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CANCROS SOCIAIS A Coleção Escritoras do Brasil busca divulgar o trabalho in-

A obra de Maria Ribeiro foi quase telectual das escritoras brasileiras de escassa ou nenhuma presença
completamente perdida em um incên- nos cânones literários, valorizando, assim, as atividades, a produ-
dio no Liceu de Artes e Ofícios do Rio
de Janeiro, local em que os originais da ção e o pensamento da mulher na construção da história do Brasil.
autora se encontravam. Da totalidade de
sua produção, restaram apenas quatro: Também visa preencher uma enorme lacuna na produção editorial
Um dia na opulência, A ressurreição do no que se refere à publicação de autoras brasileiras, continuamente
primo Basílio, Opinião pública e Can-
cros sociais. esquecidas pela divulgação e estudos literários. O trabalho de resgate das escritoras
brasileiras nos faz deparar com inúme-
O drama em cinco atos Cancros so-
ciais é encenado pela primeira vez em
As obras da Coleção Escritoras do Brasil também estão dispo- ras autoras que, por variados motivos,
tiveram parca ou única produção. Fosse
1865, no Teatro Ginásio Dramático do níveis, para download gratuito, na Biblioteca Digital do Senado a baixa produtividade motivo suficiente
Rio de Janeiro. A peça, um espelho da para que essas mulheres não fizessem
época, é uma reflexão sobre questões so- Federal (BDSF) e na página da Livraria do Senado.
parte dos cânones literários, não haveria
ciais e familiares. como explicar o apagamento de outras
É a narrativa da mãe-escrava, Marta, escritoras de ampla produtividade. Maria
“parda clara”, iludida e seduzida por um Ribeiro é uma dessas escritoras que mui-

Escritoras do Brasil
patife, que se torna mãe de um meni- to produziu, mas permaneceu apagada
no branco que lhe é tomado e vendido. das páginas da história da literatura.
Ignorando totalmente sua ascendência Maria Angélica Ribeiro, nascida em
africana, Eugênio, o filho, cresce julgan- 1829 na Vila de Parati, atual Angra dos
do-se órfão e, já adulto e casado, desco- Reis, e falecida na cidade do Rio de Janei-
bre, ao adquirir uma escrava para alfor- ro em 1880, não foi a primeira teatróloga
riá-la em comemoração aos quinze anos brasileira, mas foi a primeira a dedicar-se
de sua filha, que comprara a própria mãe. totalmente a esse gênero e a primeira au-
Eugênio hesita em reconhecer publi- tora brasileira a ter uma peça encenada
camente que era filho de uma escrava. no país.
Torturado pelo pavor de assumir a mãe e Sua primeira peça, Guite ou a feiticeira
com isso perder o patrimônio e o tesouro dos desfiladeiros negros, foi escrita em 1855,
familiar que construíra, adota um com- quando buscava alívio pela morte de seu
portamento estranho, acabando por le- filho. Daí em diante não mais parou de se
vantar as suspeitas da esposa, que o acusa dedicar à dramaturgia, escrevendo 23 pe-
de estar acolhendo uma antiga amante ças. Além de ter quatro das suas peças en-
sob o teto da família. Marta fica resigna- cenadas, algumas mais de uma vez, Maria
Disponível online Ribeiro tinha aprovação de público e de
da a afastar-se de Eugênio para evitar sua
crítica, incluindo aclamados escritores,
ruína conjugal.
como Machado de Assis.

Volume VI
De feição abolicionista, a trama narra Suas peças exploravam temas sociais,
a experiência de mulheres negras e mes- denunciando as desigualdades e o drama
tiças no Brasil escravista relacionada com da escravidão negra, colocando-se contra
a exploração sexual pelo homem branco. o status quo, principalmente no que se
refere à situação da mulher na sociedade.
CANCROS SOCIAIS A Coleção Escritoras do Brasil busca divulgar o trabalho in-
A obra de Maria Ribeiro foi quase telectual das escritoras brasileiras de escassa ou nenhuma presença
completamente perdida em um incên- nos cânones literários, valorizando, assim, as atividades, a produ-
dio no Liceu de Artes e Ofícios do Rio
de Janeiro, local em que os originais da ção e o pensamento da mulher na construção da história do Brasil.
autora se encontravam. Da totalidade de
sua produção, restaram apenas quatro: Também visa preencher uma enorme lacuna na produção editorial
Um dia na opulência, A ressurreição do no que se refere à publicação de autoras brasileiras, continuamente
primo Basílio, Opinião pública e Can-
cros sociais. esquecidas pela divulgação e estudos literários. O trabalho de resgate das escritoras
brasileiras nos faz deparar com inúme-
O drama em cinco atos Cancros so-
ciais é encenado pela primeira vez em
As obras da Coleção Escritoras do Brasil também estão dispo- ras autoras que, por variados motivos,
tiveram parca ou única produção. Fosse
1865, no Teatro Ginásio Dramático do níveis, para download gratuito, na Biblioteca Digital do Senado a baixa produtividade motivo suficiente
Rio de Janeiro. A peça, um espelho da para que essas mulheres não fizessem
época, é uma reflexão sobre questões so- Federal (BDSF) e na página da Livraria do Senado.
parte dos cânones literários, não haveria
ciais e familiares. como explicar o apagamento de outras
É a narrativa da mãe-escrava, Marta, escritoras de ampla produtividade. Maria
“parda clara”, iludida e seduzida por um Ribeiro é uma dessas escritoras que mui-

Escritoras do Brasil
patife, que se torna mãe de um meni- to produziu, mas permaneceu apagada
no branco que lhe é tomado e vendido. das páginas da história da literatura.
Ignorando totalmente sua ascendência Maria Angélica Ribeiro, nascida em
africana, Eugênio, o filho, cresce julgan- 1829 na Vila de Parati, atual Angra dos
do-se órfão e, já adulto e casado, desco- Reis, e falecida na cidade do Rio de Janei-
bre, ao adquirir uma escrava para alfor- ro em 1880, não foi a primeira teatróloga
riá-la em comemoração aos quinze anos brasileira, mas foi a primeira a dedicar-se
de sua filha, que comprara a própria mãe. totalmente a esse gênero e a primeira au-
Eugênio hesita em reconhecer publi- tora brasileira a ter uma peça encenada
camente que era filho de uma escrava. no país.
Torturado pelo pavor de assumir a mãe e Sua primeira peça, Guite ou a feiticeira
com isso perder o patrimônio e o tesouro dos desfiladeiros negros, foi escrita em 1855,
familiar que construíra, adota um com- quando buscava alívio pela morte de seu
portamento estranho, acabando por le- filho. Daí em diante não mais parou de se
vantar as suspeitas da esposa, que o acusa dedicar à dramaturgia, escrevendo 23 pe-
de estar acolhendo uma antiga amante ças. Além de ter quatro das suas peças en-
sob o teto da família. Marta fica resigna- cenadas, algumas mais de uma vez, Maria
Disponível online Ribeiro tinha aprovação de público e de
da a afastar-se de Eugênio para evitar sua
crítica, incluindo aclamados escritores,
ruína conjugal.
como Machado de Assis.

Volume VI
De feição abolicionista, a trama narra Suas peças exploravam temas sociais,
a experiência de mulheres negras e mes- denunciando as desigualdades e o drama
tiças no Brasil escravista relacionada com da escravidão negra, colocando-se contra
a exploração sexual pelo homem branco. o status quo, principalmente no que se
refere à situação da mulher na sociedade.
CANCROS SOCIAIS A Coleção Escritoras do Brasil busca divulgar o trabalho in-
A obra de Maria Ribeiro foi quase telectual das escritoras brasileiras de escassa ou nenhuma presença
completamente perdida em um incên- nos cânones literários, valorizando, assim, as atividades, a produ-
dio no Liceu de Artes e Ofícios do Rio
de Janeiro, local em que os originais da ção e o pensamento da mulher na construção da história do Brasil.
autora se encontravam. Da totalidade de
sua produção, restaram apenas quatro: Também visa preencher uma enorme lacuna na produção editorial
Um dia na opulência, A ressurreição do no que se refere à publicação de autoras brasileiras, continuamente
primo Basílio, Opinião pública e Can-
cros sociais. esquecidas pela divulgação e estudos literários. O trabalho de resgate das escritoras
brasileiras nos faz deparar com inúme-
O drama em cinco atos Cancros so-
ciais é encenado pela primeira vez em
As obras da Coleção Escritoras do Brasil também estão dispo- ras autoras que, por variados motivos,
tiveram parca ou única produção. Fosse
1865, no Teatro Ginásio Dramático do níveis, para download gratuito, na Biblioteca Digital do Senado a baixa produtividade motivo suficiente
Rio de Janeiro. A peça, um espelho da para que essas mulheres não fizessem
época, é uma reflexão sobre questões so- Federal (BDSF) e na página da Livraria do Senado.
parte dos cânones literários, não haveria
ciais e familiares. como explicar o apagamento de outras
É a narrativa da mãe-escrava, Marta, escritoras de ampla produtividade. Maria
“parda clara”, iludida e seduzida por um Ribeiro é uma dessas escritoras que mui-

Escritoras do Brasil
patife, que se torna mãe de um meni- to produziu, mas permaneceu apagada
no branco que lhe é tomado e vendido. das páginas da história da literatura.
Ignorando totalmente sua ascendência Maria Angélica Ribeiro, nascida em
africana, Eugênio, o filho, cresce julgan- 1829 na Vila de Parati, atual Angra dos
do-se órfão e, já adulto e casado, desco- Reis, e falecida na cidade do Rio de Janei-
bre, ao adquirir uma escrava para alfor- ro em 1880, não foi a primeira teatróloga
riá-la em comemoração aos quinze anos brasileira, mas foi a primeira a dedicar-se
de sua filha, que comprara a própria mãe. totalmente a esse gênero e a primeira au-
Eugênio hesita em reconhecer publi- tora brasileira a ter uma peça encenada
camente que era filho de uma escrava. no país.
Torturado pelo pavor de assumir a mãe e Sua primeira peça, Guite ou a feiticeira
com isso perder o patrimônio e o tesouro dos desfiladeiros negros, foi escrita em 1855,
familiar que construíra, adota um com- quando buscava alívio pela morte de seu
portamento estranho, acabando por le- filho. Daí em diante não mais parou de se
vantar as suspeitas da esposa, que o acusa dedicar à dramaturgia, escrevendo 23 pe-
de estar acolhendo uma antiga amante ças. Além de ter quatro das suas peças en-
sob o teto da família. Marta fica resigna- cenadas, algumas mais de uma vez, Maria
Disponível online Ribeiro tinha aprovação de público e de
da a afastar-se de Eugênio para evitar sua
crítica, incluindo aclamados escritores,
ruína conjugal.
como Machado de Assis.

Volume VI
De feição abolicionista, a trama narra Suas peças exploravam temas sociais,
a experiência de mulheres negras e mes- denunciando as desigualdades e o drama
tiças no Brasil escravista relacionada com da escravidão negra, colocando-se contra
a exploração sexual pelo homem branco. o status quo, principalmente no que se
refere à situação da mulher na sociedade.
CANCROS SOCIAIS
Drama original em cinco atos
Senado Federal
Mesa Diretora
Biênio 2021/2022

Senador Rodrigo Pacheco Senador Weverton Rocha


PRESIDENTE QUARTO-SECRETÁRIO
Senador Veneziano Vital do Rêgo
PRIMEIRO-VICE-PRESIDENTE SUPLENTES DE SECRETÁRIO
Senador Jorginho Mello
Senador Romário
Senador Luiz do Carmo
SEGUNDO-VICE-PRESIDENTE
Senadora Eliziane Gama
Senador Irajá
PRIMEIRO-SECRETÁRIO Ilana Trombka
Senador Elmano Ferrer DIRETORA-GERAL
SEGUNDO-SECRETÁRIO Luiz Fernando Bandeira de Mello Filho
Senador Rogério Carvalho SECRETÁRIO-GERAL DA MESA
TERCEIRO-SECRETÁRIO

Conselho Editorial
Senador Randolfe Rodrigues
PRESIDENTE

Secretaria de Editoração e Publicações


Fabrício Ferrão de Araújo
DIRETOR

Coleção Escritoras do Brasil, Volume VI


MARIA RIBEIRO

CANCROS SOCIAIS
Drama original em cinco atos

Apresentação, bibliografias e atualização


Valéria Andrade

Brasília
Senado Federal
2021
© Senado Federal
COLEÇÃO ESCRITORAS DO BRASIL
Coordenação: Biblioteca do Senado Federal – COBIB/SGIDOC
Comissão editorial: Cleide de Oliveira Lemos, Maria Helena de Almeida Freitas,
Mônica Almeida Rizzo Soares, Osmar Carmo Arouck Ferreira, Patrícia Coelho
Ferreira Meneses da Silva e Stella Maria Vaz Santos Valadares
Revisão e atualização ortográfica: Mariana Sanmartin de Mello (Secretaria de
Editoração e Publicações – SEGRAF)
Projeto Gráfico: Serviço de Formatação – SEGRAF

Volume 6 – Cancros sociais: drama original em cinco atos / Maria Ribeiro


Supervisão editorial: Maria Helena de Almeida Freitas e Mônica Almeida Rizzo
Soares
Capa: Rodrigo Corrêa Ribeiro
Ilustração da capa: Intérieur de salle à manger à Ste. Marthe (gravura), 1836, de M. M.
De Sainson. Acervo Library Company of Philadelphia (Digital Collections).

A obra Cancros Sociais está em domínio público, conforme Lei nº 9.610/1998.


O original desta obra foi publicado em 1866 por Eduardo Henrique Laemmert
Editores.

Ribeiro, Maria, 1829-1880.


Cancros sociais : drama original em cinco atos / Maria Ribeiro ; apre-
sentação, bibliografias e atualização Valéria Andrade. — Brasília : Senado
Federal, 2021.
151 p. — (Coleção escritoras do Brasil ; v. 6)

1. Peça teatral, Brasil, séc. XIX. I. Andrade, Valéria. II. Título. III. Série.

CDD B869.2

ISBN: 978-65-5676-061-2

Senado Federal
Praça dos Três Poderes Brasília – DF – CEP 70165-900
http://livraria.senado.leg.br
SUMÁRIO

Apresentação – Maria Ribeiro: escrever o Brasil, fundar a


dramaturgia de autoria de mulheres.............................................. 7
Cancros Sociais............................................................................... 45
Ao Ex.mo Senhor Conselheiro......................................... 49
À Ex.ma Senhora D.ª Violante de Bivar............................ 51
Ao Leitor........................................................................... 57
Cancros sociais – Drama original em cinco atos............. 61
Ato I..................................................................... 63
Ato II................................................................... 81
Ato III.................................................................. 97
Ato IV.................................................................. 115
Ato V................................................................... 131
Bibliografia da autora...................................................................... 145
Bibliografia sobre a autora.............................................................. 147
APRESENTAÇÃO

MARIA RIBEIRO: ESCREVER O BRASIL, FUNDAR


A DRAMATURGIA DE AUTORIA DE MULHERES

Valéria Andrade1

À Zahidé Muzart (in memoriam).

É o esquecimento e não a morte que nos faz ficar fora da vida.


Mia Couto, 2008, p. 25

“Sou a pessoa Maria”

Ponho-me hoje, um dia assombrosamente igual a todos os ou-


tros nestes meados do ano de 2020 – em que o coronavírus confinou
fisicamente a população mundial no espaço doméstico, em estranho
exílio sem sair de casa –, a escrever, mais uma vez, sobre a escrita de
brasileiras que, em meados do século XIX, escreveram o Brasil. Sim, é
fato, elas escreveram no Brasil, mas também, é verdade, elas escreveram
o Brasil: nas narrativas, nos poemas, nos textos de teatro, nos artigos
jornalísticos etc. que produziram, elas foram escritoras do nosso país,
como afirma, em alto e bom som, o título da Coleção – Escritoras do

1
Professora de Teoria Literária e Literatura Brasileira da Universidade Federal de
Campina Grande. Pesquisa e escreve sobre a autoria de mulheres nas dramatur-
gias brasileira e portuguesa. Vive na Paraíba há mais tempo do que em Minas
Gerais, onde nasceu. Mora em Campina Grande – PB desde 2014.

7
Brasil –, de que faz parte este volume e na qual se reeditam obras me-
moráveis da literatura brasileira que narram o nosso país, tal como o
fazem as de autoria masculina. E vejo-me, assim, em meu 107º dia de
confinamento (ou será o 117º?), exilada em meu país, dentro da minha
própria casa, a pensar as práticas de escrita autoral de brasileiras oito-
centistas como exercício tão simbólico quanto real de desconfinamento
da palavra, que, embora lhes conferisse existência vivente humana, não
lhes atribuía – até então e desde há muito – existência social e cidadã.
Maria Ribeiro, cujo bicentenário de nascimento será comemo-
rado em pouco mais de 9 anos – nasceu no 5º dia de dezembro de
1829 –, foi uma destas mulheres que, ao escrever o Brasil nos mais de
20 textos teatrais que assinou entre 1855 e 1880 (ano de sua morte, no
dia 9 de abril), desconfinou, em particular, a palavra que, de Ésquilo a
Martins Pena, passando por Shakespeare e Molière, vinha sendo escrita
com exclusividade, quase absoluta, por homens.2 Em outros termos,
Maria Ribeiro desconfinou a palavra escrita com o propósito de, além
de ser lida, ser ouvida e vista como matéria sonora viva e ação virtual
vivida num palco com potência para mudar vidas e ações humanas
fora do palco. E, ao fazê-lo, a autora teve consciência não apenas do
alargamento do seu mundo e de suas contemporâneas via linguagem,

Devo a inspiração desta ideia à do poeta e cardeal D. José Tolentino de Men-


2

donça, em discurso proferido por ocasião do Dia de Portugal, de Camões e das


Comunidades Portuguesas 2020, no último dia 10 de junho, intitulado “O que
é amar um país”, no qual, ao afirmar que o autor d’Os Lusíadas, para além de
nos ter dado o poema e “o mais extraordinário mapa mental do Portugal do
seu tempo”, foi o iniciador de “um inteiro povo nessa inultrapassável ciência
de navegação interior que é a poesia”. Por esta razão, e considerando o pensa-
mento de Wittengstein, de que “os limites da minha linguagem são os limites
do meu mundo”, Tolentino de Mendonça conclui que “Camões desconfinou
Portugal no século XVI e continua a ser para a nossa época um preclaro mestre
do desconfinamento. Porque desconfinar não é simplesmente voltar a ocupar o
espaço comunitário, mas é poder, sim, habitá-lo, plenamente; poder modelá-lo de
forma criativa, com forças e intensidades novas, como um exercício deliberado e
comprometido de cidadania. Desconfinar é sentir-se protagonista e participante
de um projeto mais amplo e em construção, que a todos diz respeito. É não
conformar-se com os limites da linguagem, das ideias, dos modelos e do próprio
tempo.” (MENDONÇA, 2020).

8
mas também do contributo que estava a oferecer a mulheres e homens
do seu país, então uma nação em formação, como veremos adiante,
embora não pudesse fazer ideia de que sua palavra escrita para a cena
estivesse, naquela altura, a fundar toda uma tradição herdada por dra-
maturgas como Maria Adelaide Amaral (1942-) e Grace Passô (1980-),
para nomear apenas duas de maior projeção entre inúmeras mulheres
da palavra e da cena, mulheres de teatro, que continuam, nestes nossos
dias de séculos XX e XXI, a escrever o Brasil desde aquela semente
posta em terras brasílicas, nos meados do Oitocentos.
Nos idos de 1855, Maria Ribeiro mal completara 25 anos de idade
e já vivia o 11º ano de casamento com o artista plástico português João
Caetano Ribeiro (1821-1866),3 de quem ela fora aluna de desenho
no Liceu de Artes e Ofícios. A prole do casal, pequeníssima para os
padrões da época, duas meninas e um menino, ficaria menor com a
morte do caçula em meados daquele ano. Em meio ao luto, na busca
de alívio para o trauma sofrido, o processo criativo da escritora, em
formação desde a adolescência no campo da poesia, aflora em relação
à dramaturgia, para a qual, como revelaria uma década mais tarde,
sentia-se então “com alguma vocação” (RIBEIRO, 1866, p. viii).
Os versos e as saudações natalícias que escrevia às amigas, já aos
12 anos e, pouco depois, como colaboradora de revistas, usando o
pseudônimo de Nênia Sílvia, tanto diziam do talento precoce para a
criação literária como do bom proveito feito pela autora da educação
diferenciada que sua inteligência invulgar exigiu e foi suprida pela
ação de um tutor. O brigadeiro Antônio Bracet, impressionado com

3
Nascido em Barcelos, Portugal, em 1821, João Caetano Ribeiro chega ao Brasil
aos 17 anos. Diplomado pela Academia de Belas Artes aos 19 anos, atua como
professor de desenho no Liceu de Artes e Ofícios, de que foi sócio-fundador.
Casando-se com Maria Angélica dois anos depois, passa ao ofício de decorador,
obtendo sucesso e também a estima da família imperial nessa atividade. A opção
pela cenografia teatral confere-lhe imenso prestígio, sendo contratado por atores-
-empresários de renome, como João Caetano dos Santos, e nomeado cenógrafo
oficial do Teatrinho das Princesas, em Petrópolis. Em 1863, em parceria com dois
atores, fundou a Empresa Dramática, inaugurando suas atividades no Ateneu
Dramático. Vítima de infarto, teve sua carreira brilhante interrompida em 6 de
agosto de 1866, cf. ALMEIDA, 1907, p. 390, e SOUSA, 1960, p. 454-455.

9
a precocidade da menina, filha de seu antigo companheiro de armas,
morto em serviço, toma a si a missão, segundo relata a própria autora,
de “facultar-lhe (como ele dizia) os meios de alcançar, pela inteligência,
uma posição digna e independente no futuro” (RIBEIRO, 1866, p.
viii). Os desafios de uma infância em orfandade antes de completar
5 anos, vencidos com o apoio do representante legal do pai, que a
fatalidade lhe tirara, seriam seu passaporte para o mundo das letras,
inclusive como profissional,4 dado que, além da escrita autoral para
teatro, Maria também traduziu textos para a cena, em ambos os casos
como atividade remunerada, fazendo, assim, do teatro “o seu ganha-
-pão” (SABINO, 1996, p. 203).
Natural da vila de Parati, atual Angra dos Reis, no Rio de Janeiro,
Maria Ribeiro, como assinava literariamente, recebeu dos pais o nome
de Maria Angélica de Sousa Rego. Sua mãe, Maria Leopoldina de Sou-
sa Rego, nascida no mesmo local, tinha ascendência nobre, da linha-
gem de um ilustrado capitão-mor, morgado-nobre de Argemães. Seu
pai, o capitão Marcelino de Sousa Rego, condecorado com insígnias
de Grão Mérito Militar, era natural de Lisboa; moço fidalgo da Real
Casa de D. João VI, acidenta-se na Lagoa Rodrigo de Freitas, vindo a
morrer por afogamento e deixando viúva a jovem Leopoldina, com
19 anos, e três filhas. Maria Angélica, a primogênita do casal, contava
5 anos incompletos (RIBEIRO, 1866, p. x; ALMEIDA, 1907, p. 391).5
Pode-se pensar que a experiência de orfandade vivida por Ma-
ria Ribeiro já desde a primeira infância tenha motivado sua luta por
manter-se viva quando, por ocasião da morte do filho, ao sentir a vida

4
Lembrando o percurso de várias escritoras do passado que lograram um teto todo
seu apoiadas por figuras masculinas, em geral o pai, cito duas brasileiras: Narcisa
Amália (1852-1924) e Júlia Lopes de Almeida (1862-1934).
5
A maioria dos dados biográficos sobre Maria Ribeiro foi retirada do prefácio à
edição de Cancros sociais, de 1866, dedicado “À Ex.ma Senhora D.ª Violante de
Bivar”, escritora a quem a dramaturga dirige-se como destinatária de suas pa-
lavras, jornalista e tradutora de textos teatrais; ver ANDRADE, 1996, p. 43-44,
e VASCONCELLOS, 1999, p. 194-207. Seu pai, Diogo de Bivar (1785-1865),
fundou o primeiro jornal literário brasileiro, As Variedades ou Ensaios de Literatura,
e presidiu o Conservatório Dramático Brasileiro, de que foi um dos fundadores;
cf. SOUSA, 1960, p. 120.

10
faltar-lhe pela metade, sentiu-se, igualmente, obrigada a vivê-la para
as duas filhas mais velhas (RIBEIRO, 1866, p. viii), livrando-as assim
das amarguras que sofrera na pele. Como vimos acima, é da tentativa
de apaziguamento pós-traumático que resulta a primeira incursão dra-
matúrgica da autora, o drama Guite ou a feiticeira dos desfiladeiros negros,
aprovado no Conservatório Dramático Brasileiro, com louvores de
seu presidente, Diogo de Bivar.
Não deixa de ser curioso observar que este argumento funcionaria
como uma das justificativas de Maria Ribeiro para explicar o início de
seu percurso autoral, então publicamente assumido no campo da dra-
maturgia, como estratégia para lidar com o estresse do luto e assim dar
continuidade à função social prioritária da mulher como mãe devotada.
Por outro lado, será pertinente pensar que a escritora, agora desobriga-
da dos cuidados maternos para com o único filho do sexo masculino,
representante do gênero culturalmente valorizado da descendência em
sociedades patriarcais, se sentisse autorizada intimamente a desenvol-
ver talentos e interesses pessoais identificados desde bem antes. Isto,
decerto, nem ela conseguiria reconhecer e, nesse sentido, não destoou
dos padrões sociais da época. Embora se sentisse “presa até morrer” ao
“afã das letras”, a ele se dedicava para “aproveitar as poucas horas” de
sobra da sua “lida de mãe de família” (RIBEIRO, 1866, p. xi), atitude
também adotada por algumas mulheres cultas da época, que encon-
travam no fazer literário, de preferência realizado como passatempo,
o escape aceitável para suas energias e tensões, sobretudo por não ir
de encontro à ideia da maternidade como prioridade máxima da vida
de uma mulher (HAHNER, 1981, p. 89).
Outra justificativa da dramaturga – que se lê, como a citada aci-
ma, nas páginas do seu prefácio a Cancros sociais, datado de março de
1866 (RIBEIRO, 1866, p. vii-xi) –, em relação à edição do volume
entregue ao público leitor com o texto do espetáculo encenado no ano
anterior, constrói-se em tom contrariado e de denúncia a partir de sua
inquietação frente à situação vigente em terras brasileiras em razão dos
preconceitos e humilhações a que estavam sujeitas as mulheres, como
ela, com aspirações literárias e interessadas, portanto, em “estudar e
escrever; poetar ou compor dramas e romances; [...]” (RIBEIRO,
1866, p. x). Esta queixa, todavia, faz-se envolta em expressões de mo-
déstia usual e deliberadamente usadas por escritoras do período nos
11
prefácios de seus livros, recheados com uma fartura de fórmulas de
humildade, como usou Maria Firmina dos Reis (1825-1917) no seu
prólogo a Úrsula (1859), para protestar contra a falta de condições e
oportunidades para as suas contemporâneas (MUZART, 1990).
No mesmo prefácio, reafirmando sua falta de ambição e vaidade
pessoal, a dramaturga justifica-se ainda quanto à sua decisão de subme-
ter seu primeiro texto teatral ao Conservatório Dramático, tomada “só
para satisfazer à vontade do [meu] marido” (RIBEIRO, 1866, p. viii),
o que deixa evidente uma segunda fonte de apoio masculino ao seu
percurso profissional. Outro suporte que, mesmo involuntariamente,
o cenógrafo ofereceu para a profissionalização da esposa como autora
de teatro foi o próprio fato de serem marido e mulher. Ora, levando em
conta o preconceito então existente em torno do ambiente teatral, onde
até meados do século XIX a única participação socialmente autorizada
para mulheres era como espectadora,6 o vínculo matrimonial, além do
mais estabelecido com um profissional prestigiado ligado ao palco, teria
contribuído para referendar a atuação de Maria Ribeiro como escritora
de textos para teatro. O ineditismo do ofício dramatúrgico para uma
mulher nesta época não impediu, assim, que aquela senhora o exercesse
e tivesse ótima aceitação, inclusive nos bastidores do meio teatral, fre-
quentados exclusivamente por homens em posições de poder quanto
às produções dramatúrgicas que subiam aos palcos, como censores,
empresários e críticos. Um dos elementos favoráveis a isso teria sido,
portanto, o lugar social legitimado e valorizado ocupado pela autora.
Por outro lado, importa muito anotar que, a despeito da ausência
do marido, em razão de sua morte prematura, em agosto de 1866,
e, portanto, da perda do estatuto de ‘esposa de cenógrafo afamado’,
Maria Ribeiro, então com 37 anos, continuou muito bem acolhida no
ambiente teatral do Rio de Janeiro durante o tempo que se seguiu até

6
Sobre a presença de mulheres no espaço físico do teatro, restrita aos camarotes
até 1862 (ANDRADE, 1967), cf. discussão circunstanciada sobre o contexto
teatral de meados do século XIX em ANDRADE, 2001a, p. 87-95 e 107-110.
Relativamente à função de atriz, importa observar que exercê-la era sujeitar-se
a rebaixamento social aviltante a priori, já que emprestar o corpo e a voz para dar
vida e ação a uma personagem no palco era ofício que, exercido por mulher,
‘confundia-se’ com o de prostituta; ver ANDRADE, 2001a.

12
o final da sua vida, aos 50 anos, o que não deixa dúvidas quanto ao seu
próprio talento como suporte da bem-sucedida carreira literária. Ainda
assim, na maioria dos raros estudos sobre a dramaturga, as primeiras
palavras trazem sempre a informação: “casada com o célebre cenó-
grafo João Caetano Ribeiro”, como se a condição para sua inclusão na
história teatral como autora fosse ter seu nome referido à celebridade
do marido. Além disso, pode-se pensar também que o fato de sua
atuação ter sido voltada especificamente para a esfera produtiva do
teatro, a dramaturgia, haja contribuído para que ela conquistasse para
si algum espaço (e um espaço ‘respeitável’, em vários sentidos) nesse
território até então exclusivamente masculino. E isto pelo fato de que
essa atividade, embora essencialmente vinculada ao palco, não trazia
em si o estigma social historicamente associado à esfera reprodutiva
do teatro ligada à interpretação, que quando aplicado às mulheres era,
até então, absolutamente desonroso.
É, ainda, por entre as linhas desta valiosa fonte documental em
forma de prefácio deixada por Maria Ribeiro que ouço sua voz, mo-
dulada entre o inconformado e o confessional, a dizer-nos também da
sua consciência de que, com o seu talento, teria alguma contribuição
a dar à literatura dramática brasileira. O fragmento a seguir, transcrito
da primeira edição de Cancros sociais, é amostra, de leitura irrecusável,
do pensamento desta escritora brasileira, ciente do seu talento e do
seu compromisso tanto quanto do lugar ocupado e por ocupar pelas
mulheres do seu tempo no processo de construção da tradição dra-
matúrgica de seu país:

Sei que uma mulher, especialmente, pobre, não pode elevar-se a certas re-
giões. O despeito de uns, a intolerância de outros, a injustiça de muitos e, sobre-
tudo, a calúnia sempre ávida de vitimar a fraqueza feminina, cedo ou tarde, com
aleives e injúrias lá a despenham dessas alturas, se porventura soube atingi-las.
Cumpre-nos obedecer aos homens!
A mulher brasileira, se não quer sujeitar-se ao escárnio dos espirituosos e
às censuras mordazes dos sensatos, não tem licença para cultivar o seu espírito
fora das raias da música ao piano, e das de algumas frases, mais ou menos
estropiadas, de línguas estrangeiras! Nem ao menos para ler Aimé Martin –
Civilização do gênero humano pelas mulheres!

13
As europeias, sim, essas inteligentes e talentosas podem estudar e escrever;
poetar ou compor dramas e romances; podem satisfazer as ambições da sua
alma, ter culto, e conquistar renome...
Entre nós, não, que nada disso se pode dar! O que sai de lavra feminina
ou não presta, ou é trabalho de homem. E, nesta última suposição, vai uma ideia
oculta e desonesta.
E para que compraríamos, nós mulheres, a fama de sermos autoras de
trabalhos que não fossem nossos, se com ela nada ganhamos, nem temos
possibilidade de obter lugar ou emprego pelos nossos méritos literários?
Valem-nos eles de coisa alguma?
Será pelos lucros?...
Santo Deus! A calúnia nem reflete nisto!
Levando, pois, a efeito o meu tributo, creio cumprir com ele o doce dever
da saudade maternal e a respeitosa veneração de discípula; dando também à
desprovida história das letras dramáticas da minha pátria o pequenino contin-
gente do meu minguado talento. (RIBEIRO, 1866, p. x-xi; grifos no original)

Nesta espécie de antessala a Cancros sociais, Maria Ribeiro rende


sua homenagem às figuras masculinas que lhe abriram o caminho para
a carreira de dramaturga, indicando-os um por um: seu filho, seu tutor
e o censor do Conservatório Dramático que julgou e aprovou seu texto
de estreia como autora de teatro. Que razões terá tido a dramaturga para
não citar diretamente o marido como alvo desta sua homenagem – a
despeito de referir sua anuência à vontade dele, como vimos, quando
apresentou seu texto àquela instituição? Provavelmente nunca se saberá.
Como também nunca se terá acesso à ocorrência dos processos
psíquico-intelectuais mais íntimos e subjetivos que moveram nossa
autora para a escrita dramatúrgica. A não ser que se venha, algum dia,
a localizar escritos pessoais seus, num diário, ou álbum de memórias,
por exemplo, em que haja anotado, entre lembranças, registros e dese-
jos cotidianos, seus interesses e preferências como leitora de textos de
teatro, ou seus desafios, deleites e aprendizados vividos e testados como
tradutora de peças, ou, ainda seus interesses, expectativas e efeitos de
sua recepção como espectadora de espetáculos teatrais. Relativamente
a aspectos como estes da rota biográfica de Maria Angélica Ribeiro,
resta-me, por ora, partir da reconstituição histórica de circunstâncias

14
contextuais a que procedi em minhas pesquisas sobre autoria de mu-
lheres no campo da dramaturgia (ANDRADE, 1996, 2001, 2001a),
mediante a qual se pode imaginar hipóteses que iluminem o enten-
dimento em torno de comportamentos e modos culturais de pensar e
de sentir que falam e contam sobre o ‘estar-no-mundo’ de mulheres
e homens, seres sociais pensantes e criativos habitados (e habitantes)
por (de) uma ideia de nação.

Das artes de enfeitiçar e de outras querelas

Nesse sentido, um olhar um pouco mais recuado fará ver um


projeto de modernidade para o Brasil oitocentista posto em curso em
ritmo mais acelerado a partir da segunda metade do século, com a proi-
bição do tráfico de escravos, em 1850, pela Lei Eusébio de Queiroz.
Seus impactos, gerados pelo deslocamento do capital para a lavoura ca-
feeira e para o recém-aberto setor de atividades comerciais, financeiras
e industriais, teriam alcance extraordinário e multidirecionado entre
brasileiras e brasileiros, nomeadamente em relação ao sistema educa-
cional e à circulação de ideias, sobretudo nas mídias mais concorridas
da época: a imprensa – tanto a jornalística quanto a livreira – e o teatro.
Nesses dois espaços de comunicação e de cultura, inúmeras
oportunidades começariam a se abrir também para as mulheres, em
continuidade ao processo de formação de uma nova consciência de
gênero iniciado no país na década de 1830 a partir de ações na área da
educação, como as de Nísia Floresta Brasileira Augusta (1810-1885).
Reconhecida como pioneira do feminismo no Brasil, já em 1831 essa
autora estreia na imprensa da época com uma série de artigos sobre
a condição feminina e, no ano seguinte, publica o primeiro de seus
vários livros, Direitos das mulheres, injustiça dos homens (AUGUSTA,
1989), inaugurando a ponte entre o pensamento feminista europeu e
o contexto brasileiro. Exatamente duas décadas após aquela publicação
antológica com as demandas inaugurais do feminismo brasileiro, ou
seja, em 1852, Joana Paula Manso de Noronha (1819-1875), argentina
radicada no Brasil, igualmente professora e também dramaturga, fun-
da na então capital do Império, Rio de Janeiro, O Jornal das Senhoras,
primeiro de muitos periódicos surgidos sobretudo a partir de 1870

15
não apenas dedicados às mulheres, mas também criados, redigidos
e editados por elas, ao contrário de outros jornais ditos ‘femininos’,
escritos e editados por homens, que circulavam nos principais centros
do país, a exemplo do que publicou, em Recife, os primeiros escritos
de Nísia Floresta, Espelho das Brasileiras.
Em outubro do ano seguinte, 1853, as colaboradoras de redação
de Joana Manso recebem dela, em carta aberta veiculada no próprio
jornal, o convite para irem assistir à encenação de peças de sua autoria
no Teatro São Pedro de Alcântara, hegemônico na cena teatral da ci-
dade, ao lado do melodrama, cuja supremacia vigorava também desde
finais dos anos de 1830, embora com sinais de falência. Afirmando
a oportunidade de, com isso, sancionar publicamente as conquistas
femininas no campo intelectual, a fundadora e redatora-chefe d’O
Jornal das Senhoras fazia ecoar o pensamento pela igualdade de gênero
que circulava na capital do Império do Brasil desde o início dos anos
de 1850. A edição trazia, ainda, a informação de que a programação
semanal daquele teatro incluía récitas do drama histórico O ditador
Rosas e a Mashorca e da comédia-vaudeville As manias do século,7 ambos
escritos pela autora, que em 1851 tivera outros dois textos seus, A
Família Morel e Esmeralda (extraídas, respectivamente, dos romances
de Eugenio Sue, Os mistérios de Paris, e Victor Hugo, Notre Dame de
Paris), encenados pela companhia do consagrado ator e empresário
João Caetano dos Santos (1808-1863).
O convite, tão inusitado quanto corajoso, da jornalista e drama-
turga argentina aludia, de leve, a uma ideia pouco depois defendida

Não há registro sobre o enredo desta comédia, todavia seu título sugere uma
7

trama voltada para um dos principais temas em circulação na cidade, a emanci-


pação das mulheres, e de interesse da autora. Com efeito, no Rio de Janeiro de
então falava-se e escrevia-se prodigamente sobre o assunto. Quinze dias após sua
encenação, o mesmo teatro acolhe outra comédia, com título explícito sobre o
tema: A emancipação das mulheres, escrita, segundo seu autor, Antônio de Castro
Lopes (1827-1901), no ano anterior, o mesmo, portanto, da fundação d’O Jornal
das Senhoras. Sem atentar para isso, houve até quem afirmasse ter ela se originado
de um pensamento análogo ao da comédia de Molière (1622-1673), Les femmes
savantes, “asseveração um tanto imprudente” (HESSEL e RAEDERS, op. cit.,
p. 101-102), feita pelo apresentador do Teatro do Doutor A. de Castro Lopes.

16
por uma nova geração de escritores e intelectuais do Rio de Janeiro
engajada na renovação da cena teatral e, por esta via, na regeneração
da sociedade – ou seja, a ideia do teatro como o “meio de propaganda”
mais eficaz. Passando a rejeitar francamente os cânones já decadentes da
escola romântica, um grupo de jovens intelectuais, entre eles Machado
de Assis (1839-1908), José de Alencar (1829-1877) e Quintino Bocaiúva
(1836-1912), entusiastas da ética burguesa, arrebata-se pela forma teatral
“moderna” da comédia realista francesa, que faz suas primeiras aparições
na cidade, em 1855, no palco de um teatrinho de pouco mais de 200
lugares, reformado e reinaugurado com o nome de Ginásio Dramático,
em alusão explícita ao Gymnase Dramatique parisiense (FARIA, 1993).
Antes daquela iniciativa do empresário do Ginásio, de importar a
nova dramaturgia realista diretamente de Paris, as opções culturais da
cidade se reduziam ao desgastado repertório de dramas descabelados
e anárquicos levados ao São Pedro por João Caetano. Porém, a partir
de outubro daquele ano de 1855, quando As mulheres de mármore, de
Barrière e Thiboust, pisam o palco do rival remodelado, o meio te-
atral é sacudido por uma onda de novas produções teatrais. Dumas
Filho, Émile Augier e outros franceses conquistam, em pouco tempo,
a simpatia de boa parte de espectadores e espectadoras. Seus textos
teatrais, traduzidos às dezenas para atender à demanda dos primeiros
tempos do Ginásio, causam frisson entre a nova geração de escritores
e intelectuais, tornando-se modelo para um grupo ávido por mu-
danças na cena teatral da cidade então estagnada, quer pelas escolhas
repetitivas do repertório de João Caetano, quer pelo anacronismo do
seu estilo explosivo e melodramático de interpretação, embora nada
lhe desmereça o engenho de ter aberto as portas, na década de 1830,
para um novo modo brasileiro de dizer e para dramaturgos como Luís
Carlos Martins Pena (1815-1847).
Dali em diante, em pouco menos de cinco anos, a dramaturgia
francesa, traduzida para o português, hegemônica na cena do Ginásio,
viria a perder espaço para uma safra de originais brasileiros, produzi-
dos programaticamente à volta da tarefa de se recriar o teatro nacional
mediante a nova opção estética apresentada pelos franceses, tendo em
conta, afinal, o que já fora feito pelos românticos. Seduzidos por este
projeto e pela possibilidade de viabilizá-lo articulando-o à “verdadeira
e nobre missão” do teatro de regenerar, moralizar e civilizar a socieda-
17
de – tal como prometia a comédia de costumes atualizada pelos moldes
da escola realista –, integrantes da nova intelectualidade atuantes na
imprensa e nos meios literários da cidade se mobilizam e produzem
em profusão, provocando verdadeiro boom na dramaturgia nacional,
que se estende entre 1860 e 1863.
À frente desta vanguarda militante em prol do novo nos espaços
do teatro como nos demais espaços da vida social no país, José de
Alencar foi não apenas o primeiro a pôr em prática os fundamentos do
teatro realista, lançando-se como dramaturgo já em 1857,8 mas também
quem mais enfaticamente se devotou a conquistar novas adesões para
a causa, que ele abraça com viva simpatia desde o seu anúncio sim-
bólico com a inauguração do Ginásio Dramático. Um ponto central
do pensamento crítico de Alencar remete a esta necessidade de um
grande esforço coletivo e solidário voltado para a criação do teatro
nacional, então ainda inexistente, segundo sua percepção. Num de
seus folhetins, em resposta aos elogios do redator-chefe do Correio
Mercantil à sua comédia O demônio familiar, Alencar convoca o colega
e, mais amplamente, toda a imprensa neste sentido:

Nós todos jornalistas estamos obrigados a nos unir e a criar o teatro


nacional; criar pelo exemplo, pela lição, pela propaganda. É uma obra mo-
numental que excede as forças do indivíduo, e que só pode ser tentada por
muitos, porém muitos ligados pela confraternidade literária, fortes pela união
que é a força do espírito, como a adesão é a força do corpo. (ALENCAR,
1857, apud FARIA, 2001, p. 100)

Atendendo seu chamado, um grupo pequeno, mas coeso, reúne-


-se à volta de uma sala de espetáculos, o Ginásio Dramático, e do
ideal de dar existência ao teatro nacional, dando sequência ao fluxo
de renovação do palco brasileiro anunciado, em meio ao qual se abre
espaço para uma jovem autora romper o mutismo secular das brasilei-

O então recém-lançado romancista, autor de O Guarani, escreve logo quatro


8

peças: O Rio de Janeiro, verso e reverso, O demônio familiar, O crédito e As asas de um


anjo, todas encenadas pelo empresário do Ginásio – as três primeiras no final
daquele ano, a última em 1858.

18
ras no campo da dramaturgia, ao que se sabe, a única a compor aquela
vanguarda engajada com a renovação da cena nacional – não outra que
a nossa Maria –, aquela que, para além de sua militância pela criação
do teatro nacional, levaria para o palco o ativismo feminista que, ainda
incipiente, já circulava na imprensa, como visto, em jornais editados
por mulheres na cidade desde 1852.
Convém ter atenção para o fato de que a pequena safra inaugural
da tradição iniciada por Maria Ribeiro, produzida entre 1855 e 1858 –
os dramas Guite ou a feiticeira dos desfiladeiros negros, de 1855, como já
visto, Paulina e A aventureira de Vaucloix, ambos de 18569 –, é, na verdade,
anterior ao surto dramatúrgico nacional provocado pelo afã civiliza-
tório e moralizante propagado pela comédia realista francesa, referido
acima. Ora, a afirmação da autora no prólogo a Cancros sociais quanto à
sua experiência criativa no contexto do luto pelo filho, em 1855 – tex-
tualmente: “Quis distrair-me, e, para consegui-lo, tentei dialogar um
drama, para o que me sentia com alguma vocação (RIBEIRO, 1866,
p. viii) –, conjugada às outras circunstâncias de sua vida pessoal que
a aproximavam do ambiente teatral, dá azo a imaginar esta vocação a
aflorar, intimamente, já pelos idos de 1853, impulsionada pelo convite
de Joana Manso de Noronha, endereçado transversalmente, como
já vimos, às leitoras d’O Jornal das Senhoras. Muitas delas, redatoras e
leitoras do singular periódico, teriam comparecido às récitas no Teatro
São Pedro, como era habitual, sobretudo pelo fato de que, na altura,
aquela sala de espetáculos reinava, ainda absoluta, na cena dramática
do Rio de Janeiro. Após assistirem àquela demonstração pública e co-
letiva de que nada incapacitava uma mulher a escrever um texto para

9
Ambos foram também aprovados no Conservatório Dramático e elogiados pelo
então presidente da instituição, Diogo de Bivar. O censor que examinara A
aventureira de Vaucloix, embora lamentasse “que a autora preferisse fazer a ação
passar-se em França e entre franceses”, fazendo ressalvas à “linguagem empolada
e algumas vezes sentenciosa que a autora empresta a seus campônios” e ao estilo
“demasiadamente afrancesado” – defeito que, reconhecia, “é quase inteiramente
devido ao atraso da arte entre nós, e ao pouco cuidado que se emprega no estu-
do da língua materna” –, cobriu-o de louvores em seu parecer, recomendando
ao final: “Prossiga a autora na tarefa que encetou, aproveite seu talento a bem
da literatura, que os amantes das letras lhe tributarão as homenagens de que é
credora” (SILVA, 1857).

19
ser levado ao palco, como bem defendera Joana Manso, pode ser que
uma ou outra espectadora tenha desejado ou, pelo menos, imaginado
arriscar-se como autora de textos destinados à encenação teatral.
Como imaginou Machado de Assis em seu conto A chinela turca,
esse fenômeno não seria ocorrência improvável nas plateias do seu
tempo. A ação criada pelo Bruxo do Cosme Velho, passada em 1850,
traz a figura do major Alves dominado pela ideia de “afrontar as luzes
do tablado” após assistir à encenação de um drama ultrarromântico
que muito lhe agradara. Movido por essa ideia, o major visita o alferes
Duarte a fim de lhe mostrar sua obra, resultado da “explosão dramá-
tica” de que fora alvo. Exemplo da sedução que o melodrama exerceu
sobre o público espectador brasileiro entre as décadas de 1840 e 1850, a
narrativa machadiana mostra também que o aprendizado dramatúrgico
viria, com frequência, da experiência de espectador (FARIA, 2001).
No caso das experiências criativas que resultaram na produção lite-
rária fundante da tradição dramatúrgica brasileira de autoria de mulhe-
res, anotemos que já no primeiro semestre de 1855, ou seja, pouco mais
de um ano após a manifesta comprovação protagonizada pela redatora-
-chefe d’O Jornal das Senhoras de que mulheres, tanto quanto homens,
estavam habilitadas a produzir textos teatrais, Maria Ribeiro – provável
habitué das récitas no Teatro São Pedro – escreve seu drama de estreia,
Guite ou a feiticeira dos desfiladeiros negros, já referido. A julgar pelo título e
pelo gênero escolhidos, a estreante teria posto em prática a fórmula do
já então velho melodrama francês,10 usada pela jornalista e dramatur-
ga argentina, a par do que, pelo menos até 1865, continuaria presente
no repertório teatral de autoria de homens do romantismo no Brasil.
E, seguindo aqui no rastro da ficção machadiana, imaginemos agora
nossa jovem poeta, de volta à casa, após uma das récitas da programa-
ção semanal do São Pedro, entusiasmada pela quimera de também ela,
espelhando-se na autora argentina, “afrontar as luzes do tablado” – posto
que, até então, ao aparecer na imprensa literária quando mais jovem,
só o fizera sob pseudônimo, como visto acima. Nas semanas seguintes,
ou em questão de dias, quem sabe, lá estaria Maria Ribeiro a mostrar a

10
Neste sentido, cf. o texto do parecer a A aventureira de Vaucloix, transcrito parcial-
mente em nota acima.

20
um homem de teatro, um expert da cenografia – com quem dividia teto,
afetos e sonhos –, o primeiro resultado da “explosão dramática” que a
teria atingido, ao qual, meses depois, ela voltaria durante o processo de
retomada da própria vida após o luto pela morte do filho.
Precariamente reconstruída neste exercício de imaginação a partir
de registros históricos disponíveis costurados em meio aos vazios da
memória, a experiência de Maria Ribeiro como espectadora de teatro
impactou, supostamente, no período germinativo do seu processo
pedagógico-formativo no campo da dramaturgia, como também teriam
contribuído outras práticas socioculturais adotadas pelas mulheres
em meados do Oitocentos (ANDRADE, 2001a). A este processo de
aprendizado deve-se acrescentar ainda sua experiência como tradutora
de textos teatrais, em relação à qual a exiguidade de fontes documentais
até o momento é, também, empecilho para avançar na construção do
conhecimento sobre esta autora, cuja produção literária pavimenta e
dá sustentação, à guisa de raízes, ao percurso autoral de mulheres no
contexto da dramaturgia brasileira e, de uma visada mais ampla, ao do
‘ser-e-estar’ mulheres em nosso país.

Uma dramaturga de olho no palco do seu tempo

Mantendo-se ativa no ofício dramatúrgico durante 25 anos, Maria


Ribeiro propõe, em muitos dos seus vários textos teatrais, interlocução
com obras de autoria masculina anteriores às suas, não se intimidando
em deixar ver que o fazia, antes propondo com todas as letras a sua ver-
são do tema discutido. O drama que ora se reedita neste volume, Can-
cros sociais, como se verá em pormenores mais adiante, como também a
comédia Ressurreição do primo Basílio (1878), revisitam, respectivamente,
o drama Mãe (1859), de José de Alencar (1829-1877), e o romance de
Eça de Queiroz (1845-1900) O primo Basílio, adaptado para o formato
dramatúrgico em tom de troça poucos meses após chegar ao Rio de
Janeiro sob polêmica, inclusive com Machado de Assis. Operava-se,
portanto, também pela mediação da autoria de mulheres, o proverbial
esforço de “adaptação” dos modelos europeus à realidade nacional,
realizado por José de Alencar e seus companheiros de missão civili-
zadora pelo teatro, conforme vimos passos atrás (ANDRADE, 2004).

21
Exemplo incontornável deste processo, independente de gênero,
está no drama Gabrielle (1849), de Émile Augier (1820-1889), autor
francês dos mais encenados no Rio de Janeiro naquela fase de renova-
ção da cena no Brasil. Mesmo sem ter subido aos palcos, Gabrielle seria
vista pelo público carioca, primeiro em 1856, numa versão decalcada
por um outro francês, Octave Feuillet (1821-1890), intitulada A crise,
e depois, em 1863, na versão recriada por Maria Ribeiro, a homônima,
em tradução para o português, Gabriela. Construindo um novo final
para a trama augieriana – em que um marido negligente termina por
salvar a esposa do adultério –, a dramaturga subverte a noção de culpa,
defendendo a necessidade de reconhecimento da corresponsabilidade
do homem nos erros da mulher.11 Autores como Machado de Assis
e José de Alencar teriam também se inspirado, senão naquela perso-
nagem de Augier, pelo menos no seu nome, e criado suas Gabrielas
para o teatro: a do primeiro foi levada ao palco em 1862; a do segundo,
inconclusa, teria ficado na gaveta (SOUSA, 1960, p. 22 e 63).
Esta busca declarada da dramaturga por interlocutores no debate
acerca das temáticas que se cruzavam, algumas em rotas de colisão na-
quele momento de efervescência e mudanças estruturais na sociedade
brasileira, irromperia já a partir de 1858, quando escreve seu quarto
drama, O anjo sem asas, em cujo título convida abertamente ao diálogo
o autor de As asas de um anjo, José de Alencar. Trazendo à lembrança,
como afirma em seu prefácio-homenagem, a aprovação com louvores
que recebera anteriormente do Conservatório Dramático Brasileiro
e com a intenção expressa de homenagear um amigo aniversariante,
Maria Ribeiro agarraria a ocasião para manifestar-se publicamente em
relação à polêmica aberta na imprensa em torno do texto de Alencar.
Encenado em maio de 1858, como vimos em nota acima, As asas de
um anjo incorpora à nossa dramaturgia o tema da prostituição, recém-
-introduzido no palco brasileiro com A dama das camélias. Submetido
ao julgamento do Conservatório Dramático, o texto em que Maria

Referido no Dicionário mundial de mulheres notáveis (OLIVEIRA; VIANA, 1967,


11

p. 1113), como texto publicado em 1868, nenhum exemplar de Gabriela foi


localizado até o momento. O que se conhece do seu enredo está referido em
FARIA, 1993, p. 12-13, como resultado da leitura de comentários publicados na
imprensa sobre sua encenação.

22
Ribeiro manifesta sua voz em torno do assunto foi louvado pelo júri,
e também aprovado por quantos o leram e o ouviram em seguida.
Depois disso, a produção de Maria Ribeiro cresce espantosa-
mente, e, até 1863, escreve perto de quinze textos teatrais. Encorajada
pelo “parecer favorável de alguns amigos competentes” (RIBEIRO,
1866, p. ix), decide levar seus escritos ao espaço do palco, alargando
o campo de recepção da sua dramaturgia. Escreve então o já citado
drama Gabriela, especialmente para ser levado à cena pelo Teatro Gi-
násio Dramático na récita em benefício da atriz Gabriela da Cunha.
Aplaudida pelo público, não o foi menos pela crítica, cujas manifesta-
ções mais destacadas vêm a público nas páginas do Jornal do Comércio,
assinadas por Visconti Coaraci e Machado de Assis, que sublinham a
naturalidade dos diálogos e a moralidade da peça, filiando-a implícita
e explicitamente à estética realista francesa (FARIA, 1993).
Em 1865, passada, pois, uma década desde o resultado da primeira
incursão de Maria Ribeiro na dramaturgia, o Ginásio Dramático abre
suas portas novamente para a encenação de outro texto seu, o drama
Cancros sociais. Aplaudido calorosamente pelo público e pela imprensa
local – com várias críticas favoráveis em jornais como Diário do Rio de
Janeiro, Correio Mercantil e Jornal do Comércio –, o drama alcança oito
récitas seguidas naquele mês, além de algumas outras nos meses se-
guintes, tornando o nome da autora mais conhecido e principalmente
respeitado e prestigiado no ambiente teatral da época, como até então,
aliás, nenhum outro nome feminino o fora.
Para se ter uma ideia do prestígio de Maria Ribeiro entre seus
contemporâneos, vale a pena ler o seguinte trecho do artigo escrito
em 1890 pela cronista do jornal Cidade do Rio Corina Coaraci (1859-
1892), em resposta ao comentário do redator da seção “Palco e Salões”
publicado no Diário do Comércio após a representação da comédia O voto
feminino, escrita pela fundadora e redatora-chefe do jornal A Família,
Josefina Álvares de Azevedo (1851-1913). No artigo, a colunista reforça
sua argumentação evocando o nome e a produção de Maria Ribeiro:

Maria Ribeiro, escrevendo há vinte e cinco anos o seu grande drama “Os
Cancros Sociais” [sic], um dos primeiros gritos lançados contra a escravatura,
revelou um profundo conhecimento dos vícios e das torpezas da sociedade de

23
então, sem que o seu puro espírito de mulher sofresse o mais leve ataque por
parte do público frequentador de teatros menos habituado naquela época do
que hoje a ver a pena manejada por mãos femininas. Maria Ribeiro é uma de
nossas glórias literárias, uma precursora da abolição e, se tivesse tido vida mais
longa, seria hoje talvez um dos esteios do teatro nacional: o seu talento só se
expandiu em produções dramáticas em que eram atacados frente a frente os
males e os preconceitos do nosso meio social, afrontando todos os comen-
tários e todos os tartufismos da crítica menos liberal do que a dos modernos
tempos. Entretanto, quem se atreveria então como hoje a tomar como base
de censura à autora o seu sexo? (COARACI, apud AZEVEDO, 1890, p. 1)12

Também as palavras de Machado de Assis, publicadas bem antes


no Diário do Rio de Janeiro, atestam as razões do sucesso e do respeito
profissional alcançado pela escritora no decorrer da sua trajetória:

O nome da Sra. D. Maria Ribeiro não é desconhecido do público. Re-


presentou-se há tempos no Ginásio um drama de sua composição intitulado
Gabriela, e oferecido à nossa primeira artista dramática. [...]
Há, com efeito, entre Gabriela e Cancros Sociais, uma notável diferença,
um incontestável progresso. A mão incerta no primeiro tentame é agora mais
segura, mais conscienciosa; a autora desenha melhor os caracteres, pinta
melhor os sentimentos; a ação aqui é mais natural, mais dramática, mais
sustentada; as situações mais bem concebidas e os diálogos mais fluentes.
O novo drama é ainda um protesto contra a escravidão.
Apraz-nos ver uma senhora tratar do assunto que outra senhora de no-
meada universal, Mrs. Beecher Stowe, iniciou com mão de mestre. A ação,
como a imaginou a Sra. Dona Maria Ribeiro, tem um ponto de contato com
o Mãe, drama do Sr. conselheiro José de Alencar: é uma escrava, cujo filho
ocupa uma posição social, sem conhecer de quem procede. E se notamos esta
analogia, é apenas para mostrar que, na guerra feita ao flagelo da escravidão, a
literatura dramática entra por grande parte. A luta que se trava no espírito de
S. Salvador, entre o dever do filho e os preconceitos do homem, é estudada

12
Sobre o confronto na imprensa acerca da comédia O voto feminino, cf. ANDRA-
DE, 2001, p. 136-138.

24
com muita observação; a última cena do 2º ato, entre o filho e a mãe, parece-
-nos a mais bela cena da peça.
Louvamos com franqueza, criticaremos com franqueza. A ação que inte-
ressa e prende, de ato para ato, falece um pouco no último; o estilo ressente-
-se da falta de unidade; o diálogo, em geral fluente e natural, peca às vezes
pela intervenção demasiada de metáforas e imagens; há algumas cenas, mas
poucas, que nos parecem inúteis; e a autora deve ter presente este preceito
de arte: – toda a cena que não adianta à ação é uma superfluidade.
Feitos estes reparos ligeiros, resta-nos aplaudir do íntimo da alma a nova
obra da autora de Gabriela, cujo alento está recebendo do público legítimos
sufrágios. (ASSIS, 1955, p. 391-392)

Mesmo louvada por uma voz como a de Machado de Assis, é


importante frisar que Maria Ribeiro traz à história da dramaturgia
brasileira uma contribuição muito além de qualquer simples nota –
seja da crítica coetânea à sua obra, seja da atual –, sobretudo por abrir
espaço para a autoria de mulheres num contexto até então absolu-
tamente vedado a sua atuação no manejo da palavra literária que sai
do livro para o palco. Diferentemente da ação esporádica de algumas
das primeiras herdeiras de Maria Ribeiro, como Júlia Lopes de Al-
meida e, mesmo antes desta, Josefina Álvares Azevedo, a matriarca da
dramaturgia de autoria de mulheres no Brasil dedicou-se à produção
de textos para o palco com assiduidade e exclusividade. Se, antes do
sucesso alcançado com a encenação de Cancros sociais, Maria Ribeiro
escreveu copiosamente, após conquistar o público com a encenação
do destino de Marta como afirmação à vida, independente de gêne-
ro, etnia e lugar social, ela continua a escrever e começa, inclusive, a
publicar seus textos teatrais, ainda que uma pequeníssima parte tenha
ido à cena. Em 1879, o Teatro São Luís abre suas portas para mais um
drama de sua autoria, Opinião pública, cuja versão impressa chega ao
público leitor neste mesmo ano. E, além de Cancros sociais, ganham
edição também, como já vimos, o drama Gabriela, em 1868, e ainda
as comédias Um dia na opulência e A ressurreição do primo Basílio, res-
pectivamente, em 1877 e 1878. Eis uma obra e um percurso que são,
portanto, marco de fundação incontornável no processo formativo da
tradição da dramaturgia brasileira no feminino, seja pela continuidade
com que foi produzida, seja pelo fato de ter sido a primeira a publicar-
25
-se como espetáculo, além de ter sido impressa em livro individual e
em obra coletiva.13

Das mães escravizadas e do drama abolicionista

Se a preocupação da autora com o abafamento sobre as brasileiras


do seu tempo interessadas em “poetar ou compor dramas e romances”
está declarada alto e bom som nas suas palavras de introdução a Cancros
sociais, também no conjunto de textos que se conhece da sua obra até
o momento revela-se o desassombro de uma escritora empenhada em
enfrentar publicamente preconceitos imperantes no país, sobretudo de
gênero e etnia, para discutir ideias e apresentar reivindicações sobre sua
realidade social, como também para protestar, às vezes obliquamente,
contra constrangimentos vários impostos às mulheres.
O rótulo de ‘drama abolicionista’, aposto a Cancros sociais pelos raros
estudiosos que o mencionam, não alcança o protesto que neste texto se faz
especificamente contra o lugar social aviltante das mulheres escravizadas
no Brasil oitocentista. Outro autor, vale anotar, já havia feito protesto idên-
tico nos palcos do Rio de Janeiro anos antes de Maria Ribeiro. Em 1860,
o Ginásio Dramático abre suas portas para o drama Mãe, escrito por José
de Alencar no ano anterior, cujo enredo aborda a questão excêntrica da
mulher mestiça tornada posse material do próprio filho. Órfão ainda na
primeira infância, ele a recebe como herança do pai adotivo e é criado por
ela sem saber do vínculo biológico que os unia. No desfecho da trama,
Joana, a mãe-escravizada, se mata, com uma dose de veneno, para poupar
ao filho, um bem-sucedido estudante de medicina, o repúdio social que
o atingiria caso viesse a público o segredo de suas origens.
A julgar pelas palavras de Alencar à própria mãe ao dedicar-lhe o
texto – “Rainha ou escrava, a mãe é sempre mãe” (ALENCAR, 1977,

13
Pela cronologia, esta tradição remontaria a 1797, data em que a “Anônima e Ilustre
Senhora da Cidade de São Paulo” assina Tristes efeitos do amor, Drama em que falam
Paulicéia, a Prudência e a Desesperação na figura de uma Fúria. Sobre esta e outras
duas autoras brasileiras que escreveram teatro no Brasil no século XVIII, Maria
Josefa Barreto e Beatriz Francisca de Assis Brandão, ver ANDRADE, 1996, p.
49-50, MUZART, 1999, p. 75-81, e VASCONCELLOS, 1999, p. 82-109.

26
p. 255) –, a tragédia de Joana explicita o ideal romantizado da mãe que
sacrifica até a própria vida para o bem do filho. Nesse sentido, parece
justificar-se a crítica de que Alencar, nada preocupado com o proble-
ma da escravidão e suas implicações morais, jurídicas e políticas, teria
escolhido uma mulher escravizada como heroína do drama para mos-
trar uma situação-limite que lhe facilitava comprovar exemplarmente
o alcance do amor materno. No entanto, o autossacrifício de Joana
sinaliza também outra postura de Alencar, que, tudo indica, “gostaria
que a escravidão, juntamente com a sua herança negra, sumisse de
repente da vida brasileira, num passe de mágica que o teatro – não a
realidade histórica – mostrava-se capaz de fazer”, como aponta Décio
de Almeida Prado (1999, p. 85).
Por outro lado, ainda que Magalhães Júnior possa ter acertado ao
julgar que o desfecho trágico de Mãe, “longe de ser um grito de revolta
contra a escravidão [...], não constitui senão uma antecipação daquela
atitude conformista, ou melhor, reacionária, do homem público ligado
ao Partido Conservador” (MAGALHÃES JÚNIOR. apud MENDES,
1982, p. 59), não nos deve escapar o fato, anotado por Evaristo de
Morais, de que Alencar “escrevera seu drama numa época em que era
frequente se cochichar contra ricos senhores, que vendiam os próprios
filhos, havidos de escravas; numa época em que todas as fatalidades
da tragédia grega eram possíveis, mercê do cativeiro” (apud HESSEL;
RAEDERS, 1979, p. 125-126).
Anote-se ainda, como fez Robert Slenes (1997), que, no início da
década de 1850, Alencar atuara no Instituto dos Advogados Brasileiros
(atual OAB) como assistente de Caetano Soares, jurista que, em 1851,
indicara (já pela segunda vez) a necessidade de uma lei que alforriasse
a mãe escravizada e o filho tido com o senhor. Além disso, continua
Slenes, em 1859, ano em que escreve Mãe, Alencar teria estado for-
çosamente atento aos debates jurídicos e às resoluções do IAB sobre
essa questão, pois, além de sócio do Instituto, desde o começo desse
ano ocupou os cargos de chefe de seção e consultor do Ministério da
Justiça. Inspiração, portanto, não lhe faltou.
É o mesmo estudioso que faz referência, ainda, a um drama real
ocorrido em Campinas, em 1861, em que o protagonista, Isidoro Mas-
carenhas, que recebera a própria mãe na herança paterna, concede-
-lhe a alforria ao chegar à maioridade (SLENES, 1997). Apontando
27
para a natureza política de Mãe, Slenes desce a minúcias e anota que
Alencar ambientou a peça no Rio de Janeiro, no início de fevereiro de
1855, justo o local e a data de um Acórdão em que a “família escrava”
do senhor era enfaticamente destituída do seu direito à liberdade.
A metáfora que reveste o suicídio de Joana não podia ser mais clara,
como indica o autor: “é a esperança de liberdade de todas as escra-
vas na sua situação que é assassinada pelo Acórdão” (SLENES, 1997,
p. 261-262). Ressalta ainda Slenes que, no tocante ao último ato de
mãe, até o dia em que transcorre a ação é exatamente o mesmo da
assinatura desse Acórdão (6 de fevereiro), no qual se diz com todas
as letras: “o ajuntamento ilícito do senhor com a escrava não é razão
suficiente que importe a liberdade da escrava e dos filhos posteriores
ao ajuntamento ilícito, depois da morte do senhor” (SLENES, 1997,
p. 261). Se, portanto, mais do que retratar e discutir aquela aberração
social gerada pelo regime escravista, Alencar pretendeu corrigi-la, sua
frustração deve ter sido enorme, pois Mãe não contribuiu para produzir
sequer uma mudança na aplicação da lei existente. É forçoso, aliás,
admitir que a chance de que isso viesse a acontecer era de fato remota,
até porque, como conclui o mesmo Robert Slenes, “a força política
dos senhores ainda era, e continuaria a ser por bastante tempo, uma
barreira forte contra uma reforma na área, que na verdade explodiria
as bases do poder privado” (SLENES, 1997, p. 262-263).
Não por acaso, Maria Ribeiro retoma a questão e, poucos anos
depois, em 1865, traz de volta ao palco do Ginásio o drama da mãe-
-escrava. Marta, a heroína de Cancros sociais, é uma mulher escravizada
‘parda clara’ que, iludida com promessas de liberdade e casamento,
acaba seduzida por um patife e torna-se mãe de um menino ‘branco’,
que lhe é arrancado dos braços e vendido por um comparsa do pai do
menino. Ignorando totalmente sua ascendência afro-brasileira, Eugê-
nio cresce julgando-se órfão e, já adulto, empresário bem-sucedido,
casado com Paulina, descobre que, ao negociar a posse de uma mulher
escravizada para alforriá-la em comemoração ao aniversário de 15 anos
de sua filha, comprara ninguém menos que a própria mãe. A aproxima-
ção com a trama envolvendo os protagonistas de Mãe salta aos olhos.
Ambos os textos denunciam a anomalia social tornada possível pelo
sistema escravista – mães que são vendidas e/ou compradas pelos pró-
prios filhos. De feição abolicionista, a trama tecida por Maria Ribeiro
28
ganha contornos específicos por recriar – de uma perspectiva crítica
em relação à privação do direito da convivência familiar – a experiência
de mulheres negras e mestiças no Brasil escravista relacionada com a
exploração sexual pelo homem branco, que resultou, com frequência
espantosa, na comercialização de mães por seus próprios filhos.
Depois de alguns ‘golpes de teatro’ e muitas reviravoltas, reco-
nhecimentos e coincidências que beiram o inverossímil, os dois vilões
de Cancros sociais, Forbes e Medeiros, que tanto sofrimento causaram a
Marta e Eugênio, recebem, de um lado, seus castigos, enquanto mãe
e filho, finalmente reunidos outra vez, desfrutam da doce harmonia
familiar, ao lado de Paulina e Olímpia. Frente a esse desenlace – um
happy ending digno de um discípulo de Pixérécourt, o mestre do me-
lodrama –, percebe-se que Maria Ribeiro traça uma linha paralela à já
traçada por Alencar, tomando, no entanto, a direção exatamente oposta.
Eugênio, ao contrário de Jorge, hesita em reconhecer publica-
mente que era filho de uma mulher escravizada. Torturado pelo pavor
de assumir a mãe-escrava e com isso perder o patrimônio e o tesouro
familiar que construíra até ali, o filho de Marta adota um comporta-
mento estranho, acabando por levantar as suspeitas da esposa, que o
acusa de estar acolhendo uma antiga amante sob o teto de sua família.
Quanto a Marta, bem ao contrário de Joana, sequer cogita a opção pelo
suicídio, o que não a identifica como mãe desnaturada, incapaz de dar
a vida por seu filho. O amor materno, segundo Maria Ribeiro, não tem
diferença daquele professado por Alencar: “a mãe é sempre mãe” e é
capaz de tudo pelo bem do filho. Marta assim o explicita. Plenamente
resignada a afastar-se de Eugênio para evitar sua ruína conjugal, sen-
tencia: “Só para uma mãe todos os sacrifícios são possíveis! Sei o que
me cumpre fazer pela tua felicidade” (RIBEIRO, 1866, p. 105). Sair
da casa do filho, sim, mas não sair da vida, como fizera a protagonista
alencariana. Para Maria Ribeiro, impunha-se manter viva, junto com
Marta, a esperança de se extirpar completamente da sociedade aquele
“cancro que solapa[va] a base de nossa emancipação” (RIBEIRO, 1866,
p. 26), expressão usada por Matilde, personagem feminina que faz o
papel de porta-voz da dramaturga.

29
Dramaturgia e luta emancipatória feminina

Para além dessa perspectiva marcadamente emancipatória, em Can-


cros sociais Maria Ribeiro estende sua defesa em torno das mulheres e seus
direitos como cidadãs, assumindo uma postura de vanguarda, seja em
relação à ideia de que o divórcio não implicava a desonra feminina, seja
quanto aos prejuízos advindos da prática então vigente dos casamentos
de interesse. Por outro lado, soante à moral sexista da época, a drama-
turga, deixando-se conduzir por contradições próprias de um momento
histórico de muitas transformações, não se mostra convencida sobre a
força feminina relativamente à reparação da honra perdida, mesmo em
circunstâncias inevitáveis. De toda sorte, o raisonneur do drama, na pele de
Matilde, revela, letra por letra, a convicção da autora de que os homens,
para além de serem “a causa primordial de todos os erros da mulher”,
eram também “os seus mais implacáveis juízes” (RIBEIRO, 1866, p. 16).
É em torno desta ideia, de serem os homens os responsáveis pe-
los descaminhos das mulheres, que Maria Ribeiro estrutura a trama
do citado Gabriela, já apontado como “uma espécie de elogio à esposa
honesta” (FARIA, 1993, p. 254). Nele, a autora lança-se em defesa da
mulher vítima de calúnias e das circunstâncias, injustamente penali-
zada pelo único e verdadeiro culpado de todos os seus infortúnios – o
próprio marido, um oficial da Marinha, que viaja por longo tempo,
deixando-a sem recursos para manter a si e a filha. Gabriela, a heroína,
aceita a amizade de uma alcoviteira e, embora mantenha a honra, passa
a ser vista como ‘decaída’. O marido, de volta da viagem, dá crédito aos
rumores e separa-se dela. Porém, ao receber uma carta do canalha que
tentara, em vão, conseguir os favores sexuais de Gabriela, reconhece
sua injustiça e busca a reconciliação, confirmando-se a integridade
da protagonista. Retomando o enredo escrito por Augier, citado aci-
ma, Maria Ribeiro propõe um final transgressor, mostrando que, se
a esposa se vira tentada a buscar afeto extraconjugal, era antes pela
displicência do marido, que às vezes se descuidava até da manutenção
da família. Por isso mesmo, parecia estar claro: o perdão era para ser
pedido pelos homens, não pelas mulheres.
Nessa mesma linha de pensamento, ao retratar, em chave cômi-
ca um tanto distanciada do modelo sisudo da peça realista francesa,

30
o cotidiano de uma família que, arruinada, tentava manter o padrão
de vida luxuoso e ostensivo à custa de infindáveis dívidas, em Um dia
na opulência, Maria Ribeiro reprova frontalmente o comportamento
desregrado, perdulário e imaturo da protagonista, senhora baronesa da
Engenhoca, como também o de seu marido, atribuindo, porém, a ele
a maior parcela de culpa. O raisonneur da comédia, pela voz do cônego
Silva, irmão da baronesa, sentencia, categoricamente: “um marido que
tem juízo e preza a sua honra não pactua com as extravagâncias de sua
mulher; obriga-a a trilhar o caminho da felicidade real e não a secunda
nos seus desvarios.” (RIBEIRO, 1877, p. 218.)
Se, no período mediado pela atividade dramatúrgica de Maria
Ribeiro, outras brasileiras viveram processos criativos semelhantes ao
experimentado por ela e escreveram textos para irem à cena, não há,
por enquanto, registro conhecido. Como hipótese, arriscaria falar de
um caso – o da escritora Violante de Bivar (1816-1875), a quem, aliás,
Maria Ribeiro dedicou o prefácio que escreveu ao seu Cancros sociais.
Ligada ao meio literário e teatral por laços familiares e também por ter
sido diretora d’O Jornal das Senhoras no lugar de Joana Manso de Noro-
nha, a filha do já citado conselheiro Bivar traduziu vários textos teatrais
franceses, italianos e ingleses, publicados em 1858. Não seria impro-
vável que o aprendizado dramatúrgico advindo de sua produção como
tradutora lhe tenha desafiado à prática autoral nesse campo, a exemplo
do que se sabe quanto a Eugênia Câmara (1837-1874), atriz portuguesa
radicada no Brasil, cuja experiência na escrita do drama Uma em mil,
para além da aprendizagem que lhe veio do palco, teria resultado de sua
experiência de tradutora (ANDRADE, 1996 e 2001a). No entanto, os
originais que Violante haja, porventura, escrito, terão virado pó em al-
gum fundo de gaveta ou, talvez, nem chegaram a sair de sua cabeça para
o papel – tal como os de Judith Shakespeare, dramaturga elisabetana,
irmã de uma das maiores figuras da dramaturgia ocidental, criada por
Virginia Woolf em Um teto todo seu (WOOLF, 1985). O destino trágico
da personagem, suicida aos 20 anos sem ter escrito um único texto para
o palco, apesar do talento e predileção pela dramaturgia partilhados com
William, metaforiza a pressão sociocultural do seu tempo no sentido de
minar iniciativas intelectuais voltadas às práticas de escrita autoral das
mulheres, deixando no ar a inquietação quanto à soma incontável de
mulheres que, ao longo de séculos, tanto na Europa quanto do lado de

31
cá do Atlântico, terão interrompido ou anulado seus percursos criativos
no campo da dramaturgia (ANDRADE, 2018).
A produção dramatúrgica de Maria Ribeiro emerge, pois, como
semente ímpar e de longa germinação que, por diferentes razões, viria
a proliferar, de fato, somente na geração seguinte. Em outras palavras, a
travessia do lugar de espectadora/consumidora de teatro para o de autora/
produtora de dramaturgia, inaugurada por Maria Ribeiro, só começaria
a ser feita por outras brasileiras na geração posterior à sua, de um lado
devido à onda de lubricidade do chamado teatro ligeiro, que invade a
cena brasileira a partir de 1865 e, em oposição à sisudez do teatro sério,
reprime iniciativas femininas espelhadas em Maria Ribeiro no campo da
dramaturgia por cerca de duas décadas; de outro lado, a onda emanci-
patória, que começara a se formar na primeira metade do século, vinha
ganhando corpo robusto junto à nova geração de mulheres brasileiras.
Nascidas e educadas, em média, 25 anos mais tarde que Maria
Ribeiro – portanto, em plena convivência com a demanda feminista,
impulsionada pela militância de escritoras na imprensa –, muitas des-
tas autodenominadas mulheres modernas14 iam à luta pela emancipação
feminina, movimento que incluía, desde meados dos anos 1870, a ideia
de que, além do magistério, todos os campos profissionais lhes seriam
facultados, entre os quais o das artes, em particular a interpretação
teatral (BERNARDES, 1988) e, por extensão, a escrita dramatúrgi-
ca. Da afirmação, feita no jornal A Família, em 1889, por uma delas,
Revocata de Melo (1860 ou 1862[?]-1945), jornalista e dramaturga
gaúcha (ANDRADE, 1996, 2001a),15 sobre a excelência do desempe-
nho da atriz Apolônia Pinto (1854-1937), depreende-se que jornalistas
brasileiras de finais do Oitocentos tanto ainda acreditavam na função
moralizadora do teatro como a defendiam (ANDRADE, 2001a). Como
sustentou a escritora em seu artigo, o percurso de glória no palco re-
sultava também da afinidade entre intérprete e a obra criada por quem
buscava “dar ao povo um manancial de educação moral, salientando

14
Uso a expressão alusiva ao título da coletânea publicada em 1891 por Josefina
Álvares de Azevedo, A mulher moderna, e reeditada como volume de abertura da
Coleção Escritoras do Brasil (AZEVEDO, 2018).
15
Para mais informações sobre essa escritora, cf. SCHMIDT, 1999.

32
com vivas cores toda a mácula deixada à sociedade pela corrupção, pelo
vício, todo aplauso alcançado pela prática do bem” (MELO, 1889, p. 4).
E, assim, transitando da militância na imprensa para a escrita de
textos para o palco, muitas brasileiras da geração seguinte à de Maria
Ribeiro se irmanam num esforço que faria frutificar a semente lançada
por ela, embora sem intenção de ordem programática em torno de uma
ideia de continuidade, em que se conjugasse consciência coletiva de
talento e de propósito para a formação de uma dramaturgia de autoria
de mulheres. Isso fora até sugerido por Joana Manso de Noronha,
ainda nos inícios da década de 1850, e, na década seguinte, em 1866,
também dito com todas as letras pela própria Maria Ribeiro, como
transcrito acima. De todo modo, acompanhando o movimento de ino-
vação nas formas de pensar os modos de ser mulher em suas relações
com o mundo à sua volta, em especial seus direitos nos vários espaços
sociais – familiar, profissional, cultural –, verifica-se que, no intervalo
entre 1879, ano de encenação do último texto escrito por Maria Ribeiro,
e 1917, em que se publica a coletânea Teatro, de Júlia Lopes de Almeida,
ou seja, num período de duas gerações, viriam a lume, do Nordeste ao
Sul do país, os primeiros rebentos da germinação iniciada em meados
da década de 1850 pela autora de Cancros sociais (ANDRADE, 2001a).

Do longo e duradouro silenciamento

Ao longo de aproximadamente meio século, dezenas de textos


de teatro foram então escritos, alguns encenados, outros (poucos)
publicados, por cerca de meia centena de autoras brasileiras, conforme
sistematizei no Índice biobibliográfico de dramaturgas brasileiras do século
XIX (ANDRADE, 1996). Um desses textos, o drama Moema, escrito
pela jornalista e também romancista, contista e tradutora de textos
teatrais Corina Coaraci, não se sabe exatamente se em coautoria com
seu marido, consta como encenado em 1885, no Imperial Teatro Pe-
dro II (ANDRADE, 1996).16 O espetáculo teria passado despercebido,

Há divergência também quanto à data de sua encenação: embora conste o ano de


16

1885 no cartaz encontrado no arquivo da autora, outra fonte indica o ano de 1897

33
inclusive na imprensa, como se depreende de nota no Correio do Povo,
assinada pelo cronista da seção “Flocos”, ninguém menos que o célebre
dramaturgo Artur Azevedo (1855-1908).17 Desejando sucesso à repre-
sentação da comédia O voto feminino, escrita pela também jornalista
Josefina Álvares de Azevedo, anunciada para breve, o autor de O tribofe
alude à ausência do feminino como autoria na cena teatral da cidade
desde que subira ao palco, dez anos antes, um texto de Maria Ribeiro:

Há muito tempo que não tínhamos nos nossos teatros um trabalho de


mulher brasileira. O último foi um drama da falecida Maria Ribeiro, re-
presentado há alguns dez anos no teatro S. Luiz, pela companhia de Emília
Adelaide. [...] Faço votos para que a comédia de Josefina de Azevedo agrade.
Se os que trabalham pela prosperidade do teatro nacional tiverem a seu lado
esse grande elemento – o belo sexo – mais depressa poderão alcançar o seu
desideratum.
A. (Apud [AZEVEDO, Josefina Álvares de], 1890, p. 7)

O lapso, aparente, cometido por Artur Azevedo em relação a


outro “trabalho de mulher brasileira” encenado, como se registra,
antes da comédia de Josefina Álvares de Azevedo – reduzindo, assim,
o intervalo referido por ele, de dez para cinco anos –, parece confirmar
sua recepção na cena teatral do período como “trabalho de homem”, repe-
tindo aqui a expressão usada por Maria Ribeiro, grafada com itálico, no
prólogo a Cancros sociais. Desse modo, a comédia O voto feminino, para
além do estatuto como documento histórico significativo no contexto
da gênese do movimento sufragista brasileiro,18 emerge como elo entre

como o de sua estreia, que por fim não ocorreu, segundo informa Artur Azevedo em
artigo publicado no jornal A Notícia, no qual o dramaturgo refere-se a Corina como
autora de dois dramas: Moema e O novo Guarani, este último escrito em coautoria
com seu marido (VASCONCELLOS, 1999).
17
Sobre os pseudônimos e assinaturas usadas por Artur Azevedo e sua atuação
como cronista do referido jornal, cf. ARAÚJO, 1994.
18
A comédia O voto feminino, inserida na coletânea A mulher moderna (AZEVEDO,
2018), situa-se historicamente com especial relevância ainda tanto como produ-
ção literária representativa de uma fase embrionária do teatro político no Brasil
como também dos primeiros sinais, na cena brasileira, das tentativas de solução

34
duas gerações da tradição literária iniciada por Maria Ribeiro, cujas
raízes começariam a se espalhar, não por acaso, por outros terrenos do
país a partir daquele ano de sua encenação. Afinal, apesar do expres-
sivo silêncio da grande imprensa do Rio de Janeiro provocado, como
se pode supor, pelo impacto da demanda feminista e de um ativismo
muito explícito levados ao palco do Teatro Recreio como ‘cenas da vida
real’ vivida naquele ano de 1890,19 anote-se que o texto da comédia
de Josefina de Azevedo – publicado antes e depois de subir ao palco,
respectivamente, nos rodapés de A Família e inserido na coletânea A
mulher moderna – teria ampla circulação também em outros centros
além do Rio de Janeiro, promovida pela ação crescente do movimento
feminista nas redes formadas pelas jornalistas espalhadas Brasil afora.
O vínculo geracional entre as duas dramaturgas configura-se,
para além da constatação acima, na escolha de Josefina pelo gênero
comédia, intermediada, como suponho, pela de Maria Ribeiro em
direção ao cômico quando ela, já perto dos 50 anos de idade, estaria
mais confiante para desprender-se do padrão fixado pela escola realista
francesa. Em Um dia na opulência, por exemplo, seu diálogo com Luxo
e vaidade, de Joaquim Manuel de Macedo (1820-1882), não engessa
sua militância em exorcizar os vícios advindos do espírito de ostenta-
ção que, desde então, fazia reféns na nossa sociedade, e é no riso que
aposta como saída possível para superar a rigidez e a monotonia do
modelo francês.

da crise formal do drama eclodida na Europa, cf. ANDRADE, 2011.


19
À exceção do artigo de Corina Coaraci, de que transcrevi breve fragmento acima,
no Cidade do Rio (e transcrito na íntegra por Josefina de Azevedo em sua folha),
e de outro, publicado no Diário do Comércio, em que se julga o fato de uma mu-
lher ter “a desgraça de escrever romances, dramas e comédias” – o qual, referido
como “ataque direto e gratuito a uma classe inteira de trabalhadoras honestas e
convencidas do valor do seu trabalho” (COARACI, apud AZEVEDO, 1890, p.
1) pela autora de Moema e O novo Guarani, foi objeto de suas considerações –,
soma-se o publicado em O País, que registra com simpatia, mas sem quaisquer
comentários ou análise, a estreia da “nossa inteligente colega” e refere-se a sua
comédia como “um trabalho feito com graça, desenvolvido com arte e que deve
ter animado a autora a prosseguir no gênero literário a que agora com tão belo
auspício se dedica. Houve chamados à cena à autora e aos intérpretes, que se
houveram de modo digno” (apud AZEVEDO, 1890, p. 3).

35
Talvez, mais do que discutir ideias e levar ao palco as manifesta-
ções da consciência feminista em formação, Maria Ribeiro estivesse
propondo, nas entrelinhas da divertida comédia, uma inovação formal
para aquele gênero teatral, híbrida e menos maçante que a da comédia
realista importada, que, ao propor um olhar menos carrancudo em
cena, talvez viesse a ter mais eficiência. Josefina de Azevedo, por sua
vez, apoiada nessa experiência da antecessora, daria também, de algum
modo, seguimento à experiência de Martins Pena no desenvolvimento
da comédia de costumes. Em meio à tensão entre as limitações formais
de representação da demanda sufragista no espaço da estética teatral
burguesa e, de outro lado, finalidades políticas voltadas para a inclusão
do direito eleitoral das mulheres na nova constituição brasileira, a her-
deira primogênita de Maria Ribeiro conseguiria delimitar, com O voto
feminino, uma zona de negociação entre a forma da comédia realista de
inspiração francesa e a da comédia de costumes à brasileira, já então
contagiada pelo gênero musicado europeu adaptado aos trópicos pelo
engenho de Artur Azevedo (ANDRADE, 2011).
É certo que marcar aqui este vínculo entre duas gerações de
mulheres-dramaturgas – sugerindo que, caso O voto feminino não ti-
vesse sido uma experiência episódica no percurso dramatúrgico de
Josefina de Azevedo, ela o teria construído, provavelmente, à imagem
e semelhança do percorrido por Maria Ribeiro no ciclo final de sua
produção – fortalece a identificação de ambas, cada uma à sua maneira,
como protagonistas do processo formativo da dramaturgia brasileira de
autoria de mulheres, com atuação decisiva na articulação embrionária
do papel que esta dramaturgia e a cena teatral desempenharam na
afirmação da cidadania das mulheres nas primeiras décadas do século
XX e mais tarde na segunda metade dele, no contexto da chamada
Nova Dramaturgia, eclodida em 1969.20

Neste final da década de 1960, uma nova geração interessada em escrever para o
20

palco irrompe em bloco na cena urbana de São Paulo surpreendendo público e


crítica com as montagens de Fala baixo senão eu grito, À flor da pele e As moças, a partir
de textos, respectivamente, de Leilah Assumpção, Consuelo de Castro e Isabel
Câmara, dramaturgas estreantes que se lançavam ao lado de alguns dramaturgos
também iniciantes. Para além de configurar um movimento revelador da ma-
turidade do palco brasileiro àquela altura, essa irrupção representou a expressão

36
Todavia, apesar dessa clara intenção, importa frisar aqui, mais uma
vez, o compromisso crítico e ético no sentido de marcar, com letras
em caps lock e negrito, com realce de cor e, se possível, com luzes de
neon, o nome desta Maria21 como o da brasileira que trouxe para a
vida da cena teatral de nosso país uma certa linhagem de mulheres,
a linhagem das mulheres-dramaturgas, que, produzindo, de geração
em geração, um volume farto e generoso de histórias de si, dos seus e
do mundo, têm se multiplicado em muitas Marias do século XX para
cá – Rachel de Queiroz, Clô Prado, Maria Jacintha, Edy Lima, Lei-
lah Assumpção, Consuelo de Castro, Isabel Câmara, Maria Adelaide
Amaral, Renata Pallottini, Hilda Hilst, para trazer aqui uma pequena
amostra de uma genealogia ‘autorizada’ por certa crítica, inclusive a
voltada para os estudos da autoria de mulheres.
Muitas outras Marias, para além das cerca de cinquenta referidas
acima como continuadoras, ainda no século XIX, daquela primeira,
têm sido mantidas em situação ‘clandestina’ no quadro autoral do
nosso teatro. Uma nanogenealogia ‘(des)autorizada’ e circunscrita à
região Nordeste de nosso país, elaborada em meados dos anos 2000
(ANDRADE, 2010), incorpora os nomes de Maria Eleonora Montene-
gro, Aglaé Fontes, Ângela Linhares, Celly de Freitas, Vanda Phaelante,
Zilma Ferreira Pinto, Clotilde Tavares, Aninha Franco, Haydil Linha-
res, Cláudia Guimarães, Lúcia Rocha, Cleise Mendes, Rosa Travan-
cas, Adelice Souza, Cláudia Barral, Mariana Freire, Paola Mammini
e, last but (definitivamente) not least, o de Maria de Lourdes Nunes
Ramalho (1920-2019). Maria que, ao longo de oito décadas e alguns

coletiva da competência autoral de mulheres-dramaturgas, com impacto decisivo


no ressurgimento do movimento feminista no Brasil, ao entrecruzar o explici-
tamente social e político com a especificidade das demandas ligadas a relações
de gênero e do feminismo, que então ressurgiam na Europa e nas Américas e,
portanto, no contexto brasileiro; cf. VINCENZO, 1992.
21
Agradeço ao querido amigo e companheiro de pesquisas Diógenes Maciel a
inspiração da metáfora onomástica em relação às dramaturgas e sua condição
de clandestinidade em alusão ao primeiro nome de Maria Angélica Ribeiro e
Maria de Lourdes Nunes Ramalho, dramaturgas que tanto nos têm alegrado e
ensinado nos últimos mais de vinte anos de pesquisas sobre suas vidas e obras,
a quem somos muito obrigados.

37
anos, escreve e atua como empreendedora cultural, no meio teatral e
na escola, à volta de fazer viver seu teatro, Lourdes Ramalho constrói
um percurso dramatúrgico que honra a tradição do teatro brasileiro,
em particular a iniciada pela desfaçatez da jovem Maria oitocentista,
seja pela escrita incansável de quase cem títulos, seja por assumir a
sina, dada a esta linhagem de mulheres, de desconfinar, pela palavra
dramatúrgica, o sertão subjetivo da alma de toda a gente reinventado
por elas em suas personagens.22
Reiteradas vezes, nos meus muitos anos de pesquisa, tenho me
espantado ao apurar que o fato de ‘cumprir a sina’ não vem garan-
tindo às mulheres-dramaturgas, salvo casos individuais, sair do lugar
de clandestinidade a que têm estado exiladas por quase dois séculos,
apesar do percurso tão longo quanto farto em contribuições ao desen-
volvimento da dramaturgia e também da cena teatral no país. Tenho
sempre chamado atenção para tal situação, pois ela parece ser um des-
dobramento nocivo da condição ‘marginal’ dos textos de dramaturgia
de autoria de mulheres no cânone brasileiro: esta sorte de textos não
circula como material impresso ou mesmo em qualquer outro meio,
em razão de uma clara prática discriminatória do mercado editorial.
Em outras palavras, para esta parte de nossa produção literária e teatral,
um prejuízo grave da condição de ‘fora da lei’ é não poder adentrar os
muros da ‘cidade editorial’, ou seja, não ser publicado e, portanto, não
participar da vida pública e da própria sociedade. É, portanto – tendo
nascido –, existir sem estar vivo.
Tirar Maria Ribeiro, e também nossas outras Marias, das notas
de rodapé da história do teatro brasileiro e, muito concretamente, de-
senvolver estudos e análises apuradas de seus textos (em vez de breves
apontamentos, por exemplo, em antologias e dicionários de teatro) é
tarefa justa e necessária – “é sina que a gente traz e tem de cumprir”
(RAMALHO, 2005, p. 24), nas palavras de Lourdes Ramalho pela boca
de uma de suas personagens do antológico As velhas. Ou seja, é sina
que a gente comprometida traz e tem de cumprir com ética, promo-

Sobre a vida e a obra de Lourdes Ramalho, ver a edição comemorativa do seu


22

centenário, em que se publica um de seus inéditos, Chã dos esquecidos, RAMA-


LHO, 2020.

38
vendo a circulação de sua produção estética e, por meio desta ciranda,
fazendo avançar a crítica e o conhecimento sobre a dramaturgia e o
teatro que se faz no Brasil e, tão importante quanto, abrindo veredas
para que esta produção venha a ser para o que nasceu: matéria estética
viva e movente entre o verbo e a ação na voz e no corpo da atriz e do
ator, realizada num espaço-tempo partilhado por um público como
possibilidade de recriação da realidade de si e do mundo a partir de
processos de autorreconhecimento.
Nesse sentido, mais do que apenas promover a ocupação formaliza-
da de Maria Ribeiro em seu lugar de fundadora da dramaturgia brasileira
de autoria de mulheres, a par do que temos, por exemplo, em relação
a Martins Pena – afinal reconhecido criticamente como iniciador da
dramaturgia brasileira –, importa que seus textos estejam ao alcance das
mãos e dos olhos de leitoras e leitores, em edições de ampla circulação
como a que ora vem a público, e sejam conhecidos e consumidos pela
leitura em diferentes modalidades e mídias, seja a individual, a perfor-
mativa, aquela feita para tornarem-se espetáculo e outras, combinadas,
por exemplo, com tecnologias digitais e gamificação.
Para além da sagração, a fim de se evitarem riscos de sacraliza-
ção burocrática da figura ancestral, entronizada em altar e intocável,
importa profaná-la, a ela e a sua obra, no sentido de ler seus textos,
encená-los, discuti-los e adaptá-los, atualizá-los e recriá-los, enfim,
brincar/jogar com eles, no palco, na rua, na sala de aula, em prédios
históricos ou onde mais se queira, trazendo-os para dentro da vida,
como alimento de todo dia.
Está na mesa!! Sirvam-se à vontade!! Bom apetite!!
E viva a Maria!!

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minina no palco brasileiro contemporâneo. São Paulo: Perspectiva:
EDUSP, 1992. (Coleção Estudos; 127)

43
Quand une femme publie un livre elle se met tellement dans la
dependance de l’opinion, que les dispensateurs de cette opinion
lui font sentir durement leur empire.

Staël
Ao Ex.mo Senhor Conselheiro

Doutor ANTONIO FELIX MARTINS

D.ª Maria Ribeiro


À Ex.ma Senhora

D.ª Violante de Bivar

Minha senhora – Isto não é um prólogo; é apenas uma home-


nagem à memória de uma criança e de dois velhos: meu filho, meu
mestre e o pai de V. Ex.ª.
Para justificar, porém, esta homenagem, que me empenho em tri-
butar, permita-me V. Ex.ª que, distraindo-a dos seus estudos e labores,
eu ocupe a sua atenção evocando alguns acontecimentos do passado,
que, ainda dolorosos, são sempre memoráveis ao meu coração.
Em maio de 1855, possuía eu um lindo filhinho de olhos azuis
e cabelos loiros, o qual já retribuía com os seus sorrisos e carícias de
inocente os meus extremos de mãe. Um dia o meu anjinho agitou as
asas brancas, e lá se foi a tomar lugar aos pés de Deus, entre os seus
irmãos do céu!
Entregue à dor que a sua ausência me deixou, eu só ambicionava
o lenitivo de ir reunir-me ao filho que tanto amei e tenho amado.
Em vão pretendi iludir as minhas saudades, procurando esquecer a
formosa estrelinha que despontara no céu do meu viver de mãe. A fe-
licidade havia desaparecido!
Enfermei gravemente; e, quando os esforços da ciência roubaram-
-me a esperança de acompanhar meu filho, ficou-me a nostalgia da

51
maternidade, inspirando-me o mais invencível tédio a tudo que me
cercava: eu só tinha metade do meu viver.
Busquei alivio às minhas pungentes mágoas em toda a natureza;
mas a aurora e o dia, as flores e os passarinhos, o pôr do sol e a noite,
as estrelas e a imensidade, a lua e o mar mais avivavam o meu sofrer!
Vigor e ânimos se abatiam cada vez mais sob a pressão das minhas
saudades!... Restavam-me, no entanto, duas filhas cá na terra, e para
elas era mister viver.
Quis distrair-me e, para consegui-lo, tentei dialogar um drama,
para o que me sentia com alguma vocação.
Na idade de 12 anos, quando tudo sorri à imaginação de uma
menina, começara eu a escrever as minhas impressões de criança –
saudações a amigas e alguns versinhos aos dias aniversários das minhas
camaradas. Com o tempo, a prática e a madureza do espírito, alguma
coisa com mais jeito ia fazendo; até colaborei em mais de um perio-
dicozinho, dos quais, felizmente, já quase ninguém se lembra!
A consequência do meu tentâmen foi o original em cinco atos –
Guite ou a feiticeira dos desfiladeiros negros.
Sem pretensões, e sem nutrir a menor ambição de louvores do
público ou da imprensa, e só para satisfazer à vontade de meu marido,
remeti o meu drama ao Conservatório Dramático, do qual era então
presidente o Sr. conselheiro Diogo Soares da Silva de Bivar.
Poucos dias depois, e por intermédio do 1º secretário o Sr. F. C.
da Conceição, recebi o meu trabalho aprovado e generosamente dis-
tinguido, com palavras de inestimável favor que o Sr. conselheiro Bivar
juntara ao seu despacho!
O inesperado obséquio animou-me a prosseguir nestas tentati-
vas, que, distraindo-me, tornavam assim menos doloridas as minhas
íntimas saudades, e mais dois ensaios apareceram em 1856 – Paulina
e A aventureira de Vaucloix –, dramas originais que tiveram a fortuna
de também serem obsequiosamente acolhidos pelo Conservatório,
sendo o despacho do último ainda acompanhado de benevolentes
expressões de louvor do Ex.mo presidente, o qual, cumpre aqui dizer-
-se para muitos, nem sequer de vista me conhecia.
Incômodos de família privaram-me de continuar a escrever os meus
ensaios. Um dia, porém, em 1858, lembrei-me dos despachos do Sr. con-
52
selheiro Bivar. Daí a quinze dias oferecia eu a um amigo – amigo como
poucos sabem ser, e que nunca me lisonjeara – um drama original em
cinco atos, escrito expressamente para dedicar-lho no seu dia natalício.
O meu amigo, então secretário do Conservatório, distribuiu o
meu drama, para obsequiar-me, ao censor mais ríspido e intolerante que
conhecia, e, por consequência, o mais imparcial em suas opiniões.
O anjo sem asas foi louvado pelo censor austero, merecendo depois a
aprovação das pessoas que o leram ou ouviram a sua leitura.
Em seguida escrevi os originais D. Sancho em Silves (histórico),
Cancros sociais e Gabriela, dramas; e as comédias: Cenas da vida artística,
Um dia na opulência, A cesta da tia Pulquéria, O poder do ouro, Cancros do-
mésticos, O onfalista, etc., tendo anteriormente escrito As luvas de pelica.
O parecer favorável de alguns amigos competentes despertou-me
as aspirações, e desejei apresentar-me ao juízo público.
Em março de 1863 a Sociedade Dramática, que então trabalhava
no teatro do Ginásio, levou oficiosamente à cena o meu drama Ga-
briela, que, para o cumprimento de uma promessa, escrevi ao correr da
pena, pois devia representar-se em benefício da atriz D.ª Gabriela da
Cunha em dia já designado.
Em maio de 1865, dez anos depois da morte de meu filho e do
primeiro louvor do Sr. conselheiro Bivar, também no Ginásio, pela
companhia dirigida pelo poeta-artista o Sr. Furtado Coelho, foi repre-
sentado com todo o esplendor o meu drama Cancros sociais.
Não devo talvez rememorar agora os sucessos obtidos por estes
meus trabalhos, nem tenho expressões para manifestar meu reco-
nhecimento infindo. Só posso confessar que nunca imaginei ser tão
delicadamente acolhida e altamente elevada pelo público e por toda
a imprensa fluminense, a qual espontaneamente me honrou de um
modo grandíloco e notável. Sejam provas do meu perdurável sentir
estas palavras, já que não pude cristalizar as lágrimas de satisfação,
vertidas após as minhas horas de esplêndidas ovações, para erguê-las,
como a imagem da gratidão, à memória de tantos favores – favores
bem pouco vistos na cena brasileira.
Não são estas palavras arroubos de vaidade, que nunca tive, nem
protestos para novos triunfos: rosas e louros sempre entremeados das
sentidas saudades de meu filho; aplausos que me elevavam com o mais

53
íntimo sentimento à região dos justos, por onde deve pairar o espírito
do Sr. conselheiro Bivar.
Em todas as minhas noites de flores e de bravos e, especialmente,
naquela para mim muito memorável, em que me foi entregue, com o
diploma de sócia honorária, o eloquente e delicado mimo da socieda-
de Ensaios Literários, recordei-me de um outro respeitável e ilustre
velho, ao qual devo tudo quanto valho e tenho adquirido no torneio das
letras: meu mestre; o amigo e companheiro de armas de meu pai, o
Sr. brigadeiro Antônio Joaquim Bracet, que, no campo da vitória,
soube colocar no peito do capitão Marcelino de Souza Rego, a quem
devo os dias da existência, o primeiro padrão de suas glórias militares.
Esse venerando ancião, tipo infelizmente raríssimo nestas épocas
de egoísmo e de maledicência, cheio de nobreza e dedicação em suas
afeições sinceras, tomou a seu cargo a educação da desprotegida filha
do soldado, órfã antes de completar o seu primeiro lustro; e, durante
anos de fadigas e cuidados inalteráveis, procurou facultar-lhe (como
ele dizia) os meios de alcançar, pela inteligência, uma posição digna e
independente no futuro.
Meu respeitável mestre!...
A todas estas memórias, que me são tão caras, devia eu uma ho-
menagem; e, em deficiência de outro meio, pareceu-me digno levantar
aqui, com a publicação deste humilde trabalho, uma lembrança, sin-
gela, mas, nem por isso, menos sincera e grande do que os profundos
sentimentos que ma inspiraram.
Neste meu intuito, que as almas bem constituídas hão de respei-
tar, não há nem houve sombra de pretensão. Publico o meu escrito
com este desejo, e não por ambição de glórias, que já as tenho bastantes
para o meu coração e para as minhas aspirações literárias.
Sei que uma mulher, especialmente, pobre, não pode elevar-se a
certas regiões. O despeito de uns, a intolerância de outros, a injustiça
de muitos e, sobretudo, a calúnia sempre ávida de vitimar a fraqueza
feminina, cedo ou tarde, com aleives e injúrias lá a despenham dessas
alturas, se porventura soube atingi-las.
Cumpre-nos obedecer aos homens!
A mulher brasileira, se não quer sujeitar-se ao escárnio dos espiri-
tuosos e às censuras mordazes dos sensatos, não tem licença para cultivar
54
o seu espírito fora das raias da música ao piano, e das de algumas frases,
mais ou menos estropiadas, de línguas estrangeiras! Nem ao menos
para ler Aimé Martin – Civilização do gênero humano pelas mulheres!
As europeias, sim, essas inteligentes e talentosas podem estudar
e escrever; poetar ou compor dramas e romances; podem satisfazer as
ambições da sua alma, ter culto, e conquistar renome...
Entre nós, não, que nada disso se pode dar! O que sai de lavra
feminina ou não presta, ou é trabalho de homem. E, nesta última suposição,
vai uma ideia oculta e desonesta.
E para que compraríamos, nós mulheres, a fama de sermos au-
toras de trabalhos que não fossem nossos, se com ela nada ganhamos,
nem temos possibilidade de obter lugar ou emprego pelos nossos
méritos literários? Valem-nos eles de coisa alguma?
Será pelos lucros?...
Santo Deus! A calúnia nem reflete nisto!
Levando, pois, a efeito o meu tributo, creio cumprir com ele o
doce dever da saudade maternal e a respeitosa veneração de discípula;
dando também à desprovida história das letras dramáticas da minha
pátria o pequenino contingente do meu minguado talento.
E, se porventura o meu decrescente estado de saúde, que me
conduz para a morte, tão temida pelos felizes do mundo, me deixar
alentos que me permitam aproveitar as poucas horas que me ficam das
minhas lidas de mãe de família, no afã das letras a que, já agora, me
sinto presa até morrer, irei dando ao prelo algumas outras concepções,
e possam elas, acolhidas pelo público, lembrar por algum tempo à
geração que nos sobreviver: a memória de meu filho, a dedicação de
meu mestre, e a benevolência do presidente do Conservatório Dra-
mático Brasileiro, em 1855.
Concluo, minha senhora, pedindo a V. Ex.ª que receba no santu-
ário dos seus sentimentos de mulher e de filha as singelas recordações
das minhas saudades e da minha gratidão.

Março de 1866.

Maria Ribeiro

55
AO LEITOR

– Vou publicar o meu drama Cancros sociais, e desejo que o apa-


drinhe um nome respeitável nas letras.
– O seu drama, minha senhora, não carece de patrono; mas, se
cabe apontar nome respeitável nas letras...
– Por meu gosto, há de o protetor ser a pessoa a quem tenho a
honra de dirigir-me.
– Eu, minha senhora! A categoria do padrinho deve, quando
menos, acompanhar a do afilhado, e neste caso...
– Espero que não me negará o favor, não obstante ser grande.

Sirva este curto diálogo para mostrar o motivo da minha aparição


como arauto.
Habituei-me a não publicar juízo meu sobre obras alheias, por-
que sei o quanto são delicados os nervos de D.ª Vaidade. Que mal me
podia vir de encatarroar-me como a raposa da fábula? Haverá, porém,
defluxo que leve um cavalheiro a faltar a uma dama? Apesar dos meus
55, não me animo a tanto.
O drama da Sr.ª D.ª Maria Ribeiro tem para mim um duplo valor;
é obra de mulher, e obra boa.
As mulheres entre nós amam com veras a família, e por isso, e
por circunstâncias que nos são peculiares, vivem quase exclusivamente
entregues aos cuidados dela, o que, sendo honroso para o sexo, obsta,
não pouco, a palestra com as musas. A autora, pois, dos Cancros sociais
já merece louvor pelo simples fato de haver palestrado extra tecta. Mas,
na minha opinião, o seu verdadeiro merecimento consiste em ter feito
coisa cuja maternidade poderia figurar como boa paternidade. Não
quero com isto dizer que se trata em absoluto de um perfeito modelo

57
de locução e vida cênica. A peça podia, talvez, com proveito seu, sofrer
modificações, as quais eu não aponto porque o talento da autora lhe
falará por mim. É certo, porém, que, independentemente de inovações,
o drama merece lugar distinto entre os melhores que possuímos, e
em si contém matéria de preço.
O entrecho parece criação de cérebro varonil, e tem o cunho da
utilidade real. Com uma delicadeza digna de admiração, flagela a autora
o cativeiro, que é um dos nossos maiores cancros sociais.
“Certo brasileiro, feliz no negócio, na amizade e na família, para
festejar dignamente os anos da filha querida, procura resgatar uma ca-
tiva, e nela descobre a sua própria mãe. Esta circunstância lhe põe o
coração em luta desesperada, pois, ante o amor filial, se levantam como
barreiras o receio do desprezo da esposa e do sarcasmo da sociedade; e a
luta excita os zelos da consorte, a qual chega a ver na pobre liberta uma
competidora. Felizmente, tudo serena com o auxílio da amizade, cujo
poder torna patente a falsidade de que haviam sido vítimas, mãe e filho.”
Deste enredo simples, tirou a Sr.ª D.ª Maria Ribeiro bom par-
tido, e as pérolas com que o adornou não foram, decerto, apanhadas
no lixo, de onde tenho visto sair até a própria fábula. Seguiu ela a boa
escola, a escola cortês, moral, útil, levando ao cabo o seu conto, por
meio de diálogos curtos, naturais, que não incomodam – nem fazem
baixar os olhos.
Ainda que pintados largamente, os caráteres1 têm colorido ver-
dadeiro, local. Todos falam como deviam falar, e ninguém fala só,
porque a autora quis curvar-se a certa lei chamada realista, mas que
eu não aceito sem aditamento, já que converso às vezes em alta voz
com os meus botões.
Agrada ver um amigo e protetor do quilate do Barão de Marago-
gipe, e, conquanto raro seja o tipo, o mundo o não desconhece.
O mesmo se pode dizer dessa mulher, vítima de seu marido, e
que, entretanto, se interessa na felicidade de outro casal. Desgenais de
tal ordem não se tornam fastidiosos.

1
Este termo foi usado com o sentido de ‘personagens’.

58
O Visconde de Medeiros, esse é magano conhecido, um dos
tais que, depois de chegarem à riqueza por meios torpes, levantam a
cabeça, para que a julguem de fidalgo, como se a crápula não deixasse
na indigna fronte o carvão indelével. Em Forbes, se descobre o ho-
mem rato, que vive de pilhar sorrateiramente, e que só se arrepende
quando a ratoeira o apanha. Este papel assim como o de Marta talvez
merecessem maior desenvolvimento. Contudo, Marta não deixa de
agradar, e quanto diz e faz deve parecer natural, já porque o coração
materno é insondável, já porque recebera a liberta uma boa educação.
Os sentimentos de Paulina são perfeitamente expressados, provan-
do a autora que bem conhece o coração feminil. Quanto ao Comenda-
dor, é ele, e devia ser, a primeira figura do drama. Nenhuma exageração
há nesse tipo de homem colocado em tão melindrosa posição.
Impressionaram-me estas palavras de Matilde:
“A virtude, minha cara amiga, tem a sua coroa; desfolhadas e
dispersas as flores de que ela se compõe, nunca mais torna a ser o
mesmo emblema!”
Como isto é mimoso! Que diferença entre esta expressão e outras
que por aí rolam noutros dramas! Tenho para mim que, aos ouvidos
dos espectadores, só devem chegar discursos tais; nem sei que resulte
utilidade de se mostrar que uma bacante está separada de uma Lucrécia
por uma simples taça de champanhe. Arrependam-se as Madalenas,
mas fique à virgem o seu trono de estrelas.
Acho soberbo o sarcasmo de que se serve Paulina, quando, jul-
gando haver tocado a última prova da infidelidade do marido, lhe diz:
“Exigi há pouco que despedisse esta criada; agora, peço-lhe que
a conserve; é a mulher que lhe convém!”
A explosão do coração filial se faz com muito esplendor.
“Basta, senhora”, diz o Comendador, “nem mais uma palavra
de insulto!”
“Ameaças!...”, exclama Paulina.
“Não ameaço; peço... ordeno mesmo... que respeite...”
“À... sua amásia?...”, torna Paulina.
“À... minha mãe!”

59
Enfim!... Com que satisfação não se assiste a este triunfo do puro
amor de filho!
Tem também para mim grande magia um certo abraço que Ma-
tilde manda Olímpia dar em seu pai, quando ela, no final da peça,
indaga o que se passa. Que resposta mais digna haveria para a ingênua
menina, e naquela circunstância?
Sinceramente declaro que se pode ler, com muito prazer, o valioso
trabalho da Sr.ª D.ª Maria Ribeiro, e que não foi injusto o público,
quando aplaudiu a sua execução.
O nosso repertório teatral não conta muitas páginas destas; a ele
cabe guardar cuidosamente o mimo que lhe ofertou a autora patrícia,
justificando o seu notável talento.
O drama da Sr.ª D.ª Maria Ribeiro, que é já uma solene realização
do que pode a musa dramática brasileira, contém em si uma grande
promessa que eu desejo ver satisfeita, para o fim de nos tocar também
o distinto diadema das Georges Sands.

Joaquim José Teixeira

60
CANCROS SOCIAIS
Drama original em cinco atos

Personagens

EUGÊNIO S. SALVADOR, 34 anos, negociante


BARÃO DE MARAGOGIPE, 58 anos, capitalista
VISCONDE DE MEDEIROS, 56 anos, negociante
ANTONIO FORBES, 60 anos, procurador de causas
PEDRO, 30 anos, criado de Eugênio
PAULINA, 32 anos, esposa de Eugênio
OLÍMPIA, 15 anos, filha de Eugênio
MATILDE, 45 anos, amiga de Paulina
MARTA (parda clara), 47 anos
UM EMPREGADO DA CASA DE CORREÇÃO, 35 anos
Homens, senhoras, criados, etc.
Guardas, músicos, artesãos, presos, etc.

Época – ATUALIDADE
Ação – RIO DE JANEIRO, 1862

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ATO I

Em casa de Eugênio, a 2 de julho, de manhã.

Salão, esteirado, com duas portas ao fundo, outras duas à esquerda e duas ja-
nelas à direita. Mobília elegante ao gosto da quadra; espelhos, vasos, quadros,
candelabros, cortinados, etc. Um divã, uma mesa pequena perto, e em lugar
conveniente uma grande moldura com retrato de homem, coberto de gaze verde.

Cena I
O Barão e o Visconde

barão Se é sobre negócios que V. Ex.ª pretende falar a Eugênio,


creio que não escolheu dia muito oportuno (apresenta-lhe
uma cadeira); a recepção de hoje é toda em obséquio à me-
nina S. Salvador.
visconde Não ignoro essa circunstância, e é mesmo para cumpri-
mentá-la que aqui venho (assentam-se); mais tarde, apre-
sentar-me-ei em caráter oficial e solene (surpresa no Barão).
A filha do Comendador é uma adorável criatura! Rica,
formosa... Ora... sejamos francos, Barão! Ainda não per-
cebeu que eu gosto muito da jovem Olímpia?
barão V. Ex.ª?!
visconde Sim, meu caro Maragogipe! Estou mesmo apaixonado!
Brevemente formularei o meu pedido, debaixo de toda a
formalidade exigida pelas conveniências da nossa roda.
barão E conta com o assentimento de S. Salvador?

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visconde Creio que ele não desdenhará ter uma filha Viscondessa.
barão E ela?
visconde Nenhuma moça rejeita a mão do homem que lhe oferece
um título e uma brilhante posição.
barão Já vejo que o Sr. Visconde não conhece a fundo o caráter
das pessoas de quem fala, e com quem trata, há muito
pouco tempo! Eugênio S. Salvador preza muito a felicidade
de sua filha, para sacrificá-la às considerações de títulos
e posição; quanto à sua esposa, senhora de espírito reto,
inteligente e ilustrada, penso que não há de entregar às
carícias de um esposo da idade de V. Ex.ª uma menina que
mal sai da infância.
visconde (irônico) Como está o Barão ao fato de todas essas coisas!
barão Posso afirmar ao Sr. Visconde que são estas as ideias dos
meus amigos.
visconde (fátuo) Apelarei então para Olímpia...
barão Não conte com esse auxiliar. Essa menina é dotada de
uma ingenuidade tão franca, tão límpida, por assim dizer,
que não se deixará seduzir pela vaidade, que perde a maior
parte das mulheres.
visconde O Barão está ainda muito atrasado no conhecimento do
coração humano!
barão Nesta casa, Sr. Visconde, a felicidade não é um mito, é uma
realidade.
visconde É por essa razão que insisto em efetuar um casamento
conveniente aos dois lados, pela riqueza e pela posição.
barão (intencional) E pelo sentimento?!...
visconde Isso... são frioleiras dispensadas pelos cônjuges da nossa roda!
Entre nós outros fidalgos, de nada valem essas puerilidades
a que chamam – interesses do coração!

64
barão (friamente) Com semelhante modo de encarar um enlace
tão solene, forma V. Ex.ª uma exceção... na nossa roda.
visconde Costumeiras antediluvianas, meu caro! (Erguem-se.) Feliz-
mente já nos vamos emancipando de muitos abusos dos
nossos antepassados! (Pega no chapéu.) O Comendador
demora-se... As Senhoras...
barão Creio que ainda é muito cedo para vê-las.
visconde Voltarei à tarde. (Vê o relógio.) Já nove horas!

Cena II
Os mesmos e Pedro

pedro (ao Barão) Está aí uma pessoa que pede para falar a V. Ex.ª.
barão Faça entrar quem é. (Sai Pedro.)

Cena III
O Barão e o Visconde

visconde Está bem, não o quero incomodar mais, Barão; até logo.
barão (friamente) Adeus, Sr. Visconde.

Cena IV
Os mesmos e Forbes

visconde (ao sair encontra Forbes) Antônio Forbes!


forbes O Sr. Visconde de Medeiros! (Param à porta.)
visconde O Sr. Forbes por aqui! Deixou então a Bahia!
forbes Sim, Excelentíssimo, o foro por lá nada deixa.

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visconde Isso acontece por toda a parte. Se há tantos zangões de tri-
bunais!... Adeus, Sr. Forbes. Se precisar de mim, apareça.
forbes (com intenção) Não me despeço do favor de V. Ex.ª (cumpri-
mentando-o); sempre pronto para o servir. (Sai o Visconde, e
Forbes aproxima-se.)

Cena V
O Barão e Antônio Forbes

forbes Um criado do Sr. Barão!


barão (assentando-se) Já sei que vem concluir o que tratamos.
(Indica-lhe uma cadeira.)
forbes (assenta-se) Foi para esse fim que tive a honra de procurar
o Sr. S. Salvador; porém, como não o encontro, creio que
com V. Ex.ª é a mesma coisa.
barão Acho melhor ultimar com ele próprio esse ato. Se não
quiser esperar um pouco, pode passar por aqui mais tarde.
forbes Como V. Ex.ª entender.
barão Está então resolvido de todo?
forbes (suspira) Desejo que ela seja feliz.
barão Parece estimá-la muito!
forbes Só a grande urgência das minhas precárias circunstâncias
me obrigaria a receber a importância da sua liberdade, e a
privar-me dos seus serviços! V. Ex.ª não imagina as boas
qualidades de que é dotada aquela mulher! É uma criatura
inteligente, laboriosa...
barão E... é morigerada?
forbes Foi a ambição da liberdade que a levou à beira do abismo,
aonde talvez se precipitasse, se...

66
barão Compreendo: foi seduzida com promessas de liberdade.
forbes E de casamento... promessas que nunca se realizam. Quem
dá valor a juramentos feitos a uma escrava?
barão É exato. Há, infelizmente, homens que se julgam desobri-
gados dos mais santos deveres para com a honra da mulher
cativa! Mas em que ficamos, quanto ao preço do resgate
da sua parda?
forbes Não posso aceitar menos de dois contos de réis; e creia V.
Ex.ª que é bem pouco pelo sacrifício que faço.
barão (depois de breve reflexão) Bem; creio que o meu amigo não
fará questão sobre este ponto. (Erguem-se.)
forbes Terei a honra de procurar o Sr. Comendador, mais tarde.
(Inclina-se.) Às ordens do Sr. Barão! (O Barão cumprimenta-o,
e ele sai.)

Cena VI
O Barão e depois Pedro

barão (chamando) Pedro! (Aparece Pedro.) Se este homem voltar


antes da chegada de seu amo, faça-o esperar. (Sai Pedro.
O Barão vai tomar o chapéu, que está sobre uma cadeira, e vê
Paulina e Matilde, que entram.)

Cena VII
Barão, Paulina e Matilde

barão (alegremente) Oh!... Já acordada! Julgava que os passarinhos não


tivessem ainda gorjeado nas janelas do aposento de V. Ex.ª!
paulina (sorrindo-se e apertando-lhe a mão) Acha então que madru-
guei?

67
barão Sem dúvida!
paulina (sorrindo-se) Pois não só os passarinhos já voltejaram pelas
papoulas e jasmins do meu jardinzinho, como também (in-
dicando ou tomando a mão de Matilde) chilreamos há mais de
meia hora, em coisas agradáveis e variadas.
matilde Como tem passado, Sr. Barão?
barão Sempre bem, e ao dispor de V. Ex.ª! (Pega no chapéu.)
paulina Como! Já nos deixa! Eugênio pouco pode tardar.
barão Estarei de volta à hora do almoço – se me guardarem o
meu lugar do costume, à mesa.
paulina O seu lugar, meu amigo, é nos nossos corações, onde nin-
guém o pode substituir!
barão (apertando-lhe afetuosamente a mão) Eu o sei, minha filha! Até
logo. (Cumprimenta a Matilde.) Minha senhora!...
matilde (apertando-lhe a mão) Até logo, Sr. Barão! (Acompanham-no
até à porta, e voltam a assentar-se no divã.)

Cena VIII
Paulina e Matilde

paulina Com efeito! Seu marido, pelo que a senhora acaba de


contar-me...
matilde Se eu lhe referisse tudo quanto sofri!...
paulina Nem sei como se casou com semelhante homem! (Entra
um criado com duas taças de chocolate sobre uma bandejinha de
prata, põe-na sobre a mesinha, e retira-se. Paulina dá uma taça à
Matilde e toma a outra. Bebem o chocolate.)
matilde Casei-me por vontade de meu pai; e, para obedecer-lhe,
sacrifiquei a ventura de pertencer a um homem que me
teria feito bem feliz!

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paulina Avalio o quanto lhe seria penoso um tal sacrifício!
matilde (tristemente) Meu pai chorou amargamente a minha desgra-
ça; e, ao morrer, pediu-me perdão da violência que fizera
aos meus sentimentos. A sua morte, que me deixou só no
mundo, foi o prelúdio de todas as minhas infelicidades!
(Larga a taça na bandeja.) É muito mau sujeitar-se o coração
de uma menina a cálculos pecuniários. O ouro não dá ao
coração a ventura íntima de um afeto compreendido e
partilhado.
paulina (larga a taça na bandeja) Porém, entregar-se uma filha a um
homem que não possa dignamente sustentar tão melin-
droso encargo é fazer dois infelizes.
matilde Não vou ao contrário disso; o que eu digo é que não se deve
só atender às considerações de dinheiro; porque, digam o
que disserem: nem sempre a mulher rica é a mulher feliz!
paulina Isso é bem verdade!
matilde E a prova do que digo, tenho-a em mim própria. Quando
eu era rica, fui festejada, acatada... adulada mesmo! O que
era muito natural... Dávamos esplêndidas funções! Tínha-
mos sempre uma lauta mesa à disposição dos admiradores
da nossa baixela, e adoradores dos nossos cozinheiros!...
Julgavam-me por isso a mulher mais feliz da cidade da
Bahia e, no entanto... Só Deus sabe o quanto era digna
de lástima a minha sorte! Mas deixemos este assunto, que
sempre me entristece... (Pequena pausa.) A senhora não
conserva algumas reminiscências daquela linda cidade?
paulina Nenhuma; vim de lá mui pequena. Também, as minhas
recordações nada teriam de agradáveis! Meu pai faliu, e
viu-se obrigado a vir para o Rio de Janeiro, acusado de
estelionatário, pesando-lhe sobre a sua honra uma sentença
infamante.
matilde Estelionatário!

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paulina Uma denúncia, acompanhada de falsos documentos, apre-
sentou-o como tendo sonegado objetos de valor à massa
falida!
matilde E conseguiu reabilitar-se?
paulina (tristemente) Não o pôde fazer; sucumbiu à vergonha da
sua condenação, quando se preparava para combater os
elementos da sua ruína!
matilde (apreensiva) Como se chamava seu pai?
paulina Olímpio Torres.
matilde (erguendo-se) Olímpio Torres!
paulina (erguendo-se) A senhora conheceu meu pai?
matilde (serenando-se) De nome: esse lamentável fato foi muito
notório. E sua mãe?
paulina (tristemente) Essa... acompanhou-o ao túmulo, bem de per-
to! Fiquei entregue aos cuidados de minha madrinha, que
acabou de me criar, e que me educou com o carinho e os
desvelos de uma verdadeira mãe. De sua casa saí casada
com Eugênio, que era então primeiro guarda-livros do
Barão de Maragogipe...
matilde (um pouco enleada) Parece ser um excelente homem.
paulina Se é. A ele deve meu marido tudo quanto é no mundo!
Mandou-o educar com todo o esmero, habilitando-o a
seguir qualquer carreira; e, tendo Eugênio preferido a do
comércio, fê-lo seu caixeiro, mais tarde, seu guarda-livros,
e, depois do nosso casamento, deu-lhe sociedade na casa,
abonando-o na Praça, com todo o seu crédito. Eis aqui
a minha história. Não a acha bem simples e pequenina?
(Encaminham-se para o sofá.)
matilde E bem interessante! (Assentam-se.) A minha é mais cheia de
tristes episódios! Contava apenas dezenove anos, quando
a lei dos homens desatou os laços com que as da Igreja me

70
ligaram a um esposo brutal e perdulário, que havia trans-
formado o santuário conjugal em teatro das mais indignas
fraquezas!
paulina Quantas contrariedades não sofreria a senhora, durante o
período da sua ação de divórcio!
matilde Contrariedades? A senhora não imagina o quanto é ultra-
jada a mulher que, como no meu caso, procura refugiar-
-se na proteção que as leis lhe facultam! Sofre, em todo
o seu peso, a reprovação dos austeros moralistas da nossa
sociedade!
paulina Mesmo sendo virtuosa?
matilde A virtude, minha cara senhora, é, para muitos espíritos fortes,
uma quimera! Julgam – ou fingem julgar – que a virtude
da mulher não passa de uma utopia moral. Por muito favor
concedem-lhe a graça das aparências.
paulina Pois existem homens convictos de uma geral perversão de
costume?
matilde Há muitos caráteres nobres e imparciais; todavia, a justiça
que devera presidir ao julgamento da mulher não penetrou
ainda convenientemente na consciência de tais julgadores.
Os homens, isto é, a causa primordial de todos os erros da
mulher, são os seus mais implacáveis juízes! Convertem
a esposa honesta, ou a virgem inocente, em uma proscrita
do círculo honrado e virtuoso; e, se a transviada não tem
a força de vontade precisa para reagir contra a sua conde-
nação, está irremediavelmente perdida! Neste caso, ei-la
trajando todas as galas da hipocrisia, e afrontando os seus
próprios juizes, que então iludidos a aplaudem, e a pro-
clamam: regenerada!
paulina Acho-a injusta, negando a possibilidade da regeneração da
mulher culpada!
matilde Santo Deus! Eu não nego a possibilidade! Duvido simples-
mente da sua sinceridade! A erradia, verdadeiramente arre-

71
pendida, não se apresenta aos comentários das turbas, co-
berta de vestes e joias preciosas! A vergonha de uma passada
degradação concentra-se, e pede ao esquecimento dos seus
desvios o perdão da sociedade, e a paz da sua consciência.
paulina Mas quantas infelizes, lançadas no opróbrio por causas
imperiosas, quando encontram em seu caminho algum
apoio, não se erguem da sua abjeção, tornando-se boas
esposas e mães exemplares?
matilde Será como diz; não quero desfazer as suas belas ilusões!
Cá por mim penso de outro modo. A mulher que uma vez
se vendeu ao demônio do vício, ou da vaidade, não pode
mais erguer-se à altura donde caiu. As nódoas dos beijos
mercenários não se apagam das faces que os receberam...
nem se resgata por alguns dias de continência uma vida de
excessos e ebriedade! A virtude, minha cara amiga, tem a
sua coroa: desfolhadas e dispersas as flores de que ela se
compõe, nunca mais torna a ser o mesmo emblema!
paulina (melancólica) Quanta descrença se revela no fundo acrimo-
nioso das suas proposições!
matilde A descrença é o bem que me ficou dos meus passados in-
fortúnios! Sou quase cética para muitas coisas desta vida!
Creio que – ainda – existem virtude e justiça; porém, não as
admito sem as mais minuciosas indagações!

Cena IX
As mesmas e Olímpia

olímpia (beijando a mão à Paulina) Bom dia, mamãe... A Sr.ª D.ª


Matilde estava aqui?! (Matilde beija-a na face.) Que maldade!
matilde O quê? A minha presença, ou o meu beijo?
olímpia Por que não mandaram chamar-me há mais tempo, para
gozar de tão amável companhia?

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matilde Julgávamos que a menina ainda estivesse entre os seus
nevoeiros de rendas e cambraias, a conversar com os an-
jinhos.
olímpia (sorrindo-se) A esta hora? Mamãe interromperia os meus
colóquios, com as suas exprobrações!
matilde Nisso faria ela muito bem. As moças são como as flores, e,
como estas, devem erguer-se com as auras da madrugada.
olímpia A Sr.ª D.ª Matilde anda em competência com papai, nos
seus lindos madrigais! (Assentam-se, ficando Olímpia perto de
Paulina.) O que me dá hoje, mamãezinha?
paulina Um beijo, ou uma flor: escolhe.
olímpia (apresentando a face) Venha o beijo. (Paulina beija-a.) Agora,
em vez da flor, quero um vestido para a reunião da Cam-
pesina.
paulina (tornando-se séria) Não pode ser; já o mês passado, teu pai
comprou-te dois.
olímpia Mas, mamãe...
paulina Vejo-te um tanto inclinada ao luxo, e à ostentação!... Olha
que estas duas paixões nunca conduzem a mulher à verda-
deira felicidade! Demais, minha filha; não é na profusão e
riqueza dos atavios que está o encanto de uma moça; é na
simplicidade e compostura deles.
matilde São belas essas máximas; mas uma imaginação de quinze anos
não opta muito pela sua moralidade! (Olhando.) Ali vem o
Sr. Comendador... (Erguem-se, Olímpia corre a recebê-lo.)

Cena X
As mesmas e Eugênio

eugênio (prazenteiro) Como! Venho encontrar a Sr.ª D.ª Matilde


aqui?!

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matilde (apertando-lhe a mão) E o que tem isso de extraordinário,
Sr. Comendador?
eugênio Nada, minha senhora! Como tem V. Ex.ª passado?
matilde Bem... neste momento especialmente.
eugênio (com amabilidade) Sempre oficiosa! (Assentam-se, menos Olím-
pia, que fica encostada à cadeira de Eugênio.)
matilde Diga antes: apreciadora da ventura que se goza neste pa-
raíso!
paulina (indicando Eugênio) Graças ao anjo que o tem sob a sua
guarda.
eugênio (beijando-lhe a mão) E com tão sedutora Eva!...
paulina (sorrindo-se) Lisonjas?!
olímpia (tristemente) A mim ainda o papai nada disse.
eugênio (afagando-a) O que mais te hei de dizer, minha pérola?...
Só se te repetir...
paulina (vivamente) Nada de lhe repetires os teus gracejos; ela já os
tem ouvido demais.
eugênio (sorrindo-se, para Olímpia) A mamãe tem medo que eu te
faça vaidosa!
paulina Oh!... por esse lado já o mal está feito!
eugênio Como! Pois tu és vaidosa, Olímpia?
olímpia (meiga) Não acredite isso, papai; mamãe está de pontas co-
migo, porque eu lhe pedi... (Entra Pedro pelo fundo com um
magnífico ramo de flores naturais.) Oh! que lindas flores!...

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Cena XI
Os mesmos e Pedro, que apresenta o ramo à Olímpia.

olímpia São para mim? (Toma o ramo.)


pedro (apresentando-lhe uma carta) Da casa do Sr. Comendador
Menezes. (Sai.)

Cena XII
Os mesmos, menos Pedro

olímpia (dando a carta à Paulina) É de Carlota.


paulina (lendo) “À sua amiga Olímpia. Carlota.”
eugênio (sorrindo-se) É lacônica a tua amiga!
matilde Não se pode ser mais concisa!
olímpia Boa Carlota! Vejam se ela se esqueceu de mim! (A Matilde.)
Dá-me licença para ir pôr estas flores no meu toucador?
matilde Pois não, minha menina! Não faça cerimônias comigo!
(Sai Olímpia.)

Cena XIII
Os mesmos, menos Olímpia

eugênio (para Matilde) V. Ex.ª deixa-nos hoje dispor do seu dia?


matilde (amável) Felizmente não lhes posso dar essa concessão.
eugênio (com amável censura) Felizmente?!...
matilde O dia e a noite de hoje pertencem à minha amiguinha
Olímpia.

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Cena XIV
Os mesmos e Pedro

paulina (percebendo Pedro) O que quer, Pedro?... Pode chegar. (Pedro


aproxima-se e diz-lhe algumas palavras em voz baixa.) Está bem:
já vou. (Sai Pedro.)

Cena XV
Os mesmos, menos Pedro

matilde (sorrindo-se) Já sei que tem de atender às exigências do chefe


de seção de alguma das suas repartições?
paulina (sorrindo-se) Se a senhora me permite...
matilde O melhor meio de obsequiar-me é não fazer cerimônia
alguma comigo. (Sai Paulina.)

Cena XVI
Eugênio e Matilde

eugênio Não esperávamos ter hoje o prazer da sua companhia,


minha senhora.
matilde Oh!... pois eu não sabia que a nossa linda açucena entrava
hoje na sua décima sexta primavera?
eugênio Em paga de não o ter esquecido, vou fazer-lhe uma con-
fidência.
matilde (sorrindo-se) Se é segredo, não o comprometa; lembre-se
que sou mulher.
eugênio (sorrindo-se) Não há dúvida; exijo segredo até à hora do
jantar somente.
matilde Pois até lá... mudarei de sexo! De que se trata?

76
eugênio De uma surpresa que tenciono causar a Olímpia; será o
meu brinde de anos.
matilde A surpresa? (Assentam-se.)
eugênio Uma folha de papel selado; a liberdade de uma escrava.
Hoje é dia para mim duplamente glorioso; 2 de julho,
aniversário da emancipação política da minha terra, e o
natalício de minha filha; desejo, portanto, comemorá-lo,
restituindo ao grêmio social um dos seus representantes.
O que pensa V. Ex.ª do meu mimo?
matilde Penso que seria um singular mimo de anos para uma me-
nina, se essa menina não pertencesse à família S. Salvador.
eugênio (beijando-lhe a mão) Oh!... minha senhora!...
matilde É alguma escrava da casa?
eugênio Não, Sr.ª D.ª Matilde; em minha casa não há cativos; todos
os meus servos são pessoas livres.
matilde Tal e qual como na minha! Abomino os escravos! São
criaturas destituídas de toda a moralidade e de todos os
sentimentos nobres!
eugênio (com amável censura) Estou desconhecendo a habitual retidão
de V. Ex.ª.
matilde Crê-me então injusta?
eugênio Pelo menos, pouco benevolente para com essa mísera clas-
se, deserdada de todos os gozos sociais, e lançada, como
uma vil excrescência, fora dos círculos civilizados!
matilde (surpresa) Está falando sério, Sr. Comendador?!...
eugênio Sim, minha senhora; estou intimamente convencido que
existem muitíssimos escravos morigerados e dedicados às
pessoas e aos interesses dos seus senhores.
matilde Discordo da sua convicção. Que haja alguma exceção de
regra que a autorize, concedo; mas muitíssimas?!

77
eugênio Vejo que V. Ex.ª é do número daqueles que pensam que o
cativeiro impõe a estupidez e a desmoralização.
matilde Não, Sr. Comendador; sei que os instintos das paixões,
boas ou más, se manifestam e se desenvolvem em qual-
quer estado ou condição da criatura. E nem julgue que
sou apologista dessa monstruosa aberração do direito das
gentes, que dá ao homem a propriedade individual sobre
o seu semelhante! À ideia grandiosa do herói da nossa in-
dependência, tão magnanimamente por ele realizada nos
campos do Ipiranga, devia ter-se seguido a completa aboli-
ção de uma lei que nos apresenta ao estrangeiro como um
povo bárbaro e ainda por civilizar! Esse cancro, que solapa
a base da nossa emancipação. Lamento a sorte anômala
desses infelizes; porém... aborreço-os! Devo todos os meus
infortúnios a escravos, dos quais era eu mais mãe do que
senhora. É gente muito ingrata!

Cena XVII
Os mesmos e Pedro

pedro (a Eugênio) Está aí um homem que procurou por V. S. esta


manhã, e pede para lhe falar. Vem com uma parda.
eugênio Faça-os entrar para aqui. (Sai Pedro.)

Cena XVIII
Eugênio e Matilde

matilde Deixo-o com as suas visitas; vou esperar as minhas amigas


no seu gabinete de trabalho.
eugênio Se só se tratasse de uma visita, pediria a V. Ex.ª que abrís-
semos um parêntesis na nossa conversação; porém, é uma
conferência enfadonha.

78
matilde A aquisição do seu brinde?
eugênio (seguindo-a) A troca do mais precioso atributo da humani-
dade por algumas notas do banco!
matilde Até já. (Sai.)

Cena XIX
Eugênio, Forbes e Marta

forbes (à porta) V. S. dá licença? (Eugênio faz-lhe um gesto, e Forbes


entra acompanhado por Marta.) É ao Sr. Eugênio S. Salvador
a quem tenho a honra de falar?
eugênio Sim, senhor; (indica-lhe uma cadeira) faça o favor de assentar-
-se. (Assentam-se; Marta conserva-se de pé em lugar donde possa
naturalmente olhar para o retrato.) Sei que já me procurou.
forbes E o Sr. Barão de Maragogipe, com quem falei, autorizou-me
a procurar de novo a V. S., para ultimarmos este negócio.
Tomei a liberdade de a trazer; o preço é dois contos de réis.
eugênio (olha para Marta, que está muito atenta para o retrato) Traz a
carta competentemente legalizada?
forbes (entregando-lhe um papel) Não me esqueceu formalidade
alguma.
eugênio (depois de ler, ergue-se) Está em ordem. (Guarda-a no bolso.)
Dê-me licença, vou buscar-lhe o dinheiro. (Vai a sair e
repara em Marta, que está muito agitada a contemplar o retrato.)
Meu Deus!...
marta (mostrando o retrato a Forbes) Que semelhança! (Para Eugênio.)
Meu senhor... (Encarando-o.) Jesus!!! (Contempla por alguns
momentos a Eugênio, que está muito perturbado.) Será isto um
sonho?! Perdoe, meu senhor... não me conhece? Repare
bem para mim... Interrogue as suas reminiscências, as suas
mais antigas recordações... (Em grande ansiedade.)

79
eugênio (com esforço) Não... não a conheço!
marta (muito angustiada) Ah!... (Fica como que aniquilada por alguns
instantes.)
forbes (a Eugênio) V. S. há de desculpar...
marta (vai ao retrato, arranca-lhe o véu) Sim... é ele!!
forbes (repara no retrato e estremece) Ele?!... É... alguma pessoa da
família?...
eugênio É o pai de minha mulher...
marta (fulminada) Sua mulher!! (Dolorosamente.) Desgraçado!...
o que fizeste!...

(No momento em que o pano desce, entram Paulina, Olímpia e Matilde, alguns
homens e algumas senhoras.)

FIM DO PRIMEIRO ATO

80
ATO II

Na noite do mesmo dia.

Gabinete esteirado, com portas ao fundo e aos lados. Poltronas, divã à direita,
secretária à esquerda, mesa ao meio, com livros, objetos para escrever, tímpano
e candelabro com velas acesas.

Cena I
Eugênio (assentado no divã) e Paulina (de pé, junto dele)

paulina (com solicitude) Estás melhor, meu amigo?


eugênio Quase bom; foi uma leve indisposição.
paulina Vi-te empalidecer tanto!... Por pouco não caíste.

Cena II
Os mesmos, Olímpia e Matilde

olímpia (entrando apressada) Meu Deus!... o que teve, papai?...


matilde Retirou-se da sala bastante incomodado, meu amigo?
eugênio (querendo gracejar) Tive um achaque de moça bonita: um
faniquito!
olímpia (sorrindo-se) O papai com faniquitos?!
matilde Quando o doente graceja, bem vai o caso. O seu papai não
tem coisa de cuidado; venha cumprir a sua promessa.

81
olímpia Ora... Sr.ª D.ª Matilde!...
matilde Então! quer roer-me a corda? Olhe que ordeno uma invasão
de dilettanti2 a este gabinete!
eugênio O que lhe prometeu ela, Sr.ª D.ª Matilde?
matilde Prometeu-me cantar uma nova cançoneta, cuja letra, pro-
dução do nosso patrício Luiz Ayque,3 é realçada pela linda
música do Furtado Coelho.4
olímpia Mas... se eu ainda não estou bem certa!...
paulina (séria) Não prometerias cantá-la se não a soubesses.
olímpia (sorrindo-se) Que tirania!... Enfim... Vamos, Sr.ª D.ª Matilde.
Até logo, papai. (Beija-lhe a mão.)
matilde (oferece-lhe o braço) Quero ser o seu cavalheiro.
olímpia (dando o braço a Matilde) Vou fazer uma bonita figura! (En-
caminham-se para o fundo.)
matilde Já a entendo, Sr.ª vaidosazinha! (Saem.)

Cena III
Eugênio e Paulina

eugênio Não vais também apreciá-la?


paulina Gosto mais da música ao longe.

2
Em italiano, ‘amadores’. Em português, ‘diletante’ pode significar, também, uma
pessoa aficionada por música.
3
A autora se refere, provavelmente, a Luiz Paulo dos Santos Macedo Ayque,
membro da Sociedade Propagadora das Belas-Artes.
4
Luís Cândido Cordeiro Pinheiro Furtado Coelho (1831-1900), ator, drama-
turgo, compositor, pianista, poeta e empresário português que fez carreira no
Brasil. Foi ele quem interpretou o personagem Eugênio quando Cancros sociais
foi encenada em 1865.

82
eugênio Não acho conveniente a tua ausência da sala.
paulina Inconveniente seria eu deixar-te só, incomodado como te
achas.
eugênio Preciso somente de um pouco de descanso.
paulina Pois descansa. (Assenta-se perto da mesa e pega em um livro.)
Mais tarde iremos juntos.
eugênio (levemente impaciente) Eis uma encantadora teima! Agradeço-
-te, mas...
paulina Não insistas; não vou para a sala sem ti.
eugênio (ergue-se) Nesse caso... (Oferece-lhe o braço.)
paulina O que pretendes?
eugênio Restituir à festa a sua rainha.
paulina (sorrindo-se) Sempre a gracejar! (Ergue-se e larga o livro.) Já
que o exiges, deixo-te só. Mas, se daqui a meia hora não
apareceres, vir-te-ei buscar.
eugênio (vivamente) Não!... não quero que aqui venha pessoa alguma!
paulina (admirada) Está bom... sossega; aqui ninguém virá. (Sai pelo
fundo.)

Cena IV
Eugênio e depois Pedro

eugênio (depois de pensar imerso em tristeza, toca no tímpano e aparece


Pedro pela direita) Já chegou a pessoa de quem lhe falei?
pedro Neste mesmo instante; já eu vinha participar a V. S.
eugênio Conduza-o para aqui, pelo corredor interior. (Pedro vai a
sair.) Espere um pouco. (Procura na mesa um bilhete de visita, e
escreve nele algumas palavras a lápis.) Entregue este bilhete ao
Sr. Barão, quando ele estiver só. (Dá-lhe o bilhete; Pedro sai.)

83
Cena V
Eugênio e depois Forbes

(Ouve-se Olímpia cantar uma cançoneta, música de Furtado Coelho e letras


de Macedo Ayque.)

Do azul do céu, minha estrela


Luziu brilhante e morreu!
A mão da sorte em minh’alma
Um véu de crepe estendeu.
Meus sonhos são agonias!
Espinho que ceva a dor
É meu futuro um deserto,
Sem planta, nem luz, nem flor!
A derradeira esperança
Em limbo escuro tombou,
E morta vivo das penas
Que o sofrimento deixou!

(Enquanto Olímpia canta, Eugênio passeia tristemente, parando de espaço a


espaço. Findo o canto, ouvem-se grandes aplausos, bravos, etc.)

eugênio (assenta-se muito opresso) Oh!... a fatalidade!... a fatalidade!...


forbes (à porta, como que respondendo) Sou eu, Sr. Comendador!
(Eugênio ergue-se.) V. S. dá licença?
eugênio Entre, senhor. (Forbes entra.)
forbes Sei que a ocasião é imprópria; porém, como V. S. pediu-me
que viesse aqui esta noite...
eugênio (indica-lhe uma cadeira) Faça o favor de assentar-se. (Assen-
tam-se.) Desejo obter do senhor algumas informações sobre
a pessoa que libertei hoje. Foi para isso que lhe pedi que
me procurasse.

84
forbes Aqui estou ao dispor de V. S.
eugênio Há quantos anos possuía o senhor...?
forbes A minha escrava Marta?... Há de haver perto... ou talvez
mais de trinta anos.
eugênio De quem a comprou?
forbes Comprei-a, juntamente com um filho, a certo negociante,
que quebrou na mesma ocasião em que os vendeu. Até creio
que, por causa dessa venda, foi ele condenado como este-
lionatário, por ter subtraído e vendido clandestinamente
bens sujeitos à massa falida.
eugênio E sabe que destino teve esse homem?
forbes Foi pronunciado na Bahia, em... mil oitocentos e trinta
e tantos; e, para escapar à vindita da lei, fugiu aqui para
esta capital. Creio que morreu há muito tempo! V. S. está
incomodado!...
eugênio (ansioso) E... o que foi feito do filho de Marta?
forbes Vendi-o aqui para o Rio; era um mulatinho endiabrado!
Não o pude suportar!
eugênio E nunca teve notícias dele?
forbes (fitando-o) O Sr. Comendador interessa-se singularmente
pelo filho de Marta! Pois, sobre a sorte desse pequeno,
nada posso dizer a V. S.; nunca tive a menor informação a
tal respeito. (Pequena pausa.)
eugênio Há de desculpar-me o incômodo que lhe dei; (erguem-se)
estou satisfeito.
forbes Incômodo, nenhum. Mesmo eu tinha de procurar a V. S. para
comunicar-lhe que... (Tira um maço de notas do bolso.) Refleti
melhor; não me convém aceitar só dois contos de réis pela
liberdade da minha escrava... (Apresenta o dinheiro a Eugênio.)
eugênio (sem tomar o dinheiro) Não lhe convém?!

85
forbes Não, senhor (põe o dinheiro sobre a mesa). É muito pouco.
eugênio (surpreso) Pouco!... dois contos de réis!
forbes Vinte que fossem, não era coisa alguma!
eugênio Vinte?! (Encara-o muito admirado.) O senhor está louco?!
forbes (friamente) Louco estaria eu, se aceitasse semelhante baga-
tela!
eugênio Pois, senhor, faça o favor de guardar o seu dinheiro, e...
forbes Não, senhor; e, uma vez que não nos ajustamos no preço,
tenha a bondade de restituir-me a carta, e mandar vir a
parda, que a quero levar.
eugênio Levá-la! Isso nunca! O senhor já não tem direito algum
sobre ela!
forbes Essa agora!...
eugênio Essa mulher é livre...
forbes (perturbando-se) Livre!...
eugênio A carta da sua liberdade ficou hoje registrada nas notas do
cartório do tabelião Castro.
forbes (visivelmente contrariado) Registrada! (Ergue-se.)
eugênio Cumpri lealmente aquilo que tratamos; não posso ser res-
ponsável pelas intermitências da sua vontade.
forbes (com cólera mal disfarçada) E acha V. S. que eu estarei sujeito
à sua? Está muito enganado, meu caro senhor! Não me
deixarei espoliar do meu direito de propriedade, sem que
a questão se discuta em público!
eugênio (perturbado) E o que tenho eu a recear em semelhante
discussão? (Pequena pausa.) Acha pequena a quantia que
arbitrou para o resgate da sua escrava? Pois, em conside-
ração a essa desventurada, dar-lhe-ei mais um... (Forbes fica
impassível) dois... (desorientando-se) três contos de réis!

86
forbes (friamente) É pouco.
eugênio (surpreso) Ainda acha pouco?!
forbes É mesmo uma ridicularia. (Assenta-se.)
eugênio (indignado) Se o senhor não está doido, está...
forbes (sorrindo-se) Embriagado?... Pode concluir a frase; em
discussão sobre negócios, nunca me dou por ofendido.
No entanto, para validar o que tratamos, devo assegurar
a V. S. que não me acho em nenhum desses deploráveis
estados.
eugênio Então, não compreendo as suas exigências. (Assenta-se.)
Faça o favor de retirar-se por onde entrou.
forbes Menos viveza em suas palavras, Sr. Eugênio S. Salvador!
Reflita na singularíssima posição em que se acha, e veja
que me deve...
eugênio (ergue-se encolerizado) Eu nada lhe devo! Já lhe disse que
guardasse o seu dinheiro, e se retirasse! (Passeia muito agi-
tado.)
forbes Nada me deve?! (Ergue-se.) Já que V. S. é tão falto de me-
mória, irei perguntar à filha do ladrão Olímpio Torres...
eugênio (avançando furioso para Forbes) Miserável!...
forbes (sem se alterar) Por quanto deve seu marido comprar o se-
gredo do seu ex-escravo Eugênio...
eugênio Senhor!...
forbes Filho da minha escrava Marta!
eugênio (suplicante) Basta!... nem mais uma palavra!... Oh!... (Deixa-
-se cair sobre uma poltrona; pequena pausa; Forbes contempla-o
ironicamente.) Não!... (ergue-se bruscamente) não é possível!...
Com que documentos prova o senhor o que acaba de dizer?
forbes Com o papel de compra, de Marta e de seu filho, passado
e assinado pelo próprio Olímpio Torres, que mos vendeu.

87
eugênio E o que exige por esse papel?... Diga-o com franqueza...
com audácia mesmo...
forbes Já que me permite... vou ser franco. Dos meus perdidos
cabedais, só me ficaram dívidas, ruins paixões... vícios mes-
mo...
eugênio (amargamente) Que pretende alimentar à custa de uma re-
velação fatal?...
forbes Não direi que tenciono alimentar as minhas perniciosas
paixões à custa do segredo do meu ex-escravo Eugênio.
(Respeitoso) Constituo, porém, meu banqueiro o Sr. Eu-
gênio S. Salvador. (Intencional) Os títulos e as garantias do
meu capital estão em lugar seguro. E creia V. S. que terei
sempre em vista o preceito: Usar, mas não abusar! Se qui-
ser dar-me os dois contos de réis... por conta... (Eugênio
empurra-lhe o dinheiro, que ele guarda.) Quanto ao mais...
quando eu precisar...
eugênio (toca no tímpano) Desculpe... preciso ficar só.
forbes (pegando no chapéu) Oh! Sr. Comendador! V. S. está em sua
casa!...

Cena VI
Os mesmos e Pedro

eugênio (a Pedro) Acompanhe o senhor até à escada.


forbes (cumprimentando) Sr. S. Salvador!...

Cena VII
Os mesmos e o Visconde (pelo fundo)

visconde Desculpe, Comendador!... Só agora soube que... (Vê For-


bes.) O Sr. aqui?!...

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forbes (intencional) De que se admira, Sr. Visconde?... Não está
também V. Ex.ª? Ora!... (Sai pela porta por onde entrou, acom-
panhado por Pedro.)

Cena VIII
Eugênio e o Visconde

visconde Não supunha este homem na sua intimidade!


eugênio Não sei por que V. Ex.ª diz isso.
visconde Aqui!... no seu gabinete!
eugênio (friamente) Também V. Ex.ª honra neste momento o meu
gabinete, sem que eu o conte no número dos meus íntimos!
visconde (afetando dignidade) Consinta que eu repila o paralelo que
parece estabelecer entre a minha pessoa e um tal tratante!
Se aquele homem tem a felicidade de ser do número dos
seus amigos, declino dessa honra! A minha categoria...
eugênio (secamente) As relações que existem entre mim e o Sr. Viscon-
de não o autorizam a censurar os meus atos. Só o conheço
há algumas horas, se é, como diz, um tratante, o seu próprio
interesse o fará não ser comigo. É esta a explicação única que
posso dar à suscetibilidade de V. Ex.ª e dos meus oficiosos!
visconde Como! Pois o Comendador formalizou-se?!
eugênio Não, Sr. Visconde; salvo se V. Ex.ª chama formalizar-me o não
querer eu comunicar-lhe os meus negócios particulares.

Cena IX
Os mesmos e o Barão

barão (pelo fundo) Eis-me aqui, Eugênio... O que tens? Estás agi-
tado...

89
visconde Não é nada, Barão! Tivemos uma ligeira controvérsia, mas
já nos achamos de perfeito acordo, e amigos como sempre!
Bem sabe que entre pessoas da nossa roda...
eugênio (ao Visconde) Se V. Ex.ª dá-me licença... preciso falar ao meu
amigo.
visconde Cerimônias comigo, meu caro! Eu me retiro. Nós outros
fidalgos não costumamos ser importunos! Até já, Comen-
dador!... Barão!... (Sai.)

Cena X
Eugênio e o Barão

barão Se este homem não fosse a personificação da estupidez,


sê-lo-ia da fatuidade e do ridículo! Vou contar-te o que
ele me comunicou esta manhã; prepara-te para rir... Mas
o que tens? Estás com a fisionomia tão transtornada!
eugênio Estou perdido, Barão!
barão Perdido! O que te aconteceu?
eugênio Minha mãe está nesta casa.
barão (assombrado) Tua mãe!! Como o sabes?... Quem a trouxe?...
eugênio Deus, ou a Fatalidade!... É a escrava que libertei esta manhã.
barão O que dizes?! (Encara-o e pega-lhe na mão.) Estás sob a in-
fluência de um acesso febril... Vem para a sala distrair-te.
eugênio Não tenho febre, nem deliro. É minha mãe. Conheci-a, no
momento em que fui por ela reconhecido. E... repeli-a!...
reneguei-a!...
barão À tua mãe?!...
eugênio Foi uma indignidade... um crime! Bem o sei! Fiquei im-
passível ante a dolorosa agonia desse coração que voava
para mim... fiz mais: minha mulher, minha filha, amigos,

90
esse Forbes, tinham todos as vistas sobre mim; temi uma
revelação humilhante, e... confundi-a entre os meus cria-
dos... Oh! sou um filho indigno!... um ingrato!...
barão (sentido) Não esperava de ti semelhante proceder!
eugênio E a desonra que sobre mim pesaria, se soubessem que sou
filho de uma escrava?! Que fui... cativo! Eu?... (Desespera-
do.) Oh!...
barão Conta-me como se passou esse caso. (Assenta-se.)
eugênio Antônio Forbes estava presente quando nos reconhecemos,
e a nossa comoção, sem dúvida, lhe denunciou a verdade.
Não sei se ele também me reconheceu; só sei que está
senhor do meu funesto segredo, e que pretende tirar dele
todo o partido possível.
barão Que desgraçada ocorrência!
eugênio E, como se não bastasse o horror do sucesso que me aca-
brunha, vem ainda uma terrível circunstância complicar
mais a minha situação! Paulina é filha do primeiro senhor
de... Marta!
barão (ergue-se) É possível?!
eugênio Marta e seu filho foram os objetos que ocasionaram a ruína
do infeliz Torres!
barão O que estás a dizer, Eugênio!
eugênio A verdade, autorizada pelas informações de Antônio For-
bes, as quais coincidem com as poucas reminiscências que
eu conservo do passado.
barão (consternado) A ser assim, é uma horrível desgraça! (Assenta-
-se; Eugênio passeia tristemente.) Quem sabe se não és vítima
de alguma especulação dessas criaturas, que, guiadas por
algum indício da verdade...

91
eugênio (meneia tristemente a cabeça) Marta não fingiu. O brado que
soltou, quando me reconheceu, só podia sair da alma de
uma mãe!
barão (ergue-se) E se ambos se houvessem enganado? Se uma for-
tuita semelhança... Olha que se joga uma tremenda partida
sobre o teu destino!
eugênio Não nos enganamos; o coração mo diz.
barão Então, repito, é uma grande desgraça!
eugênio Do que serve, pois, ter-me elevado a esse pedestal, erigido
pela consideração social, se um imprevisto revés da sorte
me vai dele fulminar! Oh!... Deus não é justo!
barão (severo) Também descrente?!
eugênio Barão!...
barão Entendes que para a felicidade do homem basta-lhe só
sacrificar ao seu egoísmo e aos preconceitos do mundo os
seus mais sagrados deveres? Enganas-te; é preciso, antes
de tudo, o temor de Deus, e fé na sua bondade! Duvidas
da sua justiça? Desvia os olhos das paixões mundanas que
te toldam o espírito, e vê-las-ás pairar sobre a tua própria
cabeça!
eugênio (tristemente) Se conhecesse a força do golpe que me abate!...
barão E não me fere ele também na afeição que te consagro?
Sabes se te estimo; com a liberdade que te dei, adquiriste
um pai, ao qual tornaste mais suportável a solidão de uma
vida sem afetos e sem laços de família. Não quero ouvir-te
blasfemar, juntando à fraqueza de ânimo a impiedade do
coração!
eugênio Perdão, meu bom pai!
barão Porém... (Assentam-se.) Como é crível que não tenhas re-
conhecido no retrato de teu sogro o homem em cuja casa
nasceste?

92
eugênio Não tenho a menor ideia de suas feições, assim como não
me recordo de ter nunca visto esse Forbes, que, segundo
o seu dizer, foi quem mandou o infeliz filho de Marta para
o Rio de Janeiro.
barão E que provas tem esse homem?...
eugênio Um papel de... compra! Documento assaz valioso, que o
torna senhor da minha felicidade e da minha honra!
barão Da tua honra, não! Se nasceste escravo, não deixas por isso
de ser honrado. Não é a condição que desonra o homem,
são os seus próprios atos!
eugênio Porém, como aceitará Paulina a minha infelicidade?... E mi-
nha filha? Oh!... se perco a ternura desses dois anjos!...
barão Não te deixes abater, quando mais precisas de energia! Já
que a adversidade te manda tão dolorosa prova, aceita-a
corajoso! Luta... e vence!
eugênio (desanimado) Lutar?... Tudo se junta para perder-me. Quem
me afiança a discrição de Antônio Forbes? O que aconse-
lhará o despeito ao coração dessa desventurada tão atroz-
mente repelida por mim?
barão Como julgas mal esses seres, que se chamariam anjos se não
se chamassem mães!... Despeito em uma mãe?... Abre os
braços à pobre Marta...
eugênio (interrompendo) Não!... Se o fizesse, cair-me-iam neles todas
as irrisões da sociedade!
barão Queres então sacrificar a tais preconceitos a felicidade de
tua mãe, e o sossego da tua consciência? (Ergue-se severo.)
Que ideia fazes tu da honra, Eugênio?!...
eugênio Expor-me ao desprezo da mulher a quem amo?
barão E... qual é o interesse desse homem, guardando o papel
que te compromete?

93
eugênio Obrigar-me a satisfazer-lhe as ambiciosas exigências; ele
próprio o confessou.
barão A questão, pois, milita sob um princípio: o ouro, não é
assim? Ameaça-te, para que lhe dês dinheiro?
eugênio Sim, e muito!
barão Por que te julgas então um homem perdido? Se ele quer
dinheiro, dá-lho! De que nos serviria a riqueza, se ela não
fosse o poder moderador, para onde apelam as paixões dos
homens? Compra a peso de ouro o teu segredo! Faz esse
Forbes teu amigo pelo reconhecimento, ou teu escravo
pela ambição!
eugênio E Paulina?
barão Paulina ama-te bastante, para sujeitar-se à tua sorte. Conta-
-lhe tudo.
eugênio Nunca! Morreria de vergonha antes de pronunciar a pri-
meira palavra! Pois eu, que quero ser respeitado por ela, hei
de ir depor a seus pés uma fronte envilecida pelo ferrete
da escravidão?... (Pequena pausa.) Diz bem, meu amigo,
devo lutar! Será uma luta grandiosa, entre a fraqueza do
homem e a onipotência do destino, porém... vencerei!
barão Muito bem! É assim que te quero ver! Não é com vãs
lamentações que se repelem os ataques da adversidade!
Combate-se enquanto há elementos para isso!
eugênio E... Marta?...
barão Não és bastante rico para lhe proporcionares uma existência
feliz?
eugênio Longe de mim, exposta à curiosidade do mundo? É im-
possível!
barão (indignado) Impossível!... Tens um coração duro e ingrato!
(Passeia e para.) Amanhã falaremos sobre isto. Vem para a
sala que a tua ausência já deve ter sido notada.

94
eugênio Aparecer neste estado de perturbação? (Marta aparece à porta.)
barão Pois acalma-te, e vem depois; eu vou para perto dos teus
amigos. (Sai. Marta aproxima-se.)

Cena XI
Eugênio e Marta

eugênio (apercebendo-a) O que vem fazer aqui?...


marta (muito comovida) Meu filho!... (Súplice) Agora que estamos
sós... uma palavra ao menos...
eugênio Nada tenho a ouvir, nem a dizer!... Já lhe disse que... não
a conheço!
marta (amargamente) Não me conheces?... Oxalá que assim fora!
Não prantearia com lágrimas de sangue a tua crueldade!
eugênio (perturbado) Senhora!...
marta (ressentida e penalizada) É possível que a tua opulência e o
esplendor da tua posição sejam causas para que renegues
aquela que te alimentou com o sangue das suas veias? (En-
ternecendo-se.) Que te ajudou a dar os primeiros passos na
vida, e te ensinou a balbuciar a primeira oração a Deus?...
eugênio (em grande luta de sentimentos) Basta... basta!...
marta (súplice) Chama-me tua mãe!... (Olha em torno da sala.) Tua
mãe!... (Com muita ternura.) Filho de minha alma!... Oh!...
(Quer pegar na mão de Eugênio; este, que tem estado em grande
agitação, afasta-se vivamente.)
eugênio Repito-lhe que... está enganada!
marta (com amargura) Enganada?! Crês tu que um coração de mãe
se possa enganar? Julgas que o íntimo de um seio de mu-
lher estremeça sem ser pelo ente a quem gerou?... (Eugênio
encaminha-se para o fundo. Marta toma-lhe a passagem.) Filho!

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(Em lágrimas.) Meu filho! Não me fujas! Atende à mísera
que te chamou nos longos dias de vinte e nove anos! A
única consolação que eu tinha nas minhas cruéis aflições
era a esperança de um dia encontrar-te, e unir-te ao meu
seio! (Eugênio olha desassossegado para as portas.) Vejo que é
o receio que te faz fugir dos meus braços... sim, tu me hás
reconhecido... a tua comoção mo diz.
eugênio (em crescente comoção) Deixe-me, senhora!... preciso ficar
só...
marta (agarrando-lhe na mão) Eugênio!... (Quer abraçá-lo.)
eugênio (revestindo-se de ânimo e repelindo-a) Esse Eugênio... morreu
para a senhora!
marta (com grande angústia) Oh!... Meu Deus!... Meu Deus!...
(Cai desmaiada nos braços de Eugênio, que a ampara. Paulina
vem entrando pelo fundo e, ao vê-los, para a poucos passos muito
maravilhada.)

FIM DO SEGUNDO ATO

96
ATO III

Em casa de Eugênio, a 6 de setembro de manhã. A mesma decoração do 1º ato.

Cena I
Barão e Paulina, assentados

barão Repito-lhe, minha filha: seu marido não lhe merece se-
melhante tratamento...
paulina Eu não o trato mal; se ando triste, é porque não me posso
contrafazer; não sei fingir.
barão E por que anda triste? Eu não lhe aconselho o fingimento,
nem quero que se contrafaça. Seja alegre, francamente,
sem esforço, como outrora! Mostre-se prazenteira, expan-
siva... Se soubesse o quanto uma mulher se torna interes-
sante com a sua meiguice e amabilidade? Veja como se tem
deixado abater! Já não trata de si com aquele cuidado... tem
a fisionomia tão mortificada!
paulina (forcejando para não chorar) Meu amigo!
barão Está com o coração opresso e a nadar-lhe em lágrimas...
pois desafogue-o! Chore!... chore em presença do seu ve-
lho amigo, que o será sempre, sincero e desvelado! (Paulina
prorrompe em soluços.) O que a aflige?... (Pega-lhe na mão.) O
que a atormenta? Fale, seja franca comigo! (Pequena pausa.)
paulina (mais calma) Porque anda Eugênio tão triste! O que lhe hei
feito para que ele busque sempre evitar-me?

97
barão Ele!... Evitá-la!... Que prevenção a guia no juízo que faz
acerca do pobre Eugênio?
paulina Prevenção?... Sempre tão preocupado, tão sombrio...
barão (tristemente) Ora, minha filha! Pois um homem na posição
de seu marido não tem, no giro dos seus negócios, coisas
que o preocupem?
paulina (secamente) Está bom; mudemos de conversa. (Pequena pau-
sa.) Ainda não pude saber a causa do desmaio de Marta, na
noite em que Eugênio tanto insistiu para ficar só. Tem-me
feito disso um mistério...
barão Algum achaque antigo, talvez...
paulina E o que foi ela fazer ao gabinete de Eugênio, àquela hora?
barão Isso... nada quer dizer! É tão fácil dar-se qualquer caso
que...
paulina (com ironia amarga) O Barão é um amigo dedicado, ao úl-
timo extremo!
barão (com dignidade) Paulina! Acho-a incapaz de ofender o pai
de seu marido! O que pensa? O que supõe?
paulina Penso que em tudo isto existe um mistério indigno!
barão Os meus cabelos brancos e a minha dedicação à sua feli-
cidade impõem-lhe o dever de dar crédito às minhas pa-
lavras. Seu esposo é credor de todo o seu afeto, e digno de
toda a sua estima!
paulina Que suplício de conjecturas! (Erguem-se à entrada de Eugênio.)

Cena II
Os mesmos e Eugênio

eugênio (apertando a mão do Barão) Bom dia, meu amigo!... Não


sabia que estava aqui!

98
barão Cheguei há pouco.
paulina (ao Barão) Agora que o deixo acompanhado, dê-me licença;
tenho que escrever algumas cartas. (Encaminha-se, e o Barão
acompanha-a.)
barão (a meia-voz) A docilidade é a arma mais poderosa da mu-
lher! (Paulina sai.)

Cena III
Eugênio e o Barão

eugênio Paulina estava comovida... O que lhe disse ela?


barão Nada; porém, eu compreendi muito. Tu te comprometes
com as tuas inconveniências! Já muitas vezes te hei dito
que a presença de tua mãe nesta casa pode ser-te muito
prejudicial! Nem sei como consentes que seja criada de
tua filha!
eugênio É ela quem assim o quer. Ama muito a Olímpia, e...
barão E reconhece a necessidade de um pretexto que justifique
a sua presença na tua casa. É mister tirá-la de semelhante
posição.
eugênio Hoje, sinto que não posso viver longe dela! A natureza
recobra enfim os seus direitos, e brada mais alto em meu
coração do que no meu espírito o temor dos escárnios
sociais. (Roda um carro.)
barão Tendo-a fora daqui, podes vê-la, e torná-la feliz com a tua
presença e os teus cuidados.
eugênio E se Paulina souber das minhas visitas?

99
Cena IV
Os mesmos e Pedro

pedro (a Eugênio) O Sr. Visconde de Medeiros manda perguntar


se pode cumprimentar a V. S.
eugênio Que faça o obséquio de entrar. (Sai Pedro.)

Cena V
Os mesmos, menos Pedro

barão Para que continuas a receber o Visconde, depois da formal


recusa que lhe fizeste, da mão de tua filha?
eugênio Crê que me sejam agradáveis as suas visitas? Procura-me,
e a delicadeza impõe-me a benevolência.

Cena VI
Os mesmos e o Visconde

visconde (largando o chapéu) Ora, bom dia, meu caro S. Salvador!


Oh!... o Barão por cá!... (O Barão toma o chapéu e a bengala.)
Como! Pois sai, com a minha chegada?
barão (secamente) Já me dispunha a sair, quando V. Ex.ª entrou. Até
à tarde, Eugênio. (Aperta-lhe a mão.) Adeus, Sr. Visconde.
(Encaminha-se para o fundo, e Eugênio segue-o.) Pensa no que
te disse. (Sai.)

Cena VII
Eugênio e o Visconde

visconde O Comendador já sabe que o Forbes apelou para a Relação?


Diz o seu advogado que tem certa a sua absolvição... o que

100
não duvido! De ordinário, a balança da justiça pende para o
lado dos velhacos! (Eugênio apresenta-lhe cadeira, e assentam-
-se.) O abuso do patronato entre nós...
eugênio Se a Relação o absolver, é porque está inocente. Os cará-
teres dos magistrados respeitáveis de que se compõe esse
venerando tribunal repelem as insinuações que se notam
nas palavras de V. Ex.ª.
visconde Não faça a injustiça de supor-me em dúvida sobre a im-
parcialidade de tão ilibados funcionários da alta justiça!
Bem vê que, entre fidalgos da nossa plana, não se deixa
de atender a certo espírito de classe! Mas... se reformam a
sentença daquele tratante...
eugênio Tenho notado em V. Ex.ª um tal encarniçamento contra
esse homem...
visconde (com ênfase) É o encarniçamento que todo homem honrado
tem contra o vício e a velhacaria.
eugênio (friamente) Se V. Ex.ª quisesse expor-me o objeto da sua
visita?
visconde Simplesmente cumprimentá-lo; sou muito puritano, naqui-
lo que respeita ao cumprimento de deveres sociais, mor-
mente entre pessoas da nossa roda! Uma vez satisfeitos esses
deveres... (Erguem-se.) Não o quero importunar mais. Até
outro dia, Comendador! (Pega no chapéu e encaminha-se para
o fundo, Eugênio acompanha-o.) Nada de incômodos! Nós
outros, fidalgos, dispensamos formalidades vulgares. (Sai.)

Cena VIII
Eugênio e depois Paulina

(Eugênio assenta-se no divã, toma um jornal e percorre-o sem o ler. Paulina


entra com algumas cartas na mão, assenta-se perto da mesa e toca no tímpano.)

eugênio (vai para perto dela) Sempre dás a tua reunião amanhã?
101
paulina (friamente) Se isso o não contrariar.
eugênio (amável) De modo nenhum! Sabes que só estou contente
quando te vejo satisfeita. São os teus convites?
paulina Os últimos que tenho para fazer.

Cena IX
Os mesmos e Marta

paulina (dando as cartas a Marta) Dê estas cartas a Pedro, para mandá-


-las ao seu destino. (Marta, ao tomar as cartas, deixa cair al-
gumas no chão e apressa-se em apanhá-las.) Então!... nada faz
em ordem!... anda sempre abstrata!...
marta Desculpe-me, minha senhora; são coisas que acontecem.
paulina (com mau humor) Deixe-se de respostas! Vá fazer o que
lhe disse! (Marta olha penalizada para Eugênio, que passeia
tristemente pela sala, e sai.)

Cena X
Eugênio e Paulina

eugênio (assenta-se perto de Paulina) És tão severa para com aquela


pobre mulher!...
paulina (encarando-o fixamente) Acha isso?!
eugênio Sem dúvida. A tua natural brandura para todos os teus
servos torna mais sensível a rispidez com que a tratas.
paulina (friamente) Aceito as suas observações; farei todo o possível,
para não desgostá-lo neste ponto.
eugênio Em que tom me falas tu, Paulina! (Pega-lhe na mão.) Estás
doente?
paulina Alguma coisa.
102
eugênio Talvez as minhas palavras sobre Marta te contrariassem;
porém, sei que não gostas de maltratar a pessoa alguma e
vejo que ela se mortifica quando a tratas com dureza.
paulina Se não está satisfeita aqui, por que não se retira? Não é
livre?
eugênio (descontente) Realmente, Paulina! Estou desconhecendo-te!
Sabes que ela não nos quer deixar; afeiçoou-se de tal modo
à Olímpia, a quem, diz ela, deve a liberdade, que fora cruel
o despedi-la.

Cena XI
Os mesmos e Marta

paulina (vendo Marta) Quem a chamou aqui?


marta Já entreguei as cartas e venho saber se a senhora tem mais
algumas ordens a dar-me. (Eugênio toma de novo o jornal.)
paulina (zangada) É preciso coibir-se do mau costume de apresen-
tar-se, sempre, onde não a chamam! Já me aborrece tanta
solicitude! Diga à Luiza que prepare o necessário para me
vestir de preto. (Marta sai.)

Cena XII
Eugênio e Paulina

(Paulina vai até a janela e volta a assentar-se)

eugênio Já sei que vais à missa da Cruz. Queres que te acompanhe?


paulina Ser-lhe-ia um passeio muito aborrecido!... Além de algu-
mas compras que preciso fazer, tenho ainda de visitar a
muitas das nossas pensionistas!
eugênio Minha piedosa Paulina! (Beija-lhe a mão.)

103
Cena XIII
Os mesmos e Olímpia

olímpia Ora, graças a Deus! Já os vejo juntos e satisfeitos! Há quan-


to tempo papai não beija a mão de mamãe?
eugênio Sempre, minha linda, sempre!
paulina Teu pai já pouco se ocupa com tais puerilidades!
eugênio Como és má e injusta comigo, Paulina!
olímpia Então!... ainda temos rusgas? Ora, muito bem! Saibam que
eu não gosto de os ver arrufados! É uma coisa tão feia, num
casal tão bonito! Mamãe? Eu não vou também me vestir?
paulina Para quê?
olímpia Nunca vou à missa da Piedade, nem dou esmola aos po-
bres!...
paulina Todo o teu dinheiro é pouco para ninharias da rua do
Ouvidor.
eugênio Para praticar o bem, nunca faltam elementos. (Tira da car-
teira algumas notas que dá a Olímpia.) Eis aqui, para os pobres,
e para a rua do Ouvidor.
olímpia (transportada, abraçando-o) Ó, meu papaizinho!
eugênio (sorrindo-se) Interesseira! (Beija-a na testa.) Vai-te vestir.
(Olímpia hesita e olha receosa para Paulina.) Então, já não
queres ir à missa?
olímpia (a meia-voz) E se a mamãe ralhar, por eu perder as lições
de música e de francês?
eugênio (alto) Não te há de ralhar. O desejo de tornar-te enciclopédica
não a fará ter-te reclusa todas as semanas do mês!
paulina Estou hoje bem infeliz! Não lhe mereço senão repreensões!
(Sai arrebatada.)

104
Cena XIV
Eugênio e Olímpia

olímpia (pesarosa) Como!... papai repreendeu-a?!


eugênio (triste) Pedi-lhe simplesmente uma coisa, e, como agora,
interpretou mal a minha intenção.
olímpia Eu não sei o que a mamãe tem! Anda sempre de tão mau
humor, que já não me atrevo a gracejar, nem a pedir-lhe
nada! (Triste.) Isto assim entristece a gente!
eugênio (fá-la sentar perto de si) Dize-me uma coisa: estás satisfeita
com a tua aia?
olímpia Pois não, papai, muito!
eugênio Desejo que a trates mais como amiga do que como criada.
É muito bonito numa menina respeitar os mais velhos e
aqueles que lhe consagram afeição!
olímpia Pois, papai, não vê como eu estimo a senhora Marta? Se
ela me quer tanto!... Tem tanto cuidado em tudo quanto
é meu!... faz-me todas as vontades... Como sabe que eu
gosto muito de doces e de flores, gasta quase tudo quanto
ganha em comprar-me uma e outra coisa! Eu não sei por
que a mamãe não gosta da Sr.ª Marta! Nada do que ela faz
lhe agrada! Está sempre a zangar-se...
eugênio Tua mãe anda doente; é do seu estado de saúde que nasce
essa impaciência.
olímpia E anda também aflita; tenho-a visto chorar...
eugênio Ela?! (Erguem-se.)

Cena XV
Os mesmos e Marta

marta Minha menina, venha vestir-se.

105
olímpia Ai!... pois não ia-me esquecendo?... (Marta olha com ternura
para Eugênio; Paulina, que entra, surpreende esse olhar.)

Cena XVI
Os mesmos e Paulina, vestida de preto,
com o chapéu e as luvas na mão

paulina (pondo o chapéu e as luvas na mesa) Então, Olímpia! Ainda


estás desse modo?
olímpia Eu vou já, mamãe! Entretive-me a conversar com papai...
mas a Sr.ª Marta veste-me num instante! (Sai, acompanhada
por Marta.)

Cena XVII
Eugênio e Paulina

paulina Admiro a sua insistência, em querer que Olímpia seja ser-


vida por aquela mulher! (Assenta-se.)
eugênio Admiras-te de uma coisa muito natural. (Assenta-se perto.)
paulina Acha muito natural que nossa filha tenha constantemente
junto a si uma criatura de cuja vida não temos o menor
conhecimento?
eugênio Não desejo contrariar-te: conversaremos com Olímpia e,
se não estiver satisfeita...
paulina Isso não é mais do que uma evasiva! Bem sabemos que
Marta insinuou-se por tal modo no espírito dessa menina,
que ela não tolera os serviços de mais ninguém.
eugênio Então por que te incomodas com semelhante coisa?
paulina E a moralidade, Eugênio?
eugênio A moralidade?!

106
paulina Não tens em conta alguma a pureza de nossa filha? Uma
menina tão ingênua, tão inocente, entregue à convivência
de uma criada, da qual ignoramos os precedentes?
eugênio Não és razoável. Conhecemos acaso os precedentes e a
moralidade dessas criaturas que mandamos buscar a bordo
de uma embarcação, ou nos lugares indicados nos anúncios
do Jornal do Comércio?
paulina Ao menos, são mulheres que nasceram livres.
eugênio (acrimonioso) E, por consequência, moralizadas?
paulina Quando não o são, o instinto e o trato da gente civiliza-
da lhes aconselha a decência precisa para se apresentarem
como tais.
eugênio (impacientando-se) Paulina!
paulina (irritando-se) Quero essa mulher fora desta casa imediata-
mente! (Erguem-se.)
eugênio (contendo-se) Porém já te fiz ver que isso seria uma crueldade!
Foi para piorar a sua situação que a libertamos? Bem sabes
que não tem conhecimento algum no Rio de Janeiro...
paulina Não lhe faltarão casas onde se empregue.
eugênio E Olímpia, que não a quer dispensar?
paulina Fá-la-ei dispensar. Uma criança não tem vontades.
eugênio (com firmeza) O que exiges é impossível... por ora.
paulina (encolerizada) Impossível!
matilde Dão licença?
eugênio (serenando-se rapidamente e indo recebê-la) Oh! minha senhora!

107
Cena XVIII
Os mesmos e Matilde

matilde (aperta a mão de Eugênio) Bom dia, meu amigo! Paulina...


(Beija-a.) O que tem? Está com o rosto tão alterado! Está
doente?
paulina Um pouco.
matilde E vai sair? Ah!... agora me lembro... hoje é dia das suas pie-
dosas excursões! (Paulina toma-lhe o chapéu.) A beneficência
é uma bela virtude! Até presta àqueles que a praticam um
certo quê tão mavioso... Já reparou, meu amigo, como Paulina
está de uma beleza tão tocante, com aqueles vestidos negros?
eugênio (olhando para Paulina com ternura) Se eu fosse escultor, tomá-
-la-ia para modelo das minhas estátuas da caridade.
paulina (brevemente irônica) E o senhor, seria a fé?
eugênio (fitando-a com intenção) Sem dúvida!
matilde Que duas sublimes virtudes teologais! Para completar o grupo
(olhando) ali vem a esperança... (Entra Olímpia.) E como
vem faceira! (Ergue-se.)

Cena XIX
Os mesmos e Olímpia, vestida de preto

olímpia Bom dia, Sr.ª D.ª Matilde... (Matilde beija-a na face.) Já sei
que nos faz companhia às visitas dos pobres?...
matilde Não, minha menina; hoje tenho de tratar de interesses
que me são caros. As conveniências do céu não nos devem
impedir de olhar para as coisas cá da terra; porque, segundo
o preceito do Supremo Instituidor da Caridade, a bem en-
tendida deve principiar pelos de casa! Diga-me uma coisa, meu
amigo: durante a ausência de Paulina, a minha presença
ser-lhe-á incômoda? (Paulina põe o chapéu e calça as luvas.)

108
eugênio Ao contrário, minha senhora, ela povoará a minha solidão!
matilde Por tão lindas palavras, prometo-lhe abreviar a penitência,
o mais que me for possível... Porém, meu Deus! O que fiz
eu a Paulina?... Nem ao menos me quer olhar!
paulina Desculpe-me; estou com muitas dores de cabeça!

Cena XX
Os mesmos e Pedro

pedro (à porta) O carro já está pronto. (Sai.)

Cena XXI
Os mesmos, menos Pedro

paulina (apertando a mão a Matilde) Até a volta! (Sai precipitadamente.)

Cena XXII
Os mesmos, menos Paulina

olímpia (aflita) Oh! senhores! O que tem a mamãe?! Parece que vai
chorando! Papai... (Beija-lhe a mão, e aperta a de Matilde.)
Até logo, Sr.ª D.ª Matilde... (Sai quase a correr.)

Cena XXIII
Eugênio e Matilde

(Eugênio assenta-se abatido e fica silencioso alguns momentos)

matilde (assenta-se perto de Eugênio) Tenho conhecido que entre os


meus amigos já não reina aquela deliciosa harmonia de
outrora!
109
eugênio É verdade, Sr.ª D.ª Matilde; ao encanto do nosso trato tão
íntimo e tão ameno sucedeu o desgosto e o constrangi-
mento!
matilde E poderei fazer alguma coisa em prol do seu sossego e da
sua felicidade? Tenho-o por um esposo digno de todo o
afeto e estima; por consequência, nada arrisco em tentar a
sua reconciliação com Paulina. Quer fazer-me confidência
dos seus pesares?
eugênio Mereço a sua estima, mas a confidência que me pede é im-
possível! Só lhe posso afirmar que sou muito desgraçado!
matilde Adivinho, nesta fase da sua vida, um drama...
eugênio Cuja principal peripécia far-me-ia morrer de vergonha!
matilde (surpresa) O que diz, meu amigo?!
eugênio (mortificado) Oh!... poupe-me! (Pequena pausa.)
matilde Foi para tratar da felicidade dos meus amigos que eu so-
licitei esta conversação; não me tache, portanto, de intro-
metida na sua vida íntima.
eugênio Fale, minha senhora.
matilde Marta foi o pomo da discórdia lançado à ventura e à calma
desta casa, não é verdade?
eugênio Paulina odeia-a.
matilde O que lhe fez ela?
eugênio Nada; um infundado ciúme...
matilde (surpresa) Ciúme!... de uma mulher daquela idade?!...
eugênio Maltrata-a... Até quer expeli-la desta casa!
matilde Expeli-la!... isso seria muito mal feito! Não o consinta!
Preciso conversar com Paulina; é mister que ela saiba que
essa a quem quer lançar fora de sua casa foi a companheira
de infância de sua mãe!

110
eugênio (ergue-se sobressaltado) Como!... A senhora sabe?...
matilde A história de Marta?... Conheci-a na Bahia, donde ela é
filha, e logo a reconheci quando há dois meses a encontrei.
(Eugênio assenta-se.) O infortúnio pouco a tem desfigurado.
eugênio E ela não a reconheceu?
matilde Tenho a certeza que não. Em mim ficaram bem marcados
os vestígios da passagem da desgraça!
eugênio E à Paulina?
matilde Não sei o que pense a tal respeito. Corações como o de
Marta nada esquecem daquilo que lhes foi caro; e ela afagou
Paulina muitas vezes em seu seio. Alguma causa misteriosa
a leva a fingir que não a conhece; tenho respeitado essa
causa, nada revelando à sua esposa. Marta é uma boa cria-
tura, e é infeliz, como todo ente que, tendo a consciência
do seu valor, se estorce nas agonias de uma forçada abjeção!
(Pequena pausa.) Não acha uma bárbara irrisão do destino o
dom do espírito e da inteligência em alguns indivíduos?
eugênio Em certos casos, é, minha senhora.
matilde Nem se deve desenvolver e frutificar tão funestos dons em
um escravo. Para que revelar-se a uma moça cativa, conde-
nada pela sua condição aos mais grosseiros misteres, o que
há de distinto e de elevado em conhecimentos e prendas,
só próprias dos círculos elegantes? Marta está neste caso, foi
vítima daqueles que a criaram. Educou-se com a filha de sua
senhora no mesmo colégio, e aprendeu tudo quanto aquela
estudou... até música e desenho! Quando a mãe de Paulina
casou-se, levou-a em sua companhia, onde era ela tratada
mais como amiga do que como escrava. Teria quatorze anos,
quando um caixeiro da casa, com promessas de libertá-la e
ser um dia seu esposo... A pobre rapariga deixou-se iludir...
eugênio (com maldisfarçada ansiedade) E... esse homem...
matilde Casou-se com uma rica viúva, pouco antes de vir à luz o
fruto da sua sedução.
111
eugênio E ele... existe ainda?
matilde Não sei; conheci-o só de nome. Mas que grande malvado!
Ah!... Devo uma grande reparação à Paulina, meu amigo!
eugênio (surpreso) A senhora?!
matilde Não por mim; mas por meu marido. (Espanto em Eugênio.)
Vou revelar-lhe o que nunca me atreverei a dizer a Paulina;
receio perder a sua afeição.
eugênio Pelo quê?...
matilde Quando, logo ao começo das nossas relações, Paulina con-
tou-me alguns fatos da sua vida, reconheci nela a vítima de
uma horrível trama! Lembra-se do motivo que ocasionou
a condenação de seu sogro?
eugênio (sombrio) Subtração de bens aos credores.
matilde Pois esses bens foram Marta e seu filhinho... uma linda
criança, perfeitamente branca! O que tem?...
eugênio Nada, minha senhora; tenha a bondade de prosseguir.
matilde Pois o infeliz Torres estava inocente do crime que lhe im-
putaram; não os havia vendido; havia-os libertado.
eugênio (erguendo-se) Libertado!... A ela?!
matilde (ergue-se) A mesma a quem o meu amigo forrou há dois
meses.
eugênio É isso exato?
matilde Tenho provas incontestáveis.
eugênio Logo, eles...
matilde Foram vítimas de um grande abuso... de um crime! Escute-
-me (assentam-se): a mãe de Paulina desejava ardentemente
dar a liberdade à Marta. Porém, seu marido, que temia as
consequências da inexperiência, concordou com os desejos
de sua esposa, debaixo da condição de não ser ela instruída
desse fato, senão quando se achasse já em idade provecta!
112
Marta foi livre, e o segredo religiosamente guardado. Al-
gum tempo depois, foi Torres obrigado a fazer ponto e, por
uma fatal previdência, entregou a mãe e o filho, com os
papéis que os restituía à sociedade, a um amigo em quem
depositava grande confiança, recomendando-lhe o maior
silêncio, até um prazo marcado.
eugênio E esse amigo...
matilde Inutilizou os documentos e conservou-a em um cativeiro,
que não se tornou mais ignóbil, por ser ela uma rapariga
essencialmente virtuosa. Foi nesta época que a conheci.
eugênio E seu filho?
matilde Foi-lhe arrancado dos braços e vendido aqui, para o Rio
de Janeiro. A pobre mãe quase sucumbiu ao desespero!
Escapou por milagre à morte, mas... enlouqueceu! A infeliz
mulher chamava a todos os momentos por seu filho, ao
qual queria reunir-se no céu. (Enxuga os olhos.) Apesar de se
terem passado tantos anos, não posso deixar de entristecer-
-me ao lembrar-me de seus sofrimentos!
eugênio Porém... a Senhora não me disse ainda o nome desse fal-
sário... desse ladrão!...
matilde (triste) Não lhe disse há pouco que eu devia uma grande
reparação a Paulina?
eugênio Então, o assassino da vida e da honra de Olímpio Torres...
o monstro que reduziu à escravidão duas pessoas livres...
matilde Foi meu marido, Sr. Eugênio...
eugênio (ergue-se) Seu marido!! (Rodar de carro.)
matilde (ergue-se) Aquele que é hoje o procurador Antônio Forbes.
(Vai à janela.)
eugênio Forbes!!
matilde (volta da janela apressada) Paulina já!... acalme-se, vou rece­
bê-la. (Sai.)

113
Cena XXIV
Eugênio e depois Marta

(Eugênio passeia, procurando serenar-se; Marta aparece à porta e para receosa)

eugênio (apercebendo-a) Minha querida mãe!... (Cai-lhe aos pés.) Per-


dão! (Beija-lhe as mãos, a chorar.) Perdão!
marta (alegre e agitada, querendo erguê-lo) Meu Deus!... Será isto
um sonho?...
eugênio Hei de ainda torná-la tão feliz!... (Torna a beijar-lhe as mãos.
Paulina vem entrando pelo fundo e para fulminada pelo que vê.)
marta E posso ser mais feliz do que sou neste momento? Ergue-
-te... deixa-me abraçar-te. (Eugênio, ao erguer-se, vê Paulina,
que se aproxima.)
eugênio (estremece e recua) Paulina!!!
marta Ah!!

Cena XXV
Os mesmos e Paulina

paulina (com a voz trêmula de cólera) Exigi há pouco que despedisse


esta criada; agora, peço-lhe que a conserve: é a mulher que
lhe convém.

(Olímpia e Matilde entram pelo fundo, no momento em que desce o pano.)

FIM DO TERCEIRO ATO


ATO IV

Casa de Correção, a 7 de setembro, de manhã.

Sala com portas ao fundo e à direita; janelas gradeadas à esquerda; um banco.


Ao levantar-se o pano, ouve-se por algum tempo cantar o tantum ergo com
acompanhamento de órgão. A cena está vazia. Um guarda, de espaço a espaço,
passeia pelo fundo.

Cena I
O Barão, Matilde e um guarda

guarda O Sr. Diretor manda pedir a V. Ex.ª o obséquio de esperar,


até acabar-se a missa. (Cumprimenta e sai. Cessa a música.)

Cena II
Barão e Matilde

matilde Faltou-me o tempo para comunicar a V. Ex.ª as circunstân-


cias que me obrigaram a pedir o favor da sua companhia até
este lugar. Tenho de tratar de um objeto muito melindroso
com Antônio Forbes, e preciso do auxílio de V. Ex.ª.
barão A Sr.ª D.ª Matilde expõe-se a algum desgosto falando com
semelhante homem!
matilde Vou instruir o Sr. Barão de algumas particularidades que
me afiançam o bom êxito da minha negociação. Conver-

115
semos um pouco. (Assentam-se.) Principio dizendo a V. Ex.ª
que também sou muito amiga da família S. Salvador... até
tenho por mim o direito da antiguidade. (O Barão sorri-se.)
O seu sorriso contesta o meu direito... (Gesto afirmativo do
Barão.) Pelo quê? Por ter sido o Sr. Barão quem educou o
menino Eugênio?
barão Tomei-o a meu cargo quando ele tinha apenas cinco anos.
matilde (com expressão íntima) Pois eu acariciei-o, ainda pendente
do colo de sua mãe.
barão (surpreso) V. Ex.ª?!
matilde Embalei muitas vezes em meus joelhos o filhinho de Marta.
barão (inquieto) Como!... V. Ex.ª sabe?!...
matilde (com intenção) Tudo, Sr. Barão!
barão E como teve conhecimento de uma coisa ignorada por
todos?
matilde A minha história quase que está ligada à da família S. Sal-
vador. O pai de Paulina desceu ao túmulo desonrado por
meu marido... Antônio Forbes...
barão Ele... seu marido!
matilde Outrora... A mãe de Eugênio e eu choramos muitas vezes
os nossos mútuos desesperos!
barão Porém, nunca notei entre V. Ex.ª e Marta sinais dessas
íntimas relações.
matilde Ela não me reconheceu. Para todos daquela casa sou uma
amiga de curta data, sendo-lhes, no entanto, bem dedicada!
Impelida pela amizade que consagro a essa família, tenho
acompanhado os recentes episódios que se têm dado em
sua vida. O Barão já teve notícia da ocorrência que se deu
ontem de manhã, na casa do Comendador?
barão (triste) Estive com ele ontem à noite.

116
matilde Pois a esse fato devo eu o conhecimento da origem dos dis-
sabores de Eugênio e de Paulina. Que cena violentíssima,
Santo Deus! Paulina injuriou atrozmente a pobre mulher,
sem que Eugênio a pudesse defender. Tomei o partido da
desventurada mãe, que se sacrificava, para não compro-
meter o silêncio de seu filho, mas... não fui generosa! A
consciência mo diz. Abusei da efusão do seu reconheci-
mento; interroguei-a, e a pobre Marta, ao reconhecer-me,
confessou-me os laços que a ligam a Eugênio. Coitada! Só
sente o ter de separar-se de seu filho, deixando-o em tão
dúbia posição no conceito da esposa!
barão (preocupado) Crê sinceramente que ela não a tivesse reco-
nhecido?
matilde Creio. Estou tão diferente do que fui, que os meus próprios
amigos, os mais íntimos, não me reconhecem hoje! V. Ex.ª
mesmo há de ainda convencer-se desta verdade... Tornando
à nossa prática: Eugênio é filho de Marta; V. Ex.ª o sabe;
por consequência (tira uns papéis do bolso do vestido), tenha
a bondade de entregar-lhe estes papéis... sem nomear-me;
não quero que se vexe em minha presença. O Sr. Barão
pode lê-los.
barão (acabando de ler, muito admirado) A certidão da carta de li-
berdade de Marta!
matilde Passada e registrada num cartório, por seu senhor, Olímpio
Torres...
barão (lendo de novo) Em 1827!
matilde Um ano antes do nascimento de Eugênio.
barão É possível!
matilde Queira ver a certidão do batismo de Eugênio, que foi ex-
traída do livro da matriz onde foi batizado; confira as datas.

117
barão (lendo atentamente o outro papel) “Eugênio... recém-nascido...
1828...” Um ano depois da liberdade de sua mãe! (Como-
vido.) V. Ex.ª é a Providência daqueles infelizes!
matilde (sorrindo-se) Custou-me bem pouco a representar tão
belo papel! Bastou-me atender a um desses inexplicáveis
pressentimentos que às vezes temos, mandando extrair
essas duas certidões de assentamentos, que eu sabia que
­existiam.
barão E como é possível que ela não soubesse que era livre?
matilde Nunca lho disseram.
barão E quem é V. Ex.ª que assim está tão bem informada de tais
particularidades?
matilde (encarando-o melancólica) Nada em mim o faz lembrar de
alguma época notável de sua vida? (O Barão contempla-a,
e procura recordar-se.) Pois que, Leopoldo!... nem a minha
voz... nem o meu nome... lhe trazem à lembrança uma
vítima da vontade paterna?...
barão (ergue-se) Matilde!
matilde (erguendo-se) O coração da mulher é mais leal às recor-
dações do seu primeiro afeto! Há muito que eu o havia
reco­nhecido!
barão (apertando a mão de Matilde entre as suas) Minha adorada
amiga!
matilde Creio que vem gente... (Vão ao fundo e voltam.) Findou
a missa. (Passam os artesãos, guardas, presos, empregados, etc.)
Infelizes! Ao menos não lhes falta o conforto da religião!
(Entra Forbes, conduzido por um guarda, que se retira e passeia
pelo fundo.)

118
Cena III
Os mesmos e Antônio Forbes

forbes (reconhecendo-os) Matilde! O Sr. Barão de Maragogipe! (Com


amargura.) Vieram escarnecer da minha miséria?... Exultar
com a minha desgraça?...
matilde Não, senhor; o que aqui nos traz é uma questão relativa à
família S. Salvador.
forbes (para Matilde) E a senhora... é também contra mim, numa
situação em que me deveria valer a recordação de um
­passado...
matilde (interrompendo-o) Que esqueci completamente! De mim só
tem a esperar alguma consideração para com o nome que
já foi meu, se aquiescer ao que lhe viemos pedir.
forbes (querendo pegar-lhe na mão) Matilde!
matilde (com dignidade) Respeite-me, senhor!
forbes (ressentido e triste) Queiram dizer-me o fim da sua visita.
matilde Antes de tratarmos disso, é mister que reflita na melindrosa
posição em que se acha.
forbes Denunciaram-me como introdutor de moeda falsa e como
tal fui condenado... De alguns incidentes comprobativos
e do melhoramento repentino das minhas circunstâncias
procedeu a minha condenação. Porém, estou inocente.
Esses incidentes não passam de vagos indícios, e quanto ao
meu melhoramento de circunstâncias... bastariam algumas
palavras... (Sobressalto no Barão.) Tranquilize-se V. Ex.ª, já
estou cansado de fazer mal! Basta a justiça da minha causa,
para justificar-me. O tribunal da Relação há de atender à
improcedência de semelhante julgamento.
matilde E mesmo que seja absolvido, a sua consciência nada mais
lhe diz? O mau esposo, o falso amigo, o motor da ruína
de uma família inteira contenta-se, felicita-se só com a
absolvição dos homens?!
119
forbes Senhora!
matilde Diz que já está cansado de fazer mal... Pois pratique uma
boa ação! Faça alguma coisa em proveito da tranquilidade
do seu espírito, e da ventura daqueles que lhe devem todas
as suas desgraças.
forbes Em que lhes posso eu ser útil?...
matilde Dando um nome ao filho de Marta. (Espanto em Forbes.)
Ele nunca foi escravo, o senhor bem o sabe...
forbes (vivamente) Isso é uma falsidade!
matilde Falsidade!... E os documentos que provam a verdade do
que eu digo?
forbes (inquieto) Documentos?!...
barão (dando-lhe os papéis) Ei-los. Não os inutilize; dar-me-ia o
trabalho de nova extração.
forbes (depois de lê-los) Oh!... Sempre vencido pela fatalidade! (Dá
os papéis ao Barão.)
matilde Pela justiça divina!
barão Compreende pois que, se for absolvido como introdutor
de moeda falsa, será de novo julgado pelo crime de ter
reduzido à escravidão duas pessoas livres. A lei é bem ex-
plícita nestes casos.
forbes (abatido) Pois bem... O que exigem de mim?
matilde A sociedade exige o nome de família do negociante S. Sal-
vador; esse nome só o senhor lhe pode dar.
forbes Eu!... E de que modo?
matilde (ao Barão) Lembra-se, Sr. Barão, da queda da casa Penafiel
& Filhos e da causa que a motivou? (Forbes perturba-se.)
barão Sim, minha senhora; foi o ter sido emitida em sua circulação
grande número de contos de réis, em valores falsificados.

120
matilde Pois o autor desse roubo, que permaneceu até hoje des-
conhecido de todos, menos de mim...
barão De V. Ex.ª!...
forbes Da senhora!...
matilde Foi o próprio gerente dessa casa; meu marido foi seu cúm-
plice.
barão (indignado) O senhor?!
forbes (aterrado) E quem lhe revelou esse mistério?!
matilde O senhor, nas expansões de sua embriaguez. Com as cartas
que tem desse miserável, sobre a questão Penafiel & Filhos,
obrigue-o a reparar a honra da mulher a quem seduziu;
está viúvo, pode fazê-lo. E, apesar de um título, obtido por
donativos feitos a uma nação estrangeira, será Marta quem
descerá até ele.
forbes Conheço o seu orgulho; nunca a esposará.
barão Se não quer tomar sobre si este encargo, dê-me as cartas
de que lhe fala a Sr.ª D.ª Matilde.
matilde (vivamente) Sim, dê as cartas ao Sr. Barão!
forbes Queimei-as.
matilde (com expressão) Antônio Forbes, espírito maléfico e previ-
dente, destruir provas que perdiam a um seu cúmplice?!
barão Dê-me essas cartas, senhor; e, quando S. Salvador tiver
um nome, que não seja o da cidade onde nasceu, dou-lhe
a minha palavra de honra que nada mais terá a recear na
questão de Marta.
forbes Juro-lhes que disse a verdade. Destruí esses papéis, porque
neles estava o meu nome.
matilde (indignada) Quer então roubar um nome à filha, assim
como infamou o do pai?

121
barão Ponha um termo às suas iniquidades, e poupe-nos o dis-
sabor de publicar fatos que, conquanto enchessem de
desgostos a Eugênio, livrariam a sociedade de um grande
criminoso. (Forbes mostra-se comovido.)
matilde (aflita) Dê-nos essas cartas... peço-lhas em nome de alguma
coisa que ainda lhe seja sagrada no mundo!
forbes (encarando-a com ternura e súplica) Matilde! (Matilde afasta-se
com desgosto.)
barão Faça o que lhe propõe a Sr.ª D.ª Matilde, que eu lhe prome-
to, se estiver inocente, abreviar a reforma da sua sentença;
e, no dia em que recobrar a sua liberdade, dar-lhe-ei o
capital necessário para viver, em qualquer parte da Europa,
de um modo mais digno, e livre das tentações da miséria.
(Forbes está muito desanimado.) Recusará a vida tranquila e
honrada que lhe ofereço para o resto de seus dias?
forbes (tristemente) O que é preciso fazer para convencê-los de
que já destruí essas cartas? Queimei-as... creiam: e agora
façam de mim o que quiserem.
matilde Oh! meu bom Deus!... Aniquiladas todas as minhas espe-
ranças?!... Isto faz descrer da Providência!
barão Não se desespere... Se este homem quiser ouvir a voz da
sua consciência...
matilde (sorrindo amargamente) Consciência?!... Ele não a tem!
forbes (ao Barão) E julga V. Ex.ª que já não tenho ouvido essa voz?
barão Por que não aproveita este ensejo, para tentar reabilitar-se?
forbes (tristemente) Para mim, já não há reabilitação possível!
barão Pode ao menos parar na horrível trilha que tem seguido.
Para que nos negar o seu adjutório num empenho tão
louvável?
forbes O que desejam obter de mim é um impossível! Esse ho-
mem é hoje um titular.

122
barão O que importa isso se, de um momento para outro, pode
o seu título ser trocado por um número nesta mesma casa?
matilde Qual, Sr. Barão! Nada o move. Há organizações assim; há
corações dominados pelo egoísmo da perversidade, que
nada querem fazer em proveito da virtude!
barão (severo) Ceda ao menos à convicção de que do mal só mal
lhe resultará!
forbes (com sentimento) Se vinte anos de punição social, que se
traduz pela miséria, pelo desprezo e execração dos homens,
não tivessem vingado a sociedade do opróbrio sobre ela
lançado, por um dos seus membros, tê-lo-iam feito estes
dias – longos séculos! – de arrependimento passados no
isolamento destes muros! As palavras de V. Ex.ª mostram-
-me um futuro de paz e de esperança na misericórdia divi-
na, e... não posso dar o primeiro passo na senda da regene-
ração moral! Repito... Esses funestos escritos, queimei-os
realmente. (O Barão olha desanimado para Matilde.)
matilde Não o creia, Sr. Barão! Isto não passa de uma ignóbil co-
média!
forbes (sentido) Comédia!... (Com amargura.) Com estas vestes e
neste lugar?!... A senhora, cuja vida tem sido uma sequência
de ações virtuosas, não pode devassar os horrorosos misté-
rios de uma organização propensa ao mal, e a ele conduzida
por péssimos agentes! Não concebe a possibilidade da luz
do céu no meio do abismo! (Dirigindo-se também ao Barão.)
Porém creiam-me: quando a consciência de um delinquen-
te percorre todos os seus arcanos e sente penetrar em si o
arrependimento, a alma resgata-se à condenação eterna, e
entrega-se àquele de quem a recebemos pura e boa!

123
Cena IV
Os mesmos e o guarda

guarda O Sr. Diretor manda-lhe entregar isto. (Entrega-lhe um


bilhete de visita dentro de uma sobrecarta não fechada.)
forbes V. Ex.ª dá licença? (O Barão faz-lhe um sinal de assentimento.
Forbes abre a carta e lê o bilhete.) E a pessoa que me mandou
este bilhete?
guarda Está na sala do Sr. Diretor.
forbes Diga-lhe que estou às suas ordens. (Sai o guarda.)

Cena V
Os mesmos menos o guarda

forbes Se me permitem que receba uma visita...


matilde E as cartas?
forbes Já tive o desgosto de assegurar-lhes...
matilde (encolerizada) Oh! isto é o cúmulo de toda a indignidade!
barão (severo) Esquece que está em nosso poder... ou antes em
poder da Lei?
forbes (inclina-se) Farei todo o possível para cumprir as ordens
de V. Ex.ª. (Afasta-se respeitoso, para dar passagem ao Barão e
Matilde, que saem pelo fundo.)

Cena VI
Forbes e depois o Visconde

forbes (passeia alguns instantes muito preocupado; o Visconde aparece a


uma porta lateral e olha receoso para dentro da sala.) Pode entrar,
Sr. Visconde. (Entra o Visconde.) V. Ex.ª compara esta sala

124
com aquela onde se assentava à minha mesa, no tempo em
que as suas visitas não se faziam esperar tanto?
visconde Se eu soubesse que o seu fim era pedir-me o preço de
uma hospitalidade concedida a todo bicho careta, tinha-me
poupado ao enojo de aqui vir! Acha muito bonito que se
saiba na minha roda que ando a visitar presos na correção?
O que pretende de mim? Diga depressa!
forbes Mandei-o chamar, para pedir-lhe que aproveitasse as suas
relações a favor do termo da minha apelação...
visconde Está doido?... Ora essa!... Comprometer-me a falar por
você?... Expor-me aos comentários da minha roda, interes-
sando-me por semelhante causa? O mais que lhe posso
fazer – por filantropia – é pôr a minha bolsa à sua dispo-
sição... com as precisas restrições, já se sabe!
forbes Agradeço-lhe o obséquio; já mudei de propósito.
visconde E fez muito bem; nada temo tanto no mundo como as
falsas interpretações!
forbes (intencional) E o remorso?!
visconde Não o compreendo!...
forbes O remorso?... Deixemo-nos de jogo inútil de palavras,
Sr. Fróes de Medeiros! Encaremos francamente as nossas
posições, tão solidárias e tão diferentes...
visconde Aonde quer chegar você com esse aranzel?
forbes A esta conclusão: Deus existe! A Providência o revela em
seus decretos!
visconde (irônico) Sim!... Pois saiu-se agora com essa descoberta?!
forbes Descrê de Deus e da Providência?! Também eu não tinha em
conta alguma estas supremas verdades! Deus era para mim
uma palavra tradicional; a consciência, um simulacro de protes-
to quando queria autorizar algum ato reprovado; o remorso...
Esse conheço-o agora! É o raio com que a Providência me
fulmina, para fazer-me parar no vórtice de tantos crimes!

125
visconde Se quer convencer-me de todas essas coisas, veja se acha
outros argumentos; porque ou nada disso existe sobre as
nossas cabeças, ou eu sou uma santa criatura! Nunca tive
remorsos! Por aí não me leva aos seus fins.
forbes (intencional) E pelo instinto da segurança individual?
visconde (inquieto) Como?...
forbes Quis falar-lhe à alma... Homens que calcam aos pés os
mais santos deveres não a têm! As sacrílegas palavras que
acaba de proferir assaz o provam.
visconde Ora... Basta de histórias!... diga o que quer!
forbes Há trinta e cinco anos que a sua incontinência abandonou
no mundo dois infelizes em bem tristes condições! Uma
mãe sem esposo e um filho sem pai.
visconde (cínico) São coisas tão comezinhas!... Por isso não há de
a sociedade excomungar-me com os seus anátemas! Tenho
muitos imitadores.
forbes (solene) O que – para honra da humanidade – não tem
muitos exemplos é o fato de um pai, renegando o filho a
quem gerara, roubar-lhe impiamente a liberdade que não
soube dar-lhe, exigindo a sua venda...
visconde (assustado) Cale-se!... Cale-se com os... Se quer alguma
coisa...
forbes O senhor fez da minha má índole o instrumento de todas as
suas paixões! Arrastou-me ao charco de todas as impurezas
morais, onde deixei bens, felicidade e honra! Levando-me
a servi-lo em seus detestáveis cálculos, pratiquei...
visconde (cínico) Deixe-se de exagerar algumas travessuras de rapaz!
forbes (indignado) Travessuras! Chama travessura o termos deson-
rado um homem virtuoso, roubando a liberdade de dois
entes, que nos deviam ser sagrados por todos os princípios?

126
visconde (um pouco embaraçado) Sim... sim... conheço que não tenho
um passado muito puro!... Porém, deve-se desculpar as
inconsequências da mocidade!
forbes Pois a consequência dessas inconsequências é a reclamação
do seu nome que lhe faz hoje Eugênio S. Salvador...
visconde (surpreso) O quê?!... S. Salvador!!... Pois ele... é meu filho?!
forbes E de Marta, que exige a promessa que lhe foi feita há trinta
e cinco anos.
visconde Que exige!... essa agora... é galante! Eu casado com... (Riso.)
Ah!... ah!... ah!.... não está má a pilhéria!
forbes (estupefato) Pilhéria?!
visconde Pois não! Admitindo mesmo que exista a tal paternidade,
julga que eu hei de, por um tolo escrúpulo, desonrar o
meu título dando-o a uma liberta?... Outro ofício, meu
caro! Quem lhe encomendou o sermão que lho pague!...
E eu aqui a perder o meu tempo... Enfim!... sempre lucrei
alguma coisa! Fiquei sabendo que esse tal S. Salvador, tão
pretensioso e tão bajulado, nada mais é do que um mise-
rável bastardo, filho...
forbes (exaltando-se) De um falsário! De um ladrão!
visconde (indo para Forbes) Insolente!
forbes (acalmando-se) Assoa-lhe também esta horrível verdade, Sr.
Visconde de Medeiros! Para abater um caráter elevado e
sobranceiro às ridículas pretensões da estupidez, patenteie
a todos o segredo do filho do ex-gerente da casa Penafiel &
Filhos!
visconde Oh! Senhores! E ele só a falar em coisas de que já ninguém
se lembra!...
forbes De que ninguém se lembra?! Os fatos que acabo de apontar
foram há pouco aqui rememorados.
visconde (inquieto) Aqui?!

127
forbes O passado que se esquece é só o bom, porque recorda
feitos dignos e meritórios! O mau que inspira sentimen-
tos de ódio e desprezo, e que imprime na fronte de um
miserável o estigma da degradação, esse nunca se olvida!
Pesa sempre sobre o orgulho do homem, até à sua última
queda! As cartas que me escreveu sobre o negócio Penafiel
& Filhos (sobressalto no Visconde) param nas mãos do Barão
de Maragogipe!
visconde O que diz?! Pois essas malditas cartas... Sr. Forbes!... não
brinque... Não fale em coisas que muito o podem preju-
dicar! Acabemos com esta embrulhada; já lhe disse, fale
franco, e deixe-se de invenções! Essas cartas não existem...
o senhor mesmo mo afirmou.
forbes Menti-lhe... Existem, e acabo de entregá-las ao Barão, pela
minha liberdade e pelo meu futuro.
visconde (com desprezo) Vendeu-as?
forbes (calmo) Troquei-as.
visconde E para que quer o Barão esses papéis? O que intenta fazer
com eles?...
forbes (imperioso) Obrigá-lo a dar a seu filho o nome a que tem
direito. E só quando o Sr. Visconde de Medeiros tiver
cumprido um dos mais sagrados deveres da natureza, ser-
-lhe-á restituída a correspondência do gerente Fróes. (O Vis-
conde passeia desorientado.) O Barão quer hoje mesmo uma
resposta.
visconde Isto não passa de uma trama, arranjada entre você e os
amigos desse S. Salvador! A correspondência foi queima-
da! Disse-me, e eu o acredito, porque o seu conteúdo o
comprometia. Se ela aparecesse, perder-se-ia comigo.
forbes Sim!... mas far-se-ia... e far-se-á justiça!
visconde Mas, homem... isto é um contrassenso! Bem vê que não
posso fazer o que se exige de mim!... Ora, diga-me cá:

128
como me receberiam na minha roda, depois de tão dispa-
ratado enlace? É preciso não ter o juízo no seu lugar, para
admitir-se a possibilidade de semelhante casamento! (Pas-
seia desesperado.) Não posso! Dê no que der, não descerei
até Marta!
forbes (com força) Será ela quem desça até o falsário Medeiros!
visconde (furioso e concentrado) Eu lhes mostrarei quem sobe ou quem
desce! Tenho prestígio, tenho amigos... tenho dinheiro!
forbes (com autoridade) Acima de tudo isso, está a lei e a justiça!
visconde (sarcástico) A Justiça dos homens também se compra!
forbes (com força) Sim! Mas acima dos homens está a onipotência
de deus!

(Cai logo o pano.)

FIM DO QUARTO ATO

129
ATO V

No mesmo dia, da tarde para a noite; em casa de Eugênio.

Sala contígua ao salão principal, com três portas ao fundo, fechadas, e portas
aos lados.

Cena I
Eugênio assentado, Marta entrando

marta Já estiveste com Paulina?


eugênio (desanimado) Não tive valor para procurá-la. (Ergue-se.)
marta Meu pobre filho! Sê forte, não desanimes.
eugênio O lance é tremendo! Apresentar-me ante Paulina, na avil-
tante condição de um escravo... escravo!... eu, filho de uma
escrava?! Oh! não! não posso!
marta (com amargura) Eugênio!
eugênio (beija-lhe a mão) Perdão!
marta (triste) Só para uma mãe todos os sacrifícios são possíveis!
Sei o que me cumpre fazer para a tua felicidade. Levada
pelo egoísmo da minha ternura, esqueci o mal que a minha
presença...

131
Cena II
Os mesmos e Paulina

(Paulina vem entrando tristemente; ao ver os dois, quer retroceder.)

eugênio (adiantando-se para ela) Paulina! peço-te que me escutes!


(Paulina encara-o com frieza.)
marta (à Paulina) Antes de deixar para sempre esta casa...
eugênio Deixar esta casa!
marta Sim, e praza a Deus que, com a minha ausência, volte a ela
a paz e a felicidade que gozavam antes da minha funesta
aparição!
paulina (com desdenhosa ironia) Era então este o expediente que
combinavam para... Julgam-me pois tão néscia, que dê
crédito a tão grosseiro subterfúgio? Se alguém deve deixar
esta casa, sou eu.
eugênio O que dizes?!
paulina Amanhã retirar-me-ei com minha filha, para a casa do
amigo, que me ofereceu o seu amparo para o momento
da adversidade.
eugênio (com autoridade) Saírem daqui?... Isso nunca!
paulina (com firmeza) É o que me compele fazer, depois de tão
repugnante abuso!
eugênio Não houve abuso... houve fatalidade...
paulina Fatalidade! Foi a fatalidade que o obrigou a conspurcar a
santidade do lar doméstico, com a presença da sua antiga
amante?
eugênio (encarando-a) Paulina!
marta Jesus!

132
paulina Foi ainda a fatalidade que o levou a reatar laços criminosos,
com uma vil escrava?... (Gesto de angústia em Marta.)
eugênio Senhora!...
paulina Calcando todo o respeito às conveniências de pai e de es-
poso, trazer para o seio de sua família uma criatura indigna
e viciosa?
eugênio (severo) Basta, senhora! Nem mais uma palavra de insulto!
paulina (dolorosamente ressentida) Ameaças!
eugênio (grave) Não ameaço; peço-lhe... ordeno-lhe mesmo!... que
respeite...
paulina (com explosão de cólera e desprezo) À... sua amásia?...
eugênio (apresentando-lhe Marta) A... minha mãe! (Vem entrando o
Barão.)
paulina (aterrada) Sua mãe!!
marta (para Eugênio) O que fizeste?!

Cena III
Os mesmos e o Barão

barão O seu dever! Muito bem, meu filho! (Aperta a mão de Eu-
gênio. Vai para junto de Paulina.) Ânimo!
paulina (a meia-voz, ao Barão) É então verdade?... (Eugênio e Marta
falam entre si, olhando para Paulina.)
barão É.
paulina (mortificada) Oh!...
barão É uma revelação que há muito seu marido lhe devia ter
feito; o receio de desgostá-la o reteve. Agora, que sabe o
segredo que se lhe ocultava, mostre-se mulher superior,
pelo sentimento e pela inteligência! Vá para o seu gabinete,

133
e procure tranquilizar-se. Daqui a pouco, lá estarei para
conversarmos.
paulina (caminhando vagarosamente) Meu Deus!... O que hei de fa-
zer?...
barão (acompanhando-a) Cumprir a sublime missão da mulher:
amar e esquecer. (Sai Paulina.)

Cena IV
Os mesmos, menos Paulina

barão Coragem, Eugênio! Tens a sorte por ti! Pouco te empe-


nhaste na luta, porém... venceste!
eugênio Consumou-se a minha desgraça! A afeição de Paulina não
resistirá ao abalo do golpe descarregado no seu amor pró-
prio! Vai talvez desprezar-me... odiar-me!
barão A esposa amante e dedicada não põe limites à sua abne-
gação. Vai relatar-lhe toda a verdade da tua vida. Dize-lhe
que eu, que te recebi à tua entrada no mundo moral, me
ufano de chamar-te meu filho, e meu amigo!
eugênio (comovido, beijando-lhe a mão) Meu pai!
marta (beijando-lhe também a mão) Homem generoso!... Não bas-
tava ao pobre órfão dever-lhe tudo quanto é no mundo,
ainda mais esta paternal estima, que tão orgulhoso o deve
tornar!
barão (muito enternecido) Sim! Paguem o meu afeto na única mo-
eda grata à minha alma: com a efusão de um sincero re-
conhecimento! Tens sido bem culpado para com tua mãe,
Eugênio! Pede-lhe perdão das tuas culpas.
eugênio Oh!... ela há de perdoar-me!... (Quer beijar-lhe as mãos.)

134
marta (puxando-o para si e abraçando-o) Perdoa-me tu o teu fatal
destino! (Ficam alguns instantes abraçados. O Barão contempla-
-os e busca esconder-lhes as lágrimas.)
eugênio (beijando as mãos de Marta) Meu Deus!... como sou feliz!...
sim... muito... muito feliz!
marta (enxugando as lágrimas) E eu?... Graças, Senhor! Mandais-
-me o perdão dos meus erros, na ternura de meu filho!
barão Basta de comoções. Vá para perto de Paulina, advogar a
causa de seu filho.
marta E o que lhe poderei dizer?
barão O que lhe aconselhar a sensibilidade. A mulher possui a
eloquência do sentimento, que convence o espírito e o
coração. Pouco lhe custará a apagar o lampejo do amor
próprio ofendido!
marta Que a Virgem Mãe me inspire! (Sai; Eugênio e o Barão
acompanham-na até à porta.)

Cena V
Eugênio e o Barão

(Entra um criado trazendo duas serpentinas com velas acesas, põe-nas sobre as
mesas e retira-se.)

barão Eugênio! Olha para mim!... para os meus olhos! O que


vês neles?...
eugênio Lágrimas!
barão De júbilo... de felicidade! Deixa-me abraçar-te! (Abraça-o.)
eugênio (muito maravilhado) Meu amigo!... O que há?
barão Lê isto (dá-lhe as duas certidões); atende às datas.

135
eugênio (lê e confronta os papéis com grande ansiedade) Barão!... Isto...
não é um meio de que se lembrou para aplacar o ressen-
timento de Paulina?
barão Não; essas certidões são verdadeiras.
eugênio (alegre) Então eu... eu nunca fui... Paulina!... Paulina!...
(Querendo sair.)
barão (detendo-o) Espera: guarda esses papéis e lê também esta
carta. (Eugênio guarda os papéis e toma a carta que o Barão lhe
dá.) É de teu pai... pede-me a mão de tua mãe.
eugênio (vai apressado ver a assinatura) O Visconde! (Lê com ansieda-
de.) Oh!... é muito! (Cai quase desfalecido sobre uma cadeira,
deixando cair a carta, que o Barão apanha.)
barão Então, meu filho! Sucumbes à ventura?...

Cena VI
Os mesmos e Marta

marta (entra alegre) Eugênio... (aterrada) Jesus!... o que tens?...


eugênio (beijando-lhe a mão) Nada, minha mãe... É um protesto da
matéria contra o orgulho da fraqueza humana!
barão Vem um pouco para teu quarto; teu espírito precisa de
repouso. (Eugênio ergue-se e encaminha-se. O Barão dá a carta
a Marta.) Habilite-me a responder a esta carta. (Sai com
Eugênio.)

Cena VII
Marta e depois Matilde

(Surdina. Marta lê com visível comoção a carta do Visconde; finda a leitura,


assenta-se e chora copiosamente. Matilde vem entrando. Cessa a Surdina.)

136
marta (ergue-se e eleva as mãos ao céu) Como Deus é clemente e
bom!
matilde E justo, Marta!
marta (ainda a chorar) E a senhora é um dos seus anjos! (Abraça-a.)
matilde (comovida) Pobre amiga! (Afastam-se ao ver Olímpia, que vem
entrando)

Cena VIII
As mesmas e Olímpia

olímpia Felizmente encontro aqui a Sr.ª D.ª Matilde! Vai explicar-


-me o que há hoje nesta casa de extraordinário!
matilde Nada que eu saiba, a não ser uma bela reunião, da qual
será a menina o mais mimoso ornamento!
olímpia (triste) Ora... a senhora está sempre a gracejar! É por causa
dessa reunião que mamãe está encerrada desde ontem no
seu gabinete, e papai...
matilde Tratam dos seus preparos... a propósito: tenho um favor a
pedir-lhe: faz-mo?
olímpia Pois não!... Diga depressa o que é.
matilde (sorrindo-se) Saiba que, apesar de estar velha e feia, tenho
minhas veleidades de apresentar-me hoje moça e bonita...
(Movimento involuntário de dúvida em Olímpia.) Acha isso
impossível?... Também eu. É mesmo um milagre! E será
a menina quem o realizará.
olímpia (amavelmente) E sem me custar muito!
matilde (tocando-lhe na face) Veremos isso, senhora lisonjeira!...
Mandei trazer para aqui a minha fatiota dos dias dúplices
e confio-lhe o meu toucador.
olímpia Com muito gosto!

137
matilde É preciso também ir enfeitar-se! Quero vê-la um objeto
de maledicência para as suas amigas!
olímpia (sorrindo-se) Esquece-se que a senhora é a primeira entre
elas?
matilde Oh!... eu sou oitos e noves fora do baralho!
olímpia Vamos, Sr.ª Marta? (Repara em Marta, que a contempla muito
comovida.) Oh!... por que me olha quase a chorar?!...
marta (beijando-lhe a mão) Por vê-la tão linda... tão pura! (Acom-
panha Olímpia. Matilde vai segui-las, mas para ao ver o Barão,
que entra.)

Cena IX
Barão e Matilde

barão (aperta a mão de Matilde) V. Ex.ª já sabe que o Forbes cum-


priu a sua promessa? (Surpresa em Matilde.) O Visconde
propôs-me o seu casamento com a mãe de Eugênio.
matilde (satisfeita) Deus me perdoe! Sempre duvidei do seu arre-
pendimento!
barão Era sincero... Agora, creio na sua reabilitação. Pela minha
parte cumprirei o que lhe prometi esta manhã, e possa ele
encontrar na Europa, onde o não conhecem, o olvido do
seu nome e a paz do seu espírito.
matilde E Paulina?
barão Sabe de tudo, e... chora.
matilde Vou para perto dela. (Sai.)

138
Cena X
O Barão e depois Pedro

barão (toca no tímpano e assenta-se; aparece Pedro) Peça à Sr.ª Marta


que venha falar-me. (Sai Pedro.)

Cena XI
O Barão e Eugênio

eugênio (chega à porta e olha; vendo o Barão, dirige-se a ele) Assegura-


-me pela sua honra que aquelas certidões?...
barão Juro-te!
eugênio Basta! É que uma felicidade assim tão inesperada...
barão Ainda duvidas da justiça de Deus?...
eugênio (comovido) Meu amigo!
barão Vai te vestir. (Olha o relógio.) São perto de 7 horas, e tens
de receber os teus amigos e convidados.
eugênio Festas e visitas! Apresentar-me prazenteiro e jubiloso, tendo
o espírito cheio de receios e incertezas!... Oh!... A vida não
passa de uma mascarada!
barão Exigências de posição, meu caro! E nem serás tu o único
que se apresente em holocausto a elas! (Sai Eugênio.)

Cena XII
Barão e Marta

(O Barão assenta-se e fica pensativo até à entrada de Marta)

marta Mandou-me chamar, Sr. Barão? (O Barão ergue-se.)


barão O que devo responder à carta do Visconde?

139
marta O mesmo que meu filho responderia: Eugênio é órfão.
barão Aprecio a nobreza da sua resposta. Mas pondere que, com
um nome ilustrado por um título, que faria calar qualquer
murmuração, oferece o Visconde a Eugênio considerável
aumento de capitais.
marta Vale mais a mediania, a pobreza mesmo, honrada, do que
a opulência adquirida por meios reprovados pelas leis e
pela moral! A origem da riqueza desse homem não me é
desconhecida.
barão Não seria conveniente consultarmos Eugênio, antes de
mandar a sua resposta?
marta Meu filho não há de querer trocar um nome nobilitado
pelos seus atos por outro que só opróbrio lhe trará.
barão Mas qual será (entra Pedro) a sua posição na casa de seu
filho?...

Cena XIII
Os mesmos e Pedro

pedro (ao Barão) O guarda-livros do Sr. Visconde de Medeiros


pede com urgência para falar a V. Ex.ª.
barão Faça-o entrar para a antessala. (Sai Pedro.)

Cena XIV
Barão e Marta

barão O Visconde quer a resposta da sua carta.


marta Recuso – por mim... e por meu filho.
barão A sua resposta é definitiva?
marta Definitiva, Sr. Barão.
140
Cena XV
Os mesmos e Matilde

matilde (ao Barão, que vai ao seu encontro) O que diz ela?
barão Recusa.
matilde (surpresa) Recusa! (À Marta.) Pois recusa uma posição para
si e um nome para seu filho?!
marta Prefiro a obscuridade à ignomínia.
matilde (com brandura) Não haverá algum excesso de orgulho na
sua suscetibilidade?
marta Não, minha senhora; há só o propósito de não querer que
meu filho renegue a probidade do seu presente e do seu
futuro, por um passado infamante.
barão Vou mandar a sua resposta. (Sai.)

Cena XVI
Marta e Matilde

matilde Julguei fazer alguma coisa pelos meus amigos... fui infeliz na
minha ideia. Não conhecia ainda toda a elevação da sua alma!
marta Perdoe-me, minha boa senhora!...
matilde O quê?!... O não ter querido reparar a falta da inexperiên-
cia, contraindo uma aliança indigna de si?... Não a censuro
por isso. A sua recusa não é muito natural, mas é louvável.
Eu a respeito.

Cena XVII
Os mesmos e Eugênio

eugênio Boa noite, Sr.ª D.ª Matilde! (Aperta-lhe a mão; a meia-voz a


Marta.) E Paulina?... Ama-me sempre?...
141
marta É esposa e mãe.
eugênio (transportado) Agora, sim! Tenho fé na clemência do céu!
marta (apontando para Paulina, que vem entrando) Eis ali o íris do per-
dão! (Toma a mão de Paulina e a conduz para junto de E ­ ugênio.)

Cena XVIII
Os mesmos e Paulina

paulina (estendendo a mão a Eugênio) Perdoas-me?


eugênio (beijando-lhe a mão, com ternura) A minha felicidade... minha
adorada Paulina?!... (Olha para toda a sala.) E Olímpia?...
(Matilde sai sem ser notada. O Barão entra perturbado.)

Cena XIX
Eugênio, o Barão, Marta e Paulina

paulina (ao Barão) Amei e esqueci!


barão (a meia-voz, indicando Marta) E aquela mártir?
paulina (aproximando-se de Marta) Quer abençoar a sua filha?...
marta (abraçando-a) O céu te recompense pela ventura que me
dás neste momento!

Cena XX
Os mesmos, Matilde trazendo Olímpia pela mão

eugênio (para Marta) E agora é feliz?


marta O que mais posso ambicionar? (Pega nas mãos de Eugênio e
de Paulina.) Deus! E meus filhos!
olímpia (muito admirada e a meia-voz) O que querem dizer aquelas
palavras, Sr.ª D.ª Matilde?!
142
matilde (alto) Querem dizer, minha menina, que desta vez não foi
Maria, foi Marta quem escolheu a melhor parte! Vá abraçar o
seu papai! (Olímpia vai para junto de Eugênio, que a afaga e
a apresenta à Marta; Matilde dirige-se ao Barão.) O que tem,
meu amigo?
barão O Visconde partiu esta tarde, no Paquete, para o Rio da
Prata!
matilde (surpresa) Fugiu!!!...
barão (indignado) A sua carta foi apenas um ardil, para ganhar
tempo.
matilde E ficaram impunes tanta maldade e tantos crimes?!
barão (sentencioso) Não, minha senhora! Para onde quer que vá
o criminoso, vão também com ele a consciência da culpa,
e as tribulações do remorso!... Ainda que a impunidade
social pareça protegê-lo, a alma do criminoso, despojada
da luz do céu, já não pode gozar o menor sossego na terra.
Ela vê que, ao descer do mundo, lá a espera, implacável,
no altar supremo da verdade, a condenação divina. (Sole-
ne.) Eis aqui a diferença: enquanto Antônio Forbes, cas-
tigado, busca remir-se pelo arrependimento; enquanto o
Visconde de Medeiros afronta a sociedade com um novo
crime, fugindo à reprovação da moral e da justiça; aqui,
ao lado da virtude, que se enobrece pelo martírio e pela
fé, contempla-se nos benéficos laços da família, e no santo
amor de mãe: o quadro da verdadeira felicidade!

(Rompe fora o Hino da Independência.)

(Abrem-se as portas da sala do fundo, a qual deve estar esplendidamente prepa-


rada, e cai o pano no momento em que os personagens da cena se dirigem para o
salão principal, que está cheio de cavalheiros e senhoras, todos em trajo de gala.)

FIM DO QUINTO E ÚLTIMO ATO

143
BIBLIOGRAFIA DA AUTORA

Obras publicadas:

RIBEIRO, Maria. Gabriela, drama em 4 atos. [s.l.], [s.n.], 1868. (repres.


Rio de Janeiro, 1863).
RIBEIRO, Maria. Cancros sociais, drama original em 5 atos. Rio de
Janeiro: Laemmert, 1866.
RIBEIRO, Maria. Um dia na opulência, comédia original em 2 atos.
In: Ensaios literários. Rio de Janeiro: Sociedade Ensaios Literários, 1877.
RIBEIRO, Maria. Ressurreição do primo Basílio, a-propósito cômico em
1 ato. Rio de Janeiro: Typ. Dias da Silva Júnior, 1878.
RIBEIRO, Maria. Opinião pública, drama em 5 atos. [s.l.], [s.n.], 1879.
(repres. Rio de Janeiro, 1879).
RIBEIRO, Maria. Cancros Sociais. In: ANDRADE, Valéria (org.).
Maria Ribeiro: Teatro quase completo. Florianópolis: Mulheres, 2008. p.
55-155.

Obras inéditas:

A aventureira de Vaucloix, drama em 5 atos (1856).


A cesta da Tia Pulcheria, comédia.
Anjo sem lar, drama.

145
As luvas de pelica, comédia.
As proezas do Firmino, comédia.
Cancros domésticos, comédia.
Cenas da vida artística, comédia.
D. Sancho em Silves, drama histórico.
Deus, pátria e honra, drama.
Guite ou a feiticeira dos desfiladeiros negros, drama em 5 atos (1855).
O anjo sem asas, drama (1858).
O onfalista, comédia.
O poder do ouro, comédia.
Os anjos do sacrifício, drama.
Ouro, ciência, poesia e arte, comédia.
Paulina, a estrangeira, drama (1856).
São Francisco de Paula, drama sacro.

Pseudônimos

Nênia Sílvia
Um Calouro

146
BIBLIOGRAFIA SOBRE A AUTORA

ALMEIDA, Pires de. D. Maria Ribeiro (dramatista brazileira). Brazil-


-Theatro, Rio de Janeiro, fasc. 2, p. 391-92, 1907.
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a estratégia palimpséstica no teatro de Maria Angélica Ribeiro. In:
MALUF, Sheila D. e AQUINO, Ricardo Bigi de. (Orgs.). Dramaturgia
e Teatro. Maceió: Edufal, 2004, p. 305-318.
ANDRADE [Souto-Maior], Valéria. Entre/linhas e máscaras: a formação
da dramaturgia de autoria feminina no Brasil do século XIX. Tese (Doutorado
em Literatura Brasileira). Programa de Pós-Graduação em Letras –
Universidade Federal da Paraíba. João Pessoa, 2001.
ANDRADE [Souto-Maior], Valéria. Índice de dramaturgas brasileiras
do século XIX. Florianópolis: Editora Mulheres, 1996.
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Zahidé Lupinacci. (Org.). Escritoras Brasileiras do Século XIX - Antologia.
2. ed. Florianópolis, 2000, p. 321-331.
ANDRADE [Souto-Maior], Valéria. O florete e a máscara : Josefina
Álvares de Azevedo, dramaturga do século XIX. Florianópolis: Editora
Mulheres, 2001.
ANDRADE, Valéria. Dramaturgas brasileiras no século XIX: escritura,
sufragismo e outras transgressões. Plural Pluriel: Revue des cultures de
langue portugaise, n. 8, printemps-été 2011. Disponível em: http://www.
plural.digitalia.com.br/index4559.html?option=com_content&view
=article&id=323:dramaturgas-brasileiras-no-seculo-xix-escritura-
-sufragismo-e-outras-transgressoes&catid=80:numero-8-les-femmes-
-dans-le-theatre-bresilien&Itemid=55. Acesso em 10 out. 2020.

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BLAKE, Augusto Victorino Alves Sacramento. Diccionario bibliographico
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ciação Científica viabilizado pela Fundação de Amparo à Pesquisa do
Estado de São Paulo (processo nº 2019/16461-3). Resumo disponível
em: https://bv.fapesp.br/pt/bolsas/188771/a-dramaturgia-reflexo-de-
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em: https://www.youtube.com/watch?v=50wj-i06AT4&t=25s&ab_
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Anais... Disponível em: https://docplayer.com.br/31940678-A-drama-
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150
SOUZA, Maria Cristina de. O outro no ponto de visto do outro:
Cancros Sociais de Maria Ribeiro. Revista Dramaturgia & Teatro, Niterói,
GT Dramaturgia e Teatro da Anpoll, n. 0, p. 119-134, 2000.
VINCENZO, Elza Cunha de. Um teatro da mulher: dramaturgia fe-
minina no palco brasileiro contemporâneo. São Paulo: Perspectiva/
EDUSP, 1992. p. xvii.

151
CANCROS SOCIAIS A Coleção Escritoras do Brasil busca divulgar o trabalho in-
A obra de Maria Ribeiro foi quase telectual das escritoras brasileiras de escassa ou nenhuma presença
completamente perdida em um incên- nos cânones literários, valorizando, assim, as atividades, a produ-
dio no Liceu de Artes e Ofícios do Rio
de Janeiro, local em que os originais da ção e o pensamento da mulher na construção da história do Brasil.
autora se encontravam. Da totalidade de
sua produção, restaram apenas quatro: Também visa preencher uma enorme lacuna na produção editorial
Um dia na opulência, A ressurreição do no que se refere à publicação de autoras brasileiras, continuamente
primo Basílio, Opinião pública e Can-
cros sociais. esquecidas pela divulgação e estudos literários. O trabalho de resgate das escritoras
brasileiras nos faz deparar com inúme-
O drama em cinco atos Cancros so-
ciais é encenado pela primeira vez em
As obras da Coleção Escritoras do Brasil também estão dispo- ras autoras que, por variados motivos,
tiveram parca ou única produção. Fosse
1865, no Teatro Ginásio Dramático do níveis, para download gratuito, na Biblioteca Digital do Senado a baixa produtividade motivo suficiente
Rio de Janeiro. A peça, um espelho da para que essas mulheres não fizessem
época, é uma reflexão sobre questões so- Federal (BDSF) e na página da Livraria do Senado.
parte dos cânones literários, não haveria
ciais e familiares. como explicar o apagamento de outras
É a narrativa da mãe-escrava, Marta, escritoras de ampla produtividade. Maria
“parda clara”, iludida e seduzida por um Ribeiro é uma dessas escritoras que mui-

Escritoras do Brasil
patife, que se torna mãe de um meni- to produziu, mas permaneceu apagada
no branco que lhe é tomado e vendido. das páginas da história da literatura.
Ignorando totalmente sua ascendência Maria Angélica Ribeiro, nascida em
africana, Eugênio, o filho, cresce julgan- 1829 na Vila de Parati, atual Angra dos
do-se órfão e, já adulto e casado, desco- Reis, e falecida na cidade do Rio de Janei-
bre, ao adquirir uma escrava para alfor- ro em 1880, não foi a primeira teatróloga
riá-la em comemoração aos quinze anos brasileira, mas foi a primeira a dedicar-se
de sua filha, que comprara a própria mãe. totalmente a esse gênero e a primeira au-
Eugênio hesita em reconhecer publi- tora brasileira a ter uma peça encenada
camente que era filho de uma escrava. no país.
Torturado pelo pavor de assumir a mãe e Sua primeira peça, Guite ou a feiticeira
com isso perder o patrimônio e o tesouro dos desfiladeiros negros, foi escrita em 1855,
familiar que construíra, adota um com- quando buscava alívio pela morte de seu
portamento estranho, acabando por le- filho. Daí em diante não mais parou de se
vantar as suspeitas da esposa, que o acusa dedicar à dramaturgia, escrevendo 23 pe-
de estar acolhendo uma antiga amante ças. Além de ter quatro das suas peças en-
sob o teto da família. Marta fica resigna- cenadas, algumas mais de uma vez, Maria
Disponível online Ribeiro tinha aprovação de público e de
da a afastar-se de Eugênio para evitar sua
crítica, incluindo aclamados escritores,
ruína conjugal.
como Machado de Assis.

Volume VI
De feição abolicionista, a trama narra Suas peças exploravam temas sociais,
a experiência de mulheres negras e mes- denunciando as desigualdades e o drama
tiças no Brasil escravista relacionada com da escravidão negra, colocando-se contra
a exploração sexual pelo homem branco. o status quo, principalmente no que se
refere à situação da mulher na sociedade.

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