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RELIGIOSIDADE POPULAR E CATOLICISMO OFICIAL : O

ETERNO CONTRAPONTO

ISNARD DE ALBUQUERQUE CÂMARA NETO


Departamento de Ciências Sociais e Letras
Universidade de Taubaté

RESUMO

O objetivo do presente trabalho é apresentar as três principais tipologias sobre a religiosidade popular, mostrando com isso a
riqueza de abordagens que podem ser percorridas no estudo do tema.

PALAVRAS-CHAVE: catolicismo; religiosidade popular

INTRODUÇÃO piedade teocêntrica ou objetiva. Ordena aí as forças da


fé no fito de evitar sua desagregação e elimina tudo o
Em virtude de sua extrema riqueza e que não for Deus, materializado nos sacramentos, o
complexidade, a religiosidade popular comporta as que obviamente dispensa a intercessão de santos.
mais diversas variações tipológicas, possibilitando, Sendo assim, Deus é o objetivo, realizado na
com isso, um largo espectro de questões, todas em Santa Missa, cabendo, dessa forma, à liturgia trazer o
geral apoiadas em uma visão ideológica do analista. devoto para o Corpo Místico de Cristo.
Dessa forma, serão apresentadas as tipologias Segundo a Igreja, tudo que o cristão realiza
de Nicolau Bakker, de Thales de Azevedo e de Pedro para chegar à perfeição deve ser entendido como
Assis Ribeiro de Oliveira –sobre este último recaem realizado em Cristo e em virtude de Cristo, fonte de
nossas preferências, em virtude de sua maior toda a santidade, sendo a piedade teocêntrica ou
objetividade –, visando não só ao auxílio de um objetiva apenas um degrau, um complemento a ser
referencial teórico consagrado, mas também à vencido no caminho da contemplação pura. Daí os
possibilidade de uma visão mais globalizada sobre o mais diversos e longos exercícios espirituais destinados
assunto. à educação metódica de monges e sacerdotes em geral,
alicerçados firmemente nas regras.
A Tipologia de Nicolau Bakker A piedade antropocêntrica ou subjetiva é, na
quase totalidade das relações do leigo com o
Tratar de religiosidade popular e contrapô-la ao catolicismo, o limiar de sua caminhada na senda
catolicismo oficial exige uma apresentação do conceito espiritual, sendo-lhe difícil atingir a piedade teocêntrica
de piedade1 que, em definição simples, pode ser ou objetiva, esta quase que um apanágio daquele que
entendida como o amor e respeito às coisas religiosas. dedica sua vida à causa da espiritualidade.
No entanto há espaço para uma discussão mais Na piedade antropocêntrica ou subjetiva é bem
profunda, posto que se trata da relação de sentimentos claro o desvio conceitual de Deus infinito. Apenas fala-
para com o sagrado. se de Deus, raramente a Deus, e Jesus Cristo desloca-se
O catolicismo é uma religião de salvação da de sua condição dogmática de filho de Deus para ser
alma, tendo como ponto de partida a adoração pura e carinhosamente venerado como o Menino Jesus, o
simples de Deus infinito, por meio de um estado Bom Jesus. Ou então assume um papel de homem
contemplativo que dispensa atitudes intermediárias. enquanto ser histórico em seu sofrimento, quando
Para atingir tal estado, cumpre ao devoto muito. Sobre o assunto é bastante pertinente a
caminhar pelos degraus da espiritualidade, sem, no observação de José Ferreira Carrato: “Já o culto de
entanto, desviar-se do que poderia ser denominado de latria da religião portuguesa adorará menos a Nosso
Senhor Jesus Cristo, mas aquela gente sofrida se
1
Sobre o assunto, ver BONINO, José Míguez. A piedade popular na dedicará especialmente à lembrança das suas
América Latina. Concilium. Revista Internacional de Teologia. 1974/6,
Número X e FRENTZ, Emerico Raitz von. Piedade objetiva e subjetiva. endoenças, através das seguintes invocações mais
Revista Eclesiástica Brasileira, vol. 4, fasc. 2, Junho de 1944.
encontradiças: o Senhor dos Passos, o Senhor Morto, a prevalece uma consciência histórica, comunitária,
Santa Cruz, o Senhor do Horto, o Senhor do Sepulcro, positiva, política, evangélica e racional.
o Senhor Bom Jesus de Matosinhos, o Senhor Bom Consciência histórica, pois o homem é
Jesus (na Flagelação), o Senhor da Agonia. Mais estas comprometido com Deus, com seu destino pessoal e
do que quaisquer outras, também reiterando aqui a com o mundo que o rodeia;
preferência, talvez inconsciente e tão humana, mais Comunitária, pois privilegia a ação grupal e uma
pelo Homem - Deus do que pelo Deus - Homem, com atitude consciente para com o mundo que o cerca;
certeza mais acessível aos pobres mortais; a Eucaristia Positiva, quando sua consciência aceita que Deus
– esse dogma belíssimo do Santíssimo Sacramento do deseja o respeito e o incentivo a todos os valores que
altar – será muito mais entendida e sentida pelos sejam benéficos para o homem, mesmo aqueles não
préstitos monumentais de Corpus-Christi do que pelo explicitamente de cunho religioso;
ensinamento dogmático, hermético no mistério.” Política, tendo em vista que a fé exige compromisso e
(CARRATO, 1968, p. 32). engajamento em relação à história, para que se faça um
Privilegia-se, pois, o culto de santos. mundo melhor;
Considerando-se que o catolicismo os têm na condição Evangélica, para que ocorra uma real valorização do
de simples medianeiros para invocações facultativas, Evangelho de Cristo;
confunde-se o meio com o fim, razão pela qual muitos Racional, por fim, pois o comportamento religioso
julgamentos colocaram a piedade antropocêntrica ou passa por um processo de conscientização, não
subjetiva em uma situação antípoda ao dogma, podendo existir aí uma imposição da lei pela lei ou da
considerando-a como uma manifestação de tradição pela tradição. Como se pode verificar, tal
egocentrismo. comportamento é distanciado do egocentrismo que
permeia o primeiro.
Adotando esta linha conceptual, Nicolau
Bakker apresenta as vertentes da religiosidade
A Tipologia de Thales de Azevedo
“vertical”, de cunho popular e “horizontal”, de cunho
oficial. (BAKKER, 1974, p. 546-547).
Percorrendo-se a senda analítica proposta por
Para Bakker, a religiosidade vertical indica um
Thales de Azevedo, verifica-se que o autor propõe
relacionamento direto ou imediato do homem com quatro tipos de catolicismo, a saber: o cultural ou
Deus ou o mundo sobrenatural, caracterizando assim social, o formal, o nominal ou tradicional e, por fim, o
uma consciência passiva, individualista, negativista, popular.
pietista e penitente. O primeiro concretiza-se ao cabo das
Consciência passiva, pois não cabe ao homem influências do próprio catolicismo sobre todas as
a responsabilidade por seu destino pessoal e coletivo. instituições, vindo do berço, onde a escolha não é
Subordina-se ao papel de objeto de sua história, não de manifesta.
sujeito; O que se conta aqui são os valores derivados
Individualista, porque no relacionamento com a do catolicismo, vividos no cotidiano de forma
divindade não existe uma preocupação do homem além involuntária, sem qualquer laivo de religiosidade,
de seus interesses mais próximos, como a roça e a procedimentos esses também encontrados em culturas
família; protestantes, muçulmanas etc.
Negativista, levando ao desprezo daquilo que é “da Em outras palavras, se é católico porque todos
terra”, para considerar apenas o que é “do céu”, o são, e nesse estado durante muito tempo o
gerando dessa forma um comportamento milagreiro em protestantismo no Brasil foi considerado pelo povo
face do anseio da obtenção de graças ou milagres muito mais como algo estranho ao Brasil do que uma
mediante a apresentação de alguma dádiva ou sacrifício heresia a ser combatida.
pessoal; A Carta Pastoral de Dom Sebastião Leme da
Pietista, pois busca a santificação pessoal da vida, Silveira Cintra, escrita em 1916, retrata com fidelidade
mediante a fiel observância dos ritos e das devoções o catolicismo cultural, quando este antístite afirma que
tradicionais, recomendadas pela piedade cristã, neste “por índole, por educação e até por patriotismo, o
caso a piedade antropocêntrica ou subjetiva; nosso povo é, e não pode deixar de ser, prosélito do
Por fim, penitente, em virtude das exigências catolicismo” (CINTRA, 1938, p. 14).
requeridas pela vida religiosa, que requer ascese e No campo do catolicismo formal situa-se
penitência, não sendo permitido qualquer mácula de aquele que se “sobressai” em sua fé, possuindo um
um mundo “sujo” ou “mundano”, derivando-se daí conhecimento mais aprofundado sobre a doutrina e
típicas manifestações egocêntricas. procurando seguir os modelos morais que o conduzam
A religiosidade horizontal, por sua vez, indica à salvação. É o “católico praticante”, que privilegia os
um relacionamento indireto ou mediato, em que
sacramentos e vê no padre o único autorizado para falar formulações elaboradas em símbolos e ritos em que se
de Deus. mesclam o sagrado e o profano, também foi objeto
Considera-se então este catolicismo formal de pertinente observação de João Camilo de Oliveira
como o “verdadeiro” catolicismo, uma “religião Torres:
escatológica, de salvação, universal, de convicção, o católico brasileiro não lia a Bíblia, o
internacionalizada por aprendizagem e análise, que católico brasileiro não participava dos
procura no outro mundo os padrões de santidade e sacramentos, e apenas assistia remotamente à
perfeição moral ” (AZEVEDO, 1969, p. 122). Missa, como um espetáculo, em língua
Como terceiro tipo a ser classificado apresenta- estrangeira, no qual se executavam atos cujo
se o catolicismo nominal ou tradicional, que se significado desconhecia e cujo mistério
configura um relacionamento de superfície do católico respeitava. Ia-se à missa por obrigação como
com a Igreja, e cuja freqüência é “funcional”, tanta gente vai à Ópera, sem saber italiano e
ocorrendo somente quando de batizados, casamentos e sem entender muito de música. Mas, é
missas de formatura, ação de graças e de sétimo dia, obrigação [...] (TORRES, 1968, p. 87)
por exemplo, podendo-se considerá-lo como uma
prática católica muito mais de reunião que de união. A Tipologia de Pedro Assis Ribeiro de Oliveira
Além disso, o conhecimento da fé é penetrado
por uma tradução própria do catolicismo, afastada de A classificação dos elementos essenciais do
uma sistematização doutrinária que o leva a um Catolicismo oficial, de Pedro Assis Ribeiro de Oliveira,
pensamento reflexivo convergente ao assunto. possibilita boa análise comparativa com a
Enquadram-se aí os católicos que racionalizam a Religiosidade Popular. A opção por aprofundar os
criação do universo, vêem Deus nas flores ou numa critérios adotados por este autor deve-se ao fato de que
equação matemática e têm sua própria explicação para tal classificação se enquadra nos moldes do catolicismo
todos os dogmas. mais amplamente vivido no Brasil, além de seu fácil
Neste catolicismo nominal, portanto, encontra- enquadramento para uma prática comparativa.
se um caráter “social”, individualista e O autor comparte os elementos essenciais do
descompromissado para com a religião, onde a moral Catolicismo Oficial em quatro núcleos ou constelações,
normalmente é ditada pela classe social, e não aquela e por “constelação” entende-se um grupamento de atos
ditada pelos princípios do cristianismo. semelhantes entre si para que seja concretizada a
Vem por último o católico popular, que reúne relação entre o homem e o sagrado.
elementos integrantes de crenças indígenas e africanas, A primeira constelação diz respeito aos
procurando manipular o sobrenatural para um proveito sacramentos, incluída aí a participação do sacerdote
imediato, de “uso tópico”. Bastam-lhe para tanto as como condição sine qua non para operar as relações
orações mais comuns, as ladainhas, os rudimentos com o sagrado, além da total subordinação do crente à
do catecismo. Igreja e da inexistência do caráter utilitário. Tem-se
O conformismo e a resignação estão presentes então a chamada constelação sacramental.
como parte da “vontade de Deus”, os males do corpo e A segunda é a expressão e permanência da
da alma, causados em sua maioria por fatores leitura bíblica, a Bíblia como ponto de reflexão e livro
sobrenaturais, são campo fértil para os “benzedores”, e norteador da doutrina. A prática de seus ensinamentos,
o próprio conceito de santidade se baseia na força e a oração saída de sua leitura, enfim, as Sagradas
benevolência do ser invocado, excluindo-se aí as Escrituras como mais um acessório do equipamento
noções de ética, pecado e salvação. Tributária do negro mental e espiritual do católico. A esta denomina-se
e do índio, como afirmado anteriormente, constelação evangélica .
nessa religiosidade largamente sincrética, faz- Sobre o contato do povo com a Bíblia, afirma
se apelo em determinadas circunstâncias aos João Fagundes Hauck que este era feito no Brasil
orixás do animismo de origem africana, aos colonial e no Império tão somente por meio de
espíritos dos panteons aborígenes e às almas representações, mormente na época da Semana Santa e
desencarnadas do espiritismo; também se Natal. Estabelecia-se dessa forma entre a população e
recorre a ‘santos’ vivos, isto é, a sacerdotes e o Evangelho um relacionamento “de cunho folclórico,
festivo, nos reisados e congadas, e na apresentação do
leigos aos quais se atribui a capacidade de
presépio.” (HAUCK, et. al. 1992, p. 106)
fazer ‘milagres’ ou de aliviar o mal por meio
Observa-se, por conseguinte, que essas duas
de bênçãos, rezas, invocações. (AZEVEDO,
constelações, quais sejam, a sacramental e a
1969, p. 123)
evangélica, são fortes esteios para a construção do
“Essa “religiosidade de urgência”, tão
revestida de praticidade e identificada com
edifício do Catolicismo Oficial, pois se encaminham Abri bem os olhos e esperei em silêncio. A
pelo viés da piedade teocêntrica ou objetiva. viração começara. Cecília, cobrindo o pires
A terceira constelação denomina-se com uma das mãos e sustendo-o com a outra,
devocional, e caracteriza-se pelo relacionamento sem com religioso respeito, aproximou-se da
interferências do homem com o sagrado, visto sob o janela. Aí ajoelhou-se de novo; depois,
viés da piedade antropocêntrica ou subjetiva. soprando, atirou para o espaço as cinzas que o
Este contato ocorre sem a intermediação do recipiente continha. De mãos postas, seguia
sacerdote e sem ter necessariamente a igreja como com o olhar inquieto as partículas negras que
local para que sejam estabelecidas as relações com o a brisa carregava pelos ares. Pouco depois,
sagrado, podendo se materializar em caráter individual, nada mais se via. A carta dirigia-se ao céu. A
como, por exemplo, em forma de orações (oficiais ou moça fez uma última oração e, ao levantar-se,
não), novenas, penitências que evitem um “castigo” o seu rosto radioso testemunhava a confiança
maior do santo (um homem cortar a barba de que tanto que nutria no sucesso de sua petição
gosta, uma mulher não se enfeitar por determinado (EXPILLY, 1935, p. 168-169).
tempo, etc.). Ou ocorrer em caráter coletivo, como nas A quarta constelação, denominada protetora,
romarias, procissões, festas de santos, dentre outros. também se define pelas relações diretas e sem
É lícito observar-se nesta constelação o caráter interferências do homem com o sagrado, desta vez sob
eminentemente religioso e de homenagem ao santo, a ótica da proteção, entendida aqui como a obtenção de
porém desatrelado de qualquer cunho ético. O objetivo vantagens concretas: os santos vão interceder pelo
primeiro na prática da constelação devocional é o devoto na obtenção de um emprego, na volta de um
crente obter uma aliança ou a renovação da mesma amor perdido, nas doenças, enfim, na busca do
com o santo invocado, aliança esta que traga vantagens reequilibro material ou emocional afetado pelas
de cunho material pela via do sobrenatural, e mais uma dificuldades da vida.
vez Montenegro (1972) é exemplar ao definir tais A constelação protetora manifesta-se
estados emocionais, ao perceber que “quando a exemplarmente nas promessas, tendo sua importância
religiosidade paira a nível mais elevado, imune a igualada à devocional quanto ao seu enquadramento na
superstição e ao materialismo agreste, estanca na religiosidade popular.
piedade”. (p. 10). Assim sendo, Oliveira (1972) conclui que
Charles Expilly, cronista de nossos costumes e “catolicismo popular: é aquele em que as constelações
negociante francês que viveu no Brasil em meados do devocional e protetora primam sobre as constelações
século XIX, reporta-nos um episódio que vivenciou no sacramental e evangélica” ( p. 354).
Rio de Janeiro, bem típico da constelação protetora: É lícito, portanto, inferir que a religiosidade
...Então a moça volveu a última esperança popular, desfalcada da constelação evangélica e
para a sua padroeira celeste. Escreveu-lhe a indigente em suas relações com a Igreja, inverte os
fim de lhe suplicar proteção aos seus amores. pressupostos do Catolicismo Oficial. Caracteriza-se daí
Somente Santa Cecília poderia comover a uma disparidade entre este e o catolicismo assimilado,
coração do deputado, impedir-lhe a partida e eivado de práticas populares, em virtude de uma abissal
restituir-lhe aquele sem o qual não poderia diferenciação entre os ensinamentos precários
mais viver [...] A senhora chegou ao máximo transmitidos em pregações dominicais, uma catequese
de sua bondade, introduzindo-me em um para crianças não acompanhada de cursos de
cômodo que precedia o quarto da filha. Uma aprofundamento e uma socialização religiosa familiar,
janela interior dava para este. Pude, então, de gerenciamento predominantemente feminino,
assistir, sem ser visto, a uma cena curiosa e gerando com isso uma “religião ou culto de família
nova para um europeu. Um altar tinha sido mais do que de catedral ou de igreja” (FREYRE, 1990,
erguido sobre uma mesa, ornamentado de p. 22). As constelações protetoras e devocionais
flores naturais e de círios acesos. Queimavam- formam, portanto, a nota fundamental, posição
se incenso e mirra, e uma fumaça cheirosa diametralmente oposta à dos ensinamentos transmitidos
evolava-se pelo aposento. Ajoelhada diante do em seminários e cursos especiais.
altar, Cecília escrevia. Pouco depois, levantou Essa distância entre um e outro, por
a cabeça, pegou entre os dedos a folha ainda conseguinte, será preenchida com as diversas
úmida sobre a qual acabava de expandir sua manifestações de religiosidade popular. Pode-se
alma. Aproximou o papel da chama da vela. verificar, portanto, o sentido tão direto, sem
Depois da consumação, recolheu as cinzas em intermediários, que o homem estabelece com o sagrado
um pires encarnado [...] Chegou então o na religiosidade popular, seja pelo aspecto da piedade,
momento de ver funcionar o correio celestial. seja pelo aspecto da proteção requerida, reduzindo
assim a constelação sacramental a um locus apelos do clero brasileiro em suas obras e cartas
subordinado e praticamente eliminando a constelação pastorais.2
evangélica. O problema desta “cultura do catolicismo”
É catolicismo? Entende-se que sim, pois dele heterogênea explica-se pelo fato de o povo brasileiro
também fazem parte elementos como o batismo, a ter conservado uma visão paradigmática da Igreja em
primeira comunhão, a missa, e, mesmo fundamentado sua manifestação religiosa, no entanto bem distante do
em uma piedade antropocêntrica ou subjetiva, não fere que se denomina catolicismo oficial, tendo em vista
os dogmas. que o próprio conceito de “oficial” representa apenas o
É completo? Não, pois carece das constelações autenticado pela hierarquia da Igreja.
sacramental e evangélica, caracterizando-se aí Ora, se existe um catolicismo autêntico,
especialmente seu caráter privado, em que a presença oficializado por um grupo social capaz de elevar-se aos
do sacerdote é inexistente ou de mero caráter auxiliar. regionalismos e atingir um patamar livre de influências
É legítimo? Em nosso entender sim, apoiados exógenas, obtendo com isso a pureza conceptual da
no ensinamento de Günter Paulo Süss: religião, também existe um grupo social impotente de
No catolicismo popular, cada uma destas fugir à “atração gravitacional” desses mesmos
constelações aparece em certa isolação e vida regionalismos. Em nosso entender, porém, ambos
própria. A sua legitimidade no catolicismo terminam por afirmar – ainda que de forma diversa –
global permite conservar a unidade do que “Jesus Cristo é o Senhor”, motivo pelo qual não
catolicismo, enquanto a vida própria das podemos concordar com o conceito colonialista que
constelações contribui para a multiplicidade Günter Paulo Süss emprega para definir a questão: “o
das formas de catolicismo popular (SÜSS, desnível entre o catolicismo oficial e o catolicismo do
1979, p. 78). povo simples, cujas concepções no campo do direito,
Mais ainda, verifica-se nas constelações devocional e dos valores e da fé somente são capazes de adaptação
protetora uma ausência de referenciais cristocêntricos, no quadro de certo ‘retardamento’ cultural (cultural
daí privilegiarem-se os santos de devoção particular. lag)” (SÜSS, 1979, p. 27).
O caráter predominante do catolicismo em A presente observação crítica a Freyre prende-
nosso país remonta à sua colonização e foi, segundo se ao desiderato de eliminar o que possa conduzir à
Gilberto Freyre (1990), nosso principal elemento idéia de um “catolicismo harmônico” em nosso período
aglutinador. colonial, tendo em vista que
Diz o autor que: a Inquisição ajudou poderosamente a formar
temia-se no adventício acatólico o inimigo (ou deformar) a consciência católica no Brasil,
político capaz de quebrar ou de enfraquecer criando a impressão de que todos são católicos
aquela solidariedade que em Portugal se da mesma forma, obedecendo às mesmas
desenvolvera junto com a religião Católica. normas e lutando contra os mesmos inimigos.
Essa solidariedade manteve-se entre nós O catolicismo é o ‘cimento’ que une a nação, o
esplendidamente através de toda a nossa ‘laço’ que prende a todos , o local de reunião e
formação colonial, reunindo-nos contra os confraternização entre as raças as mais
calvinistas franceses, contra os reformados diversas que compõem a nacionalidade:
holandeses, contra os protestantes ingleses. afirmações como estas se repetem de geração
Daí ser tão difícil, na verdade, separar o em geração, embora elas pareçam bastante
brasileiro do Católico: o Catolicismo foi levianas para quem sentiu o clima de medo e
realmente o cimento da nossa unidade de repressão existente na Colônia3
(p. 29-30). (HOORNAERT, 1974, p. 14).
De que o catolicismo tenha sido o cimento não
se discorda, pois “o que há de solidariedade social
naquele período deve-se à religião” (MONTENEGRO,
1972, p. 10). No entanto, um cimento um tanto 2 Para uma história da Igreja no Brasil entre 1890 e 1922, analisada pela
pedregoso, enquanto imposto verticalmente e leitura das cartas pastorais coletivas, encaminho o leitor a ARAÚJO, José
heterogêneo em seus aspectos horizontais, gerando Carlos Souza. A Igreja Católica no Brasil: um estudo de mentalidade
ideológica. São Paulo: Paulinas, 1986.
com isso o que se poderia denominar de uma “cultura 3 Sobre a Inquisição e suas relações com os cristãos-novos, ingresso de
do catolicismo”. cristãos-novos nas ordens eclesiásticas, religiosidade dos colonos e o
Mesmo após 1891, quando o Estado se torna judaísmo nas capitanias do sul ver SALVADOR, José Gonçalves. Cristãos-
novos, jesuítas e Inquisição (Aspectos de sua atuação nas capitanias do sul,
laico, esta “cultura” será a grande fonte de inspiração 1530-1680). São Paulo: Livraria Pioneira Editora – EDUSP: São Paulo,
que vai permear todas as críticas, análises políticas e 1969.
Apresentadas que foram as tipologias dos três BAKKER, N. Romarias: questionamento a partir de
autores, nota-se em comum que a religiosidade popular uma pesquisa. Revista Eclesiástica Brasileira, v. 34,
carrega em seu âmago as manifestações acabadas de fasc. 135, Setembro de 1974.
espontaneidade e sociabilidade de um povo.
No entanto, não se deve, segundo François– CARRATO, J. F. Igreja, iluminismo e escolas mineiras
André Isambert, “estabelecer com tanta rapidez um coloniais. São Paulo: Companhia Editora
quadro prematuro que a enquadre como caricatura” Nacional/Editora Universidade de São Paulo, 1968.
(ISAMBERT, 1992, p. 22), pois esta proeminência do (Brasiliana, v. 334)
aspecto social em nossa religiosidade, caracterizada
pela forte participação de manifestações leigas, CINTRA, Dom S. L. da S. Carta pastoral quando
encontra suas raízes em diversos aspectos da história. arcebispo de Olinda, saudando os seus diocesanos –
1916. Petrópolis: Vozes, 1938.
ANOTAÇÕES CONCLUSIVAS
EXPILLY, C. Mulheres e costumes do Brasil. São
Nossa tentativa de apresentar as três principais
Paulo: Companhia Editora Nacional, 1935.
tipologias sobre a religiosidade popular em contraponto
com o catolicismo oficial visa primordialmente a dois FREYRE, G. Casa Grande & Senzala. Rio de Janeiro:
objetivos: O primeiro é reforçar a dificuldade de Record. 27. ed. 1990.
enquadrar de modo definitivo a religiosidade popular
em um modelo fechado. A visão dos tratadistas aqui HAUCK, J. F. et al. História da Igreja no Brasil. 3. ed.
apresentados perpassam desde uma abordagem de Tomo II/2, Petrópolis: Vozes, 1992.
cunho ideológico, qual seja, a religião vinculada à
política, até a análise conceitual do catolicismo “puro”
HOORNAERT, E. Formação do catolicismo
em relação às práticas religiosas afastadas da
ortodoxia. brasileiro: 1550 – 1800. Petrópolis: Vozes, 1974.
O segundo objetivo visa mostrar a necessidade
da saudável aproximação entre história, sociologia e ISAMBERT, F. A. Le sens du sacré: fête et religion
antropologia, sem a qual o estudo com certeza será populaire. Paris: De Minuit, 1992
falto de elementos aglutinantes. Assim sendo, as
tipologias apresentadas servirão de referencial teórico MONTENEGRO, J. A. de S. Evolução do catolicismo
para o estudo das raízes da religiosidade popular no no Brasil. Petrópolis: Vozes, 1972.
Brasil, e, no intuito de ampliar o leque de
entendimento e realizar uma ambientação mais ampla OLIVEIRA, P. A. R. de. Religiosidade Popular na
possível, pretendemos, em nossa próxima publicação, América Latina. Revista Eclesiástica Brasileira, v.
apresentar o estudo dessas raízes. 32, fasc. 126, Junho de 1972.

ABSTRACT SÜSS, G. P. Catolicismo popular no Brasil: tipologia e


estratégia de uma religiosidade vivida. São Paulo:
The aim of this work is to present the three main Loyola, 1979.
typologies about the popular religiosity, demonstrating
the wealthy of approaches which can be investigated in TORRES, J. C. de O. História das Idéias Religiosas no
the study of the theme.
Brasil. São Paulo: Grijalbo, 1968.
KEY-WORDS: catholicism; popular religiosity

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
Isnard de Albuquerque Câmara Neto é Professor
Colaborador Adjunto no Departamento de Ciências
AZEVEDO, T. de. Catolicismo no Brasil? Revista Sociais e Letras da Universidade de Taubaté.
Vozes, Ano 63, n. 2, fev. 1969.

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