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INTRODUÇÃO À MULTIMODALIDADE
Contribuições da Gramática Sistêmico-Funcional
Análise de Discurso Crítica
Semiótica Social
2015
Copyright © Josenia Vieira e Carminda Silvestre
Revisão
Carmen Lucia Prata da Costa
Denise Silva Macedo
Design da capa
Newton Scheufler
Imagem da capa
Paul Klee Revisitado (arte digital de Newton Scheufler)
Apoio
Centro de Pesquisas em Análise de Discurso Crítica
da Universidade de Brasília – CEPADIC
APRESENTAÇÃO 7
REFERÊNCIAS 163
8 Introdução à Multimodalidade
para as duas abordagens ─ Halliday ─ pela perspectiva semiótica
social que introduziu no entendimento de linguagem (1978). A
Gramática Sistêmico-Funcional (1994) é partilhada pelas duas
abordagens mercê do enquadramento teórico que esta possibilita
no estudo da linguagem (que excede o estudo da linguagem
verbal) e, fundamentalmente, da sua relação com outros recursos
semióticos que são simultaneamente usados na construção de
significados.
Cabe registro ainda que a ideia do presente volume
surgiu de um pós-doutoramento realizado entre 2008 e 2009, na
Escola Superior de Tecnologia e Gestão, do Instituto Politécnico
de Leiria, em Portugal, pela Doutora Josenia Vieira, da
Universidade de Brasília (UnB), pós-doutoramento
acompanhado pela Doutora Carminda Silvestre, da instituição
portuguesa. Do trabalho realizado pelas autoras, foi selecionada
a parte cujo fio condutor possibilitasse uma unidade para o
estudo da multimodalidade, objeto de estudo pouco
desenvolvido em Língua Portuguesa e com publicação exígua
nesse idioma. Dessa constatação e do trabalho conjunto resultou
a obra, escrita em Português do Brasil (PB) e em Português
Europeu (PE), coexistência propositada de forma a ficar
marcado o respeito pelas duas variedades de língua, suprimindo,
desse modo, qualquer possibilidade de colonização linguística de
uma das variedades.
Quer por essa razão, quer pelos seus títulos, quer ainda
pelos seus conteúdos, as seis partes do livro podem parecer uma
colectânea de ensaios sobre tópicos vagamente relacionados
entre si. No entanto, a estrutura do livro é bastante intricada, com
duas vias de investigação, uma que começa no primeiro capítulo
com enfoque na pesquisa da multimodalidade na publicidade e a
outra que começa no capítulo quatro com a pesquisa em literacia
10 Introdução à Multimodalidade
multimodalidade e da literacia multimodal pelas diferentes áreas
(da educação às artes, dos contextos acadêmicos às profissões) e
do seu uso como ferramenta fundamental para a criação e para a
interpretação dos textos multimodais da contemporaneidade.
Não menos interessante, vale ressaltar o outro objetivo, o
contributo para a maior consciência do papel central que o
discurso desempenha nas transformações políticas, econômicas e
culturais da sociedade e as implicações que essas acarretam no
quotidiano das diferentes áreas da vida em sociedade.
As autoras
GLOBALIZAÇÃO,
TECNOLOGIAS E LINGUAGENS
1. GLOBALIZAÇÃO E TECNOLOGIAS: UMA
PERSPECTIVA MULTIMODAL DA LINGUAGEM
Josenia Vieira
16 Introdução à Multimodalidade
ainda que um evento discursivo que migra de um domínio social
para outro carrega o caráter simbólico da primeira representação
e, ao ser reutilizado em outro contexto social, em outro espaço,
terá a seu dispor um leque de possibilidades para a nova
simbolização agora midiatizada.
Por essa razão, o evento discursivo escrito já não
representa exatamente o fato real, pois já se tornou uma
representação de outro discurso anteriormente representado,
tornando-se assim uma segunda ordem de representação mais
complexa do que a primeira. Então, cada vez que certo evento
discursivo é mediado por diferentes tecnologias é, do mesmo
modo, objeto de nova representação, ao que denominamos
reconfiguração ou recontextualização do discurso, fato que
agrega cada vez mais complexidade a essas representações. Caso
semelhante repete-se com o discurso multimodal, pois
acreditamos que as múltiplas semioses desempenham relevante
papel na construção dessas camadas de reconfiguração da
linguagem, tendo em vista que as representações realizadas por
meio das imagens e das cores, por exemplo, aproximam mais o
discurso representado da realidade.
Particularmente Fairclough (2003a), para explicar como é
construída a representação do significado, emprega a palavra
mediação com o propósito de marcar o movimento do
significado de uma prática social a outra, assim como de um
evento a outro ou de um texto a outro, o que forma um processo
discursivo complexo. Esses processos, por sua vez, ocorrem em
redes de textos, sujeitas a transformações em seus contextos
sociais e culturais, podendo também se tornarem agentes de
mudanças nas diferentes redes ou domínios sociais da
linguagem.
1
It is the case that our starting point has been the systemic functional
grammar of English developed by Michael Halliday, though we had and
have attempted to use its general semiotic aspects rather than its specific
18 Introdução à Multimodalidade
Logo, com as revolucionárias transformações nos
gêneros discursivos, provocadas pelas tecnologias e pela
multimodalidade, as práticas discursivas multiplicaram-se e
passaram a cooperar também para a feição reconfigurada desse
novo discurso, que se apoiou em muitos aspectos na Sistêmica
Funcional. Nesse sentido, vale ainda mencionar a incorporação
aos estudos do discurso do conceito de gramática, capturado da
Teoria Sistêmico-Funcional em substituição aos conceitos
tradicionais. A esse respeito, assim se posiciona Halliday:
A gramática vai além de regras de correção. É um
meio de representar padrões de experiência...
Possibilita aos seres humanos construírem uma
imagem mental da realidade para dar sentido a sua
experiência sobre o que está acontecendo ao seu
redor e dentro deles (HALLIDAY, 1985, p. 101) 2
(tradução nossa).
3
The same is true for the grammar of visual design. Like linguistic
structures, visual structures point to particular interpretations of experience
forms of social interaction. To some degree these can also be expressed
linguistically. Meanings belong to culture, rather than to especific semiotic
modes (KRESS e VAN LEEUWEN, 2006 [1996], p. 2).
20 Introdução à Multimodalidade
efetivamente, realizar uma leitura multimodal completa por meio
de uma abordagem que contemple tanto a cultura local quanto a
global.
Desse ângulo, a Análise de Discurso Crítica, defendida
principalmente por Fairclough (1992, 2003a, 2006), para quem a
linguagem é resultado da prática social de um contexto
globalizado, e pela Teoria Multimodal do Discurso de Kress e
van Leeuwen (2006 [1996]) e de van Leeuwen (2005), que
acreditam ser o significado da linguagem representado por outras
semioses de cunho multimodal, recebemos as condições teóricas
e práticas para lidar adequadamente com os textos multimodais
da atualidade, fruto das mudanças provocadas pelas tecnologias
e pela globalização.
Para o exame do discurso em uma perspectiva semiótica,
discutida inicialmente em Fairclough (1992, 2003a, 2003b) e em
Chouliaraki e Fairclough (1999), encontramos a defesa de que o
discurso é o reflexo contínuo de práticas sociais e discursivas,
sujeito permanentemente às mudanças sociais, desempenhando o
papel de agente duplo de mudança, porque, ao mesmo tempo em
que é mudado pelo social, também age como agente modificador
desse mesmo social e, além disso, o discurso está
simultaneamente sujeito às influências das múltiplas semioses,
presentes nos demais discursos multimodais que nos circundam.
Portanto, ao examinarmos o discurso por meio dessa vertente
crítica, temos acesso aos princípios teóricos e às categorias que
nos permitem analisar o discurso representado nesses múltiplos
processos e também nas relações estabelecidas com outras redes
discursivas.
Desse modo, o conceito de prática discursiva introduzido
por Fairclough (1992, 1995, 1996, 2006) permite-nos vincular a
22 Introdução à Multimodalidade
retórica do discurso empregada pela globalização pode construir
uma visão que pode justificar e também legitimar ações
particulares tanto de agências sociais como de seus agentes.
Então, com o advento da globalização, cada vez mais se
fortalece uma inovadora prática discursiva ─ a
recontextualização do discurso ─, denominação atribuída por
Fairclough (2006) ao processo discursivo pelo qual textos
específicos incorporam outros textos ou agregam seletivamente
práticas sociais, discursos, gêneros e estilos que com eles se
relacionam por meio da (de)locação e da (re)locação. Com suas
pesquisas, Fairclough (2006) concluiu que as mudanças nas
práticas discursivas ocorrem principalmente por meio da
recontextualização, que se expressa por intermédio de um
hibridismo intertextual e interdiscursivo, presente em elementos
recontextualizados que estabelecem novas articulações
discursivas, às quais adjungem outros elementos de discursos já
existentes. Esses, por sua vez, transformam-se em novos modos
discursivos, agregados aos novos gêneros e estilos do discurso.
Após esse recorte sobre discurso e globalização,
retomamos novamente ao ponto de vista de Poster (1996), que
defende que a linguagem, para se reconfigurar em quaisquer
práticas discursivas, deve refletir as mudanças decorrentes dos
usos dos media na comunicação, os quais contribuem para
estabelecer, divulgar e reproduzir ideologias, capazes de
sustentar ou de manter desigualdades e injustiças sociais, além
de revelar as relações de poder presentes no discurso, aspecto
também defendido por Fairclough (1989).
Por esse motivo, enquanto Fairclough (2006) acredita que
a recontextualização ou a delocação do discurso constitui a
principal fonte de mudança da linguagem, Poster defende que a
24 Introdução à Multimodalidade
também na adesão às novas semioses para a produção do
sentido. Todo esse sofisticado aparato tecnológico motivou a
construção de arrojados designs gráficos, e de fotocomposições
cada vez mais comuns nos e-books e nos fotolivros, que, com o
elevado número de usuários, tornaram-se cada vez mais
acessíveis às grandes massas.
Por tudo isso, as novas tecnologias, associadas aos
avanços da sociedade da informação, à sociedade em rede
(CASTELLS, 2003) provocam mudanças aceleradas na
recontextualização do discurso. E, embora muitos teóricos
tratem dessas duas sociedades como apenas uma, Cardoso
(2006) distingue a sociedade de informação da sociedade em
rede. Vejamos:
Sociedade de Informação e Sociedade em Rede são
designações para realidades diferentes e mesmo a sua
formulação trabalhada num contexto institucional e
político com objetivos claros de mobilização
estratégica das sociedades e cidadãos, procurando
valorizar uma dimensão comum a diversas esferas da
actividade social. Já a segunda tem por objectivo
distinguir um modelo de organização social a partir da
investigação e análise das nossas sociedades nas suas
dimensões económicas, políticas e culturais
(CARDOSO, 2006, p. 53).
26 Introdução à Multimodalidade
digital, Castells (2003) defende o ciberespaço como um espaço
fortalecedor dos laços familiares a distância. Particularmente,
chamamos a atenção para o fortalecimento dos laços familiares,
que, graças às conversas virtuais, aos e-mails e às inúmeras
possibilidades de falar gratuitamente via computador, membros
de uma mesma família podem compartilhar alegrias e pesares de
seu dia a dia em todos os espaços globais.
Tem sido prática frequente famílias inteiras iniciarem-se
nas práticas digitais e reformularem as suas práticas discursivas
e, então, serem incluídas no mundo da informação e da
tecnologia. Às novas práticas discursivas, portanto, deve-se
imputar o fortalecimento das relações familiares, as quais
gradativamente tornam-se mais comuns graças ao uso diário de
ferramentas digitais, fazendo com que vasta gama de sujeitos
iletrados digitalmente, agora, possam usá-las. Sendo, em
consequência, grande fator de fortalecimento dos laços a
distância quer pela prática do uso de e-mails, quer pelo uso das
redes sociais, com “presença” marcante, apesar da separação
geográfica. Também Castells (2003), ao analisar um dos efeitos
da interatividade virtual, chama-nos a atenção para o surgimento
de novos suportes tecnológicos voltados à sociabilidade,
traduzido como comunidades virtuais, as quais Castells (2003)
define como redes de laços interpessoais que proporcionam
sociabilidade, apoio, informação, senso de integração e
identidade social.
Ao fim e ao cabo, todas essas vertiginosas mudanças,
favoreceram a estabilização dessa linguagem híbrida, construída
por combinação de palavras, de imagens, de cores, de sons e até
de movimentos, tudo isso sob a batuta de uma nova geração de
designers gráficos, cuja mobilidade e facilidade criadora para
lidar com essas múltiplas semioses multiplicaram cada vez mais
28 Introdução à Multimodalidade
tende a uma visão muito mais semiótica, que passa a incorporar
ao discurso outras semioses que não a fala e a escrita.
No intuito de explicitarmos mais o que estamos
defendendo, analisaremos uma peça publicitária na qual
aplicaremos os princípios dessa proposta, tendo em vista que a
ADC, ao lado da Teoria Multimodaldo Discurso, são os
principais enfoques teóricos utilizados para esta análise, pois
essas teorias oferecem categorias possíveis para analisar certos
aspectos relacionados aos processos de produção, de distribuição
e de consumo dos textos, resultantes da construção de uma rede
complexa de significados sociais, responsáveis pelo significado
dos discursos contemporâneos, organizados em cadeias de
gêneros, cuja descrição aprofundada está em Fairclough (2003a,
p. 31), que descreve como os diferentes gêneros se ligam com
certa regularidade, ao mesmo tempo que envolvem
transformações sistemáticas, formadoras de cadeias de gêneros
que contribuem para as ações que excedem quaisquer diferenças
provocadas pelo espaço e pelo tempo, pois assim ligam
diferentes eventos e práticas sociais, em diferentes espaços
geográficos e em diferentes tempos, sendo esse o traço essencial
para definir a globalização contemporânea.
De igual modo, Chouliaraki e Fairclough (1999, p. 6,)
propõem uma visão dialética do processo social, em que o
discurso é um “momento”, entre discurso/linguagem; poder;
relações sociais; práticas materiais; instituições/rituais e
crenças/valores/desejos. Cada momento internaliza todos os
outros ─ para que assim o discurso seja uma forma de poder,
uma modalidade de formação de crenças/de valores/de desejos
de uma instituição, de um modo social de relacionamento, uma
prática material. Inversamente, o poder, as relações sociais, as
práticas materiais, as instituições, as crenças etc. são, em parte,
4
A dialectical view of the social process in which discourse is one
‘moment’among six: discourse/language; power; social relations; material
practices; institutions/rituals; and beliefs/values/desires. Each moment
internalises all of the others – so that discourse is a form of power, a mode
of formation of beliefs/values/desires, a institution, a mode of social
relating, a material practice. Conversely, power, social relations, material
practices, institutions, beliefs, etc. are in part discourse. The heterogeneity
within each moment ─ including discourse ─ reflects its simultaneous
determination (‘overdetermination’) by all of the other moments.
(CHOULIARAKI e FAIRCLOUGH, 1999, p. 6).
30 Introdução à Multimodalidade
tecnologias nas novas perspectivas multimodais para a
linguagem, o foco não é o estudo do anúncio publicitário em si,
mas as mudanças que ocorreram no âmbito da linguagem e do
discurso, motivadas pela globalização, pelas tecnologias e pela
multimodalidade. Então, é com este intuito que passamos a
examinar o uso da Mona Lisa de Da Vinci em uma propaganda
veiculada na internet. Queríamos inicialmente uma obra de arte
famosa utilizada em anúncios e, ao buscarmos no Google,
apareceram mais de vinte Mona Lisas, todas utilizadas na
composição de significados discursivos de textos publicitários
presentes em anúncios de dentifrícios, de xampus, até em
anúncios de joias e de outros luxuosos adereços. Ainda que
todos os exemplos fossem pertinentes para o propósito,
examinaremos aqui, a título de ilustração, apenas um caso: A
Mona Lisa americana.
32 Introdução à Multimodalidade
submetida a plásticas reparadoras e transformadoras, anunciadas
agressivamente na mídia televisiva e impressa. A mulher de hoje
vive uma vida para consumo (BAUMAN, 2009).
Mas, o que mais nos chama a atenção é a maneira
caricata como a mulher americana foi representada aqui,
reveladora dos esteriótipos a que as diferentes culturas estão
sujeitas. Conforme Dyer (1995), o papel dos esteriótipos é hoje
comparável ao termo abuso, pois nunca é neutro. Para reforçar
seu pensamento, Dyer reporta, em seu livro The matter of images
(1995), ideias de Lippmann (1956, p. 96) das quais nos
apropriamos neste momento para dizer que um padrão de
estereótipo, além de não ser neutro, não é apenas uma forma de
substituição da realidade, nem apenas um atalho. É tudo isso e
algo mais. É a garantia da nossa autoestima, sendo a projeção
sobre o mundo do nosso próprio sentido do nosso próprio valor,
a nossa própria posição e os nossos próprios direitos. Considera
Lippmann ainda que os estereótipos são altamente cobrados
juntamente com os sentimentos que a eles estão ligados, pois
eles são a fortaleza de nossa tradição, e atrás de suas defesas,
podemos continuar seguros da posição que ocupamos.
Na verdade, no caso da Mona Lisa americana, o modo
como um grupo social, ou parte dele, é representado não revela
exatamente a realidade em si mesma, mas apenas outras formas
de representações entre tantas outras possibilidades. Dyer (1995,
p. 3) assim textualmente se posiciona sobre a representação:
Este território é difícil, eu aceito que um só apreende a
realidade através de representações da realidade,
através de textos, discursos, imagens, não há tal coisa
como o acesso sem mediações com a realidade. Mas
porque se pode ver a realidade apenas através de
representações, não se segue que não se vê a realidade
de todo ─ parcial seletiva, incompleta, de um ponto de
5
his is difficult territory, I accept that one apprehends reality only through
representations of reality, through texts, discourse, images; there is no
such thing as unmediated access to reality. But because one can see reality
only through representations, it does not follow that one does not see
reality at all. Partial ─ selective, incomplete, from a point of view ─ vision
of something is not no vision of it whatsoever (DYER, 1995, p. 3).
34 Introdução à Multimodalidade
linguagem, como defendem Vieira (2004) e Ormundo (2007),
mas também pela comodificação da beleza, sendo a estética
apenas mais um produto de venda às gerações contemporâneas
tanto femininas quanto masculinas.
De semelhante modo, o culto à nova estética é um dos
marcos culturais e ideológicos de nossos tempos líquidos, como
bem caracteriza Bauman em sua extensa obra. O mundo está
cada vez menos sólido em seus valores, os quais se tornam mais
líquidos a cada instante. Assim, a linguagem reconfigurada pela
sociedade líquida, com valores voláteis e igualmente líquidos,
constituem as grandes metáforas de nosso tempo. Bauman
(2003, p. 69) sobre a fragilidade e a liquidez dos compromissos
nos relacionamentos humanos assim declara:
A líquida racionalidade moderna recomenda mantos
leve e condena as caixas de aço. Nos compromissos
duradouros, a líquida razão moderna vê opressão; na
união permanente percebe uma dependência
incapacitante. Esta razão nega direitos aos vínculos e
liames, espaciais ou temporais… (BAUMAN, 2003, p.
69)
36 Introdução à Multimodalidade
que vivemos, não apenas está mudando rapidamente, como
também nos cobra um conhecimento mais consciente e
determinado sobre essas mudanças, porque o visual, acredita
Cardoso (2006, p. 117), tem ganho predominância sobre o
textual, sendo que o único campo em que o texto aparentemente
ainda predomina é a internet. Fora desse contexto, o que
predomina é a retórica baseada na cultura visual, uma cultura
assente na multiplicidade de recursos semióticos utilizados e na
rapidez da conexão visual.
E, embora o interesse pela semiótica não seja algo novo,
haja vista a duradoura aplicação da semiótica peirceana à
pesquisa em linguagem não verbal, só recentemente tem sido
usada na aplicação e na sistematização das potencialidades
descritivas da Linguística Sistêmica. As pesquisas mais
significativas nessa perspectiva têm sido as investigações de
Kress e van Leeuwen (2001, 2006 [1996]) entre outros. Os
modelos de análise semiótica elaborada por eles têm sido usados
com sucesso em contextos, como em estudos de museus e de
galerias de arte.
A boa notícia é que os interesses da Gramática
Sistêmico-Funcional finalmente se expandiram para outras
linguagens semióticas. Assim, temos hoje uma análise de
produção de sentido que considera como essa simbiose
materializa ideologias nas comunidades discursivas, encarando
não só a linguagem verbal escrita, mas também as demais
linguagens. Kress e van Leeuwen (2006 [1996]) discutem a
função ideacional nas imagens e como os processos
apresentacionais e transacionais e como os atores e as
circunstâncias relevantes se realizam na função interpessoal em
termos da “interpelação” por meio do olhar, do ângulo etc., e a
função composicional em termos de enquadres, linhas paralelas,
CONCLUSÕES
Por fim, esta parte, que tratou da “Globalização e
tecnologias: uma perspectiva multimodal da linguagem”, coloca
em tela o surgimento, a existência de inúmeras práticas
discursivas, fruto da globalização e das tecnologias digitais, as
quais são fortemente representadas nos novos gêneros
discursivos. A prova concreta de sua existência é a
reconfiguração, ou a recontextualização do discurso, realizada
por meio das práticas discursivas multimodais mediadas, tanto
pelas mídias digitais quanto pelas impressas no espaço
discursivo globalizado.
À parte as mudanças globais, que exerceram marcante
influência sobre a linguagem, pertencemos a uma sociedade da
imagem; somos cidadãos multimodais a ponto de descansarmos
quando vemos imagens em frente à TV. Somos fruto de uma
sociedade digital, uma sociedade multimodal. Foi nesse
favorável contexto que o discurso monomodal encontrou terreno
fértil para se ressemiotizar e compor os atuais discursos
multimodais.
38 Introdução à Multimodalidade
Por essas razões, as mudanças tecnológicas e midiáticas,
que estão ocorrendo no mundo, não podem passar despercebidas.
É relevante que, na qualidade de pesquisadores da linguagem,
não ignoremos as impactantes mudanças pelas quais passa a
linguagem. Ignorar essas mudanças é impossível. A sociedade
necessita com urgência de instituições de ensino que não se
coloquem à margem do mundo globalizado, necessitamos de
outras alternativas de letramento, do letramento informacional e
digital, que possam permitir o pleno exercício da cidadania, mas,
para isso, devemos oferecer instrumentos que permitam o pleno
domínio de todas essas tecnologias. Por pertinente, registro a
opinião de Cardoso:
(…) a cidadania na sociedade em rede depende
também do domínio dos intrumentos que nos
permitem lidar com os medias como mais uma
linguagem natural, e do desenvolvimento de uma
literacia que vá para além de sua definição mais
tradicional. (CARDOSO, 2006, p. 401)
40 Introdução à Multimodalidade
2ª PARTE
MULTIMODALIDADE E
EVENTOS DE LETRAMENTO
2. A MULTIMODALIDADE NOS EVENTOS DE
LETRAMENTO
Josenia Vieira
44 Introdução à Multimodalidade
manifesto principalmente pelos gêneros multimodais, veiculados
pelos meios midiáticos circundantes.
Na sequência, examinaremos as categorias possíveis de
serem utilizadas para proceder a uma análise multimodal,
seguindo os passos estabelecidos por Kress e van Leeuwen
(2006 [1996]).
46 Introdução à Multimodalidade
Kress e van Leeuwen (2006 [1996]), que nos oferecem uma
gramática do design visual, na qual descrevem critérios que
podem nos ajudar a classificar taxionomicamente o que eles
denominam de escalas, dividindo-as em escalas de detalhes, de
plano de frente e de fundo, de dimensionalidade, de sombra e
luz, de matizes, de intensidade de cores, de brilho, de cores puras
ou híbridas, de quantidade de cores, de luminosidade e, por
último, escala de elementos tipográficos. Passaremos, a seguir, a
detalhar mais essas escalas.
48 Introdução à Multimodalidade
imagens estão representadas em mais de uma dimensão.
Quantas? Em duas ou em três?
Por sua vez, na análise da escala de sombra e luz,
devemos observar como são representados os contornos dos
objetos quanto ao uso da sombra e da luz. A pergunta possível
pode ser: a luz foca, destaca o quê? O ponto mais iluminado é
efetivamente o mais relevante na informação a ser dada? Com
referência à escala de matizes, o pesquisador multimodal deve se
preocupar com o exame das gradações de cores presentes na
composição da imagem, examinar se há muitas cores. Com
relação ao exame da escala de intensidade das cores, devemos
investigar se as cores utilizadas são opacas ou intensas, frias ou
quentes. Os pesquisadores de composições multimodais deverão
se concentrar em buscar o motivo, a razão de envolver
determinada informação em cores frias e outras em cores
extremamente quentes. Mas, principalmente devemos nos
concentrar na análise das cores no que toca aos significados, às
crenças representadas e às ideologias que tais cores podem
agregar ao sentido do texto.
No que concerne ao exame da escala de brilho no texto
multimodal, devemos nos ater ao estudo do uso das cores com o
propósito de identificar não só se há cores brilhantes ou foscas,
mas também para perceber que tipo de informação merece o uso
de uma cor brilhante ou fosca. No que tange ao estudo da escala
de cores puras ou híbridas, devemos analisar se as cores usadas
nos textos multimodais são puras ou se resultam de combinações
cromáticas. Além disso, devemos identificar o propósito
subjacente a essas escolhas.
Quanto à análise da quantidade de cores, o que deve ser
examinado centra-se no exame das cores: se elas são
50 Introdução à Multimodalidade
multimodal. Desse modo, o nome de um jornal ou de uma
revista escrito em cores ou em preto e branco; em letras grandes
ou pequenas, é identificado inicialmente pela perspectiva
ideacional, trazendo sinais multimodais para que o leitor possa
fazer uma leitura do significado a respeito da mídia referida. É
moderna? É mais tradicional?
Logo, o estudo das dimensões da letra, sob a ótica da
função interpessoal, pode significar muitas coisas, entre elas,
audácia para convencer o leitor sobre a verdade, sobre as
injustiças. A bem da construção do sentido, o design das letras
de um jornal, de uma revista ou de documento impresso revela
demasiado sobre o significado potencial do texto que será lido.
Por essas razões, os elementos tipográficos selecionados para a
escrita de um texto exercem papel relevante na leitura do sentido
final a ser construído pelo leitor.
Também as diferentes formações dadas a determinados
textos multimodais estabelecem elos entre o sentido das palavras
e a intencionalidade do sujeito-autor. Conforme Kress e van
Leeuwen (2006 [1996]), os elementos tipográficos podem ser
classificados também quanto ao peso, à expansão, à curvatura, à
conectividade, à orientação, à regularidade e aos floreamentos.
Outra característica da tipografia passível de análise é a
expansão, aspecto que trata da distribuição das letras no espaço
do texto multimodal. A inclinação tipográfica, por sua vez, diz
respeito ao desenho da letra, podendo se aproximar mais da
escrita manuscrita ou da letra impressa. O uso de letras
manuscritas na composição do texto multimodal favorece a
leitura para os sujeitos iniciados no letramento com escrita
manuscrita. Já os sujeitos-leitores da era informatizada terão
mais dificuldades para a leitura desses padrões tipográficos.
52 Introdução à Multimodalidade
pois elas serão extremamente relevantes à construção de sentidos
complementares. Vejamos algumas das letras possíveis:
54 Introdução à Multimodalidade
participa fortemente da construção do sentido de queda do
Presidente.
Por último, encontramos, no floreamento da letra, a
possibilidade de analisá-la quanto ao rebuscamento da escrita
das palavras. Dependendo da época a ser retratada no texto
multimodal, o uso desse tipo de letra pode contribuir para a
construção de marcas de temporalidade. Para a descrição de uma
época antiga, com reis e rainhas, basta que as letras sejam
floreadas para que os viewers (leitores multimodais) sejam
transportados no tempo.
56 Introdução à Multimodalidade
apresentação grosseira do cartão, com impressão sem qualidade,
no modo econômico, com papel comum. Como podemos ver,
um cartão em papel de linho, com design adequado, com
impressão apurada certamente seria um diferenciador positivo
nessa apresentação. Entretanto as questões ambientais e da
sustentabilidade têm influenciado fortemente a reutilização e a
reciclagem de diferentes tipos de papéis, o tem sido um
diferencial positivo na confecção de cartões pessoais,
sinalizando que esses usuários contribuem para preservação
ambiental. Acrescente-se ainda que tal uso não significa
desprezo da produção gráfica.
Por esse motivo, ao estudarmos a multimodalidade
(KRESS e VAN LEEUWEN, 2001), devemos considerar os
aspectos da cultura do país, sem ignorar a sua extensão territorial
e as nuances culturais regionais, um mundo de cores e de formas
a ser identificado e descrito.
58 Introdução à Multimodalidade
Figura 8: modelos africanas
Fonte: http://img212.imageshack.us/f/modaafricana.png
60 Introdução à Multimodalidade
Figura 12: Simulações em obra de Vincent van Gogh,
Night Café
Fonte: http://www.spartacusartgallery.com/2010/12/vincent-van-gogh-night-
cafe.html
62 Introdução à Multimodalidade
solicitá-las. Quando os atores representados nas imagens não
direcionam seus olhos diretamente ao leitor, não estabelecem
interação direta com ele. Nessas circunstâncias, a postura do
leitor é de observador (KRESS e VAN LEEUWEN, 2006
[1996]). A seguir, examinaremos a direção do olhar em duas
imagens.
64 Introdução à Multimodalidade
Figura 16: Edição extra de outubro de 1992
Fonte: http://portaldoprofessor.mec.gov.br/storage/discovirtual/galerias/imagem
66 Introdução à Multimodalidade
obedece a princípios de linearidade, como os seguidos pela
escrita, porquanto a sintaxe visual ora articula-se por processos
associativos ou metafóricos, ora por padrões metonímicos, que
estabelecem certa relação de sentido pela posição de
contiguidade ocupada pelas imagens. Se certo anúncio está
tratando de louças para banheiros, por exemplo, é provável que
utilize lado a lado, para compor o anúncio, certos objetos usados
em banheiros, como uma pia, ao lado de uma banheira, próxima
a um vaso sanitário. Os objetos serão distribuídos, obedecendo
às posições de contiguidade.
Já se o reclame estiver tratando de tolhas felpudas e
macias, o processo para construir o sentido será o associativo,
devendo evocar algo macio que não deverá necessariamente
estar presente na composição, mas que, por meio de processo
associativo, trará à lembrança o objeto usado como referência à
ideia de maciez.
A gramática do design visual de Kress e van Leeuwen
(2006 [1996]) dá-nos três critérios para analisar a sintaxe visual
dos textos multimodais: saliência, valor da informação e
enquadramento. Saliência, conforme a definição da gramática do
design visual de Kress e van Leeuwen (2006 [1996]), é o aspecto
visível ao primeiro olhar do leitor para o texto. Portanto, a
saliência da composição é vista em primeiro plano e participa
ativamente da construção da sintaxe visual. Serve também como
ponto de partida para o estabelecimento de articulações
secundárias com outros componentes composicionais. A
saliência pode ser construída de diversas modos: pelo uso de
cores, de ícones, do tamanho das letras ou das imagens; pela
posição do texto verbal e pelo plano de frente. Todos esses
aspectos da saliência desempenham papel relevante na
determinação do significado complexo e no significado potencial
68 Introdução à Multimodalidade
Afora os critérios já discutidos, Kress e van Leeuwen
(2006 [1996]) levantam ainda quatro outras modalidades de
análise para a composição multimodal: a localização direita e
esquerda na página (dado e novo), conforme mostrado na parte
4. Essa orientação direita-esquerda mostra a expectativa do que é
esperado que o leitor leia. A informação dada, já conhecida,
deve aparecer ao lado esquerdo do texto e a informação nova
deve se situar à direita, conforme Halliday (1985). Essa é a
regra, mas quando examinamos o emprego dessa categoria em
propagandas em revistas e em outras fontes midiáticas, logo nos
damos conta quão inconsistente é o seu uso pelas agências de
publicidade, sendo frequente a presença de anúncios que fazem
exatamente o oposto do que recomenda a gramática visual.
Na categoria do eixo da verticalidade, topo e pé de
página (ideal-real), a orientação de cima para baixo mostra o que
pode ser tomado como real e como ideal. Aquilo que aparece ao
pé da página, na parte inferior, é o que deve ser tomado como
real e o que aparece acima, no topo, deve ser considerado como
o ideal. O eixo vertical trata, portanto, do real e do ideal. A parte
inferior da página (bottom) comumente é a parte mais
informativa e prática, colocando em evidência o real; a parte
superior (top) costuma fazer um apelo às emoções e mostra, de
modo geral, o ideal. As relações dado-novo e real-ideal
mostram-se altamente produtivas já que podem estruturar tanto
as composições textuais, concebidas somente com semiose
verbal, como composições com diferentes semioses que incluem
texto verbal e imagem.
70 Introdução à Multimodalidade
compõem o texto multimodal, as semioses e a direção em que a
composição modulada é apresentada em segmentos (triptych),
comumente usados em murais, panteões e trípticos. Essa
categoria, que distribui as semioses no centro-periferia da
composição, mais a composição triptych, mostram as relações de
importância nessa modalidade composicional, principalmente
com relação ao movimento do olhar. Desse modo, concluímos o
exame das principais categoriais de análise das composições
multimodais dadas por Kress e van Leeuwen (2006 [1996]).
CONCLUSÕES
O propósito desta parte foi apresentar aspectos teóricos
que possam auxiliar no estudo do texto multimodal e, desse
modo, contribuir para o avanço das pesquisas em
multimodalidade. À luz da discussão levada a efeito, fazemos
considerações que reforçam as posições teóricas e práticas
defendidas sobre o uso dos textos multimodais em diferentes
eventos sociais.
Assim, é impossível relegar a segundo plano o que Kress
e van Leeuwen (2006 [1996]) dizem ao afirmar que qualquer
texto escrito é multimodal, composto por mais de um modo de
representação. Normalmente, todo o texto carrega outras formas
de representações, além do modo verbal, que não podem ser
ignoradas porque desempenham relevante papel na construção
do sentido. Por fim, nenhum modo semiótico deve ser visto
isoladamente, pois eles complementam-se no momento em que o
sentido é composto, fazendo com que o discurso participe da
construção das representações da realidade, estabeleça relações
sociais, crie e reforce as identidades sociais (FAIRCLOUGH,
1992).
72 Introdução à Multimodalidade
3ª PARTE
DISCURSO E METÁFORAS
VISUAIS
3. O PAPEL DAS METÁFORAS VISUAIS NO
DISCURSO
Josenia Vieira
76 Introdução à Multimodalidade
emprego de foto do conhecido ator cinematográfico, George
Clooney, em um anúncio da Nespresso. Nessa proposta, em
tentativa deliberada de ignorar a fama do ator, o anúncio
enquadra a imagem de um cafezinho como o tópico de maior
relevância na propaganda, mas, de fato, a Nespresso está
vendendo o cafezinho por meio da metáfora visual construída
sobre a imagem do artista e mesmo que o discurso verbal diga:
Nespresso. Que mais? Quem tem Nespresso não precisa nem do
Clooney. A bem da verdade, a intenção publicitária é de que a
imagem do ator venda o café, pois ele constitui o conhecido, a
informação dada. Assim, o propósito do reclame é que, por
processo associativo, os consumidores passem a desejar as
preferências de Clooney, no caso o café Nespresso.
78 Introdução à Multimodalidade
novos usos visuais do alfabeto que incluem desde a variação de
fontes até aos novos tipos gráficos. Recentemente, o uso
revolucionário dos meios eletrônicos acrescentaram novos tipos
de letras, de cores e de luzes ao discurso multimodal, além de
movimentos, como nos vídeo-textos, por exemplo, tornando a
escrita mais rica pelo uso dos computadores e dos criativos
designs gráficos.
Essas mudanças favoreceram o surgimento de um
discurso híbrido, construído pela combinação de palavras e de
imagens, fruto da criação da nova geração de designers gráficos,
que lidam com letras, palavras e imagens, multiplicando cada
vez mais essa linguagem híbrida que tende a se tornar
dominante. Como resultado, podemos dizer que a linguagem
hegemônica deste século não reside apenas na imagem, nem na
palavra, mas no uso híbrido de várias semioses.
80 Introdução à Multimodalidade
Bom Bril no intuito de vender o produto. No anúncio, atrás da
figura da Mona Lisa, aparece o logotipo da Bom Bril, ocupando
posição relevante e central, servindo de pano de fundo à versão
publicitária da obra de arte. Assim, o incontestável valor artístico
do quadro de Da Vinci legitima o produto Mon Bijou, fazendo
com que inúmeras semioses participem da construção discursiva
do anúncio, como as cores branca e vermelha da Bom Bril.
Já o valor metafórico é construído no anúncio pelo
recurso semiótico visual, representado por Moreno no papel de
Mona Lisa, e pela representação do produto propriamente dito,
que conjugado com o verbal, é colocado em lugar privilegiado à
frente da composição multimodal do anúncio: MON BIJOU
DEIXA A SUA ROUPA UMA PERFEITA OBRA-PRIMA.
Assim, o produto Mon Bijou da Bom Bril, semelhantemente à
Mona Lisa de Da Vinci, é, para as consumidoras brasileiras, uma
perfeita obra prima em forma de amaciante. De igual modo, os
três amaciantes, colocados à esquerda no anúncio, são
considerados como informação conhecida, tratado como
informação velha, a informação nova aqui é o fato de o
amaciante da Bom Bril ser uma obra-prima.
82 Introdução à Multimodalidade
distintivo das vestes tanto de homens quanto de mulheres da
África.
Costumamos observar também as construções e as cores
de cada país: alguns são brancos, como Portugal e Grécia,
outros, ocre-escuro, como o Reino Unido e Espanha. Nesse
particular, em Israel, Jerusalém, a cidade sagrada, é toda
revestida com uma pedra creme, levemente brilhante, sendo
proibido o uso nas edificações de outro material que não aquele.
Então, cada país incorpora à sua identidade nacional cores
definidas por suas culturas. Logo, as preferências individuais
nessa área são condicionadas também culturalmente, agregando
a essas escolhas forte carga semântica e ideológica.
Gostaria de reportar ainda dois fatos ligados a cores. O
primeiro é que no Brasil nenhuma brasileira se sentiria bem em
um evento festivo com um vestido verde e amarelo, cujas cores
pertencem à bandeira nacional; já nos Estados Unidos não é
incomum o uso das cores da bandeira americana em roupas e
adereços masculinos e femininos. Outro fato que mencionamos,
a título de ilustração, é o de uma festa de casamento em Portugal
na qual toda a decoração do evento festivo e a cor do vestido da
noiva ou eram pretos ou em nuances próximas a essa cor, que,
embora tanto na cullura portuguesa quanto na brasileira, de
modo geral, essas cores simbolizem tristeza e morte, nunca a
alegria de casamentos. Mas, ainda que essa não seja uma prática
social comum nesses Países, mesmo assim pode ocorrer por
conta de um estilista de moda específico, sem refletir, portanto, a
integralidade da cultura nacional. Por essa razão, os recursos
multimodais, quando usados na publicidade, devem considerar
não apenas as preferências pessoais e as empresariais, mas
também aquelas que subjazem às identidades sociais formadas
culturamente em determinados grupos e nações.
84 Introdução à Multimodalidade
no entanto, apresentar carros no texto publicitário. Passemos ao
anúncio. No primeiro plano, há um imenso e forte céu azul, com
nuvens brancas que tomam todo o espaço publicitário. O detalhe
interessante é que as nuvens brancas recortam no azul o contorno
dos mapas da América do Sul e do Norte e também o da Europa.
E só. Nada mais. Não há outras imagens a não ser o logotipo da
Audi, formado por quatro anéis entrelaçados que figuram bem ao
pé da página, ressaltado apenas pelo nome Audi, em vermelho, à
extrema direta do anúncio. À esquerda, um pouco mais acima, o
discurso verbal, a frase:
86 Introdução à Multimodalidade
Figura 21: Press release das Joias Switzer ─ Portugal
Fonte: recebido por internet em maio de 2008
88 Introdução à Multimodalidade
composição multimodal e de que desse fato a atividade
publicitária, artística e educacional não pode fugir. Frente a essas
mudanças concretas, é impossível não aderir à multimodalidade,
aos textos híbridos compostos com múltiplos recursos
semióticos, construídos com base em metáforas visuais, e, em
decorrência, os sujeitos que não souberem lidar com a linguagem
visual, com a multimodalidade, estarão sujeitos à exclusão
social. Para esse fato, chamam atenção Kress e van Leeuwen:
[...] Acreditamos que a comunicação visual está se
tornando um campo cada vez menos de especialistas e
cada vez mais crucial à comunicação pública. Isso
inevitavelmente leva ao surgimento de novas regras,
mais formais de ensino. Não ser letrado em
comunicação visual poderá acarretar sanções sociais.
Dominar o chamado letramento visual será uma
questão de sobrevivência especialmente nos locais de
trabalho (2006 [1996], p. 13).
90 Introdução à Multimodalidade
Em razão da imersão da sociedade em um mundo visual,
alicerçado em avançada tecnologia que influencia as formas de
interação, passíveis de mudança segundo as tecnologias usadas
pela sociedade, devemos prestar atenção ao modo de interagir
das pessoas já que são diretamente influenciadas pelo
desenvolvimento tecnológico. Em razão disso, muitos conceitos
deverão ser revistos.
O primeiro conceito a carecer revisão é o de letramento,
que deve englobar tanto o letramento visual quanto o letramento
midiático, pois o conceito de letramento, referente à habilidade
de ler e de escrever como resultado de uma prática social,
tornou-se insuficiente para cobrir todas as formas de
representação do conhecimento presentes em nossa sociedade,
pois para que o sujeito seja considerado letrado nos dias atuais
deverá ser capaz de construir sentidos em diferentes discursos,
usando múltiplas fontes de linguagem.
Não devemos desconsiderar que os recursos tecnológicos
utilizados na construção dos gêneros discursivos motivam uma
função retórica na construção de sentidos, haja vista que
observamos o aumento cada vez maior da combinação de
aspectos visuais com os de escrita. Certamente não podemos
ignorar o fato de que vivemos em uma sociedade da informação
cada vez mais visual e de que a representação por meio de
imagens produz textos especialmente construídos que revelam as
nossas relações com a sociedade e com o que ela representa.
Assim é que o letramento visual se relaciona diretamente
com o modo como as sociedades se organizam e,
consequentemente, com o modo de organização dos gêneros
textuais. Se lembrarmos, por exemplo, das pinturas das cavernas
que registravam a história daquela comunidade, logo nos
92 Introdução à Multimodalidade
4ª PARTE
MULTIMODALIDADE
E LITERACIA
4. LITERACIA MULTIMODAL
Carminda Silvestre
96 Introdução à Multimodalidade
Figura 22: Texto publicitário da Benetton
Fonte: http://www.ocorvo.com.br/?cat=9
98 Introdução à Multimodalidade
enquanto elementos necessários à inclusão do conceito de
literacia perspetivado de forma semiótica.
Pelo que acabámos de dizer, intui-se que o conceito de
literacia, na sua aceção tradicional, revela-se um conceito que
requer alguma reflexão e uma redefinição para fazer face à
realidade de hoje. Já em 1965, num congresso dos Ministros da
Educação, a Unesco sugeriu que a literacia deveria ser entendida
não como um fim em si, mas deveria ser entendida como uma
forma de preparar o indivíduo para a vida, nas suas vertentes
social, cívica e económica e, neste sentido, no contexto da
educação, deveria ir para além do ensino da leitura e da escrita
(McARTHUR, 1998, p. 357). Nesta perspetiva, o conceito deixa
de ser direcionado para um fim, isto é, um produto, para passar a
ser entendido como “uma forma de preparar o indivíduo para a
vida”, ou seja, um processo. Desta forma, o entendimento do
conceito parece orientar-se para uma efetiva participação do
indivíduo nos processos sociais. Estamos perante uma
ressemantização, ou seja, uma mutação semântica de um estado
“ser literato” para um processo em desenvolvimento “construir-
se literato”; o enfoque deixa de ser o conhecimento para passar a
ser a atividade. Assim, quando falamos em literacia informática
não queremos apenas significar a capacidade para ler e escrever,
mas a capacidade de envolvimento na atividade de comunicar
através deste artefacto: o computador. Por conseguinte, as
mudanças sociais resultantes das inovações tecnológicas que
perpassam a sociedade exigem uma aprendizagem permanente e
uma adaptação contínua a novas formas de comunicação.
Contudo, e apesar da redução semântica do conceito
tradicional às necessidades do momento, a língua portuguesa
tem se acomodado às novas realidades recorrendo a
modificadores como nas expressões “literacia informática”,
Carminda Silvestre
Pernas:
Porque me sinto muito
direcionadas para
só e triste…
baixo; não hirtas
E bem merecia
Olhos:
esse momento de
olhar direcionado
reconhecimento e
para cima
consagração.
Pernas: cruzadas
direcionadas para
cima
GÉNERO E
MULTIMODALIDADE
6. O GÉNERO COMO ELEMENTO MULTIMODAL DA
ATIVIDADE HUMANA
Carminda Silvestre
6
As variáveis de registo são o campo (a natureza da prática social ─ o que
está a acontecer), as relações (quem está envolvido), o modo (o papel
desempenhado pela linguagem), responsáveis pela configuração textual.
7
O nome da personagem não engana: ele é o Sr. Raposo, deixando
adivinhar, nos atos que pratica, todo o programa de ação da velha raposa
da fábula.
Figura 34: O Sr. Raposo está triste por não ter dentes para
comer as bolachas
Figura 40: O Sr. Raposo está feliz com a sua dentadura nova
quem; onde;
o Sr. Raposo dá comida aos
2 processo orientação
pombos
material
processo
8 o Sr. Raposo apanha a dentadura resolução
material
processo
10 o Sr. Raposo regressa à sua rotina resolução
material
8
Swales (1993, p. 61), por exemplo, no seu livro Genre Analysis refere a
narrativa como um pré-género, definindo-o da seguinte forma “A narração
(falada ou escrita) opera através de um quadro de sucessões temporais nas
quais, pelo menos, alguns dos acontecimentos são reacções a
acontecimentos anteriores. Outras características da narrativa são aquelas
em que os discursos tendem a ser fortemente orientados para os agentes
dos acontecimentos descritos, em vez de ser para os próprios eventos,
sendo a estrutura tipicamente a de ‘um enredo’”. (Tradução nossa).
JOSENIA VIEIRA
Pós-doutora em Linguística Aplicada
pela Universidade de Lisboa (2001) e pelo
IPL/PT (2008), doutora em Linguística
pela PUC/RS. Professora Associada 4 do
Programa de Pós-Graduação em
Linguística da Universidade de Brasília,
nos cursos de Doutorado e de Mestrado desde 1991. Suas
pesquisas concentram-se principalmente em Multimodalidade,
Análise de Discurso Crítica e Letramento. Orientou mais de 50
pesquisas entre dissertações de Mestrado e teses de Doutorado.
Dirige o Centro de Pesquisas em Análise de Discurso Crítica
(Cepadic). Membro da Asociacíon Latinoamericana de Estúdios
del Discurso (Aled). É autora de diversos livros, capítulos e
artigos e também é a editora da revista “Discursos
Contemporâneos em Estudo”.
CARMINDA SILVESTRE
Doutorada em Linguística Aplicada
pela Universidade de Lisboa. Professora
Coordenadora na Escola Superior de
Tecnologia e Gestão (ESTG), do Instituto
Politécnico de Leiria, Portugal. Desenvolve
trabalho de investigação no âmbito da
Análise Crítica do Discurso, Semiótica Social e Gramática
Sistémico-Funcional aplicada ao Discurso Empresarial, Discurso
da Marca, Educação e Artes. Investigadora no Instituto de
Linguística Teórica e Computacional (ILTEC), Portugal.
Neste livro, a Gramática Sistêmico-Funcional, a
Semiótica Social e a Análise de Discurso Crítica,
enquadramentos teóricos aqui usados para o estudo
da Multimodalidade, partilham entre si uma
perspectiva de linguagem como constructo social,
em que linguagem e sociedade se modelam de
formas bidirecionais, ou seja, a linguagem modela a
sociedade e é modelada por esta.