Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
!
!
! ! !
! Lessing in
Lessing na polêmica
controversy
da Autenticidade
Authenticity
das Escrituras –
Scripture -
e sua repercussão em
and its impact on
Kierkegaard
! Kierkegaard
!!
!
Alvaro L. M. Valls
Professor Unisinos/CNPq
!!
!! !!
! !
Resumo: Este artigo é uma adaptação da Abstract: This article is adapted from the
palestra de abertura da 41ª Semana de opening lecture of the 41st Week of
Filosofia da UnB. O texto aborda as Philosophy at UnB. This paper addresses
relações entre Lessing e Kierkegaard em the relationship between Lessing and
torno das Escrituras sagradas. Kierkegaard around the sacred Scriptures.
! !
Palavras chave: Sagradas Escrituras, Key words: sacred Scriptures, subjectivity
subjetividade, paradoxo. paradox.
!! !!
!! !!
!! !!
!! !!
!! !!
!! !!
!! !!
!! !!
!! !!
!! !!
!! !!
!! !!
!
Lessing na polêmica da Autenticidade das Escrituras – e sua repercussão em Kierkegaard
todas as religiões não pode carecer de páginas, Lessing discute o que chama de
fundamento racional” (1990: 339). Depois, “Testamento de João”, que nada mais seria
supondo que os Apóstolos tenham feito do que o núcleo da pregação do Ancião
seu trabalho de evangelização ao longo de que repetia sempre: Filhinhos, amai-vos uns
várias décadas já antes mesmo da redação aos outros5, e Lessing fica feliz de poder
das Cartas dos apóstolos (Epístolas) e dos lembrar que o discípulo amado se bastava
quatro Evangelhos, Lessing crê numa com tal fórmula, e, aliás, por dois motivos:
Regula fidei, de teor trinitário, acompanhado primeiro, porque o Senhor mesmo tinha
pelas Bem-aventuranças e pela Oração que ordenado ensinar isso adiante e, depois,
o próprio Senhor nos ensinou, e que porque isso, sempre que realizado de fato,
convida ao batismo. São teses suas, de já bastaria completamente.
1778: “Também havia a religião antes de existir !
uma Bíblia”2 (1990: 517) e, provocante, em Lessing, teórico e crítico, tinha o prazer da
especial num contexto luterano: “A religião polêmica, em especial se empregada para
não é verdadeira porque os Evangelistas e os enfrentar poderosos. Desafia a ortodoxia
Apóstolos a ensinaram, senão que estes a arrogante, dogmática, intolerante, aquela
ensinaram porque é verdadeira”3 (1990, p. 525). que revoga Jo 13, 34-35 e prefere proibir,
Enfim, contra os defensores da uma rígida castigar, torturar e matar quem disser uma
ortodoxia bíblica, ainda uma tese: “A letra sílaba diferente daquela das fórmulas
não é o espírito e a Bíblia não é a religião”4 estabelecidas. Daí a sua famosa, e até
(1990: 515). deliciosa, polêmica com o Pastor Goeze, de
! Hamburg, (esta sim uma verdadeira
De minha parte, antes mesmo de começar polêmica através de muitos artigos, com
a ler Lessing, e antes de traduzir, de réplicas e tréplicas), polêmica interrompida
Kierkegaard, As obras do amor, de 1847, eu bruscamente por um decreto que obrigou
já costumava dizer que o resumo da nosso amigo a calar-se (o que este fez,
religião de Jesus Cristo se encontra nos como diz ter aprendido com seu pai,
versículos 34 e 35 do capítulo 13 do apenas “mordendo bem os lábios”). – Resultou,
Evangelho do discípulo amado: “Dou-vos da parte do dramaturgo Lessing, como
um novo mandamento: Amai-vos uns aos outros. legado ou substitutivo desta discussão, a
Como eu vos tenho amado, assim também vós peça Natan, o Sábio, cujo protagonista é um
deveis amar-vos uns aos outros. / Nisso todos judeu esclarecido e tolerante; nesta peça
conhecerão que sois meus discípulos, se vos amardes imortal, a questão da religião verdadeira, na
uns aos outros.” Claro, se “nisso todos disputa do judeu com o cristão e o
conhecerão”, é porque isso é o próprio muçulmano, só poderá ser decidida pelos
distintivo do seguimento deste mestre. respectivos frutos, em termos de amor
Ora, num texto emocionante, de poucas concreto e beneficente, das crenças de cada
2 Auch war die Religion, ehe eine Bibel war. (1874, X 111). Utilizo como original: Lessings Werke,
Stuttgart: Göschen’sche Verlagshandlung, 1874. Aqui, Band X.
3 Die Religion ist nicht wahr, weil die Evangelisten und Apostel sie lehrten: sondern sie lehrten sie, weil
!
Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea
Brasília, vol 2, nº 1, 2014.
!7
!
Lessing na polêmica da Autenticidade das Escrituras – e sua repercussão em Kierkegaard
6Aqui, seu dramaturgo parece antecipar a posição nietzschiana que vê (em O Anticristo) o cristianismo
antes como uma prática, mais do que um “ter algo por verdadeiro” (etwas für wahr halten).
!
!
Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea
Brasília, vol 2, nº 1, 2014.
!8
Alvaro Valls !
Dá sempre a impressão de que dessa crítica exame crítico – seja pró ou contra – como algo
deveria de repente resultar algo para a fé, algo duvidoso, uma espécie de tentação. E aquele que,
concernente à fé. Aí está o seu aspecto sem estar na fé, se aventura em considerações
duvidoso. Quando um filólogo publica um críticas, certamente não poderá querer que a
livro de Cícero, por exemplo, e o faz com inspiração resulte delas. A quem, então, tudo isso
grande perspicácia, com o aparato erudito em realmente interessa? ( KIERKEGAARD,
nobre obediência à força superior do espírito; 2013: 32).
quando sua engenhosidade e sua
familiaridade com o tempo antigo,
!O autor está usando os argumentos de
conquistada graças a uma infatigável Lessing: o apelo à inspiração situa-se no
diligência, ajudam seu senso de descoberta a lado oposto ao esforço objetivo de
remover dificuldades, a preparar o caminho estabelecer a verdade da religião pelo
para as ideias em meio à confusão de leituras
exame científico dos textos. A fé, que é a
diversas, etc., – então se pode tranquilamente
entregar-se à admiração, pois quando seu base da felicidade eter na, não se
trabalho estiver pronto, daí nada de mais se fundamenta nas razões objetivas, mesmo
seguirá, além da admirável façanha de que, que o crente seja convidado a dar a todo
graças à sua arte e competência, um texto tempo “as razões da sua fé”. Mas nesta
antigo se tornou acessível da forma mais expressão se trata de outra coisa, e não do
confiável. Mas de nenhum modo disso se segue que está sendo discutido aqui.
que agora eu construa minha felicidade eterna
baseada nesse livro, porque, eu o confesso, em
!Suponhamos que um indivíduo se apresente e,
relação à minha felicidade eterna essa com interesse pessoal e infinito, com toda a
perspicácia espantosa é para mim muito paixão deseje ligar sua felicidade eterna a esse
pouco; [...] Mas é isso precisamente o que faz resultado, ao resultado esperado – ele
a erudita Teologia crítica; quando ela termina facilmente verá que não há nenhum resultado
– e até aí nos mantém in suspenso, mas com e nada a esperar, e a contradição irá levá-lo
essa verdadeira perspectiva em vista – conclui: ao desespero. Basta a rejeição de Lutero da
ergo, agora podes construir tua felicidade eterna epístola de Tiago para levá-lo ao desespero.
sobre esses escritos (KIERKEGAARD, Em relação a uma felicidade eterna e um
2013: 30s). interesse apaixonado e infinito por ela
!A noção fundamental, nesta linha de
(aquela só pode estar no seio deste), qualquer
pontinho é de importância, de infinita
argumentação, está formulada nas palavras: importância, ou inversamente: desesperar por
“construir sua felicidade eterna”; trata-se causa da contradição irá ensiná-lo
de uma performance pessoal, de infinita precisamente que não há proveito algum em
importância, que não se reduz às questões insistir nesse caminho. / E contudo é assim
que as coisas têm andado. [...] a gente se
teóricas ou científicas. Trata-se de dar
tornou objetiva demais para ter uma
sentido e importância à sua vida pessoal, felicidade eterna, porque esta felicidade é
de assegurar-se a sua verdadeira felicidade. inseparável, precisamente, da atitude de
É a noção já utilizada no início das Migalhas interesse infinito, pessoal e apaixonado, e é
filosóficas e, como já foi explicado nessa obra, precisamente a isso que se renuncia para se
descende diretamente das argumentações tornar objetivo; é precisamente isso que é
de Lessing. surrupiado da gente pela objetividade. Com a
!
Aquele que, como crente, estabelece a inspiração,
ajuda dos pastores, que às vezes traem
alguma erudição, a congregação recebe uma
deve consequentemente considerar todo e qualquer vaga ideia a respeito. [...] De repente, um
!
!
Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea
Brasília, vol 2, nº 1, 2014.
!10
Alvaro Valls !
inimigo se lança com violência contra o simples é meramente uma precaução dietética,
cristianismo. Ele está tão bem informado uma renúncia a qualquer interpolação
dialeticamente quanto os investigadores erudita, que num 1, 2, 3 poderia degenerar
eruditos e a congregação desavisada. Ele para se tornar num parêntese de 100 anos.
ataca um livro da Bíblia, uma sequência de [...] Então, suposto que tudo esteja em ordem
livros. Instantaneamente acorre a erudita tropa com relação às Sagradas Escrituras – e daí?
de resgate, etc., etc. (KIERKEGAARD, Alguém então que não tinha a fé chegou
2013: 32). agora um único passo mais próximo da fé?
!Um interesse infinito, pessoal e apaixonado, Não, nem um único. Pois a fé não resulta de
uma deliberação científica direta, e nem chega
é condição da fé, mas em geral as ciências diretamente; ao contrário, perde-se nessa
excluem tal atitude, na busca de uma objetividade aquela atitude de interesse
objetividade. Aliás, já Kant distinguia que o infinito, pessoal e apaixonado, que é a
desinteresse é essencial na estética, porém condição da fé, o ubique et nusquam através
da qual a fé pode nascer. – Aquele que tinha
seria totalmente inconveniente na ética, e a fé ganhou alguma coisa em relação ao poder
Climacus concorda com Kant neste e à força da fé? Não, nem um tiquinho; nesse
sentido, radicalizando ainda este “inter- conhecimento prolixo, nessa certeza que paira
esse” nas questões da fé pessoal. à porta da fé e suspira por ela, ele está antes
! numa posição tão perigosa que vai precisar de
Agora o autor já pode ir fechando a muito esforço, muito temor e tremor para não
argumentação, resumindo suas conclusões: cair em tentação, e confundir conhecimento
se por acaso tivermos provado que a com fé. Enquanto que até agora a fé teve na
Escritura é toda verdadeira, - e daí, o que incerteza um pedagogo proveitoso, ela deveria
se segue daí? ter seu maior inimigo na certeza. De fato, se
!Para que se faça justiça ao dialético e sem se exclui a paixão, a fé deixa de existir, e
certeza e paixão não se atrelam juntas.
perturbação só se pensem os pensamentos, Tomemos uma analogia para ilustrá-lo.
convém assumir uma coisa e depois a outra. / Aquele que crê que existe um Deus e
Então eu suponho que, no tocante à Bíblia, também uma Providência, tem assim mais
conseguiu-se provar aquilo que todo teólogo facilidade de preservar a fé, mais facilidade de
erudito alguma vez, em seu momento mais adquirir de modo determinado a fé (e não
feliz, poderia ter jamais desejado provar. uma fantasia) num mundo imperfeito, onde a
Esses livros, e não outros, pertencem ao paixão é mantida vigilante, [VII 19] antes
cânone; eles são autênticos, são completos; seus do que num mundo absolutamente perfeito.
autores são fidedignos – pode-se até dizer que Em tal mundo, a fé é, de fato, impensável.
é como se cada uma de suas letras fosse Por isso, também se aprende que a fé será
inspirada (mais não se pode aí dizer, porque abolida, na eternidade. Que sorte, então, que
a inspiração é, com efeito, objeto da fé; é esta hipótese desejada, o mais belo dos desejos
qualitativamente dialética, não é de se da Teologia crítica, seja uma impossibilidade,
alcançar por meio de quantificação). Além porque mesmo sua mais perfeita realização
disso, não há nenhum vestígio de contradição seria ainda uma aproximação. E, de novo,
nos livros sagrados. Pois sejamos precavidos que sorte para os homens da ciência que de
em nossa hipótese: basta que surja uma modo algum a falha seja deles! Se todos os
palavra como boato sobre tal coisa, para que anjos unissem seus esforços, eles ainda assim
os parênteses apareçam de novo e a inquietude só seriam capazes de produzir uma
filológico-crítica prontamente desencaminhe aproximação, porque no que se refere ao
alguém. No geral, o que é necessário aqui conhecimento histórico uma aproximação é a
para que [VII 18] a coisa possa ser fácil e única certeza – mas também é pequena
!
Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea
Brasília, vol 2, nº 1, 2014.
!11
!
Lessing na polêmica da Autenticidade das Escrituras – e sua repercussão em Kierkegaard
demais para que sobre ela se construa uma demonstração objetiva não basta, pois
bem-aventurança eterna. / Eu suponho então ainda será preciso que o sujeito, apaixonada
o oposto, que os inimigos tiveram sucesso em e infinitamente interessado, se relacione
provar o que queriam em relação às com a decisão, transformando a sua
Escrituras, com uma certeza que supera o decisão da questão numa verdadeira
mais caloroso desejo do mais odioso dos “resolução”.
inimigos – e daí? O inimigo, assim, aboliu o
cristianismo? De modo algum. Ele prejudicou
!Se o assunto é tratado objetivamente, o sujeito
o crente? De modo algum, nem um tiquinho.
não pode relacionar-se apaixonadamente com
Ganhou o direito de se eximir da
a decisão; e, menos ainda, estar
responsabilidade de não ser um crente? De
apaixonadamente, infinitamente interessado.
modo algum. Isto é, só porque esses livros não
É uma autocontradição e, nesse sentido, é
são desses autores, não são autênticos, não
cômico interessar-se infinitamente em relação
são integri, não são inspirados (isso não pode
a algo que em seu ponto máximo continua
ser refutado, pois é um objeto da fé), daí não
sempre apenas uma aproximação. Se a
segue que esses autores não existiram e, acima
paixão é adicionada apesar disso, aparece o
de tudo, que Cristo não tenha existido. Até
zelotismo. Para a paixão infinitamente
aí, o crente está ainda igualmente livre para
interessada cada pingo do i terá um valor
aceitar isso, igualmente livre, notem bem; pois
infinito. A falha não está na paixão
se o aceitasse em virtude de uma
infinitamente interessada, mas no fato de que
demonstração, estaria a ponto de abandonar
seu objeto se tenha tornado um objeto
a fé. Se as coisas chegam tão longe, o crente
aproximativo. O exame objetivo, de qualquer
terá sempre alguma culpa se foi ele mesmo
modo, permanece de geração em geração
quem convidou e quem começou a colocar a
precisamente porque os indivíduos (os
vitória nas mãos da descrença, ao desejar ele
examinadores) tornam-se mais e mais
mesmo demonstrar. Aqui reside o nó da
objetivos, menos e menos infinitamente,
questão, e eu novamente retorno à Teologia
apaixonadamente, interessados. [VII 21]
erudita. Para quem serve a demonstração? A
Sob a pressuposição de que, por este caminho,
fé não precisa dela, pode até mesmo considerá-
se iria continuar a demonstrar e a procurar a
la sua inimiga. Ao contrário, quando a fé
demonstração para a verdade do cristianismo,
começa a se envergonhar de si mesma;
algo de curioso iria por fim surgir: que
quando, como uma amante que não se
justamente quando se terminasse a
contenta com amar, mas que no fundo se
demonstração de sua verdade, o cristianismo
envergonha de seu amado e por isso precisa
teria deixado de existir como algo presente;
provar que ele é algo de notável; portanto,
ter-se-ia tornado de tal modo histórico, que
quando a fé começa a perder a paixão;
seria algo passado cuja verdade, isto é, cuja
portanto, quando a fé começa a deixar de ser
verdade histórica, teria agora sido trazida a
fé, aí a demonstração se torna necessária para
um ponto de confiabilidade. Deste modo, a
que se possa desfrutar da consideração
aflita profecia de Lucas 18, 8 poderia
burguesa da descrença. Sobre as tolices
cumprir-se: Mas quando o Filho do homem
retóricas perpetradas neste ponto pelos
voltar, encontrará a fé sobre a Terra? /
oradores eclesiásticos, pela confusão de
Quanto mais objetivo se torna o examinador,
categorias, ai, é melhor nem falar
menos ele constrói uma bem-aventurança
(KIERKEGAARD, 2013: 34-36).
!Para que serve a demonstração? Não é esta eterna, isto é, sua felicidade eterna em sua
relação com seu exame, pois uma felicidade
eterna é uma questão apenas para a
uma boa pergunta, bem pertinente? A subjetividade apaixonada e infinitamente
!
!
Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea
Brasília, vol 2, nº 1, 2014.
!12
Alvaro Valls !
!
!
Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea
Brasília, vol 2, nº 1, 2014.
!14