais difícil de ser suportado. Como aceitar guerras, catástrofes,
massacres, injustiças e desgraças sem nenhum significado trans-histórico? Apenas como um
jogo econômico, social e político? No passado, o homem acreditava que tudo isso era castigo
de Deus ou então que não tinha valor em si mesmo; era apenas a repetição dos atos
arquetípicos. Foram essas crenças que o ajudaram a suportar e isso a posição historicista ainda
não consegue dar ao homem moderno (Eliade, 1984, p. 164).
Por essas razões, muitos dos que vivem na contemporaneidade, na qual a concepção
histórica do mundo prevalece, ainda preferem retomar o mito da periodicidade cíclica e do
eterno retorno, refletindo uma resistência à história e uma revolta contra o tempo histórico,
tentando reintegrá-lo no tempo cósmico, infinito e cíclico.

3. DA HISTÓRIA AO MITO: CULTURA E LITERATURA INDÍGENAS

Depois de apresentarmos uma breve contextualização do processo da escrita/ literatura


indígena que se configura no Brasil e das relações entre História e mito, baseadas na teoria do
estudioso Mircea Eliade, que opõe as concepções de mundo do homem arcaico e do homem
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“moderno”, tentarei mostrar de que modo vejo essas duas reflexões se relacionarem. Para
isso, devemos considerar que as comunidades indígenas brasileiras 1 pertencem ao grupo que
Eliade denomina de “povos primitivos”, portanto suas concepções de mundo seriam
pertinentes àquelas desenvolvidas no tópico anterior como sendo características desses povos
arcaicos. E, nós, “os brancos civilizados”, somos pertencentes ao grupo dos “homens
modernos ou históricos” e possuiríamos, assim, suas respectivas peculiaridades – também
apresentadas no tópico anterior.
Sendo assim, poderíamos dizer que o que ocorre no cenário brasileiro é que o homem
arcaico está em contato com o homem moderno desde o descobrimento. No entanto, não
podemos afirmar que essa relação tenha sido admiravelmente harmônica. Pelo contrário, o
que aconteceu foi que o homem moderno, com sua concepção de mundo aparentemente
histórica, não soube assimilar, aceitar ou mesmo respeitar a visão de mundo mítica do
indígena/ primitivo.
No início, os indígenas eram a grande maioria, mas mesmo assim sua concepção de
mundo não prevaleceu, já que o homem branco/ moderno tinha a força da arma de fogo, da
religião, do idioma. Desta forma, mesmo que o índio tenha contribuído substancialmente para
a formação da cultura, da língua, enfim, para a formação da pátria brasileira, essa contribuição
não foi devidamente valorizada justamente pelo fato dos indígenas serem considerados pelos
brancos civilizados como gente inferior, cuja forma de pensar o mundo é atrasada e, de certo
modo, inconcebível para a sociedade moderna.

Os saberes tradicionais indígenas são normalmente tidos como primitivos2 e


selvagens, identificados a um estado de sociedade oposta às sociedades
modernas, sendo estas entendidas como as únicas detentoras dos meios de
progresso, portanto superiores. Nessa lógica a sociedade indígena deveria
ser superada. É precisamente dentro desse consenso depreciativo que os
colonizadores e os colonizados contribuem para a manutenção da
dominação colonial. (Almeida e Queiroz, 2004, p. 230).

Assim, o que prevaleceu foi a maneira de pensar – que se supõe histórica, linear e
moderna – do homem branco, ficando os povos indígenas entregues à marginalização e
exclusão. Aqui, gostaria de retomar a estudiosa Linda Hutcheon que, em seu renomado texto

1
Acreditamos que essas considerações sejam pertinentes às comunidades indígenas em geral, no entanto, neste
trabalho as que nos interessam como objeto de estudo são especificamente as comunidades indígenas
brasileiras.
2
Deve ficar claro que, aqui, as autoras fazem uso do vocábulo “primitivo” com intenção pejorativa,
diferentemente do que faz Mircea Eliade ao classificar uma sociedade como “primitiva”.
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“Poética do Pós Modernismo” (1991), propõe o seguinte questionamento: De quem é a


história que sobrevive? Neste caso, não há dúvida nenhuma de que aparentemente é a história
dos brancos, até porque quem contou a história até agora foi o branco. Ele foi o dono da
história; da sua história e da história do índio também.
Assim, por muito tempo, o índio só foi enxergado e representado para a sociedade
civilizada através do olhar do próprio branco. Isso se deu também nas expressões literárias.
Na literatura considerada oficialmente brasileira, o índio nos foi apresentado sempre como
personagem, caracterizado através do julgamento branco que ora o idealizava, ora o
inferiorizava em relação ao português, ora utilizava-o como matriz heróica, ora transformava-
o em verdadeiro anti-herói.
“Não há história sem discurso”, diz Almeida e Queiroz (2004, p. 203). O branco
dominava o discurso e, conseqüentemente, a história; a história do vencedor é a versão que
sempre foi contada. O resultado disso foi a dizimação de milhares de indígenas ao longo dos
últimos cinco séculos e os que restaram deveriam se contentar com as migalhas de reservas
territoriais, com as representações de algumas de suas lendas, escritas por brancos e lidas nas
escolas como folclore e com um dia do ano para chamarem de seu.
Nas aldeias, porém, resistência, luta, persistência para tentar manter uma concepção de
mundo, um modo de vida, considerado menor. Durante todo esse tempo, apesar de sofrerem
perdas irreparáveis e de assimilarem alguns hábitos e crenças brancas, a maioria dos indígenas
brasileiros tenta resistir e fazer sobreviver sua própria forma de enxergar a vida, sua forma
arcaica e primitiva; diferente, mas de modo algum inferior.
Os direitos garantidos aos indígenas pela Constituição de 1988, que reconheceu suas
línguas como oficiais, foram resultados dessa luta. O índio percebeu que a única maneira de
preservar sua visão de mundo “primitiva”/ mítica era, paradoxalmente, inseri-la na visão de
mundo moderna/ histórica. O índio só se faria respeitar e sobreviver sua visão cíclica (e,
portanto, com um caráter a-histórico) da vida se aprendesse a dominar a discurso histórico do
branco.
Quando se percebeu diante da realidade das escolas diferenciadas, o professor
indígena viu que a primeira maneira – e talvez a mais eficiente – de dominar o discurso e
“fazer sua própria história” era ter o domínio da escrita para transformá-la de instrumento de
dominação e destruição de seus costumes em instrumento de divulgação e transmissão de suas
crenças, tradições, concepções. Na verdade, “A escrita sempre esteve presente no contato
entre índios e brancos. Trata-se agora de um processo de recuperação, ou melhor, apropriação
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Corumbá, MS, novembro 2011, n. 4, p. 67

de seus meios” (Almeida e Queiroz, 2004, P. 211). Foi então que o processo de escrita/
literatura indígena no Brasil se iniciou e vem se desenvolvendo como apresentamos no
primeiro tópico de nosso trabalho.

Ao mesmo tempo a recente prática da escrita e sua correlata necessária, a


criação literária, por parte dos indígenas brasileiros, podem ser tomadas
como a própria historicização da questão indígena. É reinvestigando seu
passado que os povos escapam da ambigüidade traumática dos recalques e
rejeições inconscientes. A memória histórica, nos locais onde a história foi e
continua a ser um combate sem testemunhas, arma a coletividade de forças
e decisões novas e lhe permite ultrapassar os desejos inconscientes da
estruturação imposta, autorizando a refletir concretamente sobre a
necessidade ou não de determinadas estruturas... (Almeida e Queiroz, 2004,
p. 203).

O que fez com que, historicamente, a voz escritural indígena não fosse ouvida até
pouco tempo foi o fato de sua matéria literária ser impedida de configurar uma literatura.
Todo o material que poderia constituir uma literatura indígena, se fosse escrito por um índio,
foi – indevidamente – apropriado pelo discurso do branco, catequista, lingüista, etnólogo,
antropólogo, agente nas aldeias (Almeida e Queiroz, 2004, p. 208-209) e transformado em
folclore, isto é, em literatura em suspensão (Almeida e Queiroz, 2004, p. 205).

O pensamento indígena, que aqui se confunde com formas de ser, de ver, de


dizer, de ouvir, de fazer, é o novo mito que os índios colocam em
circulação, a partir da situação de ter que escrever para garantir a
continuidade de suas gerações. Ter uma língua documentada não é ter um
corpo morto, mas uma história, um discurso, uma poética. A primeira
palavra coletiva dessa poética acaba de ser pronunciada. A escrita da
História, pela mão dos índios, embaralha-se com a escrita literária...
(Almeida e Queiroz, 2004, P. 211).

Ou seja, um povo cuja concepção de mundo é primitiva, arcaica e, portanto, mítica,


baseada na repetição de arquétipos, se vê em contato com outro povo cuja concepção de
mundo se quer linear e histórica; esse contato implica disputa de espaços – físico, cultural,
religioso, lingüístico, e agora também literário. Por um longo período, o branco vence a
disputa; então, para não ver sucumbir sua forma de pensar, de conceber a vida, o índio
percebe, segundo uma lógica paradoxal, que precisa fazer uso dos instrumentos do próprio
branco. E um desses instrumentos é a escrita, que viabiliza o domínio do discurso. Ao
escrever, o índio se assume como sujeito de sua História e de suas histórias/ narrativas; passa
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a ser apresentado à sociedade civilizada a partir de seu próprio olhar de índio e através da
apropriação dos meios modernos, como o livro, por exemplo.
O que podemos perceber é que as concepções opostas de mundo, desenvolvidas por
Eliade e representadas aqui pelo indígena primitivo e pelo branco moderno, conviveram no
contexto brasileiro de forma paralela e, muitas vezes, até conflituosa. Com o surgimento do
processo de escrita/ literatura indígena, essas duas concepções passam a coexistir dentro de
uma mesma cultura – a do índio. E o branco, por sua vez, também tem diante de si uma nova
oportunidade de contemplar mais de perto uma forma predominantemente mítica de ver o
mundo e assimilar dela elementos que possam conviver mais harmonicamente com sua
própria forma de ver a vida.
A partir dessa coexistência da importância tanto do mito quanto da História, os
indígenas dividem suas narrativas em dois grandes grupos: as histórias de hoje e as histórias
de antigamente. As histórias de hoje são narrativas históricas, que tratam de fatos e
acontecimentos situados no presente atual, como por exemplo, a luta pela demarcação de
territórios. Esses textos narram, geralmente, o contato do índio com o homem branco, por isso
o predomínio do caráter histórico e linear das narrativas, bem como do modelo de autoria
individual.
Já as histórias de antigamente são narrativas originadas da oralidade performática e
mítica, que tratam de fatos e acontecimentos situados no “tempo de antigamente”, também
chamado de presente anterior ou tempo mítico, segundo Souza (s.d., on-line). Essas histórias
revelam o caráter arcaico, segundo a teoria de Eliade, dos povos indígenas, expressando como
os modelos arquetípicos são preservados como essência das comunidades. A autoria desses
textos é, em sua grande maioria, coletiva, o que mostra que o conteúdo deles faz parte do
legado de conhecimentos e concepção de mundo de toda a coletividade. No momento das
histórias de antigamente, tudo ainda estava sendo criado, por isso os seres não têm uma forma
definida, podendo se metamorfosear constantemente. No presente atual, por outro lado, cada
ser já possui sua forma definida e os processos de transformações cessaram.
Essas narrativas de origem mítica têm como objetivo a preservação das tradições
indígenas e a revalorização do passado através do mito. Os índios esperam mostrar – e
revalorizar –, através dos textos escritos, a “verdadeira” e ideal forma de viver, antes do
contato e da influência do branco. Esse processo, de alguma maneira, constitui uma crítica da
História e do progresso (Almeida e Queiroz, 2004, p. 228), assim como fazem as sociedades
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primitivas de Eliade, confirmando novamente que o indígena aceita e assimila o processo


histórico como meio de sobrevivência de sua tradição mítica.

Para os índios, os mitos permeiam a vida cotidiana, não como criação alheia
e alienadora, mas como base sobre a qual se desenvolvem as sabedorias,
como se houvesse, desde tempos imemoriais, vozes mestras que, hoje, e em
português, denominadas Tradição, ensinam ou contam como as coisas
devem ser. (Almeida e Queiroz, 2004, P. 235).

CONSIDERAÇÕES FINAIS:

É evidente que um processo de escrita que poderíamos chamar de “genuinamente”


indígena se solidifica no Brasil e os professores índios são os principais agentes desse
processo que tem como pano de fundo as aldeias e suas escolas diferenciadas. Não se discute
também que a função mais imediata desse material escrito seja a composição de um material
didático que sirva adequadamente a essas mesmas escolas. No entanto, não se pode negar que
esse movimento se reveste de uma carga literária na medida em que esses textos são
selecionados da tradição oral, reconfigurados, ficcionalizados, ilustrados, adquirem uma
dimensão estética, são editados e, por fim, publicados em forma de livro, alcançando não só
leitores índios, mas também brancos.
Além de toda importância que esses textos literários escritos encerram em si mesmos,
eles servem como instrumento de conexão entre concepções de mundo aparentemente
opostas. É através do livro-literatura que o índio se apropria dos meios do homem moderno e
histórico para defender e preservar sua visão de mundo predominantemente arcaica e mítica.
O índio dominou a linguagem escrita para dominar o discurso do branco e, por conseqüência,
tentar dominar a História, contando agora a versão dos vencidos, muitas vezes diferente da
versão hegemônica e dominante dos vencedores. Ainda são poucos os que escutam essa voz
tímida e rouca, no entanto ela é constante e insistente no objetivo de se fazer ouvir. Esses, que
possuem sensibilidade e capacidade suficientes para ouvi-la, evidenciam que Eliade está
correto quando afirma que há, nas sociedades contemporâneas, uma tendência a se redescobrir
e revalorizar as teorias cíclicas, mesmo que muitos ainda não tenham percebido isso.
História e mito. A História comprovada pelos fatos e o mito exaltado pelo sagrado.
Duas maneiras diversas de olhar o mundo se encontram nos “livros da floresta” e comungam
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Corumbá, MS, novembro 2011, n. 4, p. 70

de um mesmo ideal: manter viva a essência mítica das comunidades indígenas, inserindo-a
nas linhas literárias e históricas da sociedade do homem moderno.

As religiões monoteístas, principalmente o Cristianismo, quiseram


desacreditar as antigas crenças incompatíveis com um Deus único e
portanto inscrito na História, em oposição à fixação repetitiva do mito.
Então, pouco a pouco as histórias verdadeiras serão consideradas como
falsas, ou mentirosas. Agora, com a reapropriação dos seus mitos, pelo ato
de escrevê-los, os encarregados (legítimos transmissores) dessa escrita
restituem outra verdade a essas histórias. A verdade que se perpetua no jogo
literário – compactuada entre narrador e leitor – fruto do pacto ficcional.
Assim, o tempo mítico, ao ser fixado no papel, transforma-se em tempo
histórico, e os escritores indígenas, de certo modo, fundam sua Literatura e
sua Ciência, como conhecimentos sistematizados, pelo ato da escrita
(Almeida e Queiroz, 2004, p. 252).

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
ALMEIDA, Maria Inês de; QUEIROZ, Sônia. Na captura da voz: As edições da narrativa oral no
Brasil. Belo Horizonte: A Autêntica; FALE/UFMG, 2004.
ELIADE, Mircea. O Mito do Eterno Retorno. São Paulo: Edições 70, 1984.
MUNDURUKU, Daniel. Literatura Indígena e o tênue fio entre escrita e oralidade, 2008. Disponível
em: <http://www.overmundo.com.br/overblog/literatura-indigena>. Acesso em: 08 jul. 2010.
SOUZA, Lynn Mario T. Menezes de. As visões da anaconda: a narrativa escrita indígena no Brasil,
2003. Revista Semear 7. Disponível em: <http://www.letras.puc-rio.br/catedra/revista/semiar_7.html>.
Acesso em: 18 jun. 2010.
SOUZA, Lynn Mario T. Menezes de. Uma outra história, a escrita indígena no Brasil, s.d. Disponível
em: <http://pib.socioambiental.org/pt/c/iniciativas-indigenas/autoria-indigena/uma-outra-historia,-a-
escrita-indigena-no-brasil>. Acesso em: 18 jun. 2010.
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Corumbá, MS, novembro 2011, n. 4, p. 71

ASSIMILAÇÃO E INFLUÊNCIA NA LITERATURA LATINO-


AMERICANA: A “DEVORAÇÃO” DA CULTURA EUROPÉIA
Geovanna Marcela da Silva Guimarães1

Resumo: Quando se trata da questão da influência e assimilação na Literatura Latino-Americana


sempre é levada em conta a suposta dívida que o escritor latino possui com a literatura europeia. Ao
levarmos isso em consideração estamos dando um atestado de inferioridade artística aos escritores
latinos. A literatura latina só poderá ser acusada de cópia da literatura europeia se não atentarmos para
o real significado que a função da duplicação representa para as literaturas latinas. O presente artigo
visa mostrar que a assimilação da influência europeia nas Américas não se deu de forma passiva, mas
sim de uma forma violenta, desde o início no período colonial quando os colonizadores vieram para a
catequização indígena, até os dias de hoje quando os conceitos de assimilação e influência assumem
outras conotações. Pois quando tratamos de assimilação e influência na literatura latina temos, agora, a
discussão da identidade nacional e da diferença.

Palavras-chave: literatura latino-americana, assimilação, influência.

Abstract: When we consider the question of influence and assimilation in Latin American Literature
it’s always taken into account the supposed debt that the latin american writer has with the European
literature. By taking this into consideration we are giving a certificate of artistic inferiority to the latin
american writers. Latin literature can only be accused of being a copy of European literature if we are
not aware of the real meaning that the function of duplication has for Latin literature. This article aims
to show that the assimilation of European influence in the Americas did not occur passively, but rather
in a violent way, since the beginning of the colonial period when the colonizers came to the natives
catechism, until these days when the concepts of assimilation and influence take on new connotations.
For when we deal with assimilation and influence in Latin literature we have now the discussion of
national identity and difference.

Key Words: Latin American Literature, assimilation, influence.

O primeiro capítulo do livro Uma Literatura nos Trópicos, de Silviano Santiago,


intitulado “O entre lugar do discurso latino-americano”, nos permite traçar um pequeno
panorama de como se deu a formação da identidade cultural latina no período colonial até
chegar à sua emancipação em relação aos padrões europeus que vigoravam até então. A
conquista dos povos indígenas do Novo Mundo aconteceu de forma violenta no que tange o
caráter cultural e ideológico. Os europeus impuseram sua cultura aos índios, substituíram e
destruíram a cultura indígena. Quando se trata da transmissão do ideário religioso europeu há
certa controvérsia de como isso poderia se dar, pois para os índios ficava mais fácil se

1
Graduanda do curso de Letras (Habilitação em Língua Portuguesa) da Universidade Federal do Pará. Bolsista
PIBIC/CNPq pelo projeto “Tradução e Antropofagia em Haroldo de Campos”, orientado pela Profª. Drª.
Izabela Leal. Email: geovanna_marcela@yahoo.com.br
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houvesse a representação dos símbolos cristãos que eles desconheciam, enquanto que para os
europeus era mais pertinente a conversão milagrosa passiva dos credos religiosos cristãos.
Pensando nisso, na melhor assimilação da religião cristã pelos indígenas, o padre
jesuíta José de Anchieta volta a sua poesia para a função catequética, que se realizava através
da conversão dos símbolos tupis para facilitar a aproximação do índio do imaginário europeu.
Anchieta não faz apenas a conversão lingüística como também faz a conversão religiosa. Na
aculturação lingüística os signos indígenas são usados para escrever a catequese através das
homologias, o que significa traduzir a cultura do outro através de elementos da sua própria. E
é a partir desse processo, e de muitos outros de assimilação, que a doutrina e língua europeia
dominaram o pensamento selvagem. É como afirma Santiago: “Pouco a pouco as
representações [...] propõem uma substituição definitiva e inexorável: de agora em diante na
nova terra o código lingüístico e o código religioso se encontram intimamente ligados.”
(SANTIAGO, 1978, p.16).
Essa mesma ligação ocasionou de forma drástica a perda, para os indígenas, de sua
língua e de seu sistema sagrado devido à troca que foi feita pelos europeus dos dois principais
sistemas: lingüístico e religioso. A imposição dos valores europeus faz a América Latina se
transformar, num certo sentido, numa cópia da metrópole colonizadora, que nesse caso é a
Europa. Isto é ocasionado pois a América não possui os padrões culturais iguais aos dos
países do Velho Mundo.
É ressaltado por Santiago que o poder colonialista ampara-se na base do uno, ou seja,
na noção de apenas uma única língua, um único rei e único Deus. Entretanto, com o
colonialismo, é formada uma nova sociedade: a dos mestiços. É a partir da idéia de
mestiçagem que não podemos associar à América Latina uma cultura metropolitana e
homogênea, mas sim uma cultura universal e heterogênea.
A mestiçagem das culturas europeia e latina fez com que a América Latina fosse vista
como uma civilização assimiladora que não pode impedir a entrada das influências
estrangeiras e, tampouco, pode fechar-se em si mesma. Para que os povos latino-americanos
fossem nacionais eles deveriam ser, até certo ponto, universais. É por esse motivo que ocorre
a abertura ao que vem de fora. Essa noção entra plenamente em contato com o que diz Leyla
Perrone-Moisés: “sem abertura, nenhuma cultura, nenhuma literatura pode existir” (MOISÉS,
1990, p. 96).
Com o processo de mestiçagem, os códigos lingüísticos e religiosos que nos foram
impostos pelos colonizadores sofreram uma metamorfose e, em decorrência disso, perderam a
carandá
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sua suposta pureza e integridade. A destruição da unidade e pureza dos europeus, por
ocasionar um desvio da norma que era a representação de um certo padrão imutável, foi o
maior trunfo da América Latina para a sua inserção no mapa da civilização ocidental. Isso
torna necessária a substituição do modelo das influências, que se prende ao passado e
inferioriza os padrões culturais latinos por buscarem e contraírem dívidas com/em outras
obras por um novo modelo que negligenciará esses pormenores, estabelecendo como ponto
único o valor crítico da diferença.
Haroldo de Campos, em seu ensaio “Da Razão Antropofágica: Diálogo e Diferença na
Cultura Brasileira”, toma a diferença como sinônimo do nacional, isto é, como sendo aquilo
que caracteriza justamente a heterogeneidade da cultura brasileira. É como ele diz: “A
diferença podia agora pensar-se como fundadora” (CAMPOS, 1992, p. 247). Para
compreendermos melhor a teoria haroldiana da diferença como o nacional, devemos sair do
campo cultural e adentrar no campo literário, pois Haroldo de Campos valoriza a diferença
como sendo o fator fundador da literatura latina em geral, e da brasileira, em particular,
porque é através dela que temos o nacional, a explicação e a visão do caminho percorrido pela
literatura através da historia.
Isso poderá ser pensado e entendido, por exemplo, através da já tão falada
Antropofagia cultural de Oswald de Andrade, que tem em Haroldo de Campos um de seus
grandes entusiastas. Para Campos, a antropofagia não pode ser apenas compreendida no
contexto brasileiro, pois a antropofagia é um processo universal e violento de assimilação
daquilo que é exterior, pois é com ela que há a tomada de uma visão crítica sobre a história
nacional da literatura latina e do lugar de diferença que esta deveria assumir perante a
literatura européia.
O “Manifesto Antropófago”, quando é lançado por Oswald de Andrade, defende a
criação de uma poesia simples e local e, o mais importante, a criação de uma literatura que
não fosse cópia de nenhuma outra. Oswald queria uma literatura que fosse criativa, criadora e,
nas palavras de Audemaro Goulart e Oscar da Silva (1976), surpreendente. E é isso o que
fazem alguns romances latino-americanos, tais como Macunaíma, quando nos mostram toda a
heterogeneidade decorrente do encontro das várias linguagens pertencentes à história do início
das Américas. Essas linguagens são as indígenas, negras, mamelucas e européias, que ao se
encontrarem nas obras latinas tornam-se dinâmicas. É como diz Carlos Fuentes:
carandá
Revista do Curso de Letras do Câmpus do Pantanal – UFMS,
Corumbá, MS, novembro 2011, n. 4, p. 74

O romance latino-americano nos pede que expandamos estas


linguagens, todas elas, libertando-as do costume, do
esquecimento ou do silêncio, transformando-as em metáforas
inconclusas, dinâmicas, que admitam todas as nossas formas
verbais: impuras, barrocas, sincréticas, policulturais.
(FUENTES, 2007, p 2)

Para tornar essas linguagens dinâmicas foi necessário da parte da literatura latina o
mesmo que foi necessário da parte de sua cultura: a literatura latina também abriu as suas
portas àquilo que vinha de fora. Dessa maneira ela se torna uma literatura assimiladora de
quase tudo aquilo que é bom e pertinente para a sua constituição como uma literatura
nacional. E é partindo desse processo de assimilação que temos o início do chamado processo
Antropofágico cultural proposto por Oswald de Andrade em 1928. “A antropofagia é antes de
tudo o desejo do Outro, a abertura e a receptividade ao alheio, desembocando na devoração e
na absorção da alteridade” (MOISÉS, 1990, p.95)
Tomemos de forma geral a Antropofagia cultural, que é um conceito que pode ser
levado além das fronteiras do Brasil, o seu país de origem. A antropofagia oswaldiana assume
não aquela imagem do bom selvagem que recebe tudo passivamente do colonizador, mas sim
aquela do selvagem antropofágico, devorador e canibal que escolhe o devorado por suas
virtudes, força e coragem. A escolha do mal selvagem é a explicação de que essa apropriação
de outra cultura não se dá da forma passiva como ocorria antigamente, mais especificamente,
nos romances indianistas brasileiros, principalmente nos romances de José de Alencar, onde
as culturas européias e indígenas se encontram e o indígena assimila a cultura europeia de
forma passiva, submetendo-se ao europeu colonizador de modo espontâneo e sublime. O mal
selvagem, por sua vez, nos ensina que o encontro entre culturas se dá com a violência e
destruição de ambas as partes envolvidas no processo.
Alfredo Bosi, em seu Dialética da Colonização, no capítulo “Um mito sacrificial: O
indianismo de Alencar”, diz que no período romântico do século XIX havia a necessidade de
se ressuscitar o passado das origens nacionais, tanto no romantismo europeu quanto no
romantismo americano. Especificamente no caso brasileiro, o escolhido para tão importante
papel foi o indígena. Bosi observa que no início do XIX a América estava vivendo um
momento de forte tensão entre as colônias e suas respectivas metrópoles, que resultou na
oposição entre os dois lados que defendiam os seus próprios interesses: a colônia levantava a
bandeira da sua independência, enquanto a metrópole resistia em aceitar a liberdade de sua
colônia. De acordo com esse panorama histórico, Bosi esperava que o retrato do índio, nos
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Revista do Curso de Letras do Câmpus do Pantanal – UFMS,
Corumbá, MS, novembro 2011, n. 4, p. 75

primeiros romances, fosse o de um selvagem rebelde que se encontra com o europeu


colonizador. Mas não é isso o que ocorre na ficção romanesca latino-americana. No caso
brasileiro do período romântico indianista, o índio aparece como um indivíduo que se entrega
incondicionalmente ao branco, não se importando em abandonar a sua família e tribo para tal
sorte. Servir ao branco, para o índio, é como se fosse o cumprimento do seu destino, mesmo
que isso em alguns casos lhe custasse a vida. Para exemplificar esses “bons selvagens”, Bosi
nos dá a figura do índio Peri de O Guarani, cujo autor é José de Alencar, que é um verdadeiro
e grande exemplo de “bom selvagem” das matas brasileiras.
O amor de Peri por Cecília não é um amor igual ao de Loredano, o vilão da história,
que é carnal, ou igual ao de Álvaro, que é o amor puro e tímido. O amor de Peri é um culto e
adoração por Cecília. Observamos isto no seguinte trecho do capitulo Amor de O Guarani:

Em Peri o sentimento era de culto, espécie de idolatria fanática,


na qual não entrava um só pensamento de egoísmo, amava
Cecília não para sentir um prazer ou ter uma satisfação, mas para
dedicar-se inteiramente a ela, para cumprir o menor de seus
desejos, para evitar que a moça tivesse um pensamento que não
fosse imediatamente uma realidade. (ALENCAR, p 39, 1972)

Temos nesse trecho o exemplo da abnegação de si mesmo, do “bom selvagem” Peri


em prol da moça branca Cecília. Peri faz tudo para satisfazer as vontades da jovem sem se
importar se isso custará a sua vida ou não, como no episódio em que ele, mesmo correndo
risco de vida, captura uma onça viva apenas porque Cecília desejava ver uma. É na recusa
desse bom selvagem servil e fiel ao homem branco colonizador que a antropofagia cultural
oswaldiana assume a figura do mau selvagem, devorador e canibal. A manifestação
antropofágica subverte o discurso das influências na literatura latino-americana, de modo que
não cabe mais discutir, sob essa ótica, a qualidade literária de um determinado autor ou obra
por meio de um mecanismo de comparação com as obras européias. Silviano Santiago nos
explica que esse tipo de discurso é preconceituoso e que inferioriza a produção dos escritores
latinos americanos:

Tal discurso reduz a criação dos artistas latino-americanos à condição


de obra parasita, uma obra que se nutre de uma outra, cuja vida é
limitada e precária, aprisionada que se encontra pelo brilho e prestígio
da fonte, chefe-de-escola. (SANTIAGO, 1978, p. 20)
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Revista do Curso de Letras do Câmpus do Pantanal – UFMS,
Corumbá, MS, novembro 2011, n. 4, p. 76

O que deve ser levado em conta na obra de um autor não é sua nacionalidade ou
influência e sim, como diz Carlos Fuentes, a comunicabilidade da sua linguagem e a
qualidade de sua imaginação. As verdadeiras e importantes qualidades em um autor são
linguagem e imaginação. Ao falar sobre as duas como sendo essenciais na obra de um
determinado autor, Carlos Fuentes intertextualiza-se mutuamente com Ezra Pound, quando
este diz que sem a imaginação e a linguagem do escritor as nações perderiam a sua fala e
idioma. Fuentes e Pound defendem a literatura como um precioso tesouro de uma nação e
país. Portanto, a literatura latino-americana não pode e nem poderia fechar-se em si mesma,
pois o processo de troca entre as culturas é essencial. As culturas, ou melhor, as sociedades
não são homogêneas. Caso ocorresse o isolamento e o fechamento da América Latina àquilo
que vinha de fora poderíamos imaginar que a literatura latina ficaria estagnada, sofreria um
tipo de asfixia pela falta de contato com o outro, com o que vem de fora.
Temos que levar em consideração que não podemos criar algo a partir do nada em
termos literários e, além do mais, não podemos apagar o nosso passado de povos colonizados,
mesmo que ele tenha sido cruel. Não devemos ter medo de assumir nossas influências, pois
até as literaturas metropolitanas que “são vistas como ameaçadoras de uma identidade
nacional (...)” (MOISÉS, 1990, p. 98) também sofreram influência de outras literaturas
anteriores a ela. E até os grandes nomes da literatura foram inspirados por outros grandes
nomes da literatura.

REFERÊNCIAS

ANDRADE, Mário de. Macunaíma: o herói sem nenhum caráter. São Paulo: Martins. 7° edição,
1972.
ANDRADE, Oswald de. “Manifesto Antropófago”. Acessado em: 04/ 02/2011, 18:09.
http://www.lumiarte.com/luardeoutono/oswald/manifantropof.html.
BOSI, Alfredo. “Um mito sacrificial: O indianismo de Alencar”. In: Dialética da Colonização. São
Paulo: Companhia das Letras, 1992, p.176-193.
CAMPOS, Haroldo de. “Da Razão antropofágica: Diálogo e diferença na cultura Brasileira” In:
Metalinguagem e outras metas. São Paulo: Perspectiva, 1992, p. 231-255.
FUENTES. Carlos. “O Romance Morreu?”. In: Geografia do Romance. Tradução: Carlos Nougué.
Rio de Janeiro: Rocco, 2007, p. 9-33.
GOULART, Ademaro; SILVA, Oscar da. Estudo Orientado de Língua e Literatura. São Paulo: Ed. do
Brasil. 3° edição. 1976.
MOISÉS, Leyla Perrone. “Literatura Comparada, Intertexto e Antropofagia”. In Flores da
Escrivaninha: Ensaios. São Paulo: Companhia das Letras, 1990, p.91-99
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Corumbá, MS, novembro 2011, n. 4, p. 77

POUND, Ezra. ABC da Literatura. Tradução: Augusto de Campos e José Paulo Paes. São Paulo:
Cultrix, 1990.
SANTIAGO, Silviano. “O entre lugar do discurso latino americano”. In: Uma Literatura nos
Trópicos: ensaios sobre dependência cultural. Perspectiva. São Paulo. 1978.
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Corumbá, MS, novembro 2011, n. 4, p. 78

BECKETT LEITOR DE PROUST: DA CRÍTICA À CRIAÇÃO


Gleydson André da Silva Ferreira 1

RESUMO: Samuel Beckett fez uma carreira acadêmica breve, seu livro Proust, de 1931,
marca o final deste período como professor e aponta para uma estética embrionária já em
plena gestação. Deste modo, nesta crítica ao romance Em busca do tempo perdido, podemos
notar que as considerações de Beckett extravasam as fronteiras de uma simples recepção para,
em alguns momentos, assumir a forma de prenúncios de uma estética própria. Com base nesta
intuição, este artigo procura discutir e discernir os pontos de contato e dispersão do crítico
com o seu objeto, além de aproximar tais indícios de criação com o monólogo A última
gravação, de 1958. Para tanto, alguns dispositivos da teoria literária são requisitados para a
caracterização da corrosão temporal que age sobre as criaturas de ambas as obras, que tomam
o passado como foco de seu desenvolvimento. Para a compreensão e legitimação do cotejo
realizado, isto é, entre romance e drama, neste estudo serão desenvolvidos, sucintamente,
alguns apontamentos sobre a crise do drama moderno, tal como a definiu Peter Szondi na
Teoria do drama moderno.

PALAVRAS-CHAVE: Samuel Beckett – Proust – crise do drama moderno

BECKETT READER OF PROUST: FROM CRITICISM TO CREATION

ABSTRACT: Samuel Beckett had a short academic career; his book Proust, 1931, marks the
final of this period as a teacher and points to an embryonic aesthetical in full pregnancy. So,
in this criticism to novel In Search for lost time, we may notice that Beckett considerations
overpass the frontiers of a simple reception for, in some moments, it assumes the form of
prediction of a proper aesthetics. Based on this intuition, this paper attempts to discuss and
discern matching points and scatteration of the critic with his object, besides approaching
such indexes of creation along with monologue Krapp’s last tape of 1958. For that much,
some devices of literary theory are requested for the characterization of the temporal
corrosion which works over the characters of either works, that take past as focus of its
development. For the understanding and legitimateness of the confrontation made, that is to
say, between novel and drama, we will briefly developed in this study some notes regarding
about crisis of modern drama, as defined by Peter Szondi in Theory of the modern drama.

KEYWORDS: Samuel Beckett –Proust – crisis of modern drama

Samuel Beckett abandonou sua breve carreira universitária com a publicação de


Proust, livro no qual faz uma leitura do autor francês com uma concepção estética

1
Graduado pela UFOP em licenciatura em Língua Portuguesa, atualmente cursa o bacharelado em Estudos
Literários nesta mesma instituição, estudando a obra de Samuel Beckett. Este artigo integra os resultados
parciais da iniciação científica “Tempo em camadas: Krapp’s last tape e o dominante romanesco”, realizada
com subsídios da Fundação de Amparo à Pesquisa de Minas Gerais (FAPEMIG). Contato:
jaainda@yahoo.com.br
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Corumbá, MS, novembro 2011, n. 4, p. 79

embrionária do que viria a ser a sua própria obra. Esta crítica literária sintomatiza, pois, a
busca de Beckett por postulados estéticos próprios em um trabalho que transborda frente à
simples tarefa de uma resenha acadêmica, em que a interpretação subjuga a criação. É a partir
desta ressonância da obra do crítico no texto criticado que discutirei como Beckett, ao ler
Proust, aponta para o estilhaçamento do sujeito romanesco que - ao ser despedaçado pelo
tempo – se torna estranho para si mesmo nos diferentes momentos narrativos, dispersado em
camadas irreconciliáveis. Tal concepção crítica será seminal para a configuração madura de
Samuel Beckett, exemplificada aqui no drama A Última gravação.
Com efeito, neste artigo pretende-se pontuar algumas distinções entre as formulações
teóricas de Samuel Beckett e o romance que lhe serve de objeto, com o intuito de assinalar
como algumas destas considerações se avizinham mais da obra do próprio crítico do que do
autor criticado. Desta forma, serão retomados alguns conceitos consagrados da teoria literária
para melhor caracterizar e, posteriormente, distinguir as diferentes ações corrosivas do tempo
sobre as criaturas de Beckett e Proust. Faz-se necessário, por conseguinte, algumas reflexões
acerca do caráter de dominante do romance frente às configurações do drama moderno, para
que se entenda como a sobredeterminação estrutural romanesca afeta as formas da
dramaturgia de Samuel Beckett.
Logo no início do livro Proust, Beckett coloca o tempo como a clave que designa a
multiplicidade e o perspectivismo na obra Em busca do tempo perdido, tempo do qual as
criaturas são vítimas e ao qual se encontram subordinadas, pois, para Beckett,

não há como fugir das horas e dos dias. Nem do amanhã nem de
ontem. Não há como fugir de ontem porque ontem nos deformou, ou
foi por nós deformado. O estado emocional é irrelevante. Sobreveio
uma deformação. Ontem não é um marco de estrada ultrapassado, mas
um diamante na estrada batida dos anos e irremediavelmente parte de
nós, dentro de nós, pesado e perigoso. Não estamos mais cansados por
causa de ontem, somos outros, não mais o que éramos antes da
calamidade de ontem. (BECKETT, 2003, p.11.)

O trecho acima exemplifica o problema temporal adentrado por Beckett ao teorizar


sobre o romance, além de corporificar o próprio movimento corrosivo no qual o autor
fundamenta sua crítica; logo, esta citação materializa, ao mesmo tempo, fenômeno e conceito
romanesco. Experimentamos, então, por meio do emprego da primeira pessoa do plural, o
rápido e inexorável processo de corrosão compreendido por Beckett. Deste modo, o passado
adentra-nos como um marco de estrada não ultrapassado, como um diamante que passa
carandá
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Corumbá, MS, novembro 2011, n. 4, p. 80

irremediavelmente a fazer parte de nós, dentro de nós, pesado e perigoso. Apesar disto - mas
vale ressaltar que logo em seguida -, já “não estamos mais cansados por causa de ontem,
somos outros”, ou seja, o passado indestrutível da frase anterior, inultrapassável, não nos pesa
mais hoje; haja vista que, de alguma forma, não somos os mesmos, pois neste breve período
de tempo nos tornamos diferentes daqueles “que éramos antes da calamidade de ontem.” A
corrosão contemplada, que se dá praticamente ao vivo nesta citação, exerce uma força de
tamanha violência que beira o paradoxo, em que se contrapõe o passado indelével ao
esquecimento fruto da ação do tempo, que transforma os sujeitos em um movimento rápido e
implacável, deslocando o passado para as outras camadas da subjetividade.
Erich Auerbach estabelece a concepção de personagens dispostas em camadas em seu
célebre livro Mimesis, no capítulo “A cicatriz de Ulisses”, ao confrontar as narrativas
homéricas às narrativas bíblicas. Para Auerbach, Homero configurou fenômenos em suas
narrativas que sempre ocorrem em primeiro plano, dispostos em pleno presente espacial e
temporal, sem a possibilidade de diferentes perspectivas - apenas em uma camada, portanto.
Assim, é do estilo homérico:

representar os fenômenos acabadamente, palpáveis e visíveis em todas


as suas partes, claramente definidos em suas relações espaciais e
temporais. O mesmo ocorre com os processos psicológicos: também
deles nada deve ficar oculto ou inexpresso. Sem reservas, bem
dispostos até nos momentos de paixão, as personagens de Homero dão
a conhecer o seu interior no seu discurso; o que não dizem aos outros,
falam para si, de modo que o leitor o saiba. (AUERBACH, 2007, p.4.)

Por seu turno, o estilo bíblico aparece dotado de complexidade e profundidade, no


qual “só é acabado formalmente aquilo que nas manifestações interessa à meta da ação; o
restante fica na escuridão.” (AUERBACH, 2007, p.9). Desta maneira, as personagens bíblicas
são desdobradas sobre camadas e planos que não estão necessariamente iluminados pelo
momento narrativo, mas que estão em jogo no momento de suas ações. Auerbach considera,
pois, que o mais importante

é a multiplicidade de camadas dentro de cada homem; isto é


dificilmente encontrável em Homero, quando muito na forma de
dúvida consciente entre dois possíveis modos de agir; em tudo o mais,
a multiplicidade da vida psíquica mostra-se nele só na sucessão, no
revezamento das paixões; enquanto que os autores judeus conseguem
exprimir as camadas simultaneamente sobrepostas da consciência e o
conflito entre as mesmas. (AUERBACH, 2007, p.10)
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Corumbá, MS, novembro 2011, n. 4, p. 81

Para Erich Auerbach, por conseguinte, as narrativas bíblicas comportam personagens


mais complexas, que conseguem exprimir a multiplicidade e o caráter contraditório dentro de
cada homem, ao contrário do que acontece nas epopéias homéricas, em que o interior da
personagem é esgotado em suas representações imediatas. Auerbach assinala que os autores
judeus conseguiram construir criaturas tão completas que, em suas ações, as camadas de um
mesmo sujeito operam simultaneamente, mesmo nos momentos de conflito, nos quais colidem
superfície e subjetividades obscurecidas - tal como acontece com o narrador de Proust, que se
divide em diferentes camadas temporais, obscurecidas no presente narrativo até que surja o
sujeito de um tempo perdido por meio da rememoração, mas simultâneas sob a
superficialidade de uma mesma voz narrativa. Contudo, nas considerações sobre Proust e em
sua própria obra, Samuel Beckett concebe estas camadas da subjetividade de tal modo
desatadas que de seu encontro não resulta um simples conflito de profundidades, mas o
embate de alteridades de uma mesma criatura romanesca, destroçando assim a noção de
unidade da personagem e tornado-a, então, incapaz de construir qualquer síntese sobre si
mesma. Este entrechoque de camadas, característico da peça A última gravação, instaura o
conflito entre o sujeito de superfície de Krapp e os seus outros sujeitos passados, que
emergem nas gravações ouvidas durante o drama com o qual nos deteremos mais tarde.
Podemos dizer então que, para Samuel Beckett, os sujeitos do romance se encontram
entremeio ao passado arraigado e ao presente que o embota em sua automatização. A
subjetividade é alterada no tempo romanesco e sua unidade dispersada, assimilando o passado
de maneira irremediável para embargá-lo no esquecimento daquilo que é imediato; resultando
deste movimento, sujeitos distintos de uma mesma subjetividade, mas que ainda conservam o
passado irrevogável sob a superficialidade do presente. Esta automatização conta então com
as bênçãos do esquecimento, que é ocasionado em Proust, como veremos a seguir, pelo
hábito.
Para Samuel Beckett, as realizações são importantes componentes do hábito, visto que
dão razão ou ilusões de estabilidade às subjetividades carcomidas. As realizações são
responsáveis por atrelar o sujeito em constante mudança às metas ou aspirações, por dar o
direcionamento rumo ao qual segue a subjetividade disposta em diferentes camadas. Daí a
importância do caráter defensivo de mecanismos como a automatização do hábito, que
entregam ao sono a criatura que se decompõe através do tempo:
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Corumbá, MS, novembro 2011, n. 4, p. 82

As aspirações de ontem foram válidas para o eu de ontem, não para o


de hoje. Ficamos desapontados com a nulidade do que nos apraz
chamar de realização. Mas o que é realização? A identificação do
sujeito com o objeto de seu desejo. O sujeito morreu – quem sabe
muitas vezes – pelo caminho. Que o sujeito B fique desapontado com
a banalidade de um objeto escolhido pelo sujeito A é tão ilógico
quanto esperar que nossa fome se dissipe com o espetáculo da titia
tomando sua sopa. (BECKETT, 2003, p.12-13)

O sujeito, segundo Beckett, morre várias vezes antes que consiga chegar a qualquer
realização, de maneira que esta morte não significa sua destruição ou aniquilação completa. A
morte, tal como vista aqui, tem um efeito contrário ao do simples falecimento, uma vez que
ela estilhaça e cria novas perspectivas de um mesmo sujeito, diferente de si mesmo nos
diversos períodos de sua vida, possibilitando inclusive que Beckett faça sua divisão em sujeito
“A” e sujeito “B”. Por conseguinte, este estilhaçamento da subjetividade se dá por um
esfacelar de sua unidade em vários pedaços irreconciliáveis, cada um estranho ao outro, mas
mesmo assim partes de um todo, no qual pesa o passado concomitantemente com a sua
suspensão ocasionada pelo esquecimento. A realização, considerada como a identificação do
sujeito com o objeto de seu desejo, pode ser vista desta forma como um ponto aglutinador
para o qual converge uma subjetividade movediça e disposta em camadas. Este ponto, uma
vez alcançado, não corresponde ao resultado almejado pela subjetividade originária que
tomou o impulso rumo ao seu objeto de desejo, já que esta se encontra deslocada e sobreposta
pela superfície cambiante do sujeito.
O hábito figura em Proust como a anestesia que acompanha a corrosão dos sujeitos, o
antídoto com o qual os sofrimentos do passado são automatizados e esquecidos. A respeito do
hábito, afirma Beckett:

O hábito é o acordo efetuado entre o indivíduo e seu meio, ou entre o


indivíduo e suas próprias excentricidades orgânicas, a garantia de uma
fosca inviolabilidade, o pára-raios de sua existência. O hábito é o
lastro que acorrenta o cão a seu vômito. Respirar é um hábito. Ou
melhor, a vida é uma sucessão de hábitos, posto que o indivíduo é
uma sucessão de indivíduos (uma objetivação da vontade do
indivíduo, diria Schopenhauer), o pacto deve ser continuamente
renovado, a carta de salvo-conduto atualizada. [...] O hábito, então, é
um termo genérico para os incontáveis compromissos travados entre
os incontáveis sujeitos e seus incontáveis objetos correspondentes. Os
períodos de transição que separam adaptações consecutivas (já que
nenhum expediente macabro de transubstanciação poderá transformar
as mortalhas em fraldas) representam as zonas de risco na vida do
indivíduo, precárias, perigosas, dolorosas, misteriosas e férteis,
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Corumbá, MS, novembro 2011, n. 4, p. 83

quando por um instante o tédio de viver é substituído pelo sofrimento


de ser. (BECKETT, 2003, p.17-18.)

O hábito é, portanto, um ajustamento automático do sujeito em camadas às condições


de sua existência, ao seu meio imediato, ou seja, o hábito confere a automatização da
atualidade subjetiva às diferentes camadas passadas que lhe compõe. A sucessão de hábitos
corresponde à sucessão de indivíduos e a seus respectivos objetos, cabendo assim às
realizações conterem a profusão de impulsos das diferentes camadas do sujeito, destinando-
lhes um objeto e, desta maneira, automatizando-as.
Entretanto, os períodos de “transição” da automatização, nos quais o hábito ainda não
embotou a percepção da realidade, provocam os movimentos de desautomatização do sujeito.
Beckett considera estes breves períodos como zonas precárias e férteis para a subjetividade,
uma vez que esta se depara com os seus sofrimentos, ou no caso de Proust, com as
rememorações involuntárias de um tempo perdido. É ainda por meio da desautomatização que
a criatura pode vislumbrar sua própria automatização. Isto ocorre por meio de um movimento
da subjetividade sobre si mesma, quando ela consegue tomar consciência da impassibilidade
de que é tomada devido ao efeito do hábito.
1
As noções de “automatização” e “desautomatização” foram cunhadas por Vítor
Chklovski, em seu texto “A arte como procedimento”, de 1917; contudo, Fredric Jameson
assinala que a própria teoria da metáfora de Proust “é, muito especificamente, a da
desfamiliarização, que ele descobriu quase ao mesmo tempo que os formalistas russos.”
(JAMESON, 2005, p.52). As conceituações elaboradas por Chklovski tinham como alvo a
teoria de Potebnia, que por sua vez afirmou que “a arte é pensar por imagens”. Potebnia
acreditava, assim, que as imagens eram predicados constantes para sujeitos variáveis, e que a
arte era uma representação simplificadora da complexidade daquilo que “explicava”, uma vez
que desempenhava uma função de ilustração daquilo que seria “reconhecido” em suas
representações. Chklovski mostra, logo de saída, como a diferenciação entre a linguagem
quotidiana e linguagem poética joga por terra as considerações de Potebnia, pois o princípio
de reconhecimento deste, que seria inerente às construções artísticas, se inscreve efetivamente
nas manifestações linguísticas prosaicas, as quais se apóiam no princípio de economia de
energia e automatização da percepção.

1
Embora na edição brasileira o termo empregado em oposição à “automatização” tenha sido traduzido como
“singularização”, neste trabalho usarei a palavra “desautomatização” para precisar a oposição existente os
conceitos.
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Corumbá, MS, novembro 2011, n. 4, p. 84

Por sua vez, a concepção de arte cunhada de Chklovski se funda no efeito de


desautomatização da linguagem poética, uma vez que para o autor

o objetivo da arte é dar a sensação do objeto como visão e não como


reconhecimento; o procedimento da arte é o procedimento da
singularização dos objetos e o procedimento consiste em obscurecer a
forma, aumentar a dificuldade e a duração da percepção. O ato de
percepção em arte é um fim em si mesmo e deve ser prolongado; a
arte é um meio de experimentar o devir do objeto, o que é já
“passado” não importa para a arte. (CHKLOVSKI, 1978, p.45.)

Assim, a desautomatização consiste na quebra da automatização de nossos sentidos


por procedimentos estéticos que buscam prolongar a percepção do objeto artístico. Na poesia,
em que a linguagem está em função da arte, a quebra do simples reconhecimento se dá por
uma linguagem elaborada, obscura e cheia de obstáculos.
O exemplo de Chklovski para ilustrar a automatização do sujeito é dado por uma
passagem do diário de Leon Tolstoi, na qual o autor de Guerra e paz relata seu esquecimento
quanto a ter secado ou não seu divã, isto apenas depois de uma breve volta pelo quarto. Por
meio deste pequeno acontecimento, Tolstoi é levado a pensar em tanto como os movimentos
da vida são habituais e inconscientes, quanto como a vida complexa de muita gente se
desenrola sem ser percebida, “como se esta vida não tivesse sido”, “assim a vida
desaparecida, se transforma em nada. A automatização engole os objetos, os hábitos, os
móveis, a mulher e o medo à guerra.” (CHKLOVSKI, 1978, p.44.) Para Beckett, a
automatização provocada pelo hábito pode ser vista pela posição do turista, “cuja experiência
estética consiste em uma série de identificações e para quem um guia de viagem é um fim e
não um meio.” (BECKETT, 2003, p.22.) Na ficção proustiana, dentre os vários exemplos de
automatização, podemos citar uma breve passagem na qual Swann, depois de acometido de
uma grande indignação com a amante, Odette, não consegue manter sua ira. Temos então a
automatização da personagem à situação que lhe torturava há pouco, a saber, a perfídia de
Odette ao lhe pedir dinheiro para promover um passeio do qual ele, Swann, não poderá fazer
parte, além de ter dirigido sorrisos ao seu rival, Forcheville; assim, Swann é tomado por uma
imagem desprezível de sua amante,

Mas essa aparência nunca durava muito; ao cabo de alguns dias aquele
olhar brilhante e falso ia perdendo o fulgor e a duplicidade, aquela
imagem de uma Odette execrada dizendo a Forcheville: “Como ele
está furioso, hem!”, começava a empalidecer, a apagar-se. Então,
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Corumbá, MS, novembro 2011, n. 4, p. 85

progressivamente reaparecia e elevava-se docemente brilhando, a face


de outra Odette, daquela que também dirigia um sorriso a Forcheville,
mas um sorriso em que não havia senão ternura para Swann, quando
ela dizia: “Não demore muito, pois esse senhor não gosta que eu tenha
visitas quando deseja estar junto de mim. Ah!, se conhecesse essa
criatura como eu a conheço!”, aquele mesmo sorriso que tinha para
agradecer a Swann algum sinal da sua delicadeza que ela tanto
prezava, algum conselho que lhe pedira numa das graves emergências
em que só nele depositava confiança. (PROUST, 2006, p. 367.)

Beckett exemplifica a quebra do hábito - tratada aqui como a desautomatização do


sujeito -, em dois episódios do Em busca do tempo perdido, a demonstração do primeiro será
o suficiente para nossos intentos. O narrador, acompanhado de sua avó, chega a uma estação
de veraneio na Normandia e se hospeda em um hotel. Apesar de seu cansaço devido à viagem
exaustiva, não consegue dormir, pois sua atenção está tomada pela desconhecida mobília, por
“uma tempestade de sons e uma agonia de cores.” Isso porque “o hábito não teve tempo ainda
de silenciar as explosões do relógio, reduzir a hostilidade das cortinas roxas e rebaixar a
abóboda inacessível desse belvedere.” (BECKETT, 2003, p.24). O episódio do quarto no qual
se dá a desautomatização do sujeito serve de ignição para o sofrimento do narrador, que se
depara com o medo da morte daqueles que ama. Este terror passa a ser ainda maior quando
ele pensa que este sofrimento da separação irreversível de seus entes queridos será esquecido
e superado,

que a privação deixará de ser privação quando a alquimia do Hábito


tiver transformado o indivíduo capaz de sofrimento em um estranho
para quem os motivos daquele sofrimento serão não mais que uma
história sem maior importância, quando não apenas os objetos de sua
feição tiverem desaparecidos, mas também aquela própria afeição
(BECKETT, 2003, p.25.)

No trecho acima, o narrador de Proust toma consciência de que não poderá escapar da
automatização provocada pelo hábito, e passa a compreender que a automatização permitirá
tanto o acalento da morte de seus entes queridos, quanto o esquecimento do sofrimento
consequente de cada uma delas. Além disso, demonstra como esta subjetividade, ao se
encontrar livre dos grilhões do hábito, consegue se desautomatizar e pensar sobre a ação da
automatização sobre si mesma, em uma reflexão prospectiva que delineia a superação dos
sofrimentos futuros, isto é, a perda não só dos objetos de sua feição, mas também da própria
feição a estes objetos irrecuperáveis.
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Corumbá, MS, novembro 2011, n. 4, p. 86

A memória, em Proust, também se liga ao hábito, uma vez que “o homem de boa
memória nunca se lembra de nada, porque nunca esquece de nada. Sua memória é uniforme,
uma criatura de rotina, simultaneamente condição e função de seu hábito impecável, um
instrumento de referência e não de descoberta.” (BECKETT, 2003, p.29). Desta forma, a
memória voluntária é a reminiscência daquilo que parece constante e passível de controle por
parte do sujeito, que lhe aplica o protocolo rotineiro nas rememorações conscientes. Esta
forma de memória é construída pela sustentabilidade do hábito e pelo esforço de apreensão da
realidade, com o intuito de capturar aquilo que parece útil ao sujeito.
Por isso, a curiosidade, segundo Beckett, é um reflexo não condicionado, que em suas
manifestações mais primitivas é uma reação a estímulos perigosos: “a curiosidade é a
salvaguarda, não a morte do gato, esteja ele à beira do telhado ou à frente da lareira.”
(BECKETT, 2003, p.30). Portanto, a curiosidade tem uma aplicabilidade utilitária e
automatizante para o sujeito. Beckett coloca a curiosidade em cena para demonstrar como os
registros da memória relacionam-se diretamente com o empenho de atenção do sujeito, pois
“quanto mais comprometido nosso interesse, mais indeletável o registro de suas impressões.”
(BECKETT, 2003, p.30). Em contrapartida, os momentos de distração não se submetem às
leis da rememoração, nem às leis do hábito, mas ainda assim são armazenados naquele último
e inacessível calabouço de nosso ser. É neste reduto inacessível que Beckett acredita estar
armazenada

a essência de nós mesmos, o melhor de nossos muitos eus e suas


aglutinações, que os simplistas chamam de mundo; o melhor, porque
acumulado sorrateira, dolorosa e pacientemente a dois dedos do nariz
da vulgaridade, a fina essência de uma divindade reprimida cuja
disfazione sussurrada afoga-se na vociferação saudável de um apetite
que abarca tudo, a pérola que pode desmentir nossa carapaça de cola e
cal. Pode – quando escapamos para o anexo espaçoso da alienação
mental, durante o sono ou nas raras folgas de loucura diurna. Desta
fonte profunda, Proust alçará seu mundo. Sua obra não é um acidente,
mas seu salvamento é. As circunstâncias deste acidente serão
reveladas no ápice desta pré-visão. Um clímax de segunda-mão é
melhor do que nada. Mas não há por que esconder o nome do
mergulhador. Proust o chama de “memória involuntária”. A memória
que não é memória, mas simples consulta ao índice remissivo do
Velho Testamento do indivíduo, ele chama de “memória voluntária”.
Esta é a memória uniforme da inteligência; é de confiança para a
reprodução, perante nossa inspetoria satisfeita, daquelas impressões
do passado formadas por ação consciente da inteligência. (BECKETT,
2003, p.31)
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A memória involuntária, conforme observa Beckett, apreende o que há de melhor nos


sujeitos de maneira inconsciente (em seus momentos de distração), e por ela são armazenadas
os momentos essenciais da subjetividade, ou seja: para Beckett, a essência dos muitos eus e de
suas aglutinações que constituem o sujeito é formada pela memória que abarca o que nos
escapa do controle consciente e passivo do hábito – que, por sua vez, está provido do interesse
da curiosidade. Por esta memória é que se assomam as memórias não controladas pela
inteligência, e que por isso têm o efeito desautomatizador sobre a vigilância do hábito. “A
memória involuntária é explosiva”. (BECKETT, 2003, p.33). E é este gatilho da memória
involuntária - tão caro à Proust - que dispara em seu romance as rememorações que são
despertadas por um simples bolinho mergulhado em uma xícara de chá, pelos diversos
cheiros, pelos diferentes motivos musicais etc. Deste modo, a desautomatização causada pela
memória involuntária rompe com o esmaecimento da automatização sofrida pela personagem
romanesca, desembotando-lhe a percepção ofuscada e segura da memória voluntária num
arroubo de lembranças indomadas.
A memória voluntária apresenta um passado monocromático, desinteressado pelo
misterioso elemento de desatenção. Por meio desta memória, há apenas um reconhecimento
da extensão do hábito. Para Proust, segundo Beckett, não há grande diferença entre a memória
de um sonho e a memória da realidade: “Quando o sujeito adormecido acorda, esta emissária
do hábito corre a lhe assegurar sua “personalidade” não desapareceu com sua fadiga - [...] - A
memória voluntária insiste na mais necessária, salutar e monótona forma de plágio – o plágio
de si mesmo.” (BECKETT, 2003, p.32.)
Postas algumas considerações críticas de Samuel Beckett acerca do romance de
Marcel Proust, podemos cotejar de que forma elas reverberam em alguns momentos da
dramaturgia do crítico, além de possibilitarem, em certa medida, demonstrar como o
radicalismo estético de Samuel Beckett aparece germinado em pontos em que a sua crítica se
afasta de seu objeto de estudo para ganhar, anos mais tarde, contornos em sua própria criação.
Todavia, para que se compreenda o caráter épico da dramaturgia de Samuel Beckett, faz-se
necessário, primeiramente, a retomada de algumas das principais conceituações acerca do
romance, para adentrarmos, posteriormente, naquilo a que Peter Szondi definiu como a “crise
do drama moderno”, que é, em sua essência, a emersão de elementos épicos nas formas do
drama moderno. Por extravasar a delimitação, 1880 – 1950, a crise ainda não foi discutida por
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Szondi na obra Samuel Beckett, por isso o escopo do teórico será ampliado ao discutirmos a
crise do drama moderno ainda em vigor na peça A última gravação, de 1958.
Em A última gravação, a história de Krapp emerge por intermédio de registros feitos
em outros tempos. Este protagonista – velho, esfarrapado, bêbado e debilitado fisicamente -,
apresenta reações dúbias aos acontecimentos por ele gravados, ora rechaçando-os
violentamente, ora tomando-os como certos. Assim, incapaz de narrar o curso de vida e de se
posicionar definitivamente frente às rememorações daquele que fora outrora, Krapp é
impotente tanto ao acerto de contas a que se propõe, em uma espécie de contabilidade de sua
vida, quanto a uma ação no presente, que modifique o decurso do presente cênico. Portanto,
Krapp, assim como o narrador de Proust, está no encalço do tempo perdido, em pleno
abandono do presente para uma busca nas profundezas do passado. Com isso, a atualidade
cênica encontra-se marcada pela esterilidade de acontecimentos, dando a sensação de
paralisia, visto que de fato nada acontece, pois tudo já aconteceu no passado de Krapp. Esta
anomalia cênica, de um drama que não se passa diante dos expectadores, mas que está
encarcerado na subjetividade do protagonista ou em um tempo distante, decorre da
assimilação do épico no drama moderno, isto é, das premissas estruturais romanescas na
dramaturgia de Samuel Beckett.
Nos Cursos de estética, Hegel apontou o romance como o legítimo representante da
arte romântica. Para Hegel, a arte romântica pode ser caracterizada, de maneira sintética, pela
configuração da subjetividade infinita e pela incorporação do elemento contingente em suas
formas. A subjetividade infinita desenvolve-se fechada em si mesma, sem uma conexão
essencial com o mundo que lhe circunda, ou seja, o que as subjetividades românticas
executam, suas finalidades e ações partem somente de sua individualidade, “são estes ânimos
substanciais que encerram em si mesmo uma totalidade, mas em sua densidade simples eles
realizam cada movimento profundo apenas neles mesmos, sem desenvolvimento e explicação
para fora.” (HEGEL, 2000, p.316). Enquanto totalidade, cada subjetividade encerra um
mundo completo e fechado, desta forma as subjetividades do romantismo estão desatadas do
mundo circundante. Por isso seus movimentos se desencadeiam sem a ignição exterior, de
forma que nem mesmo há explicitação ou justificação destes movimentos na efetividade.
Como exemplo, podemos retomar o que acontece com o narrador do romance de Proust no
episódio do hotel: a sua angústia nasce apenas de seu estranhamento ao ambiente não familiar,
uma vez que ele é tomado pelo desespero sem qualquer acontecimento efetivo na realidade.
Além disso, sua subjetividade consegue desdobrar-se sobre si mesma e dar contornos à sua
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futura e inescapável conformidade com as tragédias vindouras, que de fato ainda não
aconteceram; desta forma, a subjetividade infinita do narrador proustiano fornece a causa da
ação romanesca, sustenta o movimento em si mesma, além de refletir a respeito de sua própria
condição, aprofundando-se, deste modo, no infinito de seu ânimo, sem o esgotamento de seu
interior nas representações romanescas.
O exterior, na arte romântica, também alcança liberdade para mover-se por si mesmo,
alheio à subjetividade. Neste mundo prosaico as ações podem se apresentar as mais triviais ao
mesmo tempo em que podem desencadear um movimento profundo e autônomo na
subjetividade. O mundo romanesco nasce como lugar estranho ao sujeito desde seu início em
Dom Quixote, como espaço em que a vontade da personagem encontra apenas resistência e
inadequação: “pois cada um encontra diante de si um mundo encantado, para ele
completamente inapropriado, o qual ele deve combater, pois este mundo fecha-se para ele e
em sua firmeza áspera não cede às paixões, mas impõe a vontade de um pai, de uma tia, das
relações civis etc.” (HEGEL, 2000, p. 328). Samuel Beckett, representante característico do
drama épico, configura o mundo contingente do romance em sua esterilidade absoluta e literal
por meio da representação do deserto natural ou de espaços que retratam a devastação humana
e seus despojos em suas peças centrais como Esperando por Godot, Fim de partida e Dias
felizes.
A capacidade de configurar a dissonância do mundo, e de incorporar às suas
configurações todas as outras formas, torna o romance o gênero moderno por excelência. Com
isso, suas formas emergem como o “dominante” frente às configurações do drama, que sofre
o contágio das premissas estruturais romanescas em sua produção moderna, período da crise
de suas formas. O conceito de “dominante”, segundo Roman Jakobson, pode ser visto como
“sendo o centro de enfoque de um trabalho artístico: ele regulamenta, determina e transforma
os seus outros componentes.” (JAKOBSON, 2002, p.513). Em uma dimensão maior, isto é,
como determinante da arte de uma época, o dominante pode definir e modificar
substancialmente a série de valores culturais dos trabalhos artísticos comparados aos trabalhos
de outras épocas.
A sobredeterminação do romance nas configurações do drama moderno toma relevo
na Teoria do drama moderno, obra na qual a crise do drama pode ser lida como a inexorável
emersão do elemento épico na dramaturgia moderna. Neste livro, Peter Szondi demonstra
como o drama moderno assimila a cisão do sujeito com o seu mundo, incorporando
características romanescas que se tornam problemáticas para a representação cênica. No
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monólogo A última gravação, a subjetividade infinita de Krapp, indubitavelmente romanesca,


conversa em seu interior o que comumente deveria ser evidenciado na representação
dramática para dar a conhecer ao expectador a narrativa de forma acabada. Contudo, o que de
fato este drama desenvolve são escombros de uma narrativa, fornecidos por trechos breves de
gravações pouco confiáveis, com reações ambíguas da personagem que não consegue manter
uma posição sobre o seu passado, tornando a encenação precária e inconclusiva. Disso
decorre a dissolução do drama como narrativa expositiva, pautada no diálogo e na troca
intersubjetiva.
Como no drama a corrosão das personagens não pode ser feita pelo passar dos anos no
palco, o drama absorve a corrosão das personagens romanescas pela restituição do passado ao
presente cênico. Assim, a atualidade cênica se torna apenas um pretexto para invocar o
passado,

ou seja, o tema não é nada do que se passou, mas o próprio passado:


os “longos anos” tantas vezes mencionado e a “vida totalmente
arruinada, perdida”. Mas isso tudo escapa ao presente dramático. Pois
só pode ser presentificado, no sentido da atualização dramática, um
fragmento do tempo, não o próprio tempo. No drama não pode haver
senão um relato sobre o tempo, ao passo que sua representação direta
é unicamente possível em uma forma de arte que o assume “na série
de seus princípios constitutivos”. Essa forma é – como mostrou G.
Lukács – o romance. (SZONDI, 2003, p.43.)

Assim, o drama que a princípio configurava apenas o presente em suas formas, com
intuito de dramatizar determinada narrativa, assimila o passado romanesco. Contudo, este
passado, devido à essência do drama, não avança abarcando o passar do tempo, pois o
passado dramático é possível somente enquanto relato “sobre” o tempo, uma vez que cabe
unicamente ao romance focar diferentes épocas em suas configurações. Logo, o drama
assimila o passado como narrativa acabada e encerrada, que se realiza não pela efetivação
cênica, mas pelo seu resgate à cena através das subjetividades das personagens, que
abandonam suas ações presentes para se entregarem às rememorações de acontecimentos que
justifiquem sua situação na atualidade cênica.
Neste ponto, com incorporação do passado no drama, podemos discutir o quanto a
crítica de Samuel Beckett serve de prenúncio estético, em considerações que às vezes
derrapam em contato com o seu objeto. Pois, se por um lado, em Proust as diferentes camadas
de seu narrador conseguem atar de fato o presente ao passado, na construção de pontes
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memorialísticas, ou até mesmo criar antevisões do futuro, que dão acesso a qualquer tempo
dentro do romance, por outro lado, as considerações de Samuel Beckett sobre uma corrosão
violenta, na qual o sujeito a cada momento torna-se outro, estranho a si mesmo, encontram
certa contestabilidade. Isso porque o sujeito narrativo proustiano consegue manter uma
unidade subjetiva, mesmo que modificada. Quando uma memória se assoma em seu
horizonte, ele a reconhece como uma extensão de seu ser. O contrário pode ser vislumbrado
em A última gravação, pois o sujeito de anos atrás que é escutado na gravação, é um outro, de
familiaridade discutível para a criatura do presente:

A Fita

Acabei agora mesmo de ouvir um ano antigo, passagens ao acaso. Não


verifiquei no livro, mas a coisa deve remontar a uns dez ou doze anos
atrás – pelo menos. Julgo que nessa altura vivia ainda com Bianca em
Kedar Street, enfim, quando a Deus prazia. Escapei de boa, oh, se
escapei! Era um caso perdido. (Pausa). Nada a respeito dela, à parte
uma homenagem aos seus olhos. Entusiástica. Tornei a vê-los de
repente. (Pausa). Incomparáveis! (Pausa). Enfim... (Pausa). Sinistras
estas exumações, mas acho-as as mais das vezes – (Krapp desliga o
aparelho, devaneia, torna a ligar o aparelho) utéis antes de me lançar
a um novo... (hesita) volta atrás. Difícil acreditar que eu tenha sido
alguma vez aquele cretinóide. Aquela voz! [...]
Jesus! E aquelas aspirações! (Risada breve a que se junta Krapp) E
aquelas resoluções! (BECKETT, s/d, p.225.)

Krapp ilustra a teorização romanesca elaborada por Samuel Beckett em Proust de


maneira rigorosa. O sujeito que se transforma no tempo, de fato, torna-se outro, diferente do
que um dia fora no passado. E em contraposição ao narrador proustiano, o passado não figura
como uma extensão temporal para Krapp, sua camada de um ano antigo vem à tona como
uma alteridade que colide com o protagonista no presente cênico. Desta forma, a violenta
corrosão que Beckett acredita estar no romance de Proust, aparece mais assentadamente no
embate de Krapp com aquele do passado, que não é reconhecido na atualidade cênica: “Difícil
acreditar que eu tenha sido alguma vez aquele cretinóide. Aquela voz!” As aspirações, que
impedem a subjetividade em camadas de tomar a profusão de caminhos decorrentes de seus
diferentes desejos, são responsáveis por dar um direcionamento à subjetividade em camadas.
Os resultados alcançados a partir destas aspirações encontram-se descompassados em relação
aos desejos almejados, pois o sujeito cambiante modifica-se no trajeto de suas realizações.
Isso é corroborado, neste trecho, nas afirmativas de Krapp: “Jesus! E aquelas aspirações! E
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aquelas resoluções!”, em que a criatura do presente rechaça as aspirações e resoluções


passadas, que não correspondem às suas vontades atuais. Na peça, as realizações reverberam
com maior intensidade nas escolhas aparentemente erradas de Krapp, que resultaram em sua
miséria atual. Delas se destaca o abandono de seu grande amor para a dedicação aos seus
estudos, que resultaram em uma obra literária fracassada. A divisão do sujeito, assinalada por
Beckett em sua crítica, pode ser vista no quadro cênico apresentado, uma vez que ele serve
como um ponto convergente da subjetividade em camadas, que possibilita inclusive a
observação da divisão dos sujeitos: em sujeito “A”, aquele que comenta a audição de uma fita
do passado; em sujeito “B”, o qual ainda vivia com Bianca na Kedar Street, comentado pelo
sujeito “A”; e em sujeito “C”, o qual está na superfície cênica e que escuta os comentários do
sujeito “A” acerca do sujeito “B”.
A subjetividade de Krapp desdobra-se sobre si mesma em ações independentes do
mundo contingente, de maneira análoga ao que acontece com as criaturas romanescas. A
corrosão de Krapp é, assim como em Proust, fruto da influência do tempo. Porém, a ação do
tempo em sua subjetividade tem como resultado a ruína de sua identidade, pois o sujeito de
superfície da personagem nem sequer compreende os principais acontecimentos que
marcaram sua vida no passado. Vemos a seguir:

A Fita

- volta atrás ao ano passado, com possivelmente


-espero – alguma coisa do meu velho olhar por vir, existe
naturalmente a casa do canal onde mamã se extinguia, no Outono
moribundo, após uma longa viuvez (Krapp estremece), e o –
(Krapp desliga o aparelho, põe a fita um pouco mais atrás, aproxima
o ouvido do aparelho, torna a ligá-lo)
– se extinguia, no Outono moribundo, após uma longa viuvez, e o –
Krapp desliga o aparelho, levanta a cabeça, olhos fitos no vazio. Mexe
os lábios sem ruído formando as sílabas viuvez. Levanta-se, vai para o
fundo da cena que está na obscuridade, volta com um dicionário
enorme, senta-se, pousa-o sobre a mesa e procura a palavra.
(BECKETT, s/d, p.226-227)

Krapp não consegue se lembrar do que foi a viuvez de sua mãe, e no intuito de
compreender do que se trata, consulta o dicionário. Desta forma, a personagem mostra-se
incapaz de concatenar assim os fatos mais relevantes de sua vida com o presente. Por
conseguinte, Beckett, ao pensar sobre a dicotomia radical entre passado/esquecimento na obra
de Proust, constrói um pensamento que soa como um eufemismo se projetado na obra Em
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busca do tempo perdido, mas que por outro lado adéqua-se muito bem a sua própria criação.
Continua a citação:

Krapp

(lendo o dicionário)
- Estado – ou condição – de quem é – ou permanece viúvo – ou viúva.
(Levanta a cabeça. Intrigado). Quem é – ou permanece?... (Pausa.
Inclina-se de novo sobre o dicionário, volta as páginas). Viúvo...
viúvo... viuvez (Lendo). Os véus espessos da viuvez... Diz-se de um
animal, particularmente de um pássaro... Viùvinha ou viúva... A
plumagem negra dos machos... (Levanta a cabeça. Com deleite).
A viùvinha!
(Ibidem)

De fato, Krapp se atrapalha na tentativa de compreender ao que se refere a voz do


passado ouvida em cena. A viuvez de sua mãe, acontecimento por si só marcante, não apenas
é esquecido como também é de difícil compreensão para o velho Krapp, que aparentemente
opta pela definição menos plausível de viuvez para esta situação. A conclusão deste trecho é
executada somente na subjetividade do protagonista, de modo que visualizamos apenas o
deleite de Krapp. Este deleite da personagem sintomatiza o problema da assimilação de
características do romance no drama, pois, ao final deste trecho, não sabemos ao certo qual é
o motivo da satisfação da personagem, por se tratar de uma reação essencialmente subjetiva.
Deste deleite, podemos deduzir - senão até mesmo afirmar - que esta satisfação é proveniente
da relação conclusiva que Krapp faz da sua mãe como a viuvinha, ou seja: pássaro macho de
plumagens negras.
Portanto, a criatura de Beckett é incapaz de formular sem indivisão uma síntese
unificadora. Suas tentativas de um novo registro fracassam nas frases que exprimem apenas a
gagueira da união dos tempos idos com o dizer improdutivo da reflexão do presente:

Krapp

-Acabei de ouvir este cretinóide por quem me tomava há trinta anos


custa a acreditar que eu já tenho sido bandalho a tal ponto. Ao menos
isso acabou, graças a Deus. (Pausa). Os olhos que ela tinha! (Divaga,
apercebe-se que está a gravar o silêncio, desliga o aparelho, divaga.
Por fim). Tudo ali estava, toda a – (Apercebe-se que o aparelho não
está ligado, torna a ligá-lo). Tudo ali estava, toda a velha carcaça do
planeta, toda a luz e a obscuridade, a fome e as comezainas dos...
(hesita) séculos! Deixar fugir uma coisa daquelas! Jesus! Uma coisa
que poderia tê-lo distraído dos seus queridos estudos! Jesus! (Pausa.
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Com cansaço). Enfim, talvez ele tivesse razão. (BECKETT, s/d, p.


230-231)

Nesta passagem, Krapp falha nas repetidas tentativas de elaboração de um pensamento


detido sobre o cretinóide que ele fora em outros tempos, suas frases não conseguem coordenar
o passado com a impressão do momento. Assim, estes períodos fragmentam cada momento da
personagem em pequenos trechos sem ligação entre si, a interrupção do discurso a cada
momento torna-o tateante e sem forças para considerações críticas. Esta estrutura possibilita a
oscilação da personagem entre conclusões que ora considera acertadas ora erradas em relação
ao abandono da mulher com a qual conviveu. A gagueira discursiva de Krapp demonstra
ainda o caráter essencialmente corrosivo de Samuel Beckett, que se aproxima mais de autores
como Gustave Flaubert do que Marcel Proust, haja vista a velocidade da corrosão sofrida pela
personagem nesta citação, que inicia seu registro com o intuito de refutar seu amor do passado
e que depois de duas frases se entrega às lembranças dos “olhos que ela tinha.” Ao final desta
citação, Krapp se curva à opinião de seu sujeito do passado, que é tratado com distância no
início deste trecho ao ser concebido como “este cretinóide por quem me tomava há trinta
anos”, e que em um breve período sofre a corrosão inexorável que o transforma a ponto de o
que, a princípio, era uma represália com distanciamento crítico tornar-se, finalmente, um
consentimento derrotado: “Enfim, talvez ele tivesse razão”; claro, ainda em uma concordância
incerta pelo emprego do “talvez”.
Já em Proust, temos as frases que parecem ter a potência e amplitude de concatenar
indefinidamente o tempo e seus diferentes desdobramentos, de retomar e reconstruir os
recônditos mais inacessíveis das sensações experimentadas por seu narrador. As frases
proustianas unem as diferentes camadas corroídas das personagens, que ainda conseguem
projetar-se rumo a um escopo, subjetivo ou temporal, destoando do que afirmou Beckett em
sua teorização sobre o romance:

E seu eu perguntava: “Conhece os Guermantes?”, o causeur


Legrandin respondia: “Não, nunca quis conhecê-los”. Infelizmente
respondia tarde, pois um outro Legrandin que ele ocultava
cuidadosamente no fundo de si mesmo e que não mostrava nunca,
porque esse Legrandin sabia sobre o nosso, sobre o seu esnobismo,
histórias comprometedoras, um outro Legrandin já tinha respondido
com a expressão do olhar, com o ricto de boca, com a gravidade
excessiva do tom da resposta, com mil flechadas que nosso Legrandin
se vira em um instante crivado e desfalecente, como um são Sebastião
do esnobismo: “Ah, que mal me faz! Eu não conheço os Guermantes,
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Corumbá, MS, novembro 2011, n. 4, p. 95

não me venha despertar a grande dor de minha vida”. E como esse


Legrandin indiscreto, esse Legrandin falastrão, se não tinha a bonita
linguagem do outro, tinha o verbo infinitamente mais pronto,
composto do que se chama “reflexões”, quando o Legrandin “bom
conservador” queria impor-lhe silêncio, o outro já tinha falado e, por
mais que nosso amigo se desolasse com a má impressão que as
revelações de seu alter ego deviam causar, o mais que podia fazer era
atenuá-la. (PROUST, 2006, p.169-170.)

O trecho acima condensa duas diferentes camadas de Legrandin: uma na qual emerge
espontaneamente o esnobe Legrandin, e que é mantida oculta no fundo da própria
personagem, que sabe da inconveniência de suas opiniões; e outra, a qual é conhecida pelo
narrador como um bom conservador, que busca remediar a sensação dissonante causada pela
sua impulsividade. Assim, encontramos a sobreposição destas camadas em frases que
desenvolvem a contradição das camadas simultaneamente. O poder de articulação do qual se
serve o narrador de Proust evidencia-se na reflexão que procura atenuar o movimento em
falso dado por Legrandin ao deixar emergir sua faceta esnobe. Vemos que neste romance
ainda é possível convergir o pensamento de subjetividades cindidas para a expressão da
corrosão da personagem, que mesmo disposta em diferentes camadas, ainda consegue tornar o
resultado de sua composição heterogênea exprimível. Deste modo, o distanciamento crítico de
Legrandin consegue enlaçar uma dissonância presente em sua subjetividade e remediá-la na
medida do possível. As frases de Proust comportam as dissonâncias, o distanciamento crítico
e as observações de seu narrador em grandes períodos que parecem abarcar tudo a sua volta e
dentro de si mesmo.
Samuel Beckett não nos apresenta uma obra crítica incoerente em Proust, mas um
ímpeto criativo em germinação que transborda frente ao seu objeto. Pois a potência de sua
própria estética, que foi concretizada de fato anos mais tarde, parece ter impregnado a crítica
acerca de Proust a tal ponto que podemos voltá-la à sua própria obra, ou decompô-la em
pontos nos quais o objeto de sua análise escapa ao radicalismo de suas considerações. Não por
acaso este livro assinala a renúncia de seu esforço docente para a dedicação à criação de sua
própria obra, isto é, o abandono da simples recepção para a criação de uma obra única e
incontornável na história da literatura.
carandá
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Corumbá, MS, novembro 2011, n. 4, p. 96

Referências

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Pespectiva, 2007.

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EIKHENBAUM, Boris. et al. Teoria da literatura: formalistas russos. Porto Alegre: Editora Globo,
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HEGEL, G. W. F. Cursos de Estética. 4vols. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2000.

JAMESON, Fredric. Modernidade singular: ensaio sobre a ontologia do presente. Rio de Janeiro:
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JAKOBSON, Roman. O dominante. In: LIMA, Luiz Costa. Teoria da literatura em suas fontes. 2vols.
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Corumbá, MS, novembro 2011, n. 4, p. 97

A DAMA DO LOTAÇÃO: UM CASO DE


AMOR, INFIDELIDADE E MORTE

Andréa Beraldo Borde1

Resumo: Este trabalho apresenta uma análise do conto A dama do lotação, de autoria de Nelson
Rodrigues, de modo a observar como a temática amorosa foi explorada pelo autor em um contexto
moderno que perpassava por profundas alterações comportamentais. O conto extraído da coluna A
vida como ela é..., do extinto jornal Última Hora, aborda um assunto recorrente em suas quase duas
mil histórias: traição. Do casamento pautado nos moldes tradicionais até à liberdade sexual vivenciada
pela protagonista do enredo, encontramos a crítica Rodriguiana ao florescer de uma revolução sexual
que defendia igualdade entre os sexos. Solange, a “dama” do lotação, será retratada pelo autor como
uma mulher dúbia, capaz de manter uma conduta em casa e, outra, na rua.

Palavras-chave: Amor, Traição, Revolução sexual

A DAMA DO LOTAÇÃO: A CASE OF LOVE, INFIDELITY AND DEATH

Abstract: This paper presents an analysis of the short story A dama do lotação, written by
Nelson Rodrigues. The author discusses how the theme of love has been explored in a modern
context that pervaded by profound behavioral changes. The tale drawn from Última Hora newspaper
column, A vida como ela é ..., discusses the reoccurring theme of treason in his nearly two thousand of
his stories. Wedding lined up along traditional lines for sexual freedom experienced by the
protagonist of the plot, we find the critical Rodriguean, the blossoming of a sexual revolution
that advocated gender equality. Solange, the "lady" of the stocking, will be portrayed by the
author as a dubious woman, able to maintain proper conduct at home and another type of conduct on
the street.

Key-words: Love, Treason, Sexual revolution

O conto A dama do lotação, de autoria de Nelson Rodrigues, compõe a coluna A vida


como ela é..., escrita entre 1951 e 1961 para o jornal carioca Última Hora. A coluna, que tinha
primeiramente seu posto bem delimitado nas páginas policiais, apresentava contos que
versavam sobre crimes passionais e traições, mais especificamente, as femininas. É notória a
gama de personagens femininas que, insatisfeitas com seus maridos e com os rumos de seus
casamentos, partem à procura de novos companheiros e de novas formas de amor.

1
Mestre em Literatura e Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Literatura e Cultura da Universidade
Federal da Bahia. Professora de Literatura Brasileira da União Metropolitana de Educação.
andreaborde@hotmail.com
carandá
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Produzido ao longo de uma década, os referidos contos de Nelson Rodrigues


acompanharam um momento bastante significativo da história do comportamento humano: o
desabrochar da Revolução Sexual, consolidada nos anos 60 a partir de conquistas como o
sufrágio universal, a proteção legal para trabalhadoras gestantes, a criação de delegacias
especiais para crimes contra as mulheres e a veiculação da pílula anticoncepcional, dentre
outras especificidades ligadas ao gênero feminino.
O conto – A dama do lotação – aborda e discute questões problemáticas para o seu
contexto de produção, um momento ainda arraigado tão somente a um sistema patriarcal de
organização familiar, que preconizava uma série de normas, de condutas sociais e morais
tanto para homens quanto para mulheres. Preocupado com as diretrizes que a família estava
tomando neste novo cenário moderno, Nelson Rodrigues apresentava críticas ao início de um
forte abalo das estruturas sociais vigentes, mostrando o deslocamento do poder masculino,
fortalecido nas mãos da figura paterna, para novos arranjos familiares, como a chefia da
família nas mãos de mulheres, de mães solteiras, de homossexuais, que passam a dar novas
configurações para a estrutura familiar, e como esses novos imperativos solapavam a força e a
virilidade masculina.
Desse modo, os contos de A vida como ela é... apresentam um caráter “didático” para
seus leitores (vale lembrar que o público alvo eram os homens), uma forma de denúncia
acerca do desenrolar da emancipação feminina, vista como “indecente” para os mais
conservadores. Nos contos, é comum encontrarmos a figura do marido como um ser
destituído de força, virilidade, dos atributos que deveriam compor o exemplar de “homem” da
década de 50/60, em contrapartida com as qualidades dos amantes, normalmente apresentados
como homens em pleno vigor físico e sexual.
O conto A dama do lotação é narrado em terceira pessoa, sendo intercalado por
diálogos diretos que, logo de início, já apresentam a tensão que envolve as personagens.
Trata-se, em suma, da história de Carlinhos, homem trabalhador e casado com Solange, que,
um dia, durante um jantar em casa, que tinha como convidado o melhor amigo do casal – o
Assunção -, começa a desconfiar da honra de sua esposa, já que durante um incidente (o
guardanapo que caiu no chão o fez se abaixar e presenciar a cena: sua tão pura esposa
esfregava seus próprios pés nos pés do amigo Assunção), adquire motivos para tais
desconfianças. Mesmo após desabafar com o pai, um viúvo e general bem respeitado, que se
mostra espantadíssimo com as incabíveis suspeitas do filho e o aconselha a esquecer das suas
dúvidas, Carlinhos continua a se questionar sobre um possível relacionamento extraconjugal
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de sua esposa. Dias após o “incidente”, ele encontra seu amigo Assunção na rua e este conta
que havia se encontrado, por acaso, com Solange, precisamente dentro de um lotação.
Intrigado com a situação, Carlinhos mente e afirma que a esposa já havia lhe contado sobre o
encontro. Em casa, questiona a mulher se ela teria visto Assunção por aqueles dias e ela,
entretida em pintar as unhas, afirma que não via o tal amigo há algum tempo. Carlinhos
dirige-se para o escritório da casa, saca uma arma e chama Solange aos berros para uma
conversa. Após trancar a porta, tem início um diálogo intimidador – através da presença da
arma –, e ele lança uma pista falsa para sua esposa, afirmando que já sabia de todo o seu caso
com Assunção. Ela, “até então passiva e apenas espantada” (RODRIGUES, 1992, p. 221),
tenta negar a suposta traição, mas quando Carlinhos ameaça matar o amigo como forma de
vingança, Solange, desesperada, se agarra ao marido e confessa que Assunção não era o
único; existiam mais amantes. Assim, a esposa começa a confessar o que fazia cotidianamente
dentro dos lotações, afirmando que parecia que não era ela mesma quem ia para aqueles
encontros fortuitos. Nas palavras do próprio Carlinhos, quase que a metade do Rio de Janeiro
já havia se deitado com Solange e, sem conseguir expressar palavras ou gestos de ódio, o
marido apenas declara que, a partir daquele dia, estava morto para o mundo. Dirige-se então
para seu quarto, veste-se formalmente e deita-se na cama, recriando a posição de um morto. A
esposa, ao ver tal cena, fica estarrecida e, logo após, produz-se com uma indumentária
peculiar: iria velar seu marido vivo. No dia seguinte, pela tarde, ela veste-se tranquilamente,
como todos os outros dias de sua vida, e se dirige para o lotação. No fim da tarde, volta para
casa e continua a velar o marido vivo.
Toda a narrativa é contada por um narrador irônico e mordaz, que, conhecedor da
história, narra-a com tal destreza que consegue encadear as tensões do conto, de modo a
culminar em um final surpreendente. A linguagem é tida como inovadora para seu contexto de
produção, apresentando diálogos curtos e rápidos, os quais acabam ecoando o ritmo acelerado
das cidades e encontra nos jornais local profícuo para sua circulação.
Assim, a produção e a análise do conto trazem em si elementos que podem servir de
base para a visualização de um período de transição. Solange, personificando a imagem do
perigo que uma esposa dúbia podia oferecer, trata-se da denúncia de Nelson Rodrigues: os
maridos deveriam ficar atentos às suas mulheres, por mais puras e angelicais que elas
pudessem se mostrar. A graça e a limpidez de Solange, descritas pelo narrador e alicerçadas
através do diálogo do pai de Carlinhos, apresentam uma figura que consegue manter uma
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aparência dentro de casa e outra na rua. Tratava-se da nova mulher que despontava no final na
década de 50: uma mulher sagaz, conhecedora e perseguidora de seus desejos mais secretos.
A personagem Solange constitui-se, destarte, como uma figura emblemática,
representando o medo que a “nova” mulher despertava nos homens mais conservadores. Na
década de 50, a honra feminina estava atrelada à manutenção de um corpo puro e destituído
de desejos, mantendo a “moça de família” como o modelo de garota a ser seguido, ao
contrário do homem, que mantinha sua honra através dos exercícios constantes de virilidade,
como a façanha de inúmeros adultérios, os quais ainda eram vistos como algo próprio da
natureza masculina. Já o adultério feminino, se constituía como uma ruptura com todo o
sistema dominante, na medida em que reformulava novos tipos de comportamentos sexuais
para as mulheres, além de, no pensamento da época, estampar a incapacidade de
gerenciamento da mulher e do lar por parte do homem, que tinha a sua virilidade posta à
prova, uma vez que a cônjuge precisava encontrar fora de casa um amante capaz de suprir
suas “necessidades”, o que denunciava algum tipo de “incapacidade” por parte do marido
traído.
De tal modo, a personagem Solange é marcada por dualidades: vida privada x vida
pública; esposa fiel x esposa infiel; manutenção de uma imagem social x uma imagem
clandestina.
A análise do conto em questão nos permite discutir a nova configuração que o
casamento atravessava nos idos de 1950. Calcado em uma concepção cristã de mundo, no
Brasil, ao longo do tempo, foi reproduzida uma percepção pecaminosa de sexo, exigindo a
criteriosa proibição de tudo o que implicasse e resultasse em prazer. Assim, o casamento, nos
moldes do cristianismo, era concebido como um sacramento, em que uma “mulher de
princípios, nada deveria saber sobre sexo” (Priore, 2006, p. 198), cabendo tão somente ao
homem o papel de professor de sua esposa durante a tão sonhada lua-de-mel, uma vez que o
homem era tido como o gestor da autoridade moral, e à mulher cabia o papel de salvaguardar
a afetividade e o controle de sua sexualidade, baseada, sobretudo, em uma honra inatingível,
afinal, ela era o “sexo frágil”.
Segundo a historiadora Mary Del Priore, “o desejo sexual constituía-se em um direito
exclusivo do homem, cabendo às esposas, a submissão e a virtude.” (Priore, 2006, p. 31).
Assim, uma série de códigos regia a vida de homens e mulheres dessa época, ficando relegada
às mulheres uma extrema submissão de suas vontades em prol de um casamento “saudável” e
adequado às normas do “bem viver”. Para Priore, “como esposa, seu valor perante a sociedade
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estava diretamente ligado à ‘honestidade’ expressa em seu recato, pelo exercício de suas
funções no lar e pelos numerosos filhos que daria ao marido” (Priore, 2006, p. 145).
Nesta conjuntura coercitiva, o sexo era visto como a principal questão tabu da
sociedade. O ser feminino era criado simplesmente para compor um casamento, ser mãe e
condutora de um lar harmonioso e tranquilo para seu marido. O signo “mulher” estava
atrelado à significação da maternidade, a reprodutora de um lar repleto de uma numerosa e
virtuosa descendência. Vale lembrar que, nos moldes desse casamento de meados do século
XX, pressupunha-se uma sexualidade normalizada, que tinha como único fim a procriação da
espécie. As questões concernentes ao orgasmo, principalmente o feminino, não eram
discutidas, ficando na base dos interditos de uma sociedade opressora e machista. Fora do
casamento, nenhuma sexualidade “normal” tinha o direito de se exprimir.
A partir do começo da década de 60 tem início um dos maiores movimentos da
sociedade: a Revolução Sexual, gestada ao longo de anos e impulsionada por mulheres que,
cansadas de séculos de opressão por parte da sociedade, inventam novos moldes de encarar o
amor, o sexo, o casamento, a maternidade, o trabalho. O estopim surge com a circulação da
pílula anticoncepcional, com os escritos de Simone de Beauvoir e o consequente desligamento
da figura da mulher associada à maternidade, garantindo que questões tabus, como o orgasmo,
fossem discutidas por outras mulheres, as quais começam a partir em busca de suas
satisfações.
Nesse contexto, a dominação masculina estava tão impregnada como algo natural de
nossa sociedade, que diversas questões relacionadas ao poder simbólico do sexo masculino
passavam despercebidas. Homens e mulheres viviam uma situação hierarquizada e inabalável
(também não podemos pensar que essa dinâmica, arquitetada como um constructo social
naturalizado, era unilateral. O poder era e é opressor sim, mas muitas vezes a mulher também
contribuiu para esse conjunto de domínio de forma passiva, assumindo uma identidade
feminina basilada na pureza e na castidade, como na expressão “sou moça de família”).
Em decorrência dessa revolução, hoje temos o que é chamado de “família mutilada”,
caracterizada pela “inversão” dos papéis sexuais, constituindo-se em um novo paradigma da
família afetiva contemporânea.
É de se notar que a revolução criou profundas máculas nos homens, que viram seu
poder ser destituído e apossado por mulheres que abriram mão de uma seguridade e
estabilidade em casamentos que não traziam a felicidade tão almejada e vendida nos
romances, estes que também já denunciavam há tempos mulheres insatisfeitas em casamentos
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indissolúveis, que partiam em busca de felicidade nos braços de amantes – os clássicos


amores impossíveis, como no tão citado O Primo Basílio e Madame Bovary.
Em A dama do lotação, é apresentada a mesma estrutura do casamento dos anos 50,
mas com uma esposa que foge aos padrões da “boa conduta”, uma vez que não consegue frear
os seus impulsos sexuais. Solange, no entender de Rodrigues, e da sociedade da sua época,
deveria canalizar a sua sexualidade, controlar sua libido, já que a sexualidade estava tão
somente atrelada à reprodução humana. Mas, ao contrário do que preconizavam as normas,
Solange desconstrói todo o modelo de esposa da época.
No conto, o lotação é o local onde a personagem encontra os seus parceiros sexuais,
constituindo-se como revelador de significativas mudanças da sociedade em questão. Solange,
todos os dias pela tarde entra no primeiro lotação que aparece e se senta ao lado de qualquer
cavalheiro que esteja só – “Podia ser velho, moço, feio ou bonito” (Rodrigues, 1992, p. 222).
O contexto sócio-histórico de A dama do lotação perpassava pela modernização
acelerada das cidades brasileiras, que, após a Segunda Guerra Mundial, sofria com as
influências de uma industrialização exacerbada. É a partir dos primeiros anos do século XX
que as cidades brasileiras começam a se modernizar e a criarem novos espaços de
entretenimento para a população. A classe média foi uma das grandes beneficiadas neste
momento, vivendo um período de grande ascensão econômica e ampliando, dessa forma, seu
acesso à informação, ao consumo em massa e ao lazer. O mercado de trabalho também se
abria para as mulheres, que ajudavam a complementar o orçamento familiar (nos contos de A
vida como ela é... é significativo o número de mulheres que trabalham em repartições
públicas, com suas inúmeras secretárias e datilógrafas).
Com as cidades em expansão, ocorre a possibilidade de encontros fortuitos que a
própria cidade proporciona, como uma maior freqüência às praças, jardins, zoológicos,
ônibus. Rodrigues pontua, através de seus textos, o perigo que tais espaços poderiam oferecer
à honra de muitas mulheres, que passavam a encontrar abrigo seguro nos automóveis de seus
namorados, por exemplo. Dessa forma, inúmeras são as personagens rodriguianas que
apresentam um comportamento desviante das normas, colocando em dúvida/suspensão, mais
uma vez, o poder e o papel masculino.
Na modernidade, os valores da experiência individual passam a constituir a identidade
do indivíduo, agregando agora uma identidade feminina. No conto, a cidade é muito mais do
que um simples cenário, do que a descrição do espaço físico, e a presença de certos elementos
(como o ônibus) estabelecem uma relação profunda com o personagem. O espaço urbano atua
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sensivelmente na trama e a agilidade dos diálogos traduz o ritmo acelerado da cidade. Na rua,
podem-se revelar segredos que não são ditos dentro de casa, estabelecendo uma divisão entre
o público e o privado, e a metrópole possibilita ao indivíduo a confissão de certas coisas,
encontrando na multidão e no anonimato o conforto para suas confissões.
O automóvel, um dos símbolos da modernidade, aparece desse modo, como também
símbolo recorrente na obra de Nelson Rodrigues. Estar “dentro” de um automóvel é deter
poder, mesmo que por um curto período de tempo, e a “dama do lotação” aproveita esse
espaço para poder selecionar os seus amantes anônimos, tendo a possibilidade de fugir de sua
realidade de dona do lar.
Portanto, Solange parte à procura de seus possíveis amantes justamente neste símbolo
da modernidade, o lotação, que no contexto moderno das grandes cidades é quem leva a
grande massa de trabalhadores para seus respectivos empregos. No conto, Solange relata que
seu primeiro amante foi um mecânico desconhecido, “de macacão azul, que saltaria pouco
adiante” (Rodrigues, 1992, p. 222), seguido por outros trabalhadores, como o motorista de um
dos ônibus, que já conhecia a fama da dama do lotação e que “fingiu um enguiço, para
acompanhá-la” (Rodrigues, 1992, p. 222).
A personagem Solange, instada pelo marido a contar como foi que tudo começou,
passa a narrar “sem excitação, numa calma intensa”, os detalhes de sua sórdida procura.
Todos os dias, pela tarde, saía para procurar suas “vítimas” e, assim, a temática do adultério é
explorada ao longo da narrativa, apresentando uma jovem esposa que tinha problemas em
lidar com sua sexualidade. O mais fantástico da história é que durante dois anos,
religiosamente todos os dias pela tarde, ela cometia seu “crime” e ainda conseguia assegurar
sua imagem de esposa fiel no lar.
Segundo Eduardo Leal, a família é o território de fronteira entre o público e o privado,
constituindo-se o adultério como uma violação de um contrato estabelecido entre duas
pessoas – o próprio casamento. A mulher é tratada como um lugar reservado, essencialmente
doméstico e a sociedade é alicerçada em pactos, em contratos, que garantem ao indivíduo uma
sensação de pertencimento. No adultério, o elemento central trata-se da entrada de um terceiro
na relação, uma figura estranha, “estrangeira”, que acaba ameaçando o equilíbrio do contrato
matrimonial. Em A dama do lotação não existe a figura una de um amante, mas de vários, o
que impossibilita que o esposo possa “limpar” a sua honra, recorrendo, dessa forma, a uma
morte simbólica, a uma morte social.
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A questão da infidelidade feminina é muito mais caótica em nossa sociedade, já que o


adultério feminino está em direta correlação com a masculinidade, com a honra e, mais ainda,
com a virilidade do esposo traído. Recorrer a outros parceiros, fora do casamento, de acordo
com o pensamento de Rodrigues, revela uma não satisfação por parte da esposa e a uma não
capacidade do esposo em “satisfazer” sexualmente sua parceira. O marido, neste contexto
histórico, deveria ser o gestor, o administrador da mulher, de suas necessidades e desejos. O
adúltero, segundo Leal, é o ser desviante que ameaça a ordem estrutural do matrimônio,
colocando em suspensão um aparente equilíbrio em nome de uma relação fortuita.
Para Priore, “a fidelidade conjugal era sempre tarefa feminina; a falta de fidelidade
masculina vista como um mal inevitável que se havia de suportar. É sobre a honra e a
fidelidade da esposa que repousava a perenidade do casal” (Priore, 2006, p. 187). Enquanto
para as mulheres era extremamente proibido o crime do adultério, já que constava em lei
nacional que o adultério feminino era considerado crime, para os homens, o adultério e a
defesa da honra estavam acima de qualquer estatuto. Ainda segundo Priore,

entre os crimes passionais, o mais debatido era o cometido como


reação ao adultério. Apoiado na tradição machista e patriarcal, o crime
seria predominantemente masculino. Nessa tradição, honra manchada
lavava-se com sangue (Priore, 2006, p. 265).

Após saber dos tórridos encontros amorosos de sua esposa, Carlinhos dirige-se para
seu quarto e dá início ao seu próprio velório. Interessante é notar essa reação do marido, ao
saber das “verdades” enunciadas por sua esposa. Matar um único amante seria mais fácil para
limpar sua honra, mas “a metade do Rio de Janeiro” seria impossível, ainda mais que a
identidade do indivíduo nem devia mesmo ser conhecida pela própria Solange. Consternado
com a avalanche de acontecimentos, Carlinhos decide cuidar do seu próprio funeral e tem
início alguns ritos funerários, como a colocação da indumentária e a recorrente posição de
morto – “Entrou no quarto, deitou-se na cama, vestido, de paletó, colarinho, gravata, sapatos.
Uniu bem os pés; entrelaçou as mãos, na altura do peito; e assim ficou” (Rodrigues, 1992, p.
223).
Percebe-se nos textos de Rodrigues uma clara compulsão pela temática da morte.
Neste conto, a decisão tomada por Carlinhos de fingir-se de morto, revela uma significativa
saída para seu problema. Ser traído por muitos homens não lhe possibilitava restituir sua
própria honra, assim, a decisão de se fingir de morto denuncia a tentativa de morrer
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socialmente, já que sua honra masculina, sua virilidade tinham sido abaladas a partir do
desenfreado apetite sexual de sua esposa e seria impossível restituí-la.
A partir da análise do texto Luto e Melancolia, de Freud, pode-se estabelecer um
paralelo com a situação do personagem Carlinhos, que dá início aos ritos do seu próprio
funeral. Freud, em seu texto, contrasta os ritos de um funeral e o conseqüente estado “normal”
de tristeza por parte daquele que perde um ente querido, com as do indivíduo melancólico,
que tem por traço distintivo um pesaroso desânimo e uma cessação de interesse pela vida. O
indivíduo melancólico é caracterizado por uma extrema autopunição e uma auto-estima baixa.
Segundo Freud,

Esse quadro de um delírio de inferioridade (principalmente moral) é


completado pela insônia e pela recusa a se alimentar, e — o que é
psicologicamente notável — por uma superação do instinto que
compele todo ser vivo a se apegar à vida. (...) A melancolia, portanto,
toma emprestado do luto alguns dos seus traços e, do processo de
regressão, desde a escolha objetal narcisista para o narcisismo, os
outros. É por um lado, como o luto, uma reação à perda real de um
objeto amado; mas, acima de tudo isso, é assinalada por uma
determinante que se acha ausente no luto normal ou que, se estiver
presente, transforma este em luto patológico. A perda de um objeto
amoroso constitui excelente oportunidade para que a ambivalência nas
relações amorosas se faça efetiva e manifesta. (Freud, s/d, p. 3)

A aproximação com o estado de ânimo de Carlinhos é possível, já que ao se declarar


como morto para a esposa, se nega a jantar e a própria esposa toma a decisão: “foi dizer à
empregada que tirasse a mesa e que não faziam mais as refeições em casa” (Rodrigues, 1992,
p. 223).
Ainda segundo as análises de Freud e tendo em vista a “solução” encontrada por
Carlinhos, é percebido que o indivíduo melancólico tende a se auto-punir e a se vingar do ente
amado através da sua própria doença, uma vez que a desordem emocional tenha sido causada
pelo ser amado. No conto, a esposa prostra-se ao leito de “morte” do marido e é sentenciada a
velar o marido vivo como forma de punição para os seus delitos.
Nessas correlações entre morte e vida, pode-se também aproximar o conto em questão
com as teorias desenvolvidas no texto “Além do princípio de prazer”, também de autoria de
Freud, em que as pulsões de vida e de morte são analisadas como inerentes ao instinto de
qualquer ser vivo.
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Em A dama do lotação, o instinto reprimido de Solange nunca deixa de se esforçar em


busca de uma satisfação completa, daí decorrem os seus inúmeros casos de adultério, em
busca de uma possível completude que nunca é alcançada. Os instintos do ego e os sexuais
trabalham com as pressões de morte e de vida, impulsionando o ser a seguir sua natureza, seus
próprios instintos. Para Freud, os instintos sexuais seriam assemelhados a Eros, força
fundamental do mundo que, longe de ser considerado como um Deus todo-poderoso, é uma
força que se apresenta em uma eterna insatisfação. Assim, os instintos sexuais seriam
prolongamentos da vida, buscando uma renovação incessante, uma corporificação de vontade
de viver e de se perpetuar.
Solange personificaria, dessa forma, a pulsão de vida, marcada por esse desejo
frenético e repetitivo de prolongamento da vida, de necessidade de completude, que a leva a
buscar parceiros anônimos em uma ânsia de encontrar satisfação sexual. Carlinhos, situado no
outro extremo, na pulsão de morte, tende a querer se destruir, a retornar a um estado primevo,
a um momento de total indiferenciação do ser.
Nestas pulsões de vida e na tentativa de encontrar parceiros que pudessem realizar
momentos de completude no seu cotidiano, Solange é aproximada através do vocábulo
“dama” às próprias damas dos cancioneiros medievais do século XIV, aquela que
historicamente é a senhora medieval, grande amor dos trovadores e cantada por ser,
justamente, inacessível, constituindo-se como aquela que era impossível, aquela que é
bajulada e servida. Segundo Priore,
Mas não é qualquer mulher essa por quem se “apaixona” o trovador.
Ela é elevada. Sua excelência de espírito e sua inteligência contam. A
amada é portadora de valores morais que estimulam o que há de
melhor no sexo masculino. Ela acende no parceiro o desejo do que lhe
é superior. O homem, por sua vez, reconhece o lado sublime da
mulher, renunciando, por isso, ao prêmio material – seu corpo. Nesse
código amoroso o que está em jogo não é a diminuição do desejo, mas
a tensão em que o indivíduo se reconhece na experiência de desejar
(Priore, 2006, p. 88/89).

Desse modo, a dama do lotação rodriguiana ironiza essas questões, apresentando-se


altamente alcançável a inúmeros homens, invertendo até mesmo a lógica da sedução, que
antes era refutada apenas ao homem, que cortejava sua dama ao longo de incansáveis dias,
mesmo sabendo que a mulher era dita “impossível”. Aqui, Solange é quem desempenha esse
papel, deslocando o signo da virgem imaculada para aquela que busca seus companheiros,
atrás de um apetite sexual desenfreado. As indicações do narrador rodriguiano é que essa
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dama consegue ter a artimanha de camuflar um valor moral que pode não existir, com seus
deleites constituindo-se como algo efêmero, fugaz.
A temática amorosa exposta nesse conto mostra como o amor e as formas de amar
foram se transformando ao longo dos tempos, e como a inversão de papéis amorosos é
reveladora de profundas transformações da sociedade. Seguindo a linha de pensamento de
Priore, existia no Brasil colônia “uma tradição portuguesa que interpretava o casamento como
uma tarefa a ser suportada” (Priore, 2006, p.13). Com isso, o protótipo de mulher ideal estava
atrelado a um padrão de pureza, castidade, generosidade, fidelidade e, sobretudo, a um corpo
assexuado, livre de desejos “pecaminosos”, remetendo à imagem da Virgem Santíssima como
modelo feminino a ser seguido e cultuado. À mulher cabia a necessidade e o dever de ser
disciplinada, com uma domesticação dos impulsos, a “educação dos sentidos”. No conto de
Rodrigues, A dama do lotação está entregue a um destino de procura, sendo totalmente
deslocada e desvinculada de um papel de mulher casta, esposa e mãe.
No novo cenário vislumbrado e tão temido por Nelson Rodrigues, a mulher começa a
se desatrelar de papéis que lhe eram designados como naturais e obrigatórios. Ser mulher era
sinônimo de ser mãe e à medida que o acesso ao prazer era totalmente dissociado da
reprodução (o uso de contraceptivos assinalava esse momento), ocorria consequentemente o
declínio do poder patriarcal. Segundo Elisabeth Roudinesco,

(...) a família dita “moderna” torna-se o receptáculo de uma lógica


afetiva cujo modelo se impõe entre o final do século XVIII e meados
do século XX. Fundada no amor romântico, ela sanciona a
reciprocidade dos sentimentos e desejos carnais por intermédio do
casamento. Mas valoriza também a divisão do trabalho entre os
esposos, fazendo ao mesmo tempo do filho um sujeito cuja educação
sua nação é encarregada de assegurar. A atribuição da autoridade
torna-se então motivo de uma divisão incessante entre o Estado e os
pais, de um lado, e entre os pais e as mães, de outro. Finalmente, a
partir dos anos 1960, impõe-se a família dita “contemporânea” – ou
“pós-moderna” -, que une, ao longo de uma duração relativa, dois
indivíduos em busca de relações íntimas ou realização sexual. A
transmissão da autoridade vai se tornando cada vez mais problemática
à medida que divórcios, separações e recomposições conjugais
aumentam (Roudinesco, 2003, p. 19).

Assim, Solange representa a nova mulher que despontava nos finais da década de 50 e
início da década de 60, desembocando na irrupção do ser feminino, desatrelada da autoridade
do marido, da subordinação feminina e da dependência dos filhos. Sua sexualidade não é dada
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em consequência de uma função materna, mas de desejos que não conseguem se controlar,
devido a todo um poder sufocante que atuou (e atua) no corpo feminino. A dessacralização de
instituições como o casamento, o pai, a mãe, o amor, o sexo, corroboraram para a nova
configuração da sociedade contemporânea, com mulheres no mercado de trabalho exercendo
profissões que até bem pouco eram tidas como “profissões de homem”, assumindo produções
independentes e exercendo a sua própria sexualidade da forma como achar mais conivente,
sem estar necessariamente presa a certas dualidades, como no exemplo exposto por Nelson
Rodrigues, em A dama do lotação.

REFERÊNCIAS

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Corumbá, MS, novembro 2011, n. 4, p. 109

O NARRADOR VIAJANTE DE GARRETT


Alex Alves Fogal1

Resumo: O objetivo desse artigo é abordar a temática da viagem na obra Viagens na minha
terra de Almeida Garrett como uma questão que vai além do âmbito físico e referencial. A
intenção é estabelecer uma linha de interpretação capaz de mostrar que o tipo de
deslocamento operado pelo narrador do livro não é apenas referencial, mas principalmente
formal, pois o que sê na composição da obra é um movimento de constante alternância entre
vários métodos de narração e técnicas de composição. A partir de uma relação com a chamada
“forma shandeana”, inaugurada por Lawrence Sterne, se buscará compreender como a viagem
do narrador de Garrett se torna interessante se entendida como um turismo pelas formas
narrativas.

Palavras-chave: Viagem, Forma da narrativa, Composição

THE GARRETT’S TRAVELER NARRATOR

Abstract: The objective of this article is to tackle the travel theme at the book Viagens na
minha terra, writed by Almeida Garrett, as a question that goes beyond of the physical and
empirical scope. The intention is to establish a way of interpretation capable to show that the
type of dislocation performed by the romance’s narrator it’s not only physical, but principally
aesthetical, because as we can see at the book’s formal structure is a constant movement of
alternating between many methods of narration and techniques of composition. Trough an
relation with the “shandean form” initialized by Lawrence Sterne, we will try to understand
how the travel of the Garret’s narrator can be interesting if considered like a travel by the
narrative forms.

Keywords: Travel, Narrative form, Composition.

1. INTRODUÇÃO

A temática da viagem ou do viajante é algo inseparável da história da humanidade,

uma vez que a figura do indivíduo que percorre espaços até então desconhecidos e descobre

novas paragens, sempre habitou o ideário dos homens. Ideário onde sempre teve figuração

efetiva a faceta do “homo viator”, que busca sempre a mobilidade constante.

1
Mestrando do Programa de Pós-Graduação em Estudos Literários da Universidade Federal de Minas Gerais
(UFMG). Email: alexfogal@yahoo.com.br.
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No âmbito da criação literária, essa ânsia do ser humano em desbravar novos lugares,

em lidar com o novo, apresenta algumas nuances importantes de serem observadas, já que

nem sempre o ato de viajar foi representado unicamente no plano das viagens referenciais ou

de caráter físico, topográfico. Nesse caso, pode-se dizer que nem sempre a viagem será apenas

literal, mas também literária.

Para que fique mais claro o que está sendo dito, basta fundamentar-se em alguns

autores que, apesar de se utilizarem da forma estética de obras literárias que trazem como

elemento central a questão da viagem ou da trajetória de formação de algum personagem, não

se prendem estritamente à formula tradicional dos “livros de viagem”, uma vez que adotam

estratégias narrativas que destoam das construções literárias que tratam o ato de viajar do

modo tradicionalmente concebido. Dentre esses é possível encontrar escritores como Xavier

de Maistre, Lawrence Sterne, Diderot, Almeida Garrett e vários outros.

No caso desses autores, o que se nota é um tipo de viagem peculiar, diversa da idéia de

viagem épica na qual o indivíduo é movido por ações que o levará a conquistas, nas quais a

idéia de mobilidade sempre estará associada à busca de grandiosidade. Diferente do tipo de

narrador-viajante observável na épica, o viajante da narrativa moderna se acha solitário,

enxergando a si mesmo como único portador da substancialidade e perdido em figurações

reflexivas. Seus movimentos não são mais plenos de substância, não podem ser vistos mais

dentro de um caráter coeso e universal.

Em contraposição aos tipos de narradores que podem ser observados nas obras dos

autores citados no parágrafo anterior, o herói da epopéia nunca será visto puramente como

indivíduo, já que a epopéia possui como um de seus traços mais marcantes o destino de toda

uma comunidade, de uma pátria, e não apenas um destino pessoal. O todo do cosmos épico é

orgânico demais para que uma de suas partes possa ser representada como isolada de si
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mesma através das impressões de um narrador como ocorre na literatura moderna (LUKÁCS,

2006, p.60-67).

Para observar melhor tais questões e analisar de modo pertinente esse tipo de “viagem

peculiar” empreendida pelo narrador na literatura moderna, o presente trabalho apresenta

como proposta a construção de uma linha de interpretação de tal tópico a partir do estudo da

obra Viagens na minha terra (1992), do romancista português Almeida Garrett.

A escolha desse romance configura-se como importante devido ao fato do narrador de

Garrett servir como exemplo que ilustra esse modelo específico de viajante, tão recorrente nas

narrativas modernas. Ou seja, ao contrário do típico narrador das viagens épicas, este segue

um percurso nada linear, baseado quase que unicamente em suas impressões sobre o que vê,

dando tom próprio ao mundo pelo qual circula. O narrador passa a apresentar como principais

marcas a sua forte digressividade, uma característica hipertrofia de sua subjetividade e o

tratamento especial que dá ao tempo e ao espaço no decorrer da obra.

Na mesma trilha dos romancistas formados pelo método de composição das narrativas

antigas, como por exemplo, as luciânicas, o narrador de Viagens na minha terra se utiliza de

uma técnica narrativa baseada na relação de distância e cumplicidade entre o narrador e o

leitor, fazendo uso das artimanhas da prepotência narrativa (BRANDÂO, 2005, p. 41- 62). A

narrativa do romance escolhido como base se filia à linha daqueles narradores que preferiram

colocar a História para fora da cena central, não apresentando cerimônias em subverter datas,

fatos históricos e tudo aquilo que se mostra como “oficializado”.

Para alcançar uma perspectiva de análise que ajude a elucidar tais questões de modo

pertinente, o trabalho será estruturado de forma que suas partes estejam em consonância, ou

seja, tudo será desenvolvido de modo que os pontos abordados se complementem uns aos

outros. Para que isso seja compreendido de maneira mais clara, torna-se importante uma

rápida abordagem da configuração segundo a qual o estudo será desenvolvido.


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Inicialmente será observado o tipo de viagem peculiar desenvolvido no romance de

Garrett, pois conforme se pretende demonstrar aqui, a narrativa de Viagens na minha terra

não pode ser concebida como uma viagem puramente referencial (embora o narrador da obra

realmente empreenda uma curta viagem de Lisboa até Santarém, ao contrário de Xavier de

Maistre que nem ao menos sai de seu quarto), mas sim como uma viagem pelos próprios

métodos ou formas narrativas. Tentarei demonstrar através de alguns teóricos e de exemplos

extraídos do romance, como a narrativa do autor português não tem seu centro de tensão na

pequena viagem realizada, uma vez que “As Viagens” do título servem apenas como pretexto

para que o narrador possa estabelecer um amplo painel das transformações ocorridas em

Portugal nas primeiras décadas do século XIX. Conforme se pode observar no prefácio que

Carlos Felipe Moisés escreve para o romance1, a obra pode ser observada em dois planos

diferentes: num primeiro plano, mais artificial, no qual a obra pode ser vista como simples

relato de viagem e num segundo plano, onde o espaço que se percorre funciona apenas como

pano de fundo. Porém, apesar desse apontamento ser importante, a perspectiva que será

estabelecida aqui pretende observar os dois planos funcionando numa interação dialética, pois

as viagens de algum modo dão forma ao estilo narrativo sinuoso, entrecortado e permeado por

divagações. Nesse ponto, tentarei compreender a forma da obra não apenas como um

invólucro do conteúdo, mas como estrutura significativa para o entendimento total da estética

da obra.

O segundo ponto a ser abordado consiste numa análise da tradição narrativa que

contribuiu para com o desenvolvimento da forma estética observada no romance de Garrett,

ou seja, dá fundamentos para que se extrapole a idéia da viagem simplesmente referencial.

Para a constituição dessa parte do trabalho será de grande relevância a teorização de Sergio

1
A edição utilizada no presente trabalho é a de 1992, da editora Nova Alexandria.
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Paulo Rouanet na obra Riso e Melancolia (2007), haja vista que o crítico empreende um

estudo sobre o que ele denomina como “forma shandeana” do romance. Para ele, o autor de

Viagens na minha terra é um dos escritores modernos que assimilaram esse método de

composição tornado famoso na literatura ocidental por meio da obra de Lawrence Sterne.

Tratar de tal questão será de grande valia para compreender o estilo narrativo de Garrett já

que ajudará a entender quais as técnicas narrativas empregadas para que o método não-

convencional de se viajar seja desenvolvido pelo autor.

Outro ponto importante para a construção da linha de interpretação que se objetiva

construir aqui será a questão da ironia romântica ou formal na construção do romance de

Garrett. Um estudo sobre tal ponto, mesmo sem a devida profundidade que o tema merece,

pode ser considerado como um auxílio para a compreensão da viagem pelas formas narrativas

empreendida por Garrett. Isso pode ser dito devido ao fato de que se entendermos o

movimento de auto-reflexão formal proporcionado pela ironia romântica como dispositivo

estético da obra do autor, fica nítido que assim como Machado de Assis, Diderot, Sterne e

Xavier de Maistre, o escritor português também fornece ao leitor todos os elementos para

definir a forma de sua obra, mesmo quando isso é feito de maneira sutil.

Conforme foi dito anteriormente, todos esses três pontos que serão abordados na

realização do trabalho encontram-se interligados. O primeiro ponto a ser abordado sobre a

questão do tipo peculiar de viagem que Almeida Garrett realiza em sua narrativa é a porta de

entrada para que possam ser suscitados apontamentos sobre a tradição narrativa ligada a esse

método de composição observável em Viagens na minha terra.

Já esse segundo ponto, além de demonstrar como as técnicas narrativas utilizadas pelo

narrador de Garrett em sua viagem peculiar foram assimiladas, servirá também para deixar

visível como essa linhagem de autores se valeu do movimento de auto-reflexão na

composição de suas obras.


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Assim sendo, esse segundo ponto encontra-se também ligado ao terceiro, no qual serão

tratadas algumas questões sobre a ironia formal como técnica de estruturação das obras

literárias, o que será importante para entender de que forma tal elemento de construção serve

para realizar uma exposição do esqueleto da obra tornando-a aberta aos seus receptores. Desse

modo, será possível compreender como o autor expõe seu método diferenciado de se viajar,

sobrepondo a consciência da ilusão à ilusão da consciência no plano ficcional.

2. VIAGENS PELA TERRA OU PELAS FORMAS NARRATIVAS?

Logo de início é possível responder a pergunta feita no subtítulo acima dizendo que

em Viagens na minha terra os dois tipos de viagem são perceptíveis. Porém, uma

peculiaridade já referida aqui anteriormente consiste naquilo que foi apontado por Carlos

Felipe Moisés no prefácio da obra do autor, quando afirma que se retirarmos as divagações,

digressões e reflexões do romance, o fio central do enredo mostra-se paupérrimo. Porém, a

resposta de caráter duplo dada à pergunta feita no subtítulo dessa parte do trabalho pretende

estabelecer uma perspectiva que ilumine também um outro aspecto da questão.

Esse outro aspecto é a questão da consonância entre forma e conteúdo na disposição

estética que Garrett fornece à sua obra. Para que isso fique mais claro, o que pretendo deixar

claro é que, de algum modo, os pequenos traços de viagem referencial que aparecem no

romance do autor português também dão forma ao estilo narrativo empregado na obra, uma

vez que, se observarmos atentamente, notaremos que o narrador garrettiano imprime em sua

técnica narrativa o mesmo espírito vagabundo, curioso e distraído dos viajantes. A narrativa

apresenta constantemente interrupções, desvios, acelerações, retardamento, tudo o que pode

ser observável na rota de um viajante que tateia por um terreno desconhecido ou então que
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deseja tornar esse espaço que percorre conhecido para outros. Nesse ponto é importante

pensar num conceito de forma estética semelhante ao trabalhado por Eikhenbaum , um dos

formalistas russos, quando este diz que :

A noção de forma adquiriu um novo sentido, não é mais um invólucro, mas


uma integridade dinâmica e concreta que tem em si mesma um conteúdo,
fora de toda correlação. Aqui ocorre a separação entre a doutrina formalista
e os princípios simbolistas, segundo os quais “através da forma” deveria
transparecer algo “do conteúdo” (EINHENBAUM, 1976, p.13).

Torna-se importante explicitar tal conceito para tentar elucidar um viés de análise um

pouco diverso daquele adotado por Carlos Felipe Moisés, no qual o crítico separa

veementemente os “dois planos” da obra de Garrett (o primeiro, concernente ao enredo

propriamente dito e o segundo, formado pelas divagações e auto-reflexões).

Numa outra instância, mas ainda paralelamente ao que está sendo dito, o tema da

viagem em Garrett pode ser entendido também como alegoria de uma postura existencial

diante do mundo, ou seja, a vida entendida como errância, aventura e descoberta.

Tais apontamentos podem ficar mais claros a partir de vários trechos da obra, porém

um, em especial deixa isso bem claro. Logo nas primeiras páginas do romance o narrador fala

sobre a questão de Vila Franca e seu nome, enquanto faz considerações sobre o movimento da

Restauração em Portugal e o “reviramento por que vai passando o mundo” (GARRETT, 1992,

p.26). Logo em seguida, o narrador, sem nenhum aviso prévio, muda seu foco para dissertar

sobre o prazer existente no ato de viajar enquanto se fuma a bordo, o que espanta o narrador

nunca ter sido algo observável por Lord Byron, o “poeta mais embarcadiço, mais marujo que

ainda houve” (GARRETT, 1992, p.26). Logo no trecho posterior, a narrativa já se envereda

para a descrição de um “campino” que acende o cigarro do narrador, o que leva a narração

para uma disputa travada entre “ílhavos” e “campinos” para ver quais dos dois grupos pode

ser considerado mais vigoroso, os primeiros, que lidam com o mar, ou os segundos, que lidam
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com os touros. Nota-se que apenas em três páginas (da pagina vinte e seis até a página vinte e

sete) o fio da narrativa passa por três assuntos totalmente diversos e sem conexão alguma

entre eles, a não ser a vontade do narrador em abordá-los.

Durante toda a obra, a narrativa se estabelecerá dessa forma, entrecortada e ébria, com

o narrador sempre mudando seus focos de modo indiscriminado. Conforme Sergio Paulo

Roaunet aponta:

O narrador de Viagens na minha terra tem opiniões sobre tudo. Move-se


com absoluta sem-cerimônia de um tema para outro. Ele acha que no
mundo de hoje Sancho triunfou sobre d. Quixote. Não acredita no progresso
porque resultou no empobrecimento de milhões. Pondera os méritos
comparativos da modéstia e da inocência a hierarquia das qualidades
morais, e depois de ter citado a opinião de Dêmades (naturalmente em
grego) de que a primeira é mais importante que a segunda, e a opinião
oposta de Addison, toma partido, finalmente, pela modéstia (ROUANET,
2007, p.46).

Com base nessa afirmação do crítico, torna-se pertinente dizer que o narrador de

Garrett apresenta uma postura marcada pela volubilidade, pela inconstância, assim como é o

passo do viajante prototípico, daquele que realmente deseja conhecer sem seguir rotas pré-

estabelecidas.

Contudo, apesar dessas considerações sobre a interpenetração desses chamados dois

planos do romance é importante abordar de que modo esse narrador se comporta para

estruturar esse tipo de viagem que escapa daquilo considerado como padrão nas obras do

gênero.

Para Maria de Lourdes Ferraz, o texto de Garrett apresenta um desenvolvimento, um

tipo de estrutura narrativa que faz com que a as intrusões ou digressões do narrador se

destaquem em relação ao desenrolar do enredo (embora, como vimos aqui anteriormente, não

deixe de existir uma dialética entre esses dois planos) o que, de algum modo faz com que o

narrador aproveite a estória para falar de si e do que diz respeito à sua subjetividade , “do
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próprio acto literário que está a executar, conseqüente da relação entre a ficção e a realidade,

entre o seu eu e a sociedade onde se insere” (FERRAZ, 1987, p.71).

Desse ponto de vista pode-se afirmar que, diversamente de um livro onde as viagens

tomam um sentido unicamente referencial, na obra de Garrett são as impressões, reflexões e

devaneios do narrador que dão o tom. Nas palavras do próprio narrador da obra observa-se o

seguinte: “Vou nada menos que a Santarém: e protesto que de quanto vir e ouvir, de quanto eu

pensar e sentir se há de fazer crônica” (GARRETT, 1992, p.24).

Esse tipo de postura adequada a um “sentimental traveller” como o de Sterne não é

algo que o narrador tenha desenvolvido fortuitamente, pois chega a argumentar em favor de

sua causa, ou melhor em favor da forma narrativa que decide adotar. O trecho que vem a

seguir é longo mas explicita bem o que se busca dizer:

Isto pensava, isto escrevo; isto tinha na alma, isto vai no papel: que doutro
modo não sei escrever.Muito me pesa, leitor amigo, se outra coisa esperava
das minhas Viagens, sem o querer, as promessas que julgaste ver nesse
título, mas que eu não fiz decerto.
Queria talvez que te contasse, marco a marco, as léguas da estrada? Palmo
a palmo, as alturas e as larguras dos edifícios? Algarismo por algarismo, as
datas de sua fundação? Que te resumisse a história de cada pedra, cada
ruína?
Vai-te ao padre Vasconcelos; e quanto há de Santarém, peta e verdade, aí o
acharás em amplo fólio e gorda letra: eu não sei compor desses livros, e
quando soubesse, tenho mais que fazer. (GARRETT, 1992, p.189)

A partir desse exemplo, fundamentado nas próprias palavras do narrador, fica visível

como as Viagens de Garrett podem ser entendidas mais como uma viagem pela narrativa ou

pelas formas de narrar do que propriamente por sua terra. Para finalizar esse ponto e já se

iniciar a passagem para a próxima questão, é pertinente lembrar do que diz Rouanet sobre

esse tipo peculiar de narrador viajante e a subjetivação que este realiza em relação ao tempo e

ao espaço:

Uma das manifestações da ambição de soberania do narrador shandiano é


sua maneira arbitrária de tratar o tempo e o espaço. Eles são dissolvidos na
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subjetividade do narrador, que os trata como tratou o leitor: despoticamente.


(ROUANET, 2007, p.120).

3. GARRETT E A TRADIÇÃO SHANDEANA

Até aqui vimos como a forma narrativa adotada por Garrett torna seu livro uma

realização estética distinta daquilo que é tradicionalmente considerado como um livro de

viagens. Entretanto, nessa parte do trabalho será buscada mais a semelhança do que a

diferença, uma vez que entender a tradição por trás do método de composição observável no

romance do autor é algo importante para sabermos como ele funciona.

As técnicas narrativas observáveis no escritor português também podem ser

observadas em autores como Lawrence Sterne,Diderot, Xavier de Maistre e Machado de

Assis, o que Sergio Paulo Rouanet optou por chamar de “forma shandeana” no romance, visto

que a avenida teria sido aberta pelo romancista inglês. Acertadamente, o crítico identifica

muitos elementos em comum no que tange a estrutura de organização da obra desses autores,

sendo que centralizarei aqui aqueles que contribuem de forma mais clara para entender o tipo

de viagem empreendido pelo autor de Viagens na minha terra.

Todos esses autores apresentam a característica comum de utilizarem, cada um a seu

modo, os altos e baixos do cotidiano para comporem suas obras, muito raramente fazendo uso

de assuntos elevados ou grandiosos. Desse ponto de vista, tais escritores podem ser vistos

como parceiros de viagem que conduzem suas ferramentas de bordo pelo âmbito do

imaginário, demonstrando pouca ou nenhuma preocupação com as demarcações geográficas e

com o tom documental. Em todos eles se pode notar a expansão através do trabalho com o

sentido simbólico e/ou alegórico.


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A volubilidade é um ponto comum a todos eles, pois como vimos no caso de Garrett,

esses tipos de narradores não conseguem se fixar em ponto algum. Conforme vemos em

Rouanet: “não há limites à jurisdição da volubilidade. Pela imaginação, o narrador se move

num espaço infinito e no tempo da eternidade”. (ROUANET, 2007, p.44). Observando-se isso

nos outros autores basta notar o que faz o narrador de Sterne em relação à “vida e as opinões”

de Tristram Shandy, pois apesar desse ser o título do romance, terminamos a leitura sabendo

muito pouco sobre o personagem. Ou então se pode lembrar também da famosa retórica da

preterição em Machado, quando o narrador aponta um caminho para o leitor, mas opta por

seguir outro muito diverso.

Entretanto, nada mais esclarecedor do que as referências que o próprio narrador de

Garrett faz aos autores dessa linha shandeana, como por exemplo a epígrafe de Viagens na

minha terra que é um trecho de Viagem à roda de meu quarto, de Xavier de Maistre e o início

do romance, quando o autor dialoga diretamente com o escritor francês:

Que viaje à roda do seu quarto quem está à beira dos Alpes, de inverno, em
Turim, que é quase tão frio como São Petersburgo- entende-se. Mas com
este clima, com este ar que Deus nos deu, onde a laranjeira cresce na horta,
e o mato é de murta, o próprio Xavier de Maistre que aqui escrevesse, ao
menos ia até o quintal. (GARRETT, 1992, p.23)

Nesse ponto é possível notar também uma distinção, visto que diferentemente de

Xavier de Maistre, Garrett de certo modo já anuncia que sua viagem também terá algo de

referencial, algo do modo tradicional de viajar.

A referência à obra de Sterne, logicamente, também não poderia ficar de fora. O autor

lusitano deixa bem claro em quais fontes recorreu para estruturar seu estilo peculiar de viajar:

Estou com meu amigo Yorick, o ajuizadíssimo bobo de El-Rei de


Dinamarca, o que alguns anos depois ressuscitou em Sterne com tão
elegante pena, estou sim. (GARRETT, 1992, p.79)
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Além dessa referencias textuais que não são nada gratuitas, o que pode ser notado

também em Viagens na minha terra como ponto de associação com a estética shandeana de

composição é a questão da viagem através dos temas literários e a demonstração de erudição.

Num único exemplo extraído da obra é possível notar a confluência das duas ocorrências,

como no trecho a seguir, quando o narrador se utiliza de várias referências literárias para

ironizar os autores românticos. O trecho ainda continha mais referências literárias,

transbordando erudição, porém ficaria muito extenso se utilizado em sua totalidade:

Não havia ainda então românticos nem romantismo, o século estava muito
atrasado. As odes de Victor Hugo não tinham desbancado as de Horácio;
achavam-se mais líricos e poéticos os esconjuros de Canídia do que os
pesadelos de um enforcado no oratório; choravas-se com as Tristes de
Ovídio, porque se não lagrimejava com as meditações de Lamartine
(GARRETT, 1992, p.51).

Outro elemento comum na narrativa é a o que Rouanet chama de tema pascalino da

natureza dupla do homem, dividido entre um lado angélico e outro bestial (ROUANET, 2007,

p.26). Assim como nos outros autores da linhagem shandeana (principalmente em Xavier de

Maistre, basta lembrar do tema da “bête”) essa natureza bipartida do ser humano também é

abordada por Garrett em sua narrativa, como pode ser visto no trecho que fala da descoberta

de um filósofo do Reno sobe a marcha da civilização. Segundo essa idéia desenvolvida pelo

narrador há dois princípios no mundo, um espiritualista, representado pela figura do cavaleiro

dom Quixote e um outro materialista, concretizado na figura do escudeiro do fidalgo, Sancho

Pança. Porém, bem ao modo da linhagem shandeana, os dois princípios são entendidos como

antagônicos, porém complementares, assim como observamos em Xavier de Maistre na

relação entre besta e alma. Esse é o trecho de Garrett: “Mas, como na história do malicioso

Cervantes, estes dois princípios tão avessos, tão desencontrados, andam, contudo juntos

sempre” (GARRETT, 1992, p.31).


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Vários outros elementos poderiam ser observados para aproximar ainda mais a obra de

Garrett à tradição shandeana, como por exemplo o uso das reticências ( comum em Xavier de

Maistre e Sterne) e o tom narrativo adquirido dos grandes moralistas da filosofia ensaística,

como Montaigne, o que pode ser notado no multiperspectivismo que o narrador apresenta em

relação às opiniões que emite e aos fatos que narra.

Porém, é importante frisar aqui um outro ponto comum de grande relevância entre os

escritores que adotaram essa forma shandeana, o que também servirá como conexão para o

próximo estágio do trabalho: o chamado movimento de auto-reflexão ou desnudamento do

processo. Como foi dito anteriormente, seria ingenuidade dizer que esse método de

composição se iniciou com os autores dessa linhagem, pois é algo que remete aos escritores

da antiguidade. Porém, no que tange um estudo menos ambicioso (como é o caso desse) é

importante lembrar que a referência mais próxima para a literatura moderna ocidental é

Sterne. Conforme podemos ver em Bakhtin, esse tipo de construção estética:

Introduz o autor que escreveu o romance (o “desnudamento do processo”,


segundo a terminologia formalista), porém não na qualidade de herói, mas
como autor verdadeiro da obra em questão. Paralelamente ao romance em
si, são dados fragmentos do “romance sobre o romance” (naturalmente, o
exemplo clássico é o Tristram Shandy) (BAKHTIN, 1998, p.203).

Não é necessário muito esforço para notar esse movimento na obra de Almeida

Garrett, já que, como se sabe, durante todo o tempo o narrador-autor revela os princípios de

organização de sua obra durante o mesmo tempo que narra. Mas isso será visto em seguida.

4. A IRONIA FORMAL COMO MECANISMO DE FUNDAMENTO

Conforme observávamos no tópico anterior, Viagens na minha terra é uma obra regida

pelos princípios da auto-reflexão narrativa. Durante todo o desenvolvimento do livro nota-se

que as chaves para o entendimento acerca do que se narra são fornecidas ao leitor, quebrando
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Corumbá, MS, novembro 2011, n. 4, p. 122

o tradicional estatuto da ficção no qual o narrador pretende aproximar o máximo que

conseguir, o âmbito da vida e a forma literária. O narrador de Garrett deixa sempre bem claro

que tudo o que diz e todo o material que lida é “apenas” literatura.

Esse tipo de postura do narrador faz com que a forma do romance se mostre aberta,

deixando visíveis todos os dispositivos utilizados. Daí a importância de tratar tal ponto num

trabalho que possui como objetivo entender o tipo peculiar de viagem empreendida por

Garrett, uma vez que a utilização da ironia em relação à estrutura formal do romance nos

revela as intenções presentes na elaboração da matéria narrativa por parte do narrador. Um

bom exemplo de uma passagem na qual isso ocorre, está logo no início da obra, quando o

desnudamento do processo pelo qual sua viagem será regida é realizado:

Estas minhas interessantes viagens hão de ser uma obra-prima, erudita,


brilhante de pensamentos novos, uma coisa diga do século. Preciso de o
dizer ao leitor, para que ele esteja prevenido; não cuide que são quaisquer
dessas rabiscaduras da moda que, com o título de Impressões de Viagem, ou
outro que tal, fatigam as impressões da Europa sem nenhum proveito da
ciência e do adiantamento da espécie.
Primeiro que tudo, a minha obra é um símbolo... (GARRETT, 1992,
p.30)

Nesse trecho o narrador demonstra sem mais delongas como pretende estabelecer o

sentido de suas viagens e também como devem ser entendidas, ou seja, de modo simbólico.

Escapando às “rabiscaduras da moda”, se diferenciando daquilo observado como padrão em

relação aos livros de viagem.

Sob esse aspecto fica bem claro que o tipo de ironia utilizado por Garrett, ou seja, a

ironia romântica ou formal consiste numa reflexão também irônica sobre a própria utilização

da ironia, o que nos remete a uma idéia de quebra da ilusão, da ruptura com uma idéia de

simulacro de um mundo e nos apresenta a noção de um infinito como horizonte do próprio

jogo irônico (FERRAZ, 1987 p.39-45).


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Para que esse ponto seja abordado com maior clareza é importante entender a ironia

em Viagens na minha terra como princípio de construção da obra de arte, o que de algum

modo transcende os estudos tradicionais sobre o tema, que se limitam a entendê-lo como

tropo retórico (SOUZA, 2000, p.27). Numa narrativa irônica como a de Garrett, observa-se

um narrador autoconsciente:

Que não se limita a narrar eventos, mas se compraz em sustar o enunciado


propriamente narrativo com o deliberado propósito de assinalar criticamente
que o narrado não é dado na realidade, mas construído pela enunciação. A
intrusão do narrador cumpre desempenho bem definido ao sustar a ilusão
ficcional e advertir o leitor que não deve confundir fato com ficção.
(SOUZA, 2000, p.31)

O que se observa é que o narrador se dramatiza para desempenhar várias funções no

texto que constrói, dando significados múltiplos para o que narra. Desse modo, o narrador

garrettiano demonstra como a sua viagem deve ser interpretada, esboçando em Viagens na

minha terra um modo de viajar pelas formas narrativas, pelas digressões, pelas divagações

filosóficas, pelos caracteres dos personagens e pelo drama romanesco de Carlos e Joaninha,

uma narrativa inserida de modo repentino dentro da narrativa “central”. A configuração da

obra nos mostra como uma curta viagem de Lisboa a Santarém pode ir bem mais longe, desde

que se saiba narrar.

5. CONCLUSÃO

A partir da análise da composição estética de Viagens na minha terra é possível dizer

que a obra apresenta uma estrutura bastante diversa do que se observa naquilo considerado

como protótipo de um livro de viagens tradicionalmente concebido. Daí o termo “viagem

peculiar” utilizado ao longo do trabalho fazer sentido quando aplicado à referida obra de
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Almeida Garrett, pois apesar do termo “viagens” constar no título da obra, não é na viagem

referencial realizada no plano do enredo do livro que se encontra o “esqueleto” da obra, mas

sim na relação formal desse caráter de viagem com a estética narrativa adotada.

Além dessa constatação, foi possível observar também como esse mecanismo que

permite a composição do estilo de viagem adotada no livro se estabelece, o que foi feito a

partir da análise do modo pelo qual Garrett se enquadra na chamada tradição shandeana e

também por meio dos apontamentos sobre a ironia formal como princípio configurador do

romance e desnudamento do processo.

REFERÊNCIAS:

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LUKÁCS, Georg. A teoria do romance. São Paulo: Duas Cidades; ed. 34, 2000.
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TEXTO LITERÁRIO E CONTEXTO SOCIAL: ANÁLISE DO


POEMA “JOSÉ” DE CARLOS DRUMMD DE ANDRADE
Dirce Pereira Lelis1
RESUMO: O artigo tem por propósito analisar o poema José, publicado em 1942, do escritor Carlos Drummond
de Andrade, considerando o contexto de produção, os aspectos históricos sociais e ideológicos que
proporcionaram essa produção textual. Posteriormente, apresentamos o poema e a interpretação estrutural da
obra, pois nos permite verificar que a palavra poética atua de maneira decisiva como participação na vida e como
forma de representação histórico-social. Além disso, escolhemos este poema, a fim de demonstrar a importância
de Carlos Drummond de Andrade dentro da literatura brasileira, uma vez que o poema sinaliza para situações
críticas vivenciadas por indivíduos comuns, pertencentes à maioria da população.

PALAVRAS – CHAVE: Texto. Contexto. Ideologia. Poeta.

TEXTO LITERARIO Y CONTEXTO SOCIAL: ANÁLISES CRÍTICO A


“JOSÉ”, POEMA DE LA CARLOS Drummond de Andrade

RESUMEN: El propósito del artículo es analizar el poema de José, publicada en 1942, el escritor Carlos
Drummond de Andrade, teniendo en cuenta el contexto de la producción, la ideología histórica y social que
siempre que la producción textual. Posteriormente, se apresenta el poema y la interpretación estructural de la
obra, ya que nos permite verificar que los actos de la palabra poética como una participación decisiva en la
vida y como una representación histórica y social. Hemos elegido este poema con el fin de demostrar la
importancia de Carlos Drummond de Andrade en la literatura brasileña ya que las señales poema a una
situación de crise que experimentan los indivíduos normales, pertenecientes a la mayoria de la población.

PALABRAS – CLAVE: Texto. El contexto. La ideología. El poeta.

INTRODUÇÃO

Sabemos que o reino das palavras é fato. Elas nascem do nosso pensamento de
maneira espontânea, não temos a preocupação de organizar o que falamos ou até mesmo o
que escrevemos. As palavras, todavia podem ultrapassar suas fronteiras de significação.
Podemos, assim, conquistar novos espaços e passar novas possibilidades de perceber a
realidade.
O caminho que a literatura percorre é este. O artista sente, escolhe e manipula as palavras, as organiza
para que produzam um efeito que vá para além da sua significação objetiva procurando aproximá-las do
imaginário.

A obra de um escritor é fruto de sua imaginação, embora seja baseado em elementos


reais. Da concretização desse trabalho surge então a obra literária.
A poesia de Drummond apresenta a reflexão dos problemas do mundo diante dos
regimes totalitários da 2ª Guerra Mundial e da Guerra Fria. Em alguns versos ressurge a

1
Graduada em Pedagogia pela UFJF, Pós Graduada em Alfabetização pela PUCMG, Mestranda do Curso de
Mestrado do CESJF , Professora da Rede Municipal de Juiz de Fora. E-mail dirceplelis@hotmail.com
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esperança, mas logo se acrescenta a descrença diante dos acontecimentos. Nega a fuga da
realidade e por isso volta para o tempo presente. Dotado de uma percepção aguçada, capta a
realidade através de seus sentimentos e a expressa, através da palavra, da linguagem.
Carlos Drummond de Andrade é considerado um dos maiores representantes da
literatura brasileira do século XX. Na década de 20, quando Drummond começou a
publicação de seus poemas, o Brasil estava passando pela fase inicial de comoção modernista.
Alguns escritores, como por exemplo, Anita Malfatti, Villa-Lobos, Manuel Bandeira, Mário
de Andrade, se manifestavam com atitudes de inovação artística e literária, mas eram gestos
isolados, que só ganhariam espaço na Semana de Arte Moderna, realizada em São Paulo, em
1922. A partir daí, o movimento se expandiu por grande parte do país. Com a implantação de
novas atitudes culturais, sucedeu um período de consolidação e diversificação, em meio a
agitado contexto social. Sua estréia oficial deu-se em 1930, com Alguma poesia. Com esta
obra, Drummond inaugura a segunda fase do Modernismo. Escreveu também prosa que se
caracteriza pela riqueza e expressividade da linguagem e do tema, impregnados de senso de
humor. Atribuem-se essas qualidades, igualmente, à sua obra poética.
Para Bosi, “Drummond possui uma percepção precisa do hiato entre as
convenções e a realidade, entre o parecer e o ser das coisas e dos indivíduos,
o que se transforma em objeto privilegiado do humor, seu traço principal. O
conjunto de sua obra é complexo e vasto, do qual, pela freqüência, é
possível destacar certas características e tendências”. (Bossi, 1994).
Ainda se referindo ao poeta, Bosi, considera que “a obra de Drummond
alcança como Fernando Pessoa ou Jorge de Lima, Herberto Helder ou
Murilo Mendes um coeficiente de solidão, que o desprende do próprio solo
da história, levando o leitor a uma atitude livre de referências, ou de marcas
ideológicas ou prospectivas.” (Bossi, 1994).
Affonso Romano de Sant’Anna (2004), costuma estabelecer que a poesia de Carlos
Drummond a partir da dialética “eu x mundo” desdobrando-se em três atitudes:
A primeira, Eu maior que o mundo, marcada pela poesia irônica.
Segundo Telles, na poesia de Carlos Drummond de Andrade (1902-1987),
“o humor e a ironia atuam como elementos poéticos e esta comicidade,
muitas vezes, consegue outro grau de beleza, uma beleza às avessas, que
escapa quase sempre aos esquemas das poéticas tradicionais, ou seja, que
desconcerta todo o conhecimento sobre a poesia”. (Teles,1970).
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A segunda, Eu menor que o mundo, marcada pela poesia social. A terceira, Eu igual
ao mundo, abrange a poesia metafísica onde o poeta volta-se para um simbolismo abstrato,
mediante um processo de interrogações e negações, e a poesia objectural que representa uma
ruptura em relação à fase anterior, o poeta abandona a forma fixa, radicaliza os processos
estruturais que sempre marcaram seu modo de escrever.
. Na obra de Drummond, exprimem-se os dois pontos da problemática do homem no
mundo moderno: os conflitos individuais do ser e a inserção conflituosa deste na sociedade.
De modo geral, a obra de Drummond reflete a grande importância do autor que, em suas
diversas fases poéticas, sintetizou a postura do homem frente ao mundo moderno.
De acordo com Moriconi, “na literatura moderna, há registro do
cotidiano, valorizando os elementos diferenciados, tais como: a
linguagem coloquial, a associação livre de idéias, a mescla de
sentimentos contrastantes que revelam o subconsciente e o
nacionalismo. Os poetas não se pautam mais por uma atitude
programática, e sim pela possibilidade de criação em todas as
direções, utilizando o verso livre e o "poema-piada". (Moriconi,
2002).
Na fase final, em suas últimas produções, o poeta Drummond, reelabora alguns temas
e formas dos primeiros livros, mas também acrescenta algumas vertentes novas.
Sua obra, elaborada ao longo de mais de seis décadas, compreende, como já visto,
poesia e prosa. Apesar das qualidades e da quantidade da prosa (17 livros de crônicas e
contos, fora o que ficou nos jornais), o núcleo de sua produção é a poesia. Drummond
também escreveu contos e crônicas.
Alguns temas são típicos da poesia Drummondiana:

O indivíduo: "um eu todo retorcido". O eu lírico na poesia de Drummond é


complicado, torturado, estilhaçado. Vale ressaltar que o próprio autor já se definia no primeiro
poema de seu primeiro livro (Alguma Poesia) como um gauche, ou seja, alguém desajeitado,
deslocado, tímido, posição que marca presença em toda sua obra.
A Terra Natal: a relação com o lugar de origem, que o indivíduo deixa para se formar.
A Família: o indivíduo interroga, sem alegria e sem sentimentalismo, a estranha
realidade familiar, a família que existe nele próprio.
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Os Amigos: "cantar de amigos" (título que parafraseia com as Cantigas de Amigo).


Homenagens a figuras que o poeta admira, próximas ou distantes, de Mário de Andrade a
Manuel Bandeira, de Machado de Assis a Charles Chaplin.
O Choque Social: o espaço social onde se expressa o indivíduo e as suas limitações
face aos outros.
O Amor: nada romântico ou sentimental, o amor em Drummond é uma amarga forma
de conhecimento dos outros e de si próprio.
A Poesia: o fazer poético aparece como reflexão ao longo da sua poesia.
Exercícios lúdicos, ou poemas-piada: jogos com palavras, por vezes de aparente
inocência.
A Existência: a questão de estar no mundo.
Buscamos apresentar uma proposta de análise e de interpretação do poema José na
fase intitulada Eu menor que o mundo, a fim de demonstrar a consciência política de
Drummond diante de sua carreira poética, que oportuniza a evolução de seus temas e visão de
mundo, pela vontade do poeta de participar e tentar transformar esse mundo. O poeta se
solidariza com os problemas do mundo. Nesta fase, sem se distanciar, deixa-se envolver pela
realidade à sua volta e canta a impotência e a solidão em um mundo mecânico, frio e político;
a decepção e a falta de perspectiva diante da fragmentação causada pela guerra; o sofrimento
e a solidariedade do ser humano brasileiro e universal. Temas estes abordados em tons ora
esperançosos, ora sem esperança, com a mesma ironia, humor e sobriedade.
Telles, afirma que “os primeiros estudos sobre o Modernismo
apontam a poesia de Carlos Drummond de Andrade como
pertencente à segunda fase, não somente por seu livro ter aparecido
em 1930, mas também por possuir características sociais, aspecto
dominante nesta fase”.(Telles, 1970).
A escolha desse poema, não ocorre de forma gratuita, mas de uma atitude consciente, a fim de demonstrar a importância de Drummond
dentro da literatura brasileira, uma vez que este poema é um exemplo de uma postura crítica, participante e engajada socialmente.

Além disso, escolhemos o poeta Carlos Drummond de Andrade, cuja escrita se faz
com senso de humor, emoção e com fragmentos da memória ativa do passado. O poeta,
iniciou seus versos num ambiente de mundo moderno, que se arrasta até a
contemporaneidade. Seus poemas procuram resgatar a significativa experiência do homem.
Extraímos da poética de Drummond elementos que nos remetem à idéia de buscas e dúvidas a
respeito das certezas de antes, e que, agora, são postas em questionamento e já não trazem
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mais a marca do definido e sim das incertezas em que o poeta se lançou. Muitos poemas de
Drummond mostram um homem ao mesmo tempo torturado pelo passado e assombrado pelo
futuro. Ora cético e melancólico, ora irônico e bem-humorado, lucidez e calma, filtrados
numa linguagem flexível e rica de dimensões humanas, além de ter sido um grande crítico.
A leitura do poema que se segue permite verificar a afirmação de que a palavra
poética atua de maneira decisiva como participação na vida e como forma de representação
histórico-social.

JOSÉ

E agora, José?
A festa acabou,
a luz apagou,
o povo sumiu,
a noite esfriou,
e agora, José?
e agora, você?
você que é sem nome,
que zomba dos outros,
você que faz versos,
que ama, protesta?
e agora, José?

Está sem mulher,


está sem discurso,
está sem carinho,
Já não pode beber,
Já não pode fumar,
cuspir já não pode,
a noite esfriou,
o dia não veio,
o bonde não veio,
o riso não veio
não veio a utopia
e tudo acabou
e tudo fugiu
e tudo mofou,
e agora, José?

E agora, José?
Sua doce palavra,
seu instante de febre,
sua gula e jejum,
sua biblioteca,
sua lavra de ouro,
seu terno de vidro,
sua incoerência,
seu ódio – e agora?’
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Com a chave na mão


quer abrir a porta,
não existe porta;
quer morrer no mar,
mas o mar secou;
quer ir para Minas,
Minas não há mais.
José, e agora?

Se você gritasse,
se você gemesse;
se você tocasse
a valsa vienense,
se você dormisse,
se você cansasse,
se você morresse ...
Mas você não morre,
você é duro, José!

Sozinho no escuro
qual bicho-do-mato,
sem teogonia,
sem parede nua
para se encostar,
sem cavalo preto
que fuja a galope,
você marcha, José!
José para onde?

ANÁLISE DO POEMA

Ao analisar o poema “José” deve-se levar em consideração alguns traços sociológicos


que contribuem para o sentido do texto, levando-se em consideração que texto e contexto
devem estar interligados. Lembramos ainda que o poema está intimamente relacionado a
acontecimentos históricos, com marcas profundas na sociedade.
O poema foi publicado em 1942, ano de atuação do Estado Novo no Brasil. Desse
acontecimento origina-se uma série de episódios políticos e econômicos que irão marcar a
sociedade brasileira, tais como a repressão política; o preconceito institucional; a precariedade
das condições de trabalho; a modernização industrial; a implantação e a afirmação de
condutas autoritárias; a urbanização dispersiva. Esses fatos tornam-se agravantes da situação
de miséria enfrentada pela população e resultaram em uma disjuntura social. Desta, originou-
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se, principalmente, a desigualdade de privilégios concedidos à sociedade, intensificando,


ainda mais, a formação de classes opressoras e oprimidas.
A figura de José vem nesse poema, justamente como representante de um problema
coletivo. Todo o poema está centrado na reflexão sobre a existência de José que resiste e
segue vivendo. Começa e termina de forma interrogativa o que vem enfatizar o problema do
direcionamento da existência.
O título é composto por um nome próprio comum e popular: “José”. “José” aproxima-
se não de um homem específico e individualizado, mais do homem no sentido universal –
tornou-se mesmo sinônimo de humanidade; representa o ser humano com suas angústias,
incertezas e esperanças: José simboliza todos os homens.
O poema drummondiano apresenta seis estrofes assimétricas: as duas primeiras são as
mais longas (12 e 15 versos), a terceira, a quinta e a última possuem o mesmo número de
versos (9) e a quarta estrofe é a mais curta (8 versos). Os versos são pentassílabos com
acentuação tônica na segunda e quinta sílabas; a exceção está na segunda estrofe (4º e 5º
versos) e no penúltimo verso da última estrofe. Apesar dessas exceções, o ritmo não é
quebrado. É mantido, ainda, pela repetição de palavras ou grupos de palavras constantes em
todo o texto que é, inclusive, uma característica do fazer poético do poeta. O ritmo é também
concretizado pelas rimas e com a repetição, desvela uma dimensão sonora característica dos
poemas criados para serem ouvidos.
Para Pozenato, Drummond tem consciência de que seu fazer poético está relacionado à
escrita: “é o primeiro poeta no Brasil a ter consciência de fazer poesia escrita. Ele não se vê
como um poeta cantor, mas um poeta escritor. Seus versos não são para serem ouvidos (com a
rara exceção, talvez, de “José”), mas para serem lidos.” (Pozenato, 2002).
Nessa segunda estrofe todos os verbos que marcam a ação não estão relacionados a
José; ele não pratica nenhuma ação, José está parado, e o verbo “está” revela uma condição
momentânea, pois José está e não é, o que pode sugerir um estado passageiro, um momento
de crise e de reflexão, o que leva a pensar na possibilidade de uma mudança e de que há
alguma esperança. Os únicos versos que revelam uma condição existencial do ser José estão
na quinta estrofe: “você é duro, José” – José é forte, pois não morre e apesar de tudo, da
solidão e da impossibilidade momentânea de fuga José resiste; e na estrofe inicial: “você é
sem nome.”
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Segundo Proença Filho (2002), “esse é um José “desindividualizado”, homem-síntese-


de-mundaneidade. Marcado pela impossibilidade de ação, de conduzir o seu próprio destino,
na fatal condição de viver.”
Todo o poema de Drummond está construído com palavras que remetem ao vazio:
“Com a chave na mão/ quer abrir a porta,/ não existe porta;/ quer morrer no mar,/ mas o mar
secou;/ quer ir para Minas/ Minas não há mais”; não há festa nem povo, não há mulher
(símbolo de amor) nem bonde (símbolo de fuga), não há porta nem mar (símbolos de saída),
muito menos há um destino ou um caminho a ser seguido. Não existe mais Minas, nem cavalo
que o leve a outro lugar (“sem cavalo preto/ que fuja a galope”): é um José que marcha sem
saber para onde, por isso tantas dúvidas e questionamentos representados pela pontuação
interrogativa, bastante intensa em todo o texto (“e agora, você?”), de modo que ao todo são
dez interrogações. Esse José que caminha sem objetivo simboliza a humanidade, seu nome
não é apenas um nome, mas uma sina, transmite a idéia de indiferença diante daquilo que não
tem nome (verso 8). Ou seja, José é apenas mais um na multidão.
A relação do homem José é desvelada por meio da falta e do vazio: “A festa acabou”,
“o povo sumiu”, “está sem mulher”, “o dia não veio”, “sozinho no escuro” e pela negação,
acentuada pelo uso recorrente do advérbio “não”.
A relação temática é predominantemente negativa, devido à própria construção
estrutural presença de palavras (verbos, preposição) de caráter negativo, interrogações e
conjunção condicional; o poema está construído com base na falta e no vazio sugerindo
incertezas e dúvidas que refletem não só o universo individual do homem José, mas toda uma
humanidade que busca respostas e soluções, almeja, enfim, um destino. É interessante
observar que a palavra José está isolada entre vírgulas ou entre vírgula e ponto (final, de
interrogação, ou de exclamação).Isso sugere o próprio isolamento e solidão do homem
representado por José; ele está isolado até mesmo na construção textual e, ainda, o fato de
estar entre dois pontos revela a falta de caminhos e horizontes, significando que José não tem
saída mesmo, como nos versos: “José, e agora?” (quarta estrofe) e “você é duro, José!”
(quinta estrofe).
O poema “desenvolve-se em torno de uma indagação dramática de caráter temporal – “e
agora?” – e termina com outra pergunta da mesma natureza, mas de caráter espacial: “José,
para onde?”. “Espaço e tempo: dimensões fundamentais da existência humana.” (Proença
Filho, 2002).
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Nos versos 45 a 51, a utilização dos verbos no imperfeito do subjuntivo compondo orações
condicionais, anuncia a possibilidade de mudança que o verso seguinte desmente,
evidenciando que não há resolução para a dúvida em relação ao futuro, já que nem mesmo
morrer vale a pena , pois não resolveria o problema.

Nos versos finais, há sensação de um futuro, mesmo porque José no final marcha, não
fica parado, apesar de toda situação adversa e negativa; embora todo o momento anterior seja
de reflexões e angústias e indique um momento estático (não há festa, nem bonde, mar, ou
cavalo) José é duro e não desiste: marcha. O uso do verbo marcha expressa a única reação de
José, que, sem ter nenhuma forma de liberdade, recorre ao seu próprio corpo.
O texto “José”, de Drummond, é um poema bastante conhecido, tanto que sua frase-
refrão, “E agora José?”, é repetida em muitas situações do cotidiano, fazendo parte do senso
comum.

CONCLUSÃO

Não foi nossa pretensão, em absoluto, esgotar o assunto. Muito provavelmente,


ângulos importantes deixaram de ser explorados, ou sequer foram vislumbrados. Por ora, dada
à complexidade do tema, este é o trabalho possível.
Espero ter conseguido estabelecer relações pertinentes nesta proposta, considerando o
contexto de produção, os aspectos históricos sociais e ideológicos, que deu origem ao poema.
Para tanto, nossa interpretação particular, lê o poema José como uma obra
comprometida com o social, que debate demandas identitárias expressando choques culturais
na subjetividade da personagem principal foi de imensa reflexão e de aprendizado. Também o
lemos como discurso revelador da sensação de deslocamento e de estranhamento em que a
vida de um indivíduo encontra-se minada por mudanças, tensões e conflitos com outras
culturas, além de ainda fomentar os efeitos que se refletem na configuração deste indivíduo.
Esta é a visão que o escritor parece abarcar da realidade, percebemos o autor implícito nos
discursos, sinalizando para situações críticas vivenciadas por indivíduos comuns, sobretudo,
pela maioria da população.
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REFERÊNCIAS

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Corumbá, MS, novembro 2011, n. 4, p. 135

WALT WHITMAN, EMILY DICKINSON E A


GUERRA CIVIL AMERICANA
Natalia Helena Wiechmann1

Resumo: Este estudo tem por objetivo tecer algumas considerações sobre a poética de Walt Whitman
em relação a sua resposta à Guerra Civil Americana e contrastar alguns trechos de seu grupo de
poemas intitulado “Drum Taps” com dois poemas de Emily Dickinson que possam sugerir uma alusão
ao mesmo contexto histórico: “My Portion is Defeat – today –” e “Our journey had advanced –” .
Percebemos, contudo, que Whitman faz referência explícita à Guerra Civil, enquanto Dickinson
privilegia imagens que possivelmente se relacionam ao ambiente de guerra. Assim, nossas reflexões
partem do conhecimento de que os poetas foram contemporâneos e, portanto, vivenciaram a Guerra
Civil cada um a seu modo, mas não perdemos de vista o fato de que a obra poética produzida por
Dickinson e por Whitman apresenta maiores diferenças do que semelhanças. Ainda assim, acreditamos
que a Guerra Civil possa ser lida como um tema comum dentre as diferenças que as duas poéticas
estabeleceram entre si.

Palavras-chave: Walt Whitman. Emily Dickinson. Guerra Civil Americana.

WALT WHITMAN, EMILY DICKINSON


AND THE AMERICAN CIVIL WAR

Abstract: This study aims to take into account the poetics of Walt Whitman in relation to his response
to the American Civil War in order to contrast some excerpts of his cluster of poems entitled “Drum
Taps” with two poems by Emily Dickinson that may suggest an allusion to the same historical context:
“My Portion is Defeat – today –” and “Our journey had advanced –”. However, we observe that
Whitman refers to the Civil War explicitly, whereas Dickinson privileges images that are possibly
related to the war environment. Thus, our considerations start from the awareness that the poets were
contemporary and, therefore, they experienced the Civil War in their own ways, but we must keep in
mind that the poetic work produced by Dickinson and by Whitman presents more differences than
similarities. Yet we believe that the Civil War may be read as a common theme among the differences
that these two poetics established with each other.

Keywords: Walt Whitman. Emily Dickinson. American Civil War.

APRESENTAÇÃO

Este trabalho tem por objetivo contrastar a poética de Walt Whitman (1819-1892) no
que concerne a sua resposta à Guerra Civil Americana com alguns poemas de Emily
Dickinson (1830-1886) em que se pode identificar uma possível referência a esse mesmo
acontecimento da história dos Estados Unidos.

1
Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Estudos Literários da Faculdade de Ciências e Letras, UNESP,
campus de Araraquara-SP. Bolsista Fapesp. Contato: nataliahw@hotmail.com.
carandá
Revista do Curso de Letras do Câmpus do Pantanal – UFMS,
Corumbá, MS, novembro 2011, n. 4, p. 136

Para isso, tomamos por base o fato de os dois poetas terem sido contemporâneos e,
cada um a sua maneira, terem tido algum contato com a Guerra Civil e com seus efeitos na
sociedade norte-americana. Nesse sentido, teceremos algumas considerações sobre excertos
de “Drum Taps”, conjunto de poemas de Whitman dedicado à Guerra Civil Americana, e
sobre dois poemas de Emily Dickinson: “My Portion is Defeat – today –” e “Our journey had
advanced –”1. Os poemas de Dickinson serão apresentados conforme a edição de Thomas H.
Johnson e os de Whitman seguirão a edição divulgada no site do The Walt Whitman Archive,
acompanhados da tradução de Luciano Alves Meira.
Entendemos, contudo, que a obra de Emily Dickinson e de Walt Whitman são
marcadamente distintas, e, portanto, não nos parece haver pontos de convergência em que
possamos nos apoiar para defendermos que seus poemas revelem releituras de ou respostas a
poemas de um ou de outro. Ainda assim, o fato de os dois poetas terem sua produção
localizada no mesmo contexto histórico nos permite sugerir que ambos tenham respondido às
mesmas questões de seu tempo.
Diante disso, é preciso destacar que essa resposta à Guerra Civil Americana é visível
em Whitman, uma vez que o poeta dedicou, inclusive, um conjunto de poemas a esse tema,
expressando-se ora de maneira elogiosa à Guerra, ora lamentando-a. Em Dickinson, ao
contrário, não há referências explícitas, mas, sim, poemas que notadamente privilegiam
imagens relativas a um contexto de guerra e que foram produzidos durante os anos da Guerra
Civil2.
Desse modo, acreditamos que a Guerra possa se revelar um tema comum diante das
diferenças que as poéticas de Dickinson e de Whitman estabelecem entre si. O que buscamos
com este trabalho é, portanto, partir do modo como Whitman se expressa sobre a Guerra Civil
Americana e contrastá-lo com o modo como Dickinson teria, supostamente, feito o mesmo. A
escolha por essa perspectiva de estudo se justifica por ser Emily Dickinson também um nome
de grande importância na formação da poesia norte-americana e por ser a Guerra Civil um
marco na história dos Estados Unidos e na poesia de Walt Whitman.

2
Outros poemas de Emily Dickinson que também pode ser lidos como referências à Guerra Civil são “It feels a
shame to be Alive —”; "They dropped like Flakes“; "It don't sound so terrible, quite, as it did," e "When I was
small, a woman died”.
2
É importante lembrar que os poemas de Emily Dickinson não foram datados por ela, mas por editores que
compararam a evolução de sua escrita poética e de suas cartas para identificar o suposto ano de produção dos
poemas. Enfatize-se, também, que mais da metade de seus poemas teriam sido escritos durante os anos da
Guerra Civil Americana (1861-1865).
carandá
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Corumbá, MS, novembro 2011, n. 4, p. 137

Por fim, salientamos que este trabalho se iniciará com algumas reflexões acerca das
diferenças mais comumente apontadas entre a escrita poética de Whitman e de Dickinson para
chegarmos, então, aos poemas referentes à Guerra Civil. Durante essas primeiras discussões,
serão destacados alguns trechos de “Song of myself”, que é talvez o poema mais conhecido de
Walt Whitman, e os poemas de Emily Dickinson “I’m Nobody! Who are you?” (288J) e
“Death is a Dialogue betwewn” (976J).

WALT WHITMAN E EMILY DICKINSON

Apesar de contemporâneos, não há evidências de que Walt Whitman e Emily


Dickinson tenham se conhecido ou de que tenham lido o trabalho um do outro. Morando na
Cidade de Nova Iorque, Whitman publicou por conta própria o volume de poemas Leaves of
Grass (1855) e se encarregou de sua divulgação enquanto, em Amherst, a aproximadamente
270 km de Whitman, Emily Dickinson produzia sua vasta obra poética em silêncio 1, reclusa
na casa de seu pai e mantinha contato com o mundo exterior basicamente por meio de visitas
de amigos e familiares, de sua correspondência com os mesmos e pela leitura de jornais
diários.
Contudo, sabe-se que Dickinson conhecia o nome de Walt Whitman ao menos
minimamente, como se observa na resposta que a poeta escreve a uma carta de seu amigo T.
W. Higginson: “You speak of Mr. Whitman – I never read his book – but was told that He
was disgraceful –” (Dickinson, 1996, p. 404). Não se pode afirmar, no entanto, que Dickinson
de fato não lera os poemas de Whitman, uma vez que, trabalhando na imprensa de Nova
Iorque, Whitman não poupara esforços para uma auto-publicidade e, desse modo, pode ter
adentrado o lar dos Dickinsons com sua auto-divulgação jornalística.
Diante desse cenário, a produção poética de Whitman se contrasta com a de Dickinson
em especial por se tratarem de dicções poéticas absolutamente diversas, sendo que a diferença
entre eles é comumente resumida pela crítica em classificar o primeiro como poeta do espaço
público e a segunda como poeta do espaço privado. Essa classificação reflete tanto o
comportamento dos dois poetas em relação a sua obra como as características da voz lírica de
seus poemas. Como já foi mencionado, Whitman trabalhava pela divulgação de seu livro,

1
É preciso lembrar que seus 1775 poemas somente foram encontrados após a morte da poeta e editados em
1893.
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Revista do Curso de Letras do Câmpus do Pantanal – UFMS,
Corumbá, MS, novembro 2011, n. 4, p. 138

enquanto Dickinson escolhera a reclusão e escrevia uma obra de fôlego em silêncio; já o


sujeito lírico de Whitman se apresenta com a mesma grandiloqüência de seu autor em um
estilo que privilegia a exaltação a si, à vida, ao universo através dos versos longos e livres que
se aproximam da prosa e de um ritmo bastante fluido; por outro lado, o sujeito lírico de
Dickinson é aparentemente despretensioso, mas se revela altamente irônico em seus versos
curtos de estrutura rítmica quebrada por travessões a todo momento.
Esses contrastes são mais claramente observados quando colocamos lado a lado o
modo como os sujeitos líricos de Whitman e de Dickinson se apresentam em “Song of
Myself” e em “I’m Nobody! Who are you?”: em “Song of myself”, Whitman se coloca como
o porta-voz da humanidade e sua experiência está imersa na atemporalidade do fluxo da vida;
em oposição, o eu-lírico no poema de Dickinson afirma não ser ninguém e parece ver com
desprezo a fama, o desejo de ser público. Dessa forma os sujeitos líricos em ambos os poemas
refletem também o posicionamento de seus criadores, uma vez que no poema de Dickinson,
como em vários outros, é perceptível um certo senso de isolamento, de solidão (porém não
com sentido pejorativo, de sofrimento), ao contrário da expressão de Whitman que busca se
colocar sempre em contato com todo e qualquer ser existente.
Os aspectos rítmicos dos poemas também exemplificam as particularidades do fazer
poético de um e de outro. Observe-se que em “Song of myself” o ritmo é marcado pelo uso da
vírgula, que impõe pequenas pausas e não interfere na leitura do poema, como em: “Walt
Whitman, um cosmos, filho de Manhattan, / Turbulento, carnal, sensual, que come, bebe e
procria, [...].”(Whitman, 2002, p.105). É por meio dessa pontuação que Whitman também
desenvolve sua técnica de catalogação, em que ele vai acrescentando termos numa seqüência
enumerativa que marca toda a sua obra.
No entanto, Harold Bloom salienta que:

A originalidade de Whitman tem menos a ver com seu verso supostamente


livre do que com sua inventividade mitológica e seu domínio da linguagem
figurativa. Suas metáforas e argumentos, criando metro, abrem a nova
estrada ainda mais efetivamente que suas inovações na métrica. Mesmo
poemas muito curtos e ligeiros manifestam o impacto de sua originalidade.
(Bloom, 1995, p.258)

Por sua vez, em “I’m Nobody! Who are you?”, os versos curtos são entrecortados por
travessões que impõem pausas mais bruscas e tornam o ritmo do poema de certo modo
quebrado e até mesmo um pouco incômodo. Além disso, os travessões parecem isolar os
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Revista do Curso de Letras do Câmpus do Pantanal – UFMS,
Corumbá, MS, novembro 2011, n. 4, p. 139

termos no verso de maneira a dar maior ênfase para os seus possíveis significados: “Que triste
– ser – Alguém! / Que pública – a Fama – [...]” (Dickinson, 2008, p.41). Esse tipo de
pontuação é característico do estilo de Dickinson e responsável por infindáveis discussões por
parte da crítica. Além disso, a poeta se apropria de termos aparentemente simples, como, por
exemplo, a rã e a lama e os reveste de novos significados muitas vezes de difícil
compreensão: “O que seus críticos quase sempre subestimam é a espantosa complexidade
intelectual dela. Nenhum lugar-comum sobrevive às suas apropriações; o que ela não
renomeia ou redefine, revisa além do fácil reconhecimento” (Bloom, 1995, p.284).
Dessa forma, se colocarmos o eu-lírico de Whitman ao lado do eu-lírico de Dickinson,
observaremos o contraste entre um eu universal, público, e um eu individual, privado. Em
outras palavras, a identidade de Whitman é cumulativa, pois ela se expande de modo a estar
sempre em contato com tudo e ser tudo: ele é o amante masculino e o feminino, o poeta, o
profeta, o líder, uma voz das massas, um médium, o corpo e a alma, o passivo e o ativo, o
espiritual e o científico, enfim, um organismo vivo em constante mobilidade.
Por outro lado, o eu-lírico dos poemas de Dickinson parece fechar-se em si e debruçar-
se sobre momentos particulares de sua existência: “She [Dickinson] tends to focus her poems
on single moments, and the isolation of an individual event in her poem corresponds to her
sense of the self’s ultimate loneliness” (Salska, 1985, p. 47). Esse isolamento de um
acontecimento particular que se torna matéria de poesia faz com que a escrita de Dickinson
seja também atemporal, mas em um sentido diferente da atemporalidade assumida por
Whitman. Enquanto o poeta universal condensa em si o seu próprio tempo, o tempo de seus
antepassados e o dos que ainda estão por vir e se torna, portanto, atemporal, em Dickinson
essa atemporalidade não se dá em um movimento expansivo, mas sim de concentração em si e
no isolamento do momento presente que, sem referências temporais diretas, torna-se, assim,
atemporal.
Diante disso, Walt Whitman e Emily Dickinson são considerados precursores da
modernidade poética na literatura norte-americana, tanto pela forma poética utilizada – em
Whitman, por exemplo, os versos muito longos e o estilo prosaico, e em Dickinson o uso
exacerbado do travessão1 - como pelos temas – a exemplo, o amor homossexual em Whitman
e a maneira de retratar a morte em Dickinson. Assim, o nome dos dois poetas tem grande peso
na história literária dos Estados Unidos e do Ocidente em geral, como afirma Bloom: “Nada

1
Note-se que apesar dessa inovação na forma poética, Emily Dickinson retoma a tradicional balada inglesa,
característica dos hinos religiosos, muito provavelmente por causa da educação religiosa que ela recebera.
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Revista do Curso de Letras do Câmpus do Pantanal – UFMS,
Corumbá, MS, novembro 2011, n. 4, p. 140

na metade do século 19, ou no nosso quase concluído século, se iguala à obra de Whitman em
poder e sublimidade diretos, a não ser talvez Emily Dickinson” (Bloom, 1995, p.257).
Apesar das diferenças marcantes na escrita dos dois poetas, é possível identificar
temas similares entre ambos. No entanto, essas possíveis aproximações não podem deixar de
considerar as formas distintas que os temas tomaram na poesia de cada um. Nesse sentido, as
duas principais aproximações temáticas a que a crítica tradicionalmente se refere são em
relação à morte e à religião.
Para nenhum dos poetas a morte é tida como intimidadora, isto é, não há uma postura
de temor em relação a ela, mas sua presença na poesia de ambos é quase que uma obsessão:
Dickinson, the poet of dashes and telegraphic urgency, and
Whitman, the poet of the deep breath and the long line, are alike in the extent
to which they obsess about death. For both, the problem of human mortality
is an insistent challenge, not an abstraction but an experience somehow to be
endured. (Lehman, 2008, p. 12)

Para Whitman, a morte não representa um final, mas, sim, renovação, pois a energia
da vida não pode ser destruída, apenas modificada. Além disso, Lehman afirma que: “The
vision he proposes is of a self that will not die, and the reason he will not die is that he is a
poet and lives on his poetry” (Lehman, 2008, p.13).
Em oposição a isso, a morte é retratada nos poemas de Dickinson ora como elemento
personificado (a morte se coloca, por exemplo, como um senhor ou um amante), ora narrada
pelo próprio sujeito que estaria vivenciando essa situação de morte. A morte como fim
absoluto é, por vezes, negada e, outras vezes, ironizada, mas sem que se caia em pretensões
espirituais. Contudo, o sujeito lírico de Dickinson também não vê a morte com implicações
negativas e, sim, com serenidade e sem perturbações maiores.
Ligada ao tema da morte está a religião, que no século XIX ainda era uma questão
dominante nos EUA e mais especificamente na Nova Inglaterra, região onde viveu Emily
Dickinson e onde os puritanos ingleses estabeleceram suas primeiras colônias ao saírem da
Inglaterra por questões de perseguição religiosa.
Para Whitman, a religião e a espiritualidade de maneira mais abrangente estão em cada
indivíduo, em cada ser ou coisa existente no universo, não em uma entidade superior. O
próprio poeta se coloca, em alguns poemas, como Deus. Já nos poemas de Dickinson nota-se
com freqüência um questionamento irônico acerca da existência de um Deus e de sua
importância caso ele exista:
carandá
Revista do Curso de Letras do Câmpus do Pantanal – UFMS,
Corumbá, MS, novembro 2011, n. 4, p. 141

A entidade chamada ‘Deus’ tem uma carreira bastante dura na poesia


dela, e é tratada com bastante menos respeito e compreensão que a entidade
rival que ela chama de ‘morte’. [...] Um poeta que só chama Deus de pai
depois de chamá-lo de ladrão e banqueiro pretende outra coisa que não
religiosidade. (Bloom, 1995, p.287)1

Contudo, apesar do tom irônico com que o sujeito lírico de Dickinson muitas vezes
trata a figura de Deus e as questões religiosas, ainda assim há muito em sua poesia de um
sentimento religioso que, no entanto, não pensa a religião como uma simples declaração de fé,
mas como reflexão sobre a beleza da natureza, por exemplo, e das experiências de alegria e de
êxtase. Nesse ponto, Salska afirma que talvez o posicionamento de Dickinson lembre o de
Whitman, no sentido de que para um e outro a poesia toma o lugar da religião. Whitman se
coloca como a voz oficial de uma nova religião enquanto Dickinson “[...] turned to poetry as
believers do to religion, for solace and sustenance in her hours of need” (Salska, 1985, p. 24).
Em meio a essas duas poéticas tão distintas se coloca o contexto histórico que os
poetas compartilham. Como já foi mencionado, Walt Whitman viveu entre 1819 e 1892, em
Nova Iorque, e Emily Dickinson viveu entre 1830 e 1886, em Amherst, Massachussetts.
Assim, morando na região Norte do país, ambos assistiram o desenrolar dos conflitos que
resultaram na Guerra Civil Americana, cujos combates duraram de 1861 a 1865. Whitman
dedicou diversos poemas a esse fato histórico e Dickinson, apesar de não se referir
diretamente à Guerra, escreveu poemas que concentram em si imagens claramente
relacionadas ao combate militar. Passaremos, então, a discutir a maneira como os dois poetas
responderam a esse marco do século XIX norte-americano.

WHITMAN, DICKINSON E A GUERRA CIVIL

A Guerra Civil Americana, também chamada de Guerra de Secessão, ocorreu de 1861


a 1865 e é um dos momentos históricos mais importantes durante os últimos três séculos para
a formação econômica e social de todo o mundo, em especial das Américas e da Europa. Foi
também o conflito bélico que causou mais mortes na história dos EUA até a atualidade.
As razões para essa guerra se concentraram na discórdia entre os Estados do Norte,
mais desenvolvidos industrialmente e defensores do abolicionismo, e os Estados do Sul, cuja

1
Bloom se refere, aqui, ao poema 49J, “I never lost as much but twice”.
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Corumbá, MS, novembro 2011, n. 4, p. 142

economia baseava-se no latifúndio e na mão-de-obra escrava. O desenvolvimento do Norte


deveu-se, entre outras causas, a um acúmulo de capital durante o período colonial que deu a
essa região condições de crescimento industrial, gerando consequentemente a necessidade de
um mercado e de mão-de-obra assalariados. Por outro lado, o Sul manteve uma economia
agro-exportadora de algodão e de tabaco, baseada no latifúndio e no trabalho escravo e
tornou-se comprador dos produtos industrializados pelo Norte.
Diante desse cenário, em 1860 Abraham Lincoln, candidato do Partido Republicano e
representante dos interesses nortistas, é eleito para a presidência do país após anos de poder
do Partido Democrata e esse fato tornou-se, então, a causa imediata do início da Guerra.
Lincoln apregoava que trabalharia pela unidade da nação americana, independentemente da
questão abolicionista, mas, ainda assim, os Estados do Sul, em atitude radical, decidiram se
constituir numa Confederação separada na União, o que resultou em operações militares para
conter essa ação sulista e deu início à Guerra Civil.
Os conflitos se intensificaram com os esforços presidenciais pela defesa da União e da
abolição da escravatura e com a insistência do Sul em se manter independente. A rendição dos
Estados do Sul se deu apenas em 1865, deixando o país em ruínas, mas mantendo a unidade
dos EUA e abolindo a escravidão. Contabilizou-se, ao final, um número de mortes superior a
600.000. Contudo, os esforços de guerra geraram ganhos em diversos campos, como na
medicina e na tecnologia, além do crescimento ferroviário e nas indústrias armamentista e
metalúrgica.
Durante a Guerra, Walt Whitman trabalhou como voluntário em hospitais militares,
prestando seus serviços de 1863 até o final dos combates, em 1865. Dessa experiência surgiu
um grupo de poemas sob o título de “Drum Taps” que foi anexado ao Leaves of Grass em
1865. Esses poemas refazem a experiência de Whitman nos hospitais militares e nos dão um
retrato do que foi a Guerra Civil. Seu tom é por vezes celebratório, de exaltação à coragem
dos que lutaram pelo país, além de ser bastante narrativo e descritivo. Contudo, ao longo da
leitura desses poemas, notamos um crescente tom mais sóbrio e angustiado, indicando que o
poeta parece compreender o preço pago pela nação.
Sobre o desenrolar de “Drum Taps” Huck Gutman (1998) afirma em seu texto para o
The Walt Whtiman Archive que: “In "Drum-Taps" Whitman projects himself as a mature poet,
directly touched by human suffering, in clear distinction to the ecstatic, naive, electric voice
which marked the original edition of Leaves of Grass.” (Gutman, 1998, s.p.). Para
entendermos melhor essa passagem de um tom entusiasmado a um envolvimento emocionado
carandá
Revista do Curso de Letras do Câmpus do Pantanal – UFMS,
Corumbá, MS, novembro 2011, n. 4, p. 143

e até angustiante com a realidade da Guerra, transcrevemos abaixo três trechos de “Drum
Taps”:
“1861”
ARM'D year! year of the struggle!
No dainty rhymes or sentimental love verses for you, terrible year!
Not you as some pale poetling, seated at a desk, lisping cadenzas piano;
But as a strong man, erect, clothed in blue clothes, advancing, carrying a rifle on your shoulder,
With well-gristled body and sunburnt face and hands —with a knife in a belt at your side,
As I heard you shouting loud—your sonorous voice ringing across the continent;
Your masculine voice, O year, as rising amid the great cities,
Amid the men of Manhattan I saw you, as one of the workmen, the dwellers in Manhattan;
[…]
Saw I your gait and saw I your sinewy limbs, clothed in blue, bearing weapons, robust year;
Heard your determin'd voice, launch'd forth again and again;
Year that suddenly sang by the mouths of the round- lipp'd cannon,
I repeat you, hurrying, crashing, sad, distracted year.

“The Dresser”
3
On, on I go – (open, doors of time! open, hospital doors!)
The crush'd head I dress, (poor crazed hand, tear not the bandage away;)
The neck of the cavalry-man, with the bullet through and through, I examine;
Hard the breathing rattles, quite glazed already the eye, yet life struggles hard;
(Come, sweet death! be persuaded, O beautiful death!
In mercy come quickly.)
[…]
I dress the perforated shoulder the foot with the bullet wound
Cleanse the one with a gnawing and putrid gangrene, so sickening, so offensive,
While the attendant stands behind aside me, holding the trail and pail.
I am faithful, I do not give out;
The fractur’d thigh, the knee, the wound in the abdomen,
These and more I dress with impassive hand – (yet deep in my breast a fire, a burning flame.)

“Turn, O Libertad”
TURN, O Libertad, for the war is over,
(From it and all henceforth expanding, doubting no more, resolute, sweeping the world,)
Turn from lands retrospective, recording proofs of the past;
From the singers that sing the trailing glories of the past;
From the chants of the feudal world—the triumphs of kings, slavery, caste;
Turn to the world, the triumphs reserv'd and to come — give up that backward world;
Leave to the singers of hitherto—give them the trailing past;
But what remains, remains for singers for you—wars to come are for you;
(Lo! how the wars of the past have duly inured to you — and the wars of the present also inure:)
—Then turn, and be not alarm'd, O Libertad—turn your undying face,
To where the future, greater than all the past,
Is swiftly, surely preparing for you
(The Walt Whitman Archive: www.whitmanarchive.org)
carandá
Revista do Curso de Letras do Câmpus do Pantanal – UFMS,
Corumbá, MS, novembro 2011, n. 4, p. 144

“Mil oitocentos e sessenta e um”

Ano armado – ano de porfia,


Sem rimas deliciosas ou versos de amor sentimental para ti, ano terrível,
Não serás algum pálido poeta sentado ao piano, balbuciando cadências,
Mas como um homem forte e ereto, vestido em uniforme azul, avançando, carregando um rifle em teus
ombros,
Com um corpo bem formado, com as mãos e o rosto bronzeados, com uma faca na cintura,
Quanto te ouço gritar bem alto, tua voz sonora atravessando o continente,
Tua voz masculina, ó ano, como que se erguendo em meio às grandes cidades
Em meio aos homens de Manhattan te vi, como um dos trabalhadores, como um dos residentes de
Manhattan,
[...]
Observei tua andadura e teus membros firmes vestidos de azul, carregando armas, ano robusto,
Ouvi tua voz determinada soando e soando novamente,
Ano que subitamente foi cantado pelas bocas de lábios redondos do canhão,
Eu repito o que fizeste, ano corrido, desastroso, triste, disfarçado.
(Whitman, 2006, p.284-5)
“O médico de feridas”
3
Para frente sigo (abrindo portas do tempo! abrindo portas do hospital!)
A cabeça esmagada eu curo (pobre mão louca, não tires a bandagem)
O pescoço do homem da cavalaria com uma bala atravessada examino,
Difícil, a respiração vem em espasmos , os olhos já bastante fixos e, contudo, a vida luta duramente
para se manter,
(Vem, doce morte! Sê convencida, ó linda morte!
Por misericórdia, vem logo.)
[...]
Penso o ombro perfurado, o pé com o ferimento de bala,
Limpo aquele que tem dor persistente e pútrida gangrena, tão enjoativo, tão ofensivo,
Enquanto o assistente permanece atrás de mim e ao meu lado, segurando uma bandeja e um balde.

Sou dedicado, não desisto,


O fêmur fraturado, o joelho, o ferimento abdominal,
Isso e mais eu curo com mão impassível (e contudo no fundo de meu coração há um fogo, uma chama
ardente.)

(Whitman, 2006, p.311)

“Volta, ó Liberdade”

Volta, ó Liberdade, pois a guerra terminou,


Vem a partir dela e de hoje em diante expande-te, sem hesitações, resolutamente, varrendo o mundo,

Volta de terras retrospectivas, registrando provas do passado,


Dos cantores que cantam as glórias rebocadas do passado,
Dos cantos do mundo feudal, os triunfos dos reis, escravidão, casta,
Volta ao mundo, aos triunfos reservados e aos que hão de vir – desiste daquele mundo atrasado,
Deixa para os cantores de até agora, dá a eles o passado rebocado,
Mas o que resta, resta para os que cantam por ti – as guerras do porvir serão por ti,
(Olhe como as guerras do passado se submeteram devidamente a ti e as guerras do presente também se
submetem;)
Então retorna e não fiques alarmada, ó Liberdade – volta a tua face imorredoura
carandá
Revista do Curso de Letras do Câmpus do Pantanal – UFMS,
Corumbá, MS, novembro 2011, n. 4, p. 145

Para onde o futuro, maior do que todo o passado,


Está, rapidamente e com certeza, se preparando para ti.

(Whitman, 2006, p.324-5)

No primeiro trecho de “Drum Taps” transcrito aqui, notamos que prevalece um


sentimento de heroísmo em relação à Guerra, desenhando-se para o leitor uma imagem quase
que romantizada dos conflitos em defesa da nação. O poema é intitulado pelo ano em que se
inicia a Guerra Civil (1861) e é caracterizado como um “ano de porfia” (primeiro verso), isto
é, de empenho, de persistência, o que nos revela uma visão otimista sobre esse momento
histórico para os EUA. Contudo, o poeta anuncia em seguida: “ano terrível”, e estabelece uma
contradição que antecipa a realidade dos acontecimentos futuros.
Inicia-se, então, uma comparação entre o ano de 1861 e a imagem do soldado nortista
“vestido em uniforme azul, avançando, carregando um rifle em teus ombros”. Esse soldado é
“um homem forte e ereto”, de “corpo bem formado”, “voz sonora”, “voz masculina” e
“membros firmes”. Ora, essa caracterização aproxima o soldado à figura de um herói de cuja
força o país depende para que se obtenha a vitória. A descrição desse soldado nos parece
compor uma imagem fotográfica que, naquele momento, era uma arte nova e em
desenvolvimento.
O ano de 1861 torna-se, assim, o próprio soldado. Por ser apenas o primeiro ano da
Guerra, esse ano é “robusto” e tem “voz determinada”, como é de se esperar dos soldados em
início de batalha. No entanto, ao final do poema o sujeito lírico repete a contradição
mencionada anteriormente e anuncia: “Eu repito o que fizeste, ano corrido, desastroso, triste,
disfarçado.” Dessa forma, percebe-se que o sujeito lírico situa-se em um momento posterior
ao focalizado pelo poema e o que ele descreve são, na verdade, os sentimentos e as glórias
esperadas no início de uma guerra. Ademais, o eu - lírico se coloca nesse poema como
observador, diferentemente do poema seguinte em que o sujeito lírico descreve sua atuação na
Guerra. Muito provavelmente, a recriação, em “Mil oitocentos e sessenta e um”, de suas
percepções sobre a Guerra foi resultado das informações que o poeta obtinha nas cartas de seu
irmão (que lutou no início da Guerra), das suas idas aos fronts de combate e de suas conversas
frequentes com soldados feridos.
Já em “O médico de feridas” o que se tem é o retratado da morte e do sofrimento
causados pela Guerra. O sujeito lírico é, agora, o enfermeiro que cuida dos feridos em um
hospital militar e assiste à dor dos soldados para quem a morte seria mais “doce” e “linda”:
carandá
Revista do Curso de Letras do Câmpus do Pantanal – UFMS,
Corumbá, MS, novembro 2011, n. 4, p. 146

“[...] the dominating metaphor for the war is a hospital, filled with injured men who must be
nursed or, if dying, comforted.” (Gutman, 1998, s.p.).
A descrição da situação dos feridos é bastante realista (“cabeça esmagada”, “ombro
perfurado”, “pútrida gangrena”, “fêmur fraturado”, etc.), mas se mescla a imagens poéticas
que dão o poder emocional do poema (“pobre mão louca”, “a vida luta duramente para se
manter”, “Vem, doce morte!”, etc.). Ao final, o poeta afirma que, apesar de todo o sofrimento,
ele não desiste, pois sua “mão impassível” alivia a dor alheia e seu coração possui “uma
chama ardente” que lhe dá esperanças e ânimo para prosseguir.
A imagem desenhada nesse poema parece, portanto, fotográfica e carrega em si a
experiência do próprio poeta. Assim, o sujeito lírico se coloca como participante das situações
descritas e, por isso, tem condições de retratar a guerra mais realisticamente do que no poema
anterior. É preciso mencionar, ainda, que “The Dresser” está localizado na metade de “Drum
Taps” e se diferencia significativamente dos poemas anteriores e posteriores a ele. Em outras
palavras, é visível que “The Dresser” marca a mudança de tom em “Drum Taps”, da exaltação
à Guerra para a crueza de sua realidade.
Dessa forma, parece-nos plausível afirmar que “Drum Taps” se constitui de três
conjuntos de poemas em uma sequência cuidadosamente preparada: o primeiro seria
composto por poemas de exaltação à Guerra, o segundo é o próprio “The Dresser”, com o
retrato do sofrimento advindo dos conflitos armados, e, por último, os poemas que clamam
pela liberdade e refletem sobre os efeitos dessa Guerra tão sangrenta.
Para elucidar a terceira parte de “Drum Taps” escolhemos um poema cujo título
explicita seu tema – “Volta, ó Liberdade”. Nele, o poeta canta o fim da Guerra e o desejo de
que a liberdade se restabeleça, num tom otimista e esperançoso de que as atrocidades desses
conflitos não se repitam na história. Aqui, a voz lírica se dirige à Liberdade, personificando-a,
e o pedido feito a ela é para que volte ao mundo, “registrando provas do passado” e
permanecendo para “os que hão de vir”. Note-se que a Liberdade é tratada como uma
entidade de grande poder, uma vez que as guerras, do passado e do presente, submetem-se a
ela e as guerras do futuro serão por sua preservação. Nesse sentido, os últimos versos
concentram em si a esperança do poeta de que a Liberdade seja agora permanente: “Então
retorna e não fiques alarmada, ó Liberdade – volta a tua face imorredoura / Para onde o
futuro, maior do que todo o passado, / Está, rapidamente e com certeza, se preparando para
ti.”
carandá
Revista do Curso de Letras do Câmpus do Pantanal – UFMS,
Corumbá, MS, novembro 2011, n. 4, p. 147

Com isso, “Drum Taps” se encerra cantando o retorno da paz e da liberdade. Percebe-
se, portanto, que há um caminho percorrido pelos poemas de Whitman sobre a Guerra,
iniciado com sua celebração, de um ponto de vista de observador, passando por um retrato
mais realista dos combates, a partir de seu envolvimento pessoal com a Guerra, e terminando
com a esperança de que tudo será reconstruído. Sua resposta à experiência da Guerra se
modifica ao longo dos poemas, como explica Gutman:

The sequence as a whole traces Whitman's varying responses, from


initial excitement (and doubt), to direct observation, to a deep compassionate
involvement with the casualties of the armed conflict. The mood of the
poems varies dramatically, from excitement to woe, from distant observation
to engagement, from belief to resignation. (Gutman, 1998, s.p.)

Ao contrário do que ocorre na poesia de Walt Whitman, não se pode afirmar que
Emily Dickinson tenha dedicado uma parte de seus poemas às questões da Guerra Civil. Isso
se deve, em primeiro lugar, à ausência de referências diretas a fatos ou pessoas ligados ao
contexto da Guerra. Soma-se também o fato de que Dickinson não datou seus poemas, o que
dificulta a comprovação de que tal ou qual poema teria sido escrito durante os anos da Guerra
Civil. Além disso, os poemas que podemos classificar como sendo sobre a Guerra falam, na
verdade, de morte, de Deus, da existência humana, de conflitos, isto é, de temas comuns em
sua poesia, o que faz com que muitos críticos rejeitem a possibilidade de ela ter se expressado
especificamente sobre a Guerra Civil. Desse modo, não se pode identificar um
posicionamento da poeta em relação ao seu contexto histórico sem que se caia em sugestões.
Emily Dickinson não teve um envolvimento direto com a Guerra como o fez
Whitman. Aparentemente, a poeta não se preocupava com questões políticas, uma vez que
não há, por exemplo, registros em suas cartas de comentários ou críticas acerca dos conflitos
entre os Estados do Sul e os do Norte, região onde ela habitava. No entanto, com o avanço dos
combates a família Dickinson viu amigos partirem para a Guerra (inclusive o amigo mais
próximo da poeta, T. W. Higginson) e serem feridos ou mortos em batalha, o que pode ter
afetado significativamente o interesse da poeta pelo assunto. Ademais, o pai de Dickinson
assinava jornais diários que traziam as notícias da Guerra e o próprio irmão da poeta pagara
uma taxa para não ter que lutar. Assim, apesar da reclusão, Emily Dickinson tinha pleno
conhecimento sobre o que estava acontecendo nos EUA, mas sua relação com a Guerra e sua
possível resposta a ela são ainda enigmáticas.
carandá
Revista do Curso de Letras do Câmpus do Pantanal – UFMS,
Corumbá, MS, novembro 2011, n. 4, p. 148

Para pensarmos no possível posicionamento de Emily Dickinson, tomamos dois


poemas que nos parecem evocar o contexto de guerra:
639J
My Portion is Defeat – today –
A paler luck than Victory –
Less Paeans – fewer Bells –
The Drums don't follow Me – with tunes –
Defeat – a somewhat slower – means –
More Arduous than Balls –

'Tis populous with Bone and stain –


And Men too straight to stoop again,
And Piles of solid Moan –
And Chips of Blank – in Boyish Eyes –
And scraps of Prayer –
And Death's surprise,
Stamped visible – in Stone –

There's somewhat prouder, over there –


The Trumpets tell it to the Air –
How different Victory
To Him who has it – and the One
Who to have had it, would have been
Contenteder – to die –

615J

Our journey had advanced –


Our feet were almost come
To that odd Fork in Being's Road –
Eternity – by Term –

Our pace took sudden awe –


Our feet – reluctant – led –
Before – were Cities – but Between –
The Forest of the Dead –

Retreat – was out of Hope –


Behind – a Sealed Route –
Eternity's White Flag – Before –
And God – at every Gate –

Nesses poemas, observa-se que Dickinson não tem versos comemorativos, de


exaltação aos que lutaram na guerra. Além disso, seu tom é mais estável, ou seja, menos
emocional que o de Whitman e o ritmo dos poemas é entrecortado por travessões, como lhe é
característico.
carandá
Revista do Curso de Letras do Câmpus do Pantanal – UFMS,
Corumbá, MS, novembro 2011, n. 4, p. 149

A voz lírica em ambos os poemas parece se apropriar da voz de um soldado. No


primeiro poema, esse soldado vê a morte como sendo seu provável destino, mas também
como sendo uma vitória. É possível, ainda, afirmar que ele esteja morrendo e, então, faça suas
reflexões sobre vitoriosos e derrotados. Assim, na primeira estrofe percebemos um tom de
aceitação que permanece ao longo do poema e é coerente com a situação em que o soldado se
encontra. Esse soldado descreve, então, um lugar repleto de ossos e manchas e de pilhas de
gemidos, compondo uma imagem severa de morte e destruição que se destaca de todo o
poema e acaba por reafirmar a própria situação do soldado.
Ao final do poema, e provavelmente ao final de sua vida, ele discute a diferença entre
a vitória e a derrota e percebe o custo da guerra. Nesse sentido, o soldado afirma na última
estrofe: “How different Victory / To Him Who has it – and the One / Who to have had it,
would have been / Contenteder – do die –”. Ora, como morrer implicaria não vivenciar as
brutalidades da guerra, isso traria ao soldado maior contentamento e alívio. Em outras
palavras, as visões da guerra seriam marcantes demais para não afetarem o soldado
profundamente e, por isso, a morte e a derrota são apenas mais pálidas que a vitória,
sugerindo que vencer também possui a palidez da morte.
A escolha vocabular nesse primeiro poema também nos remete ao contexto histórico
em questão, mesmo que não se mencionem batalhas, pessoas ou acontecimentos específicos
da Guerra Civil, pois palavras como defeat, victory, drums, arduous, balls, bone, men, death,
stone e trumpets criam no poema uma imagem de Guerra de maneira bastante visível.
A mesma criação imagética ocorre no segundo poema, em que o soldado descreve
uma jornada, um trajeto, que em seu final o levou a uma “floresta dos mortos”. A imagem
dessa floresta metafórica, na segunda estrofe, é certamente a mais significativa na
interpretação desse poema como sendo sobre a Guerra, pois sabe-se que os soldados, ao
passarem por campos em seus caminhos para outras cidades e combates, avistavam muitos
corpos que eram deixados ao longo das estradas e de florestas antes que tivessem um funeral
apropriado. Observe-se também como essa “Forest of the Dead” retoma o poema anterior em
sua segunda estrofe que, por sua vez, poderia ser a descrição dessa floresta: “’Tis populous
with Bone and Stain - / And Men too straight to stoop again, / And Piles of solid Moan – /
And Chips of Blank – in Boyish Eyes – / And scraps of Prayer – / And Death's surprise, /
Stamped visible – in Stone –”. Além disso, palavras como advanced, pace, retreat, route e
white flag criam no leitor a idéia de uma vivência da guerra apesar de não serem referências
explícitas a ela.
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Revista do Curso de Letras do Câmpus do Pantanal – UFMS,
Corumbá, MS, novembro 2011, n. 4, p. 150

Nesse poema, o sujeito lírico também parece se apropriar da voz de um soldado, mas
se diferencia do poema anterior por apresentar-se na forma do plural: “Our journey”, “Our
pace”, “Our feet”. Compreende-se, portanto, que enquanto no primeiro poema o soldado
parecia estar sozinho no momento de sua morte, aqui o sujeito lírico fala em nome de um
regimento de soldados que, em seu caminho, se deparou com a morte.
Diante dessa situação, recuar não seria possível (“Retreat – was out of Hope –”), pois
atrás dos soldados a estrada está fechada e à frente a bandeira branca da eternidade se impõe
como um símbolo da morte, retomando e ao mesmo tempo amenizando a imagem da floresta
dos mortos. A idéia de “retreat” aqui também pode ser entendida como um recuo emocional,
que não é possível por serem as imagens da guerra e da morte marcantes demais para serem
apagadas, como cicatrizes.
Por fim, é preciso enfatizar que a interpretação desse poema como a expressão de
Emily Dickinson sobre a Guerra Civil é apenas uma das possibilidades de leitura. Podemos
pensar, por exemplo, que o sujeito lírico está falando da jornada da vida, da existência
humana e da morte, que são os motivos de nossos conflitos pessoais e que, quando se
impõem, não há como recuar. Ademais, ao termos que enfrentar a morte de um modo ou de
outro, perdemos a ingenuidade da vida e passamos a enxergar sua finitude sem podermos
recuar, isto é, sem podermos voltar à nossa inocência anterior. Da mesma forma, “My Portion
is Defeat – today –” também nos coloca a possibilidade de interpretá-lo por um viés mais
subjetivo, uma vez que vitória e derrota são inerentes à nossa vivência pessoal e nos suscitam
reflexões existenciais tão complexas como as do soldado, em especial no momento em que
nos despedimos da vida.
Assim, é por essa possibilidade de dupla interpretação que a crítica com freqüência
nega que Emily Dickinson tenha, de fato, escrito sobre a Guerra Civil e argumenta que as
imagens referentes a uma situação de guerra são, na verdade, uma apropriação temática por
parte da poeta para expressar seus próprios conflitos internos. Nesse sentido, poemas como os
dois que destacamos neste trabalho seriam a expressão das dúvidas e medos da poeta sobre a
existência humana, sobre Deus e sobre ela mesma. Ainda assim, não se pode negar que esses
poemas possuem em si uma carga semântica que nos lembra o cenário bélico em questão e,
que, por isso, fundamentam a leitura aqui proposta.
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Corumbá, MS, novembro 2011, n. 4, p. 151

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Como foi discutido, a ausência de referências contextuais nos impede de afirmar que
Emily Dickinson teria dedicado, de fato, uma parte de sua obra à Guerra Civil. Entretanto,a
leitura de “My Portion is Defeat – today –” e de “Our journey had advanced –” sob a luz dos
poemas de “Drum Taps” nos revela uma nova porta de entrada para sua poesia. Em outras
palavras, uma vez que se lêem os poemas de Whitman sobre a Guerra Civil e a eles se
sobrepõem os poemas de Dickinson, podemos ver com maior nitidez as imagens referentes a
um contexto de guerra.
É evidente, contudo, que essas imagens se constituem de modos diferentes em cada
poeta. Whitman privilegia as descrições ricas em detalhes, fazendo com que as imagens dos
soldados, por exemplo, se pareçam com fotografias e, assim, correspondam ao máximo de
realidade possível. Por outro lado, as descrições de Dickinson são obscurecidas pelo ritmo
interrompido dos travessões e pelas construções metafóricas que exigem uma leitura mais
atenta, além dos termos empregados por ela com conotações polissêmicas (a exemplo:
portion, victory, defeat, blank, journey, eternity, route, etc.).
Além disso, a leitura de “Drum Taps” nos mostra o quanto Walt Whitman se envolveu
na Guerra Civil e como ele se posiciona diante desse contexto. Já na poesia de Emily
Dickinson, é exatamente por ela não se referir claramente à guerra que muitos estudiosos
rejeitam seu envolvimento nas questões políticas e sociais de sua época. A falta de referências
diretas à Guerra não significa, no entanto, que a poeta não teria sido afetada por esse
acontecimento e, consequentemente, não teria respondido a ele, inclusive porque seus poemas
foram escritos de maneira muito reservada, o que lhe dava a possibilidade de se expressar
sobre o que desejasse e da maneira que lhe fosse mais conveniente. É precisa lembrar, ainda,
que a escrita de Dickinson é caracteristicamente elíptica e, por isso, instiga diversas
referências possíveis, o que faz com que sua poesia seja vista como enigmática.
Os poemas de Dickinson sobre a guerra também não possuem os versos
comemorativos como os que ocorrem, por exemplo, em “Mil oitocentos e sessenta e um” e
em “Volta, ó Liberdade”. Dessa forma, a poeta não só deixa de se referir a aspectos
particulares da guerra como também constrói seus poemas de modo a não se equiparar a
qualquer ideologia de perpetuar os esforços pela manutenção da unidade dos EUA.
carandá
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Corumbá, MS, novembro 2011, n. 4, p. 152

Também nos chama atenção a maneira como a morte é apresentada nos dois poemas
de Dickinson aqui estudados e em “The Dresser”. Como foi mencionado anteriormente, a
morte não é uma questão intimidadora para os poetas e se torna quase que uma obsessão
dentro da obra de ambos. Assim, em “The Dresser” Whitman retrata a morte como um alívio
diante de todo o sofrimento causado pelos combates bélicos. A mesma postura parece ter
Dickinson em “My Portion is Defeat – today – ”, enquanto que em “Our journey had
advanced –” a morte vem como uma imposição e não há meios de não encará-la, mas ainda
assim não se deixam entrever quaisquer sentimentos de medo ou repugnância para com ela.
Ademais, a Guerra Civil causou, como se sabe, um número de mortes superior a
qualquer outro conflito envolvendo os EUA e devastou esse país de maneira assustadora. Por
isso, o retrato dessa situação é composto, em Whitman, de cabeças esmagadas, ombros
perfurados, pés feridos, dores persistentes e partes do corpo fraturadas; a mesma imagem se
constrói em Dickinson, mas de forma mais metafórica, como se observa no uso de termos
como “Forest of the dead”, “Piles of solid Moan” e “scraps of Prayer”.
É preciso observar, também, como ambos os poetas falam da morte sem implicações
religiosas. Novamente, a morte em “The dresser” e em “My Portion is Defeat – today – ”
significa o fim da realidade da guerra, sem que se mencione nenhum apego a qualquer
entidade superior capaz de confortar o soldado que sofre. Apenas em “Our journey had
advanced –” é que a figura de Deus aparece e a morte se liga à eternidade, isto é, a morte não
é considerada o fim absoluto do ser. Esse Deus está “at every gate”, mas não se sabe se Ele se
encontra ali para acolher ou para bloquear a passagem à eternidade. Se temos conhecimento
da ironia com que Dickinson costuma tratar a figura de Deus, então as duas leituras se tornam
possíveis.
Por fim, salientamos que a obra poética de Whitman e de Dickinson é de tamanha
importância para a literatura que não há meios de compará-los a não ser para mostrar as
peculiaridades de cada um e as diferenças tão grandes entre eles. O que propomos aqui foi
partir dos poemas de “Drum Taps” para poemas de uma contemporânea de Whitman que,
vivendo sob o mesmo contexto histórico e sendo possuidora de uma mente tão genial quanto a
dele, teria tido condições de refletir sobre as questões de seu tempo e de criar uma forma de
expressão para elas, ainda que enigmática. Nesse sentido, buscamos compreender melhor a
possível resposta de Emily Dickinson à Guerra Civil ao mesmo tempo em que nos
aprofundamos no posicionamento de Whitman em relação ao mesmo tema e percebemos que
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Revista do Curso de Letras do Câmpus do Pantanal – UFMS,
Corumbá, MS, novembro 2011, n. 4, p. 153

a leitura do poeta universal se revela uma contribuição significativa para que se ramifiquem as
possíveis interpretações da poesia de Emily Dickinson.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BLOOM, Harold. Emily Dickinson: Vazios, Arrebatamentos, as Trevas. In: ________. O Cânone
Ocidental: Os Livros e a Escola do Tempo. Tradução de Marcos Santarrita. Rio de Janeiro: Editora
Objetiva, 1995.
____________. Walt Whitman como centro do Cânone Americano. In: ________. O Cânone
Ocidental: Os Livros e a Escola do Tempo. Tradução de Marcos Santarrita. Rio de Janeiro: Editora
Objetiva, 1995.
DICKINSON, Emily. The complete Poems of Emily Dickinson. Edição de Thomas H. Johnson. New
York: Back Bay Books, 1961.
____________. The letters of Emily Dickinson. Organizado por Thomas H. Johnson e Theadora
Ward. Cambridge: Harvard University Press, 1996.
____________. Alguns poemas. Traduções de José Lira. São Paulo: Iluminuras, 2008.
GUTMAN, Huck. Drum Taps. In: LeMASTER, J. R. e KUMMINGS, D. D. (Edição). Walt
Whitman: An Encyclopedia. New York: Garland Publishing, 1998. Disponível em
http://www.whitmanarchive.org/criticism/current/encyclopedia/entry_83.html. Último acesso:
08/101/2011.
KIRCHBERGER, Joe H. Civil War and Reconstruction: an Eyewitness History. New York: Facts
on File, 1991.
LEHMAN, David. The visionary Whitman. In: BLAKE, David Haven; ROBERTSON, Michael (Ed.).
Walt Whitman, where the future becomes present. Iowa: University of Iowa Press, 2008.
SALSKA, Agnieszka. Walt Whitman and Emily Dickinson – Poetry of the Central Consciousness.
Philadelphia: University of Pennsylvania Press, 1985.
WHITMAN, Walt. Drum Taps. In: Leaves of Grass. Disponível em
<http://whitmanarchive.org/published/other/DrumTaps.html> Último acesso em 10 de janeiro de
2011.
_______________. Folhas de Erva. Tradução de Maria de Lourdes Guimarães. Vol.1. Lisboa:
Relógio D’água Editores, 2002.
_______________. Folhas de Relva. Tradução de Luciano Alves Meira. São Paulo: Martin Claret,
2006.
carandá
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O REALISMO NA PEÇA LE DEMI-MONDE


(1855), DE ALEXANDRE DUMAS FILHO
Silvia Pereira Santos1

RESUMO: O objetivo deste artigo é ilustrar as fases do realismo, de Courbet e Champfleury a Dumas
Filho, e caracterizar o pertencimento deste autor dramático ao movimento a partir da análise do
prefácio da peça Le demi-monde (1855). Mais do que simplesmente pertencer a um movimento
literário, Dumas Filho discorre sobre a necessidade de fazer uma arte “útil”, que mostre a realidade
dos fatos para nela identificar o certo e o errado – de acordo com sua visão de mundo. A peça Le demi-
monde, não só levou aos palcos este “mundo intermediário”, situado entre o mundo respeitável e o
mundo da prostituição, como pretendeu redefini-lo, enriquecendo o verbete para compor os
dicionários futuros.

PALAVRAS-CHAVE : realismo, arte útil, drama burguês

THE REALISM IN ALEXANDRE DUMAS JR’S PLAY LE DEMI-MONDE (1855)

ABSTRACT: The aim of this paper is to illustrate the phases of the realism, from Courbet and
Champfleury to Dumas Jr., and characterize the membership of this playwright to the movement from
the analysis of the preface of the play Le Demi-Monde (1855). More than simply belonging to a
literary movement, Dumas Jr. writes about the need of an useful art that shows the reality of the facts
to identify therein right and wrong – according to his world view. The play Le Demi-Monde not only
took to the stages this “intermediate world”, placed between the respectable world and the world of
prostitution, but also intended to redefine it, enriching the entry to the future dictionaries.

KEY WORDS: realism, useful art, bourgeois drama

ALEXANDRE DUMAS FILHO E O DEMI-MONDE

Alexandre Dumas Filho, filho ilegítimo do romancista Alexandre Dumas com a


costureira Catherine Laure Labay, nasceu em Paris, em 1824. Sua primeira obra de sucesso
foi o romance A dama das camélias (La dame aux camélias), escrita em 1852 e
posteriormente adaptada para o teatro. A ópera La traviata (1853), de Giuseppe Verdi, é
baseada na peça dama das camélias, e há ainda várias adaptações feitas para o cinema, dentre

1
Mestre em Letras Neolatinas, área de concentração Estudos Literários Neolatinos, opção Literaturas de Língua
Francesa. Grupo PRISMA, Faculdade de Letras, Universidade Federal do Rio de Janeiro. Rio de
Janeiro/Brasil. E-mail: silviaufrj@yahoo.com.br. Este artigo é baseado na dissertação de mestrado SANTOS,
Silvia Pereira. Le demi-monde (1855) de Alexandre Dumas Filho: cenografia de um drama burguês. Faculdade
de Letras / Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2010. http://www.letras.ufrj.br/pgneolatinas/
media/bancoteses/silviapereirasantosmestrado.pdf
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as quais o filme Camille, de 1936, dirigido por George Cukor, com Greta Garbo e Robert
Taylor, e uma versão de 1980, dirigida por Mauro Bolognini, com Isabelle Huppert.
A peça Le demi-monde foi escrita em 1855 e também se tornou um grande sucesso.
Porém, trata de uma realidade muito peculiar da cidade de Paris do século XIX, e por isso de
difícil tradução atualmente. O demi-monde, para Dumas Filho, se refere, conforme definição
dada no prefácio da obra, a uma “classe de [mulheres] desclassificadas”, definição esta que o
autor distingue da “multidão das cortesãs” (Dumas Fils, 1898, p. 11). 1
Trata-se de uma
redefinição do demi-monde, com a qual Dumas Filho pretende estabelecer o verbete para os
dicionários futuros. Segundo ele, “Não pertence ao demi-monde quem quer. É preciso mostrar
seu valor para ser admitida” (Dumas Fils, 1898, p. 11). Ou seja: é um mundo composto por
mulheres cujas raízes estão na “sociedade regular”, mas que resolveram desertar, sobretudo
em nome de um amor questionável. Mas é um mundo que também acolhe jovens que
começaram a vida por uma falta (como uma gravidez indesejada, por exemplo). Dumas Filho
admite que os “diferentes mundos se mesclaram nas últimas oscilações do planeta social”, e
teme que as “inoculações perniciosas” resultantes deste contato se generalizem, que sua
definição seja para as gerações futuras descendentes nada mais do que um “detalhe puramente
arqueológico”, e que eles confundam “o alto, o meio e o baixo” (Dumas Fils, 1898, p. 12).

O REALISMO

Champfleury (1821-1889), no manifesto Le réalisme (1857), discute em seu prefácio


sobre as causas e os meios que dão aparência de realidade às obras de arte, o que, segundo ele,
era uma questão sem resposta, produzida de forma instintiva até o movimento de 1848. Com
as Revoluções de 1848, que instauraram a Segunda República na França e nos quais estavam
em jogo ideais republicanos e socialistas, o realismo veio se juntar às “numerosas religiões em
ismo que víamos aparecer todos os dias, expostas nas paredes, aclamadas nos clubes, adoradas
nos templos e servidas por alguns fiéis” (Champfleury, 1857, p.2). Embora não aprecie as
palavras em ismo, que ele considera como palavras de transição, diz que deu este nome ao seu
trabalho porque é a palavra adotada pelos filósofos, críticos e magistrados, e portanto se

1
As traduções utilizadas são nossas e os trechos originais foram omitidos para facilitar a leitura.
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arriscaria a não ser compreendido falando em realidade. Reconhece apenas a sinceridade na


arte, mas se recusa a ser o “deus da igreja do realismo” (Champfleury, 1857, p.3).
Champfleury considera o realismo como uma insurreição. A palavra realismo, inventada
pelos críticos como uma máquina de guerra, é uma palavra de transição que na opinião de
Champfleury não duraria mais de trinta anos; é um destes termos ambíguos que se prestam a
todo tipo de emprego. Champfleury sempre protestou contra esta palavra por não gostar de
classificações.
O conjunto de mentes cansadas das mentiras versadas, das teimosias das fileiras
românticas, que se libertam da linguagem bela, que não estaria em harmonia com os temas de
que tratam, não constitui, para Champfleury, base para uma escola: para ele, produzir e criar
sem se preocupar com dogmas ou classificações é o mais importante (Champfleury, 1857, p.
6).
A arte é, segundo Champfleury, a comunicação à multidão de sensações pessoais; é
agitar, aquecer corações, fazer sorrir ou chorar indivíduos que não se conhece. Estudando as
aspirações, os desejos, as alegrias e tristezas das classes que lhe são simpáticas, Champfleury
se diz intérprete destes grupos, escrevendo o que não saberiam escrever. Ao contrário dos
autores que “marcaram os últimos tempos”, definição que podemos entender como aquela que
foi dada ao grupo dos românticos - dentre os quais cita Théophile Gautier -, que têm
representado “os burgueses e os camponeses, pelo fato de terem estudado mais especialmente
estas duas classes”, embora “as altas classes, a elegância e os encantos sutis da civilização não
sejam negligenciados”, Champfleury considera mais válido pintar as classes baixas, nas quais
“a sinceridade dos sentimentos, das ações e das palavras está mais em evidência do que na
alta sociedade” (Champfleury, 1857, p. 10).
Percebe-se, aqui, que a posição de Champfleury no campo literário aproxima-se daquela
que Bourdieu (1992, p. 107) chama de arte social, sempre distante e em contraposição à arte
burguesa, que engloba a arte mercenária menor, representada pelo cabaré ou o folhetim, e a
arte mercenária maior, representada pelo teatro burguês. Segundo Bourdieu, a arte social é
defendida, nos anos 1850, por “intelectuais proletaróides”, entre eles Champfleury, que
manifestam uma solidariedade em relação aos grupos dominados, especialmente por serem
eles mesmos ligados às classes populares (o pai de Champfleury era secretário municipal)
(Bourdieu, 1992, p. 110). O realismo como um movimento político-estético, com
Champfleury como líder, juntamente com Courbet, como veremos a seguir, é a antítese da
corrente realista contemporânea representada por Dumas Filho, fator que mostra a dificuldade
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Corumbá, MS, novembro 2011, n. 4, p. 157

em definir o realismo como um movimento único.

Para Champfleury, um grande exemplo de operário habilidoso que une, com maestria, a
realidade inventada à realidade da natureza é Diderot. Segundo Champfleury, quando se tenta
diminuir o mérito do escritor, acusando-o de falta de imaginação, esquece-se que poucos são
capazes de tornar a história dramática, como fez Diderot. Todos os dias acontecem em nossas
vidas eventos singulares que nos tocam, mas não somos capazes de transformá-los em
romances ou comédias. O soldado que assiste à batalha é incapaz de contá-la no papel.
Diderot é um inventor ao deixar esta obra de arte, pois cem escritores no seu lugar não seriam
tocados pelo tema. E a forma que utiliza para tornar o drama possível lhe é própria
(Champfleury, 1857, p. 93).
A vida é composta por numerosos fatos insignificantes; as conversas são cheias de
detalhes que não devem ser reproduzidos sob pena de fatigar o leitor. Um drama real não
começa com uma ação interessante. O romancista é o responsável pela escolha dos fatos
interessantes, pelo seu agrupamento, distribuição e encadeamento. Os partidários da realidade
na arte sustentam que há uma escolha a fazer na natureza. Curioso, ativo, frequentador
assíduo do mundo, o autor deve ser capaz de descrever, em um ser, vários seres que encontra.
(Champfleury, 1857, p. 96).
Reconhecemos em Alexandre Dumas Filho estas principais características dos grandes
realistas nos moldes propostos por Champfleury: curioso, ativo e frequentador assíduo do
mundo, ou melhor, da sociedade parisiense de seu tempo. Tais características podem ser
notadas no prefácio da peça Le demi-monde, em que Dumas Filho narra com detalhes suas
incursões pelo submundo que dará nome à peça, demonstrando seu caráter investigativo.
Dumas conta que em uma noite de sábado de janeiro de 1853, no teatro Opéra, foi
abordado por uma dominó “muito elegante e saltitante”, que se apresentou como senhora M...
e perguntou se ele a conhecia. A seguir o diálogo que se travou:

— De reputação, apenas.
— E o que dizem de mim?
— Que você é muito graciosa, muito espirituosa e... muito alegre.
— Você quer ter certeza disto?
— Adoraria.
— Venha, terça-feira, para uma recepção em minha casa.
— A que horas começa a recepção?
— Como em qualquer lugar; quando as pessoas chegam.
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— E termina?
— Quando se vão. (Dumas Fils, 1898, p. 5).

Trata-se de um diálogo bastante emblemático para se iniciar um prefácio. Com ele,


notamos não só o nível de detalhamento que caracteriza seu trabalho como também o tipo de
realismo ao qual se propõe, em que suas experiências pessoais são o próprio objeto de suas
comédias-tese. Ele próprio dirá que, ao penetrar na história, “o leitor reconhecerá no drama
alguns dos tipos que me marcaram na realidade” (Dumas Fils, 1898, p. 10).
De fato, os tipos descritos encontram-se todos nas personagens, com mudanças em
alguns detalhes e com algumas características “diluídas” em mais de uma personagem. A
descrição acima é a mesma dada à Suzanne d’Ange na peça: bonita, espirituosa, alegre. Mais
adiante, no prefácio, o autor dirá que a senhora M... tem trinta anos, o que também a aproxima
da senhora d’Ange. Por outro lado, Suzanne aparece na peça como uma falsa viúva, a fim de
manter uma reputação ilibada para partir em busca de um marido; enquanto não o encontra, é
sustentada por seu amante, de Thonnerins. Não se conhece sua história, mas sabe-se que veio
“de baixo”, não teve uma família abastada. A senhora M..., por outro lado, é descrita pelo
autor no prefácio como “uma das celebridades da galanteria parisiense, mas da galanteria
aristocrática. Filha de uma honorável personagem do Império, casou-se muito jovem, em
1840, com um estrangeiro distinto” (Dumas Fils, 1898, p. 6). Surpreendida pelo marido
quando estava com seu amante, a senhora M... foi banida da convivência conjugal, destino
semelhante à personagem Valentine de Santis, que terá ainda características comuns à senhora
S..., também descrita por Dumas no prefácio.
Dando continuidade à narrativa de suas experiências pelo demi-monde, Dumas Filho
dirá que, ao chegar à casa da senhora M... no dia e horário indicados para a recepção,
encontrou o conde de R..., que ele considera “o mais parisiense dos parisienses” que já
conheceu, e que, “sem saber, já servira de tipo para Gaston Rieux em A Dama das camélias,
para Maximilien em Diane de Lys, e que seria Olivier de Jalin em Le demi-monde” (Dumas
Fils, 1898, p. 6). Segundo Dumas Filho, foi o conde quem o advertiu a abrir os olhos ao entrar
naquela sociedade: “você vai ver um mundo bizarro” (Dumas Fils, 1898, p. 7). Tal como
Olivier vai advertir o ingênuo Raymond de Nanjac na peça...
Neste trecho, Dumas Filho reforça mais uma vez a metodologia de seu realismo, que
busca na sociedade de seu tempo a matéria-prima para sua obra; além disso, lança mão de
personagens conhecedoras do tema central da peça, neste caso do demi-monde, para que
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atuem como guias autorizados a convencer o leitor ou o espectador de sua tese. É esta a
função-padrão do raisonneur1 em suas comédias-tese.

O autor apresentará ainda as pessoas que encontrará no salão: três mulheres,


duas jovens moças, um agente de câmbio de sessenta anos e o marquês de
E..., apelidado de fiel-ao-rei devido às suas opiniões legitimistas.

A mais velha das senhoras, que ele chamou de baronesa V..., tinha cerca de cinqüenta
anos e era mãe das duas jovens. Viúva, ela contava com a ajuda dos antigos amigos e
depositava suas esperanças no casamento das filhas para desfrutar de uma velhice tranqüila.
Uma das filhas, porém, já tinha dado à luz um menino, que era criado às escondidas “como se
fosse o Homem da máscara de ferro” (Dumas Fils, 1898, p. 8). Ninguém à volta da jovem
mãe parecia suspeitar deste detalhe, que, na verdade, era conhecido por todos. Esta mulher, a
baronesa V..., é representada na peça pela viscondessa de Vernières. As filhas da baronesa
V... são substituídas na peça pela simpática sobrinha Marcelle, que mantém intacta sua honra
e é salva do demi-monde por Olivier, que ao final está disposto a desposá-la. Observa-se aqui
um contraponto à verdade nua e crua, que é atenuada para dar um ar de final feliz à trama,
típico da comédia.
Por outro lado, se Marcelle aparece como a “mocinha”, Valentine de Santis herda as
mesmas características da senhora S..., a terceira e última mulher descrita por Dumas Filho no
prefácio. Assim como a senhora S..., Valentine se separa do marido por causa de uma traição
e volta a utilizar o nome de solteira; mas a senhora S... tem ainda um agravante que não
aparece na peça: um filho, que cresce acreditando que sua mãe está morta, enquanto ela
recebe uma pensão para não revelar a verdade. Enfim, o autor dirá: “tudo que acabei de contar
sendo absolutamente verdadeiro, o leitor reconhecerá que apesar de nossa ousadia, ficaremos
sempre abaixo daquilo que a realidade nos oferece” (Dumas Fils, 1898, p. 9).
René Doumic, em Portraits d'écrivains (Retratos de escritores) (1892), ilustra de forma
adequada o tipo de descrição da realidade que Dumas utiliza e que destacamos aqui. Segundo
Doumic, embora todas as resoluções de Dumas Filho sigam uma lógica, elas apresentam-se
em contradição com o desfecho provável que a situação teria na vida real, ou seja, existe um
desacordo entre a lógica do teatro de Dumas Filho e a lógica da vida. Não há intenção de
mostrar como as coisas se passam ordinariamente, mas como deveriam acontecer (Doumic,

1
Raisonneur é a personagem, geralmente de comédia, da qual o autor se serve para exprimir a ideia que quer pôr
em cena.
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1892, p. 48). Tais observações apresentam uma característica interessante e única no realismo
de Dumas Filho, que está perfeitamente de acordo, mais uma vez, com seus objetivos
moralistas. Trata-se da apresentação de experiências destinadas a fazer com que os exemplos
mostrem o triunfo do bem e do ideal.
Assim, Doumic conclui, de forma coerente, que Dumas Filho não é propriamente o que
se chama comumente de realista, pois, enquanto o realista atém-se à reprodução do que a vida
apresenta de ordinário e comum, Dumas Filho estudou os casos de exceção; enquanto o
realista tem por constante preocupação não intervir no jogo natural dos acontecimentos,
Dumas Filho arranja os fatos. Como bem observa o autor:

O realista fica chocado ao ver que na maior parte do tempo nossas intenções
ficam sem efeito, nossos projetos não alcançam sucesso, nossas investidas
não terminam, que tudo fica incompleto, inacabado, que tudo aborta. Dumas
nos apresenta ações completas; ela vai até o topo de suas ideias, e leva a
paixão até suas últimas consequências. (Doumic, 1892, p. 49-50).

Esta citação é a definição mesma da arte de Dumas Filho, que, segundo Doumic, parte
do realismo, mas para ultrapassá-lo, e tem como base o real, mas como fim um ideal
(Doumic, 1892, p. 50).
As habilidades investigativas de Alexandre Dumas Filho também não passaram
despercebidas por seus críticos. Na crítica da peça O Filho Natural (Le fils naturel, 1858)
Montégut (1858) comenta que a maior qualidade de Dumas Filho é saber observar e ouvir o
mundo parisiense; ver, ouvir e escrever: isto é, para ele, ser um realista. E, de acordo com sua
opinião, o realismo é detestável no teatro, que vive de ação e paixão, uma vez que, na
ausência de um narrador, como no romance, a personagem precisa transmitir seus sentimentos
com uma simplicidade que a complexa realidade não pode fornecer. Porém, admite que certos
sentimentos e condições da vida são mais aplicáveis ao realismo do que outras – para ele, o
mal e a vulgaridade são condições humanas normais e, por isso, devem ser transcritas
exatamente como são, pois serão compreendidas.
O crítico considera que a peça Le demi-monde foi um sucesso porque teve o objetivo de
mostrar os costumes deste mundo artificial que vive de mentiras e falsas aparências, e o
atingiu graças a mais uma qualidade de Dumas Filho ressaltada pelo crítico: “ele sabe
discernir o que é digno de atenção e o que é digno de desprezo” (Montégut, 1858, p. 710).
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Montégut vai sublinhar ainda outra característica marcante de Dumas Filho, ao acunhá-
lo de “jacobino dramaturgo”: “É um jacobino dramaturgo que não hesita diante de meio
algum para atingir seu objetivo, e que pensa que o fim justifica todos os meios” (Montégut,
1858, p. 702).
Utilizando a nomenclatura dos grupos proeminentes de Revolução Francesa, emprega-
se o termo girondinos para aqueles grupos que, embora proponham mudanças, aplicam as
teorias políticas de forma mais tímida, e apesar de serem tidos como de direita, aceitam fazer
concessões e conjunções de interesses, posicionando-se mais ao centro e adquirindo mais
funções reformistas do que revolucionárias. Possuem um estilo sóbrio, falam lentamente, sem
paixão.
Os jacobinos, por sua vez, são os verdadeiros revolucionários no sentido puro da
palavra: são aqueles tidos como radicais, aqueles que buscam o reverso da ordem estabelecida
– são os “demolidores”.
Se considerarmos a utilização que Alexandre Dumas Filho faz de seu teatro como uma
tribuna, em que defende os valores morais de uma burguesia não reformista, há aí um
hibridismo entre a forma radical de propaganda política, típica de um jacobino, e a defesa de
valores e instituições tais como família e fidelidade. Da mesma forma, o prefácio também
apresenta um componente híbrido de um vocabulário que denota uma luta em busca de um
lugar de destaque no campo literário, enquanto a escolha pela dramaturgia já consagra tal
lugar, visto ser o teatro um gênero literário de grande prestígio.
O realismo, como precursor do naturalismo, movimento este associado a um
cientificismo positivista que busca “relatar” a “realidade” tal como ela é, aplicando à literatura
métodos das ciências matemáticas e naturais, tenderia à busca da verdade acima de tudo, o
que traria embutida uma impessoalidade, um afastamento do escritor-cientista de seu mundo-
objeto de estudo. Nas peças de Dumas Filho, ao contrário, observa-se a presença constante do
autor em suas personagens e em seus textos.
No romance A dama das Camélias (1848), seu trabalho mais famoso que foi por ele
mesmo adaptado ao teatro, inspirou-se em suas próprias relações com a cortesã Marie
Duplessis. Dumas Filho participou ativamente em uma recepção no demi-monde, nos mesmos
moldes daquelas que apresentará na peça homônima. Finalmente, no prefácio à peça O Filho
Natural (Le fils naturel, 1858) Alexandre Dumas Filho confessa que se trata de sua peça
preferida, visto tratar-se do desenvolvimento de uma tese social e de uma “pintura dos
costumes, dos caracteres, dos ridículos e das paixões”, de forma a fazer o espectador refletir, e
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para tanto escolheu a questão que considera “mais interessante e mais dramática” neste
sentido, que é a questão dos filhos naturais. “É uma idéia fixa”, escreve ele (Dumas Fils,
1899, p. 5). Ao eleger a peça O Filho Natural como favorita, por seu tema e pela forma como
foi escrita, Dumas Filho mais uma vez se faz presente em seu trabalho, tendo sua situação
familiar particular de filho ilegítimo representada em cena.
A arte de Courbet apresenta-se em um momento decisivo durante o período da
Revolução de 1848. Naquele momento, ele produz uma série de telas tidas como realistas, tais
como Après-dîner à Ornans (1848-49), Les Casseurs de pierre (1849) e Un enterrement à
Ornans (1849-50), que vão consagrá-lo não só como um grande pintor mas também como um
revolucionário da vida cultural parisiense. Sua figura era incômoda, tanto pelo desprezo que
tinha pelas autoridades oficiais e por sua simpatia pela vida republicana como,
principalmente, pelo escândalo que provocava seu realismo, o qual afrontava os cânones
dominantes e os dogmas clássicos segundo os quais a arte digna deste nome implicaria mais
do que a exata reprodução das aparências naturais (Fried, 1993, p. 14).
Fried chama a atenção para a distinção que faz Diderot entre teatro, que seria uma
construção artificial, e o drama, que supõe uma descontinuidade entre representação e
público, um isolamento entre o mundo da representação e o mundo do espectador (Fried,
1993, p. 22). Diderot leva esta concepção dramática para a pintura: ela deve “esquecer” o
espectador. A arte de Courbet, segundo Fried, apresenta características desta tradição
antiteatral da pintura francesa, como ao representar figuras vistas de costas - sugerindo que
não tem consciência ou não se importa com a presença do espectador (Fried, 1993, p. 246).
Pode-se trazer esta visão antiteatral de recusa de artificialidade, esta descontinuidade
entre representação e público, para a leitura peça Le demi-monde. Uma das características do
drama sério sistematizado por Diderot e retomado por Alexandre Dumas Filho é a presença de
pantomima, ou seja, do movimento dos corpos, que, aliada ao cenário e ao figurino da peça,
colocam o espectador em uma posição de voyeur, que observa a intimidade doméstica dos
personagens. Ora, trata-se de uma estratégia do teatro de Dumas Filho de tornar seu teatro
realista no que se refere à representação, em que as cenas se passariam independentemente da
presença do espectador.
A presença recorrente de imagens de si nas pinturas de Courbet, seja explicitamente,
seja metaforicamente, leva frequentemente à caracterização de sua arte como narcisista, tese
refutada por Fried por centrar-se excessivamente no ato da visão em detrimento do ato da
pintura (Fried, 1993, p. 286), simplificando grosseiramente a dinâmica de sua obra. A
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representação de si implica mais do que um simples reflexo: mais do que admirar


passivamente seu reflexo, está em jogo o ato de pintar, a primazia da ação sobre o olhar
passivo. A representação de si em Courbet é essencialmente uma função do engajamento do
pintor-espectador no ato de pintar, fator que chama atenção para a continuidade entre a arte de
Courbet e a tradição dramática de Diderot, na qual a representação da ação humana tem papel
fundamental. Da mesma forma, em Alexandre Dumas Filho temos a representação de si na
obra, com a projeção de suas experiências nas personagens, mas com objetivos distintos. Em
Courbet, há um esforço de fusão quase física do pintor-espectador na pintura, enquanto em
Dumas Filho o engajamento está ligado à sua busca pela utilidade da arte.
De fato, a função do teatro era, para Dumas Filho, a de servir como uma arte útil, que
pudesse ensinar, trazer alguma mensagem ao público. Assim sendo, seguindo as teorias
apresentadas por Touchard (1960, p. 224), para quem o realismo se mostraria mais como um
procedimento ou uma maneira do teatro de atingir sua função do que como uma forma
artística ou uma natureza do teatro, o realismo de Dumas Filho apresenta-se mais como uma
função do teatro do que como uma natureza, um pertencimento a um movimento estético.

CONCLUSÃO

Conclui-se que a questão do realismo, especialmente do realismo no teatro, é uma


questão complexa, que pode ser vista sob os mais diferentes ângulos: o realismo pode ser
visto como um movimento estético, mas também como a representação fiel da natureza e
ainda como a finalidade de um certo tipo de teatro. A classificação de uma peça de teatro
como realista depende, ao considerar todos estes elementos, mais de uma análise subjetiva e
ideológica do que um simples rótulo pode prever.

Sendo assim, no que se refere ao realismo de Dumas Filho, observou-se um grande


distanciamento entre seu posicionamento estético frente à realidade e o realismo de
Champfleury e Courbet. Porém, tal como pregava Champfleury, o termo realismo é uma
palavra ambígua que se presta a todo tipo de uso, e, conforme vimos, não designa apenas o
movimento estético, mas também atende a outros critérios. Cada escritor fará uso da
representação da realidade em sua obra, de acordo com seus objetivos e interesses, de acordo
com sua posição no campo literário. Para Alexandre Dumas Filho, o realismo servirá como
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uma estratégia de legitimação da enunciação: ao mostrar o que é “real”, assume o papel de


guia para seus leitores/espectadores, papel a que atribui importância porque lhe dá
credibilidade para difundir sua concepção de arte útil.

REFERÊNCIAS

BOURDIEU, Pierre. Les règles de l’art: genèse et structure du champ littéraire. Paris: Seuil, 1992.

CHAMPFLEURY. Le Réalisme. Paris: Michel Lévy Frères, 1857. Disponível em:


http://gallica.bnf.fr/. Acesso em: 16 out. 2009.

DOUMIC, René. Portraits d'écrivains : Alexandre Dumas fils, Émile Augier, Victorien Sardou,
Octave Feuillet, Edmond et Jules de Goncourt, Émile Zola,Alphonse Daudet, J.-J. Weiss. Paris: Crété,
1892. Disponível em: http://gallica.bnf.fr/. Acesso em: 16 out. 2009.

DUMAS FILS, Alexandre. Théâtre complet avec préfaces inédites. T. II. Paris: Calmann Lévy, 1898.
Disponível em: <http://gallica.bnf.fr>. Acesso em: 12 jan. 2008.

FRIED, Michael. Le réalisme de Courbet. Trad. Michel Gautier. Paris: Gallimard, 1993.

MONTÉGUT, Émile. Le théâtre réaliste: Le fils naturel, comédie en cinq actes, par Alexandre Dumas
fils. In: Revue des deux mondes. T. 13, jan-fev, 1858, p. 701-716. Disponível em:
<http://gallica.bnf.fr>. Acesso em: 10 jan. 2008.

SANTOS, Silvia Pereira. Le demi-monde (1855) de Alexandre Dumas Filho: cenografia de um drama
burguês. Faculdade de Letras / Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2010. Dissertação de
Mestrado.

TOUCHARD, .P. A. Réalisme, poésie et réalité au théatre. In: JACQUOT, Jean (org). Réalisme et
poésie au théâtre. Paris: Centre National de la Recherche Scientifique, 1960.
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REALISMO E REALIDADE: ALGUMAS


PROPOSIÇÕES DE EÇA DE QUEIRÓS
Giuliano Lellis Ito Santos1

RESUMO: Este trabalho busca entender, através de algumas observações pontuais, a relação entre
realismo e realidade em Eça de Queirós. Essa leitura visa compreender a mudança na forma do
romance na última década do século XIX por parte do escritor, além de expor os problemas vinculados
ao intento de produzir uma literatura calcada na observação do mundo como perspectiva de
representação da realidade.

Palavras-chave: Eça de Queirós, Realismo, Realidade.

REALISM AND REALITY: SOME PROPOSITIONS ABOUT EÇA DE QUEIRÓS

ABSTRACT: This paper tries to understand, through some punctual observations, the relationship
between realism and reality in Eça de Queirós. This lecture want comprehend the change in the novel
form on the last decade of XIXth century, and explain the problems linked with the intent to produce a
literature based on the world’s observation like perspective of representation of reality.

Keyword: Eça de Queirós, Realism, Reality.

A proposta deste artigo é alinhar algumas observações de Eça de Queirós sobre o


realismo para entender a mudança de ordem na forma de seus romances. Além do romancista,
também consideraremos alguns comentários de Antero de Quental, já que ambos buscam
entender o pensamento por meio da apreensão do mundo.
De início, podemos começar pela apresentação do jovem Eça de Queirós, que, em
1871, mais especificamente em 12 de junho, expõe suas ideias sobre o realismo em um
discurso incluído no ciclo das Conferências do Casino Lisbonense. Estas falas não foram
conservadas na íntegra, o que nos abriga a resgatar suas observações através de artigos e
comentários publicados nos jornais no calor da hora, para que, assim, se possa entender a
opinião do escritor sobre o realismo nessa época.
Na recepção à conferência do romancista, percebemos a insistência na questão da
observação como melhor forma de apreensão da realidade, assim o lemos no artigo de Alberto
de Queirós, irmão do escritor: “observar os costumes no que eles têm de mais exacto, de mais
real” (apud Berrini, 2000, p. 24). Neste caso, podemos perceber a afirmação de que a
recriação artística da realidade depende da observação quase clínica das ações sociais.

1
Doutor em Literatura Portuguesa pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de
São Paulo, com a tese sobre A Ideia de História no Último Eça. E-mail: giuito@hotmail.br
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Também, em outro artigo, este sem assinatura, sobre a conferência de Eça de Queirós
apresenta-se a afirmação de que “[a literatura] começa a reagir contra o falso, pintando a
realidade. O realismo é a arte do presente” (apud Berrini, 2000, p. 36). Neste ponto, temos o
argumento de que o realismo é uma reação contra a falsificação, já que esta noção de
literatura seria a arte da verdade, ou seja, a arte que reproduz a realidade em sua melhor
forma.
Com estas duas apreciações da apresentação de Eça de Queirós sobre a literatura
realista nas Conferências do Casino, podemos depreender que a nova literatura depende da
observação atenciosa da realidade para que sua transposição para a linguagem artística não
soe falsa. Desse ponto de vista, podemos destacar duas etapas:

1. a primeira diz respeito à matéria da arte, pois esta depende do presente e da


experiência empírica;
2. a segunda diz respeito à linguagem, pois depende da transposição mais exata
da realidade observada.

Nestas etapas notamos que a transposição da observação para a linguagem se dá sem


problemas, a linguagem não é um empecilho, já que a realidade tratada de outra maneira exige
uma escrita mais objetiva, principalmente se a contrapusermos à escrita “inchada” do
romantismo.1
Passados alguns anos, depois da publicação de dois romances, O Crime do Padre
Amaro e O primo Basílio, e por ocasião da republicação do primeiro, Eça de Queirós escreve
um prefácio – que não é publicado com o romance, mas aparece posteriormente a sua morte,
datado de 1879 – em que o realismo é defendido contra críticas emitidas sobre esses dois
romances, além da acusação de plágio da obra de Émile Zola, La faute de l’Abbé Mouret.
Mantenhamos nossa atenção sobre as condições do realismo e deixemos de lado as discussões
sobre plágio. Vale destacar deste texto o apontamento de que “é, porém, diferente, penso eu,
tratando-se dum romance de observação e de realidade, fundado em experiências, trabalhado
sobre documentos vivos” (Queiroz, 1979, p. 908). Ainda, deste mesmo teor, ao final do artigo,
o escritor português chama a atenção para o fato de que

1
Como aponta dos artigos coligidos por Beatriz Berrini: “é a abolição da retórica considerada como arte de
promover a comoção pela inchação do período, pela epilepsia da palavra, pela congestão dos tropos” (apud
Berrini, 2000, p. 29).
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o simples fato de ir ver Virgínia quando se pretende descrever Virgínia, é


uma revolução na Arte! É toda a filosofia cartesiana: significa que só a
observação dos fenômenos dá a ciência das coisas. (Queiroz, 1979, p. 916).

Nestes dois trechos citados, vemos a importância da observação como metodologia de


trabalho do escritor realista, ou naturalista, pois há necessidade de se ter a experiência para se
fazer uma descrição. Neste sentido, descrição não se limita ao modo descritivo do texto, pois
este processo reveste-se da observação para tornar-se verdadeiro.
Ainda sobre a reedição de O crime do Padre Amaro, temos uma carta de Antero de
Quental, principal responsável pela publicação da primeira versão na Revista Ocidental, que
rendeu rusgas e desavenças entre Eça de Queirós e o poeta. Nesta carta, o missivista, depois
de ler a segunda edição do romance, aponta que

agora está V. [Eça] na região serena da contemplação pura das coisas,


cheio de longanimidade, imparcial vendo só os homens e os corações
dos homens, pelo interesse que neles há, pela verdade natural, e não
como argumentos para teses. Isto, quanto a mim, é o que é verdadeiro
realismo. (apud Berrini, 1992, p. 208).

Nesta carta, ao menos no trecho destacado, notamos que é mantida a importância que a
observação tem para a produção do romance, já que, do ponto de vista do leitor, neste caso
Antero de Quental, o romance deixa transparecer a realidade natural das coisas.
Se levarmos em conta a relação entre observação, ponto crucial neste primeiro
momento do realismo, e transposição artística do real, temos que a primeira é responsável
pela representação da verdade, e, se a verdade das coisas está ligada ao mundo, obtemos que
verdade é realidade, portanto o realismo representa através da observação o mundo em si.
Num segundo momento, em prefácios a livros de amigos, Eça de Queirós faz alguns
apontamentos sobre o realismo/naturalismo, como no prefácio ao Brasileiro Soares de Luiz
de Magalhães, em que Eça de Queirós aponta para a qualidade do escritor e destaca que “o
seu livro […] tem a realidade bem observada e a observação bem exprimida – as duas
qualidades supremas, as que se devem procurar antes de tudo na obra de Arte” (Queiroz,
2000, p. 1808). Neste caso, ele aponta as categorias seguidas pelo escritor e a atualidade de
seu livro, fato que nos deixa entrever dois pontos para o julgamento, a observação e a
transposição desta para o escrito.
Em outro prefácio, nesta caso aos Azulejos do Conde Arnoso, o romancista afirma
“que o Naturalismo consiste apenas em pintar a tua rua como ela é na sua realidade e não
carandá
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Corumbá, MS, novembro 2011, n. 4, p. 168

como tu a poderias idear na tua imaginação” (Queiroz, 2000, p. 1795, destaque do autor).
Neste ponto apresenta-se a relação que a realidade guarda com o eu, já que a pintura da obra
de arte depende da sua realidade. Aqui, já se pode perceber que a representação através da
observação não dá conta de toda a realidade envolvida, além de destacar que o processo de
criação da arte realista desprezava o “ruído” que havia entre observador/mundo e matéria
observada/produto textual.
Ambos os prefácios são datados de 1886, com uma pequena diferença de tempo
(Brasileiro Soares de 21 de maio e Azulejos de 12 de junho), mas apresentam um contraste
quanto à noção de realismo, já que no primeiro texto temos a confirmação de preceitos
apresentados anteriormente, enquanto no segundo somos sutilmente expostos ao problema de
que a observação situa-se no particular, condição que não permite dar conta da realidade
inteira que o romance tenta representar.
Passando adiante, notamos que em A Correspondência de Fradique Mendes fica
perceptível uma mudança na representação de Eça de Queirós. Isso é destacado por Carlos
Reis quando aponta que este romance “representa […] uma superação de estratégias literárias
e métodos críticos ditados pelo Realismo e pelo Naturalismo” (Reis, 2001, p. 199). É
justamente neste romance que encontramos uma carta, deste personagem para Antero de
Quental, problematizando a observação. Esta passagem chamou a atenção de A. Campos
Matos que a intitulou de alegoria do nevoeiro, afirmando que neste ponto Fradique Mendes
“pretende demonstrar as limitações da nossa capacidade de ajuizar e discernir a realidade que
vemos” (Matos, 1993, p. 425).
Antes de vermos os argumentos de Fradique Mendes, precisamos entender os
pressupostos de uma carta endereçada a Antero de Quental, afinal este breve excerto de carta
citada na primeira parte do romance faz menção ao pensamento do poeta. Dessa maneira,
como um primeiro exemplo destacamos a abertura do perfil feito por Eça de Queirós para o In
Memoriam do amigo:

Em Coimbra, uma noite, noite macia de abril ou maio, atravessando


lentamente com as minhas sebentas na algibeira o Largo da Feira,
avistei sobre as escadarias da Sé Nova, romanticamente batidas pela
lua, que nesses tempos ainda era romântica, um homem, de pé, que
improvisava. (Queiroz, 2000, p. 1761).
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Este homem era Antero. As referências ao Romantismo, com sua noite e sua lua,
demonstram mais do que o homem, expõe a impressão que o jovem Eça teve do poeta e mais
tarde amigo.
Passando a outros pontos deste perfil, ressaltamos um comentário do escritor sobre a
inteligência de Antero de Quental,

a sua inteligência, como ele depois contava, toda penetrada do


Naturalismo, que era a atmosfera onde se desenvolvera, só lhe
oferecia a solução naturalista – só lhe podia afirmar que a Vida, na sua
forma empírica, é a luta obscura de forças obscuras. (Queiroz, 2000, p.
1775).

Neste ponto, o pensamento de Antero é representado pelo empirismo, pela apreensão


do real através de sua observação. Porém, em artigo publicado na mesma revista que o
Fradique Mendes de Eça de Queirós, A Revista de Portugal, Antero pretende entender as
Tendências da Filosofia na segunda metade do século XIX. Neste ensaio, ele problematiza a
realidade, como se pode perceber nas linhas retiradas deste ensaio:

sendo realista tem de aceitar esses elementos taes como se lhe


apresentam, sem indagar se n’essa idéa immediata que d’elles fórma
não haverá porventura alguma grande illusão, se ella não envolve
algum fundo problema ontologico, que lhe escapa. (Quental, 1890, p.
186).

Deste ponto de vista, encontramos o contraste entre a particularidade da apreensão do


real pelo homem e a verdade que excede a condição humana. Quer dizer, a observação
somente permite ao homem enxergar o que esta dentro das condições físicas, já que a
totalidade inapreensível permanece extrínseca ao ente.
Afora esta problemática da apreensão da realidade pelo homem, também outro
empecilho surge, pois ainda afirma que “o segredo sublime das coisas gaguejado n’uma
linguagem deficiente e barbara, cheia de lacunas e obscuridades” (Quental, 1890, p. 5). Aqui
temos a linguagem qualificada como ineficiente, incapaz de traduzir a realidade das coisas,
por isso quando se faz a transposição da realidade observada para linguagem, torna-se
inevitável o surgimento de lacunas e obscuridades.
A partir destas observações podemos notar duas questões sobre a apreensão da
realidade. Numa primeira etapa, a observação, que era encarada como ponto fulcral do
romance realista/naturalista, é questionada através da limitação da visão do homem, pois esta
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Revista do Curso de Letras do Câmpus do Pantanal – UFMS,
Corumbá, MS, novembro 2011, n. 4, p. 170

se encontra impossibilitada de apreender a totalidade das coisas, já que a totalidade só


possível se idealizada. Numa segunda etapa, a linguagem é apresentada como empecilho, pois
ela não possui a propriedade inerente de se refazer a realidade, já que a transposição para a
escrita caracteriza-se pela tradução, o que não permite a recriação efetiva do observado.
Essas mesmas questões surgem na criação de Eça de Queirós, quando digo criação,
penso na constituição de um personagem que não possui materialidade, mas possui uma
existência discursiva indiscutível, Fradique Mendes, personagem quase heteronímico.
A princípio vale ressaltar um trecho de carta, destacada pelo narrador enquanto
recompunha a vida do poeta das Lapidárias, esta carta é endereçada a Antero de Quental, nela
o missivista observa que

Todo o fenômeno, pois, tem, relativamente ao nosso entendimento e a


sua potência de discriminar, uma Realidade — quero dizer certos
caracteres ou […] certos contornos que o limitam, o definem, lhe dão
feição própria no esparso e universal conjunto, e constituem o seu
exato, real e único modo de ser. Somente o erro, a ignorância, os
preconceitos, a tradição, a rotina e sobretudo a Ilusão, formam em
torno de cada fenômeno uma névoa que esbate e deforma os seus
contornos, e impede que a visão intelectual o divise no seu exato, real
e único modo de ser. (Queiroz, 1997, p. 92).
Aqui temos que a condição humana com suas características inerentes figura como um
“ruído”, uma névoa, que não permite perscrutar a realidade em sua forma mais exata. Quanto
a isso, o missivista continua e constrói uma imagem que ilustra este processo, retornamos
então à alegoria do nevoeiro,

É justamente o que sucede aos monumentos de Londres mergulhados


no nevoeiro... Tudo isto vai expresso dum modo bem hesitante e
incompleto! Lá fora o sol está caindo dum céu fino e nítido sobre o
meu quintal de convento coberto de neve dura: neste ar tão puro e
claro, em que as coisas tomam um relevo rígido, perdi toda a
flexibilidade e fluidez da tecnologia filosófica: só me poderia exprimir
por imagens recortadas a tesoura. Mas você decerto compreenderá,
Antero excelente e sutil! Já esteve em Londres, no outono, em
novembro? Nas manhãs de nevoeiro, numa rua de Londres, há
dificuldade em distinguir se a sombra densa que ao longe se empasta é
a estátua dum herói ou o fragmento dum tapume. Uma pardacenta
ilusão submerge toda a cidade — e com espanto se encontra numa
taverna quem julgara penetrar num templo. Ora para a maioria dos
espíritos uma névoa igual flutua sobre as realidades da vida e do
mundo. Daí vem que quase todos os seus passos são transvios, quase
todos os seus juízos são enganos; e estes constantemente estão
trocando o Templo e a Taverna. Raras são as visões intelectuais
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Corumbá, MS, novembro 2011, n. 4, p. 171

bastante agudas e poderosas para romper através da neblina e


surpreender as linhas exatas, o verdadeiro contorno da Realidade.
(Queiroz, 1997, p. 92).

A condição colocada por Fradique dificulta a visão, levando ao engano, pois segundo
ele há um paralelo entre o homem imerso no nevoeiro e o homem imerso no mundo moderno,
já que ambos têm sua visão obstruída, o que dificulta, se não impossibilita, observar a
realidade. Se lembrarmos da atitude do jovem Eça que defendia a observação como meio para
criar o romance realista, temos, neste ponto, uma problematização desse método, já que, neste
caso, a realidade observada aparece incompleta, enganosa, pois a visão encontra-se obstruída.
Fradique Mendes coloca outra questão sobre o realismo, a linguagem, pois quando
afirma que “o verbo humano, tal como o falamos, é ainda impotente para encarnar a menor
impressão intelectual ou reproduzir a simples forma dum arbusto... Eu não sei escrever!
Ninguém sabe escrever!” (Queiroz, 1997, p. 112). Ele está pensando na relação que o signo
guarda com o mundo em si, o que nos faz lembrar a definição de Saussure de que

o laço que une o significante ao significado é arbitrário ou então, visto


que entendemos por signo o total resultante da associação de um
significante com um significado, podemos dizer mais simplesmente: o
signo linguístico é arbitrário. (SAUSSURE, 2000, p. 81).

Fazendo um paralelo com a citação de Antero de Quental sobre a linguagem, podemos


notar a intuição desses dois artistas em perceber que o mundo das coisas não pode ser
traduzido completamente pela linguagem, pois ela guarda em sua estrutura uma relação
arbitrária.
O caminho percorrido por minha argumentação foi o de buscar, nos primeiros anos do
realismo em Portugal, algumas ideias expressas por Eça de Queirós para que pudéssemos
entender as convenções defendidas naquele momento. Pelo que vimos, havia uma
contraposição entre o que era produzido até então como literatura e o projeto da Geração de
70, o cerne desta contraposição estava na observação do cotidiano como meio para obtenção
de matéria para arte. Ainda se contrapunham quanto a forma de escrita, a retórica, pois
quando se pensava em linguagem a proposta era de substituir a retórica romântica, que os
partidários do realismo caracterizavam como inchada, por uma escrita mais sóbria. Porém,
com o passar dos anos, a posição de Antero e Eça muda, fazendo com que eles enxerguem a
realidade de maneira mais complexa, o que os leva a questionar a relação direta que a
observação mantinha com a realidade, num primeiro momento, isso os leva a substituir esta
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Corumbá, MS, novembro 2011, n. 4, p. 172

visão por uma mais complexa, em que problematizam justamente a apreensão do mundo pelo
homem, pois reconhecem que a realidade do mundo não é apreensível em sua completude.
Esta problematização exige que eles reformulem o modo de representar a realidade: Antero
opta por escrever ensaios filosóficos, enquanto Eça modifica a forma de seus romances.
Os romances de Eça de Queriós passam a ter uma forma calcada na complexidade
narrativa, ao invés de narradores objetivos e impessoais dos primeiros romances, o escritor
produz narradores com posições precárias, como é exemplo a função de Zé Fernandes,
narrador de A Cidade e as Serras, ou do narrador sem nome de A Correspondência de
Fradique Mendes, ou, ainda, a condição que o narrador de A Ilustre Casa de Ramires ocupa
no último capítulo, em que o protagonista, que seguiu durante toda a narrativa, se ausenta e
faz com que o narrador tenha que seguir núcleos de personagens secundários.
Desses três romances, a estrutura que mais chama a atenção é a de A Correspondência
de Fradique Mendes, pois neste romance, além de apresentar uma estrutura na forma de uma
dissertação científica, uma introdução situacional, biográfica, e uma seleção de documentos.
Além disso, o romance tem em sua contrução um personagem que possui um estatuto de
realidade, algo semelhante com os heterônimos de Fernando Pessoa. Esta condição do
personagem permite pensarmos na relação que o mundo guarda com a linguagem, pois se o
signo é arbitrário, este permite a criação de entes sem posição material no mundo, já que a
relação que o significado mantém com o significante não possui parâmetro exato.
Se pensarmos na separação entre a observação, ainda que ela seja relativizada, e a
linguagem que vai representá-la, temos um realismo ingênuo pautado somente no observável,
que não leva em conta a condição primeira de que não é possível a compreensão do mundo
sem que seja pela linguagem. Porém, ainda assim, se mantém a questão de como conciliar a
suposição de um mundo idêntico para todos os observadores se não é possível acessá-lo se
não mediado pela linguagem.
Desse ponto de vista, a observação do mundo não permite a apreensão total da
realidade, pois, se tivermos em mente a ideia de que mundo e linguagem são dois elementos
separados, se o mundo existe independente da linguagem, quer dizer que qualquer exposição
sobre o mundo será incompleta, por causa da descontinuidade intrínseca da relação.
Porém, se tivermos que o mundo já se encontra linguisticamente estruturado, teríamos
que a apreensão do mundo através da observação não atingiria a totalidade, mas seria a única
apreensão possível dele (Cf. Habermas, 2004, p. 8).
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Ao que parece, as leituras de Eça de Queirós e Antero de Quental, na década de 1890,


aproximam-se do que Habermas chama de questão epistemológica do realismo, ou seja, existe
um mundo independente de nossas descrições, mesmo que nosso acesso somente seja possível
através da linguagem. Por isso, quando Antero escreve seu artigo para a Revista de Portugal
sobre as tendências da filosofia na segunda metade do século XIX, ele está preocupado em
entender a filosofia, definida por ele como “a equação do pensamento e da realidade, n’uma
dada phase de desenvolvimento d’aquelle e num dado periodo de conhecimento d’esta”
(Quental, 1890, p. 7). Com isso, se percebe a relação entre o pensar e o mundo na filosofia de
Antero de Quental, pois somente através da possibilidade de entender a relação entre
pensamento e realidade é possível pensar na história da filosofia.
De outra forma, Eça de Queirós chega à relação entre realidade e pensamento, pois
quando escreve a Clara,

e já estou tentando recontinuar ansiosamente, por meio deste papel


inerte, esse inefável estar contigo que é hoje todo o fim da minha
vida, a minha suprema e única vida. (Queirós, 1997, p. 161)

em que se percebe a descontinuidade entre a experiência e a produção textual sobre a


experiência.
Neste sentido, temos que o realismo de Eça de Queirós – penso essencialmente no
romancista, porque as obras de Antero de Quental não refletem sobre a forma do romance
realista – na última década do século XIX é repensado no sentido de que linguagem passa a
ocupar o lugar central da reflexão sobre a realidade, ao invés de defender a causa de escola,
ou o realismo.

REFERÊNCIAS

BERRINI, Beatriz. “Antero de Quental e Eça de Queirós: correspondência inédita”. In:


Colóquio/Letras. Lisboa, nº123/124, janeiro-julho, pp. 201-211, 1992.

HABERMAS, Jürgen. “Introdução: realismo após a virada da pragmática lingüística”. In:


__________. Verdade e justificação: ensaios filosóficos. São Paulo: Edições Loyola, 2004, pp. 7-60.

MATOS, A. Campos. “Filosofia e personagens”. In: __________(org.). Dicionário de Eça de


Queiroz, 2ª Ed. Lisboa: Caminho, 1993.

QUEIROZ, Eça de. “A correspondência de Fradique Mendes”. In: __________. Obra Completa, vol
II. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1997, pp. 53-216.
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Revista do Curso de Letras do Câmpus do Pantanal – UFMS,
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Completa, vol III. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2000, pp. 1804-1809.

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QUEIROZ, Eça de. “Um gênio que era um santo”. In: __________. Obra Completa, vol III. Rio de
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QUEIROZ, Eça de. Idealismo e realismo. In: __________. Obras completas, vol. III. Porto: Lellos &
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QUENTAL, Antero de. Tendencias geraes da philosophia na segunda metade do século XIX. Revista
de Portugal. Porto, Editores Lugan & Genelioux, 1890, vol. II, pp. 5-20; pp. 149-171; pp. 281-306.

REIS, Carlos. Eça de Queirós do Romantismo à superação do Naturalismo. In. __________(dir.).


História da Literatura Portuguesa, vol. 5. Lisboa: Publicações Alfa, 2001.

SAUSSURE, Ferdinand de. Curso de Lingüística Geral. São Paulo: Editora Cultrix, 2000.
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Corumbá, MS, novembro 2011, n. 4, p. 175

LIMA BARRETO: CRÍTICO DA VACUIDADE DA ELITE


INTELECTUAL EUROPEIA E DO DESPREPARO
DAS ELITES BRASILEIRAS

Ione Eler E Herler 1


Rosemary Sousa Cáfaro 2
Rauer Ribeiro Rodrigues 3

RESUMO: Propomo-nos analisar a obra Triste fim de Policarpo Quaresma de Lima


Barreto, publicado em 1915. Num primeiro momento, abordamos a visão política de Lima
Barreto. Em seguida, enfatizamos como essa visão o influenciou a criar uma personagem
grotesca e caricatural como representação do Brasil. Percebe-se que Lima Barreto ridiculariza
o Brasil e o sistema de governo de sua época, através da personagem de Policarpo Quaresma.
Finalmente mostramos como Lima Barreto alterna humor e tragédia para construir a
caricatura do nacionalismo. Parece-nos que, em Triste fim de Policarpo Quaresma, há um
nacionalismo-absurdo. Na tentativa de prová-lo, fazemos as seguintes perguntas: Que classe
social Lima Barreto critica? Seria ele antinacionalista ou apenas não tolerava os falsos
nacionalistas? Para tal fim nos valemos do conceito de caricatura de Mikhail Bakhtin, em A
Cultura popular na Idade Média e no Renascimento. O contexto de François Rabelais
(1993); do conceito de tragédia de Aristóteles, em Arte Poética (2000) e também de A
história concisa da literatura brasileira de Alfredo Bosi (2006).

PALAVRAS-CHAVE: Caricatura; Drama; Ironia.

INTRODUÇÃO

Propomo-nos analisar a obra Triste fim de Policarpo Quaresma, de Lima Barreto,


publicada em 1915. Lima Barreto nasceu no Rio de Janeiro em 1881 e morreu na mesma
cidade em 1922. O ano de sua morte é considerado o início do movimento modernista, com a
Semana paulistana; no entanto, Lima Barreto, como afirma Rangel (1984, p. 96), foi o
precursor desse movimento devido sua linguagem despojada e popular num momento de
preciosismo linguístico. O que hoje é natural, na época foi inovação.

1
Formada em Letras no CPAN / UFMS; eherler@ibest.com.br.
2
Formada em Letras no CPAN / UFMS; mary_corumba@hotmail.com.
3
Doutor em Estudos Literários pela UNESP de Araraquara; professor no CPAN; coordenador do Grupo de
Pesquisa Luiz Vilela – gpluizvilela.blogspot.com; rauer.rauer@uol.com.br.
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Corumbá, MS, novembro 2011, n. 4, p. 176

Neste trabalho, em um primeiro momento, abordamos a visão política de Lima


Barreto. Em seguida, enfatizamos como essa visão o influenciou a criar uma personagem
grotesca e caricatural como representação do Brasil. Percebe-se que Lima Barreto ridiculariza
o Brasil e o sistema de governo de sua época, através da personagem de Policarpo Quaresma.
Finalmente mostramos como Lima Barreto alterna comicidade e tragédia para construir a
caricatura do nacionalismo.
Entendemos que, em Triste fim de Policarpo Quaresma, há um nacionalismo-
absurdo. Na tentativa de prová-lo, fazemos as seguintes perguntas:

1. Que classe social Lima Barreto critica?


2. Seria ele antinacionalista ou apenas não tolerava o falso nacionalismo?
Para respondermos a esses questionamentos e comprovarmos nossa proposição, nos
valemos do conceito de grotesco e caricatura de Mikhail Bakhtin (1993),, em A Cultura
popular na Idade Média e no Renascimento: O contexto de François Rabelais, do conceito
de tragédia, de Aristóteles (2000), em Arte Poética, e também de A história concisa da
literatura brasileira, de Alfredo Bosi (2006).

ENREDO

Triste fim de Policarpo Quaresma narra a historia de Major Quaresma. Homem de


vida simples, solteiro, que vivia em companhia de uma irmã também solteira. Major
Quaresma era um nacionalista que não admitia nem mesmo discutir com os que não o eram.
Quando tomava a palavra, exaltava as belezas do Brasil e dizia que não havia país mais
maravilhoso e com tantas riquezas naturais como o nosso. Seu nacionalismo era tão ufanista
que ele considerava a terra e tudo quanto produzia aqui como melhores do que em outros
lugares. Major Quaresma chegava ao extremo de rejeitar qualquer produto importado, tanto
alimentos como livros e até a música estrangeira.
Dominado por seu ufanismo, ele elabora um projeto no qual propõe a mudança do
idioma oficial no Brasil para o Tupi Guarani, pois essa língua, segundo ele, era a dos índios.
Quando a proposta foi enviada ao Congresso, causou riso geral e o tiveram por louco; mas
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Corumbá, MS, novembro 2011, n. 4, p. 177

entre os amigos, ele já causava preocupação ao cumprimentá-los chorando, segundo ele um


hábito dos tupinambás.
Quaresma tanto assustou sua irmã e os amigos com suas ideias consideradas malucas,
que acabou internado num hospício. Quando voltou para casa, era uma pessoa desanimada e
triste; então Olga, sua afilhada, sugeriu que se mudasse para um sítio.
A mudança trouxe novas esperanças a Quaresma, que logo se viu próspero com os
lucros do sítio. O desânimo, no entanto, se apoderou dele novamente após a primeira colheita,
pois os alimentos cultivados com tanto sacrifício não renderam quase nada. Quaresma
escreveu uma carta ao presidente da República, Marechal Floriano Peixoto, reclamando do
valor pago à produção dos agricultores, mas não obteve resposta.
Estourou a Revolta da Armada e Quaresma se alistou com a finalidade de defender o
governo. Voltou para o Rio de Janeiro onde combateu e acabou ferido. Finda a revolta, ficou
responsável pelos prisioneiros e, mais uma vez, se decepcionou com o governo ao ver que os
presos eram levados, no meio da noite, sem julgamento prévio. Escreveu uma carta ao
presidente, Marechal Floriano, denunciando o abuso de autoridade. Foi preso como traidor e
nem mesmo o empenho da afilhada consegui salvá-lo.

VISÃO POLÍTICA DE LIMA BARRETO

Segundo Bosi (2006), Lima Barreto sofreu com o preconceito por ser mulato e pobre.
Por causa de tudo que viveu e sofreu, ele desenvolveu certa aversão às classes dominantes e,
consequentemente, desenvolveu uma visão muito pessimista em relação à pátria. Em carta a
Georgino Avelino, ele desabafa:

A pátria me repugna, Avelino, porque a pátria é um sindicato dos políticos e


dos sindicatos universais, com os seus esculcas em todo o mundo para
saquear, oprimir, tirar o couro e cabelo, dos que acreditam nos homens, no
trabalho, na religião e na honestidade. (Barreto, apud Lins, 1976, p. 21).

A carta mostra um homem sem esperanças no seu país. Ele vê os defeitos e faz
acusações graves contra os políticos. Seria ele antinacionalista? Ou estava apenas sendo
crítico?
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Corumbá, MS, novembro 2011, n. 4, p. 178

Em Triste fim de Policarpo Quaresma, Lima Barreto deixa transparecer um pouco da


sua visão política. As falas das personagens são reveladoras. A princípio, ele não parece ser
contra o sistema republicano, como podemos verificar quando a personagem Albernaz
conversa com Caldas: “A república precisa ficar forte, consolidada... Esta terra necessita de
governo que se faça respeitar” (Barreto, 1995, p. 117).
Porém com o passar do tempo, ele percebeu que o advento da república havia retirado
do poder os liberais e colocado os conservadores (Bosi, 2006, p. 318). Vejamos o que ele diz:
“Estávamos melhor naquele tempo, digam lá o que quiserem...”; “... os governos que temos
tido que não têm prestígio, força...”(Barreto, p. 121). Como ele era radicalmente contra o
conservadorismo, não apoiou a república, pois ela estava escorada nas idéias positivistas.
O incomodavam o autoritarismo dos militares e dos políticos, os privilégios, as
promoções, os empregos e as gratificações concedidos a poucos; é o que vemos nesta
passagem que fala sobre o governo militar: “toda gente ainda se lembra como foram os seus
primeiros meses de governo [...] tendo mandado fazer um inquérito [...], deu a essas pessoas
as melhores e as mais altas recompensas” (Barreto, 1995, p. 131). Enfim, tudo é justificado
pelo positivismo como, nesse trecho em que ele se refere aos militares: “Eram os adeptos
desse nefasto e hipócrita positivismo tirânico, limitado e estreito, que justificava todas as
violências, todos os assassínios, todas as ferocidades em nome da manutenção da ordem...”
(Barreto, 1995, p. 120-121).
A república, os presidentes, os militares e suas arbitrariedades e, principalmente,
Floriano Peixoto, são alvo de suas críticas: “... uma ausência total de qualidades intelectuais,
havia no caráter do Marechal Floriano uma qualidade predominante: tibieza de ânimo; e no
seu temperamento, muita preguiça (Barreto, p. 136). Por todos esses motivos, o obra de Lima
Barreto deixa transparecer que ele era radicalmente contra a república, o positivismo e as
classes dominantes — enfim, era contra aqueles não faziam nada para mudar a situação do
país.
De acordo com Rangel (1984, p. 84), Triste fim de Policarpo Quaresma “mistura
ficção e política”. Mas não é só nesse livro que esse tema está presente. Toda a obra de Lima
Barreto tem como característica comum a preocupação com o social. Ela aborda os mais
diferentes temas, sendo eles os mais graves e sérios problemas sociais e políticos do Brasil.
Rangel os enumera:
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O regime político e administrativo, os entraves burocráticos, o tráfico de


influencias, a política econômica, a oligarquia rural e o abandono da
agricultura de consumo interno assim como a dureza da vida no campo; os
preconceitos de raça e de cor, a exploração dos mais fracos pelos mais fortes e
a impunidade destes, o poder do compadrio, a futilidade e os rebrilhos falsos
da diplomacia “elegancial”; na vida social assim como na vida literária, as
igrejinhas, as sociedades de elogio mútuo, a literatura transformada em
“sorriso da sociedade”, a linguagem alambicada e de colarinho duro
patrocinada pela Garnier. (Rangel, 1984, p. 94).

Se não considerássemos o fato de que a literatura de Lima Barreto tem caráter social,
poderíamos concluir que ele era antinacionalista. Mas, aqui, um novo problema se coloca:
como alguém pode denunciar os problemas de uma pátria que não ama? Lima Barreto utiliza
seus romances para combater as arbitrariedades e injustiças daqueles que realmente não se
preocupam com os problemas que então existiam no Brasil.
A crítica política e social é uma constante na obra de Lima Barreto (BOSI, 2006, p.
316-324). Em Numa e Ninfa (1923) ele também não perdoa os políticos e usa a caricatura
para mostrar os problemas sociais, econômicos e políticos da república, em especial os
desmandos dos políticos. Em Clara dos Anjos, obra inacabada, há também crítica social. A
pobreza é denunciada bem como a discriminação racial e social, tema também presente em
Recordações do escrivão Isaias Caminha (1909). Em os Bruzundangas (1923), a sátira é
contra o Brasil e a sociedade do início do século XX.
Houais afirma, no prefácio de Vidas urbanas, que a literatura de Lima Barreto é
engajada. Suas palavras têm a finalidade de “mover, demover, comover, remover e promover”
(Houais apud Lins, 1976, p. 18). Portanto, sua escrita não é apenas para divertir, mas vai
muito além, pois é também um instrumento de denúncia contra os poderosos e seus
desmandos, contra as injustiças e o descaso para com os mais pobres.

O RISO LITERÁRIO EM LIMA BARRETO

De acordo com Bakhtin (1993, passim) o riso se manifesta na forma do humor, da


ironia, da sátira, da caricatura, do chiste, da piada. Lima Barreto se utiliza de vários elementos
do riso literário para fazer sua crítica. Diz Rangel (1984, p. 96): “o estilo limiano é a sátira, o
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humor, a ironia, o sarcasmo”. Essa afirmação pode ser confirmada em várias passagens do
romance, tanto nas protagonizadas por Quaresma quanto por alguma outra personagem:
caricaturista nato, Lima Barreto pinta suas personagens com as cores do ridículo. Major
Quaresma é apresentado de forma histriônca. Não ridículo quanto à aparência física, mas sim
nas atitudes. A caricatura é o exagero das características de um indivíduo. No caso de
Quaresma, o que é caricaturado é o seu nacionalismo exagerado, nacionalismo cujo molde é
contrário às ideias do autor.
Rangel afirma ainda que. na obra de Lima Barreto, “[a] ironia chega ao sarcasmo, à
sátira, ao caricatural. Os tipos que ele traça são raramente tipos complexos. São almas lineares
de psicologia simples: ridículos sempre ridículos; maus sempre maus; bons sempre bons”
(Rangel, 1984, p. 97). Também essa afirmação pode ser confirmada no romance O triste fim
de Policarpo Quaresma, pois o protagonista é caricaturizado e se mostra ridículo, embora
seja uma boa pessoa. Não há mudança: Quaresma é o que é. Quando imaginamos que ele
aprendeu a lição, percebemos que não. Ele continua simples, acreditando nas pessoas e
lutando por seus ideais. Morre porque não consegue se calar ante as injustiças; no entanto,
tem a simplicidade de não perceber o perigo que corre. Bosi (2006, p. 319) diz que o cômico
acontece pelo quixotismo de Quaresma. Suas ações são sempre cômicas, além do mais, ele,
como Dom Quixote, é um visionário, como afirma Floriano quando ele pergunta se O
Marechal leu seu memorial sobre a agricultura. Ele quer fazer algo para ajudar o país, tem
boa-fé, mas não tem noção da realidade, o que o expõe a situações perigosas. Seus projetos
são de um despropósito que gera comicidade.
Há uma alternância do trágico e do cômico no romance. Segundo Aristóteles (2000, p.
39), a tragédia imita as ações de pessoas superiores e deve ter um desfecho capaz de provocar
piedade. A comédia é a imitação das ações inferiores, se volta para o cômico com a intenção
de fazer rir. Ambas fazem parte do drama. Há, em várias momentos do romance, a presença
do cômico e do trágico em alternância contínua. O projeto de mudança de idioma, os
momentos de delírio de Quaresma, sua mania de apreciar tudo que é nacional em detrimento
aos outros países, bem como os vários trechos que mostram a sociedade fútil, que apenas
vivia de aparências, são responsáveis pela comicidade da obra. Já a internação de Quaresma,
sua prisão e o desfecho são responsáveis pelo tom trágico.
Em Triste fim de Policarpo Quaresma, Lima Barreto critica o nacionalismo
exacerbado de pessoas, que como Policarpo, só conseguem ver o que o país tem de bom. Por
isso a personagem de Quaresma é caricaturada e grotesca. Lima Barreto, apesar de ser
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nacionalista, não admitia os exageros, conseguia ser crítico o suficiente para perceber o que
estava errado, por isso fazia uma literatura de denúncia. Ele critica também os políticos e suas
arbitrariedades e sua pouca capacidade, bem como o positivismo, que, segundo ele, dá base
para todas as injustiças. Sua crítica se volta também para o coronelismo, praga do latifúndio
que invade as cidades, e o empreguismo, praga da vida pública para resolver questões
privadas.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Lins (1976, p. 22) afirma que Lima Barreto foi “um dos mais interessados analistas de
nossa realidade geografia, política e psicológica”.
Considerando essa afirmação e as considerações dos demais estudiosos que citamos,
percebemos que Lima Barreto sempre usou a palavra para denunciar os problemas sociais.
Sendo assim, em um primeiro momento, ao que parece, ele já não tem mais esperanças quanto
ao futuro do Brasil, o que o leva a um profundo pessimismo. Esse sentimento o faz construir
uma personagem como Policarpo Quaresma. Tudo em Quaresma é exagerado. Seu
nacionalismo ufanista, seu amor pela pátria, a valorização das belezas naturais e dos produtos
nacionais.
Quaresma não possui equilíbrio emocional, não tem limites. Seu nacionalismo é tão
absurdo e suas reações tão exaltadas que sua figura dá um tom quixotesco ao romance.
Provoca riso.
No entanto, a obra também explora o trágico, pois as mesmas atitudes que dão o tom
cômico levam a personagem a momentos trágicos, como o da sua morte, por exemplo. Outras
passagens como a morte de Ismênia e a violência após a batalha também são responsáveis
pelo tragicidade da obra. Bosi (2006, p. 320) afirma ainda que Quaresma queria “viver mais
brasileiramente em um Brasil que já estava deixando de o ser”.
Apesar da crítica de Lima Barreto ao nacionalismo isolado e doentio, em O triste fim
de Policarpo Quaresma a criatura representa alguma das ideias de seu criador, pois Lima
Barreto, como a personagem Quaresma, implica com tudo que é de fora, “até mesmo com o
futebol, porque era um jogo ‘importado’ e soltava um bando de ‘homens seminus’ correndo
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diante da multidão” (Rangel, 1984, p. 93). No entanto ele não chega ao exagero de Quaresma,
consegue ser mais racional. Sabe dos problemas existentes no país e usa suas obras como
instrumento de denúncia.
Apesar desse caráter, a força da ficção de Lima Barreto está na reflexão que provoca a
partir da humanidade com que impregna suas personagens, a partir da revolução literária que
produz, incorporando à linguagem da literatura brasileira um modo de se expressar que rompe
com o academicismo até então vingente, e a partir de uma visão de mundo que amalgama a
vivência do subúrbio carioca a uma crítica que engloba da elite intelectual europeia e sua
vacuidade ao despreparo e ignorância das elites brasileiras. Neste quadro, discutir se Lima
Barreto era nacionalista quixotesco como Quaresma, ou um crítico implacável da
nacionalidade medíocre, torna-se questão menor.

REFERÊNCIAS:

BARRETO, Lima. Triste fim de Policarpo Quaresma. São Paulo: Martin Claret, 2001.

BOSI, Alfredo. História concisa da Literatura Brasileira. São Paulo: Cultrix, 2006.

LINS, Osman. Lima Barreto e o espaço romanesco. São Paulo: Ática, 1976.

RANGEL, Pascoal. Ensaios de literatura. Uma introdução à leitura de 16 autores brasileiros. Belo
Horizonte: O lutador, 1984.
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Corumbá, MS, novembro 2011, n. 4, p. 183

MUDANÇA E INSTITUCIONALIZAÇÃO: O LUGAR DO


NARRADOR NO ESPANTO DISSIMULADO
E BUROCRATIZADO EM JOÃO DO
RIO E DALTON TREVISAN

Sandro Roberto Maio1

RESUMO: O artigo busca articular o conceito de modernização conservadora de Florestan Fernandes


a partir de uma leitura comparativa que foca a posição do narrador na Literatura Brasileira em dois
momentos distintos: a entrada de certa modernidade na dissimulação espantada de João do Rio e a
burocratização da miséria em Dalton Trevisan.

PALAVRAS-CHAVE: Mudança, narrador, Literatura Brasileira, modernidade, violência.

ABSTRACT: This article seeks to articulate the concept of Florestan Fernandes's conservative
modernization from a comparative reading, which focuses the narrator's position in the Brazilian
Literature at two distinct moments: the entry of certain modernity in João do Rio’s amazed
dissembling and the bureaucratization of misery in Dalton Trevisan.

KEY-WORDS: Change, narrator, Brazilian Literature, modernity, violence

A produção literária no Brasil no decorrer do século XX indica um posicionamento do


narrador para uma leitura reflexiva de seu papel social. Em certos momentos da historiografia,
a figura do narrador parece portar uma forma-voz que traduz elementos da estrutura social.
Certos aspectos objetivados por tal narrador singularizam uma situação político-social que
sustenta a estagnação da mudança a favor da manutenção de um poder subjetivado no ideal do
progresso.
Por tal paisagem, o narrador na Literatura Brasileira sofre algumas constantes. As
estruturas que movimentam o texto relacionam-se de modo acentuado com as estruturas
sociais: a dificuldade de narrar aproxima-se da dificuldade de estabelecer paradigmas de
mudança social. O narrador busca, então, a expressão da lacuna, da indeterminação e do
impasse que regem de certa forma a própria existência social. Sua voz articula-se na relação
conflitiva dos elementos da história e as possibilidades de figuração na ficção. Parece
relacionar-se com os objetos de seu discurso de modo predominantemente negativo, já que

1
Mestre em Literatura e Crítica Literária pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP).
Professor convidado do curso de Pós-Graduação (Especialização) em Literatura pela PUC-SP, Departamento
de Literatura e Crítica Literária; sandromaio@hotmail.com.
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traz a consciência crítica que percebe a conservação de modelos e sistemas em que a


desigualdade funciona de modo eficaz. Nesse sentido, invariavelmente, a figura excluído é
uma presença que se desdobra em vários níveis. Em alguns casos protagoniza narrativas
canônicas (Vidas secas, A hora da estrela), em outros, sua insistente presença traz traços de
um imaginário que se articula na constante e paradoxal reformulação de uma sistemática
estabilidade.
O presente texto irá ter como corpus ficcional para análise a narrativa Sono Calmo de
João do Rio, encenada no inicio do século XX, período caracterizado pela euforia pequeno-
burguesa em relação à importação de signos capazes de elencar formas de certa modernidade
européia. A miséria, neste caso, é proposta como espetáculo integrante do novo cenário que
avulta. Em comparação, o conto Debaixo da Ponte Preta de Dalton Trevisan, elaborado nos
anos 60, período em que algumas formas da “modernidade” encontram-se em plena
maturidade funcional, aponta para a burocratização estatal da miséria, formalizada no discurso
de autoridade nos anais da justiça. De toda forma, o cruzamento de uma perspectiva que
orienta a exclusão como forma de justificar a entrada de uma tardia modernidade em um
Estado predominantemente fundamentado por um sentido colonizador é dominante na
construção narrativa dos dois textos. Percebe-se um ponto de contato entre os narradores, o
que pode significar uma constante nas narrativas que compreendem a produção literária do
século XX no Brasil.
Para isso, propõe-se a seguinte questão: como a voz narradora em João do Rio,
enlevada de certo espanto simulado acaba por se desdobrar em fantasmagoria na narrativa de
Dalton Trevisan, enquanto burocratização narradora dos excluídos? Não estaria depositado
em tais formas de narrar uma percepção de que “tradição dos oprimidos nos ensina que o
‘estado de exceção’ em que vivemos é na verdade a regra geral”, segundo Walter Benjamin?
Como centro teórico utilizaremos conceitos presentes nas teses sobre a história de Walter
Benjamin e o conceito de modernização conservadora de Florestan Fernandes, além de textos
recorrentes de tais perspectivas.

1. O espetáculo da miséria: modernização como espanto dissimulado

Cronista do inicio do século, flâneur de uma belle époque deslocada frente ao cenário
de certa modernização, João do Rio procurou narrar o avesso das importações artificiosas do
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imaginário pequeno-burguês que invadia a Primeira República. De certa forma, percebe-se


um narrador preocupado em expor os resíduos sociais que margeiam o “progresso” do ideário
positivista não exatamente no intuito de denúncia (ou reflexões que pudessem ler algum tipo
de estrutura social excludente), mas para efeito das “sensações” que o incipiente cenário
urbano acenava. Os textos que compõe A alma encantadora das ruas (1908) traçam um
cenário prefigurado pela idéia de modernização conservadora. Para Florestan Fernandes, a
modernização traz em si um aspecto de forte dependência, o que justifica uma transposição
quase integral de processos de culturas dominantes, o que não significa adequação ou
saneamento de dificuldades históricas:

[...] a mudança social é comprimida, convertendo-se, extensa e


profundamente, em um processo de ‘modernização dependente’,
produzido e regulado graças à absorção de dinamismos
socioeconômicos e culturais das nações capitalistas hegemônicas.
(FERNANDES, 2008, p.41).

O modelo europeu aqui repercutido pensa a exposição das mazelas sociais através de
imagens que buscam o efeito do choque, pois atenua o papel das figuras de autoridade que
acompanham o jornalista-personagem em suas incursões no submundo, ao mesmo tempo em
que torna agudos aspectos próprios da miséria como se fossem alheios ao reconhecimento do
processo. O crime e os criminosos ou miseráveis que compõem os quadros narrativos são
personagens que “ilustram” a modernização social, de modo a representar um traço já
previsto no modelo ideal das culturas dominantes, a partir de tensões atenuadas por um
reconhecido domínio histórico, o que é um padrão frente às mais variadas circunstâncias:

Aquele padrão compatibiliza a coexistência da tolerância e até da


cordialidade com um profundo desdém elitista por quem não possua a
mesma condição social. O que faz com que aquilo que parece
‘democrático’, na superfície, seja de fato ‘autoritário’ e ‘autocrático’,
em sua essência. Esse patamar psicossocial das relações humanas é a
nossa herança mais duradoura (e, ao mesmo tempo, mais negativa) do
passado colonial e do mundo escravista. (FERNANDES, 2008, p.43).

Logo, traços de negatividade acompanham os procedimentos narrativos que encontram


no tema da exposição do excluído uma forma a trazê-lo como coadjuvante natural do
espetáculo que oferece a modernidade, porém sempre como representação de uma consciência
que o considera: “[...] o inimigo principal da burguesia vêm a ser os setores despossuídos, na
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maioria classificados negativamente em relação ao sistema de classes [...]” (FERNANDES,


2008, p.37).
A narrativa Sono calmo é exemplar nesse sentido. Diz o narrador: “Os delegados de
polícia são de vez em quando uns homens amáveis” (RIO, 2007, p.114). A adjetivação
positiva da autoridade é correspondência simétrica à idéia de superficial democracia citada
acima. O que, posteriormente se desenvolve, é espelhamento de um sistema em que “[...] o
autoritarismo desvenda na prática o que nas fases democráticas fica dissimulado: o caráter da
repressão autoritária e os contornos da violência física e ilegal” (PINHEIRO, 1991, p.49). A
figura de autoridade conduz o narrador aos “círculos infernais” – moradias que acolhiam
provisoriamente figuras constantes da rua, o que o narrador chama de “covis horrendos”. O
modo de apresentação do tema ao leitor é significativo, pois justifica a manutenção da miséria
como forma de inserção no “mercado” do alto capitalismo:

Lembrei-me que Oscar Wilde também visitara as hospedarias de Má


fama (...) em Paris os repórteres do Journal andam acompanhados de
uma apache autêntico. Eu repetiria apenas um gesto que era quase
uma lei. (RIO, 2007, p.114).

O que para o narrador é uma “lei”, uma conseqüência medida já por determinada
situação histórica, é para Florestan Fernandes outra face da mesma história:

O regime de classes ‘transborda de um para o outro, graças às


estruturas de poder criadas no plano internacional do capitalismo,
porém o primeiro ‘faz a história’, enquanto o segundo ‘a sofre’.
(FERNANDES, 2008, p.34).

O delegado como figura que orienta os caminhos em espaços de degradação somente


reforça a idéia de uma estrutura social que também orienta e delimita as ações em tais
espaços: “Íamos caminhando pela rua da Misericórdia [...] e, afundando o olhar pelos becos
estreitos em que a rua parece vazar a sua imundície por aquela rede de becos[...]” (RIO,2007,
p.145). No mesmo sentido, Paulo Sérgio Pinheiro relaciona o estado de exceção de que fala
Walter Benjamin como a única continuidade visível, já que o próprio espaço de vivência de
tal população é pontuado por cortes e deterioração para a garantia da própria sobrevivência:

Para os pobres, miseráveis e indigentes que sempre constituíam a


maioria da população podemos falar de um ininterrupto regime de
exceção paralelo, sobrevivendo às formas de regime, autoritário e
constitucional. (PINHEIRO, 1991, p.48).
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A narrativa segue para tornar a ação policial um fato da realidade, a ser trazido para o
imaginário dessa desconhecida modernização como “espetáculo”, elencado por figuras como
o soldado e o próprio delegado que revela a violência como uma forma de relação com o
outro da História:
O soldado tornou a bater. De dentro então uma voz sonolenta
indagou:
- Quem é?
- Abra! É a polícia! Abra!
O silêncio continuou. Nervoso, o delegado atirou a bengala à
porta. (RIO, 2007, p. 146).

A figura de autoridade torna-se núcleo modelar que exerce sua heroicidade ao


confirmar a violência posta em tensão pela confirmação do poder exercido: “O delegado,
entretanto, gozava aquele espetáculo” (RIO, 2007, p.147). A própria comparação que faz o
narrador para as condições de moradia revela uma mentalidade que nivela as existências
enquanto funcionamento regulado: “Parecia que o ar rareava, e, parando um instante, ouvimos
a respiração de todo aquele mundo como o afastado resfolegar de uma grande máquina” (RIO,
2007, p. 147). Assim, a incorporação da técnica como forma de justificar uma modernidade
inaudita serve como preciosismo vocabular, já que a prática da idéia progressista revela a
própria iniqüidade interna de seu próprio discurso, o que expõe:

A violência ilegal do Estado e a impunidade da violência por parte dos


cidadãos continuam depois das transições políticas, mascarada pela
retórica democrática, dissimulando relações fundamentais de forças
intocadas. (PINHEIRO, 1991, p. 45).

Logo, as condições de vida não demonstram a reforma esperada pelo narrador e, por
isso, justifica a comparação como continuidade natural de uma História que perpetua o
movimento de exclusão como norma. Tal questão parece criar espaço para a adjetivação do
narrador, no momento de sua retirada do “covil horrendo”: “Desci. Doíam-me as têmporas.
Era impossível o cheiro de todo aquele entulho humano” (RIO, 2007, p. 149). Mais uma vez o
progresso figura como signo mentor da reforma (seu produto de exclusão: o entulho), o que é
a correspondência que o narrador parece buscar enquanto identificação do herói da sua
narrativa (a figura de autoridade) e um previsto público leitor (a sociedade conservadora que
tinha acesso à leitura). O próprio espaço original de veiculação do texto – o jornal – é fonte de
construção de um imaginário que imprime pela idéia de inserção social certas proeminências:
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Ela projeta, desse modo, a condição burguesa para fora da burguesia e


implanta, no coração mesmo de seus inimigos de classe, identificações
e lealdades mais ou menos profundas para com o consumismo, a
ordem social competitiva e o Estado ‘democrático’ e ‘nacional’.
(FERNANDES, 2008, p.61).

A narrativa projetada para a descrição do excluído pelo efeito do choque através do


horror prepara o caminho para a entrada do arremedo de certa política conservadora, como na
conclusão que acredita no próprio cinismo e arrogância: “É verdade, os asilos, a higiene, a
limpeza. Tudo isso é bonito. Havemos de ter. Por enquanto Nosso Senhor, lá em cima, que
olhe por eles” (RIO, 2007, 149). A modernização cumpre assim, seu principal intuito de
nivelamento da desigualdade pela exclusão e o apagamento dos rastros do passado pela
higiene, a limpeza do “entulho humano”.
Dessa forma, a narrativa de João do Rio que principia pela busca do efeito da
“sensação”, orientada o relato das vivências, acaba por oferecer uma cena que muito retrata as
contradições em termos da própria construção narrativa e do processo histórico apresentado.
Tal temática transpõe para o campo de orientação do narrador a implantação de uma situação
modernizante, pautada na transposição pura e simples de certa cultura de importação. A
tensão advém da convivência que dispõe o motivo de fascínio (“encantadora”) a partir da uma
percepção hesitante, porém afirmadora das diferenças que elaboram as relações sociais. Logo,
a modernização não cria, senão um sentido de “plastificação” do real para o Brasil e de certa
maneira, uma paisagem constantemente reformada que preserva as relações de poder e
servidão vivas na recente abolição da escravatura, elementos autoritários, impregnados na
cultura brasileira, que fomentam antagonismos:

[...] a modernização institucional do Estado, coincidia com a


renovação e o reforçamento das técnicas oligárquicas e autocráticas de
dominação patrimonialista, elevadas da esfera privada a órbita da ação
político-burocrática do Estado. (FERNANDES, 2008, p. 58).

2. Burocratização da miséria: o outro no silêncio da história

Dalton Trevisan, escritor brasileiro que desponta nos anos 60, traz um narrador que
visita espaços e personagens à margem dos imperativos da modernização. Como revestimento
para essa voz narrativa, a consciência da concretização de uma modernização que trata o
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desvio (o crime) como norma burocrática e previsível. A figura de autoridade repressora


agora está solidificada na impessoalidade que nivela e confunde os papéis ali desempenhados.
O conto Debaixo da Ponte Preta presente no livro O vampiro de Curitiba (1965) repercute o
que antes era a busca de elementos articuladores de uma imaginada modernidade, agora na
indiferença de uma voz que traveste os elementos de choque em anestesiada conferência:

Noite de vinte e três de junho, Ritinha da Luz, dezesseis anos, solteira,


prenda doméstica, ao sair do emprego, dirigiu-se à casa de sua irmã
Julieta atrás da Ponte Preta (...). Arrastada pelo chão, fortes dores nos
seios e nas partes. Que não gritasse por socorro, barbaramente
espancada. (TREVISAN, 1985, p. 76).

Tal discurso “maquinizado” pelo aparelhamento jurídico, ou seja, legitimizado


legalmente pelo Estado revela uma modernização que não interfere ou muda as relações
sociais, mas continua um percurso agora normatizado pelo testemunho que atesta. O que é
exemplo histórico de uma prática de assimilação da modernidade para fins conservadores:

As classes dominantes e suas elites, pouco propensas a assimilar e por


em prática técnicas, valores e instituições sociais que poderiam
redundar em ‘maior abertura’ e ‘maior fluidez’ da ordem social
competitiva, aproveitam com avidez as vantagens de sua incorporação
às fronteiras culturais das nações capitalistas hegemônicas, para
modernizarem sua tecnologia de controle repressivo e violento dos
conflitos sociais, aumentando, com isso, a eficácia dos mecanismos de
segurança da ordem ou da repressão policial-militar. (FERNANDES,
2008, p.54).

Daí o outro do processo histórico ser mera peça de arquivo, previsível na constituição
social violenta em seus pequenos desvios cotidianos. O conto é ambientado possivelmente em
uma sala delegacia, onde vozes são recortas para a construção do texto. Percebe-se a presença
de um investigador, delegado ou mesmo escrivão que toma nota de um estupro que ocorre
“atrás da Ponte Preta”, na linha do trem. O texto preserva o tom de depoimento dos
personagens participantes a partir do recorte de vozes que organiza a narrativa. Tais
personagens, anônimos a princípio (a nomeação é sempre generalizante: Miguel de Tal,
Nelsinho de TAL, etc.) podem ser reconhecidos pela narrativa que os constroem através da
recolha burocratizada de sua voz. Cada um oferece seu traçado da “ocorrência”, forma que
obedece aos níveis de consciência e percepção, porém pontuados por certa intencionalidade,
decorrente de sua posição social. Todos justificam o crime, de uma forma ou de outra, sem
que não deixe de haver justificativa para sua existência: Miguel de Tal, foguista, diz que “Ao
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cruzar a linha do trem, avistou três soldados e uma dona em atitude suspeita. Sentiu um
tremendo desejo de praticar o ato”. Logo à frente, a descrição do “ato”: “[...] retirando-lhe a
roupa e com ela mantendo relação, embora a força. Derrubou e, para abafar os gritos, tapou-
lhe o rosto com o casaco de foguista. Saciado ajudou os soldados [...]” (TREVISAN, 1985, p.
77). Apesar da aparente neutralidade daquele que escreve o depoimento, percebe-se certa
complacência: desde a “atitude suspeita” que insinua certo pacto de todos os participantes,
passando pelo “tremendo desejo” que por conseqüência justifica a utilização atenuante do
“embora a força” para a caracterização do crime. Por isso, a assertiva moral absolve de
antemão, pois o arrependimento do “mau gesto” (outra atenuação...) cria uma situação que faz
com que Miguel “[...] se oferece para casar com a menina [...] isto é, tão logo apronte os
papéis do desquite, de momento é casado” (TREVISAN, 1985, p. 77). Assim, a adversativa
“embora” se transfere para um termo explicativo “isto é” como construção de um discurso
que busca formas de reconhecimento em uma natureza violenta e arbitrária:

Os aparelhos repressivos do Estado no Brasil estão impregnados do


arbítrio, do terror e dos abusos das relações de poder. Os governos da
transição trataram os aparelhos policiais como se fossem aparelhos
neutros capazes de servir à democracia e subestimaram o legado
autoritário em suas práticas. (PINHEIRO, 1991, p. 50).

O reconhecimento pelo discurso do oprimido não transforma as relações sociais, mas


apenas testemunham a eficiência de uma transformação que busca preservar seus sistemas de
relação e poder. O depoimento é fruto do aparelhamento judiciário como forma da atuação de
uma pretensa neutralidade democrática, porém tal neutralidade não questiona os mecanismos,
mas concretiza uma indiferença estruturadora. A inversão pela indiferença pode ser constata
pelo segundo participante, Nelsinho de Tal, menor que “[...] deparou com três soldados e um
paisano atacando uma negrinha [...]” e “Acabada a brincadeira [...] se confessa contrariado
[...] ações como a que praticou apenas servem para estragar o futuro de um jovem”
(TREVISAN, 1985, p. 77). Nova inversão: o crime toma o status de “brincadeira” e o “futuro
estragado” não pertence à vítima – “negrinha e menor” – mas àquele que comete o crime. Tal
cena narrativa traz a percepção da violência articulada na cultura brasileira por uma
linguagem paterna, estruturadora do social. Logo, percebe-se: “Além das formas de violência
ilegal, a violência doce (nem sempre) dos preconceitos e das discriminações compõe o
autoritarismo socialmente implantado” (PINHEIRO, 1991, p.56).
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A narrativa encena personagens como Alfredo de Tal, Durval de Tal e Pereira, todos
eles soldados que protagonizam o crime. Para Durval “[...] a menina gostou de seu cabelo
loiro e olho azul. Aproximaram-se os colegas, um de cada vez abusou da pequena”
(TREVISAN, 1985, p.78). Discurso semelhante está no depoimento de Pereira que justifica o
crime pelo ensejo da ocasião:

[...] tendo um deles exclamado: Que morena linda. A qual parou e


perguntou o que havia dito. Começaram a conversar, Alfredo a
convidou pra dormirem juntos. Ela respondeu: Este loiro tem tempo.
(TREVISAN, 1985, p.79).

O depoimento é conduzido em um crescente que irá inverter a consciência do crime:


“Feita a combinação, entraram no mato. Ela quis dinheiro, não a puderam pagar, estavam de
bolso vazio” (TREVISAN, 1985, p. 79). Tal posicionamento situa a vítima de modo reduzido
no plano narrativo, emudecida, a corroborar com a figura do

[...] soldadinho quando investido de autoridade, usa e abusa do poder,


achando-se no direito de prender e bater, reprimir e oprimir. Sujeito a
essas condições hostis, impostas historicamente, parte substancial das
classes e camadas dominadas, incorporou em seu imaginário o
sentimento de impotência ante os desatinos dos donos do poder.
(SEGATTO, 2000, p.204).

De certa maneira, a indiferença burocratiza e torna igual vítima e criminoso – a


personagem estuprada é negra e “provocante”, o que justifica moralmente o crime iniciado
por soldados: “Os soldados disseram algumas gracinhas. Um deles a convidou para ir a um
quarto, ela respondeu que no campinho era melhor” (TREVISAN, 1985, p.79). Não estaria ai
uma forma de sustentação da inércia burocratizante da justiça em um estado que não visa
propriamente à modernização, mas a administração continua dos pequenos delitos de forma a
preencher tais expectativas punitivas do imaginário moral?
É dessa maneira que o Estado, segundo Florestan Fernandes, posiciona-se como órgão
regulamentador dos fantasmas de um discurso incapaz de elaborar o passado, mas de encadear
novas formas de sua perpetuação:

[...] o Estado não é, para as classes dominantes e como o controle do


poder político, um mero comitê dos interesses privados da burguesia.
Ele se torna uma terrível arma de opressão e de repressão, que deve
servir a interesses particularistas (internos e externos
simultaneamente), segundo uma complexa estratégia de preservação e
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ampliação de privilégios econômicos, socioculturais e políticos de


origem remota (colonial ou neocolonial). (FERNANDES, 2008, p.
37).

O narrador de Dalton Trevisan expõe as personagens e suas vozes de modo


condicionado, como se a escrita da autoridade fosse naturalmente superior por saber organizar
o que é substancial em cada depoimento. As vozes que depõem parecem se encerrar no
momento que “Ritinha submeteu-se de livre e espontânea vontade ao desejo dos outros [...]”
(TREVISAN, 1985, p. 80). A assertiva que conclui os depoimentos justifica o crime como
um dado socialmente implantado no imaginário moral. Apesar do aparelhamento
modernizador que está por trás do aparato de investigação – o que supõe existência de um
apuramento legal e democrático do desvio – as relações estão cristalizadas no
conservadorismo que trata a verdade como objeto de manipulação e isso parece percorrer todo
o enunciado narrativo. O narrador se duplica entre o oral e o escrito para demonstrar a
dificuldade do relato frente a constituição histórica brasileira: a autoridade como liderança
afetiva, de integração social como rede familiar e que se propõe ao papel de acolhimento e
proteção, acaba por ser agente do crime e locutor do apagamento constante do passado. O que
prova mostra:
A estrutura de poder que tem prevalecido no Brasil durante todo
século XX pressupõe a negação dos direitos da maioria da população
para que o sistema de exploração possa ser reproduzido sem acidentes
maiores: a transição política é um episódio soft que não afeta esse
sistema hard de exploração. (PINHEIRO, 1991, p. 52).

A narrativa, porém, tem como fechamento não exatamente seu início – atrás da Ponte
Preta – mas, como sugere o título Embaixo da Ponte Preta. Tal expressão se impõe como
forma conclusiva da narrativa: o subsolo pelo qual escorre a história dos excluídos, a norma
do estado de exceção:
Ritinha estava chorando debaixo da Ponte Preta. Não sabia quem lha
havia feito mal, um dos soldados lhe enfiou a Túnica na cabeça [...]
Deflorada havia um mês por um soldado loiro chamado Euzébio”.
(TREVISAN, 1985, p.80).

O que faz da precariedade constitutiva da personagem (“A patroa deu-lhe um sapato


velho e vendeu-lhe dois vestidos, que descontou do ordenado”) a exposição de uma
fragilidade convidativa, oportunidade para que a voz do excluído seja abafada no processo de
modernização, como no conto que não se ouve a voz da personagem, mas somente seus
“gritos”:
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Corumbá, MS, novembro 2011, n. 4, p. 193

O guarda mal-encarado bradou: Tem de conhecer homem senão te


mato. Primeiro foi o Durval, depois o Alfredo, em seguida o Pereira,
agora minha vez, oba!Ritinha começou a gritar e quis correr, foi
agarrada pela perna. (TREVISAN, 1985, p. 81).

Voz abafada que segue uma lógica de preservação das relações sociais dirigidas por
um Estado que sempre:

[…] agiu prontamente para impedir, seja pela repressão pura e simples
seja por outras formas,como a manipulação e a cooptação ou ainda por
meio da criação de instrumentos jurídico-políticos de controle e
exclusão. (SEGATTO, 2000, p. 202).

Situação que na narrativa redunda na seguinte construção cênica: “[...] largada


bastante ferida no seio e nas partes, até que o guarda-civil a encontrou, queixosa de frio e de
dor” (TREVISAN, 1985, p.81). A narrativa parece retornar ao ponto de origem na medida em
que as figuras de autoridade se posicionam em pólos distintos: enquanto agentes do crime e,
ao mesmo tempo, protetores. Tal construção narrativa demonstra uma espécie de metonímia
do papel do Estado na sociedade brasileira: o convívio de uma fachada modernizadora de
afirmação que se confirma ao preservar os instrumentos de repressão, como se quisesse a
conciliação de uma herança que incute traços de conduta pautados nas relações de servidão
como lógica social: “Em vez de transições temos uma extraordinária continuidade: podemos
ter mudanças no quadro político institucional sem que a cultura política, por exemplo, seja
afetada” (PINHEIRO, 1991, p. 47).
Dessa forma, percebe-se um narrador que constrói negativamente as personagens, de
modo a afirmar a dificuldade que se torna imperativa tanto à mudança quanto ao narrar. Tais
procedimentos narrativos partem da impossibilidade para a construção de uma ambigüidade
que se forma justamente pela falta de elaboração de seus traumas:

Se a transmissão histórica falha, ela acontece por meio sintomáticos: a


repetição do ato negado, a incorporação do fantasma, a interdição do
estabelecimento de uma identidade autônoma. (LANDA, 1998, p. 69).

De certa forma, a narrativa demonstra o trauma que regulariza o procedimento


narrativo, pois não há uma construção possível da interioridade das personagens, o que expõe
um sujeito que não consegue se constituir. O que faz a narrativa voltar a seu estado inicial de
indiferença que atesta o processo histórico de modernização que não torna possível a voz do
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excluído: “O guarda-civil Leocádio, ao passar debaixo da Ponte Preta, viu uma negrinha
chorando” (TREVISAN, 1985, p. 81).
A voz do excluído tem sua trajetória realizada em espaços reduzidos, exposta como
uma fresta, porém intensa nos diminuídos espaços narrativos. A narrativa parece seguir um
conceito que parece estar densamente impregnado na construção histórica brasileira:
A empatia com o vencedor beneficia sempre, portanto, esses
dominadores [...] todos os que até hoje venceram participam do
cortejo triunfal, em que os dominadores de hoje espezinham os corpos
dos que estão prostrados no chão. Os despojos são carregados no
cortejo, como de praxe. Esses despojos são chamados de bens
culturais. (BENJAMIN, 1996, p. 225).

Tal identificação recolhida historicamente faz com o que o narrador traga como
matéria para sua narrativa o recalque de traumas não elaborados enquanto construção de uma
memória. O apagamento dos rastros, o solo que encobre a voz do excluído pelo qual passa o
“cortejo triunfante dos bens culturais”, faz da fantasmagoria uma constante enquanto
pesadelo, lapsos e reaparições de temas obsessivos, o que cria, conforme a narrativa propõe,
espaço para o trânsito dos discursos imobilizados na sua própria inscrição social: os papéis
estão dispostos e obedecem rigidamente ao que Sérgio Buarque de Holanda define como:
“[...] ‘ os movimentos aparentemente reformadores, no Brasil, (que) partiram quase sempre de
cima para baixo” (apud SEGATTO, 2000, p.207).
João do Rio sai às ruas para reconhecer não uma forma social, mas para a punição
daqueles que reconhecem a diferença como norma social. Nesse sentido, a rua não seria um
espaço público, mas espaço para a encenação de uma modernidade que torna o público
projeção individual de um cenário pequeno burguês de encenação de uma forma cultural de
transposição integral da internacionalização. Já Dalton mostra que a saída da rua é o
acolhimento da autoridade: de certa forma, a extensão do público é a reclusão
institucionalizada na proibição de um corpo sem espaço habitável. Daí que a cadeia ou o
isolamento – moral e social - é extensão da rua, no sentido de ser um outro pólo de exploração
e exclusão, porém regularizada formalmente e aceita como norma e conseqüência de uma
modernização que instaura a violência (em forma de fantasmagoria) como fundamento de sua
renovação – da senzala para a cela. A fantasmagoria se dá pela integração social pela
exclusão: o acolhimento é o recolhimento. O que cumpre a sentença benjaminiana de que “A
tradição dos oprimidos nos ensina que o ‘estado de exceção’ em que vivemos é na verdade
regra geral” (BENJAMIN, 1996, p.226).
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Corumbá, MS, novembro 2011, n. 4, p. 195

Percebe-se pela comparação entre as narrativas aqui destacadas a percepção de um


discurso que vê na presença do excluído uma forma de modernização, que se confirma
conservadora a partir da inicial busca do efeito do choque como forma de tratamento e o
posterior anestesiamento do discurso pela burocratização da voz. O silêncio que toma a voz
do oprimido mostra a rigidez cadavérica que estrutura historicamente uma sociedade que “[...]
em nome do pregresso, considerado como uma norma histórica” (BENJAMIN, 1996, p.226),
preserva relações de poder, porém rearticulados na contínua reforma de um eficiente sistema
de exclusão. O espanto do narrador transfere-se da dissimulação estética para uma concreta
burocratização da violência sobre o oprimido. O apagamento da história como forma de
constante interdição ao discurso do Outro da História tem no ideário progressista sua resposta
fundamental. Aquele que posiciona o passado a partir do silêncio do excluído busca paralisar
o tempo presente para a passagem e cortejo dos mortos. Esta pode ser um indicativo presente
na prática narrativa através da literatura: no lugar do eterno renovar da aparência, o salto
revolucionário que desestabiliza as imagens do presente para sua refuncionalização redentora.

REFERÊNCIAS

BENJAMIN, Walter. Charles Baudelaire – um lírico no auge do capitalismo. São Paulo:


Brasiliense, 2000.
BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política. São Paulo: Brasiliense, 1996.
FERNANDES. Florestan. Mudanças sociais no Brasil. São Paulo: Global, 2008.
LANDA. Fabio. Crimes simbólicos, crimes paradigmáticos. IN: HARDMAN. Francisco Foot (org.)
Morte e Progresso. Cultura brasileira como apagamento de rastros. São Paulo: Unesp, 1998.
PINHEIRO. Paulo Sérgio. Autoritarismo e transição. Revista USP. São Paulo: USP, 1991.
RIO. João do. A alma encantadora das ruas. Belo Horizonte: Crisálida, 2007.
SEGATTO. José Antônio. Cidadania de ficção. In: SEGATTO. José Antonio e BAIDAN. Ude (org.).
Sociedade e Literatura no Brasil. São Paulo: Unesp, 2000.
TREVISAN. Dalton. O vampiro de Curitiba. Rio de Janeiro: Record, 1985.
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O QUARTO FECHADO E A MENTE DESNUDA:


DESVENDANDO A NARRATIVA

Cristiane Barbosa de Lira1

RESUMO: Este artigo discute o romance O quarto fechado de Lya Luft através da análise da voz
narrativa. Nossas considerações sobre o trabalho de Luft são baseadas nas contribuições feitas por
Norman Friedman em seu trabalho “O ponto de vista na ficção: o desenvolvimento de um conceito
crítico”.

PALAVRAS-CHAVE: Lya Luft, voz narrativa, O quarto fechado

O quarto fechado and the nude mind: unmasking the narrative

ABSTRACT: This article discuss Lya Luft’s novel O quarto fechado (1984) through the narrative
voice’s analyzes. Our considerations about Luft’s work are based on the contributions made by
Norman Friedman’s article “O ponto de vista na ficção: o desenvolvimento de um conceito critic”.

KEY WORDS: Lya Luft, narrative voice, O quarto fechado

Neste trabalho pretendemos explorar o papel da criação narrativa como estrutura do


romance. De acordo com Norman Friedman, há diversos tipos de narrador, não somente os
convencionais. Assim, é partindo dos apontamentos do teórico que tentaremos encontrar a
fundação da voz narrativa dentro da obra em questão. Procuramos caminhos possíveis para
mostrar que esta se trata de uma voz de onisciência seletiva múltipla, isto é, “o leitor
ostensivamente escuta a ninguém: a estória vem diretamente das mentes dos personagens à
medida que lá deixa suas marcas” (177). Para alcançarmos o nosso objetivo, procuraremos os
fios que engendram a narrativa, apontando como um pensamento vai se costurando ao outro
em uma teia cuja memória é a força motriz. Além disso, tentaremos analisar em que medida
as personagens são fruto da construção do pensamento do outro, ainda que emitam opiniões a
respeito de si mesmas durante o romance. Sendo, por fim, uma construção da mente do leitor,
posto que com a não constância da presença da voz narrativa, é nosso papel ligar os pontos
entre os fios de pensamentos que se destilam durante o enredo.
Além disso, uma vez que temos uma constante oscilação entre a presença e a ausência
do narrador, gostaríamos de explorar o quarto fechado como um espaço corporal, não somente

1
Aluna de mestrado no Departamento de Línguas Românicas da Universidade da Geórgia, Estados Unidos da
América; clira@uga.edu.
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como aquele físico onde Ella se encontra. Uma vez que a história se constitui de
“pensamentos, percepções e sentimentos à medida que eles ocorrem,” (177) desejamos
mostrar que esse espaço pode ser a mente. Logo, todos os personagens estão em seus quartos
fechados, seu universo particular e mental ao qual temos acesso pela via do romance.
Tentaremos, ainda, estabelecer um diálogo, quando possível, com a obra de Franz
Kafka, A metamorfose. Trazemos a personagem principal desta e a sua condição para dialogar
com as personagens e as situações apresentadas em O quarto fechado, sobretudo porque
consideramos que a figura grotesca de Ella (e também a de Gregor Samsa em A metamorfose)
podem ser lidas como a materialização dos nossos porões mentais. Ambos são aquilo que os
outros desejam esconder, uma mácula em um universo de aparências, algo que pode, de
repente, ruir; como as propostas de Freud sobre o inconsciente e seu conteúdo que temos que
reprimir.
Como a nossa intenção é a busca e a captura da voz narrativa no engendramento do
texto, iniciamos, pelo primeiro capítulo. O título deste é “A ilha.” A partir disso já
começamos a fazer algumas importantes inferências sobre o percurso narrativo. Inicialmente,
temos a ideia de isolamento, haja vista que segundo o Dicionário de símbolos, “[a] ilha [é o
lugar] a que se chega apenas depois de uma navegação ou de um vôo, é o símbolo por
excelência de um centro espiritual e, mais precisamente, do centro espiritual primordial”
(501). Assim, logo na abertura do capítulo temos a ideia desta movimentação que se dá rumo
à ilha, pois “[e]le dava os primeiros passos em sua Morte” (13) é a frase que abre o capítulo.
À medida que avançamos com a leitura, que é iniciada por esta voz em terceira pessoa,
vamos descobrindo que este novelo narrativo não vem de uma voz distanciada em sua
onisciência, pelo contrário, o fio monológico é quebrado com a pergunta, “[o] que está
fazendo conosco?” (13). Aqui, temos a inserção da voz narrativa, revelando que o que fora
construído anteriormente é fruto das construções mentais da voz que faz a pergunta. Além
disso, é possível dizermos que a maneira como começa resgata o pensamento da personagem
Renata, isto é, reitera a nossa observação do uso da onisciência seletiva múltipla. Ao mesmo
tempo, porém, logo depois de fazer a sua pergunta, temos, “[m]as calavam-se, procurando
ignorar um ao outro” (13). Aqui, embora pareça uma construção interna aos fatos, vemos que
ainda não há o distanciamento. Parece-nos que este comentário poderia ter sido feito tanto por
Martim quanto por Renata.
Na sequência, fala-se sobre a mulher muito cansada que toca um “teclado de vento” e
depois a respeito do homem que é um bruto e gostaria de esmurrar aquela que “reinava na
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Corumbá, MS, novembro 2011, n. 4, p. 198

casa” (14). Com base nisso, vemos, a partir de toda a leitura do romance, que estes juízos que
são exprimidos pelo narrador são, também, reinforçados na narrativa através dos pensamentos
de Renata e Martim (e das outras personagens), do resgate que nós, leitores, temos destes.
Daí dizer, portanto, que ainda que pareça uma voz em separado, nada mais é que a
recuperação dos ecos dos pensamentos das próprias personagens a respeito dos outros e
também a respeito de si mesmas. Não se trata de um juízo externo, como em alguns
momentos a narrativa parece deslizar para isso. O que ocorre dentro do quarto fechado, em
nosso trabalho entendido, sobretudo, como o espaço mental, só é acessível ao leitor através da
penetração na mente das personagens e no conhecimento das suas vivências, não nos é
trazido, portanto, por uma voz impessoal. Quando muito, se não diretamente através da voz
das personagens, esta figura narrativa que oscila entre a presença e a ausência surge somente
para catalizar os ecos mentais, reunir os fragmentos, e devolvê-los em forma de ponte,
conectando os pensamentos de uma personagem a outra personagem.
Seguindo com a nossa análise, logo após a abertura em que temos acesso ao
pensamento de Renata, temos a transição entre o pensamento dela e o de Martim. Para que
isso ocorra, temos acesso aos seus questionamentos, depois o olhar de quem observa a cena,
como já mencionamos, mas que pode partir, também, de Renata para Martim ou de Martim
para Renata e, na sequência, adentramos a mente de Martim. Em um primeiro momento,
através do externo, uma maneira de compreender isso seria entendermos como o próprio olhar
de Renata capturando-o de relance, “o pai, ao lado dele, esticou as pernas procurando uma
posição melhor” (14). Daí em diante, uma nova pergunta, “[q]uem era sua adversária?,”
questão esta que pode, de fato, ser emitida por uma voz externalizada, mas que também pode
ser da própria personagem em relação a si mesma. Vemos, já desde o princípio da narrativa,
que o trabalho de construção desta se faz através desta ambiguidade, mas sempre visando a
nossa entrada nos pensamentos, desejos e pulsões das personagens.
Como podemos ver, ainda nesta primeira parte, o pensamento volta para Renata e há
uma série de questionamentos sendo construídos. Contudo, entre eles, permanece a sensação
de falência, primeiro por nunca ter conseguido cessar o distanciamento que existe entre ela e
Martim, segundo porque desconhece o que fez com o próprio filho. Logo, há representações
da sua falência no papel de esposa, mas também no papel de mãe. No libelo de seu
pensamento, questões são levantadas, fragmentos são trazidos à tona, a atmosfera que se
criara ali, o velório de Camilo, permite as incursões mentais às personagens.
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Martim também está explorando seus porões mentais, “nunca amei assim outra
mulher” (16). Parece-nos que existe uma espécie de diálogo entre as personagens, ainda que
seja um diálogo silencioso, feito, justamente, do silêncio no plano do real. As cobranças,
frustrações e também a falência amorosa, a sensação de impotência e de desamor, ficam,
assim, reservadas à exploração do leitor. Este é que avança na narrativa, tal qual a chegada à
ilha, posto que esta “é um mundo em miniatura, uma imagem do cosmo completa e perfeita,”
(Chevalier e Gheerbrant 501) ou seja, adentramos a mente das personagens, através da sua
própria abertura na exibição de seus pensamentos. Somos nós os responsáveis, ao lado deste
narrador oscilante entre a presença e a ausência, por tecermos os fios que conectam a trama e
vão desembocar, do micro para o macro, na visão ampla desta família aprisionada em seu
quarto fechado.
A questão da presença narrativa, também na análise da obra de Lya Luft pode ser
considerada dado interessante, haja vista que segundo apontamentos de Donizete Batista em
“Espaço e identidade em Lya Luft,” os romances de Luft anteriores a O quarto fechado são
todos narrados em primeira pessoa. Portanto, sendo este o primeiro em que “utiliza um
narrador em terceira pessoa, mas mesmo assim, ainda promove, com extrema crueldade, uma
devassa na intimidade dos personagens desse romance” (9). No entanto, se considerarmos a
fundação da nossa análise, vemos que este não pode ser redutivamente considerado um
narrador de terceira pessoa, trata-se, no nosso ponto de vista, como já observamos, de um voz
narrativa de onisciência seletiva múltipla.
Assim, se pensarmos na constituição da obra de Luft, sempre de acordo com os
apontamentos de Batista, vemos que não há uma verdadeira mudança de foco narrativo.
Existe, porém, quando muito, um formato mais informal de adquirir os pensamentos das
personagens sem a ciência destas se prostrarem per se em análise. Retomando Friedman, “[a]
aparência dos personagens, o que eles fazem e dizem, o cenário – todos os materiais da
estória, portanto – podem ser transmitidos ao leitor unicamente através da mente de alguém
presente” (177). Debruçando-nos novamente em O quarto fechado, o viés de como aquela
sala está dividida, das pessoas que entram e saem do velório, a névoa que insiste em invadir a
casa, tudo que ali está sendo posto vem da mente das próprias personagens, ora desnuda e
declarada, normalmente através do uso explícito de perguntas, ora de maneira ambígua, como
já pontuamos anteriormente.
Além disso, uma vez que a mente é o espaço privilegiado ao qual temos acesso, o
quarto fechado que entramos, observamos a importância do uso da metáfora do quarto.
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Batista, valendo-se dos apontamentos de Vanessa Kukul, informa que “tanto no âmbito do
território privado como no existencial, ‘o quarto é um dos espaços mais introspectivos que
existem,’” (63) daí a importância deste lugar para apontamento da reserva física de onde
armazenamos aquilo que nós é mais próprio e pessoal, a mente. Para iluminarmos a questão
do espaço, é possível trazermos as considerações de Lins na obra Lima Barreto e o espaço
romanesco, centrando-nos, porém, nos apontamentos dos capítulos IV, V e VI a saber,
“Espaço romanesco: conceito e possibilidades,” “Espaço romanesco e ambientação” e,
finalmente, “Espaço romanesco e suas funções.” Iniciamos com a dicotomia apontada por
Nelly Novaes Coelho citada por Lins.
Conforme Coelho, o ambiente natural equivale à paisagem, natureza livre, já o
ambiente social relaciona-se à natureza modificada pelo homem como, por exemplo, a
construção de uma casa, castelo, prédio, tenda. Entretanto, Lins amplia a questão do ambiente
social aplicando a este, também, os efeitos de ordem social, econômica e até mesmo histórica.
Dessa maneira, é através da oposição entre o ambiente natural, que pode, em O quarto
fechado, ser representado pela fazenda, uma vez que é o espaço onde o animal, o sentido
primevo dos homens é realçado, com o ambiente social, que aqui pode ser representado pela
casa de Mamãe, ampliando-se, porém, a sua atmosfera à mente, que vamos ter acesso ao
reverso da medalha das personagens. Do ponto de vista físico, ambos os espaços são
marcados pela morte.
No primeiro, temos a morte de Camilo que se locomove do ambiente da casa para,
possivelmente, suicidar-se no ambiente natural. Dessa maneira, se ampliarmos este
movimento para uma leitura alegórica, é possível dizer que este se liberta das amarras do
quarto, do inconsciente e permite que tudo o que estava dentro venha à tona. Este processo
ocorre, sobretudo, através dos humores humanos que ele libera na hora da morte:

[c]avalgando o demônio, o cheiro do próprio sêmen misturado ao de


suor e emanações brutais, ele urrara de prazer e medo, ódio e vitória.
Expelira fezes e urina, e despencara enfim naquele abraço onde seria
unicamente Camilo: dissolvido, liberado, a um tempo barco,
passageiro e profundezas”. (Luft, 97).

Aqui, as secreções que emanam do corpo de Camilo simulam a libertação ao


simulacro sexual no qual este estava atado à condição dúbia de talvez amar a própria irmã, ao
passo que também deseja sê-la ou se realiza através do ato sexual que esta protagonizou com
aquele que Camilo amava. Desta forma, o espaço natural propicia o desvelo das paixões, a
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natureza humana que pode aflorar dos porões interiores, lembremos, ainda, os encontros
furtivos entre Martim e Ella, um deles, aliás, que, antes da chegada de Martim, resultou na
“queda fatal” de Ella, condenando-a àquela vida vegetativa.
Em contra partida, mas em certa medida complementar, haja vista que a casa está
maculada pela presença bestial de Ella em seu quarto fechado, temos o espaço da casa. Este,
considerado ambiente social, é o lugar onde as aparências precisam ser mantidas. Entretanto,
esta condição não o impede, também, de ser cenário para a morte. Na casa ocorre a morte
(assassinato?) daquele que é nomeado na obra como anjo Rafael, “Clara já saía novamente do
quarto quando ouviu um baque surdo, mais outro e outro, alguma coisa rolando nos degraus.
Uma pancada final, um gemido fraquinho, como um miado” (Luft 91). Interessante é
observarmos que as memórias do anjo Rafael são durante a narrativa, recuperadas, sobretudo,
pela mente de Renata na tentativa de reconstruir o percurso frustrado do ato materno. As
outras personagens, na sua recuperação de seus mundos interiores, não se estendem muito à
condição do anjo. Notamos, ainda, que uma vez que ele é recuperado como anjo, vê-se
também a condenação da casa, posto que este ambiente é aquele onde ocorrera a morte de um
enviado divino, alegoria discreta da falência divina no manejar destas vidas também.
Continuando com a questão da construção narrativa, vemos que através do processo da
onisciência seletiva múltipla, nós temos acesso à história através da construção mental de
todas as personagens. No romance de Luft, como já apontamos, inicialmente, adentramos a
mente de Renata, depois incursinamos pela mente de Martim, ao passo que retornamos à
mente de Renata e através das construções que esta estabelece, conectamo-nos com a mente
do morto, “Camilo estava apaixonado [ . . . ] ‘é meu para sempre agora’ [ . . . ] Toda a beleza,
a ternura, o amor iam-se misturando numa nuvem, imprecisa noção de felicidade possível”
(22). Essa confissão é possível, através do relato único da mãe. Sem a reconstrução de toda a
atividade que envolve Camilo, não seria possível adentrarmos este universo, não fosse a
utilização do recurso do discurso fixo entre aspas, recuperando as memórias da própria
personagem, ainda que os verbos que introduzam estes discursos em via direta não sejam
enfáticos, como “imagina,” “pensava,” “sabia,” revelando que embora diálogos, são
monólogos mentais.
Além das personagens supracitadas, ainda temos, através do mesmo recurso, acesso à
mente de outras personagens. Na segunda parte do capítulo “A ilha,” adentramos o universo
de Carolina, “[e]ra uma moça? Um rapaz?”. Ainda que a sequência impersonalize o discurso,
“[o] sexo não se definia na pessoa deitada na cama,” (28) dando elevações de alguém que
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observa a pessoa deitada na cama, compreendemos ser completamente possível que estas
observações sejam construções feitas dos ecos emitidos pelos juízos das outras personagens,
haja vista que o que está sendo dito não é algo que entre em dissonância com o que fora
pregrado até o momento a respeito de Carolina. Além disso, uma vez que a atmosfera é
construída, o acesso aos pensamentos da personagem se torna evidente. Alguns exemplos
disso são os momentos em que a construção narrativa declara “me deram uma injeção” ou, até
mesmo, quando a personagem fala com esta ausência, “_Não vá embora, Camilo” (29),
fazendo uma ligação entre o seu processo mental e o de outra personagem.
Entre os meandros que conectam os pensamentos das personagens umas as outras
nesta densa atmosfera, há momentos em que a voz coletiva, ou um sentimento que perpassa a
todos, é capturado. Algumas ilustrações possíveis deste ponto são recuperadas pelo soar da
campainha, nomeada como “instrumento de tortura” de Mamãe. Além desta, temos aquela em
que Mamãe e Carolina estão na escada e a voz ambígua do narrador, seriam os pensamentos
de Renata ou de Martim?, atesta “[u]ma velha gorda e bizarra, uma adolescente magra, de ar
doente. Nos calcanhares delas o bafo da repugnante goela que acossava atrás e aguardava no
fim do caminho. ‘Todos iremos para lá um dia.’ Todos” (63). Logo, vemos que o temor da
morte e também certa atração por este desconhecido incompreensível é assimilado através do
processo de recuperação de que todos os seres presentes passarão pelo mesmo processo, trata-
se de algo que os irmana em certa medida, uma vez que para a morte não existe nenhum tipo
de remédio, é um mal irreparável.
Ainda com relação à voz narrativa, ainda temos que discutir o momento em que a
mente de Mamãe e Clara são as mentes expostas em evidência na narração. Embora Mamãe
seja recuperada durante muitos momentos da tessitura narrativa, observamos que esta é
composta das construções dos outros, sobretudo os sentimentos de admiração por parte de
Martim e os de repulsa/adoração por parte de Renata. Durante boa parte da narrativa, tudo o
que temos dessa personagem nos é trazido pelas mentes de ambos, daí dizer que Mamãe é,
portanto, uma construção.
O acesso à mente dela é retardado na narrativa e só vamos penetrar este espaço, uma
vez que Mamãe é como uma entidade que circunda aquele espaço e é recuperada pelas outras
personagens, por volta da terceira parte. O acesso a este processo já começa com um antítese
grotesca, “[b]ela merda,” (98) em forma de discurso direto que é dirigido em forma
monológica, uma vez que Mamãe fala consigo mesma. A partir daí o capítulo irá recuperar o
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itinerário do amor entre Ella e Martim, o qual já fora fornecido previamente pela mente de
Martim, mas aqui assume uma nova perspectiva, isto é, o olhar de Mamãe.
Além disso, a imagem um tanto quanto mítica e ambígua que é construída dela por
Renata e Martim da sua devoção e amor incondicional por todos, “Mamãe é de uma grandeza
comovente” (52) ou “Mamãe sempre queria compreender e perdoar” (72), mostra as ruínas da
sua fundação. Assim, acaba por pender totalmente para a ridicularização e a aproximação com
o universo caricatural e grotesco, haja vista que o adentramento do leitor ao seu universo é,
justamente, quando esta começa a se desnudar. Assim, este pode ser lido de maneira alegórica
também. Uma vez que Mamãe é capturada como esta mulher capaz de se desdobrar e fazer
tudo pelos outros, é ao “tirar a pintura com algodão passado e creme. Já [de cílios
desgrudados que vemos] os olhos nus [que] eram tristes entre dobras de pele murcha” (98)
que as suas verdades íntimas começam a aflorar. Portanto, uma vez que ela está já quase sem
qualquer retoque superficial, “Mamãe gemeu; deixara um resto de pintura no rosto, a cara de
um velho palhaço infeliz” emerge à superfície mental aquilo que ela tentara repelir e que, uma
vez desprovida da sua artificialidade, não é possível esconder, “[s]e ao menos Ella tivesse ido
em lugar de Camilo, pensou sem remorso” (99). Por conseguinte, acessamos seus
pensamentos secretos, penetramos seu porão mental e vemos a verdadeira face de Mamãe: o
palhaço infeliz que precisa entreter em um processo de punição infinita, aquele ser que se
transformara em animal, a filha que nunca amara.
Além de Mamãe, ainda temos o percurso narrativo de onisciência seletiva múltipla,
capturando os pensamentos de Clara. É através deste que temos acesso, também, ao indizível,
àquilo que os convivas desta não conhecem, isto é, sua breve e ambígua relação com o Padre.
Inicialmente, a visão que temos de Clara é aquela que chega até nós através das outras
personagens. Renata, por exemplo, ao trazer a construção familiar até nós, afirma sobre Clara,
“a irmã mais moça: bonita, solteira, cabelo branco em torno do rosto liso, um pouco fraca dos
nervos por algum desgosto de amor na juventude” (47). Além disso, ainda pelo pensamento
de Renata, temos a cena em que esta chega à casa de Mamãe logo depois de ter sido
comunicada sobre a morte de Camilo e sua visão de Clara a recrimina, “Clara esperando na
porta da casa, aparentemente calma, o rosto de boneca maquilado. ‘Ela nunca se descompõe’”
(66). Assim, partindo desta teia construída pelas outras personagens, vamos capturando uma
vaga ideia a respeito dela e do seu papel na narrativa. Entretanto, é somente ao termos acesso
à sua voz que vamos descobrir os meandros da sua vida, adentrando o seu quarto fechado.
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A mente de Clara se desnuda pouco a pouco para nós ao final da segunda parte,
iniciando pelo processo em que esta escreve no “vidro embaciado: Clara. Por baixo, um
grande P elaborado” (75). Aqui, ainda como alguém que observa a cena em sua externalidade,
a voz narrativa prepara o adentramento à mente de Clara. Sua iniciação dá-se no rasgo do
discurso direto em forma monológica que se reproduz durante toda a obra, “‘Ele vai voltar’,
repetia. ‘Vai voltar’” (77). A partir daqui temos a permissão para ver os fatos a partir do ponto
de vista de Clara, da sua memória dolorida dos fatos. Clara reconstrói o amor que sentira pelo
Padre, a entrega de ambos e, finalmente, sua decepção ao saber que aquele que era objeto de
seu amor, não a desejava para possuir, senão para ver: “Ele precisava ver, só isso, ver” (84).
Aqui, partindo do percurso narrativo, é possível fazermos uma leitura freudiana a respeito da
função escópica. De acordo com Freud em Os instintos e as suas vicissitudes,

o objeto [Objekt] de um instinto é a coisa em relação à qual ou


através da qual o instinto é capaz de atingir sua finalidade. É o
que há de mais variável num instinto e, originalmente, não está
ligado a ele, só lhe sendo destinado por ser peculiarmente
adequado a tornar possível a satisfação. (143).

Logo, quando o padre pede somente para ver aquele que é símbolo do nascimento universal, o
sexo de Clara, haja vista que o Padre diz que “seria quase uma visão, uma visão mística,”
(Luft 84) temos a ideia exposta por Freud reforçada. Somente o olhar implica a satisfação.
Ainda de acordo com os apontamentos do teórico, o olhar adquire a função de gozo, uma vez
que é a realização da pulsão escopofílica, por ser posto no lugar de outro objeto. Logo, no
caso específico que estamos examinando, é possível dizer que a visão do sexo de Clara, teria,
para o Padre, a mesma pulsão sexual que possui-lo ou a mesma natureza sexual.
Uma vez que apresentamos o percurso narrativo de quase todas as personagens, resta-
nos, ainda, debruçarmo-nos na personagem que oscila, mesmo no universo narrativo, entre o
escopo de ser personagem ou somente uma menção, quase uma memória coletiva. Se Ella não
é assim, na nossa opinião, é simplesmente pelo fato de poder tocar a campainha e, tal qual
despertar as personagens de seus universos particulares, despertar, também, a nós leitores.
Essa personagem, tanto quanto as outras, é construída, inicialmente, pelo processo mental dos
presentes naquele ato cênico, “inaugural” de Camilo.
Como vemos com a narrativa, a primeira aparição de Ella no romance, dá-se através
do adentramento de um pensamento coletivo, “_O que será de Carolina?” ao que a voz
narrativa nos informa, “Todos indagavam-se, sussurravam na sala, diziam baixo na cozinha,
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Revista do Curso de Letras do Câmpus do Pantanal – UFMS,
Corumbá, MS, novembro 2011, n. 4, p. 205

no jardim. ‘O que será de Carolina?’ A pergunta pairava no ar, arfava.” Assim, trata-se de
algo que era possível a Renata pensar, mas também a Martim, como também a Mamãe ou
como a Clara. Daí, por consequência, a ideia de totalidade reproduzida pela utilização do
pronome indefinido, “Todos”. Interessa-nos, porém, que a partir desta indagação e da
utilização do verbo “arfava,” que está relacionado intimamente a ideia de “respiração forçada”
(Aurélio), tenhamos, “[t]alvez a moradora do quarto no fim do corredor, no andar de cima,
percebesse que algo mudara na casa e no mundo; porque sua campainha tocara várias vezes
naquela noite” (Luft 23). Logo, embora possamos entender a pergunta como algo que pulsa
em todos os presentes, também é possível pensarmos como sendo o próprio questionamento
de Ella. Ela, a personagem, assume a sua voz através do uso daquela campainha, participando
da exposição dos porões daquelas personagens, sendo ela, porém, a própria personificação do
porão, uma vez que é um ser que os outros repelem e fica aprisionada ao seu universo dentro
daquele quarto fechado.
Para além desta nossa leitura da presença de Ella no romance, temos as considerações
de Maria Osana Costa em A mulher, o lúdico e o grotesco em Lya Luft. Segundo a autora,

“Ella, a personagem de ‘nome ambíguo, profético,’ revela-se


como ‘o quarto fechado da gestação, da transformação: o quarto
onde jazia o cadáver é finalmente uma matriz de onde surge um
novo ser [ . . . ] O quarto fechado é o lugar da escritura
feminina, onde o desejo reprimido vai sendo transformado em
linguagem. ‘O quarto já não é um cubículo, mas um receptáculo
da feminidade’”. (101-102).

Se tomarmos isso como uma maneira de olhar, temos o grotesco como síntese desta
presença, ou seja, Ella personifica todos os desejos reprimidos, os sentimentos ocultos, dentre
eles, em processo de extensão, o próprio ato da prática da escritura por parte de Luft. Logo, o
ato de escrever assume uma característica catártica e de transmutação, uma vez que é através
dele que é possível transformar a matéria estranha em algo reconhecível.
Partindo deste ponto, aliás, sobre a questão do estranho e tomando as observações de
Freud em seu artigo, “O estranho” é que vemos as relações possíveis entre Kafka e Luft,
sobretudo, pela presença de Ella e Gregor Samsa. De acordo com Freud, “o tema do
‘estranho’ [ . . . ] relaciona-se indubitavelmente com o que é assustador – com o que provoca
medo e horror.” Analisando o caso de ambas as personagens, elas passam do universo
familiar ao universo do estranho. Segundo Freud, embora ele vá desenvolver as suas ideias
em contraponto, mas antes de fazê-lo, estabelece, “o estranho é aquela categoria do assustador
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Revista do Curso de Letras do Câmpus do Pantanal – UFMS,
Corumbá, MS, novembro 2011, n. 4, p. 206

que remete ao que é conhecido, de velho, e há muito familiar.” Assim, temos Gregor Samsa
era um filho exemplar e muito trabalhador, porém, “numa manhã, ao despertar de sonhos
inquietantes [ . . . ] deu por si na cama transformado num gigantesco inseto” (Kafka). Logo,
ocorreu um trânsito, ele deixa de ser o filho exemplar e adorado, aquele que traz o pão para
casa, para se tornar algo abominável, completamente estranho e que causa horror e repulsa.
Chegando, somente, a ser tolerado, “pelo dever familiar que impunha que esquecessem o
desgosto e tudo suportassem com paciência” (Kafka). Processo semelhante ocorre com Ella
em O quarto fechado, “‘[s]erá que ela sabe que sempre atendo porque tenho medo? Nunca me
queixo, não reclamo: medo’” (Luft 101). Essas personagens não são reconhecidas pelos laços
do passado ou pelo que têm de semelhantes àqueles que a circundam, senão pelo medo e pelo
terror que impõem aos presentes, isto é, são o “estranho” proposto por Freud personificado.
Aliás, julgamos importante o fato de que uma vez que são o “estranho,” ainda que no
caso de Gregor Samsa ele tenha sido metamorfoseado em um inseto, no caso de Ella, esta
também seja descrita como um inseto: “Martim tremeu ao zumbido do inseto gigante cujas
instalações permeavam a casa toda” (45). À primeira vista, a ideia que temos da construção
narrativa é o desejo de criar a repulsa, trazer o grotesco como forma de afastamento.
Entretanto, a escolha do inseto parece ser bastante significativa, haja vista que de acordo com
o Dicionário de Símbolos, os “insetos voadores são considerados frequentamente como as
almas dos mortos que visitam a terra” (507). Ainda que não exista referência ao fato de ser
voador ou não, no caso de O quarto fechado, temos a ideia de gigantesco, isto é, remete-nos à
impossibilidade do voo. No caso da Metamorfose de Kafka, sabemos que é um inseto que
rasteja, daí, talvez, se ampliarmos a leitura do dicionário, termos a noção de que talvez, por
estarem “pregados” à terra, são seres apegados a aspectos materiais. No caso de Ella, o sexo, e
o fato do desejo pelo “quase irmão” é que a leva ao seu estado vegetativo. Já no caso de
Gregor Samsa, existe a questão da avareza em certa medida, pois ele não para de trabalhar e,
de repente, contra a sua vontade, seu corpo se metamorfoseia, fazendo com que ele tenha que
parar.
Buscando ainda relações entre essas duas personagens, Gregor Samsa e Ella, podemos
falar a respeito da aparição pública de ambas quase ao final das obras. No caso de Gregor
Samsa, vemos que a irmã dele estava tocando música e a família tinha visita, mas, atraído
pelo som, ele decide sair do seu quarto fechado, “fora-se o tempo em que se orgulhava de ser
discreto” (Kafka). Este processo de saída do quarto pode ser compreendido em várias esferas,
haja vista, por exemplo, a exposição deste porão social que a família desejava esconder. Para
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os parentes de Gregor, ele era um bicho e deveria ser mantido fora do convívio social. Porém,
tal e qual as aparições do inconsciente humano, ele decide sair e transitar pelo universo
proibido, humanizando-se, inclusive, neste processo, “poderia ser realmente um animal,
quando a música tinha sobre si tal efeito?” (Kafka). Seu surgimento, porém, desperta o horror
daquela que ele pensava ser a sua única aliada, sua irmã. Ao final, resta-lhe a morte e o
retorno daquele círculo fechado, à família, ao seu universo de aparências que por ser tão
tênue, pode ruir a qualquer momento, resultando no total apagamento das evidências, “[h]oje
à noite vamos despedi-la,” (Kafka) mas reconhecido da impossibilidade de interromper o
fluxo do inconsciente, resultando somente no processo das tentativas, até que este volte,
novamente, à tona.
No caso específico de O quarto fechado, este processo ocorre com a risada bestial ao
final do romance. Dentro daquela atmosfera extremamente pesada e compenetrada pela
grande anfitriã da noite, A Morte, o grotesco se rompe e invade o espaço, “Ella estava rindo:
sacudia o corpanzil de tanto rir, premia as pálpebras, virava a cabeça freneticamente no
travesseiro.” Ella, através da sua risada deixa de ser apenas uma presença recuperada pela
mente das outras personagens e se torna voz. Esta é recuperada pela narrativa como sendo “o
coração doente da casa [que] explodia” (Luft 110). Com isso, é como se todos as personagens
se irmanassem naquele rompimento, naquela explosão e ainda que não seja como no caso de
Gregor, isto é, através da morte, todas as repressões são trazidas ao espaço externo e todas as
pulsões escondidas e reprimidas são banidas de seus secretos espaços e os “novelos de poeira
e teias longamente tecidas agitaram-se” (110). Rompe-se, assim, qualquer possibilidade de
retorno à frágil e falsa estabilidade que se impusera até aqui, mostrando a sua verdadeira face.
Para concluirmos, vemos que todas as histórias que exploramos em nosso trabalho
revelam que no terreno destinado à mente nem sempre existe a possibilidade de mantermos o
quarto fechado. Nas edificações onde são construídas estas possibilidades sempre existe a
fragilidade de que aquilo que vem sendo escondido e enterrado nos nossos cemitérios mentais
retorne, de repente, à vida.

REFERÊNCIAS

BATISTA, Donizete A. Espaço e identidade em Lya Luft: Exílio. Tese de mestrado


apresentada à UFPR (2007): 57-69.
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Revista do Curso de Letras do Câmpus do Pantanal – UFMS,
Corumbá, MS, novembro 2011, n. 4, p. 208

CHEVALIER, Jean, Gheerbrant, Alain. Dicionário de Símbolos. Rio de Janeiro: José


Olympio, 2007.
COSTA, Maria Osana de Medeiros. A mulher, o lúdico e o grotesco em Lya Luft.” São Paulo:
Annablume, 1996.
FREUD, S. “Os instintos e suas vicissitudes.” Obras completas. 1915.
_______. “O estranho.” Obras completas. 1919.
FRIEDMAN, Norman. “O ponto de vista na ficção: o desenvolvimento de um conceito
crítico.” Revista USP, nº53, março/abril de 2002.
KAFKA, Franz. A metamorfose. Companhia das Letras: São Paulo, 1997.
LINS, Osman. Lima Barreto e o espaço romanesco. São Paulo: Ática, 1976. 63-110.
LUFT, Lya. O quarto fechado. Rio de Janeiro: Record, 1984.
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Revista do Curso de Letras do Câmpus do Pantanal – UFMS,
Corumbá, MS, novembro 2011, n. 4, p. 209

A VARIAÇÃO LINGUÍSTICA NOS MANUAIS


DIDÁTICOS DE PORTUGUÊS

Jeferson Carlos Cordeiro de Brito1

Resumo: Durante muito tempo a variação lingüística esteve ausente na proposta pedagógica de ensino
de língua materna. Entretanto, com a democratização do ensino surgiu a necessidade de que esse
fenômeno lingüístico fosse tema de discussões no meio educacional. Dessa forma, o Manual Didático
de Português (MDP), como instrumento auxiliar a prática docente, é orientado a tratar da língua em
seu uso efetivo. Neste sentido, o presente trabalho possui como objetivo principal a realização de uma
análise descritiva, para observar a abordagem que o MDP confere à variação lingüística. Verificou-se
que os manuais apresentam significativo avanço quando garantem espaço a essa inovadora temática e
primam pelo reconhecimento e respeito às diferentes formas de fala e escrita distintas da considerada
como padrão.

Palavras-chave: Variação Lingüística. Ensino de língua materna. Manual Didático de Português.


.
THE LINGUISTIC VARIATION IN PORTUGUESE’S DIDACTIC MANUALS

Abstract: During many years, linguistic variation was absent in the educational proposal of teaching
mother tongue. However, with expansion of teaching arised the necessity that this linguistic
phenomenon was theme of discussion of teaching and learning. So the manual teaching methodology
of Portuguese, like auxiliary instrument of teaching, is direct to use the mother tongue actually. And
then, this essay has a main goal to realize a descriptive analysis, observing how way the manual
didactic of Portuguese check the linguistic variation. We verify that manuals present an important
advance when give a space to new thematic, it is free of prejudice about language, it respects all of
differences about speaking and writing.

Keywords: Linguistic variation. Tongue mother. Manual ditactic of Portuguese

INTRODUÇÃO

As conquistas alcançadas pelos membros das sociedades permitiram que a educação


escolar passasse a ser um direito de todos. Anteriormente, somente os cidadãos pertencentes
às classes mais privilegiadas, financeiramente, desfrutavam de tal serviço. O processo de
democratização do ensino acabou por gerar um confronto entre o repertório linguístico dos
que já frequentavam as escolas e o apresentado pelos novos membros. Dessa forma, o ensino
de língua materna primava pela validação da norma culta em detrimento das variedades

1
Especialista em Língua, Linguística e Literatura pela FIP — Faculdades Integradas de Patos, na Paraíba; e-
mail: jefersoncarlos23@bol.com.br.
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Corumbá, MS, novembro 2011, n. 4, p. 210

trazidas pela nova clientela, tentando imprimir nesta a variedade padrão como enfatiza Bagno
(2007, p. 30).
Por outro lado, os avanços das pesquisas em estudos da linguagem permitiram que a
variação linguística não ficasse mais à margem do ensino de língua materna. Essa perspectiva
passou a integrar as propostas pedagógicas do ensino de língua, na tentativa de validar o
pensamento de que, no ensino-aprendizagem de diferentes maneiras de fala e escrita, o que se
deve buscar não é a introdução, quase que mecânica, de regras e mais regras gramaticais.
Pelo contrário, parece mais justo permitir que os educandos, levando em consideração as
características e condições do contexto de produção, possam escolher a forma de fala ou
escrita que considerarem mais adequada.
Dessa maneira, configura-se como imprescindível a realização de uma análise em
torno do material mais utilizado no processo de ensino de língua materna: os MDP’s1. Esse
material consolidou-se como um dos principais instrumentos auxiliares dos educadores no
desenvolvimento de sua prática. Dessa forma, observar e descrever como os manuais
abordam o fenômeno da variação linguística consiste no principal objetivo dessa
investigação.
Para tanto, considera-se de suma importância a Teoria da Variação, segundo a qual as
línguas são frutos das relações estabelecidas entre seus usuários através da linguagem, seja
em sua modalidade oral ou escrita. Sobre essa perspectiva Labov apud Hora (2004, p. 9)
esclarece que “A Teoria da Variação enfatiza a variabilidade e concebe a língua como
instrumento de comunicação usado por falantes da comunidade, num sistema de associações
comumente aceito entre formas arbitrárias e seus significados”.
Nesse sentido, é relevante reconhecer a manifestação do fenômeno da variação
linguística na Língua Portuguesa, mais precisamente no português brasileiro. As diferenças
nas falas dos brasileiros podem ser constatadas sob a ótica de alguns fatores como idade,
classe social, nível de escolarização ou localização geográfica. Tais peculiaridades não
permitem a consolidação dessa língua como uniforme ou homogênea. O que corrobora com o
pensamento de Possenti (2002, p. 23) ao enfatizar que todas as línguas variam.
Na verdade o ensino de língua portuguesa ainda considera como prioritário o estudo
de regras gramaticais. Não menos importante é o fato de que os estudos linguísticos já têm
espaço no ensino de língua materna. Tal postura deve-se ao fato de o próprio estado brasileiro

1
Leia-se Manuais Didáticos de Português.
carandá
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Corumbá, MS, novembro 2011, n. 4, p. 211

elucidar o papel primordial da escola no combate ao preconceito linguístico. Dessa feita o


que busca é o respeito às variedades linguísticas.

VARIAÇÃO LINGUÍSTICA E ENSINO DE LÍNGUA MATERNA

Por ser uma das características inerentes aos seres humanos, a linguagem configura-se
desde muito tempo, mais precisamente com os gregos, como dado relevante às reflexões em
torno das línguas. Essas são consideradas instrumentos indispensáveis às relações
estabelecidas entre os participantes das mais diversas sociedades.
A ciência linguística surge com o objetivo principal de descrever as línguas, livre de
qualquer forma de preconceito, visto que, como as demais ciências, procura não desenvolver
especulações em torno do seu objeto de estudo, mas descrevê-lo. Nesse caso, visa tão
somente, uma análise descritiva acerca das línguas e não como essas poderiam vir a ser.
Reconhecer que uma língua apresenta variedades é validar seu caráter heterogêneo
motivado não só por fatores internos à língua, mas também pelos externos que correspondem
a fatores sociais através dos quais o reconhecimento das variedades linguísticas torna-se
menos complicado. Esses fatores procuram estabelecer parâmetros segundo os quais a língua
varia conforme a posição geográfica, status socioeconômico, grau de escolarização, idade,
sexo ou profissão, característica de cada falante. Portanto não existem variedades melhores
ou piores do que outras, pois todas se equivalem.

Em toda comunidade de fala são freqüentes as formas lingüísticas em variação. Como


referimos anteriormente, a essas formas em variação dá-se o nome de “variantes”. Variantes
lingüísticas, são, portanto, diversas maneiras de se dizer a mesma coisa em um mesmo
contexto, e com o mesmo valor de verdade (Tarallo, 1997, p. 8).

É bem verdade que, ao lado da ideia de língua heterogênea ainda persistem os


defensores da instituição de uma língua homogênea, da qual todos devem ser escravos. O
problema não está no fato da existência ou não de um padrão na língua, mas como as pessoas
lidam com esse universo paralelo estabelecido entre língua culta e variação. O que se percebe
é a validação de atitudes discriminatórias, conforme as quais quem não segue a norma-culta
da língua é posto à margem da sociedade gerando, assim, o que se convencionou em se
chamar de preconceito linguístico, fato reconhecido pelo estado brasileiro.
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A Língua Portuguesa, no Brasil, possui muitas variedades dialetais. Identificam-se


geográfica e socialmente as pessoas pela forma como falam. Mas há muitos preconceitos
decorrentes do valor social relativo que é atribuído aos diferentes modos de falar: é muito
comum considerar as variedades lingüísticas de menos prestigio como inferiores ou erradas
(Brasil, 1998, p.27).

Cabe destacar também o preconceito provocado pelas diferenças nos falares de cada
região, à medida que um estado federativo quer se sobressair ao outro, linguisticamente
falando. Fato que acaba transformando a variação linguística em um fenômeno gerador de
disputas sobre quem melhor fala português.
Essa realidade vem se modificando, à medida que inovadoras posturas pedagógicas
defendem o reconhecimento e estudo em torno das variedades presentes no português
brasileiro. Contudo, essas teorias ainda penetram de forma tímida carecendo, também, de
pesquisas analíticas sobre como as novas metodologias fundamentadas na sociolinguística
estão sendo desenvolvidas.

A sociolingüística acentuou ainda mais a inadequação das gramáticas normativas


tradicionais, que sempre tratam da língua como se ela fosse uma coisa só, um bloco
compacto e uniforme, imóvel e imutável. [...] Esses livros não exemplificam as variedades
de língua portuguesa com que estão trabalhando, e tentam impor suas explicações e suas
regras para todos as muitas e muitas variedades da língua (Bagno, 2001, p. 43).

Comprovada a ineficiência de um modelo educacional de ensino de Língua


Portuguesa que priorizava a exposição de regras gramaticais, passou-se a buscar novas
formas na constituição dos conteúdos programáticos a serem trabalhados nessa disciplina em
escolas de ensino fundamental e médio. Na verdade, durante décadas perdurou a ideia de que,
para dominar uma língua, seria necessário aprender regras gramaticais quase que de maneira
técnica. Contrária a essa perspectiva, surge à ideia, segundo Possenti (2002, p. 54) de que o
usuário de uma língua deve compreender que, conhecer uma língua e conhecer sua gramática
são fatores distintos.
A partir desse momento, o que se recomenda é que o ensino de Língua Portuguesa
gire em torno do texto, com o objetivo de desenvolver competências linguísticas, textuais e
comunicativas nos educandos, para que os mesmos convivam de forma mais inclusiva no
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mundo letrado. Não só para aceitá-lo, mas também para questioná-lo e mudá-lo estando
conscientes das variedades linguísticas presentes em sua língua materna.

Estuda-se o texto, como unidade maior, acompanhado de seu contexto extralingüístico


(locutores, situação, local, tempo, intenções, crenças, valores e outros aspectos) e de itens
antes não observados (critérios de textualidade, tipologia textual, novas regras gramaticais e
outros). Assim, ler é compreender (dar um sentido, entre vários possíveis) e escrever é
possibilitar ao leitor, através de pistas lingüísticas, a atribuição de sentido (Bezerra, 2001, p.
31).

É preciso que as escolas adotem uma postura de validação dos hábitos linguísticos
trazidos pelos educandos, priorizando um estudo reflexivo em torno das variedades
constituídas por fatores aqui já expostos. Com isso, o educando compreenderá que a sua
maneira de falar ou escrever é apenas diferente das outras e não inferior, podendo, a partir
daí, estar aberto à conscientização de que existe uma norma padrão da língua, tanto na sua
forma escrita quanto oral, a qual deve ser utilizada em determinadas situações comunicativas
que exigem o uso desta variante.

Ver considerado na escola seu modo próprio de falar, ser sensibilizado para a aceitação da
variedade lingüística que flui do outro, saber escolher a variedade adequada a cada situação
– estes são os ideais da formação da lingüística do cidadão numa sociedade democrática.
[...] A escola é o primeiro contacto do cidadão com o Estado, e seria bom que ele não se
assemelhasse a um “bicho estranho”, a um lugar onde se cuida de coisas fora da realidade
cotidiana. Com o tempo o aluno entenderá que para cada situação se requer uma variedade
lingüística, e será assim iniciado no padrão culto, caso já não o tenha trazido de casa
(Castilho, 2000, p. 21).

Nesse sentido, acredita-se que não há melhor material didático para que os estudos
linguísticos possam ser introduzidos em sala de aula do que os MDP´s que ao longo dos anos
vêm se consolidando como instrumento fundamental no processo de ensino-aprendizagem.
Entretanto, o que se observou durante algum tempo foi uma reclamação dos
educadores em torno do fato de que os textos, da maioria dos MDP’s, ainda configuravam-se
distantes da realidade dos educandos, como coloca Caporalini (2003, p. 99) ao afirmar que
“os textos apresentam apenas uma face da realidade, a qual é pouco representativa para a
maioria dos alunos”. Assim, as propostas apresentadas nos MDP’s podem ser questionadas
evitando o enfado ou desmotivação por parte dos educadores, bem como dos educandos.
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O que se constatava em Manuais Didáticos de Português (MDP’s), até pouco tempo,


era uma priorização do ensino de regras gramaticais totalmente descontextualizadas, em
detrimento da criação de condições para que os educandos compreendessem a língua em seu
uso efetivo. Essa realidade tem mudado à medida que o ensino de língua portuguesa passou a
ter como base a leitura e a escrita, visto que textos e regras gramaticais passaram a ser
estudadas de maneira contextualizada, facilitando assim, a aprendizagem dos educandos.
Dessa forma, o que se percebe é a presença de vários tipos de textos, bem como de
gêneros textuais com a finalidade de aproximar os educandos dessas variações e, a partir daí,
saber utilizá-las nas diversas situações comunicativas.

Assim, percebemos a preocupação dos autores de livros didáticos em favorecer ao aluno o


contato com um número diversificado de textos que circulam na sociedade, o que é
positivo. [...] Com a preocupação de aproximar o estudo da língua de seus usos, pelo menos
em relação ao texto os LDP sugerem textos interessantes para leitura (Bezerra, 2005, p. 42).

Para muitos, mesmo introduzindo os estudos linguísticos, os MDP´s ainda deixam a


desejar quanto ao trato com as variações linguísticas. Ao analisar algumas atividades
sugeridas em MDP´s Marcuschi (2001) coloca que algumas das atividades ainda propagam
preconceitos, pois prestigiam a norma-padrão e estigmatizam as variedades.
Outro ponto de vista crítico é o de alguns estudiosos que aplaudem a boa vontade dos
autores dos MDP´s em tratar da variação linguística, mas continuam considerando que as
abordagens ainda deixam a desejar.

A gente percebe, em muitas obras, uma vontade sincera dos autores de combater o
preconceito lingüístico e de valorizar a multiplicidade lingüística do português brasileiro.
Mas a falta de uma base teórica consistente e, sobretudo, a confusão no emprego dos termos
e dos conceitos prejudicam muito o trabalho que se faz nessas obras em torno dos
fenômenos de variação e mudança (Bagno, 2007, p. 119).

O fato é que é através, principalmente, dos MDP´s que os educandos entram em


contato com os diversos conteúdos referentes ao ensino de língua materna. Dessa forma,
torna-se relevante que esse material garanta espaço às novas posturas pedagógicas pautadas
no uso efetivo da língua. Ao garantir espaço a essa temática os autores dão um passo enorme,
pois demonstram estarem em sintonia com os novos pensamentos norteadores do ensino de
língua materna. Como alguns autores abordam a variação linguística em seus MDP’s é
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questão a ser verificada, na tentativa de enriquecer os trabalhos em torno dessa temática e


auxiliar a todos que se interessam pela mesma.

A VARIAÇÃO LINGUÍSTICA NOS MDP’s

Ainda se caracteriza como tímida a abordagem desse tema em Manuais Didáticos de


Português. Dessa maneira, o corpus dessa investigação delimitou-se aos manuais que, de
alguma forma, apresentam dentre os seus conteúdos a temática da variação linguística, bem
como circulam com grande prestígio no meio educacional.
Tendo como pressuposto, o fato de os manuais analisados tratarem da variação
linguística torna-se imprescindível a apresentação dos MDP’s que servirão de objeto de
análise a essa investigação, já que eles constituem o corpus da análise de dados, sendo: duas
edições do ‘Português: Linguagens’ de William Roberto Cereja e Thereza Cochar
Magalhães, sendo uma referente ao ano de 2003 e outra ao ano de 2005.
Antes de partir para a análise dos referidos manuais, considerou-se primordial o
esclarecimento em torno de como essa investigação foi direcionada. Nesse sentido, vale
ressaltar que, ao se observar a maneira como esses manuais abordam o fenômeno da variação
lingüística no português brasileiro, valeu-se de alguns questionamentos que serviram como
base a essa investigação. Tais indagações partem do fato de em que amplitude esse fenômeno
é abordado pelo manual analisado, quais conceitos são atribuídos à norma-padrão, culta e
variedade lingüística, até que ponto há coerência na proposta apresentada nos capítulos
dedicados à variação linguística e o trabalho desenvolvido no que concerne à gramática,
como também com que intuito a temática em questão é apresentada.
O manual didático ‘Português: Linguagens’ dos professores William Roberto Cereja
e Thereza Cochar Magalhães aborda a temática da variedade linguística, e a desenvolve em
duas (2) edições correspondentes aos anos de 2003 e 2005. Dessa maneira, considerou-se
interessante à realização de uma análise em torno das edições mencionadas, observando as
semelhanças, diferenças, evoluções e, até mesmo, um possível retrocesso ocorrido nas
abordagens desenvolvidas nessas edições.
O manual de 2003 equivale a 1ª edição. Nela, a introdução da abordagem acerca do
tema em questão se dá a partir de um título que corrobora inteiramente com o defendido pelas
novas posturas pedagógicas pautadas nos estudos linguísticos. O título diz ‘Língua: uso e
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reflexão’, seguido por um subtítulo (Linguagem, comunicação e interação) que reafirma todo
o pensamento e tem a linguagem como meio de interação entre os membros das sociedades.
O que demonstra a importância dessa faculdade para os seres humanos.
Nesse sentido há, de início, a apresentação dos tipos de linguagem, seguidas do que
seria código, até a formação de um conceito para língua, então passam a tratar das variedades
lingüísticas tentando elucidar alguns fatores geradores de tal variação, deixando claro que,
dependendo da situação comunicativa a que o falante está exposto, pode fazer uso da
variedade que considerar mais adequada, à medida que, enquanto falante competente, deve
estar atento ao estabelecimento do uso efetivo da língua. Livre de qualquer forma de
preconceito, já que a linguagem deve ser tida como instrumento de aproximação entre as
pessoas e não como elemento de discriminação.
Os autores fazem questão de demonstrar que cada grupo social acaba desenvolvendo
uma forma específica de comunicação que consegue caracterizar os seus membros. É o caso,
por exemplo, das gírias que se consolidam, cada vez mais, como uma das variedades
encontradas na língua portuguesa brasileira. Ainda destacam que as gírias, diferentemente do
que muitos acreditam, não fazem parte apenas do repertório lingüístico de falantes
pertencentes às classes sociais menos favorecidas, mesmo porque quando relacionadas a
profissões, essas maneiras de fala denominam-se jargões.
Merece destaque, também, o trabalho desenvolvido em torno das variedades
linguísticas na construção do texto, onde, através de atividades contextualizadas, pôde-se
perceber o interesse acerca da discussão sobre o fenômeno da variação lingüística, de maneira
a conscientizar os educandos a respeito do fato de que tal fenômeno se faz presente na língua
materna. Nesse sentido esclarecem que, apesar do estabelecimento de um padrão exigido em
situações formais de comunicação, as demais maneiras de fala não são melhores nem piores,
mas, simplesmente, diferentes e merecem respeito, à medida que são construções, cujos
arquitetos são falantes que o tempo todo acrescentam novas falas ao seu repertório
linguístico.
A 1ª edição do manual analisado consegue abordar a variedade lingüística de maneira
esclarecedora, quando apresenta uma linguagem acessível expondo claramente as diferenças
entre variedade padrão e não padrão. É de suma importância ressaltar que essa temática não é
trabalhada apenas no capítulo destinado, mas também ao lado de outras temáticas que permite
tal vinculação. Como, por exemplo, quando no Capítulo V ao trabalharem o gênero texto
teatral os autores retomam a abordagem linguística indagando os leitores sobre qual
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Revista do Curso de Letras do Câmpus do Pantanal – UFMS,
Corumbá, MS, novembro 2011, n. 4, p. 217

variedade predomina no texto trabalhado. Dessa feita é perceptível o desejo dos autores em
tentarem desmistificar, junto aos educandos, algumas obscuridades existentes em torno das
variedades linguísticas.
Na 2ª edição, do mesmo manual, constatou-se que, assim como na 1ª edição, a
abordagem dispensada ao estudo em torno das variedades lingüísticas configura-se como
objetivo claro, quando visa ao reconhecimento desse fenômeno na língua portuguesa
brasileira. Dessa maneira, busca-se garantir que os educandos entrem em contato com uma
realidade caracterizadora do repertório linguístico, inquestionavelmente, adotado pelos
falantes brasileiros conforme a região geográfica, classe social, idade, sexo ou profissão em
que cada indivíduo está inserido.
Observou-se que a abordagem realizada pela edição de 2005 se assemelha à
desenvolvida pela edição de 2003, visto que ambas trabalham com a variedade das gírias
repetindo, inclusive, alguns exercícios. Porém, é preciso esclarecer que, no referente ao
tratamento das variedades linguísticas relacionadas a textos, comprova-se a ocorrência de um
aprofundamento, pois na 2ª edição esse trabalho se dá de maneira mais detalhada através de
uma maior exploração, visto que os autores utilizam-se de vários textos como anúncios
publicitários e, até mesmo, textos de cunho humorístico. Tal fato consolida as metodologias
que primam por um ensino de língua materna marcado pela contextualização das atividades,
aliadas às abordagens conscientes do caráter heterogêneo das línguas.
Dentre as atividades, destacou-se uma em que, por meio de um anúncio publicitário,
os autores conseguem explorar não só o gênero em trabalhado, mas colocam os educandos
diante de questões que visam direcioná-los a refletirem sobre como, dependendo da situação
comunicativa a que possam estar expostos, podem utilizar-se do repertório lingüístico que
entenderem mais adequado. O texto a seguir compõe a 2º edição do manual analisado.

Leia este anúncio:

Olá, Papai Noel : )

Em primeiro lugar já está mais do que na hora de vc ter um e-mail. Não


existe nada mais antigo que mandar uma carta. Mas, vamos lá: estou
precisando de um upgrade no meu home-office. Por isso, neste Natal eu
quero um OZ Gradiente. Talvez uma pessoa que nem website tem não saiba
o que é isso. OZ é DVD, TV, CD, MP3, FM, Internet e computador ao
mesmo tempo. Na verdade o senhor devia me agradecer. Imagine se eu
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Revista do Curso de Letras do Câmpus do Pantanal – UFMS,
Corumbá, MS, novembro 2011, n. 4, p. 218

tivesse pedido tudo isso separado, o peso que seria no seu saco. Tks,
___________________
seu e-mail

Tomando como referência o texto acima exposto, os autores conseguem trabalhar as


características desse gênero, aliadas a uma abordagem em torno da importância dos fatores
linguísticos na construção textual. Nesse sentido, por meio da seguinte indagação: “Conclua:
Qual a importância da variedade lingüística escolhida na construção do anúncio, tendo em vista
a finalidade deste?” Cereja; Magalhães. (2005, p. 21). Acredita-se que o educando consegue
perceber que a utilização de uma linguagem mais informal tem como finalidade uma maior
aproximação entre o texto produzido, seja oral ou escrito, e o seu público alvo. No caso deste
anúncio fica evidente a intenção do seu autor em, através de uma linguagem informal,
caracterizadora do repertório linguístico utilizado por adolescentes, tornar o texto o mais
acessível possível, já que o seu interesse maior é a comercialização do produto entre o público
jovem.
Observou-se, ainda, que ambas as edições, apesar do grande espaço dedicado às
temáticas gramaticais, os autores conseguem inovar quando pontuam quando pontuam em
outros capítulos, que não o específico, a variedade linguística. Tal fato comprova que o
compromisso dos autores não é oportunista, mas sim consciente, à medida que tratam da
questão com o devido cuidado colocando-a em pé de igualdade com o tão valorizado estudo
gramatical.
Dessa forma, entendeu-se que as edições do manual ‘Português: Linguagens’
conseguem explorar os aspectos constituintes da língua sob a perspectiva de uso efetivo. Para
tanto, primam pela reflexão acerca da utilização da linguagem sob os mais diversos prismas,
sem que tal temática sirva apenas como pretexto ao estudo de outras, à medida que buscam o
estabelecimento de um ensino de língua materna democrático em que as variedades construídas
pelos próprios falantes sejam reconhecidas e respeitadas, seja em sua forma oral ou escrita.
Segundo Bagno (2007, p. 119) ao longo dos anos o manual didático de português vem
se consolidando como instrumento indispensável ao ensino de língua materna, o que não torna
esse material como o único detentor da verdade, visto que, enquanto meio auxiliador à prática
docente pode, e deve estar aberto às inovações pedagógicas, bem como passível as adequações
consideradas necessárias pelos educadores.
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Revista do Curso de Letras do Câmpus do Pantanal – UFMS,
Corumbá, MS, novembro 2011, n. 4, p. 219

Nessa perspectiva, constatou-se que os manuais didáticos mais do que conteúdos,


apresentam métodos e propostas, as quais podem, ou não, ser seguidas pelos educadores, que
precisam estar preparados para utilizar esse material de maneira a garantir que os maiores
interessados, os educandos, tenham assegurado o direito ao conhecimento.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Diante do reconhecimento do caráter heterogêneo da língua portuguesa brasileira,

tornou-se imprescindível à inclusão dessa realidade linguística ao processo de ensino de língua

materna. Então, começaram a surgir propostas pedagógicas que primam por um ensino de

língua portuguesa consciente da existência das variedades linguísticas.

Desde seu surgimento, o manual didático de português passou por transformações que
contribuíram significativamente para sua evolução, enquanto instrumento auxiliar à prática
docente. É através desse material que os educandos entram em contato com os diversos
conteúdos referentes ao ensino de língua materna. Dessa forma, é preciso ressaltar a
importância desse material se adequar às novas posturas pedagógicas pautadas na reflexão em
torno do uso efetivo da língua.
Apesar de muitos manuais ainda resistirem à idéia de tratar da variação lingüística,
constatou-se que esse material didático tem conseguido desenvolver uma abordagem
consciente em torno da referida temática. Nos manuais analisados, verificou-se que ambos
abordam o tema de forma esclarecedora, visando garantir que os educandos realmente
compreendam a temática proposta.
Essa conclusão deve-se ao fato de ter-se tomado como referência, principalmente, a
maneira como o conteúdo é disposto, junto às atividades propostas, os conceitos apresentados
e, também, a relação estabelecida entre a temática da variedade lingüística e os conteúdos
relativos ao estudo dos aspectos gramaticais. Dessa forma, verificou-se que os manuais
analisados apresentam uma abordagem pautada na reflexão em torno da língua em seu uso
efetivo.
Percebeu-se, ainda, uma preocupação em tentar sanar qualquer nível de preconceito
linguístico buscando, tão somente, a consolidação do respeito às variedades da língua. Nesse
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Revista do Curso de Letras do Câmpus do Pantanal – UFMS,
Corumbá, MS, novembro 2011, n. 4, p. 220

sentido, o educando é colocado a par da realidade da existência de um padrão da língua que é


exigido em determinas ocasiões, mas, ao mesmo tempo, compreende que, conforme cada
situação comunicativa a que estiver exposto, poderá fazer uso do repertório linguístico que
julgar conveniente.
Espera-se que os resultados obtidos nessa investigação venham esclarecer as dúvidas
em torno de como os Manuais Didáticos de Português têm abordado o fenômeno da variação
lingüística, na medida em que esse material possui grande relevância no meio educacional.
Dessa maneira, desperta o interesse dos educadores comprometidos com o estabelecimento de
um ensino de português caracterizado pela reflexão acerca do caráter heterogêneo da língua,
enquanto meio de socialização e não de exclusão.

REFERÊNCIAS

BAGNO, Marcos. Português ou Brasileiro? Um convite à pesquisa. 5ª ed. São Paulo: Parábola Editorial,
2001.

_____. Nada na língua é por acaso: por uma pedagogia da variação lingüística. São Paulo: Parábola
Editorial, 2007.

BEZERRA, Maria Auxiliadora. DIONÌSIO, Ângela Paiva. O livro didático de Português: múltiplos olhares.
3ª ed. Rio de Janeiro: Lucerna, 2005.

BEZERRA, Maria Auxiliadora. Livros didáticos de Português e suas concepções de ensino e de leitura:
Uma retrospectiva. In: Texto, escrita, interpretação: Ensino e pesquisa. João Pessoa: Idéia, 2001

BRASIL, Ministério da Educação e do Desporto. Parâmetros Curriculares Nacionais – Língua Portuguesa.


Brasília (DF). MEC, 1998.

CAPORALINI, Maria Bernadete Santa Cecília. Na dinâmica interna da sala de aula: O livro didático. In:
Repensando a didática. 20ª ed. São Paulo: Papirus, 2003.

CASTILHO, Ataliba T. de. A língua falada no ensino de português. São Paulo: Contexto, 2000.

CEREJA, William Roberto. MAGALHÃES, Thereza Cochar. Português: Linguagens. 1ª ed. São Paulo: Atual,
2003.

_____. _____. 2ª ed. São Paulo: Atual, 2005.

HORA, Dermival da. Teoria da Variação: Trajetória de uma proposta. In: HORA, Dermival da. Estudos
Sociolingüísticos: perfil de uma comunidade. João Pessoa, 2004.

MARCUSCHI, Luiz Antônio. Da fala para a escrita: atividades de retextualização. São Paulo: Cortez,
2001.

POSSENTI, Sírio. Por que (não) ensinar gramática na escola. 9ª ed. Campinas: Mercado das Letras, 2002.

TARALLO, Fernando. A pesquisa Sociolingüística. 5ª ed. São Paulo: Ática, 1997.


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Revista do Curso de Letras do Câmpus do Pantanal – UFMS,
Corumbá, MS, novembro 2011, n. 4, p. 221

A DÍNÂMICA LEXICAL DA LINGUAGEM JORNALÍSTICO-


POLÍTICA EM TEXTOS ESCRITOS EM LÍNGUA
PORTUGUESA CONTEMPORÂNEA
NA PRIMEIRA DÉCADA
DO SÉCULO XXI

Pedro Antonio Gomes de Melo 1

RESUMO: A dinâmica do léxico é resultado da criatividade linguística do falante e das


necessidades de representação da realidade. Os neologismos são criados a partir da utilização
dos processos de formação de palavras e o surgimento destas novas unidades léxicas na língua
está vinculado às inovações do mundo exterior, uma vez que o léxico corresponde ao nível
linguístico mais diretamente ligado à realidade extralinguística. Neste artigo, apresentamos
uma reflexão sobre a formação lexical neológica observada em textos jornalístico-político
escritos na imprensa periódica em língua portuguesa contemporânea na primeira década do
século XXI. Esta investigação do léxico, objetiva descrever a neologia na mídia escrita e seus
fatores internos e externos relacionados a essa formação vocabular.

PALAVRAS-CHAVE: Léxico; Língua portuguesa; Linguística; neologismo.

THE DYNAMICS OF LANGUAGE LEXICAL-JOURNALISTIC POLITICAL IN TEXT


WRITTEN IN CONTEMPORARY PORTUGUESE LANGUAGE IN THE FIRST
DECADE OF THE XXI CENTURY

ABSTRACT: The dynamics of the lexicon of linguistic creativity is a result of the speaker and the
needs of representing reality. The neologisms are created from the use of processes of word formation
and the emergence of these new lexical units in language is tied to the innovations from the outside
world, since the lexical level corresponds to the language more directly connected to extra-linguistic
reality. This article presents a reflection on the lexical formation neological observed in journalistic
and political texts written in the press in contemporary portuguese in the first decade of this century.
This investigation of the lexicon, aims to describe the neology in print media and its internal and
external factors related to the training vocabulary.

KEYWORDS: Lexicon; Portuguese language; Linguistics; neologism.

Considerações preliminares

Os neologismos são algo de necessário à sociedade contemporânea, participante de


mudanças e ávida por novidades. Estas novas formações vocabulares são responsáveis pelo
crescimento lexical da língua, dando ao sistema linguístico expansão, pois as línguas vivas,

1
Graduado em Letras: português / inglês pelo Centro Estudos Superiores de Maceió - CESMAC, especialista em
língua portuguesa e mestre em linguística pela Universidade Federal de Alagoas - UFAL. Atualmente, é
professor assistente de língua portuguesa e linguística da Universidade Estadual de Alagoas - UNEAL e da
Faculdade São Vicente de Pão de Açúcar - FASVIPA. E-mail: petrus2007@ibest.com.br.
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Corumbá, MS, novembro 2011, n. 4, p. 222

isto é, “que serve de instrumento diário de comunicação entre os indivíduos componente de


uma nação” (SILVA, 2010, p. 15) não podem ficar na inércia, precisam crescer, precisam
acompanhar as transformações políticas, econômicas e sociais pelas quais passa uma nação,
para que possam servir de instrumento atualizado de comunicação.
Neste artigo, faremos uma reflexão sobre a neologia, seguida de uma exposição
dos processos responsáveis pela dinâmica léxica do português contemporâneo na formação
e/ou criação de neologismos na linguagem jornalística escrita na primeira década deste século.
Como forma de delimitarmos o campo de observação do fenômeno linguístico
investigado, optamos pelo exame de textos jornalísticos escritos, pois a imprensa escrita
periódica possui uma linguagem dinâmica, resultado da necessidade de sua constante
atualização para informar seus leitores, como também para exprimir situações novas ou
noticiar novas ideias e objetos criados, consequentemente, formando palavras novas.
É oportuno ressaltarmos que a nossa opção pela investigação do léxico a partir
da modalidade escrita, no presente artigo, não significa a falta de consciência do valor
linguístico da modalidade falada para os estudos da linguagem, mas, para o propósito deste
trabalho de cunho lexicológico e/ou lexicográfico, essa nos pareceu ser a escolha mais
apropriada.
Para Matoré (1972), essas duas disciplinas que estudam o léxico mantêm
necessariamente uma forte relação de interdependência e complementaridade entre si. Apesar
da relação de completude entre elas, Nunes (2006, p. 149) explica-nos que, a distinção
fundamental entre “Lexicologia e Lexicografia está no fato de que a primeira, com o estudo
do léxico, desenvolve um saber especulativo, enquanto que a segunda, com a produção de
dicionários, caminha para o desenvolvimento de um saber prático”.
O princípio adotado neste estudo como discernimento para reconhecermos uma
palavra como nova no acervo lexical da Língua Portuguesa do Brasil, foi o critério do não-
registro dessa unidade lexical nas seguintes obras: Novo dicionário Aurélio da língua
portuguesa (2009) e Vocabulário ortográfico da língua portuguesa (2009), que são, após o
novo acordo ortográfico da língua portuguesa, os dicionários de palavras mais utilizados, no
Brasil, do português contemporâneo.
Admitimos o critério da não-dicionarização como caráter neológico de uma
palavra, pois concordamos com Carvalho (1983, p. 48), quando afirma que “o dicionário é a
fonte segura do estudo do léxico. A ele recorremos, quando hesitamos quanto à grafia e o
significado de um termo”. Sendo assim, as palavras já registradas nos citados dicionários de
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palavras do português brasileiro não terão status de neologismos nas observações realizadas
neste estudo.
Finalizando esta apresentação, destacamos que a neologia consiste em um tema
fundamental para descrição do léxico segundo uma ótica científica, contribuindo para um
melhor entendimento desse sistema, visto que sua evolução lexical, embora constante, passa
despercebida ao próprio usuário da língua geral.
Na verdade, a língua é neológica por natureza, já que toda sociedade evolui,
consequentemente também evolui o seu código linguístico, sendo incontestável que a língua
se vale fundamentalmente de mecanismos lexicais, em lato sensu, para cumprir os propósitos
comunicativos de seus usuários.

O léxico e a formação lexical da Língua Portuguesa em sua variante brasileira

O léxico consiste no inventário aberto de palavras de que uma dada língua


dispõe. De forma geral, podemos considerá-lo como sinônimo de vocabulário. Na verdade, o
vocabulário é o léxico individual de um dado falante/ouvinte.
Léxico e vocabulário se encontram em relação de inclusão, isto é, o
vocabulário é sempre uma parte, de dimensões variáveis conforme a solicitação do momento,
do léxico individual, que por sua vez, faz parte do léxico global.
Conforme Katamba (1993, P. 99), “o léxico não é uma lista passiva de palavras
e de seus significados, mas um lugar cheio de vitalidade em que as regras são usadas
ativamente para criar novas palavras.” Trata-se de um repertório aberto, quer dizer, capaz de
se enriquecer e se ampliar sempre.
Filologicamente, estudos lexicais possibilitam não apenas conhecermos a
língua em si mesma, mas também, questões extralinguísticas relacionadas às comunidades
que a fala. Isquerdo & Krieger (2004, p.11) explicam-nos que “como repertório de palavras
das línguas naturais traduz o pensamento das diferentes sociedades no decurso da história,
razão por que estudar o léxico implica também resgatar a cultura”.
Do ponto de vista sociolinguístico, Biderman (1981), concebe o léxico como o
patrimônio social da comunidade por excelência, juntamente com outros símbolos da herança
cultural. Partindo dessa abordagem, o léxico é transmitido de geração a geração como signos
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Corumbá, MS, novembro 2011, n. 4, p. 224

operacionais, por meio dos quais os indivíduos de cada geração podem pensar e explicar seus
pensamentos e ideias.
O sistema lexical de uma dada língua dispõe de diferentes regiões linguísticas,
a saber: as gírias (linguagem comum a um mesmo grupo social); os jargões (vocabulário
típico de uma dada especialidade profissional); os estrangeirismos (palavras estrangeiras
incorporadas à língua); os arcaísmos (vocábulos e/ou expressões que caíram em desuso) e os
neologismos (palavras recentemente formadas e/ou criadas).
Segundo Carvalho (2009, p. 19), o léxico é “a menos sistemática das estruturas
linguísticas, o léxico depende, em grande parte, da realidade exterior, não-linguística”, ele
reflete a cultura da comunidade, a qual serve de meio de expressão, visto que, no momento
em que se cria algo de novo ou surgem novos fatos sócio-político-culturais, há uma
necessidade de nomeá-los, formando-se novas palavras; esses itens lexicais, por serem uma
criação individual, podem ser aceitos ou não, ter vidas breves, caindo no esquecimento.
A constituição do acervo lexical do Português é basicamente latina. A Língua
Portuguesa representa o estado atual do sermo vulgaris passado por inúmeras transformações
na Lusitânia; por isso não é de estranhar que a língua dos romanos constitua o substrato de
nossa língua. O idioma dos romanos sobrevive nas atuais línguas românicas como antecedente
imediato dessas línguas, sua dinâmica lexical se apresenta como um fenômeno linguístico de
caráter universal, já que todas as línguas vivas estão em constante transformação e ampliação.
Isso ocorre de maneira lenta e gradual que geralmente passa despercebida ao falante/leitor.
(MELO, 2008)
No entanto, não só do acervo latino se valeu a Língua Portuguesa, já que houve
também a influência de outros idiomas de povos invasores (ou não-invasores), em seu acervo
lexical. Podemos detectar a existência de elementos aloglóticos pré-romanos e pós-romanos,
introduzidos na fase da formação da língua; elementos aloglóticos das modernas línguas
europeias, latinas e não-latinas; elementos aloglóticos de línguas extra-europeias, resultado
dos descobrimentos (CARVALHO, 2009).
E ainda houve, na Língua Portuguesa, variante usada no Brasil, pelas condições
de ocupação e colonização, uma grande influência dos substratos indígenas e dos falares
africanos, justamente no campo lexical, pelas necessidades comunicativas surgidas. Portanto,
também se enriqueceu a Língua Portuguesa do Brasil de uma gama considerável de palavras
não registradas no Português falado em outros continentes.
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Corumbá, MS, novembro 2011, n. 4, p. 225

No que diz respeito a palavras não vernáculas, ou seja, os empréstimos e os


estrangeirismos, podemos afirmar que são muito frequentes no mundo moderno, sobretudo os
anglicismos, que se vêm propagando por todas as línguas, em virtude do papel hegemônico
exercido pelos Estudos Unidos da América. Assim sendo, decorrentes de contato
interlinguístico, não poderia ser diferente no sistema lexical do português brasileiro
contemporâneo.
De fato, o idioma inglês tornou-se a língua universal da ciência e da
tecnologia, por conseguinte, representa uma fonte lexical muito fecunda na formação do
léxico das línguas modernas. A frequência dos anglicismos, no acervo português do Brasil,
demonstra a relação da língua com o mundo exterior; na medida em que há mudanças de
ordem econômica entre as nações, essas modificações se refletem também no sistema
linguístico, sobretudo em seu léxico.
Assim, os estudos diacrônicos mostram que a incorporação de unidades léxicas
neológicas representa o desenvolvimento do léxico dos idiomas. Essas transformações
linguísticas são motivadas também por influências de fatores de natureza diversas: geográfica,
sociocultural, histórica, entre outros. Esse desenvolvimento lexical se faz através dos
processos de formação de palavras, portanto com os recursos linguísticos que a própria língua
oferece.
Essa ampliação e/ou renovação lexical pode ser condicionada por fatores
externos e internos à língua.
No que diz respeito aos primeiros, as evoluções sócio-econômico-culturais
parece-nos ser um dos elementos extralinguísticos mais atuantes nesse processo de
dinamização lexical junto com a criatividade comunicativa dos falantes. Esse
desenvolvimento modifica o meio, faz com que o homem, envolvido no processo de
evolução, crie e reformule certos termos e expressões linguísticas. Já em relação aos internos,
parece-nos que os mecanismos derivacionais proporcionam aos usuários diversas
possibilidades nas combinações para formação lexical. Tornando-se mais produtivos na
função de criar neologismos.
Em suma, a língua está sempre recebendo forças externas e internas em
sentidos opostos, não-excludentes, mas complementares. As primeiras dão um cunho novo à
expressão são as forças dinâmicas da linguagem. As segundas asseguram a sua conservação,
são as forças conservadoras da linguagem, responsáveis pela impressão de que a língua em
uso encontra-se estática. Todavia, temos conhecimento que só aparentemente a língua se
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apresenta inerte. Em outros termos, Freitas (2007) explica-nos que, toda língua é o produto de
forças que sobre ela atuam: a centrífuga, que corresponde à força externa, e a centrípeta, que
corresponde à força interna.
Desse modo, A inovação lexical, ampliando e/ou renovando o léxico, torna-se
verificável na medida em que signos linguísticos são criados e/ou formados ou sofrem
modificações e/ou acréscimos em seus significados. Trata-se de um processo inerente à língua
e não uma ameaça à sua continuidade.
Na verdade, essa dinâmica é uma característica necessária a todas as línguas e
poucos se dão conta dessa evolução, porque é feita de modo inconsciente e coletivo. No
entanto, o aparecimento de novos termos e significados é fácil de ser constatado, sobretudo
nos meios de comunicação escrita.
Para corroborar o supradito, faz- se necessário citarmos Barbosa apud
Isquerdo; Oliveira (1998, p. 34) quando afirma que

É lícito definir a norma do universo léxico como o lugar de equilíbrio


dinâmico, o lugar do conflito e o epicentro da tensão entre aquelas forças
contrárias. Esse equilíbrio e essa tensão são observáveis com clareza, em
qualquer etapa sicronicamente considerada de uma língua, por três aspectos:
a conservação de grande parte do léxico, o surgimento de novas unidades
lexicais, o desaparecimento de outras. Distinguem-se, entre as unidades que
permanecem as que apresentam freqüência de atualização estável, crescente
ou declinante.

Processos lexicais formadores de neologismos na linguagem jornalística escrita na


primeira década do século XXI

Toda língua se constitui fundamentalmente por duas classes de palavras: as que


refletem o universo extralinguístico, nomeando as coisas, as qualidades e os processos, cujo
grupo constitui o léxico – um sistema aberto em constante ampliação, e as que funcionam
apenas dentro do sistema linguístico, aquelas palavras de significação interna como os
morfemas gramaticais, responsáveis pela organização e estrutura da língua.
Os processos neológicos de formação lexical, registrados em textos
jornalísticos escritos na mídia impressa, são os mecanismos pelos quais os novos itens
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Corumbá, MS, novembro 2011, n. 4, p. 227

lexicais do sistema aberto são formados e/ou criados na língua. Esses recursos linguísticos
atuam em nível fonético-fonológico, morfossintático e semântico-lexical.
No português contemporâneo, variante usada no Brasil, os processos mais
produtivos na formação neológica são a Derivação e a Composição, que, apesar de
completamente diferentes no procedimento de formar palavras, unem-se na função de formá-
las e, consequentemente, tornam-se os mais fecundos na ampliação e/ou renovação do acervo
lexical do sistema linguístico em questão.
A derivação consiste no mecanismo pelo qual as novas unidades lexicais são
formadas a partir da anexação de afixos (prefixo e/ou sufixo) a uma base autônoma. Basilio
(2007) explica-nos que os afixos apresentam funções sintático-semânticas definidas: essas
funções delimitam os possíveis usos e significados das palavras a serem formadas pelos
diferentes processos de derivação.
Vale destacarmos que todo processo derivacional ocorre em torno de uma só
palavra primitiva, de um só radical. A tradição gramatical considera afixos apenas as formas
presas (não-autônomas). Todavia, registram-se ocorrências de palavras novas formadas a
partir de unidades léxicas que não são reconhecidas como prefixos, mas palavras autônomas
com categorias gramaticais definidas. Porém, podem ser detectadas na função prefixal, sendo
assim inclusas na derivação, formando neologismos. Dentre esses itens lexicais as formas
NÃO- e RECÉM-, tradicionalmente classificados como advérbios ou substantivos, anexam-se
a bases autônomas, não com a função de adjunto, mas para formarem nas sentenças em que
são registrados unidades lexicais novas.
Na Língua Portuguesa do Brasil, geralmente, os morfemas prefixais não
mudam a categoria gramatical da base a que se unem. Entretanto, é possível registrarmos em
textos jornalísticos escritos na primeira década século XXI, os prefixos ANTI- e MACRO-
unidos a uma base substantiva atribuindo-lhe função de adjetivo, ocorrendo o processo de
recategorização. Portanto, podemos afirmar que em certos casos os prefixos mudam a classe
da palavra a que se agregam na função de formar neologismos.
Como também, os prefixos MACRO-, MICRO- e VICE-, no português
brasileiro atual, podem ser usados como formas autônomas (formas livres). Na verdade, os
referidos elementos prefixais se desprendem de suas bases para formar novas unidades
lexicais substantivas a partir do processo de abreviação vocabular.
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Acreditamos que essas unidades estejam se gramaticalizando como prefixos,


ampliando, assim, os recursos comunicativos da língua, sobretudo para expressar novos
conceitos, surgidos a partir do desenvolvimento político, econômico e social.
O processo de formação derivacional subdivide-se em prefixal, sufixal,
parassintética e regressiva. Porém, na tradição gramatical, acrescenta-se como processo de
formação derivacional a conversão, denominada pela nomenclatura gramatical brasileira
como derivação imprópria.
No entanto, a conversão é um processo com características próprias, pois não
há anexação de afixos à nova palavra formada, nem há redução de elementos em sua
formação mórfica, a nova palavra é formada pela recategorização, isto é, pela mudança de sua
categoria gramatical. Portanto, não se trata de um processo derivacional; além do mais, no
fenômeno da conversão ocorre um processo semântico e não morfológico que é a
caracterização do processo derivacional. É o contexto em que está inserida a unidade lexical
que nos permite observar o fenômeno da conversão (BASÍLIO, 2007).
No processo de derivação prefixal, a nova palavra é obtida a partir da anexação
de um prefixo a uma base. Já na derivação sufixal, a nova forma lexical é formada a partir da
anexação de um sufixo a uma base. “Na Língua Portuguesa, os sufixos lexicais servem
principalmente para acrescentar a um termo a ideia de grau e a de aspecto, ou para
transformar uma palavra de uma classe para outra”. (CARVALHO, 1983, p. 79)
Ao contrário do que ocorre com os prefixos que guardam certo sentido, de
maneira mais ou menos clara, com relação ao sentido da palavra primitiva, os sufixos,
geralmente vazios de significação, têm por finalidade formar paradigmas de palavras da
mesma categoria gramatical.
Na derivação regressiva, a nova unidade lexical é formada pela redução da
palavra primitiva. Em outras termos, ocorre o fenômeno da derivação regressiva quando a
criação e/ou formação do neologismo deve-se à supressão de um elemento considerado de
caráter sufixal. Esse processo torna-se importante na formação de substantivos derivados de
verbos que são chamados de deverbais e são sempre abstratos.
Esse procedimento de formação de palavras se opõe às derivações prefixal e
sufixal que são progressivas, pelo fato de haver redução de uma palavra já existente. Faz-se
mediante supressão de elementos terminais (sufixos ou desinências).
A derivação parassintética ocorre quando a palavra nova é obtida por
acréscimo de afixos (prefixo e sufixo) ao mesmo tempo a uma base, de forma que a exclusão
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Corumbá, MS, novembro 2011, n. 4, p. 229

de um ou de outro morfema derivacional resulta numa formação lexical inaceitável na Língua


Portuguesa. Nesses neologismos ambos os afixos são co-responsáveis pela nova acepção que
se introduz. Logo, o que distingue a derivação parassintética dos outros processos
derivacionais é o fato de o acréscimo dos afixos ser simultâneo.
No caso de formação lexical por composição, o novo item lexical é formado a
partir da junção de mais de uma base autônoma para obtenção de uma nova palavra.
Enquanto, na derivação, o processo de formação envolve afixos, que são elementos fixos, na
composição, ao contrário, o procedimento de formar palavras envolve a união de uma base à
outra. Convém assinalarmos que na palavra composta, os elementos primitivos perdem a
autonomia de significação em benefício de uma unidade semântica, isto é, um único conceito,
novo, global. Essas composições lexicais desempenham função de palavras, tendo-se
unidades sintáticas se cristalizando numa função morfológica ou lexical.
O que caracteriza e define a função do processo de composição é a sua
estrutura, de tal maneira que, das bases que se juntam e/ou aglutinam para formar uma
palavra, cada uma tem seu papel definido pela estrutura. Essa é sintática, diferentemente do
que ocorre nos casos de derivação.
No processo de formação neológica composicional, podemos distinguir duas
formas de composição: a justaposição e a aglutinação. Nos compostos formados de palavras
ou radicais pertencentes a classes gramaticais diferentes, de estruturas sempre binárias, tem-se
um elemento que é o principal, o núcleo, e um elemento que é o especificador, o adjunto. São,
portanto, compostos determinativos ou subordinativos.
Na formação dos compostos por justaposição, também denominada de
composição perfeita, não há alteração gráfica nas bases que se unem para formar a nova
palavra. Nas palavras justapostas, os termos associados conservam a sua individualidade. Já
na formação dos compostos por aglutinação há perda gráfica nas bases (ou em uma das bases)
que formam o novo vocábulo. Esse fica subordinado a uma única acentuação tônica,
ordinariamente a do último vocábulo
Além dos dois processos principais na formação neológica na função de formar
palavras novas, derivação e composição. Há outros mecanismos linguísticos, embora menos
gerais, usados pelo falante no procedimento de formar novas palavras, que também
contribuem para o enriquecimento do acervo lexical da Língua Portuguesa, a saber:
hibridismo, a abreviação vocabular, a acrossemia, a conversão, as formações onomatopaicas e
o redobro.
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Corumbá, MS, novembro 2011, n. 4, p. 230

Esses procedimentos lexicais são normalmente pouco abordados nos


compêndios gramaticais modernos, como também nas gramáticas tradicionais, que pecam
pela sumaridade e pela insuficiência de análise. (cf. BUENO, 1968; ALMEIDA, 1985;
MESQUITA, 1996; LIMA, 2000; CUNHA; CINTRA, 2008; BACHARA, 2009; entre
outros).
O hibridismo consiste no processo de formação lexical no qual a nova palavra
é formada a partir de elementos de sistemas linguísticos diferentes.
A abreviação vocabular é um caso particular da derivação regressiva, mas com
características linguísticas próprias. Genericamente, o processo derivacional regressivo ocorre
também através da mudança da categoria gramatical (recategorização), já no caso da
abreviação, apesar de ocorrer redução do vocábulo, esse permanece na mesma classe de
palavra da unidade lexical reduzida. Na derivação regressiva há redução específica: elimina-
se no vocábulo derivado o sufixo ou a desinência do derivante, no caso da abreviação, a
redução não se pauta por critérios específicos e homogêneos, podendo a unidade lexical nova
ser obtida a partir da redução ao prefixo ou corte de sílabas.
A Acrossemia constitui um tipo especial de formação de vocábulos e de
fecundidade lexical relevante na Língua Portuguesa hodierna, na qual a unidade lexical nova
pode ser formada a partir da redução de uma expressão substantiva a seus elementos: letras,
sílabas iniciais, mediais ou sinais. Trata-se, portanto, de um mecanismo fonomorfológico de
criação lexical que nem sempre os fonemas são encadeados nos significantes desses signos
linguísticos, todavia, segue o princípio de linearidade, nessa particularidade reside toda
vitalidade do processo acrossêmico na língua e sua produtividade lexical.
Alves (1990, p. 56) afirma que esse tipo de formação lexical “é resultado da lei
de economia discursiva. O sintagma é reduzido de modo a torna-se mais simples e mais eficaz
no processo de comunicação”, porém, somente exerce tal papel se essas formações forem
identificadas pelo receptor. Essa identificação dependerá da competência linguística e, mais
ainda, do conhecimento de mundo do mesmo.
O processo de redobro se apresenta como um recurso de caráter morfológico,
no qual o neologismo é obtido a partir da repetição ou reduplicação completa ou parcial da
base que formará a nova palavra. Em outras palavras, consiste na criação de forma lexical
pela repetição de outra preexistente, sem ou com alteração de sua estrutura fônica.
É pertinente destacarmos que os elementos repetidos (letras, sílabas ou
palavras) não apresentam interesse quanto à questão das relações sintáticas. Todavia, são
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Corumbá, MS, novembro 2011, n. 4, p. 231

relevantes quanto às relações semântico-fonéticas da língua. Por conseguinte, a característica


essencial do redobro consiste em concatenar duas ou mais formas explorando o efeito
semântico ou sonoro daí decorrente. Esse recurso linguístico era muito comum na morfologia
do indo-europeu.
As formações onomatopaicas são palavras que procuram imitar sons, voz ou
ruídos de objetos ou animais, contudo não há uma idêntica reprodução do som ou ruído
originário pelo vocábulo criado, mas apenas uma aproximação destes. Para Alves (1990, p.
12), “a criação onomatopaica está calcada em significantes inéditos. Entretanto, [...] não é
totalmente arbitrária, já que ela se baseia numa relação, ainda que imprecisa, entre a unidade
lexical criada e certos ruídos ou gritos”. Podemos considerar uma arbitrariedade relativa em
oposição a uma arbitrariedade absoluta.

Considerações finais

Os aspectos abordados no presente artigo, envolvendo a formação neológica na


linguagem jornalística escrita na primeira década do século XXI, permitem-nos tecer algumas
considerações.
Primeiramente, a neologia está presente na língua, em suas modalidades escrita
e falada, contribuindo à ampliação e/ou renovação do léxico. Pode ser considerada como um
fenômeno linguístico de caráter universal, uma vez que toda língua viva se expande, se
transforma, evolui, sobretudo seu acervo lexical.
Esses vocábulos novos atestam a criatividade comunicativa e a necessidade de
novas unidades lexicais na função de nomear a realidade extralinguística do falante, ou seja, o
aparecimento de novas realidades sócio-econômico-culturais geralmente, propicia e, às vezes,
até obriga, a criação de neologismos em favor da economia discursiva.
Todavia, para formarmos uma palavra nova, não basta apenas a criatividade:
torna-se necessário, também, obedecermos a certas regras inerentes à língua para compormos
os vários segmentos que formam a estrutura da nova unidade lexical. Caso contrário, seria
impossível decodificá-la. No entanto, acreditamos que essas normas ou regras de formação de
palavras não são conscientes no usuário no momento da formação lexical.
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Corumbá, MS, novembro 2011, n. 4, p. 232

Essa dinamicidade léxica está condicionada a fatores externos e internos à


língua. Na verdade, uma língua está sempre recebendo força centrífuga e força centrípeta em
sentidos opostos, não excludentes, mas complementares.
A dinâmica lexical, no âmbito dos fatores externos, depende principalmente da
evolução das necessidades comunicativas da sociedade que a usa, e esta evolução se encontra
diretamente relacionada ao crescimento intelectual, social e econômico dessa mesma
sociedade.
Essas novas unidades lexicais se não desaparecerem, desneologizar-se-ão, ou
seja, integrar-se-ão ao léxico geral da língua. A dicionarização pode representar a
continuidade de seu uso, consequentemente, a sua integração no acervo lexical do português.
A grande parte dos neologismos tem sua origem em formas linguísticas pré-
existentes ligadas a determinadas noções e utilizadas em novas formações lexicais,
estabelecendo uma ligação com conhecimentos anteriores. Os vocábulos novos podem ser
formados a partir de processos autóctones ou por adoção de um item lexical de outra
comunidade linguística.
A produtividade lexical do processo derivacional por prefixação, em muitos
casos, decorre de um desejo de economia discursiva por parte do falante/emissor porquanto
uma frase negativa, expressa por uma palavra formada por prefixação, torna-se mais
econômica do que uma construção sintática negativa; da mesma forma são os casos do
emprego de elementos prefixais seguidos de substantivos exercendo uma função adjetiva.
Podemos interpretar esse procedimento lexical como um indício de que a
formação lexical segue uma tendência natural da língua em favor da economia expressional.
Já na formação lexical por composição, a justaposição imediata é bem mais
produtiva do que a justaposição mediata; a estrutura justaposta por substantivo mais
substantivo (subst. + subst.) pode ser considerada como o modelo de estrutura morfológica
mais produtiva entre todas as estruturas compostas de caráter neológico.
Na formação lexical por aglutinação, os neologismos são formados por
truncação linguística de bases autônomas e não-autônomas que se aglutinam, ocorrendo perda
gráfica em um ou mais elementos que constituem a nova palavra.
A produtividade lexical dos processos de formação dos compostos tem na
justaposição sua fonte mais produtiva na criação de neologismos. Acreditamos que essa
fecundidade léxica pode ser interpretada como uma tendência linguística, na qual há um
favorecimento à formação lexical em que não ocorra perda mórfica entre os constituintes da
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Corumbá, MS, novembro 2011, n. 4, p. 233

nova palavra, em favor de regras linguísticas conservadoras inerentes à língua, com a


finalidade de assegurar a conservação desse sistema linguístico.
Além da derivação e da composição, também, são registrados na formação
neológica da língua portuguesa outros mecanismos lexicais menos gerais na formação e/ou
criação de novos vocábulos. Embora menos importantes, também contribuem para a
ampliação e/ou renovação do léxico português.
A acrossemia é um desses processos de formação vocabular menos gerais e
bastante frequente na formação de palavras novas na linguagem jornalística escrita.
Essa produtividade lexical é previsível, uma vez que o citado mecanismo
linguístico consiste em um processo moderno e generalizado na imprensa periódica. Podemos
relacionar a grande fecundidade lexical da acrossemia ao dinamismo da linguagem
jornalística que exige o máximo de informações com um número mínimo de palavras. Dessa
forma, motivando o uso de formações acrossêmicas como as siglas e os acrônimos.
Atualmente, as instituições são menos conhecidas por suas denominações
completas do que pelas siglas e/ou pelos acrônimos correspondentes, em virtude da não-
necessidade do usuário da língua de reconhecer, em muitos casos, a forma plena subjacente à
forma acrográfica. Essas formas lexicais, uma vez criadas e vulgarizadas, passam a ser
reconhecidas como palavras primitivas, inclusive formando derivados.
Além da acrossemia, podemos detectar a formação lexical por redobro, esse
mecanismo apresenta uma produtividade regular na mídia escrita. Trata-se de um
procedimento de formação neológica que se caracteriza pela exploração do efeito semântico-
visual decorrente da repetição lexical, com a finalidade de acentuar o aspecto durativo do
citado processo de formação neológica.
Os neologismos formados por redobrom pode apresentar uma repetição parcial
ou total. O surgimento dessas novas unidades a partir da repetição total (ou reduplicação) de
bases é mais fecundo lexicalmente do que por meio da repetição parcial.
O usuário da língua ao criar um neologismo tem, muitas vezes, plena
consciência de que está inovando, neologismando, criando e/ou formando novas unidades
lexicais, quer pelos processos autóctones, quer pelos processos não-autóctones. Essa sensação
neológica é traduzida, nos textos jornalísticos, por processos visuais como as aspas, o tipo de
letra, a presença do hífen, entre outros, que visam realçar o resultado da criatividade lexical na
modalidade de língua escrita.
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Corumbá, MS, novembro 2011, n. 4, p. 234

Muitos dos neologismos cairão no esquecimento e não serão mais lembrados,


enquanto outras formações lexicais, dentro de algum tempo, não mais serão percebidas como
novas, devendo ser incorporadas ao léxico da Língua Portuguesa do Brasil. E, ainda, as
renovações e/ou inovações da produtividade lexical do Português atual, variante usada no
Brasil, devem ser entendidas apenas como uma amostra limitada do que esse tema pode
proporcionar, se pesquisado mais amplamente. Essa limitação é, no entanto, imposta pela
própria amplitude e largueza da temática do trabalho ora realizado.
O surgimento de novas unidades lexicais na língua está vinculado às inovações
do mundo, isto é, a comunidade evolui, consequentemente evolui também seu código
linguístico, já que ao léxico corresponde o nível linguístico mais diretamente ligado à
realidade extralinguística pelas necessidades surgidas.

REFERÊNCIAS

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São Paulo : Global, 2009.

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linguística. São Paulo : T. A. Queiroz / Universidade de São Paulo, 1981, p. 131-45.

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Revista do Curso de Letras do Câmpus do Pantanal – UFMS,
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FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Novo dicionário Aurélio da língua portuguesa. 4. ed.
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FREITAS, Horácio Rolim de. Princípios de morfologia. 5. ed. ver. e ampl. Rio de Janeiro : Lucena,
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ISQUERDO, Aparecida Negri.; KRIEGER, Maria da Graça. (orgs). As ciências do léxico:


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carandá
Revista do Curso de Letras do Câmpus do Pantanal – UFMS,
Corumbá, MS, novembro 2011, n. 4, p. 236

LITER’ARTES

Poesia
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Corumbá, MS, novembro 2011, n. 4, p. 237

TRILOGIA DAS
VERDADES
Rogério Lobo Sáber
Mestrando do curso de Teoria e História Literária do Instituto de
Estudos da Linguagem (IEL) da Universidade Estadual de
Campinas (Unicamp), SP. E-mail:
rogeriosaber@gmail.com.
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Corumbá, MS, novembro 2011, n. 4, p. 238

DOXA
E hoje, manhã ainda custando a ceder espaço para o dia,
E olhos ainda preguiçosos, buscando o escuro ou quem sabe,
um ponto, além do horizonte, estático, que não desse trabalho para ser observado…
E foi hoje que, acordando com a intenção de mudar o mundo,
sofri o que chamei de “momento mais revelador de minha vida”.

Caminhava sem pressa, sentindo a doce e débil névoa da manhã.


E sem pressa, e também sem nenhuma pretensão, olhei para pessoas.
Mas não enxerguei através das pessoas. Das mesmas pessoas.
Nada havia mudado. — E eu não queria mudar o mundo?
De um dos lados da pequena rua da pequena cidade,
Homens grandes que, talvez, tivessem espíritos grandes.

Precisava mudar, embora ao mesmo tempo, sentisse que não devesse.


Mudar, mudar… sempre assim?!
Jornada sem fim?! Sofrimento infinito? Forma indefinida?
Não. Os homens grandes de espíritos grandes não mudam o mundo.
Não mudam. Porque apesar de eu estar sentindo uma inevitável necessidade,
talvez não fosse necessidade o que eu estava sentindo.
Não tinha cor, não tinha forma, não tinha nada que se fizesse mostrar à luz do mundo.
Não mudam. Os homens grandes de espíritos grandes não mudam o mundo.

— Mudam a si mesmos e almejam, com afinco, ser humanos.


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Corumbá, MS, novembro 2011, n. 4, p. 239

MINAS
Acalmei-me em caráter temporário.
Aceitei-me. Entendi-me: sou uma farsa.
Hesitei, desde o início, estas palavras.
Mal pude conseguir rimas esparsas.

— Avistei o sangue vermelho e vibrante.

E que se faz quando a fonte escurece?


Caminho pela calçada? Converso com algum amigo?
Percebo as flores na primavera?
Sinto o frio que invade meu quarto-abrigo?
Parece-me que a janela está aberta:
o vento me acompanha nesta noite fria.
Não sabia se dividia isto ao meio:
pois pensava e me feria, pois pensava e me feria.

— E escorre sangue vermelho vibrante.

E o leitor vai se escorrendo


E avista a incoerência
Não encontra sentidos juntos:
Saem apenas reticências…

Escorre, leitor, que a noite é fria.


Mova-se que a noite é triste.
Não sou Munch: meu grito não me mantém acordado.
Escorra, pois o sol está parado.

— E no interior vermelho do sangue vibrante, algo persiste.

Devo ter, mesmo, um comparsa.


O vermelho vibrante coagula.
Acalmei-me. Entendi-me: sou uma farsa.
Hesitei, desde o início, estas palavras.
Mal pude conseguir rimas esparsas.

— E frise-se enquanto é tempo: não estamos preparados para dilúvio.

Dilúvio-sangue. Dilúvio-vermelho.
Não estamos preparados: já vivemos.
— E frise-se enquanto é tempo.

Quero, antes, conhecer todos os cantos


Meus atalhos, encruzilhadas e esquinas.
Andar pela chuva em um dia triste de setembro,
Avistar meu sangue horrendo
Escorrendo em doces minas.
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Revista do Curso de Letras do Câmpus do Pantanal – UFMS,
Corumbá, MS, novembro 2011, n. 4, p. 240

AS HORAS

Penso nas horas,


Mas as horas não pensam: passam.
Passam, amassam, pisoteiam, quem, à sua frente, por ventura, ficar.
Os olhos imóveis, o tato insensível, a pele gelada. Minha veia a pulsar.
— E o relógio a passar.

Penso nas horas


Mas as horas não ficam: seguem.
Seguem, caudalosas, rio selvagem.
As mãos já tão frias, a mente vazia.
A boca fechada, a veia parada.
— Grande e eterna estiagem.

( — E o relógio a passar).
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Revista do Curso de Letras do Câmpus do Pantanal – UFMS,
Corumbá, MS, novembro 2011, n. 4, p. 241

Dossiê:

O MICROCONTO
Luciene Lemos de Campos (org.)
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Corumbá, MS, novembro 2011, n. 4, p. 242

. Ivana Rauer Marcelino

. Marçal Heloísa Vilela

Piglia Candido Woolf

Mansfield Tchékhov Poe


http://alexmelodiniz.blogspot.com/
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Corumbá, MS, novembro 2011, n. 4, p. 243

A singularidade, necessidade e importância


deste Dossiê se justifica pela explosão do
microconto no Brasil da primeira década do século XXI,
com centenas de autores divulgando suas micronarrativas
na internet, razoável número de livros publicados e boa
repercussão na imprensa, porém com mínima
contrapartida no âmbito acadêmico, que não elaborou,
ainda, sequer teoria específica sobre o microconto.

Ao organizarmos o presente Dossiê, partimos de


artigos acadêmicos, frutos de discussões fomentadas nas
aulas ministradas pelo Prof. Dr. Rauer Ribeiro Rodrigues
em programas de mestrado da UFMS nos câmpus de
Corumbá, Campo Grande e Três Lagoas.

Para iniciar, apresentamos artigo do prof. Rauer,


“Apontamentos sobre o microconto”, versão definitiva de
comunicação apresentada no I Congresso Internacional do
Programa de Pós-Graduação em Letras da UNESP de São
José do Rio Preto, que aconteceu de 25 a 27 de outubro de
carandá
Revista do Curso de Letras do Câmpus do Pantanal – UFMS,
Corumbá, MS, novembro 2011, n. 4, p. 244

2011 no Ibilce. Por meio de aforismos e metáforas, o


trabalho descreve e conceitua o microconto.

Em seguida, descrevendo o contexto cultural e


histórico em que o microconto brasileiro de nossos dias se

constitui, trazemos trabalho conjunto de Fabrina


Martinez e Rauer Ribeiro Rodrigues, “Introdução
historiográfica ao estudo do microconto brasileiro”. Parte
deste artigo, com o título “A ascensão do microconto
brasileiro”, foi apresentada no Seminário “Microcontos e
outras microformas”, que aconteceu na Universidade do
Minho, em Braga, Portugal, nos dias 6 e 7 de outubro de
2011.

O Dossiê tem sequência com o estudo “Intensidade,


brevidade e coalescência: das vertentes do conto, o
microconto”, no qual Waleska Martins estuda a
formulação do microconto em nossos dias, a partir da
leitura de um poema narrativo de Manoel de Barros e de
um conto de Luiz Vilela. O embrião deste texto foi
apresentado, como comunicação oral, no I I Congresso
carandá
Revista do Curso de Letras do Câmpus do Pantanal – UFMS,
Corumbá, MS, novembro 2011, n. 4, p. 245

Internacional Brasil, Paraguai, Bolívia: Fronteira, cultura e


interdisciplinaridade, que aconteceu em Corumbá em
2009.

Por fim, no artigo “Entre frinchas, a poética do


microconto brasileiro” — comunicação apresentada no XII
Congresso Internacional da Abralic (UFPR, Curitiba,
2011), tendo sido publicada nos Anais do evento —,
Luciene Lemos de Campos estuda alguns microcontos da
literatura brasileira, elencando invariantes estruturais e
narrativos configuradores de um modo de pensar e
construir a micronarrativa brasileira contemporânea.

Uma vez que os artigos de Fabrina, Waleska e


Luciene decorrem de debates fomentados nas aulas do
prof. Rauer, e considerando a significativa produção de
microcontos de sua autoria, divulgados na internet, bem
como sua reflexão teórica sobre o tema, dele selecionamos
33 microcontos para fechar este Dossiê.

O que nos moveu para organizar este trabalho foi


a constatação de que a micronarrativa, no âmbito da
pesquisa literária no Brasil, carece de referencial e estudos
carandá
Revista do Curso de Letras do Câmpus do Pantanal – UFMS,
Corumbá, MS, novembro 2011, n. 4, p. 246

mais aprofundados, quer no domínio da estética, quer no


âmbito da poética, quer na atuação da crítica literária.

Por outro lado, descobrimos que, se a literatura


brasileira é das mais ricas em contos, também apresenta,
de forma expressiva, experiências estruturais e temáticas
no que se refere à micronarrativa.

Os artigos evidenciam a interrelação entre os gêneros


literários como característica do microconto brasileiro
atual. Isso pode ser verificado nos microcontos estudados
e na seleção que encerra o Dossiê.

Uma última palavra cabe ao ilustrador, Alex Sandro


Melo Diniz, uma grata revelação de artista. Sua leitura é,
cada uma, um microconto visual instantâneo que interliga
autor, vida, obra e feições dos escritores que retratou.

Luciene.
carandá
Revista do Curso de Letras do Câmpus do Pantanal – UFMS,
Corumbá, MS, novembro 2011, n. 4, p. 247

Da introdução a
Os cem menores contos brasileiros do século:
Se “conto vence por nocaute”, como dizia Cortázar,
então toma lá.
(Marcelino Freire)
carandá
Revista do Curso de Letras do Câmpus do Pantanal – UFMS,
Corumbá, MS, novembro 2011, n. 4, p. 248
ISSN - 2176-6835

APONTAMENTOS SOBRE O MICROCONTO

Rauer Ribeiro Rodrigues (UFMS)

O assim chamado microconto têm-se destacado nos últimos tempos, no


Brasil, como subgênero da prosa ficcional com imensa divulgação,
centenas de cultores e milhares de publicações nas mídias sociais.
Disseminado sob a égide da virtualidade digital, trata-se, no entanto, de
modalidade de expressão literária que já era cultivada, em especial entre
autores hispano-americanos, desde meados do século XX. A forma
expressiva do microconto, cuja síntese termina por coalescer com formas
expressivas de outros subgêneros e mesmo com o gênero lírico, faz com
que, olhando em revisão crítica para a expressão poética do modernismo,
percebamos que muitos poemas do início do novecentos, e mesmo de
épocas precedentes, podem ser lidos hoje como microcontos avant la
letre. A presença massiva de produções chamadas de microconto em
blogs e em outras plataformas e mídias da internet não tem tido
correspondente interesse de avaliação teórica na universidade brasileira.
Já nos países de língua castelhana das Américas, nomeada quase sempre
como microficción, mas também recebendo outras denominações, há
uma produção teórica que procura descrever o subgênero, verificando
sua configuração e traçando os seus limites. O objetivo deste trabalho é,
por meio de 29 aforismos, principiar um levantamento das caracte-
rísticas do microconto brasileiro, considerando publicações assim
nomeadas por autores que já tenham alcançado algum reconhecimento
crítico ou editorial por suas realizações literárias.
carandá
Revista do Curso de Letras do Câmpus do Pantanal – UFMS,
Corumbá, MS, novembro 2011, n. 4, p. 249
ISSN - 2176-6835

OS AFORISMOS

1. O microconto é uma casca de ovo, com alguma clara e um pingo de


gema que escorreu, boiando na enxurrada escura sob a luz noturna
da lua minguante.

2. O microconto já existia em sociedades ágrafas; na sequência,


podemos vê-lo em Tales e em Heráclito, assim como em Hesíodo e
em Safo.

3. O microconto foi praticado em todos os períodos da humanidade,


oculto nas dobras de outros gêneros e formas.

4. O microconto marca a ascensão do mundo digital, eletrônico,


computacional, internético, que sepulta — sem ultrapassar — o
universo das máquinas mecânicas.

5. O microconto é alexandrino por essência, e se vale da ambiguidade


do ocaso que é aurora.

6. É desse microconto, que sepulta o albatroz baudelariano erigindo


bytes virtuais, de que falamos.

7. O microconto só se faz — de modo intenso e completo — com o


espírito da virtualidade, mas se presentifica independente do
suporte e do media.

8. O microconto é a fronteira da expressão literária, no limes entre


poesia e prosa, entre épica e elipse, entre a rigidez do amor e a
sinfonia atonal.
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9. O microconto, mesmo aquele que se aproxima do humor mais


escrachado, tem algo de soturno.

10. O microconto absorve todas as formas, fôrmas, gêneros e modos de


expressão de todas as artes: é antropofágico e onívoro.

11. O efeito único do microconto é como um raio de sol que se refrata


em todas as cores do arco-íris.

12. O microconto apresenta tantas menções intertextuais quantas são


as palavras que o compõe. Onde se lê intertexto, leia-se hipertexto.

13. O microconto é o nó da rede: cada nó nunca é mais que a fração


mínima de um possível narrativo: o microconto é um fóton que
contém o universo.

14. No microconto, os hipertextos intertextuais que suplementam em


acréscimo, debate ou derrogação presentificam-se como a sombra
de um eclipse.

15. O microconto é silêncio, alma, morte e ressurreição.

16. O microconto transpõe barreiras, sendo o próprio limes.

17. A história submersa do microconto é um mergulho em desvãos


pressentidos, porém insondáveis.

18. O microconto realiza todos os gêneros literários, todas as formas


poéticas, todas as estratégias narrativas; o microconto é um fractal
que convida o leitor para a contradança.

19. Não existe microconto de atmosfera ou de enredo: todo


microconto persegue um enredo forjando uma atmosfera.
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20. O microconto é o encontro da poesia com a prosa no balbucio do


recém-nascido.

21. No microconto não há uma história evidente e uma segunda


história, secreta — jamais fragmento, há no microconto o encontro
de diversas histórias, ou microconto não há.

22. Se a narrativa tem mais que a epifania após o clímax, não é um


microconto.

23. Se a epifania do microconto fulge, o microconto vira um falso fogo-


de-artíficio

24. O microconto pode ser um haiku, mas ao contrário do haiku, que


morre se recebe um título, o microconto sem título fica manco das
duas pernas.

25. O microconto pode ser lido em uma única risada.

26. O microconto, ainda que encene um dia radioso, de sol escaldante,


no meio da tarde, é um gênero noturno.

27. O microconto é inapreensível. Toda arte é. A arte, em seu recorte,


representa uma totalidade fechada, autônoma — e oxímora,
referencial. O microconto também é totalidade.

28. O microconto coalesce nos limites da poesia e da narrativa,


incorporando e transformando formas simples e sub-gêneros
literários, formatando-se como um novo gênero.

29. O microconto é a poalha em réstia de luz nos escombros de uma


casa em ruínas.
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EPITÁFIO
Sultão, gozei festas, carrões, consumo, mulheres
mil. Deixo filhos às dezenas, para que
acabem logo com o planeta.
(RAUER, 2010)
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UMA INTRODUÇÃO HISTORIOGRÁFICA AO


ESTUDO DO MICROCONTO BRASILEIRO
Fabrina Martinez de Souza1
Rauer Ribeiro Rodrigues 2

INTRODUÇÃO

Uma geração de novos escritores brasileiros apostou no subgênero e iniciou o


processo de migração da internet para o papel, aumentando a quantidade de livros e
antologias dedicadas ao microconto. Essa geração foi impulsionada pela tecnologia que
oferece suportes baratos para a publicação e divulgação do ofício da escrita. Assim como
Ian Watt, no livro Ascensão do Romance, enumerou os impactos da revolução industrial
do século XVIII que permitiram que a narrativa romanesca se estabelecesse, hoje não é
possível ignorar o impacto da internet na ascensão do microconto brasileiro. Tendo em
vista fazer uma introdução historiográfica ao estudo do microconto brasileiro, comparamos
o poema “Amor”, de Oswald de Andrade, publicado em 1927 no Primeiro Caderno do
Aluno de Poesia Oswald de Andrade, a um microconto de Daniel Galera, sem título,
publicado na antologia Os Cem Menores Contos Brasileiros do Século (Freire, 2004).
Registre-se que o volume organizado por Marcelino Freire contempla diversos
autores dos mais conhecidos da literatura brasileira, tais como Antônio Torres, Dalton
Trevisan,João Gilberto Noll, Luiz Ruffato, Lygia Fagundes Telles, Manoel de Barros,
Marçal Aquino, Miguel Sanches Neto, Millôr Fernandes e Moacyr Scliar, para mencionar
somente uma dezena entre eles.
Nossa proposição é de que a diferença entre a proposta estética de Oswald e a
proposta estética de Galera decorre da revolução tecnológica do final do século XX, a
partir do momento em que a mídia eletrônica muda a forma como entendemos e nos
relacionamos com a literatura. Se a tecnologia impõe mudança na abordagem do fenômeno

1
Fabrina Martinez de Souza é graduada em jornalismo, mestranda no Programa de Pós-Graduação em Letras na
área de Estudos Literários da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul – Campus de Três Lagoas, e
Bolsista Capes/Reuni; fabri_na@yahoo.com.br.
2
Rauer Ribeiro Rodrigues é professor de Literatura Brasileira na UFMS, doutor em Estudos Literários pela
UNESP de Araraquara e professor no Mestrado em Letras da UFMS, em Três Lagoas, onde coordena o Grupo
de Pesquisa Luiz Vilela (www.gpluizvilela.blogspot.com); rauer.rauer@uol.com.br.
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literário, há mudanças também no comportamento das pessoas. Verificamos como uma


mudança comportamental no âmbito do entendimento do que é público e do que é privado
implica em diferentes soluções estéticas na produção de microcontos.

MICROCONTO: GÊNERO FUGIDIO

Diante da evidência empírica, válida para todas as Américas e para a Europa, da


multiplicação de narrativas de poucas palavras em blogs, em periódicos e em livros, cabe
perguntar: o microconto é uma forma literária nova? O microconto é uma forma literária? Ou,
simplesmente: tendo por referência a produção atual na literatura brasileira, o que é
microconto? Quais precursores devemos considerar para elaborar uma historiografia do
microconto na literatura brasileira?

Heloísa Buarque de Hollanda, pesquisadora da Universidade Federal do Rio de Janeiro


(UFRJ), afirma que “a crítica tem que correr atrás do seu objeto porque este está andando
muito rápido e,
principalmente
agora, ele está
andando mais
rápido ainda”
(Hollanda,
2010, p. 138).

Nas últimas
duas décadas, a
quantidade de
livros e anto-
logias de mi-
crocontos no
Brasil cresceu
vertiginosamente. A pesquisa não. Sequer temos uma linha do tempo dos autores que em
algum momento dedicaram-se ao subgênero. E não são poucos. Ou insignificantes. A
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pesquisadora afirma ainda que o “truque” para acompanhar os novos tempos é historicizar.
Nesse caso, na busca de resposta a essas questões fulcrais, propomos voltar nossa visada
contemporânea à Inglaterra do século XVIII com um questionamento em área das mais
exploradas nos estudos literários: o romance é uma forma literária nova?

No livro Ascensão do Romance, lançado em 1957, Ian Watt enumerou os impactos da


revolução industrial que, no século XVIII, permitiram que a narrativa romanesca se
estabelecesse mesmo em condições desfavoráveis, que não eram poucas ou insignificantes. A
nossos olhos, acostumados com luz, era uma época estranha. Precisamos considerar, e talvez
seja esse o melhor começo, que as condições para a leitura eram precárias. A privacidade era
mínima, pois as moradias viviam cheias, o interior das residências era escuro e as velas, ainda
que baratas, eram artigos de luxo. No século XVII foi instituído um imposto sobre janelas e as
poucas que restaram eram fundas e estavam cobertas com papel ou vidro verde. O número de
pessoas alfabetizadas era irrisório. Disciplina social e educação religiosa eram as prioridades:
“ensinar a ler, escrever e fazer contas constituía um objeto secundário, raramente perseguido
com grandes esperanças de sucesso” (Watt, 2010, p. 41). Raramente uma criança permanecia
na escola: depois dos seis ou sete anos elas eram encaminhadas às fábricas e o trabalho tinha a
duração da luz do dia. Saber ler era necessário somente para quem se destinava ao comércio
ou à administração, por exemplo.

Ironicamente, essa foi a época em que o ofício da escrita deixou de ser restrito a quem
se dedicava a aprender ou ao menos aparentava isso. As pessoas comuns estavam trabalhando
e não tinham tempo para aprender a ler, o que dirá imaginar. Mas esse foi o século dos
autores, quando homens de “todos os níveis de capacidade, todo tipo de instrução, toda
profissão e todo emprego se dedicaram com tamanho ardor à palavra impressa” (Dr. Johnson
apud Watt, 2010, p. 61).1

Numa época na qual as pessoas mal conseguiam enxergar os tipos sobre o papel,
escrever virou profissão. Relativamente bem remunerada, uma vez que os livreiros — um
cargo semelhante ao do atual editor — pagavam por página produzida. Os livreiros não

1
Eis a fonte de Watt: H. J. Habakkuk, “English land owership, 1680-1740”, Economic History Review, X
(1940), p. 2-17. Em seu trabalho, Watt referencia também as seguintes obras: 1) Londres, 1904, p. 26. 2) Helen
Sard Hughes, “The middle class reader and the English novel”, JEGP, XXV (1926), p. 362-378. 3) Cross,
Fielding, I, p. 315-316.
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faziam distinção entre poema e prosa, o que eles viam era a página escrita, prestes a ser
impressa e vendida. Tornou-se comum, na época, dizer que as obras eram desnecessariamente
alongadas para que o autor pudesse ganhar mais com o trabalho.

Sobre o preço dos exemplares, Watt explica que proporcionalmente se manteve no


mesmo patamar até 1956, quando realizou seu estudo. Já o salário cresceu, no mesmo
período, até dez vezes. “Nenhuma velha pode arcar com o preço, mas (todas) compram
Robinson Crusoé”, caçoava Charles Gildon (apud Watt, 2010, p. 43).1 A edição original
custava dinheiro suficiente para sustentar uma família por uma semana ou duas.

Depois de tantas dificuldades, o processo natural é nos perguntarmos: quem lia?


Mulheres. A revolução industrial permitiu que as mulheres deixassem de realizar algumas
atividades, aumentando o período de ócio. O acesso à diversão também era restrito, uma vez
que elas não podiam participar do entretenimento masculino, que consistia basicamente em
beber. Além das mulheres, é preciso considerar os aprendizes, camareiras e criados mais
favorecidos que usufruíam de condições favoráveis para leitura, tempo e, é claro, da
biblioteca dos patrões. Watt afirma que é difícil precisar quanto do ócio era dedicado à leitura,
mas que era existente e considerável. Contudo, para o propósito específico desta
comunicação, nos interessa relacionar a revolução industrial do século XVIII com as
mudanças na mecânica industrial do final do século XX. Por quê? Deixemos a explicação
com Ítalo Calvino:

A segunda revolução industrial, diferentemente da primeira, não oferece


imagens esmagadoras como prensas ou laminadores ou corridas de aço, mas
se apresenta com bits de um fluxo de informação que corre pelos circuitos
sob a forma de impulsos eletrônicos. As máquinas de metal continuam a
existir, mas obedientes aos bits sem peso. (Calvino, 1990, p. 20).

Quando pensamos na produção literária brasileira, a afirmação de Calvino, publicada


em Seis Propostas para o Próximo Milênio, nos mostra pelo menos duas linhas de força;
sociedade e escritor. O microconto é um subgênero em ascensão no Brasil que, muitas vezes,
se confunde com a poesia. Desde a década de 1920, autores como Oswald de Andrade
publicam poemas desconcertantemente curtos. É dele, inclusive, o marco dessa contravenção
lingüística brasileira, publicado em 1927:

1
GILDON, Charles. Robinson Crusoe examin’d and Criticis’d, Ed. Dottin (Londres e Paris, 1923), p. 71-2.
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Amor
humor

(Andrade, 2006, p. 27).

Ele teve precursores ilustres — e inesperados: por exemplo, em Canções sem metro,
volume de contos de Raul Pompéia, muitos deles de meia página, ou menos. Destaquemos
“Uma impressão” (1881):

Subia o pano... Vi-a pela primeira vez...


Pequenina e fulgurante como uma estrela; possuía todas as cintilações
do gênio num rosto de criança. Iluminava o palco, maravilhava a plateia.
Aquele pequeno sorriso que ela tinha; as mil cambiantes de olhar, que
lhe passavam pela fisionomia como raios luminosos através das facetas das
gemas; as inapreciáveis ternuras da voz... calaram-me fundo no coração...
E eu recalquei dentro em mim um temor: não vá consumir-se o foco
de tanta luz; não vá muito cedo extinguir-se a pobre estrela, culpada de ser
estrela. (Pompéia, 1982, p. 106).

Trata-se de um flagrante em que se pode entrever a atmosfera, sendo a narrativa tão só a


apreensão do olhar, com sua consequência única e imediata. Exemplo único, talvez, em toda a
obra, dado o pendor de Pompéia de quebrar a síntese que caracteriza, hoje, o microconto, por
acrescentar, ao final, um juízo, como se seus quadros impressionistas fossem fábulas
filosóficas. Vislumbramos ao menos mais um exemplo. De “Vozes da vida”, podemos citar o
“A carne”: “Eu sou o amor.” (Pompéia, 1982, p. 76 ou 135). Parece um precursor interessante
do “Amor” oswaldiano, na síntese de uma única frase, embora sua proposição se assemelhe
mais à feita por Manuel Bandeira em seu poema “Arte de amar”: “Deixa o teu corpo
entender-se com outro corpo. / Porque os corpos se entendem, mas as almas não.” (Bandeira,
1973, p. 202). Em todo caso, é precursor legítimo do microconto brasileiro que vigorará mais
de um século depois.

No primeiro livro de Carlos Drummond de Andrade, Alguma poesia (1930), diversos


poemas bem podem ser considerados microcontos avant la letre. Eis alguns, mantidas a
ortografia da primeira edição: “Construcção”, “Nova Friburgo”, “VIII – Bahia”, “Política
literária”, “Poema que aconteceu”, “Cidadesinha qualquer”, “Quadrilha”, “Anecdota bulgara”
e, em particular, “Cota O” [“Cota Zero”]: “Stop. / A vida parou / ou foi o automóvel?”
(Andrade, 2010, p. 189). Já aqui se vislumbra a coalescência inescapável do microconto de
nossos dias, fazendo da prosa, poesia, e incorporando a poesia à prosa. Nas palavras de Régis
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Bonvincino, “‘Cota zero’ é peça que representa o espírito crítico, a vanguarda, para além da
própria ‘vanguarda’, e fala para o presente” (Bonvicino, 2009).

Oswaldo França Júnior, um romancista com um único livro de narrativas curtas, As


laranjas iguais (1985), tem, entre os sessenta e um contos da coletânea, diversos que são
muito curtos, como — para citar somente alguns — “O erro”, “O tempo lá de fora” e “O
nome”. São narrativas que já se aproximam daquelas em que há uma situação e uma única
ação ou mudança de estado, como podemos caracterizar o microconto de nossos dias. Mas
estamos ainda em uma etapa de transição, pois França Júnior (1985) não visava o elíptico e a
síntese, uma vez que, embora buscasse a gênese de uma única ação, desdobrando-a em uma
ou duas consequências, descrevia espaço e tempo, o que, ainda que sucinto, não se observa
nos microcontistas do século XXI.

Mais sintéticos, foram, nos anos 90, Millôr Fernandes e Dalton Trevisan. Com seus
haikais narrativos, com suas frases pícaras ou fesceninas, com a redução da narrativa a
cacoetes linguísticos cuja reiteração ampliava as cargas semânticas das escolhas lexicais,
produziram microcontos — dir-se-ia — quase que em série. Se muitas dessas narrativas são
antológicas, a opção pelo riso ou pelo escatológico produziu epígonos também em série,
desgastando o modo, transformado em modelo.

Por isso, é somente no século XXI que o microconto brasileiro — enquanto subgênero
narrativo — ganhou fôlego, no momento em que uma geração de autores brasileiros na faixa
dos vinte anos começa a migrar da internet para o papel. Não nos interessa, aqui, discutir o
suporte, as novas tecnologias ou a convergência da mídia: não é caminho necessariamente
novo, se lembrarmos que muitos romancistas do século XVIII publicavam em jornais para
depois publicarem seus folhetins em livros. O que nos importa, nesse momento, é pensar na
leveza e agilidade da revolução anunciada por Calvino, pois ela traz consigo elementos que
estão na raiz do microconto.

O AUTOR SE EXPLICA

Para historicizar, vejamos o depoimento de um novo autor brasileiro:


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Publiquei meus primeiros textos na web, em diversos sites e publicações


online, o que me permitiu formar um público leitor antes mesmo de ter livro
publicado. O uso desse meio me pareceu uma escolha óbvia na época, por
seu baixo custo e alto potencial de divulgação. Não sei como estaria hoje
sem a internet. (Galera, 2011).

A afirmação do escritor Daniel Galera, que nasceu em 1979 e publica na rede desde
1996, pode ser lida como uma epígrafe de toda uma geração. Entre os anos de 1998 e 2001,
antes do twitter e do blog, Galera criou e foi colunista do mailzine Cardosonline (COL), que
revelou — no mínimo — dois outros escritores: Daniel Pellizzari, nascido em 1974, e Clarah
Averbuck, que nasceu em 1979. Galera, com Pellizzari e o artista plástico Pilla, fundou em
2001 o selo editorial independente Livros do Mal, onde lançou a coletânea de contos Dentes
Guardados (2001) e a novela Até o Dia em que o Cão Morreu (2003), que deu origem ao
premiado filme Cão sem Dono. Três anos depois, Mãos de Cavalo, seu primeiro romance, foi
publicado pela Companhia das Letras, uma das maiores editoras comerciais do Brasil. Desde
então, sua novela foi reeditada (2007), lançou um segundo romance, Cordilheira (2008), e a
graphic novel Cachalote (2010). Atualmente trabalha em seu terceiro romance, ainda sem
data prevista de lançamento. Além disso, fez parte de diversas antologias focadas nos novos
autores e mantém um site pessoal, uma conta no twitter e um perfil no facebook,
prioritariamente voltados para sua atividade literária.

Galera ocupa um lugar confortável na literatura brasileira. A crítica especializada aponta


sua produção como consistente, seus contos foram adaptados para o teatro e cinema, a novela
deu origem ao premiado filme Cão sem Dono e seus primeiros livros impressos se tornaram
objetos de desejo. Num site que reúne milhares de sebos e livreiros brasileiros, só há um
exemplar de Dentes Guardados, disponível à venda por R$ 100 reais.1 Os livros de Galera,
produzidos em sua extinta editora, são rapidamente vendidos — a qualquer preço — quando
surge algum exemplar na rede de sebos.

O escritor, ainda jovem com seus 31 anos, é visto como um referencial para aspirantes e
iniciantes. Em 2004, participou da antologia Os Cem Menores Contos Brasileiros do Século,
com um microconto sem título. Ei-lo:

1
Site Estante Virtual, < http://estantevirtual.com.br/livrariapassos/Daniel-Galera-Dentes-Guardados-52213941
>, consultado em 05 de outubro de 2011.
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Botei uma sunga para apavorar.

(Galera, in Freire, 2004, p. 36).

Mais à frente, retomamos esse microconto para discutir a questão do público e do


privado na nova literatura brasileira. Agora, tendo o microconto de Daniel Galera em nosso
horizonte e depois das analogias empreendidas, vejamos as diferenças formais entre romance
e microconto. E não se trata apenas de tamanho. Jornal e romance “estimulam um tipo de
hábito de leitura rápida, desatenta, quase inconsciente” (Watt, 2010, p. 51). Está tudo lá.
Personagens, espaço, acontecimentos e outras categorias que definem um discurso narrativo.
Olhemos para o microconto de Galera. Um discurso com enunciado referencial, formado por
cinco palavras, sendo dois verbos. Embora haja uma única indicação do gênero da
personagem, que vem através do substantivo sunga, não há evidências de que realmente se
trate de um homem. O que podemos afirmar com certeza é que esse microconto narrado em
primeira pessoa constrói uma imagem e lança inúmeras dúvidas. O microconto — a julgar por
esse — é um desafio.

O microconto faz referência ao período anterior ao lançamento do primeiro livro de


Galera. O COL inicialmente era visto como um mailzine com resenhas, reportagens ou contos;
contudo, dez anos depois do seu fim, é inegável que ele tenha seu lugar na literatura brasileira
contemporânea. Para nos mantermos no mesmo autor, é preciso dizer que treze dos catorze
contos selecionados no livro de estréia de Galera foram publicados inicialmente no mailzine.
Nos arquivos do COL1 é possível encontrar textos confessionais, de memória ou biográficos
que expõe a vida desses jovens escritores. E fotos. Nelas, registros das festas que aconteciam
na casa dele em Porto Alegre. Numa dessas, um amigo dele chegou e declarou: coloquei uma
sunga para apavorar. O microconto é, nesse caso, uma piada interna, uma piscadela de Galera
ao passado, aos amigos e aos antigos leitores. Cumplicidade que se repete várias vezes em sua
obra e de várias formas.

Após a extinção do COL, muitos participantes migraram para sites pessoais ou blogs e
mais recentemente para as redes sociais. Cabe aqui uma hipótese interessante, que merece ser
devidamente pesquisada, já que foge do objetivo deste artigo: aparentemente, a quantidade de

1
O arquivo do COL, que inclui as 278 edições regulares, especiais e fotos, está disponível para download no
endereço http://qualquer.org/col/. Acesso em 27 de setembro de 2011.
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informações sobre a vida pessoal dos autores é tão abundante que acabamos por saber mais do
autor do que da obra. Essa (por falta de opção assim a chamaremos) nova fronteira entre o
público e privado pode tanto iluminar quanto deixar opaca a leitura dos microcontos.

Para verificar o modo como o privado invade o público na nova literatura brasileira,
vamos percorrer caminho que perpassa a relação entre literatura e sociedade, ficção e história,
a partir de exemplos da literatura brasileira dos anos 60 aos nossos dias.

O PÚBLICO E O PRIVADO

O escritor não é uma mônada. Reservado ou recluso, o escritor está no mundo e de


alguma forma, em maior ou menor intensidade, é influenciado por ele. No conto “No bar”,
publicado em livro homônimo no ano de 1968, o escritor mineiro Luiz Vilela apresenta duas
personagens discutindo a teoria da mônada do filósofo Leibniz. Em determinado momento da
narrativa, a personagem principal tem uma epifania. Para ela, o amor é uma chaminé. Uma
brecha na casca que permite que a mônada receba e envie influências do e ao mundo externo.
Para o leitor, essa chaminé é a Literatura. Voltemos. Ainda que o escritor seja reservado ou
recluso há muito do mundo — seu mundo particular, principalmente — em sua obra.
Memórias de infância, de família, a vizinha, um emprego antigo, a cor do asfalto, um cheiro
de ralo, o barulho do elevador, a cor do cachorro. O mundo influencia. E não há como
descolá-lo do autor.

Em Literatura e Sociedade, cuja primeira edição é de 1965, o crítico Antonio Candido


cita René Bady para falar da relação entre artista e meio:

O poeta não é uma resultante, nem mesmo um simples foco refletor; possui o
seu próprio espelho, a sua mônada individual e única. Tem o seu próprio
núcleo e o seu órgão, através do qual tudo o que passa se transforma, porque
ele combina e cria ao devolver a realidade. (Bady apud Candido, 1976, p.
18).1

1
René Bady, Introduction à l’étude de la literature françoise, Friburgo, Éditions de La Librairie de
l’Univerisité, 1943, p. 31.
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Dessa forma, considera-se que o poeta — e aqui estenderemos essa definição a todos
os escritores — não são mônadas, mas possuem uma dentro de si. Um núcleo criador que
funciona como filtro entre o mundo, ele e sua produção literária. Consequentemente, para
acessar sua obra dos mais diversos ângulos, é preciso olhar para esse núcleo. Visão que
muitas vezes fica disponível quando atravessamos a linha que divide o público e o privado na
produção literária. Biografias, memórias, entrevistas, cartas, crônicas e, mais recentemente,
blogs, redes sociais, sites, são instrumentos que não apenas podem iluminar um poema ou
uma narrativa, mas principalmente podem fornecer novas perspectivas de crítica e
interpretação de um texto literário. É material que sempre contém a valiosa voz do autor a
respeito da sua obra e de si mesmo. Ainda que se mantenha a saudável postura da dúvida, de
ceticismo quanto ao que o autor diz de si mesmo e de sua obra, é preciso reconhecer o valor
que esse instrumental oferta.

Quem há de negar o imenso valor exegético, para ambas as obras, da correspondência


trocada entre o poeta pernambucano Manuel Bandeira e o modernista Mário de Andrade,
entre 3 de fevereiro de 1914 e 17 de maio de 1945 — carta, essa última, que chegou após o
falecimento de Mário de Andrade. O volume, organizado por Marcos Antonio de Moraes e
publicado pela Edusp em 2000, permite novas hipóteses de leitura tanto de um quanto de
outro autor:

Esse diálogo epistolar forja um espaço ficcional privilegiado para onde


convergem personagens, situações, confrontos e ambiência histórica
abarcando mais de duas décadas. (Moraes, 2000, p. 13).

Há de se considerar que o privilégio deste espaço resida na confiança mútua,


garantindo aos críticos e pesquisadores um registro — sem censura — de uma das mais
relevantes épocas da Literatura Brasileira. Entre as preciosidades mais óbvias, podemos citar
alguns versos manuscritos de Paulicéia Desvairada, publicado em 1922. Além disso, é
possível ler as confissões de Manuel Bandeira sobre seu trabalho como cronista. Em carta de
24 de julho de 1928, Bandeira conta sobre seu novo emprego como cronista.

Isso é novidade. A Província é um dos jornais tradicionais de


Pernambuco. Ultimamente andava muito decaída. Agora foi adquirida
por uma sociedade anônima que convidou o Gilberto Freire para
diretor do jornal. Gilberto vai levantá-lo. O Manuel Bandeira pintor
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será diretor artístico e desenhista. Gilberto me convidou a escrever


duas vezes por semana sobre atualidades cariocas. Poderei juntar um
cobrinho regular. (Carta de Manuel Bandeira, in: Moraes, 2000, p.
398).

Poucos meses depois, em carta de 29 de setembro, uma reclamação:

— Ai, que fadiga! Com essa coisa de escrever um artigo por semana para A
Província e uma coisa ou outra para a Ilustração e Para Todos fico pregado.
Só faço isso porque pagam bem. [...] Escrevo o diabo do artigo e num
instante a outra semana chega! (Carta de Manuel Bandeira, in: Moraes,
2000, p. 407).

Nesses recortes de apenas duas cartas, uma quantidade considerável de informações


sobre o trabalho de Manuel Bandeira como cronista, que rendeu três volumes1 reunindo seus
textos. Podemos analisar sua relação com o gênero (crônica e/ou prosa), o suporte (jornal), a
periodicidade e, porque não falar?, de suas motivações financeiras. Fato é que o acesso a essas
informações privadas abrem novas possibilidades de leitura de um poeta canônico, e mostram
os caminhos traçados pela poesia num gênero que circula em espaço distinto, o jornal diário.

No artigo “O estudo da crônica sob o foco da crítica contemporânea”, o pesquisador


Luiz Carlos Santos Simon afirma:

[...] é preciso reconhecer que a mídia e seu acelerado processo de


alargamento exercem influência decisiva sobre os rumos tomados pela
literatura e pelos estudos literários. À medida que as incorporações são
promovidas pelos escritores, cresce também a demanda para estudos que
investiguem esse fenômeno de invasão midiática sobre o terreno da cultura
erudita. [...] O estudioso passa a procurar novas ferramentas para prosseguir
em seu ofício, que já não é mais o mesmo. Inclusão torna-se a palavra de
ordem. E nesse processo, é preciso também dar atenção às novidades e às
diferenças reveladas nas produções mais recentes. (Simon, 2010, p. 72-73)

Ao apontar para esse processo acelerado da mídia e a influência que ela gera nos
escritores, nossa primeira reação é pensar na geração de escritores surgida a partir da década
de 90 do século passado. E ainda que tenham se passado apenas vinte anos, o peso dos séculos
se faz sentir quando pensamos que Nelson de Oliveira referenciou essa geração como aquela

1
Recentemente, a editora Cosac Naify lançou três volumes com as crônicas de Manuel Bandeira. São eles:
Crônicas da Província do Brasil (2006; a primeira edição saiu em 1937); Crônicas Inéditas 1 (2008); e
Crônicas Inéditas 2 (2009).
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que produzia “manuscritos de computador”. Uma geração que não mais escreve a lápis,
utilizando caneta ou em máquinas de escrever. Que nasceu à margem da internet e fez dela
seu suporte de publicação, divulgação, crítica e relacionamento com o leitor. O que, de certa
forma, obriga a crítica a olhar para sites especializados, pessoais, blogs ou redes sociais não
como modismo, mas como instrumentos de formação do escritor, de conformação da
linguagem do escritor, e de possibilidades autorais e editorias sem paralelo nas obras nascidas
para o suporte papel, em especial com a constituição de links, de hipotextos e hipertextos, de
simultaneidade de formas de representação, de interconexão com outras artes, além de
recursos de interrelação com o leitor ainda inexplorados esteticamente. Além, claro, de
espaços capazes de fornecer informações sobre os autores e suas obras.

Beatriz Resende, em Contemporâneos: expressões da literatura brasileira no século


XXI, de 2008, afirma que

Os diversos usos da internet rapidamente influenciarão a escrita em


suas formas mais antigas: a carta será substituída pelo e-mail; o diário
íntimo, pelo blog, que torna público, em maior ou menor escala — conforme
o gosto do autor —, o registro da vida privada. (Rezende, 2008, p. 136).

A exposição de informações íntimas é um fato consumado. Se até meados da década


de 1990, o leitor tinha que esperar a publicação de uma biografia ou memórias de seu autor
favorito para ler informações íntimas sobre ele, seu relacionamento com outros autores ou
simplesmente ver suas fotos, hoje tudo isso é simultâneo, instantâneo, às vezes precedente. É
fato também que nem todo autor se expõe ou se mantém exposto. Basta citarmos duas figuras
clássicas nesse tópico: Rubem Fonseca (1925- ) e Dalton Trevisan (1925- ).

No extremo, dois outros autores, Daniel Galera (1979- ) e Ivana Arruda Leite (1951- ),
que teriam contribuído para a mudança no que até então entendíamos como fronteira entre o
público e o privado ao exporem informações íntimas simultaneamente à construção de sua
obra ao mesmo tempo em que abrem espaços para o contato direto com o leitor, deixando
“rastros” de sua intimidade na internet. Para isso, temos em nosso horizonte os microcontos
“Feijoada” de Leite e o já mencionado [Sem título], de Galera, ambos publicados na antologia
Os Cem Menores Contos Brasileiros do Século (Freire, 2004). Vejamos os textos:
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FEIJOADA

Confesso.
Fui eu que enfiei a faca
na barriga desse porco.

(Leite in Freire, 2004, p. 37).

Botei uma sunga pra apavorar.

(Galera in Freire, 2004, p. 21).

As duas narrativas diferem entre si em inúmeros aspectos e uma tentativa de


aproximação, tendo em vista sua estrutura, talvez se mostre improdutiva. O recorte foi feito
tendo em vista a quantidade de informações íntimas dos autores disponível na internet que
elucidam a leitura dos microcontos.

Para a leitura do microconto de Galera, elegemos os “e-mails”1 que o autor trocou com
o editor André Conti a pedido do Instituto Moreira Salles 2. A correspondência se deu entre os
meses de janeiro e abril de 2011.

No e-mail do dia 25 de fevereiro de 20113, Galera conta:

Eu também fiz essa travessia da Lagoa da Conceição em Florianópolis. Foi a


primeira travessia que nadei na vida, eu tinha uns dezesseis anos, acho. Na
época o percurso era de 2300m. Falei brevemente dessa prova num texto
sobre a Travessia dos Fortes que publiquei na Piauí uns anos atrás. Comentei
a violência da largada e a visão de sofás, cuecas e detritos diversos no fundo
da lagoa, era algo assim. Existe uma foto horrorosa que meu pai tirou na
chegada, estou com uma garrafa d´água na mão, de sunga e óculos na testa,
inchado e desprovido de pêlos corporais, com uma expressão patética no
rosto, parecendo alguém que acaba de acordar de uma anestesia geral após
um grave acidente de carro. (Galera, 2011).

1
A denominação “e-mail” foi mantida em função do suporte onde foi publicado, um site.
2
http://blogdoims.uol.com.br/correspondencia/. Acesso em 20 de novembro de 2011, às 00h17.
3
http://blogdoims.uol.com.br/daniel-galera/a-morte-num-corpo-vigoroso-e-saudavel/. Acesso em 20 de
novembro de 2011, às 00h17.
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Seria esse relato uma chave para a leitura do conto? Ainda que exista a possibilidade
de aproximação e leitura é preciso considerar alguns fatores. Embora essa troca de e-mails
entre Galera e Conti seja farta de detalhes, não podemos deixar de ponderar que (a) ela foi
uma encomenda de uma instituição privada, e (b) não teria o mesmo grau de naturalidade que
uma ação espontânea teria; portanto, (c) essa reprodução não apenas elimina completamente a
liberdade do autor em dizer o que pretende, mas (d) faz com que ele seja a representação
pública, idealizada até quando desidealizada, de si mesmo. Considerando esses elementos, é
preciso seguir adiante na pesquisa e buscar novas fontes. E, consequentemente, a chave para a
leitura. Nesse caso, outro lugar, o mesmo suporte.

O microconto faz referência ao período anterior ao lançamento do primeiro livro de


Galera. O COL1 inicialmente era visto como um mailzine com resenhas, reportagens ou
contos. Apresenta textos confessionais, que expõem o modo de vida dos autores. Portanto, seu
texto é baseado no mecanismo da memória. Uma situação que viveu e que quase de imediato
torna-se público. Anos depois, a memória do amigo que chega a uma festa do COL dizendo
que “colocou uma sunga pra apavorar” ganha status de literatura ao ser tratada como um
microconto e publicada numa antologia temática. O microconto pode ser visto, nesse caso,
como uma memória privada que não apenas se torna coletiva como é anos depois elevada à
condição de literatura. Nesse caso, cabe perguntar: onde está grafado o limite entre público e
privado?

Sem poder responder à essa pergunta de maneira direta, consideramos que o


microconto seja uma piada interna, uma piscadela de Galera ao passado, aos amigos e aos
antigos leitores. Cumplicidade que se repete várias vezes em sua obra e de várias formas. No
entanto, essa leitura é possível devido ao trabalho de pesquisa. Entretanto, uma vez que
responde à origem do microconto, não elimina suas possibilidades de leitura, análise ou
interpretação — para além, e mesmo desconsiderando, a questão biográfica.

Olhemos para o microconto de Galera. Está tudo lá. Personagens, espaço,


acontecimentos e outras categorias que definem um discurso narrativo. Um discurso com

1
O arquivo do COL, que inclui as 278 edições regulares, especiais e fotos, está disponível para download no
endereço http://qualquer.org/col/. Acesso em 27 de setembro de 2011.
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enunciado referencial em cinco palavras e dois verbos. Uma imagem, inúmeras dúvidas, e um
desafio, quase uma charada, constituem o microconto.

É, o microconto, como subgênero, não é gentil. Não tem a compaixão do romance ou a


simpatia do conto. Não oferece filme ou foto. Exige. É o leitor quem começa, termina ou,
simplesmente, aceita a história. O microconto provoca perguntas cujas primeiras respostas só
podem ser proporcionadas por quem vivenciou seu período de formação como escritor — ou
por quem tem em mãos suas publicações iniciais e seus emails.

Já o microconto de Leite (in Freire, 2004) fornece mais subsídios para análise
estrutural. A presença de um título — “Feijoada” — permite duas possibilidades de leitura. A
primeira com temática gastronômica, o cozimento de um prato típico, e a segunda de um
assassinato. O tipo de porco esfaqueado fica a critério do leitor. Contudo, uma pesquisa no
blog Doidivana1, não só aponta as duas direções como reforça as possíveis leituras
supracitadas. No blog que mantém desde agosto de 2007, Leite publica fotos de lançamentos
de livros, palestras, seminários, reuniões íntimas em sua casa (na de parentes ou amigos),
premiações e viagens; e, também, relatos, memórias, divulgação de seus livros, informes
sobre outros escritores, atividades culturais, receitas culinárias ou contos. Rápida pesquisa no
sistema de busca do blog mostra catorze resultados para a palavra “Feijoada”. Aliás,
considerando as categorias do blog, é preciso dizer que ele registrava 2 110 textos falando de
restaurantes, comidas e gastronomia. Mas, antes de optarmos pela leitura de uma escritora da
área dos comes & bebes, é preciso dizer que existem 35 crônicas — publicadas na Revista da
Folha entre fevereiro e novembro de 2004 — e 93 contos, retirados de seus dois livros de
contos e inúmeras antologias. Além deles, Leite publicou um romance, uma novela, quatro
livros juvenis, um infantil e organizou duas antologias, além de participar de outras. Nos
contos cadastrados no blog, a temática da violência aparece. Como no conto a seguir,
publicado em 31 de dezembro de 2009:

Pegue o homem que te maltrata, estenda-o sobre a tábua de bife e comece a


sová-lo pelas costas. Depois pique bem picadinho e jogue na gordura quente.
Acrescente os olhos e a cebola. Mexa devagar até tudo ficar dourado. A

1
http://doidivana.wordpress.com. Acesso em 20 de novembro de 2011, às 23h15
2
Acesso em 20 de novembro de 2011
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língua, cortada em minúsculos pedaços, deve ser colocada em seguida, assim


como as mãos, os pés e o cheiro verde. Quando o refogado exalar o odor dos
que ardem no inferno, jogue água fervente até amolecer o coração. Empane
o pinto no ovo e na farinha de rosca e sirva como aperitivo. Devore tudo
com talher de prata, limpe a boca com guardanapo de linho e arrote com
vontade, pra que isso não se repita nunca mais. (Leite, 2009).

O conto “Receita para comer o homem amado”, publicado inicialmente no livro Falo
de Mulher, em 2002, tem a mesma estrutura textual de “Feijoada”. Relaciona o homem com
uma comida e o ato de comer a uma ação violenta. Se considerada a teoria da história secreta
— todo conto conta duas histórias — do escritor argentino Ricardo Piglia, é possível
entrelaçar essa relação entre gastronomia e violência. Como se ambas as personagens fossem
antropofágicas e não apenas carnais. E ao acionarmos outros instrumentos de análise, como o
blog, percebemos que a comida tem um papel muito mais importante do que alimentar. Tem a
função de celebrar, vivenciar, experimentar e compartilhar — no que, aliás, segue a
construção simbólica universal do ato de comungar refeições.

Portanto, é possível dizer que a leitura dos microcontos tende a ser enriquecida pelas
informações disponíveis de ambos os autores. Somente através da trajetória pessoal de Galera,
que tem detalhes pessoais publicados em vários sites, é que a opacidade de seu texto se dilui e
podemos enxergar o que há naquela frase além da evocação inicial. No caso de Leite, há um
aprofundamento das temáticas, pois elas estão presentes tanto em seus textos literários quanto
nos registros pessoais.

Em “Novas geografias narrativas”, Maria Zilda Ferreira Cury afirma que a literatura
contemporânea mudou e que é preciso fazer uma reflexão sobre “novas cartografias
literárias”. Eis a reflexão da pesquisadora:

Muitos desses escritores têm, hoje, uma inserção maior ou mais visível na
imprensa, fazem apresentações em festivais de literatura (como a Flip, por
exemplo), participam de performances, exercem a função de críticos
literários em revistas especializadas, alargando enfim, o espaço de sua
participação para outros que não o exclusivo do livro, caracterizando-se
como agentes culturais, transitando por espaços que não estritamente
literário, o que, inevitavelmente, interfere na escrita dos seus textos. (Cury,
2007, p. 7).
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Escritores não são mônadas. Podem ter sua mônada particular, seu núcleo. Mas não
são mônadas. Ao contrário, esses artistas estão em todos os lugares, exercendo inúmeras
funções, falando de suas obras e de si mesmo. Intimidade, memórias, biografia e confissões.
Está tudo disponível paralelamente à construção da obra. A historiografia literária do futuro
haverá de mostrar os impactos permanentes dessa mudança, mas cabe desde já, a críticos e
pesquisadores, observar, considerar e trabalhar com essas novas fontes. A função da literatura
permanece a mesma, contudo essas novas fronteiras entre público e privado ampliaram o
conceito de relacionamento e produzem novos modos de leitura. No caso do microconto, um
subgênero cuja maior característica é a concisão extrema, a disponibilidade de informações
privadas enriquece a leitura e desafia o leitor a entender os limites entre o escritor e sua obra,
bem como dos elementos que constituem a narrativa

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Retomemos algumas de nossas considerações. O microconto não é gentil. Não tem a


compaixão do romance ou a simpatia do conto. Não oferece filme ou foto. Exige. É o leitor
quem começa, termina ou, simplesmente, aceita a história. Assim se faz, no Brasil, a literatura
que surge na interface com a internet na primeira década do século XXI.

Sob esse aspecto notamos uma grande diferença entre Oswald e Galera. E não está na
forma, mas no contexto. Oswald fala com todos e Galera fala aos seus. Amor é um tema
comum, mês nem por isso ordinário, e sim universal. O poema de Oswald é transparente
quando pensamos nas reações que o amor provoca no indivíduo. Todas as oscilações de
humor que provoca. O verso de Oswald é transparente aos nossos olhos, enquanto o
microconto de Galera é quase 100% evocação, o que a princípio está inacessível ao leitor.

Ao tentarmos entender o microconto, somos jogados diante de um novo problema.


Quem é o público-leitor da literatura contemporânea brasileira? E de carona com esse
problema, outro: a excessiva oferta de informações sobre os autores afeta o entendimento de
categorias dos estudos literários, como, por exemplo, a de escritor ou a de leitor?
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Antonio Candido afirma que a produção literária é formada por quatro momentos: “a) o
artista sob o impulso de uma necessidade interior, orienta-o segundo os padrões de sua época,
b) escolhe certos temas, c) usa certas formas e d) a síntese resultante age sobre o meio”
(Candido, 1976, p. 21).

No caso do microconto brasileiro, é preciso considerar que a internet tem uma


influência significativa na sua produção. Nesse sentindo, é preciso repetir, ela funciona como
um suporte de divulgação. O livro ainda é o objetivo dos autores. Não apenas como uma
conquista pessoal, mas como um reconhecimento social. Ou, nas palavras de Candido, uma
ação de “reconhecimento coletivo”. Não para responder se ele é uma forma literária nova, se é
uma forma literária ou o que é. Considerando que os autores o praticam, que as editoras os
publicam, devemos analisá-los diante da diacronia da literatura brasileira com o objetivo de
definir qual é, nesta primeira década do terceiro milênio, a poética do microconto brasileiro.

Nossas questões básicas, talvez por falta de distanciamento entre pesquisadores e objeto
de pesquisa, permanecem inapreensíveis. O microconto é um subgênero da narrativa de
ficção, sendo uma nova forma, mas sua constituição, sua formatação, exige autor e leitor com
a memória de toda a literatura precedente. Ao mesmo tempo, em poemas antigos, ou mesmo
em narrativas do século XIX, vislumbramos traços indiciadores de conto com um único nó
narrativo.

Assim, do ponto de vista da construção estética, o microconto não decorre tão só das
exigências da mídia eletrônica e das possibilidades advindas da revolução tecnológica digital
iniciada no final do século XX e ainda em plena florescência. Embora tal contexto modifique
o modo como os leitores se relacionam com a literatura, o entendimento do que é a literatura
segue seu curso natural, em via de mão dupla entre a autonomia estética e as implicações do
contexto sobre a criação artística. Sendo claro que há mudanças no fenômeno social da
literatura e no comportamento dos indivíduos dada a prevalência da internet e do controle
computacional no dia-a-dia social, ocorreram — e com o passar do tempo, ocorrem ainda
mais acentuadamente — deslocamentos conceituais quanto ao que é público e quanto ao que
deve permanecer privado. Em decorrência disso, tanto a produção de microcontos como a de
outros artefatos artísticos e gêneros literários experimentam soluções estéticas devedoras
desse novo quadro.
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Mas, sendo como descrito nos últimos parágrafos, o que é o microconto?, como o
definir?, como o descrever?, como o caracterizar?, como o distinguir dos demais gêneros e
formas? Seria a internet determinante na sua gênese ou tão só um suporte privilegiado para a
sua eclosão? Quais os seus precursores na literatura brasileira e na literatura universal de
todos os tempos? Essa introdução historiográfica não pretende responder a essas questões,
antes pretende colocá-las com clareza, para que o debate possa ser instaurado.

Parece-nos que a visada externa à obra, biográfica, é importante, mas não pode ser
condição sine qua non: antes de tudo, é preciso olhar para o enunciado, e ele precisa ter
autonomia comunicativa e estética. Parece-nos, também, que o microconto não é uma forma
literária nova. Seja no gênero narrativo ou gênero poético, as narrativas breves são constantes
na Literatura Brasileira. Raul Pompéia, Carlos Drummond de Andrade, Dalton Trevisan,
Manoel de Barros, Oswaldo França Júnior, Millôr Fernandes, Marçal Aquino, Ivana Arruda
Leite e Marcelino Freire, são alguns dos muitos escritores brasileiros que em algum momento
dedicaram-se ao microconto.

Para colocar mais uma pitada, quase uma provocação, o que são diversos dos capítulos
(tais como os “LXXXVI – O mistério”, “CVII – Bilhete” e “CXXXIX – De como não fui
ministro d’Estado”) das Memórias póstumas1 do Bruxo do Cosme Velho se não microcontos?

Entretanto, para que as respostas às candentes questões elencadas deixem de ser


pessoais, especulativas e provocativas, a crítica brasileira precisa, enfim, se debruçar sobre o
fugidio assombro multiforme que é o microconto literário de nossos dias.

Referencial:

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Instituto Moreira Salles, 2010. 389 p.
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1971.
BANDEIRA, Manuel. Estrela da vida inteira. 4. ed. Rio de Janeiro: Jose Olympio, 1973. 485 p.

1
Machado de Assis, 1998, p. 117, 136 e 160; a primeira edição do romance é de 1881.
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Corumbá, MS, novembro 2011, n. 4, p. 273
ISSN - 2176-6835

BONVICINO, Régis. O poema antifuturista de Drummond. In: Sibila, 28 abr. 2009. Disponível em:
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CALVINO, Italo. Seis Propostas Para o Próximo Milênio. Trad. Ivo Barroso. 2 ed. São Paulo: Companhia das
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WATT, Ian. A Ascensão do Romance. Trad. Hildegard Feist. São Paulo: Companhia das Letras, 2010.
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INTENSIDADE, BREVIDADE E COALESCÊNCIA:


DAS VERTENTES DO CONTO, O MICROCONTO

Waleska Rodrigues de Matos Oliveira Martins 1


Resumo: Atualmente, a sociedade se vê “tensionada” numa relação tempo-espaço que evidencia a
rapidez dos acontecimentos, a incerteza das posições, o sujeito em metamorfose e os discursos
camalotes. A economia das palavras direciona a linguagem para uma aparente simplificação dos
significados. Contraditoriamente, a limpidez textual não conduz o leitor ao sentido único, e emerge o
inesperado. O conto foi o gênero narrativo que mais acompanhou as inovações tecnológicas e do
sujeito nos últimos vinte anos. Têm-se, hoje, contos curtos, literatwitter, etc. O microconto ainda
carece de uma conceituação adequada no âmbito dos estudos literários. Nesse sentido, a proposta deste
artigo é ressaltar o “microconto”, sem perder de vista o “conto curto”, como gênero que, nos dias
atuais, condensa mobilidade discursiva no mesmo passo em que repensa o indivíduo em seus planos
sociais, políticos e culturais. Para tanto, propõe-se, para este artigo, o estudo de três escritores: o poeta
Manoel de Barros, o ficcionista Luiz Vilela e o contista Rauer, com o objetivo de traçar, no decorrer
do discurso, diferenciações entre conto, conto curto e microconto. Tensão, inconformidade, surpresa,
tragédia, humor, nulidade, suspensão dos limites direcionais — são esses os elementos que aparecem e
explodem no ritual silencioso da leitura do microconto contemporâneo.

Palavras-chave: Narrativa contemporânea; Luiz Vilela; Manoel de Barros; Rauer.

INTRODUÇÃO

Na contemporaneidade, as proposições acerca do conto encontram-se marcadas por


vertentes que em muito se diferenciam das pioneiras assertivas formuladas por Edgar Allan
Poe (1809-1849) e Anton Tchekhov (1860-1904). E, embora suas contribuições tenham sido
substanciais — quiçá orgânicas —, outros contistas reescreveram a história do conto e
puseram seus nomes nos alicerces ficcionais e na teorização da narrativa curta, tais como, por
exemplo, Machado de Assis (1839-1908), Guy de Maupassant (1850-1893), Quiroga (1878-
1937), James Joyce (1882-1941), Virgínia Woolf (1882-1941), Kafka (1883-1924), Katherine
Mansfield (1888-1923), Hemingway (1898-1961), Borges (1899-1986), Cortázar (1914-1984)
e Piglia (1940- ). Para o estudo das vertentes do conto na contemporaneidade, que aqui
empreendemos, nos valemos de narrativas de três autores ainda em franca produção: o poeta
Manoel de Barros (1916- ), o ficcionista Luiz Vilela (1942- ) e o contista Rauer (1958- ).
O conto foi o gênero narrativo que mais acompanhou a evolução tecnológica e social
dos últimos vinte anos. Na era da internet, da restrição do tempo e globalização do espaço, da

1
Doutoranda em Estudos Literários na UNESP de Araraquara; mestre em Estudos de Linguagens pela UFMS.
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fugacidade da consciência e incompletude sócio-político-cultural-econômica, o conto, que já


se tornara conto curto, comprime-se ainda mais em mini-narrativa, miniconto, microconto,
literatwitter, etc. Contudo, essas e outras nomenclaturas, acerca do gênero, ainda não foram
adequadamente conceituadas no âmbito dos estudos literários.
Buscamos, neste artigo, diferenciações entre conto, conto curto e microconto.1
Embora haja disparidade entre as definições existentes, em especial quanto ao microconto,
empreendemos esforço metodológico para refinar a terminologia, definindo diretrizes que
contribuam para diferenciá-los.
Na literatura, acompanhando o movimento Minimalista, cujo início se deu no
princípio dos anos 60 (nos EUA) e que se baseava na construção da arte através do mínimo de
recursos, a estratégia se manifestou pela economia das palavras e síntese fabular, legando-nos
o conto curto; já na atualidade ganha contornos, e conquista mais adeptos, o microconto, no
início como radicalização do minimalismo, posteriormente em decorrência da abreviação
comunicativa imposta pelos meios cibernéticos.
Textos concisos que possuem intensa significação e narratividade, e que fogem do
convencional, os microcontos apresentam diálogo ininterrupto com o contemporâneo e as
inovações tecnológicas. O discurso é sucinto, um recorte cirúrgico no tumultuado cotidiano
do final do século XX e deste início de XXI, o que provoca inquietação no leitor e o exige na
coautoria.
Nesse sentido, o presente trabalho, a partir da presença marcante do microconto e do
conto curto nos dias atuais, procura demonstrar a mobilidade discursiva que hoje cerca a
narrativa de curta extensão.
Quanto aos autores que selecionamos para nosso estudo, Manoel de Barros e Luiz
Vilela já alcançaram projeção internacional. De origens geograficamente distintas, eles têm —
de maneira diversa — o inusitado e a inquietação como estados que se repetem em seus
discursos. Já Rauer, que conta com sete livros de publicados,2 tem se voltado para o

1
Utilizamos a proposta de microconto elaborada por Karla Paniagua-Ramírez (2000) em “Propuestas para una
lectura minicuentísticas de prosa poética”, publicada no El cuento en Red.
2
São os seguintes os livros de Rauer já publicados: Lugares intoleráveis (1982), E foram felizes para sempre
(1989), Cenas de amor e paixão (1997), Iceberg (1999), A gota d’água (1999), Ilusão & trevas (2005) e
Qohelet (2006); o escritor tem anunciadas diversas outras obras, entre romances, contos, e crítica literária.
Mais informações podem ser encontradas em < http://lattes.cnpq.br/0639290942591728 >, e nos diversos links
de < http://rauer.rauer.sites.uol.com.br/index.html >.
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microconto, em micronarrativas igualmente inquietas e inusitadas, e é para tal faceta da sua


obra que nos debruçamos neste estudo.
Apesar da vasta produção dos escritores, recortamos, para exemplificar os contos
curtos, “Lacraia”, da obra Memórias Inventadas: segunda infância (2004), de Barros, e “As
formigas”, presente no livro Tarde da noite (1970), de Vilela. Transcrevemos abaixo essas
duas narrativas. E, como exemplo de microconto, apresentamos algumas narrativas
ultracurtas, inéditas em livro, de Rauer (2009).
Eis os contos de Barros e Vilela:

LACRAIA
Manoel de Barros
Um trem de ferro com
vinte vagões quando
descarrila, ele sozinho
não se recompõe. A
cabeça do trem ou seja a
máquina, sendo de ferro
não age. Ela fica no
lugar. Porque a máquina
é uma geringonça
fabricada pelo homem. E
não tem ser. Não tem
destinação de Deus. Ela
não tem alma. É
máquina. Mas isso não
acontece com a lacraia.
Eu tive na infância uma
experiência que
comprova o que falo. Em
criança a lacraia sempre
me pareceu trem. A
lacraia parece que
puxava vagões. E todos
os vagões da lacraia se
mexiam como os vagões de trem. E ondulavam e faziam curvas como os
vagões de trem.
Um dia a gente teve a má idéia de descarrilar a lacraia. E fizemos essa
malvadeza. Essa peraltagem. Cortamos todos os gomos da lacraia e
deixamos no terreiro. Os gomos separados como os vagões da máquina. E os
gomos da lacraia começaram a se mexer.
O que é a natureza! Eu não estava preparado para assistir àquela coisa
estranha. Os gomos da lacraia começaram a se mexer e se encostar um no
outro para se emendarem. A gente, nós, os meninos, não estávamos
preparados para assistir àquela coisa estranha. Pois a lacraia estava se
recompondo. Um gomo da lacraia procurava o seu parceiro parece que pelo
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cheiro. A gente como que reconhecia a força de Deus. A cabeça da lacraia


estava na frente e esperava os outros vagões se emendarem. Depois, bem
mais tarde eu escrevi esse verso: Com pedaços de mim, eu monto um ser
atônito. Agora me indago se esse verso não veio da peraltagem do menino.
Agora quem está atônito sou eu.
(BARROS, 2004).

AS FORMIGAS
Luiz Vilela
Foi a coisa mais bacana a primeira vez que as formigas conversaram
com ele. Foi a que escapuliu da procissão que conversou: ele estava olhando
para ver aonde que ela ia, e aí ela falou para ele não contar pro padre que ela
tinha escapulido ― o padre ele já tinha visto que era o formigão da frente, o
maior de todos, andando posudo.
Isso aconteceu numa manhã de muita chuva em que ele ficara no
quentinho das cobertas, com preguiça de se levantar, virado para o outro
canto observando as formigas descendo em fila na parede. Tinha um rachado
ali perto por causa da chuva, era de lá que elas saíam, a casa delas.
Toda manhã aquela chuva sem parar, pingando na lata velha lá fora
no jardim, barulhinho gostoso que ele ficava ouvindo, enrolado no cobertor,
olhando as formigas e conversando com elas, o quarto meio escuro, tudo
escuro de chuva.
A conversa ficava interessante quando ele lembrava de perguntar
uma porção de coisas e elas também perguntavam pra ele. (Conversavam
baixinho para os outros não escutarem.) Mas às vezes não lembrava nada
para conversarem e ficava chato, ele acabava dormindo ― formiga tinha
hora que era feito gente mesmo.
O bom é que ninguém precisava gritar nem também mentir, como as
pessoas estavam sempre fazendo. E também poder ficar olhando assim sem
falar nada, só olhando, sem precisar falar. Gente, se tinha outra perto, logo
uma tinha que falar, ninguém aguentava ficar calado: vaca amarela, pulou a
janela, cagou na tigela, mexeu mexeu, quem falar primeiro come a bosta
dela: logo uma falava ou ficava fazendo hum hum e ria ― ninguém
aguentava. Ficar só assim olhando, tão bom que nem sabia direito se estava
acordado mesmo ou sonhando, as formigas uma atrás da outra, descendo, a
fila certinha.
Uma tarde entrou no quarto e viu a mancha de cimento novo na
parede, brutal, incompreensível.
― Pra quê que o senhor fez isso? pra quê que o senhor fez assim
com minhas formigas?
O pai não entendia, e o menino chorando, chorando. Então o pai deu
no espalho. Mas a mãe pediu para ele ter paciência: nesse tempo de chuva as
crianças ficam muito excitadas porque não podem sair à rua e não têm onde
brincar.
De manhã o menino acordava e olhava para a mancha de cimento na
parede. Ficava olhando, até que sentia um bolo na garganta e cobria a cabeça
com o cobertor.
(VILELA, 1983, p. 128–129).1

1
A primeira edição do livro em que está este conto é de 1970.
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Os microcontos de Rauer serão apresentados ao longo das análises.

PARALELAS FICCIONAIS QUE SE CRUZAM: BARROS E VILELA

Os amantes da grande poesia tiveram, nas últimas décadas, o prazer de ver o poeta
Manoel de Barros sair do anonimato das conchas (de caramujo-flor) e entrar para o mundo da
Literatura. Para elaborar sua narrativa, o poeta das vazantes e dos corixos pantaneiros possui
prazer em colher, ao rés do chão, certas palavras “já muito usadas, como as velhas prostitutas,
decaídas, e arrumá-las num poema, de forma que adquiram nova virgindade” (MAYRINK,
1994).
Considerado um dos maiores poetas brasileiros da atualidade, Manoel de Barros
nasceu em Cuiabá (MT), no ano de 1916, e mudou-se, ainda bebê, para Corumbá (MS).
Fixou-se tão bem na “cidade branca” (como Corumbá também é conhecida) que chegou a ser
considerado corumbaense.
O primeiro livro publicado nasceu em 1937, com o título virginal de Poemas
concebidos sem pecado. Em 1942, logo depois de se formar bacharel em Direito, no Rio de
Janeiro, o poeta apresenta Face imóvel. Dentre outros, nas décadas seguintes, publica Poesias
(1946), Compêndio para uso dos pássaros (1961), Gramática expositiva do chão (1969),
Matéria de poesia (1974), Livro de pré-coisas (1985), Retrato do artista quando coisa
(1998), Livro sobre Nada (1996), O fazedor de amanhecer (2001), a trilogia Memórias
inventadas: a infância (2003), Memórias inventadas: segunda infância (2004), Memórias
inventadas: terceira infância (2008) e Menino do mato (2010). Recebeu diversas láureas por
sua obra: o Grande Prêmio da Crítica/Literatura, concedido pela Associação Paulista de
Críticos de Arte, o Prêmio Jabuti de Poesia, de 1989, pelo livro O guardador de águas,
concedido pela Câmara Brasileira do Livro, e o Prêmio Nestlé. Recentemente recebeu os
títulos de Doutor Honoris Causa da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul e da
Universidade Católica Dom Bosco.1
Ao rés do chão, por entre corixos e lagoinhas teimosas por nascer em meio à terra

1
Informações biográficas detalhadas podem ser encontradas em < http://www.releituras.com/manoeldebarros
_bio.asp >, acesso em out. 2011.
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rachada, entre cheias que se espelham no céu pantaneiro, lateja a poesia de Manoel de Barros,
em linguagem que se retorce como a vegetação do cerrado: sintaxe invertida, palavras
forjadas nos seus próprios refolhos, cotidiano recortado de um olho de pequenas jias. O
Pantanal, além de cenário de peraltagens infantis, é fala, ser, coisa, mutação, transubstância,
caminho e retorno, movimento em um único ato, cena de paixões e estática. O diretor,
fragmentado em inúmeros Outros, comanda o ensaio cujo espetáculo se presencia no
momento do abrir da capa. Sons e silêncios envolvem a poética de Manoel de Barros como
lírios que convidam os leitores a se entregarem aos pântanos para sujar matizes no branco das
garças pernetas.
Luiz Vilela nasceu em Ituiutaba, em dezembro de 1942. Formou-se em Filosofia na
cidade de Belo Horizonte e
lançou sua primeira obra aos 24
anos. O livro de estreia tremeu
com os alicerces da literatura
brasileira ao receber o Prêmio
Nacional de Ficção, em Brasília
— o título não poderia ser outro,
Tremor de terra (1967). Vilela
foi premiado no I e no II
Concurso Nacional de Contos,
realizados no Paraná no final da
década de sessenta, e, em 1974,
recebeu o Prêmio Jabuti pelo
livro de contos O fim de tudo,
lançado no ano anterior.
Traduzido para diversas línguas,
o escritor tem várias de suas
obras adaptadas para o cinema, o
teatro e a tevê.
Dentre outros títulos,
Luiz Vilela publicou No
bar (contos, 1968), Tarde da
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noite (contos, 1970), Os novos (romance, 1971), O fim de tudo (contos, 1973), Lindas
pernas (contos, 1979), O inferno é aqui mesmo (romance, 1979), Entre amigos (romance,
1983), Graça (romance, 1989), Te amo sobre todas as coisas (novela, 1994), A
cabeça (contos, 2002), Bóris e Dóris (novela, 2006), e diversas antologias, sendo a mais
recente Amor e outros contos (2009).1
A obra de Vilela é como um turbilhão em fúria, em meio a tempestades filosóficas e
a acontecimentos ironicamente perturbadores, que fazem emergir o ser no mundo e sua
incompreensão como humano. Nesse universo ficcional, a linguagem de Luiz Vilela desnuda
os valores sociais, arrepia os puritanos, escancara mentiras e despedaça verdades. A ironia é o
tom escolhido para as mais diversas ocasiões: seja na morte sentida, seja no estupro
consentido, seja na mudança radical da vida e dos sentimentos, seja na conversa
despropositada de freiras — em tudo, o fio cortante do sarcasmo perpassa os romances,
novelas e contos de Vilela.
Dono de uma sintaxe equilibrada e de uma atmosfera em plena queda, em constante
desequilíbrio psicológico, o alvo do escritor Luiz Vilela não é o leitor, mas a consciência, a
verdade e a criticidade de quem o lê. Capaz de narrar a mais leve perturbação que subjaz em
singelas conversas entre amigos, Vilela expõe de maneira enviesada, mas sóbria, as verdades
incomodativas mascaradas pela humanizada convivência social, em tudo sórdida e desumana.
Escritores cujas paralelas geográficas os distanciam, o poeta pantaneiro e o
ficcionista mineiro se encontram no plano desconcertante da ficção brasileira, nos diálogos
com a contemporaneidade, nos entremeios dos sujeitos ficcionais e pessoais: Manoel de
Barros e Luiz Vilela desconcertam o transcurso do cotidiano, ressaltam o imagético e
potencializam o discurso narrativo como instrumento sócio-político e cultural — e é nesse
quadro, e nessas pegadas, se também se instauram os microcontos de Rauer.

POR ENTRE AS FRESTAS DO CONTO

Edgar Allan Poe acreditava que a brevidade e a concisão do conto levariam o leitor
da short story à totalidade do discurso (MOSCOVICH, 2005). Hemingway, Cortázar e Piglia,

1
Biobibliografia completa do escritor, com fortuna crítica e diversos outros serviços, estão disponíveis no blog
do GPLV – Grupo de Pesquisa Luiz Vilela, nos links disponíveis em < gpluizvilela.blogspot.com >, acesso em
outubro de 2011.
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partindo dos pressupostos de Poe, propõem novas diretrizes para o gênero — tais percursos,
mais tarde, serão ainda mais precisos e justos para estabelecer os alicerces discursivos do
conto curto, do miniconto, do microconto, das micronarrativas com apenas uma palavra, etc.
Cortázar insistia na tensão como principal elemento para a composição do conto,
emprestando, assim, maior vivacidade ao texto:

[...] se não possuirmos uma idéia viva do que é o conto, teremos perdido
nosso tempo, pois um conto, em última instância, se desloca no plano
humano em que a vida e a expressão escrita dessa vida travam uma batalha
fraternal, se me permitem o termo; e o resultado desta batalha é o próprio
conto, uma síntese viva e ao mesmo tempo uma vida sintetizada, algo como
o tremor de água dentro de um cristal, a fugacidade numa permanência.
(CORTÁZAR, 1993, p. 147).

Hemingway ressaltara, antes, a importância do efeito que esta tensão causaria, não na
totalidade textual, mas no leitor. Sua contribuição mais significativa é a teoria do iceberg, cuja
comparação metafórica apresenta um emaranhado de elementos, “submersos”, que não são
evidentes, à primeira vista, na tessitura do texto. Cada elemento, cada detalhe deve exercer
uma função pré-concebida pelo escritor, de maneira que cada pormenor existente no conto
esteja ao serviço do efeito que se pretende.
Para Hemingway, o verdadeiro valor do conto está na proeza econômica, revelando
muito pouco e guardando os principais fatos, deixando-os subentendidos. Espalhadas na
narrativa de maneira discreta, certas palavras seriam como que cristalizações em linhas que
aprofundam o sentido, e que formam o desfecho e informam ao leitor o que está além do final,
embora este ainda se apresente de maneira surpreendente. Cabe, então, ao leitor preencher as
elipses, a partir de micropistas textuais. Por isso, a economia vocabular e a precisão de cada
palavra na narrativa são essenciais para que o efeito tenha assegurada sua intensidade e o
iceberg submerso brilhe à luz do sol.

Aliado ao movimento Minimalista da década de 60, ao surto e à agitação econômica,


cultural, social e política do final do século XX e início do XXI, o conceito de conto passa por
necessária ampliação para acompanhar as inovações tecnológicas. E as narrativas são cada
vez mais curtas, mais recortadas, mais impressivas, imprecisas e expressivas. No discurso do
microconto o importante é estabelecer apenas um núcleo significativo, ou seja, não importa
quem é a personagem, se homem ou mulher, se há espaço delimitado ou demasiado aberto, se
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era dia ou noite: — é o leitor que completa as cenas. Há um jogo silencioso entre a ocultação
total e a revelação parcial, como percebemos em “Dantesco”, microconto de Rauer:

DANTESCO

Por aquele amor que os uniu e se esvai,


que não perdoa se não lhe volta amor,
morto cai, como um corpo morto cai.

(Rauer, 2008-2011).1

Em “Dantesco”, o inferno é refletido em suaves significações e rápidas, mas


profundas, marcas de nulidade. A narratividade2 se esgota em um único sentido: a
inexistência/existência do sujeito. Nesse microconto, a intensidade do acontecimento, que não
é posto ao leitor, provoca uma turbulência nos sentidos. Apesar da palavra “amor”, duas vezes
apresentadas no discurso, demonstrar algo relativo ao idílico, ao sentimento positivo, a
figurativização da morte, que invade o texto, dilui o termo “amor” e toda sua significância. A
alma dilacerada se concretiza na trama ficcional no momento da convicção do amor morto,
“como um corpo que cai”. O narrador, ora indiciando participação ora mostrando
solidariedade contemplativa, desfigura a cotidianidade, anuncia as máscaras que caem. As
vírgulas elaboram espaços que desmarcam as referências narrativas: no primeiro bloco (“Por
aquele amor que os uniu e se esvai”), o autor dá continuidade a um discurso que não foi dado
anteriormente, um recorte no pensamento ou no diálogo; no segundo espaço (“que não perdoa
se não lhe volta amor”) abre-se a descontinuidade, ou seja, quem não perdoa? É o instante da
suspensão dos sentidos positivos, do amor que não volta, que se esvai; a terceira parte (“morto
cai”), breve e curta, evidencia a permanente fugacidade da vida na figura da morte; por
último, como que em um golpe sem misericórdia, o narrador apresenta a união entre corpo-
morte-amor: “como um corpo morto cai” — e a sonoridade da palavra amor reverbera em
corpo e em morte.
O título, clara referência ao magistral “A divina comédia”, de Dante Alighiere,
apresenta no seu cerne a máxima do livro: “Deixai toda a esperança, ó vós que entrais”. É a

1
Outros microcontos, bem como os haicais, podem ser lidos no twitter (sendo reproduzidos no facebook) do
próprio autor, em: < http://twitter.com/#!/rauer_rauer >, acesso em novembro de 2011.
2
Narratividade significa, por óbvio, narrar algo, contar a passagem de uma personagem de um estado a outro,
implicitamente ou explicitamente. Sem narratividade, o texto corre sempre o risco de ser uma simples
descrição de cena e não um conto, conto curto ou microconto.
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ausência da esperança de algo que não mais voltará. Há, na verdade, esperança catártica de
que os bons sejam recompensados. Cai por terra toda a positividade e fica apenas o silêncio da
constatação. A atmosfera pesada provoca sentimento angustiante e dúbio no leitor. Não se
sabe quem cai, ou o que cai. Temos apenas a certeza de que não volta.
O narrador é diluído no texto e se fragmenta apenas no olhar, na exposição do
acontecimento captado pela brevidade do instante de vida e morte — início e fim; o início, o
título (transmutado na elocução do cair da morte), é o fecho em elipse, presentificado quando
o olhar do leitor, chamado a complementar a leitura, repousa o olhar novamente no título que
já lera. O “dantesco” é hipérbole da vida e da inexistência. É caminho que perfaz todo sujeito
diante da dúvida de sua existência enquanto ser.

E é pensando em elementos que dialogam com o leitor que o autor elenca palavras
que norteiam o microconto e que permeiam os estados de espírito da personagem: “Por aquele
amor que os uniu e se esvai, que não perdoa se não lhe volta amor, morto cai, como um corpo
morto cai” (destaque nosso). É “aquele amor”, e não “este”, que distancia o sujeito de suas
relações afetivas. A negatividade é a atmosfera escolhida. Contudo, não se pode precisar os
acontecimentos anteriores e nem posteriores, sendo as molduras iniciais e finais anuladas e/ou
marcadas pela tragédia. Tal procedimento suga da vida toda a profundidade que a cerca, suga
a vida de toda alma que lhe animava. Tudo o mais se torna plasmação de um outro realismo.

Tudo o mais, o quê? Parece-nos que, ontologicamente, o ser que se apresenta está
exausto do próprio significado de ser, de sua existência sem sentido e sem norte, gratuita e vã.
Há uma simetria de aliteração (forte recorrência de letras fechadas e oclusivas) que
evoca a destruição interna da personagem; e, nos parece, tal destruição arrasta em seu bojo
uma “morte” íntima. Há, nessa narrativa apresentada em versos que invocam de modo
intertextual o poema de Dante Aleghieri, um eixo mortuário que corrobora para a síntese
comunicativa e para a limpidez textual — elementos importantes para o microconto.

A narrativa do “conto curto”, bem como do “microconto”, começa no meio da ação,


a meio passo do clímax. Uma possível conceituação diferencial estaria na sequência causal,
ou seja, no “conto curto” há mais de uma sequência de ação-reação-nova situação. Nesse
sentido, as narrativas insetais de Manoel de Barros e Luiz Vilela apresentam-se em
consonância com tal proposição. No texto “Lacraia” nós temos a ação dos meninos peraltas
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em “descarrilar” o inseto, a reação da lacraia em tentar se recompor, e a nova situação, ou


melhor dizendo, o novo sujeito que nasce dessa experiência. Em “As formigas”, de Vilela,
temos uma estrutura um pouco diferente: ação — o menino que conversa com as formigas;
outra ação — o pai que fecha a fresta por onde passavam os insetos; nova situação — o
desconsolo do infante diante da ação paterna.

A convivência, mesmo que por um período curto, entre estes seres inusitados e a
personagem ou o narrador, foram recortados do cotidiano infantil. O início da aventura dá-se
sem que haja nota prévia. É o estado bruto do verbo ser: os infantes são agentes de ações
diretamente inaugurais e marcantes. As molduras narrativas (elementos que sinalizam o
início e o fim de um discurso) são suspensas da narrativa, de maneira que o leitor tende a
preenchê-las. É o leitor que determinará, dentro de sua leitura, a cor dos cabelos, se a criança
é fraca ou gordinha, se sempre acompanhou a trajetória biológica dos insetos.
Em “As formigas” e em “Lacraia”, o silêncio que exala das narrativas apresenta a
impossibilidade comunicativa com o mundo exterior. Esse silêncio fundador, inquietante e
mútuo antecipa a necessidade do poeta Manoel de Barros e do ficcionista Luiz Vilela em
percorrer a palavra não-dita, o mundo perturbador e inaugural da criança. O acontecimento
que marca a infância é lançado pelos escritores de maneira indeterminada, situando o leitor
num espaço quase mítico, de exemplaridade. A indeterminação temporal acontece nos
seguintes trechos das narrativas: “Um dia [...]” (Barros, Lacraia, 2004), “Isso aconteceu numa
manhã de muita chuva [...]” (Vilela, 1983, p. 128). Indeterminação temporal e espacial
também marca o microconto de Rauer, mas em universo adulto da ontologia do ser, o que
também faz a narrativa ter sua configuração de exemplaridade.
A lacraia, inseto peçonhento e extremamente ágil, foi “poetizada” por Manoel de
Barros no momento que lhe emprestou corpo ao “desalmado” invento humano — a máquina
trem. No “conto curto”, bem como no “microconto”, a seleção vocabular é ainda mais precisa
e a concisão torna-se elemento caro à narrativa curta.
Para Manoel de Barros, a lacraia é o espaço imagético e particular da criança, é a
parte “humanizada” de uma sociedade fria, encarrilhada nos trilhos econômicos. A
comparação, aparentemente ingênua, é movida pela criticidade social. É através da metáfora
ensaística do poeta que o menino experimenta da maldade humana, do inusitado, da epifania,
da comunhão divinal, como verificamos nos trechos seguintes: “Um dia a gente teve a má
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idéia de descarrilar a lacraia. E fizemos essa malvadeza”; “Eu não estava preparado para
assistir àquela coisa estranha”; “A gente, nós, os meninos, não estávamos preparados para
assistir àquela coisa estranha”; “A gente como que reconhecia a força de Deus”.
A formiga, que apresenta organização parecida com a sociedade humana, foi o inseto
escolhido por Luiz Vilela. Eleita desde a célebre fábula da “cigarra cantante” para representar
a alegoria do trabalho, do esforço coletivo em benefício de uma sociedade, a formiga aparece
no discurso de Luiz Vilela para desordenar o sistema. A fábula que recrimina a cigarra, que
passa os dias a cantar, enquanto as formigas trabalham constantemente, é — muitos já o
demonstraram — uma apologia ao processo capitalista.
A formiga de Vilela sai da normalidade, desestrutura e subverte o espaço natural,
caminhando para o imagético infantil. É no mundo particular e silencioso da criança que a
formiga, ou a metáfora do ficcionista-narrador, apresenta o acontecimento, nem palpável nem
visível, apenas em silêncio fundador, aquele que diz o não-dito, como podemos evidenciar
nos seguintes trechos: “Foi a coisa mais bacana a primeira vez que as formigas conversaram
com ele. Foi a que escapuliu da procissão que conversou”; “formiga tinha hora que era feito
gente mesmo”; “O bom é que ninguém precisava gritar nem também mentir, como as pessoas
estavam sempre fazendo. E também poder ficar olhando assim sem falar nada, só olhando,
sem precisar falar”. A criança, cuja visão é crítica, prefere os bichos “humanizados” à
sociedade real.
Se há antropomorfia em Barros e em Vilela, em Rauer constatamos fábula de
movimento inverso: a dolorosa percepção da nulidade do ser. O homem vê-se diante de um
doloroso fim, e os sentimentos familiares e pessoais são dilacerados pela mortalidade da
existência: o outro torna-se “dantesco”, e o substantivo torna-se adjetivo que nomeia o modo
pelo qual o eu-lírico, despojado do amor que sente, se situa no mundo. Se no conto o ponto de
partida da narrativa está a meio passo do clímax, no microconto a sequência causal se
apresenta já no próprio clímax, que fulgura como uma epifania.
Mas o microconto pode ser um estado que se torna ação imprevista, denunciadora,
elíptica. É o que Rauer faz em outro microconto, ao subverter a ordem natural do discurso, da
lógica criada pelo pensamento do leitor, ao animalizar o conhecido “E foram felizes para
sempre”:
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CONTO DE FADAS

Era uma vez um príncipe encantado, moço respeitador,


e sua donzela, moça de puro recato. Nas núpcias,
ela flutuava, feliz para sempre.

Então, sentiu no peito, de cima abaixo rasgaçalhando


o vestido de noiva, as mãos dele.

(Rauer, 2008-2011).

Ao que parece, o tão sonhado “Conto de fadas” descortina o mundo ficcional e


idílico da donzela lhe escancarando a realidade. Cortante como uma navalha, o “príncipe
encantado” despedaça o prazer ingênuo das núpcias, transformadas em levitação da alma, e
inverte a estrutura dos contos de fadas. A moldura final é posta no meio da narrativa — “feliz
para sempre” (percebemos que o termo “feliz” está no singular, possivelmente evidenciando a
felicidade unilateral da donzela, invertendo, mais uma vez, a passagem discursiva do “felizes
para sempre” característico dos contos de fadas) — que recomeça de maneira inversa ao
primeiro bloco do discurso. A ligação entre o estado de graça e a realidade que se instaura é
abrupta, aparece através da palavra “então”, como se indicasse, na continuidade, a
inauguração da cena sempre ocultada de todos os contos de fadas. Não há fim, mas um
processo inacabado cujo complemento cabe ao leitor.
A personagem feminina — donzela — é intensificada pelo “puro recato”. Duas
palavras que configuram uma posição enaltecedora, quase divinal. Experiência similar há
tanto no conto de Barros quanto no de Vilela. A ingenuidade, que marca as personagens das
narrativas, é logo esgarçada: em Rauer, pelas mãos de um príncipe; em Vilela, lá pela mão
paterna; em Barros, pelas próprias mãos das crianças.

IDENTIDADES: POR ENTRE AS FRESTAS DO SER

A sociedade atual é um epicentro vibrante cujas relações sustentam uma igualdade,


ou nivelamento, entendida como natural. O sociólogo polonês Zygmunt Bauman (2007, p. 42,
grifo do autor) evidencia que “a imagem de uma ‘cultura híbrida’ é um verniz ideológico
sobre a extraterritoriedade, atingida ou declarada”. O hibridismo na cultura e no aspecto
social está diretamente ligado à questão da “identidade heterogenia”. Contudo, é importante
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salientar a proposição de Bauman (2007, p. 43), concordando com Sartre, de que a identidade
é um “projeto para toda a vida”, um construto que mescla vários elementos sociais, culturais,
até mesmo econômicos e políticos, consolidando, efetivamente, um reconhecimento de nós
mesmos.
Os limites identitários da lacraia e das formigas são corrompidos: ora trem com alma,
ora entidade sobrenatural que demonstra a força de Deus; ora inseto que se organiza como
uma sociedade humana, ora rebeldia diante do biologicamente tradicional; ora como gente de
verdade, ora inseto. Seres diferentes, identidades desiguais, estados que estão “entre” uma
coisa e outra, como, em Barros, na lacraia que parecia trem e com a qual o menino se
identifica. Já em Vilela, há alegoria, do humano e da sociedade, e a identidade como que se
constrói em antropomorfia, com as formigas reverberando sentimentos e a sociedade
humanos.
O que se presencia, entre lacraias, formigas e crianças, é um universo imagético, um
espaço outro de troca de experiências e de convívio. Não há limites estabelecidos, nem
mesmo o dentro e o fora, tão somente o antes e o depois. Neste microcosmo, o isolamento dá
lugar ao imaginário e à destituição da hierarquia biológica ou social.
Tudo o mais se amplia, e o ser humano sente-se cada vez mais pequeno diante da
imensidão divinal (“A gente como que reconhecia a força de Deus”) ou da maldade humana
(“[...] e viu a mancha de cimento novo na parede, brutal, incompreensível”). A indiferença
diante do universo e da expectativa que a criança gera em torno dos animais é recorrente na

Mansfield,
autora do antológico
“Aula de canto”, conto
com diversas traduções
para o português
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literatura, não só na infantil. A narrativa de Luiz Vilela parece comunicar-se com o conto de
Tchekhov (2005), “O acontecimento”, no qual duas crianças ficam maravilhadas com o
nascimento dos gatinhos. Planejam, sonham, criam expectativas. Contudo, um cão, Nero,
devora os filhotes e destrói todo universo criado pelos infantes. Inconformados com o
“acontecimento”, as crianças esperam a condenação do criminoso. De maneira insensível, a
mãe os manda para o quarto.
Os contos curtos de Barros e Vilela transitam livremente entre os reinos — a lacraia
no animal, mineral e espiritual; e a formiga, apesar de permanecer apenas no reino animal,
fica entre a categoria do “racional falante” e a categoria do “irracional”. O poeta e o
ficcionista metaforizam a multiplicidade identitária, presente nas discussões da
contemporaneidade. As narrativas apresentam, diante do conciso espaço textual, uma seleção
vocabular que permite ao leitor acionar inúmeras outras leituras; tudo decorre do momento
sócio-cultural e do esforço de percepção que leitor e plateia dispensam ao conto como
espetáculo da própria leitura.
No microconto, ainda mais conciso que o conto curto, a indeterminação da
personagem contribui para atmosfera de solicitude do leitor, chamado, desde o momento de
leitura do título, à coautoria da narrativa. O exemplo abaixo, de Rauer, exemplifica:

FIM DE CASO

Chegou em casa e confirmou: sim, terminara. Ao anúncio,


sobreviveu cinquenta anos. Nunca mais sorriu.

(Rauer, 2008-2011).

Há uma evidente crítica ao mundo das aparências — o início, ironicamente, está no


término do relacionamento. Contudo, a personagem apresentada e outra(s) pressuposta(s)
continua(m) interpretando seu(s) papel(eis) social(is). Não há nenhuma pista da sexualidade
da personagem, que agora se apresenta indiferente ao mundo. Desfigurativizada em quase
tudo, nesse microconto a personagem deixa de ser — em linguagem greimasiana — ator, e
surge no texto como actante, em molde que parece ser característico da síntese cristalizadora
absoluta que o microconto, como gênero, se impõe. Essa personagem, desvestida pois de toda
e qualquer característica e atributo, apresenta-se como actante de dramas, angústias e dores,
os quais enfrenta, solitário e em liberdade absoluta, confrontado com outro ser igualmente
apresentado no cerne de si mesmo.
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Em “Fim de caso”, o relacionamento do suposto casal é baseado no cristal da


superficialidade que esconde o desgaste e o aniquilamento dos sentimentos do(a)
protagonista. A intensidade se concentra na moldura final, ou seja, na morte do ser, de sua
essência. O ator emudece no ricto amargo da dor e o rosto que não sorri é máscara mortuária.
Alteridades em confronto, o relacionamento humano se dá, na ficção de Rauer, como uma
antropologia de inescapável sofrimento.
O leitor é jogado no meio deste final de conflito conjugal e está diante do
dilaceramento da alma da personagem. É neste momento de silêncio profundo que o leitor
experimenta o sabor amargo da dissolução do caso. A experiência do casal é, possível e
silenciosamente, um desejo contido no Outro. O “Eu” só se tem consciência, consciência de
si, quando perpassado pela inapreensível experiência do Outro.
Se o tempo em que vivemos hoje não é de pós-modernidade, mas de “modernidade
líquida” (cf. Bauman, 2009, p. 14-18), no qual encontramos incertezas devido ao
individualismo extremado e à ausência de solidariedade coletiva, com disputas, competições,
enfraquecimento de sistemas de proteção social, em que o homem vive com exacerbado
instinto de caçador, por meio de “uma rápida aceleração de produtos comprados e vendidos,
em que a rápida eliminação de resíduos se tornou a vanguarda da indústria” (Bauman, 2009,
p. 16), vemos esse nosso tempo registrado na rapidez dos microcontos de Rauer, na estupidez
dos enredos encenados, na violência que vitima as personagens e na solitária crueza reiterada
com que, mônadas que não se comunicam, eles padecem as suas dores.
O casal se vê na superficialidade e no dilaceramento dos sentidos, cada um de seus
membros incomunicável com o outro, fechados em si mesmos, mas apresentados na
transparente infelicidade. A suspensão acresce na atmosfera indeterminativa do discurso: fim
de qual caso? A que se deve o fim? E depois, o que acontece? O autor não nos oferece pistas
do que aconteceu, mas nos mostra o ápice das ações e o desfecho trágico — trágico, qualquer
que seja o fato gerador, qualquer que seja o que se confirmou: se um caso extraconjugal ou se
a vida conjugal. O anúncio que entremeio a ação inicial e a consequência final, não é só o fim
do caso, é o primeiro dia do resto da vida relatada, que permanece em elipse, mas pulsa,
rompendo a página — ou a tela da internet — e golpeando duramente o leitor.
A narrativa de faz com quinze palavras, sendo cinco verbos; é pura ação, que se dá
entre a positividade do “confirmou” e a negatividade do “nunca”, sendo o primeiro polo
reforçado pela palavra “sim” e o segundo pelo “mais”. O espaço “casa” se opõe a um espaço
pressuposto, antecedente, externo, de onde a personagem “chega”. O terceiro verbo, central,
dialoga com o título, que já anunciara o término, “Fim de caso”. Mas se termina e é fim, e tal
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é o anúncio feito, ou a constatação dada pelo espaço da casa, o externo e o interno, esses
espaços físicos do ato sofrido ou da atitude tomada reverberam no sentimento do/da
protagonista, pois se há vida que segue, ela segue sem alegria, totalmente disfórica, pois que a
personagem nunca mais volta a sorrir, expressão que deixa entrever que havia, antes, motivos
para sorrir. O universo das relações pessoais e conjugais, em Rauer, é o universo dantesco do
castigo permanente, em um silencioso hui-clos sartriano vivido em vida.
O já mencionado convívio de experiências e identidades plurais também acontece no
campo cultural. Segundo Hutcheon (1991), há uma ampliação e um atrito nas fronteiras das
artes que permitem a coexistência ou amálgama dos gêneros, dos discursos e das
manifestações artísticas, assinalando, assim, para a convivência dos plurais. Os gêneros
literários apresentam-se, por vezes, mesclados ou interagindo em harmonia, sem que haja uma
fusão simplória, ou uma sobreposição hierárquica dos formatos textuais. Sendo assim, a
fluidez indicia a passagem de um estado para o outro, de um gênero ao outro, de um discurso
para o outro, de um ser que era, e que agora já não se é nem mais se sabe.
O ser — na visão de Rauer — se extingue: em “Fim de caso”, o ser deixa de ser,
obedece às normas, sucumbe no desejo e subsiste em anomia, se é que se pode dizer que
subsiste. No entanto, outros microcontos de Rauer evidenciam a construção de diversos
sujeitos, com a inauguração de outras possibilidades, de outros indivíduos. O humano
construído nos microcontos de Rauer experimenta — como veremos em mais um exemplo, à
frente — múltiplas sensações, condensadas em momentos de autoconhecimento, êxtase,
indignação, resignação e epifania.1

GÊNEROS: POR ENTRE OS CALEIDOSCÓPIOS TEXTUAIS

A atmosfera de indeterminação, presentes na obra de Barros, na de Vilela e na de


Rauer, aparece tanto no aspecto identitário dos seres quanto no discursivo. Os narradores, um
ensaístico (em “Lacraia”), outro diluído (em “As formigas”), e outros quase inexistentes em
sua indeterminação (“Dantesco”, “Conto de fadas” e “Fim de caso”), transferem para os
textos a convivência dos múltiplos e a incomunicabilidade entre os humanos.
Ainda que tenhamos denominado de “contos curtos” as narrativas do poeta Manoel
de Barros e do ficcionista Luiz Vilela, o gênero escolhido pelos autores comunica-se com

1
Para conhecer outros microcontos de Rauer, confira a antologia no final deste Dossiê. (Nota da Org.).
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outros gêneros textuais, tais como — entre outros — a fábula, o lírico e o científico. Os
gêneros, no momento camaleões, figuram conforme a perspectiva de leitura do leitor. Sendo
assim, o jogo enunciativo tende, inevitavelmente, a fazer uma re-visitação de delimitações
ditas canônicas.
Poderíamos encontrar, nos textos “Lacraia” e “As formigas”, características que
figuram de modo pertinente no conto, ou no conto curto. Quanto ao microconto, suas bases
teóricas e literárias ainda estão por ser definidas. Contudo, elencamos algumas das evidências
mais constantes no que se diz do “conto curto” nas obras analisadas, assim como o que
depreendemos como característico do “microconto” a partir dos exemplos de Rauer com que
trabalhamos:

1) a brevidade — as narrativas de Barros e Vilela não ultrapassam o espaço de


uma lauda, e as de Rauer se circunscrevem a algumas dezenas de palavras —
ou ainda a menos do que isso, como em “Homem”, que sintetiza tudo em um
único sinal gráfico, naquele que deve ser o menor microconto já escrito;

2) a seleção — há uma cuidadosa seleção dos vocábulos para que, devido à


brevidade, não se perca a unidade do discurso, apresentando o intenso domínio
que os autores tem sobre a linguagem. Nenhuma palavra é posta no texto sem
que seu significado seja minuciosamente trabalhado em função da síntese e
limpidez comunicativa;

3) o cotidiano — a matéria discursiva predominante do “conto curto”, e que é


constante ao menos nos “microcontos” estudados, é o cotidiano. Os autores
fazem um recorte preciso e cirúrgico na vida, no instante de maior densidade
significativa: no caso do “Lacraia”, a experiência do menino deu origem a um
novo ser humano; em “As formigas”, a criança experimenta sua primeira
desilusão com o mundo real; em Rauer, a ação encenada é sempre única,
condensada ao limite. Temos intensa significação de valores morais e sociais
cristalizados em narrativas cujos instantes representam morte e vida,
circunscritas no prosaico;

4) as molduras — as marcas cronológicas de início e fim que emolduram as


narrativas são deslocadas e as narrativas começam no meio da ação, como se
nos fosse oferecido um pedaço de filme cujo início não nos é bem determinado,
e o fim é outra ação cortada ao meio. Apesar de possuir, aparentemente, as
chamadas “molduras narrativas” (elementos que sinalizam o início e o fim de
um discurso), os três escritores desnorteiam essa estrutura narrativa, colocando
as possíveis “molduras iniciais” não no começo do discurso, mas no meio:
“Um dia a gente teve a má idéia de descarrilar a lacraia” (BARROS, 2004); e
“Isso aconteceu numa manhã de muita chuva em que ele ficara no quentinho
das cobertas” (VILELA, 1983, p. 128); em Rauer, as molduras, em alguns
casos, são simultaneamente início, desenvolvimento da ação e fecho, fazendo
da sequência narrativa quase que uma negativa do que seja narratividade (veja-
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se, a esse propósito, o diálogo intertextual com Oswald de Andrade, quando


Rauer escreve um microconto, com o título “Amor”, resumido à palavra
“dor”);

5) a coalescência — desse modo, de maneira geral, nos microcontos a ação é já o


clímax e epílogo e as molduras início-epílogo são coalescentes entre si e com o
todo da ação narrativizada. As bases norteadoras são delineadas de maneira tão
sutil que as molduras, em todos os microcontos expostos, parecem diluir-se no
enredo fabulado, dando impressão de que não há delimitação e elas se
imbricam uma na outra antes mesmo de se configurarem individualizadas.

Podemos encontrar características que indiciariam a presença do gênero fábula nos


dois contos curtos — “Lacraia” e “As formigas” —, tendo em vista que a principal
característica deste subgênero literário é a chamada “moral da história”. Vislumbramos uma
possível moral da parábola no texto de Manoel de Barros no seguinte trecho: “Com pedaços
de mim, eu monto um ser atônito”. Na narrativa de Luiz Vilela, teríamos provável moral da
história nesta passagem: “O bom é que ninguém precisava gritar nem também mentir, como
as pessoas estavam sempre fazendo”. Todo contexto do discurso circula no universo da vida e
da morte, Tanatos e Eros; parece assim haver certo equilíbrio que renova e acresce nos
ensinamentos sociais e identitários, cuja presença, ainda que disfarçada, evidencia a trajetória
das personagens no caminho do aprendizado e do crescimento.
Nos microcontos de Rauer, o circuito também é o mesmo: a identidade do humano é
questionada, o Tanatos consome o Eros, que no entanto persiste, e a cena narrativa evidencia
vida-morte como um todo indissolúvel. Mas, se existe moral, ela se desloca do discurso para o
narratário, que é consumido e subsumido pela contração físsil com que cada microconto
explode na alma do leitor. Isso porque eclode, das micronarrativas de Rauer, uma profusão de
sentimentos dúbios, complementares, cujo amálgama não equilibra, antes desafia e expõe,
como verificamos no seguinte microconto:

QUERIDO,

Se nos encontrarmos, você terá meu corpo,


não a mim, pois não mais me sou:

Eu.

(Rauer, 2008-2011).

Refugo e paixão tensionados pelo querer e não querer, pertencimento e submissão.


Apenas a carne é oferecida ao homem, como num banquete ritualístico da antropofagia. Mais
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uma vez a nulidade absorve os sentidos, mastiga-os, devora-os de maneira fria e transforma o
gênero carta em informação impessoal, intransponível na sua contraditória doçura e frialdade.
A redução da personagem a apenas pronome assegura o ser como múltiplo, fragmentado em
outros “eus” ficcionais ou pessoais. Uma mistura inquietante de gêneros e discursos que
impede o leitor de firmar sua certeza narrativa.
Nessa mistura de discursos, as narrativas se apóiam em frames discursivos, em
idioletos particulares e em jargões de determinadas áreas, liquidificando não só os gêneros
literários, mas também reproduzindo textualmente o vocabulário das mais diversas atividades:
o microconto “Querida,” é um recado, cujo vocativo tornou-se o título, moldura inicial do
gênero textual bilhete ou carta, e cuja moldura final é a assinatura. Ambas as molduras, em
sua indeterminação, coloca também esta narrativa no âmbito da exemplaridade, no contexto
modelar que recobre o ser humano de todos os tempos e de qualquer lugar. São dois actantes
em guerra conjugal, no inferno dantesco antropológico de sofrimento perene, enquanto vida
houver, das personagens de Rauer.
Certo aparato cientificista do senso comum está subentendido no contexto das
narrativas de Vilela e de Barros. A comparação metafórica do trem com o corpo da lacraia
aponta uma analogia de cunho técnico: “Em criança a lacraia sempre me pareceu trem. A
lacraia parece que puxava vagões. E todos os vagões da lacraia se mexiam como os vagões de
trem. E ondulavam e faziam curvas como os vagões de trem” (BARROS, 2004, “Lacraia”). A
descrição que o poeta faz da movimentação dos “gomos” da lacraia indica uma aparência de
teor científico — cada um dos “gomos” da lacraia possui terminações nervosas que, se
separadas, continuam a movimentação corpórea: “Os gomos da lacraia começaram a se mexer
e se encostar um no outro para se emendarem”.
No caso de Luiz Vilela, certo substrato sociológico emerge da organização “social”
das formigas: “(...) as formigas uma atrás da outra, descendo, a fila certinha” (VILELA, 1983,
p. 129). Entendida como um microcosmo de uma sociedade humana, a forma de agir das
formigas segue regras estabelecidas pelo grupo social e obedece, de maneira radical, os
comandos ditados pela rainha e por formigas diretamente ligadas ao poder: “[...] o padre ele já
tinha visto que era o formigão da frente, o maior de todos, andando posudo” (VILELA, 1983,
p. 128).
Nos diversos exemplos de Rauer, percebemos uma retomada constante de autores, de
obras, de gêneros literários e textuais os mais diversos: o microconto, a julgar pela amostra, é
antropofágico e se vale de toda a tradição literária e cultural pré-existente para, na síntese
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mais absoluta, desvelar um referente múltiplo, caótico, plural, híbrido — líquido e em


liquidificação.
Ao transitar entre as linguagens e os gêneros, o poeta, o ficcionista e o microcontista
quebram as perspectivas fechadas cuja conceituação se fixa na delimitação dos gêneros. Nos
microcontos, os gêneros textuais e literários surgem constituindo-se no todo da narrativa, e a
procura dos limites mais sintéticos de cada gênero em que esteja trabalhando parece ser um
objetivo de Rauer, indo o autor do “Conto de fadas” ao recado em que o vocativo —
“Querido,” — já é o título da narrativa. Além disso, “Borboletas” parece emular um sonho, e
“Adivinha” é uma forma simples, conforme teorizou Jolles, enquanto “Escrever” e
“Apocalipse” são, por excelência, narrativas intertextuais, com dezenas de referências que se
cruzam amplificando sentidos que muitas vezes digladiam entre si, e metatextuais, discutindo
o estatuto da arte e da literatura. Já as demais narrativas1 apresentam muitas outras questões,
entre as quais destacamos:
1. questionam a família, que modifica rápida e radical nesses tempos que se
liquidificam, liquefazem;
2. investigam o amor como petite mort ;
3. evidenciam — em textos irônicos, paródicos e experimentais — que o ser
se encontra, no cerne da sua ontologia, em dissolução e dissolvimento;
4. contemplam o ser desde o momento em que ele, pela linguagem, se
reconhece no mundo, e até o fim dos dias.
O microconto de Rauer figura o gênesis e a assunção da inquieta modernidade, com
o que antevê o fim dos tempos, à espreita como um monstro ou esfinge que, inapelável, desde
já devora o homem, ser em existência nua diante de todos os tempos.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Embora tenhamos efetivado certo esforço taxionômico no que diz respeito ao


microconto, dado a carência de estudos dessa variante da narrativa curta cuja efervescência

1
O Microcontos, de Rauer, work in progress (2008-2011), é composto no momento por pouco mais de centena e
meia de narrativas, a menor delas com um único caractere, e a maior — até onde nos foi dado conhecer — com
58 palavras e 339 caracteres (incluídos os espaços). Há uma narrativa que só tem o título, com uma única
palavra, “Deus”, seu efeito de sentido, ambíguo e instigante, sendo dado pela página em branco e pela
sequência anterior de textos, definida com cuidado milimétrico.
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ressalta na atualidade, sempre tivemos presente certa lição de que “a análise é suplemento,
catalogação, enquanto a obra [literária] é [que é] literatura, vida” (Rauer, 2006, p. 300).
Em uma perspectiva narrativa, os contos elaborados por Edgar Allan Poe estariam no
âmbito dos chamados contos de enredo, cujos fatos se desdobram e ressaltam a intensidade
dos acontecimentos, que “saltam sobre nós e nos agarram” (Pontieri, 2001, p. 95). As
personagens apresentam-se de maneira incomum e em situações extraordinárias. Os
sentimentos despertados no leitor se sustentam na intensidade e na unidade de impressão que,
súbita e inexorávelmente, aproximam os protagonistas de um desfecho surpreendente.
O denominado conto de atmosfera, explorado de forma pioneira por Tchekhov,
Machado de Assis, Virgínia Woolf e Katherine Mansfield, apóia-se na tensão, no estado
psicológico discursivo, para, de maneira lenta, aproximar a leitura de um desfecho que não
termina na narrativa, ao continuar no imaginário do leitor. Em “Angústia”, de Tchekhov, para
exemplificarmos, o
cocheiro Popatov
tenta contar a dor
pela perda de seus
filhos a diversos de
seus passageiros,
sendo impedido
pela pressa ou
desinteresse de
cada um deles,
deixando no leitor
a angústia do
homem que conta
somente com seu
cavalo para, sob a
neve enregelante,
partilhar suas
lágrimas — ou seja, nada acontece na narrativa, não há transformação, não há causa e efeito,
há somente um homem e seu sofrimento, o homem e sua pobre existência.
Para Piglia, tecnicamente um conto sempre entrelaça duas histórias, de maneira que
só no desenlace e revelado, de modo surpreendente, a história que se construiu subjacente à
primeira. Não há que se confundir essa segunda história, secreta, de Piglia, com o iceberg
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proposto por Hemingway. A tensão do conto, em Kafka, se dá justamente por ele contar “com
clareza e simplicidade a história secreta”, enquanto narra “sigilosamente a história visível, até
convertê-la em algo enigmático e obscuro” (Piglia, 2004, p. 92).
Vimos que, nos dias atuais, a sociedade se vê confrangida, “tensionada” numa
relação tempo-espaço que evidencia a rapidez dos acontecimentos, a incerteza das posições, o
sujeito em metamorfose e os discursos camalotes, ou seja, discursos que flutuam sobre as
águas do sentido em eterna mutação. Piglia talvez tivesse agora de considerar que as duas
histórias, tanto a evidente quanto a secreta, constituem uma só torrente, ambas, de modo
simultâneo, evidentes e secretas, verdadeiras e falsas, coalescentes e fractais.
Têm-se, hoje, contos curtos, narrativa curta, minicontos, microcontos, literatwitter e
micronarrativas que procuram condensar — conforme os microcontos de Rauer — em uma
dezena de sílabas, ou em apenas uma palavra de três toques (“Amor / dor”), ou no também
citado “Homem”, com um único caractere (“ ! “), ou no vazio “Deus”, toda a miserável
vivência humana do século XXI, assim como a mundividência do ficcionista. São narrativas
que ainda carecem de uma conceituação adequada no âmbito dos estudos literários. Apesar
disso, parece-nos que o microconto, e talvez o conto curto, são os subgêneros que, nos dias
atuais, melhor expressam nosso tempo quanto à mobilidade discursiva que repensa o
indivíduo em seus planos sociais, políticos e culturais.
Vimos, em especial, que o microconto tem amplo diálogo com a contemporaneidade,
por transitar, facilmente, nas ondas instantâneas do celular, do msn e de outras redes sociais,
devido sua compressão tempo-espaço. O microconto de Rauer amalgama tensão,
inconformidade, surpresa, tragédia, humor, nulidade, suspensão dos limites direcionais — e
são esses os elementos que aparecem e explodem no ritual silencioso da leitura do microconto
contemporâneo.
A brevidade, a tensão e a intensidade constituem características do conto, e desses
atributos resulta a esfericidade peculiar da narrativa curta; para Cortázar (1993), o conto deve
enunciar e despertar no leitor uma “idéia viva” que, paradoxalmente, flutue entre a fugacidade
e a permanência. O microconto — como vimos nos exemplos de Rauer — potencializa todos
esses aspectos.
Na atualidade, a compressão do espaço-tempo está diretamente ligada à relação que
se estabelece entre inovações tecnológicas, o ser humano e seus discursos. O microconto
apresenta-se como um caldeirão de todas as possibilidades já evidenciadas no conto moderno
e suas categorias narrativas. Tal diálogo com a contemporaneidade deste início de terceiro
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milênio desvela uma sociedade cuja clausura ao tempo cronológico é uma variável cada vez
maior, menos racional e mais subjetiva.
Capazes de caber em apenas uma linha na tela do celular, os microcontos são
carregados de frequências sensoriais que despertam no leitor o instante da brevidade num
curto espaço. Os elementos do microconto contemporâneo — que, como vimos nas
microficções de Rauer, coalescem tensão, inconformidade, surpresa, tragédia, humor,
nulidade e suspensão dos limites direcionais — aparecem de maneira condensada e explosiva,
em meio ao babélico caos urbano e midiático, no ritualístico momento silencioso da leitura.
Nos exemplos estudados, o conto de Barros poetiza a memória e o de Luiz Vilela,
conforme a lição de Cortázar, após poucos rounds, vence a luta por nocaute; já o microconto
de Rauer leva o leitor à lona, com um único e decisivo golpe, no instante mesmo em que o
gongo dá início ao combate.

REFERÊNCIAS:

BARROS, Manoel de. Memórias inventadas: segunda infância. São Paulo: Planeta, 2004.
BAUMAN, Zygmunt. Vida líquida. Trad. Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janeiro: Jorge Zahar,
2007.
BAUMAN, Zygmunt. A utopia possível na sociedade líquida. Cult, n. 138, São Paulo, ago. 2009, p.
14-18. Entrevista a Dennis de Oliveira.
CAPAVERDE, T. Intersecções possíveis: o miniconto e a série fotográfica. 2004. 100 p. Dissertação
(Mestrado em Letras) — Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2004. Disponível
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ENTRE FRINCHAS, A POÉTICA DO


MICROCONTO BRASILEIRO

Luciene Lemos de Campos 1

RESUMO: O microconto, no âmbito dos estudos


literários, carece de referencial e estudos mais
aprofundados, quer no domínio da estética, quer no
âmbito da poética, quer na atuação da crítica
literária. A proposta estética que o microconto realiza
não surge como decalque da prosa tradicional, mas
como espaço intervalar, uma terceira-margem
poética, um entre-lugar que desloca e anula a antiga
noção de centro cultural hegemônico, de certo modo
realizando a fórceps a proposta goetheana da
weltliteratur. Neste trabalho comparamos
microcontos de Wilson Freire, Marçal Aquino,
Manoel de Barros, Samir Mesquita e Rauer com o
propósito de iniciar estudo para estabelecer uma
poética do microconto brasileiro contemporâneo.

PALAVRAS-CHAVE:
Entre-lugar; Intertextualidade; Literatura brasileira.

1
Mestre em Estudos Fronteiriços pela UFMS (2010), ingressou no Mestrado em Letras da UFMS
(2012-2014). Atua na SED-MS; versão menor deste trabalho foi apresentado na Abralic, em Curitiba,
em julho de 2011; lucienelemos10@yahoo.com.br.
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E ste trabalho se volta para a explosão contemporânea do microconto no


Brasil, com centenas de autores divulgando suas criações pela internet, e
um número razoável de publicações impressas. Analisamos microcontos
de Wilson Freire, Marçal Aquino, Manoel de Barros, Samir Mesquita e
Rauer. De Os cem menores contos brasileiros do século,
selecionamos “Bala perdida”, de Wilson Freire, “Disque-Denúncia”, de
Marçal Aquino, e “Amor”, de Manoel de Barros; de Samir Mesquita, da
obra Dois palitos, o microconto “Coito interrompido”; e do twitter,
selecionamos “Epitáfio”, do escritor mineiro Rauer. Valemo-nos de
reflexões, sobre o gênero, de Zavala e Rojo, pesquisadores hispano-
americanos, uma vez que os estudos literários no Brasil ainda não
produziram obra de referência sobre o microconto. O estudo de Marcelo
Spalding (2008), por sua especificidade, não logra constituir uma poética
da microficção.
Os microcontos nos levam a refletir sobre a presença da concisão e
da brevidade como necessárias para que a literatura revele de forma
precisa e, às vezes, indireta as novidades deste tempo — a primeira década
do terceiro milênio — cada vez mais veloz e deserto de sentimentos. A
microficção brasileira se desenvolve e busca qualidade estética em meio às
práticas apressadas. Além disso, uma significativa quantidade de
coletâneas de formas breves e simples vem provendo as livrarias, como os
chamados “livros de bolso”. Assim, em consonância com a idéia de sistema
literário proposta por Antonio Candido em Formação da litera-tura
brasileira, parece-nos que o gênero narrativo micro chegou ao seu
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momento macro de maturidade e estabilização enquanto estética literária,


pois para ele há autores seminais, obras (impressas ou não), público leitor
e — acrescentamos — um voltar de olhos das academias. É conjunto de
circunstâncias favorável para que os autores explorem as numerosas
possibilidades estéticas que o microconto apresenta.
Percebem-se como partes comuns a essas narrativas ultracurtas: a
brevidade; a intertextualidade; a metaficcão; a epifania; a precisão
cirúrgica que aproxima prosa e poesia; o ficcional entrelaçado a recortes de
elementos
factuais; o
humor; a
polissemia;
o inusita-
do; a
ironia; a
ludicidade
da lingua-
gem — para
citarmos
algumas
das carac-
terísticas.
O micro-
conto de
nossos dias
invoca o
Edgar Allan Poe soturno, o coloquial do dia-a-dia de Tchékhov, a rispidez
no absurdo de Kafka, a epifania de Joyce, a silente, desesperada e agônica
música da vida e obra de Virgínia Woolf, e assim por diante, ressumando
todas as lições dos contistas paradigmáticos da história do conto.
No Brasil, entre outros lançamentos, Clássicos da twitteratura
brasileira, publicada em 2010, pela Suzano, em São Paulo, e Os cem
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menores contos brasileiros do século, Contos de Bolso,1 têm feito


carreira, pois o acervo de microcontos está em constante expansão na
internet, e surgem narrativas cada vez mais sintéticas, mais recortadas, nas
quais prosa e poesia coalescem em formas breves, mínimas, curtas ou
ultracurtas.
No discurso dessas narrativas, parece-nos, o importante é
estabelecer apenas um núcleo significativo, ou seja, não importa se a
personagem seja homem ou mulher — tem-se, muitas vezes, apenas a
referência de personagem, quase nunca nominada —; se há espaço
delimitado ou extremamente aberto, externo ou interno; se dia ou noite;
neste ou em outro século — é o leitor quem preencherá as fendas deixadas,
propositadamente, pelo narrador.
Desse modo, à micronarrativa não cabem as observações gráficas
acerca da estrutura do conto, propostas por Massaud Moisés: “o gráfico
não desenha a estrutura de uma obra, senão de todas, visto conter o seu
abstrato denominador comum” (MOISÉS, 1967, p. 101).
Nos microcontos, a ação se apresenta no clímax e início-epílogo são
coalescentes com o todo da ação narrada. Logo, na micronarrativa, a
unidade de ação condiciona, além do espaço-tempo, a decodificação de
outras unidades — todas elas “preenchidas” pelo leitor. Essas unidades,
porém, são delineadas de maneira tão sutil que parecem diluir-se no
enredo, dando-nos impressão de que não há delimitação, que elas se
imbricam antes mesmo de se configurarem individualizadas.
Assim, enquanto o conto “constitui o recorte da fração decisiva e a
mais importante, do prisma dramático, de uma continuidade vital em que
o passado e o futuro guardam significado inferior ou nulo” (MOISÉS, 1967,
p. 42), o microconto, como gênero literário, longe de se limitar a
aforismos, reflete de algum modo as tensões do nosso século, posto que
mimetiza a estranheza do mundo exterior, a qual converte em arte.

1 Eis a introdução ao livro: “Quando acordou, / o dinossauro ainda estava lá. / Augusto Monterroso //
O mais famoso microconto do mundo, acima, tem só 37 letrinhas. Inspirado nele, resolvi desafiar
cem [103] escritores brasileiros, deste século, a me enviar histórias inéditas de até cinquenta letras
(sem contar título, pontuação). Eles toparam. O resultado aqui está. Se ‘conto vence por nocaute’,
como dizia Cotazár, então toma lá.” (Marcelino Freire).
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O microconto brasileiro contemporâneo é uma dose da “célula


tronco” do conto, da novela, da crônica, do haicai e de algumas formas
simples, como, por exemplo, adivinha, chiste, caso, anedota, ditado, entre
outros. Aproxima-se, através da intertextualidade, da tradição estética e,
ao mesmo tempo, transgride-a quanto ao envoltório dos materiais
narrativos (personagens, ação, espaço, tempo etc.).
No entanto, definir microconto não é tarefa muito fácil; embora
haja consenso entre os escritores e estudiosos da Literatura de que são
prosas curtíssimas que se valem apenas de poucas palavras, caracteres,
toques (até 140, no Twitter). Mas delimitá-lo à extensão não basta para
caracterizá-lo como um gênero literário específico.
A microficção brasileira busca trazer em suas frinchas dados sócio-
históricos reais, em nada falseados ou modificados, com finalidade de fazer
o “jogo do texto”. É o que percebemos nesta narrativa de Wilson Freire:

BALA PERDIDA

Acorda, levanta, vai ganhar a vida...


(Disparos)
... passou tão rápida.
(FREIRE, 2004, p. 99).

Tal como a bala ou a vida, o nosso tempo é o da velocidade. Estamos


sempre com muita pressa nas filas do metrô, ônibus, bancos, aeroportos,
hospitais etc e, ao mesmo tempo, convivendo com a violência das mais
diversas formas, em meio aos disparos de bandidos e policiais, de grupos e
facções rivais que duelam nas ruas. Logo, a vida contemporânea é como a
bala perdida e o cotidiano é resumido em verbos de ação, com um último,
semanticamente indicador de acontecimento infausto: acordar, levantar,
ganhar, passar; e a vida e o cotidiano são condensados em uma única
circunstância de intensidade: “tão rápida”.
Nesse microconto, o processo indiciado pelas formais verbais, em
uma leitura menos criteriosa, pode ser interpretado de duas maneiras
diferentes: no presente do indicativo ou na forma imperativa: acorda,
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levanta, vai. Entretanto, parece-nos que ao encerrar o que é contado,


empregando a forma verbal no pretérito perfeito, o narrador informa algo
que se processou no momento em que relata, embora a conclusão seja
anterior ao momento do narrado. Há, assim, um tempo cronológico
definido; um narrador; um espaço intervalar, marcado pelas reticências e
um enredo que se mostra e se convida a ser “suturado” pelo leitor.
Em consonância com André Jolles,

Talvez as Formas Simples constituam a base da


teoria literária e abranjam a parcela dessa crítica que se
situa entre a língua como tal e as produções em que uma
disposição mental encontra, como Forma artística, a sua
realização única e final; sendo assim, é preciso que a lista
seja completa, que a totalidade dela esgote o universo
realizado por essas formas, assim como as categorias da
gramática e da sintaxe constituem, em sua totalidade, o
universo que se realiza na linguagem. (JOLLES, 1976, p.
146).

A linguagem do microconto de Wilson Freire faz, em elipse, a


narrativa da vida inteira da personagem ao se valer de verbos que
descrevem uns poucos momentos. Desse modo, simboliza o todo, busca a
exemplaridade e realiza com singeleza sua proposta estética. Essa proposta

A silente,
desesperada e
agônica música
de Virgínia
Woolf
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encontra nas Formas Simples o seu modelo, erigindo artefato de


linguagem que tem, subjacente, a gramática e a sintaxe das concepções
artísticas anteriores, incorporando ainda o desenvolvimento que tais
formas experimentaram ao longo da história da literatura.
Já em “Disque-Denúncia”, de Marçal Aquino, há uma parte e há um
todo, com a possibilidade de que um mesmo recorte possa ser lido de
maneira totalmente autônoma em relação à totalidade do texto com o qual
dialoga, havendo, também, entrelaçamento entre dois enredos.
O microconto de Aquino é, ao mesmo tempo, uma nova narrativa e
“fragmento” que estabelece diálogo e pode ser inserido em A cabeça, do
contista mineiro Luiz Vilela.
Vejamos a narrativa de Marçal Aquino e a abertura do conto de
Vilela:

DISQUE-DENÚNCIA

— Cabeça?
— É.
— De quem?
— Não sei. O dono não tá junto.
(AQUINO, 2004, p. 55).

O conto de Vilela assim se inicia:

[...] — pois era realmente uma cabeça, uma cabeça de


gente, uma cabeça de mulher — estava ali, no chão, em
plena rua, sob o sol, naquela radiosa manhã de domingo.
De quem era? Quem a pusera ali? Por quê? Ninguém
sabia... (VILELA, 2002, p. 125).

O microconto de Aquino se adapta ao modus operandi da sociedade


contemporânea com sua sensibilidade veloz e quase nula, é texto torpedo,
sms, literatura de toques, mas não nega a tradição estética, tradição aqui
representada pelo conto de Luiz Vilela.
Quanto a isso, em sua obra Breve manual para reconocer
minicuentos (1997), Violeta Rojo afirma que “nos minicontos é comum o
uso da intertextualidade e, em menor medida, da metatextualidade”.
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Os textos de Vilela e de Aquino como que se complementam e


constituem ferina e ácida crítica à violência crescente, à fragmentação do
humano e à desumanização nos nossos dias. Há ficção e realidade
reiteradas em ambos: conto e microconto.
Embora se depreenda uma interlocução com o conto de Luiz Vilela
— o microconto de Aquino permite comparação com a obra consagrada do
contista mineiro, a partir do “fragmento” — dela se desprende quanto à
estrutura.
A micronarrativa de Marçal Aquino é marcada por duas
interrogações diretas, as quais remetem à brevidade da conversa telefônica
do “Disque-denúncia”, mas também pode remeter a personagens que,
talvez, compusessem o conto “A cabeça”, de Luiz Vilela.
A grandiosidade do jogo narrativo presente no microconto
brasileiro contemporâneo está em sua estrutura aberta e flexível, capaz de
abrigar uma colossal possibilidade de leituras acerca da convivência entre
a tradição e o novo, assim como também quanto a gêneros imbricados. Por
isso, o microconto nos convida a invadi-lo, a espiá-lo por todas as frinchas.
A nosso ver, existe, nesses microrrelatos, um constante jogo do narrador
que nos seduz ao lúdico, a decifrar novos enigmas. Isso nos leva a acreditar
que, apesar do desprestígio que a microficção recebe de muitos críticos e
estudiosos, não lhes cabe generalizar predicativos de “literatura menor” ou
“sub-literatura”. Vejamos mais um exemplo que contradiz o nariz torcido
desses críticos que confundem a multidão que brinca na internet e nas
redes sociais em torno de pequenos textos literários com a legítima
ascensão de um novo gênero, gênero esse que talvez seja o mais
representativo dos nossos tempos.
Cipoal de gêneros, silhuetas da modernidade pelas quais o homem
comum e a poética se re-formulam, sumo do sumo, o microconto
intitulado “Amor”, do poeta Manoel de Barros, extrai o máximo de lirismo,
incendiado pela subjetividade, em um mínimo de palavras. Barros parece
ter assimilado certa lição de Flaubert de que na arte não se busca o
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perfeito, o exato, mas sim o modo único pelo qual um acontecimento ou


uma descrição devem ser expressos; assim o escritor faz neste microconto:

AMOR

Maria,
quero caber todo
em você.
(BARROS, 2004, p. 54).

Ao mesmo tempo em que há um texto novo, ele é auto-intertextual,


já que rememora o poema narrativo, do próprio poeta, “Sonata ao Luar”,
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publicado em Poemas Rupestres (2004), mesmo ano da publicação de


Os Cem menores contos brasileiros do século:

SONATA AO LUAR

Sombra Boa não tinha e-mail


Escreveu um bilhete:
Maria me espera debaixo do ingazeiro
quando a lua tiver arta.
[...]
Maria leu e sorriu.
Quando a lua ficou arta Maria estava.
E o amor se fez
Sob um luar sem defeito de abril.
(BARROS, 2004, p. 33).

Há no microconto “Amor”, de Manoel de Barros, a essência de um


lirismo, fisgado em poucas palavras, fazendo desabrochar ao leitor o que se
esconde nas fendas do texto. As tramas e desfechos emergem com
simplicidade, a linguagem ultrapassa o texto.
Conforme nos ensina Gilberto Freyre:

O que se classifique como arte, [...], sendo sempre


experiência emocional varia nos estilos e no seu material,
com o tempo e com o espaço. A arte, como experiência
emocional, enriquece, aumenta ou intensifica a apreciação
da vida pelo homem, podendo ser, mesmo entre
primitivos, principalmente e até livremente lúdica.
(FREYRE, 1980, p. 17).

Se o microconto e o poema de Manoel de Barros estão na fímbria


entre o literário e o subliterário, Gilberto Freyre define o que é arte em
palavras que podem perfeitamente estar em uma descrição da ars poetica
de Barros: incorporação de estilos anteriores da arte literária, experiência
emocional, apreciação da vida, primitivismo e exercício lúdico.
Do mesmo modo, na “onda” crescente de publicações de
microtextos na internet, nem todas, ao que parece, constituem-se objetos
de estudos para a literatura; muitos não se apresentam como resultado de
simplicidade objetiva, de trabalho elaborado com as palavras. Ainda que
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neles haja sempre algo novo a se explorar, a maioria se restringe a


aforismos ou meras construções bem humoradas.
Obra inusitada, Dois palitos, de Samir Mesquita, publicada em
uma caixinha de fósforos, configura peculiar exemplo de o quão vivemos
uma efervescência de mudanças quanto às formas literárias e quanto à
maneira de apresentá-las. Os livros hoje também são resultado de
experimentações de formatos, estilos de letras, feitios gráficos, progressos
técnicos, de ilustrações inovadoras e da liberdade dos seus autores para
escolher como, onde e quando publicar seus escritos.
Vejamos o microconto “Coito interrompido”, de Samir Mesquita:

COITO INTERROMPIDO

Estava quase chegando ao orgasmo


Mas aí a pilha acabou.
(MESQUITA, 2007).

Parece-nos, existe uma evidente crítica ao mundo das relações de


aparências — entre “estava quase chegando” e “ao orgasmo” há,
ironicamente, a sentença final: “Mas a pilha acabou”. O narrador não deixa
evidente se o “coito” ocorre entre personagens com características
humanas ou não, uma vez que poderia ser entre a personagem e um
aparelho eletrônico, por exemplo. Pois o vocábulo “pilha” tanto pode
significar aparelho que transforma diretamente em energia elétrica a
energia liberada numa reação química como pode conotar vigor,
disposição física. O narrador não deixa nenhuma pista acerca do gênero da
personagem. A intensidade se concentra na moldura final, ou seja, na
incompletude da ação. O leitor é jogado no meio desse final de relação
sexual com um: “aí”, “acabou”. A narrativa se resume ao mínimo e cabe ao
leitor responder se a pilha, bateria, o entusiasmo ou a história.
Também em “Epitáfio”, de Rauer, a narrativa é enxuta. Com sete
substantivos, o narrador redige seu microconto. À moda de Graciliano,
reduz ao essencial as diferentes fases da vida. Em dezenove palavras,
contabiliza seu microrrelato. Relaciona situações díspares à gratuidade do
banal. À maneira de Machado, aborda a questão da morte como
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previsibilidade de vida e posiciona-se em perspectiva problematizadora,


crítica e reflexiva acerca da humanidade e do mundo.
O leitor é, de certa maneira, convocado a participar da narrativa, a
sondar através das fendas; a interrogar sobre o des-crédito das ações
humanas e tornar-se coautor na tessitura do texto.
Eis o microconto:

EPITÁFIO

Sultão, gozei festas, carrões, consumo, mulheres


mil. Deixo filhos às dezenas, para que
acabem logo com o planeta.

(RAUER, 2010).

“Epitáfio” é recorte de fatos e ficção, colagens justapostas, em que o


aparentemente simples acaba por polir o senso comum. Dessa
micronarrativa, a arte transborda com uma força estética que denuncia a
superficialidade do solene, do convencional. Abordam-se temas como a
dissolução da família, o concubinato, o amor livre e toda a herança
“concedida” pela sociedade capitalista à humanidade, sem, no entanto,
forjar conceitos de moralidade. Esse microconto de Rauer constitui, ainda,
exemplo ímpar para reflexões acerca da intertextualidade. A mediocridade
humana viceja, nesse “Epitáfio”, de Rauer, em sua “vera forma”, e se
apresenta despida da cautela com que a sociedade trata certos assuntos.
Conforme enuncia o narrador de Machado de Assis, na obra
Memórias Póstumas de Brás Cubas, no brevíssimo capítulo CXXV,
através de exercício de metalinguagem:

[...] gosto dos epitáfios; eles são, entre a gente


civilizada, uma expressão daquele pio e secreto egoísmo
que induz o homem a arrancar à morte um farrapo ao
menos da sombra que passou. Daí vem, talvez, a tristeza
inconsolável dos que sabem os seus mortos na vala
comum; parece-lhes que a podridão anônima os alcança a
eles mesmos. (ASSIS, 1992, p. 170).
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É a retomada do gosto por produzir a sentença final diante da vida


que move o narrador protagonista de Rauer, como se ele estivesse
embuído da reflexão de Brás Cubas. E ainda, o foco narrativo do “Epitáfio”
de Rauer, como na obra machadiana Memórias Póstumas de Brás
Cubas, apresenta-se em primeira pessoa. Entretanto, há pontos díspares
quanto à narração: enquanto o narrador do “Epitáfio”, de Rauer, parece
vangloriar-se dos filhos “às dezenas”, o de Machado sela suas memórias
com a célebre sentença: “— Não tive filhos, não transmiti a nenhuma
criatura o legado da nossa miséria” (ASSIS, 1992, p. 176).
Há outros aspectos comuns entre o fragmento machadiano e o
fractal1 de Rauer no que tange ao discurso sucinto e à rapidez com que o
narrador apresenta sua história, como se a necessidade de contar fosse sua
redenção ou consagração perante seu interlocutor. O narrador do
microconto “Epitáfio” atira uma pedra na vidraça da razão só para ver o
resultado do feito. Com uma oração subordinada adverbial final, lança a
última pá de cimento sobre o jazigo da humanidade consumista e
irracional: “que acabem logo com o planeta”. Como a personagem
machadiana, Brás Cubas, esse narrador também é movido pelo
pessimismo e pela ironia. Com olhar à frente da sociedade, vê tudo com
certo ceticismo acre, e com esse sentimento denuncia a condição humana.
O narratário (talvez seja melhor dizer, o leitor) que, se quiser, intervenha e
faça seus julgamentos.
Consumir, comprar, ter e possuir — mais que ser e viver — são
verbos conjugados nos espaços em que a felicidade é vendida em pequenas
doses. Parece-nos que o narrador que constrói o seu epitáfio quer
evidenciar o fato de que o homem, de modo geral, não se deu conta de que,
ao nascer nessa sociedade, está morto, de que o ser humano é apenas um
tijolo no próprio sepulcro e, ainda, conforme sentenciou o narrador de
Machado de Assis: “O epitáfio diz tudo” (ASSIS, 1992, p. 51).

1 Zavala (2000) define fractalidade como “la idea de que un fragmento no es un detalle, sino
un elemento que contiene una totalidad que merece ser descubierta y explorada por su
cuenta”.
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Em Rauer, o tratamento dado ao tempo é predominantemente


linear, a cronologia é marcada pelas formas verbais “gozei”, no pretérito; e
“Deixo” e “acabem”, no presente. A forma verbal “acabem” remete ainda ao
modo imperativo, uma ordem para que a humanidade desapareça. Tal
ordem delineia uma vontade que requer brevidade, rapidez, urgência:
“logo”.
A ambientação, o espaço, tem um papel significativo na
determinação do comportamento do narrador-personagem de “Epitáfio”:
“festas, carrões e consumo”, itens geralmente associados à vida urbana, a
indivíduos que dispõem de bens e capital.
Nessa narrativa sintética, “Sultão” define condição social de que o
narrador se mascara e torna-se a fantasia arquetípica do homem possuidor
de todas as mulheres ao mesmo tempo: “mulheres mil”; além disso,
representa a ânsia por estórias, ânsia do indivíduo de “Epitáfio”, mas
também representa o anseio humano imemorial por narrativas. O homem
que se mascara para contar estórias — e essa é a encenação do narrador-
protagonista de “Epitáfio” — é como Sherazade, e pretende ir além da
morte nas aventuras dos muitos filhos que deixa.
Se, por um lado o narrador precisa contar o que fez antes de morrer,
a fim de se eternizar e garantir sua fama — “mulheres mil”, “filhos às
dezenas” —, o narratário também precisa da narrativa, é ela que o faz
sentir-se parte do jogo.
Em consonância com Luiz Costa Lima,

Diante do texto ficcional, o leitor é forçosamente


convidado a se comportar como um estrangeiro, que a
todo instante se pergunta se a formação de sentido que
está fazendo é adequada à leitura que está cumprindo. Só
mediante esta condição, dirá Iser, a assimetria entre texto
e leitor poderá dar lugar “ao campo comum de uma
situação” comunicacional. (LIMA, 1979, p. 51).

Ou seja, a assimetria entre o leitor e a estranheza propiciada pelo


microconto em geral, e no caso com o “Epitáfio”, em particular, gera uma
situação em que, a partir da alteridade, do se sentir um estranho ao
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narrado, o leitor empreende o jogo comunicacional, interagindo com o


texto de microficção.
Um dos aspectos que constroem a sensação de estranheza e de
distanciamento em “Epitáfio” é o modo pelo qual as personagens
femininas são mencionadas.
Isso porque, na narrativa de Rauer, as mulheres têm uma posição
bastante interessante:

1. o substantivo comum “mulheres”, no texto, aparece


posposto ao substantivo “consumo”, derivação regressiva
de verbo, o que denota ação de consumir;

2. substantivo, na narrativa, acompanhado do determinante


“mil”, paradoxalmente, define-o sintaticamente, mas o
indefine semanticamente, já que, trata-se de uma
expressão hiperbólica.

Nesse sentido, pode-se inferir que, no interstício dessa história,


subjaz a mortificação do feminino e uma aparente demonstração de
profundo desprezo pela humanidade em geral. Quanto a isso, o emprego
dos numerais “mil” e “dezenas” reiteram a possibilidade de que o homem,
“Sultão”, seja obsessivo, e de que mantenha suas mulheres “presas” pelas
correntes da prole, pois o que lhe importa é a composição da ficha
contábil: “mil”, “dezenas”.
É fato que, em se tratando de obra artística, a verdade literária deve
sobrepor ao mundo real, mas também é necessário lembrar que, por maior
que seja a autonomia da arte, ela mantém vínculos com aquele. Assim, o
ponto de partida da ficção de Rauer é o mundo citadino, o tempo
contemporâneo, as vicissitudes deste início de terceiro-milênio, sem
transplantá-los irrefletidamente para sua narrativa como documento
histórico ou sociológico. O que surpreende e é forte, nesse microconto, é a
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MARÇAL AQUINO
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capacidade de o autor capturar a problemática condição humana que a


sociedade tenta ocultar:

 a indiferença pelo outro,


 a dissolução da família,
 o descaso em relação à vida,
 o desejo de notoriedade,
 a busca de afirmação e fama,

e esses flagrantes surgem em frases-relâmpagos que constrói um enredo


como um “flash” de máquina fotográfica.
O caráter inovador dessa narrativa não está na história
propriamente dita. Um dos pontos inovadores de “Epitáfio” reside,
principalmente, no encadeamento preciso dos vocábulos e na sequência
veloz com que os eventos são narrados. O narrador desse microconto
busca a melhor maneira de enredar o narratário: oferece a ele todas as
informações para conhecer a visão de mundo de um homem que passou
pela vida ao sabor dos desejos, sem deixar soltos os fios que amarram as
diferentes partes do texto.
Esses poucos exemplos demonstram como Rauer soube dar à
particularidade dos casos banais de um narrador, aparentemente des-
pretensioso, a universalidade temática que toda grande obra contém. Ao
deixar subentendido o principal motivo da sua narrativa, esse narrador
joga as cartas e envolve o leitor no seu jogo do contar. Dessa forma, revela
a fraqueza humana em qualquer tempo e espaço. O resultado desse jogo
textual, portanto, é uma rajada de possibilidades para a tessitura de uma
micro narrativa macro, como também para novas reflexões sobre a ficção
produzida na atualidade. Isso porque, ao deixar expostas as frinchas para
que o leitor possa “jogar” também, “Epitáfio” abre espaço para repensar a
literatura contemporânea e sua relação com o social. O leitor mergulha no
jogo proposto e se vê, repentinamente, como em uma epifania negativa,
devastadora, diante do nada, da negação da sociedade em que está: poucas
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palavras são capazes de destruir um modo de viver, e são palavras algo


graciosas em seu impacto derruídor.
Por outro lado, longe de ser uma mera repetição de idéias de textos
canonizados, o microconto de Rauer acrescenta novas alternativas para os
estudos desse gênero literário. Temos um narrador, que em elipse se
apresenta enunciando sua morte, seu testamento e sua memória de vida
para a posteridade. A vida já foi, tudo já aconteceu, o microconto é o relato
de um instante entre o que já foi e o nada da morte. Sintetiza vida e morte
em um átimo, que se realiza esteticamente em duas frases.
Lauro Zavala, em seu estudo intitulado Fragmentos, fractales y
fronteras: Género y lectura en las series de narrativa breve,
comenta o seguinte acerca da narrativa contemporânea:

El surgimiento (durante las primeras décadas) de los


textos literários que ahora llamamos minificción es el
resultado de nuevas formas de lectura y escritura literaria,
y es también el anuncio de nuevas formas de leer y
reescribir el mundo, pues su creación coincide con el
surgimiento de una nueva sensibilidad. El reconocimiento
de estas formas de escritura requiere estrategias de
interpretación más flexibles que las tradicionales, es decir,
estrategias que estén abiertas a incorporar las
contingências de cada contexto de interpretación.
(ZAVALA, 2006, p. 38).

Coerente com tal proposta, e a executando, depreende-se que a


intratextualidade e a intertextualidade são outras características também
presentes no microrrelato de Rauer. Ao contrário do que faz supor, o
microconto “Epitáfio” não se limita a retratos do quotidiano condensados
em pílulas breves. Há, nessa micronarrativa, um cabedal macro de vozes
dos mestres da narrativa,1 similar à que observamos em relação à presença
da obra machadiana. Não se alcança a síntese e a elipse necessárias para
produzir um microconto fractal, como o define Zavala, sem conhecer os

1
Mestres do conto. Entre outros: Poe, Tchékhov, Maupassant, Machado, Joyce, Kafka, Mansfield, Woolf,
Borges, Hemingway, Cortázar e Vilela.
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contistas paradigmáticos da história da literatura. E, ainda, sem considerar


a peculiar situação do intelectual brasileiro.
De acordo com Silviano Santiago,

O escritor latino-americano brinca com os signos de


um outro escritor, de uma outra obra. As palavras do outro
têm a particularidade de se apresentarem como objetos
que fascinam seus olhos, seus dedos, e a escritura do
segundo texto é em parte a história de uma experiência
sensual com o signo estrangeiro. (SANTIAGO, 2000, p.
21).

Nesse devorar de outras vozes, o microconto de Rauer é guiado por


uma visão crítica e seletiva que fragmenta as narrativas primeiras e, em
contrapartida, faz com que uma nova narrativa — fractal — surja; não
como um decalque das anteriores, mas como um texto que dialoga sem,
contudo, deixar de teorizar algo novo em relação à microficção. Ao se valer
ampla e discretamente de textos outros, devorados em antropofagia
intertextual, Rauer conduz o leitor a refletir sobre a estrutura da narrativa
contemporânea do microconto e aponta para uma mudança de paradigma
da tessitura e da investigação da nova prosa literária ficcional.
Conforme nos ensina Wolfgang Iser,

Assim o jogo do texto não é nem ganho, nem perda,


mas sim um processo de transformação das posições, que
dá uma presença dinâmica à ausência e alteridade da
diferença. (Iser, 1979, p. 115).

Eis uma hipótese muito sutil contida na narrativa de Rauer: o


desvendar de uma história aparentemente simples pode provocar não só o
prazer intelectual, mas também o prazer edipiano, em que o texto
desnuda-se aos poucos até enovelar-se completamente e envolver, seduzir
o leitor na “alteridade da diferença”.
Assim, para o escritor e para o leitor, qualquer limitação de um
mínimo ou máximo de palavras é descartada, o que lhes importa é o jogo
que a sedução literária lhes provoca.
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Ao nível de análise de microcontos se percebe o diálogo entre textos,


tal aspecto deve ser ressaltado, a fim de se compreender e explorar tais
narrativas-relâmpago, entrecortadas de frinchas onde o leitor é convidado
a “espiar” as várias possibilidades de leituras que se abrem, visto que a
expressividade é, também, garantida pelo narratário como coautor. A
narratividade, entretanto, não se esgota nesse enredar, há uma narração
que se mostra por dentro de outra e se esconde por fora dela mesma: o
microconto de Rauer é um mise en abyme em um jogo de espelhos ao
infinito — ao menos é assim que o “Epitáfio” se apresenta.
Observamos que há, no enredo do microconto como gênero, e
“Epitáfio” é exemplar quanto a isso, um narrador que protagoniza a cena,
mas os fatos contados não estão condicionados somente ao seu olhar, à
revelação da imprecisão da vida, da construção/ desconstrução do solene e
cristalizado — lembrando que, conforme Derrida, desconstrução “[é] um
processo em curso com ou sem esse nome, quer se saiba ou não” (Derrida,
2001, p. 14). O narratário, ao “decifrar” os enigmas do texto, torna-se co-
autor, parceiro jogador. Essa “pílula ficcional” — narrativa sintética,
absoluta e abrangente — despe a arte do solene e desmascara a sociedade
de seu pseudo-racionalismo, compactuando com o interlocutor aquilo que
foi encenado pelo narrador.
Já se disse que histórias não se contam por si, precisam ser
contadas por alguém, caso contrário, ainda que preexistissem ao livro, não
chegariam a ter existência para o leitor. Assim, ao deixarem expostas essas
frinchas, para que o leitor possa “jogar” também, as micronarrativas
abrem espaço para repensar a literatura brasileira contemporânea — como
vimos no microconto de Rauer — e, especialmente, sua relação com o
social. Logo, longe de ser uma mera repetição de idéias de textos
canonizados, decalques ou outros designativos, os microcontos emergem
vorazes e, com eles, vêm à tona diversas alternativas para se estudar sua
poética.
A unidade narrativa da microficção representa uma fatia menor de
vida, mas nela há síntese, tensão, surpresa e revelação. Isso resulta de um
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burilamento profundo, de um jogo preciso de palavras e sinais de


pontuação, de uma técnica peculiar em que o autor aproxima leitura-leitor
de uma história que não finaliza no âmbito do narrado. Mas essa se
completa e continua em uma terceira margem, no imaginário do leitor.
Somente autores cônscios da importância da arte literária, propriedade
comum da humanidade, transformam — como Marçal Aquino, Manoel de
Barros, Wilson Freire, Samir Mesquita e Rauer, o que demonstramos ao
longo deste estudo — um mínimo de palavras em um máximo de ars
poetica. A partir desses autores, com certeza, podemos estabelecer uma
poética do microconto brasileiro contemporâneo, o que demanda um
estudo mais amplo do que este ensaio permitia.

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ISSN - 2176-6835

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acesso em 10 jul. 2011.
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Um conto conta sempre duas histórias, uma visível, outra secreta.


A história secreta é a chave da forma do conto e suas variantes.
Ricardo Piglia.
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(seleção com 33 narrativas)

© 2008 - 2011

CONTO DE FADAS EXPLODIU


APOCALIPSE

Esperançoso saudoso
Quando — intran- Era uma vez um exausto, o soldado
quilo sono — acordou, príncipe encantado, mo- voltava da guerra
o Verbo já o esprei- ço respeitador, e sua quando pisou no explo-
sivo.
tava. donzela, moça de puro
recato. Nas núpcias,
ela flutuava, feliz para
sempre.
Então sentiu no
peito, de cima abaixo
rasgaçalhando o ves-
tido de noiva, as mãos
dele.

CARTA DE UMA AMOR QUEM ÉS,


AMANTE DON JUAN?
Ao amado Don Juan Resposta a uma amante
dor

São inumeráveis Sou cadáver Ines-


paixões para muitos em crutável em cujos bra-
um só. Sua multipli- ços, ilimitada nas múl-
cidade — quem és, Don tiplas formas do gozo,
Juan? — é cantiga fria, incensavas Eros, reve-
mas em minhas entra- renciavas Sade, so-
nhas você tremia. Por pravas — incansável,
mim, por muitas, por insaciável — a trombe-
nenhuma ou por você? ta do Anjo Gabriel.
Nossos ardores sabe- Sou o outro que sou
riam? você mesma.
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PALESTRA MINAS KAI-HAI

Venho das Geraes. No poste de luz,


Depois de por meia
hora ouvir o PhD Sou esquivo, só, elétrico, mora o João-de-
pontificar nulidades, atento e ativo.
Barro, seus filhotes e
sintetizou: “Quanto mais
Se há amor? sua Cruz.
vazia a cabeça, mais a
boca fala”. Demais.

FLERTE HOMEM QUERIDO:


Se nos
Se o ar triste encontrarmos,
você terá o meu

!
e(n)ternece,
corpo, não a
se o lábio fino mim, pois não
enlouquece, mais me sou:
por que o olhar
Eu.
não
permanece?

CRISÁLIDA tem.po ANTI-MIDAS

Teu amor me substantivo neutro de Todo ouro em


aninha, tua presença odor feminino; que toco, perverto
me enlouquece, teu sêmen que enlameio e pus
silêncio me cala, tua apodrece; verto, ácido e sem
ausência me mata. pó; troco.
é
;
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JOGO O ASTRONAUTA FUGA :: RETORNO

Após bater o re-


Como não te odiar? corde de permanência A cada baldeação,
Pois sei que aper- solitária no espaço sem que nada lhe seja
tastes play, E evitas sideral, com 1461 acrescentada, a mala
dias, lhe perguntaram
brincar. fica mais pesada.
onde se sentia mais
feliz, se na terra ou
na nave estelar. Ele
respondeu:“Aqui, logo
depois de um voo, com
minha mulher, minhas
amantes, meus filhos,
os amantes de minhas
mulheres. Olhe como,
felizes, me aguardam.
Não, não há nada mais
belo”.

CASAL TRIVIAL EX-PLÊNDIDO BACCHEUS


BERÇO SATURNALIA
Quanto doce
encanto abunda na — Tá bom...
Sem remissão: até — Pode mesmo?
ária, no canto e ócio
prova em contrário, — Fazer o quê?
da Cigarra!
culpados todos são. O tempo, escoágulo.
Já Dona For- — E aí?
— Perdi o tesão.
migona, que barra!, cai — O quê!?
na tunda e no trampo — Nolo caritas, ubi
se afunda. erat amor.

RECADO NA agorrantiquus O HOMEM


GELADEIRA
Com o vulcão em ladro, sem humor,
Ao chegar, acor- chamas, no novel em dor, furor ou
de-me na sua boca, êxtaserótico que vi- calor, falso e sem
fazendo-me crescer, e bralucina, em dor e pudor, é o homem, sem
então me coloque na ardor ela, revogá- tirar nem pôr, da vida
xana, úmida e quente, vel, relembra primi- o humano horror.
até você ver estrelas, çia outra, e revive, e
até que eu morra. renega, e desfalece
no agorantigo, en-
quanto, agonizante
seta, o falo fume-
gante em incertas,
Inconsoadas grutas
grita, lacrimeja e
morre.
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SCRIPTOR O VERBO ESCREVER

O vazio o espreita: Do Complexo de


Coração, tripas e Houaiss à Sindrome de
ratio reverberam demô- louco de esperança, Aurélio, o TOC
epifânico.
nios do irracional.
fita a página

em branco.

O GÊNESIS MICROCONTO CONTO

Todo criador é irres- Narrativa. Ei-lo, elipse — do


Cristal-Vivo. incognoscível ao Ines-
ponsável. Vide Deus.
crutável.
Uma só visada.
Um único golpe.
Nocaute.

MICRONARRAR POÉTICA ADIEU

A ti, finório verme


Micronarrar #microconto
que róis linhas e li-
é poesia
= nhas para tão pouco
fascinante-assustadora,
tutano, o autor te
jogovida :: literatura, narrativa paga de tal volup-
vapor condensado mais que curta, tuosidade do nada
em lágrima, ultracurta;
aplicando-se piparote
mais que
faísca erótica em que se arroja dire-
mínima-sintética,
sangrante um raio, um flash: to ao colo de Asmo-
no ralo da noite. prosapoesianocaute deu.
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FEIJOADA
Confesso.
Fui eu que enfiei a faca
na barriga desse porco.
(Ivana Arruda Leite)
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