Você está na página 1de 10

REST IN PEACE:

OS FUNERAIS E SUAS FUNÇÕES PREVENTIVA E


ANTIDOTAL CONTRA A APARIÇÃO DE FANTASMAS

ALYNNE CAVALCANTE BEZERRA DA SILVA1

RESUMO:

A morte, e os conceitos que ela agrega, sempre causaram muita inquietação na mente
humana. Não ter certeza do destino da alma após a morte foi um grande motivador para
o surgimento de diversos mitos e preceitos religiosos que tentavam reduzir o temor das
pessoas mostrando explicações religiosas e rituais que pudessem tranquilizar não só a
alma do morto, mas também a preocupação dos vivos em relação aos temidos
fantasmas.
E o maior desses rituais é o sepultamento. A prática fúnebre é tão antiga quanto o temor
dedicado à morte. Ela simboliza uma despedida ao morto, para que os vivos possam
concretizar tal falecimento em suas mentes. No entanto, o funeral possui simbologias
muito mais complexas, pois, segundo os preceitos que foram reunidos à essa prática, a
suntuosidade de uma cerimônia fúnebre era tão importante à alma recém desligada do
corpo, que era capaz de levar tal alma ao descanso eterno. Logo, a ausência de tal
pompa no ato fúnebre ou, o que seria ainda pior, a ausência do funeral poderia ter
consequências bastante indesejadas para os vivos, tornando possível o surgimento de
fantasmas.

Palavras-Chave: Fantasmas. Funeral. Morte

ABSTRACT:
The Death, and the concepts that she brings, always caused much concern in the human
mind. Not to have sure of the fate of the soul after death was a great motivator for the
emergence of many myths and religious precepts that tried to reduce the fear of the
people showing religious explanations and rituals that could reassure not only the dead's
soul, but also the concern of living people in relation to the feared ghosts.
And the greatest of these rituals is the burial. The funeral practice is as old as the fear
dedicated to death. It symbolizes a farewell to the dead, so that the living people may
materialize such death in their minds. However, the funeral has much more complex
symbologies, because, according to the precepts that were gathered to this practice, the
sumptuousness of a funeral ceremony was so important to the newly disconnected soul
from the body, which was able to take that soul to eternal rest. Therefore, the absence of
such in the funeral pomp, or which would be even worse, the absence of the funeral
could have very undesirable consequences for the living people, making possible the
emergence of ghosts.

Keywords: Ghosts. Funeral. Death

                                                            
1
Licenciada em História pela Fundação de Ensino Superior de Olinda – FUNESO, e pós-graduada em
História do Brasil pela FAINTVISA. E-mail: alynne.cbsilva@gmail.com
INTRODUÇÃO

Antes de iniciar qualquer fala relacionada aos temas da morte, é muito


importante saber que o imaginário mortuário passou por muitas mudanças ao longo do
tempo. Nem sempre se temeu a morte, nem sempre se acreditou em fantasmas, nem
sempre se despendeu tanto tempo e detalhes aos rituais fúnebres. O pensamento
contemporâneo designa à morte um significado de encerramento da vida. Algumas
culturas religiosas ainda pensam na morte como uma espécie de sono do qual os
“eleitos” um dia irão acordar e herdar o paraíso. As crenças antigas, porém, viam a
morte como uma passagem para uma segunda existência e a alma que iniciaria essa
segunda existência “continuava junto dos homens, vivendo sobre a Terra”
(COULANGES, 2009, p. 24) e, dessa forma, a alma continuava ligada ao corpo
deteriorado, “fechava-se com ele na sepultura” (idem).
A crença que irá permear essa pesquisa está relacionada com os dogmas do
catolicismo e todos os subsídios encontrados para legitimar tanto a aparição de alguns
fantasmas, como também a importância dada ao sepultamento e seus ritos. No entanto,
torna-se necessário abordar algumas passagens que ilustram o surgimento da crença em
fantasma, logo, do medo e da necessidade de sepultar o corpo:

A alma que não tivesse o seu túmulo não tinha residência. Era errante. Em vão
aspirava ao repouso, que devia desejar depois das agitações e dos trabalhos desta
vida; tinha de errar para sempre, sob forma de larva ou de fantasma, sem jamais
parar, sem jamais receber as oferendas e os alimentos de que precisava. Infeliz,
logo se tornava malfazeja. Atormentava os vivos, enviava-lhes doenças, destruía
as colheitas, apavorava-os com aparições lúgubres, para avisá-los a dar sepultura
ao seu corpo e a ela própria. Veio daí a crença nos fantasmas. Toda a
Antiguidade estava convencida de que, sem a sepultura, a alma era miserável, e
que pela sepultura se tornava feliz para sempre. Não era para exibição da dor que
se realizava a cerimônia fúnebre, mas pelo repouso e pela felicidade do morto.
(COULANGES, 2009, p. 26).

Sobre essa citação de Coulanges é interessante acrescentar um contraponto


encontrado nas palavras de Santo Agostinho na sua obra “O cuidado devido aos
mortos”, quando ele, perguntado sobre se o local da sepultura (perto ou longe dos
santos) pode ser favorável ao morto. Após algumas explanações Santo Agostinho tenta
dissuadir a crença colocada sobre a importância do funeral se baseando em passagens
bíblicas e afirma que “as providências quanto ao funeral, a escolha da sepultura, a
pompa do enterro, etc., é mais consolo para os vivos do que alívio para os mortos”
(AGOSTINHO, 2002, p. 6). Vê-se que ele é contrário à ideia de que o funeral pode ser
um fator decisivo na destinação da alma, no entanto, confrontando as palavras de Santo
Agostinho com o que será trabalhado aqui: “consolo para os vivos” ele não está
completamente contra a ideia central dessa pesquisa, já que veremos que um
sepultamente repleto de detalhes e ritos religiosos trás descanso à alma e proporciona-
lhe moradia para o corpo, dessa forma, dificilmente essa alma torna-se malfazeja;
dificilmente essa alma torna-se um fantasma, sendo assim, de fato, um consolo para os
vivos saber que ao elaborar um bom sepultamento, a possibilidade de ser assolado por
uma aparição fantasmagórica diminui.
Ainda sobre Santo Agostinho, percebe-se que, de acordo com as suas ideias,
a intenção dele era exortar os vivos quanto às suas atitudes durante a vida: “Poderiam os
ímpios se aproveitarem das honras fúnebres? Se sim, realmente seria um infortúnio para
o justo possuir uma sepultura pobre ou até mesmo não a possuir” (idem). Ele esforçava-
se para que não pensassem “que não era de tal forma, necessário esforçar-se
excessivamente em viver virtuosamente porque uma boa morte resgatava todos os
erros”. (AIRÈS, 2012, p. 57). Mesmo assim, essa ideia, que foi incutida pelo
catolicismo, acabou tomando grandes proporções entre os fiéis, daí a quantidade de
funerais pomposos registrados historicamente.
Foi citada a importância de dar moradia ao corpo que acabara de morrer,
mas apenas recobri-lo de terra não era suficiente para fazer a alma repousar em paz. Era
de suma importância obedecer a uma série de ritos que se iniciavam antes mesmo da
morte, de fato. Um exemplo disso era a redação de um testamento, o qual serviria de
“manual de instruções” para a família sobre como dispor do corpo:

No passado as pessoas se preparavam diligentemente para a morte. A boa morte


significava que o fim não chegaria de surpresa para o indivíduo, sem que ele
prestasse contas aos que ficavam e também os instruísse sobre como dispor de
seu cadáver, de sua alma e de seus bens terrenos. Um dos meios de se preparar,
principalmente mas não exclusivamente entre as pessoas mais abastadas, era
redigir um testamento. Essa providência pode ser entendida como o rito inicial
de separação. (REIS, 1991, p. 92).

Ao falar em testamento como rito inicial de preparação para a boa morte, ou


seja, a morte seguida de um sepultamento que traria descanso à alma é importante
mencionar a temida morte súbita, aquela morte que vinha sem dar sinais, sem ser
notada. Tal morte não possibilitava os devidos preparativos quanto ao enterramento e
demais ritos fúnebres, então, contrariando os dias atuais em que se prefere uma morte
súbita para livrar-se de sofrimentos, nas cidades antigas, onde essas crenças surgiram e
se propagaram, a morte súbita era temida e desonrosa: “Outra morte desonrosa era a que
ocorria por causa de assassinatos ou acidentes e, nesse caso, se proibia uma sepultura
cristã. A justificativa [...] era que não havia tempo para arrependimento”. (KOVACS,
20003, p. 29).
A questão do arrependimento nos últimos instantes de vida, também era
muito importante como rito de passamento. A negativa a essa etapa, somada a uma
morte não natural, era um risco de a alma tornar-se perversa. Casos como morte de
bebês, crianças não batizadas, suicidas, afogados, falecidos por morte violenta, etc.
eram as categorias de mortos mais propensas à vagueação, pois eram privadas (pelo
motivo que for) de dizer seus últimos sacramentos e arrepender-se, por isso, tinham
grandes possibilidades de se tornarem errantes e atormentar os vivos.
Tendo em vista as inúmeras possibilidades de se fazer surgir um fantasma,
cabia aos vivos tomar as medidas necessárias para evitar tal destino taciturno às almas
de amigos, parentes ou pessoas do seu convívio. Proporcionar um funeral e
enterramento dignos e iniciar esses preparativos com o corpo ainda moribundo eram
uma garantia de fazer a alma descansar em paz e trazer alívio para quem vive. A alma
que tem uma boa morte é uma alma feliz e uma alma feliz não se torna fantasma.

1. O PURGATÓRIO COMO “PORTAL” PARA OS FANTASMAS

“Quem morre não volta!” Essa é uma frase que muitas das pessoas já
ouviram em algum momento de suas vidas, a saber, na infância, quando vão surgindo os
temores por temas desconhecidos como a morte em si, e os fantasmas. A incredulidade
a respeito da aparição de fantasmas não é apenas reservada aos céticos, mas também aos
dogmas de algumas religiões. Até mesmo o catolicismo, grande propulsor das tradições
fúnebres que serão trabalhadas nessa pesquisa, tinha (e tem) reservas quanto aos
assuntos de almas do além que voltam à Terra.
Pois bem, antes de falar nos rituais fúnebres como prevenção e antídoto
contra fantasmas, se faz necessário legitimar a aparição desses fantasmas. E é
exatamente no seio do catolicismo que isso será possível.
Quando alguém morre, é sabido, através do cristianismo reformado, de dois
destinos para a alma: O céu e o inferno. No entanto, o cristianismo romano trouxe uma
terceira opção para as almas que não foram suficientemente boas para herdar o paraíso
nem completamente intransigentes a ponto de arder no inferno. Era o purgatório.
No contexto dessa pesquisa, o purgatório é um elemento chave. Ele servia
como uma espécie de destino intermediário e transitório entre o céu e o inferno, o qual a
alma que não conseguia ir direto para o céu deveria permanecer e espiar pelos seus
pecados. Nesse estágio, as atitudes pessoais não valiam mais para determinar a duração
da estadia no purgatório. As almas precisavam da ajuda dos vivos através de preces, ou
o chamado, “sufrágio”, para livrar-lhes do sofrimento e alcançar o tão esperado
descanso eterno: “As almas do purgatório [...] podem, com efeito, beneficiar de uma
alteração de pena, de uma libertação antecipada, não pela sua boa conduta pessoal mas
por causa das intervenções exteriores, os sufrágios”. (LE GOFF, 1995, p. 253).
Então, para conseguir a ajuda dos vivos e pedir rezas, a algumas almas, era
concedida a graça de surgir aos vivos como forma de fantasma: “Deus permite estas
aparições para consolo dos vivos e para excitar a compaixão, instruir e despertar a ideia
da severidade dos juízos de Deus contra faltas que julgamos muito leves”. (BRANDÃO,
1953, p.18). A explicação divina para as almas do purgatório que se mostram aos vivos
também é defendida por Jean Delumeau: “Deus pode permitir que as almas dos mortos
se mostrem aos vivos sob aparências de seu corpo de outrora” (2009, pág. 125).
É importante pontuar que, segundos esses autores, Deus concedia a graça de
voltar a Terra a apenas algumas almas e essa concessão tinha uma finalidade maior que
era pedir por suas almas e orientar os vivos: “Essas aparições se davam por permissão
de Deus, raras vezes, e por milagre, para ensinamento e confirmação da imortalidade da
alma, para lição dos vivos ou para pedir socorro e sufrágios”. (BRANDÃO, 1953, p. 8).
Nesse sentido, é possível encontrar diversos exemplos na consagrada obra
do sociólogo pernambucano Gilberto Freyre “Assombrações do Recife Velho” que trás
relatos de vários casos de aparição de almas “materializadas”, que após sua morte,
voltavam à Terra na intenção de pedir por si:

Dizia-se que pelos corredores da casa [...] costumava vagar um fantasma de


velho alto e muito branco: a alma do próprio visconde a pedir perdão a escravos
que maltratara. Também a pedir missas. Missas para sua pobre alma de rico
arrependido dos pecados contra os negros. Chegava a visagem a fazer sinal com
os dedos para indicar com precisão matemática aos vivos o número de missas
que desejava fôssem mandadas dizer por sua alma pela pessoa a quem
aparecesse: três, quatro, às vezes cinco missas. (1974, p. 75-76).

Viu-se que, estando no purgatório, algumas almas recebiam permissão


divina para aparecer aos vivos para ajudar e ser ajudados. O que será tratado aqui como
“aparições positivas”. No entanto, nem sempre as pessoas que viam um fantasma
recebiam pedidos de rezas ou exortações divinas, pois os mortos eram “capazes de
atormentar ou ajudar os vivos” (REIS, 1991, p. 90). Daí as “aparição negativas” ou
assolação por meio de fantasmas, espíritos zombeteiros que vagam à noite com a única
intenção de atormentar suas vítimas.
No Recife, que abriga um acervo imenso de casos como esse, pode-se usar o
exemplo do “Boca de Ouro”. Segundo Roberto Beltrão:
O Boca de Ouro é um ser misterioso que, sob as vestes de boêmio, esconde [em
sua aparência] um misto de zumbi e demônio [...] é uma assombração cujas
primeiras aparições datam do início do século XX [...] Talvez seja a alma penada
de um malandro que cometeu todos os pecados da boêmia [...] ou talvez seja a
encarnação de um espírito maligno. (2010, p.25)

Como pode ser observado a partir da citação destacada, existiam, de fato, as


aparições assustadoras e demoníacas que também são explicadas por Jean Delumeau,
quando ele afirma que a materialização de demônios se dá por meio de cadáveres.
Porém, no fim das contas, tudo se volta para a questão dos sepultamentos. Na
explicação de Reis, as almas privadas de um funeral adequado:

São condenadas à uma penosa existência, pois nunca podem entrar no mundo
dos mortos ou se incorporar à sociedade lá estabelecida. Estes são os mais
perigosos dos mortos. Eles desejam ser reincorporados ao mundo dos vivos, e,
porque não podem sê-lo, se comportam em relação a ele como forasteiros hostis.
Eles carecem dos meios de subsistência que os outros mortos encontram em seu
próprio mundo e consequentemente devem obtê-los à custa dos vivos. Ademais,
estes mortos sem lugar ou casa às vezes possuem um desejo intenso de vingança.
(REIS, 1991, p. 89).

Dessa forma, mesmo obtendo a permissão para pedir ajuda por sua alma,
muitos desses mortos surgem para assombrar os vivos, já que o destino da alma,
segundo os dogmas destacados aqui, também é determinado pela atitude dos vivos
diante da morte. Então surge aí o que João José Reis chamou de “desejo intenso de
vingança”.
Como foi visto, a aparição de fantasmas se dá pela permissão divina e
através das almas no purgatório e o caráter, positivo ou negativo, dessas aparições era
mais relacionado à forma como foi conduzido o sepultamento. Cabe agora ilustrar o que
era considerado um bom funeral. Um funeral que traria o esperado repouso e paz para a
alma do morto, livrando-o do temível destino de se tornar fantasma.

2. A “BOA MORTE”

Como já foram brevemente abordados no início deste trabalho, os rituais


fúnebres da "boa morte" se iniciavam antes mesmo da morte chegar. Aos primeiros
sinais de doença grave e convalescência, era de costume redigir um testamento (muitas
pessoas tinham o cuidado de já prepará-lo com a saúde intacta) que, muito além de um
documento para partilha de bens terrenos, o testamento era também uma espécie de
manual descrevendo como o doente gostaria que a sua cerimônia fúnebre fosse
conduzida, quando chegada a hora da morte.
Assim, para morrer bem e ter descanso eterno, o moribundo precisava da
ajuda de todos. A boa morte era um esforço coletivo:

Nesse estilo de morte, o indivíduo administrava seu fim fazendo valer suas
palavras. A tradição popular considerava esta uma "morte bonita". Mas morrer
assim representava um esforço coletivo. Uma boa morte era sempre
acompanhada por especialistas em bem morrer e solidários espectadores. Ela não
podia ser vivida na solidão. (REIS, 1991, p. 100).

Essa "boa morte" consistia em várias etapas, que poderiam variar de acordo
com a intensidade da fé nos preceitos religiosos do morto e de sua família; questões
financeiras também faziam essas etapas variar um pouco, mas basicamente elas
consistiam na preparação da casa e do corpo, sepultamento e missas pós-morte (missa
de sétimo dia, missa de corpo presente, etc.)
O primeiro cuidado em relação ao moribundo era mandar buscar um padre
para que o doente confessasse seus pecados a fim de receber perdão. Além disso, o
padre ficava em constante atenção para, nos últimos instantes de vida, aplicar-lhe a
extrema unção, que figurava nesse contexto um "empurrão" para fora da vida.
Nas palavras de Cláudia Rodrigues:

Nos momentos de doenças grave, incurável e fatal, a penitência, a eucaristia e a


extrema-unção, administradas com sentidos específicos, eram procuradas pelo
doente, no momento em que sentia que era “chegada a sua hora”. À proximidade
da morte, a presença do padre era solicitada pelo moribundo, por seus parentes
ou amigos, tendo em vista a necessidade de ele entrar em contato “ultimo” e
íntimo com Deus, antes da partida. (RODRIGUES, 1997, p. 176- 177).

Enquanto que, no quarto, o padre assistia ao moribundo, nos outros


cômodos, todos se encarregavam de funções específicas para preparar a casa e o corpo
para o velório. Diferente da atualidade, onde os velórios são comumente feitos por
empresas especializadas e em locais específicos, durante muito tempo (e ainda
atualmente, em algumas localidades interioranas) os mortos foram velados em suas
casas, onde uma série de pequeno rituais, cada qual com seu simbolismo, serão
seguidos.
O local principal era a sala, onde seria colocado o caixão. As pessoas ali
presentes se esforçavam para dispor os móveis de forma que o caixão ficasse bem no
centro e com os pés virados na direção da porta, simbolizando o fim do ciclo da vida,
pois se ele veio ao mundo com a cabeça, deixava, agora, o mundo com os pés. A casa
inteira também estava cheia de velas acesas e, inclusive, uma delas ficava na mão do
morto, para simbolizar que elas iluminariam o seu caminho para o além. Além disso, as
janelas permaneciam cerradas para impedir a entrada de espíritos malignos e, na
intenção de se prevenir no caso de algum deles ter entrado na residência, toda a água da
casa era desprezada após a saída do caixão, pois um espírito mal poderia tê-la
contaminado. Nesse ambiente, as pessoas presentes ficavam em constantes preces a
favor da alma, pedindo a Deus que a recebesse no céu. A tristeza pela perda de um ente
querido era demonstrada através de choros e lamentações. Em pesquisas realizadas por
historiadores brasileiros e pela memória coletiva da população sabemos da existência
“das mulheres choronas” ou “carpideiras”, que choravam mediante pagamento.
Em relação aos cuidados com o corpo, inicialmente o defunto passará por
uma preparação que incluía um banho, vestimenta, corte de unhas e dos cabelos.
Também era indispensável que o morto estivesse com os sapatos limpos, sem nenhuma
poeira, pois isso poderia dificultar sua entrada no reino do céu; ele não poderia levar
nenhuma sujeira deste mundo consigo.
Ao final do velório, no ato da saída do morto da casa para o cemitério, é
preciso que uma pessoa que não seja da família do falecido, varra a casa começando de
traz para frente, simbolizando a expulsão definitiva daquela alma. Também existe
simbolismo em relação ao carregamento do caixão para o cemitério. Diz a tradição que
a pessoa que sai da casa carregando o caixão tem que descê-lo até o túmulo, pois caso
contrário o “morto pode voltar para buscar aquele que o deixou na metade do caminho”.
Em Reis:
Diz a tradição que quem carregava o defunto na saída de casa se obrigava a
entrar com ele no local de sepultura, sob pena de morte próxima. Se o cortejo
parasse em frente a uma casa, um azar fatal atingiria os residentes, lembrando
rituais africanos de acusação de feitiçaria. Ao se afastar o defunto, o dono da
casa jogava água em sua direção dizia: “Eu te esconjuro! Deus te leve!” (REIS,
1991, p. 139).

Chegando ao cemitério, todos se reúnem para os dizeres antes do


sepultamento. Também no momento de descida do caixão até a cova, existe um ritual
simbólico de jogar um pouco de terra sobre o caixão, para lembrar os vivos que “do pó
viemos e ao pó voltaremos”. Mesmo após o enterramento, os rituais seguem. A missa de
sétimo dia é celebrada com muita comoção em memória do morto e sempre com muitas
preces à favor de sua alma. Sobre a missa de sétimo dia, ela

é um elemento valioso porque faz parte da nossa cultura católica, está no


imaginário religioso do povo brasileiro e mesmo os que não pedem missa do
sétimo dia para seus mortos, a respeitam. Enfim, designo como tradição a missa
de sétimo dia para infundir-lhe significado e historicidade, reconhecendo a
continuidade dessa prática (PEREIRA, 2010, p. 26).

Depois de cumpridas todas essas etapas essenciais ao descanso eterno da


alma, resta aos parentes e amigos apenas lembrarem-se de fazer preces para que a alma,
caso esteja no purgatório, possa ter sua sentença reduzida e possa, brevemente, entrar no
céu sem que precise voltar à Terra como fantasma.

3. OS SEPULTAMENTOS TARDIOS

Os rituais fúnebres tinham uma incrível influência em relação à alma de um


falecido. Tamanha era essa influência que ela não apenas prevenia uma alma de se
tornar fantasma, como também servia para remediar tal destino soturno.
Acontece que, mesmo havendo a ameaça de se tornar errante na ausência de
um funeral digno, algumas pessoas negligenciavam no momento de enterrar alguém
(seja por questões financeiras, desinteresse, ou mesmo incredulidade) e essa negligência
custava a paz tanto de quem morreu quanto dos que vivem, já que a alma agora estava
sujeita a voltar à Terra como fantasma e atormentar os vivos com aparições
assustadoras. Como pode ser lido em Coulanges ao citar a Odisséia, algumas almas que
não possuíam residência (túmulo), tornavam-se fantasmas e, sob tais formas, vinham
apavorar os vivos e reclamar sepultura: “[...] apavorava-os com aparições lúgubres, para
avisá-los a dar sepultura ao seu corpo”. (2009, p.26).
Mas nem tudo estava perdido. É que mesmo após o mau sepultamento, ou, o
que seria pior, a ausência dele, havia aos vivos uma opção para sanar as aparições de um
fantasma: um novo funeral; dessa vez com todos os detalhes e pompa possíveis. Ainda
em Coulanges, pode ser encontrado um caso de que o funeral tardio é um eficiente
antídoto às almas fantasmagóricas. Trata-se de uma alma errante que não teve um
sepultamento adequado e, pois, aparecia aos vivos. Foi então que decidiram desenterrar
o corpo a fim de proporcionar-lhe uma cerimônia adequada e trazer paz à alma:

É uma alma forçada a permanecer errante, porque o seu corpo foi enterrado sem
que se observassem os ritos. Conta Suetônio que, tendo o corpo de Calígula sido
enterrado sem que fosse realizada a cerimônia fúnebre, isso fez que sua alma
permanecesse errante e aparecesse aos vivos, até o dia em que decidiram
desenterrar o corpo e dar-lhe uma sepultura conforme as normas”. (2009, p. 26)
Na atualidade, só vemos acontecer casos de novos sepultamentos quando de
mortes por assassinato (ou suspeita dele) os quais o corpo precisa ser retirado da
sepultura para exumação. Ao retornar, é de praxe que a família realize uma nova
cerimônia fúnebre a favor da alma. Um caso assim aconteceu em 2013, com os restos
mortais do ex-presidente João Goulart que precisou ser removido da sepultura para
passar por uma exumação a fim de auxiliar na investigação da causa de sua morte. Após
os testes, o caixão com os seus restos mortais saiu em cortejo fúnebre e foi sepultado
novamente.
Daí vê-se que o simbolismo de encerrar, novamente, o corpo por meio de
uma nova cerimônia fúnebre ultrapassa questões de período da morte e até mesmo
conservação do corpo. O que mais é levado em conta é a ideia de encerramento, pois de
fato, os rituais fúnebres são rituais de encerramento.

3.1 Sepultamentos simbólicos

É interessante observar a importância e o significado impostos sobre o


funeral. Crendo-se que o túmulo era a última moradia do corpo, a alma poderia repousar
em paz. Entretanto, acima da significação da moradia para o corpo em decomposição, o
significado do ritual fúnebre pela alma possui uma importância ainda maior, tal que
mesmo sem o corpo, o cerimonial in memoriam, bastaria para levá-la ao descanso
eterno:
Admitia-se que, quando não se podia encontrar o corpo de um parente, lhe
fizessem uma cerimônia que reproduzisse exatamente todos os ritos do
sepultamento e, com isso, se acreditava encerrar, na ausência do corpo, pelo
menos a alma no túmulo. (COULANGES, 2009, p. 24)

Casos de sepultamentos sem a presença do corpo ou restos mortais


aconteciam, comumente, com vítimas de afogamento, quando o corpo se perdia no mar.
Para livrar-lhes da condenação, era preciso que por eles, se tomasse alguma medida de
sufrágio: "Ainda em 1958, celebrou-se [o velório] de uma jovem freira que se afogara
tentando salvar uma criança e cujo corpo não foi encontrado" (DELUMEAU, 2009, p.
135). Nesse caso, para suprir a ausência do corpo, se utilizaram figuras sacras como
cruzes e velas e o sepultamento seguiu normalmente.
CONCLUSÃO
 
 
Enquanto houver vida, haverá morte. A cada dia que se passa, todos ficamos
mais próximos da morte. Hoje, essa concepção pode ser aterradora para uma grande
parcela das pessoas, no entanto nem sempre foi assim. No passado, o medo maior não
era o de morrer, mas de morrer da forma errada, sem que se atentasse aos ritos. Como
religião dominante no Ocidente, o cristianismo propõe, em seus preceitos, que após a
morte há uma existência melhor que a terrena, uma existência que proporia descanso e
paz eternos. Então, morrer e herdar essa nova existência não seria, de tal forma, um
temor.
Havia, porém, uma carga temerosa imensa em relação à privação de um
bom sepultamento. E essas questões eram tão sérias que, como conta Coulanges, quem
negligenciasse sobre o enterramento de alguém, poderia este ser condenado:

Não devemos surpreender-nos muito ao ver atenienses condenarem à morte


os generais que, depois de uma vitória marítima, haviam negligenciado
enterrar os mortos [...] os parentes dos mortos, pensando no longo suplício
que essas almas iriam sofrer, vieram ao tribunal em trajes de luto e exigiram
vingança. (2009, p.27)

Além disso, para os crimes mais graves, a privação de um bom


sepultamento era usada como sentença. Além da pena de morte, havia a pena de não
conceder ao criminoso um funeral adequado, trazendo para o condenado o pior dos
destinos: A vagueação de sua alma no além; punição para além da vida.
No passado, o foco do temor envolto à morte era direcionado ao
sepultamento. Na contemporaneidade, a própria ideia do morrer traz à tona inúmeros
temores, pois de acordo com tudo o que foi abordado, vemos que a morte é uma ruptura
na rotina. Mesmo com a presença da morte por todos os lados e mesmo sabendo que
todos os dias ficamos ainda mais perto do último suspiro, admitir a morte é difícil e é
por meio do funeral que é possível amenizar a dor da perda e colocar um ponto final em
mais um capítulo.
Tal como nos casos de assombração que se observa no cinema e na
literatura, os quais fantasmas presos à matéria necessitam de uma “conclusão” seja por
meio de solução de casos de assassinato ou sepultamento do corpo, outrora não
encontrado, nos casos estudados aqui, a importância de incutir a ideia de conclusão por
meio do sepultamento é decisiva para não levar a alma à errar na Terra. Ou seja,
independentemente de como for, a alma precisa de uma conclusão na Terra para ter seu
descanso em paz no além.

 
REFERÊNCIAS

AGOSTINHO, Santo. O cuidado devido aos mortos. São Paulo: Paulus, 2002.
Disponível em:
http://minhateca.com.br/Cibelle/Documentos/Livros/SANTO+AGOSTINHO/o+cuidad
o+devido+aos+mortos+-+santo+agostinho,65242263.pdf
Acesso em 23 de Setembro de 2014

ARIÈS, PHILLIPPE. História da Morte no Ocidente. Rio de Janeiro: Nova Fronteira,


2012.

BELTRÃO, Roberto. Malassombramentos. Os Arquivos Secretos d’O Recife


Assombrado. Recife: Bagaço, 2010.

BRANDÃO, Mons. Ascânio. O Manuscrito do Purgatório. São Paulo: Edições


Paulinas, 1953.

COULANGES, Fustel. A cidade Antiga. São Paulo: Martin Claret, 2009.

DELUMEAU, Jean. História do Medo no Ocidente. São Paulo: Companhia das letras,
2009.
FREYRE, Gilberto. Assombrações do Recife Velho. 3.ed. Rio de Janeiro: José
Olympio, 1974.
KOVÁCS, Maria Júlia. Educação para a Morte. Temas e Reflexões. São Paulo: Casa
do Psicólogo, 2003.
LE GOFF, Jacques. O Nascimento do Purgatório. São Paulo: Estampa, 1995.
PEREIRA, Padre José Carlos. Missa do Sétimo Dia. Uberlândia: Partilha, 2010.

PRIORI, Mary Del. Do outro lado. A história do sobrenatural e do espiritismo. São


Paulo: Planeta, 2014
REIS, João José. A Morte é uma Festa: ritos fúnebres e revolta popular no Brasil
do século XIX. São Paulo: Companhia das letras, 1991.

RODRIGUES, Cláudia. Lugares dos Mortos na Cidade dos Vivo: tradições e


transformações fúnebres no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Secretaria Municipal de
Cultura, Departamento Geral de Documentação Geral de Documentação e Informação
Cultural, Divisão de Editoração, 1997.

VOVELLE, Michel. As almas do purgatório ou o trabalho de luto. São Paulo:


UNESP, 2010.

Você também pode gostar