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RESUMO:
A morte, e os conceitos que ela agrega, sempre causaram muita inquietação na mente
humana. Não ter certeza do destino da alma após a morte foi um grande motivador para
o surgimento de diversos mitos e preceitos religiosos que tentavam reduzir o temor das
pessoas mostrando explicações religiosas e rituais que pudessem tranquilizar não só a
alma do morto, mas também a preocupação dos vivos em relação aos temidos
fantasmas.
E o maior desses rituais é o sepultamento. A prática fúnebre é tão antiga quanto o temor
dedicado à morte. Ela simboliza uma despedida ao morto, para que os vivos possam
concretizar tal falecimento em suas mentes. No entanto, o funeral possui simbologias
muito mais complexas, pois, segundo os preceitos que foram reunidos à essa prática, a
suntuosidade de uma cerimônia fúnebre era tão importante à alma recém desligada do
corpo, que era capaz de levar tal alma ao descanso eterno. Logo, a ausência de tal
pompa no ato fúnebre ou, o que seria ainda pior, a ausência do funeral poderia ter
consequências bastante indesejadas para os vivos, tornando possível o surgimento de
fantasmas.
ABSTRACT:
The Death, and the concepts that she brings, always caused much concern in the human
mind. Not to have sure of the fate of the soul after death was a great motivator for the
emergence of many myths and religious precepts that tried to reduce the fear of the
people showing religious explanations and rituals that could reassure not only the dead's
soul, but also the concern of living people in relation to the feared ghosts.
And the greatest of these rituals is the burial. The funeral practice is as old as the fear
dedicated to death. It symbolizes a farewell to the dead, so that the living people may
materialize such death in their minds. However, the funeral has much more complex
symbologies, because, according to the precepts that were gathered to this practice, the
sumptuousness of a funeral ceremony was so important to the newly disconnected soul
from the body, which was able to take that soul to eternal rest. Therefore, the absence of
such in the funeral pomp, or which would be even worse, the absence of the funeral
could have very undesirable consequences for the living people, making possible the
emergence of ghosts.
1
Licenciada em História pela Fundação de Ensino Superior de Olinda – FUNESO, e pós-graduada em
História do Brasil pela FAINTVISA. E-mail: alynne.cbsilva@gmail.com
INTRODUÇÃO
A alma que não tivesse o seu túmulo não tinha residência. Era errante. Em vão
aspirava ao repouso, que devia desejar depois das agitações e dos trabalhos desta
vida; tinha de errar para sempre, sob forma de larva ou de fantasma, sem jamais
parar, sem jamais receber as oferendas e os alimentos de que precisava. Infeliz,
logo se tornava malfazeja. Atormentava os vivos, enviava-lhes doenças, destruía
as colheitas, apavorava-os com aparições lúgubres, para avisá-los a dar sepultura
ao seu corpo e a ela própria. Veio daí a crença nos fantasmas. Toda a
Antiguidade estava convencida de que, sem a sepultura, a alma era miserável, e
que pela sepultura se tornava feliz para sempre. Não era para exibição da dor que
se realizava a cerimônia fúnebre, mas pelo repouso e pela felicidade do morto.
(COULANGES, 2009, p. 26).
“Quem morre não volta!” Essa é uma frase que muitas das pessoas já
ouviram em algum momento de suas vidas, a saber, na infância, quando vão surgindo os
temores por temas desconhecidos como a morte em si, e os fantasmas. A incredulidade
a respeito da aparição de fantasmas não é apenas reservada aos céticos, mas também aos
dogmas de algumas religiões. Até mesmo o catolicismo, grande propulsor das tradições
fúnebres que serão trabalhadas nessa pesquisa, tinha (e tem) reservas quanto aos
assuntos de almas do além que voltam à Terra.
Pois bem, antes de falar nos rituais fúnebres como prevenção e antídoto
contra fantasmas, se faz necessário legitimar a aparição desses fantasmas. E é
exatamente no seio do catolicismo que isso será possível.
Quando alguém morre, é sabido, através do cristianismo reformado, de dois
destinos para a alma: O céu e o inferno. No entanto, o cristianismo romano trouxe uma
terceira opção para as almas que não foram suficientemente boas para herdar o paraíso
nem completamente intransigentes a ponto de arder no inferno. Era o purgatório.
No contexto dessa pesquisa, o purgatório é um elemento chave. Ele servia
como uma espécie de destino intermediário e transitório entre o céu e o inferno, o qual a
alma que não conseguia ir direto para o céu deveria permanecer e espiar pelos seus
pecados. Nesse estágio, as atitudes pessoais não valiam mais para determinar a duração
da estadia no purgatório. As almas precisavam da ajuda dos vivos através de preces, ou
o chamado, “sufrágio”, para livrar-lhes do sofrimento e alcançar o tão esperado
descanso eterno: “As almas do purgatório [...] podem, com efeito, beneficiar de uma
alteração de pena, de uma libertação antecipada, não pela sua boa conduta pessoal mas
por causa das intervenções exteriores, os sufrágios”. (LE GOFF, 1995, p. 253).
Então, para conseguir a ajuda dos vivos e pedir rezas, a algumas almas, era
concedida a graça de surgir aos vivos como forma de fantasma: “Deus permite estas
aparições para consolo dos vivos e para excitar a compaixão, instruir e despertar a ideia
da severidade dos juízos de Deus contra faltas que julgamos muito leves”. (BRANDÃO,
1953, p.18). A explicação divina para as almas do purgatório que se mostram aos vivos
também é defendida por Jean Delumeau: “Deus pode permitir que as almas dos mortos
se mostrem aos vivos sob aparências de seu corpo de outrora” (2009, pág. 125).
É importante pontuar que, segundos esses autores, Deus concedia a graça de
voltar a Terra a apenas algumas almas e essa concessão tinha uma finalidade maior que
era pedir por suas almas e orientar os vivos: “Essas aparições se davam por permissão
de Deus, raras vezes, e por milagre, para ensinamento e confirmação da imortalidade da
alma, para lição dos vivos ou para pedir socorro e sufrágios”. (BRANDÃO, 1953, p. 8).
Nesse sentido, é possível encontrar diversos exemplos na consagrada obra
do sociólogo pernambucano Gilberto Freyre “Assombrações do Recife Velho” que trás
relatos de vários casos de aparição de almas “materializadas”, que após sua morte,
voltavam à Terra na intenção de pedir por si:
São condenadas à uma penosa existência, pois nunca podem entrar no mundo
dos mortos ou se incorporar à sociedade lá estabelecida. Estes são os mais
perigosos dos mortos. Eles desejam ser reincorporados ao mundo dos vivos, e,
porque não podem sê-lo, se comportam em relação a ele como forasteiros hostis.
Eles carecem dos meios de subsistência que os outros mortos encontram em seu
próprio mundo e consequentemente devem obtê-los à custa dos vivos. Ademais,
estes mortos sem lugar ou casa às vezes possuem um desejo intenso de vingança.
(REIS, 1991, p. 89).
Dessa forma, mesmo obtendo a permissão para pedir ajuda por sua alma,
muitos desses mortos surgem para assombrar os vivos, já que o destino da alma,
segundo os dogmas destacados aqui, também é determinado pela atitude dos vivos
diante da morte. Então surge aí o que João José Reis chamou de “desejo intenso de
vingança”.
Como foi visto, a aparição de fantasmas se dá pela permissão divina e
através das almas no purgatório e o caráter, positivo ou negativo, dessas aparições era
mais relacionado à forma como foi conduzido o sepultamento. Cabe agora ilustrar o que
era considerado um bom funeral. Um funeral que traria o esperado repouso e paz para a
alma do morto, livrando-o do temível destino de se tornar fantasma.
2. A “BOA MORTE”
Nesse estilo de morte, o indivíduo administrava seu fim fazendo valer suas
palavras. A tradição popular considerava esta uma "morte bonita". Mas morrer
assim representava um esforço coletivo. Uma boa morte era sempre
acompanhada por especialistas em bem morrer e solidários espectadores. Ela não
podia ser vivida na solidão. (REIS, 1991, p. 100).
Essa "boa morte" consistia em várias etapas, que poderiam variar de acordo
com a intensidade da fé nos preceitos religiosos do morto e de sua família; questões
financeiras também faziam essas etapas variar um pouco, mas basicamente elas
consistiam na preparação da casa e do corpo, sepultamento e missas pós-morte (missa
de sétimo dia, missa de corpo presente, etc.)
O primeiro cuidado em relação ao moribundo era mandar buscar um padre
para que o doente confessasse seus pecados a fim de receber perdão. Além disso, o
padre ficava em constante atenção para, nos últimos instantes de vida, aplicar-lhe a
extrema unção, que figurava nesse contexto um "empurrão" para fora da vida.
Nas palavras de Cláudia Rodrigues:
3. OS SEPULTAMENTOS TARDIOS
É uma alma forçada a permanecer errante, porque o seu corpo foi enterrado sem
que se observassem os ritos. Conta Suetônio que, tendo o corpo de Calígula sido
enterrado sem que fosse realizada a cerimônia fúnebre, isso fez que sua alma
permanecesse errante e aparecesse aos vivos, até o dia em que decidiram
desenterrar o corpo e dar-lhe uma sepultura conforme as normas”. (2009, p. 26)
Na atualidade, só vemos acontecer casos de novos sepultamentos quando de
mortes por assassinato (ou suspeita dele) os quais o corpo precisa ser retirado da
sepultura para exumação. Ao retornar, é de praxe que a família realize uma nova
cerimônia fúnebre a favor da alma. Um caso assim aconteceu em 2013, com os restos
mortais do ex-presidente João Goulart que precisou ser removido da sepultura para
passar por uma exumação a fim de auxiliar na investigação da causa de sua morte. Após
os testes, o caixão com os seus restos mortais saiu em cortejo fúnebre e foi sepultado
novamente.
Daí vê-se que o simbolismo de encerrar, novamente, o corpo por meio de
uma nova cerimônia fúnebre ultrapassa questões de período da morte e até mesmo
conservação do corpo. O que mais é levado em conta é a ideia de encerramento, pois de
fato, os rituais fúnebres são rituais de encerramento.
REFERÊNCIAS
AGOSTINHO, Santo. O cuidado devido aos mortos. São Paulo: Paulus, 2002.
Disponível em:
http://minhateca.com.br/Cibelle/Documentos/Livros/SANTO+AGOSTINHO/o+cuidad
o+devido+aos+mortos+-+santo+agostinho,65242263.pdf
Acesso em 23 de Setembro de 2014
DELUMEAU, Jean. História do Medo no Ocidente. São Paulo: Companhia das letras,
2009.
FREYRE, Gilberto. Assombrações do Recife Velho. 3.ed. Rio de Janeiro: José
Olympio, 1974.
KOVÁCS, Maria Júlia. Educação para a Morte. Temas e Reflexões. São Paulo: Casa
do Psicólogo, 2003.
LE GOFF, Jacques. O Nascimento do Purgatório. São Paulo: Estampa, 1995.
PEREIRA, Padre José Carlos. Missa do Sétimo Dia. Uberlândia: Partilha, 2010.