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Revista Eletrônica do Programa

de Pós-graduação da Faculdade Cásper Líbero


Edição nº 1, Ano I - Dezembro 09

Artigo
A construção intersemíotica
dos sentidos em Watchmen
Direcionamentos para a instauração de uma macrografia
Luiz Marcelo Brandão Carneiro*

Resumo
Resumo
Watchmen, história em quadrinhos de Alan Moore e Dave Gibbons, desde sua publicação original em 1986, constituiu-se modelo

paradigmático de narrativa, por características estruturais que a configuram como mosaico narrativo e pelo amplo referencial

artístico-cultural incorporado, instalado via tradução intersemiótica. Neste estudo toma-se a tradução intersemiótica enquanto

estrutura e se a instala como forma de escrita em sentido lato, capaz de suportar um conglomerado de linguagens e de conteú-

dos. Denominamos essa forma ampla de escrita “Macrografia”, e a postamos como vetor de unicidade da obra e modelo de con-

strução de textos criativos.

Palavras-chave
Palavras-chave
Histórias em quadrinhos. Watchmen. Intertextualidade. Tradução intersemiótica. Macrografia.

Abstract
Abstract
Watchmen, comic book by Alan Moore and Dave Gibbons, since its original publication in 1986, has become a paradigmatic

narrative model, due to structural characteristics that constitute it a narrative mosaic and by the large cultural-artistic referential

incorporated, installed by intersemiotic translation. In this study we take the intersemiotic translation as structure and we install it

as a writing modeling in a lato sense, able to support an amount of languages and of contents. We named this lato writing mod-

eling “Macrography”, and we establish it as the characteristic responsible for the uniqueness of the work and as a model to the

construction of creative texts.

Keywords
Keywords
Comic books. Watchmen. Intertextuality. Intersemiotic translation. Macrography.

* Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Programa de Comunicação e Semiótica. Bolsista integral do CNPq desde
agosto/08. E-mail: luizbcarneiro@yahoo.com.br.

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O objeto deste trabalho é a história em quadrinhos Watchmen, escrita por Alan Moore e
ilustrada por Dave Gibbons, publicada originalmente em doze capítulos pela DC Comics, em Nova
Iorque, entre os anos de 1986 e 1987. No Brasil, Watchmen foi editada pela primeira vez entre 1988
e 1989, em seis edições mensais pela Editora Abril (cada uma contendo dois capítulos); e reeditada
quinzenalmente pela mesma editora, no formato original de doze capítulos, em 1999 (sendo esta
a edição brasileira em que nos baseamos). Atualmente a obra é editada no Brasil pela Via Lettera.
Watchmen sempre foi postada como um dos paradigmas máximos daquilo que Will Eisner
(um dos maiores criadores e teóricos do campo das histórias em quadrinhos) definiu como arte
seqüencial: a narrativa imagética realizada em seqüência de imagens, esfera na qual também inclui
o cinema. A obra é citada como referencial de qualidade estrutural e, por isso, tomada como refe-
rência de arquitetura narrativa. Essa arquitetura funda-se em imbricações textuais que constroem
a obra como um mosaico narrativo intrincado, de múltiplas camadas, no qual as significações tran-
sitam e as resignificações são constantes e sempre conseqüentes.
Esse processo é fundamentado na vasta utilização de referenciais artístico-culturais. Esses
referenciais são oriundos de variadas esferas, abrangendo um espectro largo que vai da filosofia
clássica à pop art. Esses referenciais são inscritos em Watchmen via tradução de códigos e de con-
ceitos e, mais especificamente, via tradução intersemiótica.
As colocações teóricas aqui desenvolvidas procuram analisar tanto a forma de operação
da tradução intersemiótica em casos individuais quanto seus desdobramentos na obra como
um todo. No caso dos estudos de traduções individuais, a intenção é descrever processos, sig-
nificados e resignificações. No caso da análise da utilização da tradução intersemiótica na obra
como um todo, apropriada como arquitetura fundante da narrativa, a intenção é, com base nos
processos de incorporação e de reconstrução de linguagens, balizar o conceito de Macrografia.
Por intersemioticidade se entende a tradução de textos de um tipo de linguagem para outro
(do cinema para as histórias em quadrinhos, ou da música para as histórias em quadrinhos). Em
Watchmen há uma série enorme de inserções realizadas via esse processo, sempre significantes
para momentos específicos da narrativa e para o conceito geral da história. Para a teorização es-
pecífica dessas inserções, optou-se pelos conceitos de Júlio Plaza, expressos em seu livro Tradução
Intersemiótica, por entender-se que essa conceituação é instrumental de análise adequado e já re-
ferendado para se tratar da transferência de conceitos e de linguagens entre os códigos de diversas
expressões artísticas.
Plaza cita Jakobson para afirmar que “substituem-se mensagens em uma das lín-
guas não por unidades de código separadas, mas por mensagens inteiras de outra língua”
(PLAZA, 1987). Para Plaza, “a tradução como forma estética não é uma simples transferên-
cia de unidade para unidade, do complexo de um sistema sígnico para outro, pois toda unida-
de constrói o seu sentido e significação numa unidade maior que a inclui” (PLAZA, 1987).

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Em Watchmen encontramos uma série imensa de transcrições de “mensagens inteiras de


outra língua” (PLAZA, 1987), que são incorporações de outros objetos e conceitos de cultura, re-
alizadas no corpo da obra. Toma-se uma mensagem do código-fonte e, via tradução intersemi-
ótica, adapta-se essa mensagem para o código-receptor. As intersemioticidades de Watchmen
são oriundas da música, do cinema, da poesia clássica, da cultura pop e de outras esferas. Es-
sas fontes têm seus códigos transformados/adaptados para o código da história em quadrinhos.
O que se leva em consideração são as características dos códigos (fonte e receptor): ape-
nas aspectos que tenham possibilidade de serem transcritos o serão. Não se pode traduzir, por
exemplo, a sonoridade da música para uma história em quadrinhos, mas é possível valer-se de
marcadores gramaticais específicos que supram essa “deficiência” da linguagem receptora. Esses
marcadores, por sinal, acabam por tornar-se, se já não são, linguagem, como foi o caso das onoma-
topéias (representações de sons nas histórias de quadrinhos que, pelo uso constante, tornaram-se
convenção de linguagem).
As intersemioticidades de Watchmen, via a vasta rede de conceitos que estabelecem, confe-
rem-lhe sentidos todo o tempo, significando e resignificando continuamente. Adaptando um pou-
co o texto de Otto Kaus, no qual o autor tece considerações sobre Dostoiévski (citado por Bakhtin),
podemos fazê-lo discorrer sobre esse aspecto da obra: [nenhuma outra história em quadrinhos]
“reuniu em si tantos conceitos, juízos e apreciações contraditórias e mutuamente excludentes”
(BAKHTIN, 1997). De Einstein a Jesus Cristo, de Eisenstein a David Bowie, Watchmen é uma reu-
nião sui generis de conceitos contraditórios e [talvez quase] mutuamente excludentes.
Esses referenciais são temporalmente marcados nos séculos XIX e XX, o que não nos parece
acidental. Watchmen é uma história em quadrinhos, representante de um tipo de arte seqüencial
que, desenvolvendo-se em locações geográficas variadas a partir de elementos pictóricos e narrati-
vos oriundos de diferentes épocas e vertentes, tem seu marco inicial oficial, assim como o cinema,
em fins do século XIX.
E as histórias em quadrinhos, também como o cinema, desenvolvem-se em termos de enredo e
de procedimentos narrativos justamente no século XX, durante o qual se dá a criação e o estabelecimen-
to de suas linguagens e gramáticas específicas, com o atingir de elevados patamares de significação.
Assim, incorporando referenciais artístico-culturais oriundos dos séculos XIX e XX, Wa-
tchmen estabelece, em seu corpo narrativo, um rol do pensamento criativo e conceitual de
sua época de criação e de outras épocas vitais para o desenvolvimento de sua linguagem. Wa-
tchmen estabelece-se como obra de seu tempo e de outros tempos, realizando, por intermé-
dio de um cancioneiro-bestiário de seus séculos de nascimento e desenvolvimento, uma re-
presentação criativa ímpar. Representação que, é importante dizer, não se funda em uma
hierarquia da tradução de códigos pautada em conceitos ordinários e restritivamente orienta-
dos por falsas noções, como a de “alta” e “baixa” cultura: Elvis Costello figura no mesmo pan-

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teão que Nietzsche, e Bob Dylan aparece com muito mais destaque que C.G. Jung, por exemplo.
Michel Foucault, no célebre “Prefácio” de As Palavras e as Coisas, descreve a classifi-
cação de “uma certa enciclopédia chinesa” (FOUCAULT, 2002), constante no livro Outras In-
quisições do escritor argentino Jorge Luis Borges, na qual há um ordenamento, via sis-
tema alfabético, de categorias a princípio não-conciliáveis de seres reais e imaginários.
Na referida enciclopédia, seres fantásticos como as sereias figuram ao lado de se-
res mais comuns, como os leitões. A categoria central da enciclopédia é a dos seres “incluídos
na presente classificação” (BORGES, 2007). Há, como se pode depreender, o familiar e o ex-
traordinário (no sentido original de sua etimologia), unidos por um eixo comum: um eixo
que os uniria no que têm ou poderiam ter de semelhante, apesar de que o encontrar dessa se-
melhança possa ser dotado de “ambigüidades, redundâncias e deficiências” (BORGES, 2007).
Podemos fazer um paralelo com a tradução intersemiótica, com base na classificação do apa-
rentemente irreconciliável que encontra-se na enciclopédia chinesa Borgeana: no que tange o amál-
gama de referências da obra, o que se une são os “códigos fundamentais de uma cultura” [ou de várias
culturas], “sua linguagem, seus esquemas perceptivos, suas trocas, suas técnicas” (FOUCAULT, 2002).
Na tradução intersemiótica, os códigos, quando traduzidos, o são via um estranho: código
tradutor. O código-fonte conforma-se ao código receptor, transformando-se sob a batuta de suas
peculiaridades, sob a tutela de sua linguagem e de sua gramática. O que se coloca em cena, agru-
pado em um conjunto conciliador, é “um quadro de variáveis”, “sistemas separados de coerências,
(...) de semelhanças que se aproximam sucessivamente ou se espelham mutuamente, organizad[o]
em torno de diferenças” (FOUCAULT, 2002).
Na enciclopédia chinesa descrita por Borges, o que encanta e cria uma peculiaridade incon-
tornável é a fusão de diferentes e mesmo de opostos. Na tradução intersemiótica e, em especial para
o caso deste estudo, em Watchmen o que encanta e cria singularidade é justamente a mesma coisa:
a fusão de linguagens, conceitos e fontes, que, senão inconciliáveis (o mosaico narrativo da obra
prova que não são), são ao menos distantes em termos de aproximações costumeiras e primárias.
O processo característico de Watchmen, que se torna sua marca maior, é o encadeamento, no
corpo da história, de um desfile de estranhos que são conciliados por suas semelhanças, sejam elas
originárias (de época, de temática, conceituais ou simbólicas) ou tecidas no corpo da obra. Tanto uma
relação de Einstein com sombras na parede que evocam efeitos da deflagração de uma bomba atômica
(mais “esperável”), quanto a de Jesus Cristo com um ser super-poderoso de pele azulada criado por um
acidente nuclear (mais inesperada) são colocadas em Watchmen em um mesmo cadinho narrativo.
Como no exemplo de Foucault, em Watchmen conciliam-se “o guarda-chuva e a máqui-
na de costura” (FOUCAULT, 2002), Bob Dylan e Nietzsche, e isso se realiza através da tradução
intersemiótica. É a tradução intersemiótica que vai unir os contrários e os semelhantes. Afinal
de contas, “onde poderiam eles se justapor, senão no não-lugar da linguagem?” (FOUCAULT,

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2002). Em relação a essa última sentença de Foucault, a tradução intersemiótica é o processo


que permite, no não-lugar da história em quadrinhos, e mais especificamente no não-lugar wa-
tchmeniano, a co-existência de objetos e de conceitos antecipadores e formadores de seu tem-
po, os objetos e conceitos dos séculos XIX e XX que, como se disse, estão expressos na história.
Nesse sentido, mais uma vez evocando Foucault, Watchmen, considerada aqui como suporte
(plano material) da narrativa (plano de conteúdo), no que concerne a sua constituição como his-
tória em quadrinhos, é a “tábua de trabalho”, o “quadro que permite ao pensamento operar com
os seres [e com os objetos e conceitos] uma ordenação, uma repartição em classes, um agrupa-
mento nominal pelo qual são designadas suas similitudes e suas diferenças” (FOUCAULT, 2002).
Falando-se em termos dos parâmetros de operação da tradução intersemiótica, é atra-
vés da transcrição dos códigos, guardadas as peculiaridades fundamentais dos códigos (fon-
te e receptor), que se constrói o mosaico narrativo da obra. Fazendo Foucault falar so-
bre Watchmen, define-se esta história em quadrinhos como “um espaço (...) todo sobrecar-
regado de figuras complexas, de caminhos emaranhados, de locais estranhos, de secretas
passagens, de imprevistas comunicações [grifo meu]” (FOUCAULT, 2002). O último item des-
ta citação foucaultiana, destacado, é o que mais chama a atenção: são justamente as comuni-
cações improváveis de conceitos ou de objetos que tornam a obra uma representação peculiar.
Como se fala em tradução de códigos, e como se subordina essa tradução a parâmetros de
linguagem específicos de código-fonte e de código-receptor, em um primeiro momento se pode-
ria pensar em uma certa “frieza” do processo, no sentido de uma colocação hermética de objetos
e de conceitos, matemática, até mesmo rasteira. Todavia, em Watchmen não é isso que acontece: a
interpolação operada nos signos traduzidos e nos signos tradutores nunca é inconseqüente, sendo
sempre relevante, nunca apenas um exercício de maestria narrativa ou de orgulho em demonstrar
conhecimento e virtuosismo.
Se na tradução intersemiótica existe uma ordem, essa ordem “é ao mesmo tempo aquilo
que se oferece nas coisas como sua lei interior, a rede secreta segundo a qual elas se olham de al-
gum modo umas às outras” (FOUCAULT, 2002). Não apenas o unir de contrários e de improváveis
impressiona em Watchmen, mas a própria natureza dessa tessitura: um processo de constituição
de filigranas narrativas, de uma rede semântica complexa, intrincada, que oferece sempre mais
e que seja talvez, inesgotável. Sem querer esbarrar em considerações de ordem subjetiva, como
neste estudo se trata da própria constituição da semiose watchmeniana, o que parece sustentar
essas filigranas narrativas é justamente um olhar ímpar dos autores, lançado do histórico-cul-
tural de onde falam para outros histórico-culturais, vendo e impregnando a obra de “aquilo que
só existe através do crivo de um olhar, de uma atenção, de uma linguagem” (FOUCAULT, 2002).
Se Watchmen faz uma síntese de objetos e personagens dos séculos XIX e XX, o faz via olhar
de Moore e Gibbons, com um resultado (a própria obra) que, por conta de suas qualidades inaugu-

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rais e até hoje retomadas e inimitáveis, funda-se como uma síntese de “conhecimentos [que] che-
gam talvez a se engendrar, “[de] idéias [que chegam] a se transformar e a agir umas sobre as outras”
(FOUCAULT, 2002). Em Watchmen trabalham “sistemas de simultaneidade, assim como a série de
mutações necessárias e suficientes” (FOUCAULT, 2002) para que a tradução intersemiótica funcione.
Watchmen, então, realiza uma pequena síntese não-exaustiva das épocas de sua for-
mação e desenvolvimento. Realizando esse inventário sui generis, Moore e Gibbons apro-
ximam a obra e sua lavra de uma abordagem desenvolvida pelo historiador André Leroi-Gou-
rhan, em um texto intitulado “Os caminhos da história antes da escrita”, parte integrante do
livro História: Novos Problemas (cuja organização coube à Jacques Le Goff e Pierre Nora).
No artigo citado, Leroi-Gourhan trata os sítios arqueológicos como “documento[s] (...)”
(Leroi-Gourhan, 1979) e, discorrendo sobre a pesquisa destes, em especial dos sítios pré-his-
tóricos, aponta a necessidade de se tecer considerações que os tomem “como (...) texto[s]”(Leroi-
Gourhan, 1979). Seguindo sua análise, propõe uma “leitura do documento que é constituída [em
seu contexto de estudo] pela superfície descoberta pela escavação, (...) cujo valor fundamen-
tal reside apenas nas relações mútuas dos elementos que o compõe” (Leroi-Gourhan, 1979).
Continuando em sua linha de raciocínio, Leroi-Gourhan aponta que “O texto vale o que valeu
o trabalho de preparação do manuscrito e [que] a interpretação valerá o que valia o texto” (Leroi-
Gourhan, 1979), pautando ainda que o texto “falará na medida em que o pesquisador souber torná-
l[o] legível” (Leroi-Gourhan, 1979). No mesmo parágrafo, o autor discrimina que esse trabalho
de produção da legibilidade dos textos passa pelos processos de “moldagens completas ou parciais
das estruturas, indicação e marcação de todos os vestígios” (Leroi-Gourhan, 1979) disponíveis ao
pesquisador para dar conta de seu objeto e de sua abordagem; e, também, que “ao pesquisador cabe
improvisar os procedimentos próprios para não deixar escapar qualquer elemento de documenta-
ção possível” (Leroi-Gourhan, 1979).
Leroi-Gourhan ainda nos deixa uma frase que nos servirá de ponte e de corolário para nos-
sas investigações, frase esta na qual afirma que é preciso “considerar a pesquisa das relações como
mais importante que a pesquisa dos objetos” (Leroi-Gourhan, 1979). Tomamos aqui essa afir-
mação mais no sentido de evidenciar nossa mirada sobre a pesquisa das relações entre os diver-
sos referenciais presentes em Watchmen, e não no sentido de postar essa investigação como mais
importante que a pesquisa do objeto como um todo. Todavia, essa abordagem da pesquisa das
relações nos é preciosa, pois consideramos que são justamente as relações, e forma pela qual essas
relações são tecidas e reiteradas em Watchmen, que tornam a obra um construto atípico e modelar.
Dentro desse contexto, uma definição assoma como feita sob medida para a definição dos
meios e das conseqüências desse processo: trata-se da definição de “Macrografia”, conforme de-
finida por Harlan Ellison, na “Introdução” à edição brasileira de Estação das Brumas, arco de his-
tórias da saga original de Sandman (números de 21 a 28), editada pela editora Conrad em 2006.

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Na citada introdução, Ellison afirma que “Gaiman alcançou com essas histórias de San-
dman o que se costuma chamar de macrografia, escrita em grande escala” (GAIMAN, 2006). Não
nos interessa aqui a aplicação deste conceito a Sandman, ainda que Sandman figure no mes-
mo alto panteão de destaque no qual Watchmen se estabeleceu ao longo dos anos. O que nos
vale aqui é a visada tomada pelo crítico: a de uma “escrita em grande escala” (GAIMAN, 2006).
Em Sandman, Gaiman insere muitos elementos da cultura pop e da “alta cultu-
ra”, em especial das mitologias e religiões. Da mesma forma que Alan Moore em Watch-
men, Gaiman ultrapassa o mero exercer do virtuosismo para instaurar, com esse tipo de
amálgama, uma dimensão de escrita maior, uma dimensão de escrita que contém mui-
to mais coisas que um olhar destreinado, desatento ou desprovido dos referenciais tomados
possa observar, ainda que, de qualquer forma, esses referenciais, mesmo não notados, aca-
bem por constituir o conteúdo expresso e, por conseguinte, o conteúdo apreendido da obra.
Para o trabalho em Watchmen, tomamos essa perspectiva da macrografia, enquan-
to “escrita em grande escala” (GAIMAN, 2006), no sentido particular da obra analisada: bus-
camos definir o que é a macrografia de Watchmen, certamente diferente da macrogra-
fia de Sandman. E é precisamente a tradução intersemiótica que se firma como a macro-
grafia watchmeniana, no intercâmbio de linguagens, mensagens e sentidos dos diferentes
códigos. Por isso, três formas de tradução intersemiótica encontradas na obra analisada são
definidas aqui, em termos de primeiros desenvolvimentos, como as formas padrão de tradu-
ção intersemiótica que constituem sua narrativa (os exemplos, por conta dos limites deste tex-
to, não serão dados, mas é importante dizer que são parte substancial de nossa dissertação).
Os limites entre essas três formas, como convém a processos semelhantes, são tênues, mas pos-
suem características de transcrição de códigos que os tornam categorizáveis. São eles: tradução in-
tersemiótica literal, tradução intersemiótica conceitual e tradução intersemiótica em segundo plano.
Para a conceituação da tradução intersemiótica literal, retoma-se as palavras de Julio Pla-
za: “a tradução [intersemiótica] como forma estética não é uma simples transferência de uni-
dade para unidade, do complexo de um sistema sígnico para outro” (PLAZA, 1987); e a citação
de Jakobson por Plaza: “substituem-se mensagens em uma das línguas, não por unidades de
códigos separadas, mas por mensagens inteiras de outra língua” [grifos meus] (PLAZA, 1987).
É justamente essa forma de operação que tomamos como modus operandi da tradução inter-
semiótica literal, na qual a tradução dos códigos é realizada de acordo com duas diretrizes prin-
cipais, que são: A linguagem do código-fonte (do qual se vale como referencial artístico-cultural
originário), e A linguagem do código-receptor (o que recebe o referencial artístico-cultural).
A tradução intersemiótica literal tem que, obrigatoriamente, respeitar os limites de
linguagem dos códigos, dentro do trânsito dos planos de expressão. Só pode ser traduzi-
do e incorporado em um código-receptor aquilo que, no código-fonte, lhe é comum. Portan-

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to, uma história em quadrinhos pode conter, como é o caso de Watchmen, a música como re-
ferencial artístico-cultural instalado via tradução intersemiótica, mas nunca poderá con-
ter o som da música efetivamente, ao menos que se instale um dispositivo sonoro que lhe
será alheio, externo, fisicamente separado tanto do código-fonte como do código-receptor.
A música pode ser representada, numa história em quadrinhos, pela representação de claves
e notas musicais, pela inserção da letra (normalmente representada no que Paulo Ramos (2009) de-
nomina “balão-de-linhas-quebradas”) e/ou pela representação de aparelhos sonoros. Os códigos,
portanto, conformam-se. A música se adapta para ser inserida na história em quadrinhos, deixan-
do de lado a sonoridade, seu elemento mais notável; e a história em quadrinhos a recebe como
pode, dentro dos limites de seu plano de expressão.
A tradução intersemiótica conceitual se entende como sendo aquela que, tomando um re-
ferencial artístico-cultural, vai instalar, na narrativa, uma semiose derivada, fruto direto do refe-
rencial tomado. Todavia, o referencial não é utilizado através do diálogo inter-códigos, mas figura
como referência conceitual, instalando uma semiose própria que tem sua raiz no que o referen-
cial significa e significou, ao longo do tempo, dentro do texto geral da cultura. Não são as pecu-
liaridades do código-fonte e do código-receptor que são postas em cena, mas sim os conceitos
que são transportados, atuando no plano de conteúdo muito mais do que no plano de expressão.
A tradução intersemiótica em segundo plano é uma espécie de síntese das outras duas
formas de tradução intersemiótica anteriormente definidas. Da tradução intersemiótica li-
teral, toma para si algo do transporte de códigos, embora não se trate de uma tradução literal
de plano de expressão. Da tradução intersemiótica conceitual toma a aquisição e apropriação
do conceito, este sim assomando no plano de expressão e vazando para o plano de conteúdo.
Então, na tradução intersemiótica em segundo plano o que se dá não é a estrita tradução de
códigos e nem uma tradução conceitual; o que ocorre é a apropriação de um conceito, pontuado em
um elemento da tradução de código. Essa tradução de código não opera do mesmo modo que na
tradução intersemiótica literal: vale-se apenas da existência do referencial artístico-cultural, com
a realização de seu apontamento puro e simples, sem que se trate da tradução de códigos-fonte em
códigos-receptores.
Dessa forma, estão expressos aqui os conceitos norteadores e operadores da tradu-
ção intersemiótica em Watchmen, no que concerne a arquitetura da obra e a formação de
sua semiose, significações e resignificações. Esses conceitos formam para nós o que defini-
mos como sua macrografia: uma escrita ampla, abarcadora de linguagens e de conceitos va-
riados, que lida com essas linguagens e conceitos em um corpo narrativo único, dentro de
suas possibilidades de escrita particular e dentro do que guarda de potencialidade narrativa.
Esses são nossos propósitos inaugurais que pretendemos ter atingido. Maiores desenvolvimen-
tos no tocante ao explicitar de referências utilizadas e no que concerne o deslindar dos processos de

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tradução destas para a narrativa da história em quadrinhos são necessários para que se possa pau-
tar, com mais certeza e referenciais, o que é a macrografia watchmeniana, e como essa macrografia
pode influenciar, ainda mais do que já influenciou, o desenvolvimento das artes e das comunicações.

Referências
BAKHTIN, Mikhail. Problemas da Poética de Dostoiévski. Rio de Janeiro: Forense Universitária,
2005.

BORGES, Jorge Luis. Outras Inquisições. São Paulo: Companhia das Letras, 2005.

DOSTOIÉVSKI, Fiodor. Obra Completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2004.

EISNER, Will. Quadrinhos e Arte Seqüencial. São Paulo: Martins Fontes, 1999.

EISNER, Will. Narrativas Gráficas. São Paulo: Devir, 2008.

FOUCAULT, Michel. As palavras e as coisas. São Paulo: Martins Fontes, 2002.

GIBBONS, Dave. Watching the watchmen. New York: DC Comics, 2008.

JAKOBSON, Roman. Lingüística e Comunicação. São Paulo: Cultrix, 2003.

MOORE, Alan e GIBBONS, Dave. Watchmen. São Paulo: Abril, 1999.

PLAZA, Julio. Tradução intersemiótica. São Paulo: Ed. Perspectiva, 1987.

RAMOS, Paulo. A leitura dos quadrinhos. São Paulo: Contexto, 2009.

SANTAELLA, Lucia. Por que as comunicações e as artes estão convergindo?. São Paulo: Paulus,
2005.

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Expediente
CoMtempo
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São Paulo, v.1, n.1, dez.2009/maio 2010

A revista CoMtempo é uma publicação científica semestral em formato eletrônico do Programa de Pós-graduação em Comuni-
cação Social da Faculdade Cásper Líbero. Lançada em novembro de 2009, tem como principal finalidade divulgar a produção
acadêmica inédita dos mestrandos e recém mestres de todos os Programas de Pós-graduação em Comunicação do Brasil.

Presidente da Fundação Cásper Líbero


Paulo Camarda

Diretora da Faculdade Cásper Líbero


Tereza Cristina Vitali

Vice-Diretor da Faculdade Cásper Líbero


Welington Andrade

Coordenador da Pós-Graduação
Dimas Antônio Künsch

Editor
Walter Teixeira Lima Junior

Comissão Editorial
Ângela Cristina Salgueiro Marques (Faculdade Cásper Líbero) * Carlos Costa (Faculdade Cásper Líbero)
Luis Mauro de Sá Martino (Faculdade Cásper Líbero) * Maria Goreti Frizzarini (Faculdade Cásper Líbero)
Liráucio Girardi Junior (Faculdade Cásper Líbero) * Walter Teixeira Lima Júnior (Faculdade Cásper Líbero)

Conselho Editorial
Adalton Franciozo Diniz (Faculdade Cásper Líbero) * Ângela Cristina Salgueiro Marques (Faculdade Cásper Líbero)
Carlos Roberto da Costa (Faculdade Cásper Líbero) * Cláudio Novaes Pinto Coelho (Faculdade Cásper Líbero)
Dulcília Schroeder Buitoni (Faculdade Cásper Líbero) * Eliany Salvatierra (Faculdade Cásper Líbero)
José Augusto Dias Júnior (Faculdade Cásper Líbero) * José Eugenio de Oliveira Menezes (Faculdade Cásper Líbero)
Liráucio Girardi Junior (Faculdade Cásper Líbero) * Luis Mauro Sá Martino (Faculdade Cásper Líbero)
Maria Goretti Frizzarini (Faculdade Cásper Líbero) * Maria Ivoneti Ramadan (Faculdade Cásper Líbero)
Pedro Ortiz (Faculdade Cásper Líbero) * Silvio Henrique Viera Barbosa (Faculdade Cásper Líbero)
Sônia Castino (Faculdade Cásper Líbero) * Walter Teixeira Lima Junior (Faculdade Cásper Líbero)

Assistente Editorial
Paulo Lutero * Tel. (11) 3170-5969 | 3170-5841 * comtempo@facasper.com.br

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Revisão de textos
Ângela Cristina Salgueiro Marques * Walter Teixeira Lima Junior

Editoração eletrônica
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Correspondência
Faculdade Cásper Líbero – Pós-graduação
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Comtempo – Revista Eletrônica do Programa de Pós-graduação da Faculdade Cásper Líbero – Edição nº 1, Ano I - Dezembro 09
http://www.revistas.univerciencia.org/index.php/comtempo

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