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O USO DE MODALIZAÇÃO EM TEXTOS

MULTISSEMIÓTICOS: SINALIZAÇÕES
PARA A CONSTRUÇÃO DO PROJETO
DE DIZER

Amanda Jackeline Santos da Silva1


Helena Maria Ferreira2

Resumo: A presente pesquisa tem por objetivo analisar como o fenômeno da modalização em tex-
tos multissemióticos. A pesquisa, pautada na concepção de modalização como fenômeno discursivo
(BRONCKART, 2012), conta com uma análise da videoanimação “Alegoria das Longas Colheres”, que
busca destacar como os recursos semióticos podem atuar como modalizadores em textos em movimento,
contribuindo para a formação e/ou com o trabalho do professor em relação à leitura de textos que circu-
lam na sociedade da informação. O estudo das modalizações pode favorecer a formação de professores
mais reflexivos, uma vez que é possível analisar as escolhas semióticas realizadas pelos enunciadores e
articular pistas orientadoras do percurso interpretativo, o que pode redimensionar as práticas de ensino
da leitura, tornando-as como um processo responsivo ativo, no qual os leitores sejam considerados efe-
tivamente interlocutores.

Palavras-Chave: Modalização. Textos multissemióticos. Videoanimação. Formação de professores.

THE USE OF MODALIZATION IN MULTISEMIOTIC TEXTS: SIGNALS FOR THE


CONSTRUCTION OF THE PROJECT OF SAYING

Abstract: The present research aims to analyze how the phenomenon of modalization in multisemiotic
texts. The research, based on the conception of modalization as a discursive phenomenon (BRONCK-
ART, 2012), has an analysis of the video animation “Allegory of the Long Spoons”, which seeks to high-
light how semiotic resources can act as modalizers in texts in motion, contributing to the education and/
or the work of the teacher in relation to the reading of texts that circulate in the information society. The
study of modalizations may favor the formation of more reflective teachers, since it is possible to ana-
lyze the semiotic choices made by the enunciators and articulate guiding clues of the interpretative path,
which can redimension the practices of teaching reading, making them as an active responsive process,
in which readers are considered effectively interlocutors.

Keywords: Modalization. Multisemiotic texts. Video animation. Teacher education.

1 Mestre em Letras. Docente na rede pública de ensino. E-mail: amandatutoraletras@gmail.com


2 Doutora em Linguística Aplicada e Estudos da Linguagem (PUCSP). Docente na Universidade Federal de Lavras (UFLA).
E-mail: helenaferreira@ufla.br

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Introdução das atividades de leitura às diferentes demandas
da sociedade da informação. Assim, considerando
As discussões acerca das práticas de ensino que há teorias/epistemologias que se ocupam de
da leitura têm sido ressignificadas, em função fenômenos da linguagem relacionados à modalidade
da diversidade semiótica constitutiva dos textos escrita que podem ser estendidas para os textos
que circulam na sociedade da informação. Nessa multissemióticos, este estudo elege como objeto
direção, a Base Nacional Comum Curricular – de estudo os mecanismos enunciativos, de modo
BNCC (BRASIL, 2018) prevê que as atividades de mais específico, as modalizações. Assim, apoiando-
ensino devem contemplar os gêneros discursivos, se no referencial teórico proposto por Bronckart
em sua pluralidade de recursos semióticos (2012), este artigo busca analisar o fenômeno
(imagens, cores, sons, movimentos, entre outros), da modalização em textos multissemióticos, de
que, conjuntamente, cooperam para o processo modo especial, em videoanimações. Enfatiza-
de produção dos sentidos. Além das múltiplas se, neste artigo, que nos textos multissemióticos,
semioses, há que se considerar, ainda, o circuito os produtores também utilizam mecanismos
de produção, circulação e recepção, de modo que enunciativos, com o propósito de mobilizar
os interlocutores tenham espaços para discussão estratégias com a finalidade de interagir com
de questões relacionadas ao contexto do texto os interlocutores, manifestar posicionamentos
lido/assistido e, assim, ampliar as formas de e direcionar o percurso interpretativo. Esse
participação social e de análise crítica dos textos/ posicionamento é sustentado teoricamente pelos
discursos. A BNCC (BRASIL, 2018) considera, estudos de Leal e Pinto (2009), que pontuam que
ainda, que, para além da cultura do impresso (ou da as modalizações podem figurar implicitamente nos
palavra escrita), é preciso abarcar as novas práticas mais diferentes gêneros discursivos, mesmo não
sociais de linguagem, que envolvem a cultura digital sendo instanciadas por marcadores linguísticos.
(formas de interação multimidiática e multimodal e Nesse contexto, espera-se contribuir não
de atuação social em rede, que se realizam de modo somente para uma reflexão acerca com as discussões
dinâmico), os multiletramentos (letramentos em teóricas acerca do processo de textualização de
diversas linguagens, como as visuais, as sonoras, textos multissemióticos, mas também suscitar
as verbais e as corporais) e os novos letramentos provocações para a formação docente, seja para
(conjunto de práticas específicas da mídia digital subsidiar, teórica e metodologicamente, as práticas
que operam a partir de uma nova mentalidade, de ensino, seja para promover espaços para
regida por uma ética diferente). problematização dos efeitos de sentidos suscitados
Diante do exposto, surge a necessidade de pelas escolhas e pelas combinações de recursos
uma discussão mais sistematizada, no contexto semióticos para a construção do projeto de dizer4
da formação de professores, acerca dos modos por parte dos enunciadores.
de organização e de funcionamento dos textos semióticos (palavras, imagens, expressões faciais, cores,
enquadramento etc).
multissemióticos3, de forma a viabilizar a adequação 4 Koch e Elias (2010) caracterizam o projeto de dizer como
sinônimo de “querer dizer”, esclarecendo que esse querer
3 Os arcabouços teóricos de Dionísio (2005) e Ribeiro diz respeito aos propósitos comunicativos do produtor em
(2013) defendem que nenhum texto é monomodal e/ ou relação ao interlocutor. O produtor do texto, a partir de suas
monosemiótico. Isso implica em considerar que todo texto percepções a respeito das condições comunicativas, como
é multimodal e multissemiótico. Por exemplo, um texto na conhecimentos linguísticos, contexto, intenções, relações
modalidade escrita, apresenta marcas multimodais (cores, sociais e culturais, opera suas escolhas visando a minimizar
fontes, itálico, negrito, sublinhado etc). No entanto, ao equívocos de interpretação. Assim a autora considera que,
considerar o termo multissemiótico, neste artigo, a menção de fato, é em função de um “querer dizer” que o texto é
é feita considerando a combinação de vários recursos planejado. Bakhtin (2003) nomeia o projeto de dizer como

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Assim, este artigo se configura como uma tecnologias, que atuam como transformadoras de
pesquisa bibliográfica, de natureza interpretativa, realidades sociais. Assim, além facilitar o acesso às
constituída por duas seções basilares: a) uma reflexão produções textuais, as tecnologias têm viabilizado
acerca da formação docente para o encaminhamento novas formas de interação, ressignificado tempos e
de práticas de leitura de textos multissemióticos espaços geográficos e garantindo possibilidades de
e b) apresentação dos pressupostos teóricos do ampliação de conhecimentos. Nessa perspectiva,
fenômeno da modalização, na concepção de sobreleva, ainda, a potencialidade dos meios
Bronckart (2012). Além disso, desenvolve-se uma digitais de viabilizar a circulação de textos
pesquisa analítico-textual, que toma como objeto de constituídos por diferentes linguagens (verbal,
análise as possibilidades de modalizações presentes imagética, gestual, sonora) e situados em contextos
na videoanimação “Alegoria das longas colheres”. culturais, o que exige habilidades relacionadas
Essa análise, além da pretensão de demonstrar a aos multiletramentos. Desse modo, é relevante
presença do fenômeno da modalização em textos promover espaços para uma formação docente
multissemióticos, busca fornecer subsídios para o que contemple as especificidades desses gêneros
percurso formativo de professores, considerando discursivos que circulam em contextos digitais, de
os efeitos de sentido suscitados pela combinação modo a propiciar uma adequação das metodologias
dos diferentes recursos semióticos e as estratégias de ensino e das ações didáticas.
utilizadas pelos produtores para viabilizar o Isso se faz necessário, pois, segundo Almeida
processo de interação com os interlocutores. Filho (1991), os cursos de Letras ainda carecem de
Dessa feita, ao considerar a prática de leitura uma formação que abarque procedimentos que,
como a (re)construção do projeto de dizer dos concretamente, permitam o enfrentamento dos
enunciadores, busca-se viabilizar uma reflexão que problemas do cotidiano profissional e a condução
possa favorecer, no contexto da formação docente, do complexo processo efetivo de ensinar línguas.
a compreensão da complexidade da ação leitora, Embora a pesquisa citada tenha sido realizada há
bem com a ampliação de habilidades relacionadas mais de três décadas, a realidade atual parece não
aos multiletramentos. ser diferente da retromencionada, uma vez que as
críticas à formação inicial ainda são recorrentes, tal
Da relevância da formação docente como confirmam Ribeiro e Lousada (2018).
para o trabalho com a leitura de textos Assim, os cursos de formação inicial,
multissemióticos bem como os cursos de formação continuada se
constituem como espaços de relevância para o
As práticas de leitura têm sido redimensionadas desenvolvimento profissional docente. De acordo
em função das interações mediadas pelas novas com Villarta-Neder e Ferreira (2019, p. 594), os
projeto de discurso ou projeto enunciativo do autor, ou seja,
a “vontade de dizer”, o que supõe que vem de um sujeito e encaminhamentos didático-metodológicos
se dirige a outro sujeito. Isso implica escolhas que se realizam adotados pelo professor, notadamente, estão
para se dizer o que se quer dizer (“vontade enunciativa”), para assentados em suas referências, que advêm de
gerar o sentido desejado. Essas escolhas podem ser de léxico suas experiências ou de seus saberes. Assim,
(vocabulário), estrutura frasal (sintaxe), registro linguístico os cursos de formação de professores terão
(formal/informal, gírias), recursos semióticos (sons, cores, de corresponder, em suas especificidades de
enquadramentos, movimentos etc. A construção do projeto área e em sua responsabilidade política, às
de dizer culmina na produção de um enunciado concreto exigências sociais para a formação de cidadãos
que pressupõe outros enunciados, apresentando-se como que possam, efetivamente, ler, escutar e
uma resposta a enunciados passados e antecipando uma produzir textos que integrem, em sua unidade,
pergunta a enunciados futuros. Nesse sentido, o projeto de vários sistemas sígnicos e as modalidades oral
dizer é contextualizado na situação de interação nos sujeitos e escrita da semiose da língua e posicionar-
interlocutores, nos propósitos enunciativos.

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se em relação a conteúdos veiculados em elas, merecem destaque as modalizações, que
práticas “que pretendam denunciar, expor
uma problemática ou “convocar” para uma cumprem um papel relevante para os processos
reflexão/ação, relacionando esse texto/
produção com seu contexto de produção e de interpretação dos textos, seja na dimensão de
relacionando as partes e semioses presentes
para a construção de sentidos” (Brasil, 2017, p. explicitar as posições do enunciador em relação ao
145). Desse modo, a criação de momentos de interlocutor, a si mesmo ou ao conteúdo temático,
discussão que favoreçam o aperfeiçoamento de
competências docentes relacionadas à leitura e seja na dimensão de orientar o leitor no percurso
à produção de gêneros multissemióticos que
circulam nos diferentes espaços sociais pode interpretativo.
contribuir para uma formação que apresente
simetria entre a própria formação e as Abordar esse fenômeno linguístico, que
demandas da sociedade da informação. ainda tem sido tratado no contexto da cultura
verbal (notadamente, da escrita), pode favorecer
Nesse contexto, abordar as questões relativas uma formação docente na perspectiva da
à competência docente não se sucumbe ao conceito multimodalidade. Para Kress e Van Leeuwen
técnico do termo competência, mas abarca a ([1996] 2006), a multimodalidade tem sido
dimensão da profissionalidade docente, uma vez ignorada no contexto educacional, nas teorizações
que o contexto social se encontra implicado. Para linguísticas ou no senso comum popular, no
Contreras (2012), a competência se relaciona ao entanto, na era de multimídia, ela precisa ser
desempenho, aos valores e às intencionalidades valorizada. Nesse contexto, se as modalizações, de
pedagógicas que se consubstanciam no exercício acordo com Nascimento (2010), são recursos que
da profissão docente. Assim, a competência se articulam aos usos da linguagem, que permitem
estaria relacionada ao modo como o professor a exploração de efeitos de sentido, é relevante que o
interpreta como deve ser o ensino, suas finalidades encaminhamento das práticas de leitura em sala de
e seus processos. Nessa direção, esse conceito diz aula abarque o estudo desse mecanismo discursivo
respeito aos saberes que constituem o repertório para além dos textos escritos.
de conhecimentos profissionais, habilidades e No âmbito da profissionalidade docente,
técnicas para o desenvolvimento da ação didática, essa discussão se torna mais complexa, uma
para a problematização das práticas educativas e vez que, além de uma formação que permita o
para a articulação com o contexto social em que a aperfeiçoamento de saberes acerca da multiplicidade
atividade docente se realiza. semiótica constitutiva dos textos, há várias outras
Desse modo, a competência docente para o demandas em pauta, tais como os modos de
trabalho com os textos multissemióticos em sala encaminhar as práticas leitoras em contextos
de aula comporta um conjunto de saberes acerca escolares diversos, as alternativas para seleção de
dos modos de organização e de funcionamento materiais didáticos que permitam o tratamento
de gêneros discursivos que integram o cotidiano de conteúdos e a formação reflexiva dos alunos,
social dos alunos. Entre esses saberes, merecem as estratégias para a mobilização de experiências
destaque as condições de produção, de circulação particulares e sociais dos aprendizes, entre outras.
e de recepção desses textos, bem como os efeitos Para Kleiman (2014), o aluno não pode se limitar
de sentidos suscitados pelas combinações dos ao papel de consumidor acrítico de produtos e de
diferentes recursos semióticos, que compõem o ideias. Para um posicionamento crítico por parte
projeto de dizer dos produtores. Nesse âmbito, dos alunos, o professor deve se refletir sobre os
emergem as estratégias utilizadas pelos produtores encaminhamentos didáticos que serão utilizados
para viabilizar o diálogo com os leitores. Entre na prática educativa, criando atividades de ensino

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significativas que propiciem o acesso, a seleção e A disseminação das tecnologias de
a análise de textos multissemióticos, considerando informação contribuiu para o redimensionamento
a dimensão plurissígnica da linguagem, os efeitos dos textos que circulam em nossa sociedade,
de sentido subjacentes aos usos das diferentes apresentando textos em que a produção de sentidos
semioses, bem como o contexto de produção e se dá mediante à cooperação de múltiplas semioses.
de recepção dos textos, conforme proposto pela Considerando-se que, as atividades humanas
BNCC (BRASIL, 2018). são realizadas pelo uso de gêneros discursivos,
Explorar os textos multissemióticos, no constituídos por recursos orais, escritos, sonoros,
âmbito da formação de professores, pode favorecer visuais, entre outros, compreende-se que é
o desenvolvimento de habilidades relacionadas necessário considerar esses recursos no processo
às questões notadamente caras ao ensino da de produção de sentidos, já que eles representam
leitura, quais sejam exploração do processo de escolhas que orientam a construção do projeto
inferências acerca das intencionalidades discursivas de dizer dos enunciadores. Nessa perspectiva,
dos enunciadores, mobilização da atenção para o Bronckart (2012) salienta que o sentido do texto
levantamento de pistas deixadas pelos produtores se dá por meio da atividade de seus leitores,
ao longo do texto; acionamento de estratégias reconstruindo o sentido a partir dos índices
de leitura que permita uma postura de atitude disponíveis na materialidade textual. Assim, todo
responsiva ativa perante o texto lido, consideração texto que é produzido abarca sempre um objetivo,
das múltiplas semioses como constitutivas do ou seja, pretende-se atuar sobre o(s) outro(s) a fim
projeto de dizer dos locutores, consideração dos de se obter reações, ressaltando, dessa forma, o
recursos semióticos como indiciadores de sentidos, caráter dialógico intrínseco da linguagem.
percepção de que as escolhas realizadas pelos Para Bronckart (2012), um texto contempla
produtores não são neutras, compreensão de que três níveis de organização ou estratos: da
a constituição de um texto multissemiótico não se infraestrutura textual, dos mecanismos de
constitui como uma soma de recursos, mas como textualização e dos mecanismos enunciativos. A
uma combinação capaz de orientar possibilidades infraestrutura textual se situa por meio de um plano
de sentidos. Essas possibilidades permitem um geral, dos tipos de discurso e suas articulações e
tratamento didático-metodológico pautado na pelas sequências que compõem esses discursos.
concepção de linguagem como uma prática social, Os mecanismos de textualização relacionam-
que remete à interação e ao fato de que ela se se à coerência temática do texto, levando-se em
efetiva entre sujeitos sócio historicamente situados. consideração a sua linearidade, como, por exemplo,
Pensar a linguagem como prática social exige uma articulações da progressão temática (conexão),
análise acerca dos contextos discursivos, seus introdução de temas e/ou personagens, garantia
interlocutores, seus projetos de dizer, suas escolhas, de retomada ou substituições (coesão nominal)
os efeitos de sentidos, os recursos linguístico- e organização temporal e/ou hierárquica dos
semiótico-discursivos utilizados para a constituição processos verbalizados (coesão verbal). Os
dos discursos. mecanismos enunciativos determinam a coerência
do texto em seu aspecto interativo, colaborando,
O uso de modalizadores em textos assim, para que o leitor possa interpretar o
multissemióticos: marcas enunciativas texto significativamente. É com os mecanismos
na produção de sentidos enunciativos que este artigo se ocupa, de modo

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especial, com as modalizações5. Bronckart (2012) então se compor de um certo número de atos
enunciativos de base, que correspondem a
sinaliza que a coerência pragmática de um texto uma tomada de posição particular do locutor
se dá por meio desses mecanismos enunciativos em relação ao seu ato de locução. [...]

que podem explicitar diversas avaliações, como


julgamentos, opiniões, sentimentos. Esses Com vistas a caracterizar a modalização,
mecanismos materializam-se por meio da é relevante citar outros autores que também se
identificação de vozes e modalizações no próprio ocuparam do estudo desse fenômeno. Entre eles,
texto e contribuem para o esclarecimento dos merecem destaque Castilho e Castilho (2002),
posicionamentos enunciativos, traduzindo que pontuam que esse fenômeno se relaciona à
diversas avaliações sobre o conteúdo temático, forma como um conteúdo é enunciado, ao grau
orientando, assim, a intepretação dos textos por de engajamento do falante sobre o conteúdo e
seus destinatários. Ao modalizar um discurso, um aos pontos de vista acerca do que está sendo dito,
falante assume vários posicionamentos perante ou seja, por meio das modalizações, o falante
um enunciado, deixando marcas que evidenciam demonstra seu relacionamento como o conteúdo
seu propósito enunciativo em relação aos proposicional, evidenciando, dessa maneira, o teor
interlocutores. Assim, as modalizações assumem de verdade ou expressando seu julgamento sobre
um caráter discursivo, evidenciando a posição do os modos de verbalização do conteúdo expresso.
locutor, ressaltando o grau de envolvimento com o Corroborando o exposto, Neves (2006)
que está sendo dito. salienta que, na interação verbal, os interlocutores
Xavier (2006) enfatiza que todo texto organizam a mensagem e estabelecem seus papéis
é produzido por um sujeito-autor, cujas no processo de interlocução, assumindo, assim,
representações discursivas estão em constante a posição de doador, solicitador, asseverador,
interação com o meio social em que se realizam perguntador, respondedor, ordenador, entre outras,
suas experiências e é importante salientar que marcando ou não seu discurso, evidenciando ou não
essa afirmação não está relacionada somente aos as posições assumidas por eles no texto produzido,
textos verbais, mas também aos demais textos que levando-se em consideração os participantes da
contemplam múltiplas semioses. interação, assim como a situação comunicativa, as
Vale ressaltar que a proposta apresentada intencionalidades etc.
toma como pressuposto a posição de Machado Já Bronckart (2012) pontua que
(2001, p. 69): as modalizações pertencem à dimensão
configuracional do texto e que contribuem para
Pode acontecer, enfim, que a modalização não que uma coerência pragmática ou interativa seja
seja expressa por nenhuma marca linguística;
aí vai ser a organização do enunciado como estabelecida, orientando, dessa forma, o receptor
um todo que irá mostrar a presença de uma
determinada modalidade enunciativa. Assim, para a interpretação do conteúdo temático de
a modalização pode estar no implícito do
discurso. Basta pensar, por exemplo, em determinado texto.
certos usos da ironia, da litotes... Nessa ótica,
a modalização é então considerada como uma Dessa maneira, com relação à conceituação,
categoria conceitual, que abarca diferentes a modalização pode ser definida em função de sua
meios de expressão, meios estes que permitem
ao sujeito falante explicitar suas posições e inserção pragmática ou interativa, ou seja, pelo
intenções comunicativas. A modalização vai
envolvimento dos interlocutores com o conteúdo
5 Embora vários autores se ocupem do estudo da temática,
tais como Castilho e Castilho (2002), Neves (2006), Koch proposicional, das intenções comunicativas, do
(2011) e Bronckart (2012), neste artigo faremos um recorte contrato epistêmico e das condições de verdade,
para os estudos de Bronckart (2012).

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do conhecimento compartilhado. Discorrendo sendo apresentadas por marcadores linguísticos.
sobre essa questão, Bronckart (2012) agrupa as Assim, ressalta-se que o uso de recursos
modalizações em quatro grupos: multissemióticos pode sinalizar pontos de vista,
levando os participantes interativos a estabelecer
a) Modalizações lógicas: Apresentam os
elementos de seu conteúdo do ponto de vista de percursos interpretativos. Assim, convém destacar
suas condições de verdade, como assertividade, que não apenas os recursos verbais podem sinalizar
possibilidades, probabilidades, eventualidades,
necessidades, apoiadas em critérios elaborados significação e enunciar informações em textos
e organizados que definem o mundo objetivo. multissemióticos, pois os elementos não verbais
A modalização lógica é utilizada para falar de
atos que poderiam ter sido realizados, mas que, cooperam também para a produção dos sentidos.
por algum motivo, não foram. Exemplificam Dessa forma, ressalta-se que esses elementos
esse grupo de modalização palavras como:
talvez, necessariamente, verbos no futuro do podem também funcionar como modalizadores,
pretérito, como: “produziria”, “doaria”, assim estabelecendo um processo de interação entre o
como estruturas oracionais, como: “é evidente
que”, “é possível que” etc. produtor e os interlocutores, criando, assim, uma
b) Modalizações deônticas: ressaltam maior aproximação entre os sujeitos envolvidos.
valores, opiniões e regras constitutivas do Enunciados verbais e não verbais podem
mundo social, apresentando os elementos do
conteúdo da obrigação social, do domínio do ser considerados mecanismos enunciativos que
direito e das normas usuais. Exemplificam cooperam para a construção da coerência em
esse tipo de modalização o uso de verbo no
presente, assim como expressões oracionais textos multissemióticos, não somente estáticos,
como: “é preciso que”. mas também textos em movimento. Os sons, os
c) Modalizações apreciativas: Estão gestos, expressões são recursos que podem ser
relacionadas a processos de avaliação oriundos
do mundo subjetivo, apresentando-os como
utilizados para aproximar o leitor, assim como
benéficos, infelizes, estranhos, do ponto de vista sugerir caminhos interpretativos, como será visto
de quem os avalia. Bronckart (2012) pontua que
essa modalização se marca, preferencialmente, na seção que analisa a videoanimação Alegoria das
pelo uso de advérbios ou orações adverbiais. longas colheres.
d) Modalizações pragmáticas: Explicitam
alguns aspectos da responsabilidade de uma Análise e discussão da videoanimação
entidade constitutiva do conteúdo temático,
que pode ser um personagem, um grupo,
uma instituição, em relação às ações de que Antes de discutir a modalização propriamente
é agente, e atribuem intenções, razões, ou até
mesmo, capacidades de ação. Bronckart (2012) dita, considera-se, que no contexto de formação
pontua que essa modalização é marcada, de professores, é relevante chamar a atenção
preferencialmente, pelo uso de auxiliares de
modo, em sua forma estrita ou ampliada. para o contexto de produção da videoanimação
analisada. A produção se intitula Alegoria das longas
Nesse sentido, enfatiza-se que os textos que
colheres e faz parte da campanha de combate à fome
são produzidos abarcam necessidades, interesses
“One human Family, food for all”, que pode ser
relacionados às diversas situações de interação no
acessada no link: https://www.youtube.com/
contexto social, ressaltando, assim, estratégias que
watch?v=qhU5JEd-XRo&t=2s, promovida pela
foram utilizadas com a finalidade de se interagir
Caritas Internationalis, em 2013.
com os interlocutores.
Além do contexto de produção, é importante
Leal e Pinto (2009) pontuam que as
também considerar o plano geral do texto.
modalizações podem figurar implicitamente nos
Segundo Cabral (2013, p. 244), durante a leitura,
mais diferentes gêneros discursivos, mesmo não
o leitor “percebe a estrutura do texto, ou seja,

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suas características prototípicas. Partindo desse com ações mútuas que visem ao bem comum isto
ponto de vista, acredito que a elaboração de um será possível.
plano explícito de texto pode tornar consciente Após a apresentação do plano geral do texto,
esse processo, permitindo que posteriormente ele passa-se à discussão acerca das modalizações. Nesta
utilize essa informação de forma mais controlada.” seção, busca-se refletir sobre as potencialidades
A narrativa da videoanimação analisada dos recursos semióticos em explicitar os
retrata seis personagens, entre homens e posicionamentos dos enunciadores e como as
mulheres, sentados em círculo à beira de um escolhas podem sinalizar caminhos interpretativos.
único prato de alimento que se encontra ao Assim, espera-se contribuir para uma formação
centro. Cada personagem possui em suas mãos teórica e metodológica de professores, uma vez que
uma longa colher por meio da qual tentam, sem são exploradas diferentes dimensões da atividade
sucesso, alimentarem-se, de modo individual. Em de leitura.
determinado momento, um dos personagens toca Inicialmente, pode-se destacar a questão
a colher de outra personagem, que se desequilibra das escolhas realizadas pelos produtores para
e bate com a colher em outro personagem. Há uma a representação dos personagens: porte físico
disputa mais acirrada pela conquista do alimento, (excessivamente magros) e expressão facial
sendo que, nessa ocasião, um dos personagens (muito tristes e desanimados). Essa representação,
tem sua colher quebrada por outro. O personagem combinada com a apresentação das cenas em preto
que perdeu a colher demonstra-se desolado pela e branco e com a comida em cor amarela e verde,
situação, pois a perda da colher representa a possibilita a percepção de um destaque para a
fome, mas é surpreendido por uma personagem temática do enredo - a fome. Outra questão digna
que estende uma longa colher em sua direção, de nota é o espaço físico em que os personagens
oferecendo-lhe o alimento. Embora a personagem, se encontram, ou seja, próximos a um abismo, que
que oferece inicialmente a colher com alimento ao possivelmente representa a morte. Soma-se a isso,
próximo, encontre dificuldades, ela é sustentada a presença de colheres, com cabos exageradamente
pelos demais personagens que começam a extensos o que pode ser indício da dificuldade de
compreender a metáfora das longas colheres. E acesso à alimentação. Observa-se que as escolhas
assim, mutuamente, os personagens começam a buscam destacar esses pontos. Nesse âmbito,
ser alimentados uns pelos outros e vão ganhando pode-se considerar a presença de dois tipos de
cores vibrantes, ressaltando-se que, no início das modalizadores: lógicos e apreciativos.
cenas, todos os elementos apresentavam uma cor
Figura 1 - Construção metafórica/ Modalização
cinzenta, exceto o alimento que já era retratado em Lógica
cores vibrantes.
A partir do momento em que os personagens
se tornam coloridos é possível observar que eles
representam diversas nacionalidades, ressaltando,
assim, a temática social da videoanimação que,
por meio de uma metáfora, salienta que a fome
mundial é uma situação real e seu combate deve ser
realizado por todos os seres humanos, que somente Fonte: Videoanimação Alegoria das longas
colheres.

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As modalizações lógicas se pautam “em na realidade, nunca pronunciamos ou ouvimos
palavras, mas ouvimos uma verdade ou mentira,
critérios (ou conhecimentos) elaborados e algo bom ou mal, relevante ou irrelevante,
agradável ou desagradável e assim por diante.
organizados no quadro das coordenadas formais A palavra está sempre repleta de conteúdo
e de significação ideológica ou cotidiana. É
que definem o mundo objetivo, e apresentam os apenas essa palavra que compreendemos e
elementos de seu conteúdo do ponto de vista de respondemos, que nos atinge por meio da
ideologia ou do cotidiano (p.181; destaque no
suas condições de verdade, como fatos atestados, original).
possíveis” (BRONCKART, 2012, p. 330). Assim, a
organização da cena e o contexto (re)criado (fig. 1) Nesse processo de construção da
fazem com que o sujeito-espectador possa, apoiado representação dos personagens, o fato de os
em seus conhecimentos de mundo relacionados produtores selecionarem uma figura feminina como
ao tema, compreender a construção metafórica, a que faculta ao alimento entre os demais personagens
inferindo que os personagens estão em condições pode ser considerado uma modalização pragmática,
vulneráveis, que o alimento é de difícil acesso e quejá que esse tipo direciona-se para a “explicitação
a morte é uma probabilidade. Essa questão pode ser de alguns aspectos da responsabilização de uma
inferida a partir da representação dos personagens entidade (personagem, grupo, instituição etc.)
(expressões faciais, corpos extremamente magros indicada pelo conteúdo temático em relação às
que dão impressão de desnutrição, gestos que ações de que é o agente, e atribuem a esse agente
indicam luta pelo alimento, cores neutras). Para intenções, razões (causas, restrições etc.) ou
realizar a inferência, os sujeitos-leitores precisam capacidades de ação.” (FERREIRA, ALMEIDA,
acionar informações prévias que possuem sobre DIAS, 2017, p. 198). No caso em pauta, a escolha
uma situação de fome extrema. Além disso, pode- da imagem da mulher como provedora do alimento
se considerar também a presença da modalização explicita um julgamento sobre uma das facetas da
apreciativa, que se relaciona a processos de avaliação
responsabilidade da personagem em relação ao
de alguns aspectos do conteúdo temático advindos processo de que é agente, principalmente sobre
do mundo subjetivo do mecanismo enunciativo a capacidade de ação (o poder fazer), a intenção
da voz (fonte desse julgamento), qualificando-os (o querer-fazer) e as razões (o dever-fazer).
como benéficos, infelizes, estranhos etc., do ponto Há na sociedade, uma visão de que a mulher,
de vista do sujeito avaliador. Nesse contexto, as independentemente, de outras questões (trabalho,
escolhas feitas pelos produtores permitem constatar maternidade etc), tem a capacidade para cuidar
pistas para a construção do projeto de dizer: a do lar, afinidades com as atividades domésticas
representação dos personagens (pessoas, colheres, e a responsabilidade por realizar tais tarefas. A
vasilha de sopa, cenário), as cores fazem com que personagem caracteriza-se por ser resiliente. Pensar
o sujeito-espectador recupere, de certo modo, o nas escolhas realizadas pelos produtores para a
ponto de vista do sujeito avaliador. Nessa direção, representação dos personagens pode favorecer a
pode-se recorrer à noção de valoração, proposta qualidade do percurso interpretativo, uma vez que
por Volochinov (2017, p. 96), que ajudam a elucidar questões sociais, culturais e ideológicas estarão
a questão da avaliação. A natureza ideológica da implicadas.
palavra se refere a sua carga axiológica e isso quer De um modo geral, a videoanimação é
dizer que ela é sempre carregada de valoração e organizada em uma proposta de modalização
produz um juízo crítico, uma avaliação sobre algo. deôntica, que evidencia uma avaliação apoiada
Afinal,

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“nos valores, nas opiniões e nas regras constitutivas para a compreensão da discursivização.” (p. 191).
do mundo social, apresentando os elementos do Contemplar as dimensões sonoras possibilita uma
conteúdo como sendo do domínio do direito, abordagem, no processo de leitura, que abarca
da obrigação social e/ou da conformidade com as questões discursivas, o que pode favorecer a
as normas em uso” (BRONCKART, 2012, p. formação de leitores mais proficientes.
331). Nesse caso, contribuir para a diminuição da Além do som, merecem destaque os
fome mundial configura-se como uma obrigação movimentos representados7. Para a representação
social, uma vez que se trata de uma mobilização do movimento, os produtores realizam escolhas:
da população, por parte de uma organização não além do movimento mais brusco ou mais suave,
governamental (ONG), para uma sensibilização em há a exploração do tempo de projeção entre mais
relação às ações de combate à fome e à desnutrição. demorado e mais rápido. Por exemplo, o fato de
Trata-se de um convite à solidariedade. Nesse a mulher ter atingido acidentalmente o braço do
contexto, a leitura poderá incidir em uma reflexão homem ocasionou consequências: derramar a sopa
acerca dos propósitos enunciativos da campanha e provocar irritação. No entanto, esses efeitos são
educativa. representados em destaque, seja pela imitação de
Além de os produtores expressarem imagens em câmera lenta, seja pela demonstração
um julgamento sobre a forma escolhida para do personagem. Outro exemplo pode ilustrar
verbalizar/externalizar o conteúdo da proposição, a modalização – o movimento do punho do
esse julgamento pode ser realizado de modo intenso personagem sinaliza para uma dificuldade de
ou menos intenso. Na videoanimação, os efeitos suportar o peso da colher, o que desencadeia o
sonoros são utilizados para dar ênfase às cenas6: trabalho colaborativo de todos os personagens, o
toque das colheres, gemido, sons de gestos, batida que coaduna com o projeto de dizer, que busca a
das colheres etc. No conjunto de cenas supracitado, sensibilização para ações de solidariedade. Desse
o som que imita o toque entre as colheres, o modo, a representação dos movimentos não
gemido que simboliza a reação do personagem busca apenas imprimir a progressão do enredo da
ao ser atingido acidentalmente pela colher, o som videoanimação, mas também destacar questões
que expressa o sentimento de raiva ou nervosismo, que os produtores pretendem realçar para que
o som que imita a batida de uma colher na outra sejam consideradas pelos sujeitos-espectadores no
demonstram não somente a ocorrência dos fatos, momento da audiência. Para além dos movimentos
mas atribui relevância a eles, pois o modo como que dos personagens, há a simulação do giro de câmera,
são inseridos nas cenas imprime uma intensidade que pode sugerir a necessidade de uma ajuda
mais expressiva a cada cena. Assim, os sons global, não somente uma preocupação com o
cumprem um papel de intensificar os efeitos de entorno local, regional ou nacional, dada à atuação
sentido. Segundo Fiorin (2000), a intensificação não internacional da ONG, promotora da campanha
é considerada como categoria da língua, mas como e da articulação com a inscrição verbal “one human
procedimento de discursivização. Para o autor, family, food for all”.
“uma teoria do discurso precisa de uma teoria forte Assim, pode-se considerar que essas
das modalidades, pois a modalidade é inerente ao escolhas e essa articulação entre diferentes modos
ato de dizer e, portanto, um elemento indispensável de organização contribuem para o processo
7 Recomenda-se ao leitor assistir à videoanimação com
6 Recomenda-se ao leitor assistir à videoanimação com atenção aos movimentos (ações, gestos, simulação de giros de
atenção aos efeitos sonoros e seus efeitos de sentidos. câmera) e seus efeitos de sentidos.

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de construção de sentidos e colaboram para a aos personagens”, seja para provocar o interesse do
organização da progressão temática: atuação sujeito-espectador. Na videoanimação, há cenas de
individualizada dos personagens (cada um tenta desapontamento, de desespero, de contentamento.
alimentar a si próprio), atuação em dupla (um O desapontamento da personagem por não
personagem alimenta o outro) e atuação coletiva conseguir ter êxito na tentativa de alimentação,
(os personagens atuam de modo colaborativo). o desespero da personagem que se desequilibra
Nesse contexto, pode-se considerar a ocorrência e quase cai no abismo, o contentamento da
de uma modalização pragmática que, segundo personagem quando é alimentado são estratégias
Bronckart (2012), tem o papel de orientar o que mobilizam a atenção do sujeito-espectador
destinatário na interpretação de conteúdo temático e que evidenciam escolhas enunciativas dos
do texto, uma vez que introduz um julgamento produtores para a construção do projeto de dizer.
sobre uma das facetas da responsabilidade de A exploração de recursos semióticos (expressões
um personagem em relação ao processo de que é faciais, gestos, cores, enquadramentos, perspectivas)
agente, principalmente sobre a capacidade de ação pode mobilizar uma reação por parte do sujeito-
(o poder fazer), a intenção (o querer-fazer) e as leitor.
razões (o dever fazer). Desse modo, apenas a ação Nessa direção, Koch (2011, p. 10) pontua
bidirecional poderá possibilitar uma transformação que “quando se produz linguagens, as escolhas
social defendida. não são aleatórias, mesmo com certo grau de
As cenas também evidenciam reação dos inconsciência, são decorrentes das condições onde
personagens no decorrer da narrativa8. Nessa o discurso é realizado.” Assim, a reação pode ser
dimensão, pode-se considerar que o processo entendida a partir de uma dimensão mais ampla,
de reação se configura como uma modalização visto que o processo de produção de sentidos
apreciativa, já que esse processo pode representar abarca os fenômenos de modo articulado e não
uma estratégia de interação com o sujeito- isoladamente9. Kress e van Leuween ([1996],[2006])
espectador. Para Machado (2001), as modalidades pontuam que as escolhas feitas pelos produtores
apreciativas dizem respeito ao mundo subjetivo poderão promover um senso de empatia ou uma
do enunciador e aparecem no texto a partir das identificação com os personagens representados.
entidades que o constituem, que vão avaliar as Se se considerar que quando se produz linguagens,
situações, emitindo, de preferência, opiniões. as escolhas não são aleatórias, ainda que possa
Assim, a escolha de determinados recursos pode haver certo grau de inconsciência, as condições
realizar e fornecer ao interlocutor ‘pistas’ quanto ao em que o discurso é realizado serão relevantes
projeto de dizer, e evidenciar um maior ou menor para o estudo da modalização, assim, a metafunção
engajamento com o conteúdo dito. Esses recursos
poderão expor as emoções em relação ao que é dito 9 O falante e o ouvinte se alternam (alternância dos sujeitos
do discurso), o que difere radicalmente de um esquema
e apontar uma avaliação subjetiva ou uma valoração linguístico e comunicacional que os cristaliza em suas
posições, atribuindo processos ativos ao falante e passivos
dos fatos, como bom, ruim, péssimo. Nessa direção, ao ouvinte. “Toda compreensão da fala viva, do enunciado
vivo é de natureza ativamente responsiva (embora o grau
a escolha das expressões faciais pode sinalizar para desse ativismo seja bastante diverso); toda compreensão
é prenhe de resposta, e nessa ou naquela forma a gera
o ponto de vista dos produtores, seja para “dar vida obrigatoriamente: o ouvinte se torna falante” (2003, p. 271).
A resposta pode se realizar não apenas verbalmente, mas por
8 Recomenda-se ao leitor assistir à videoanimação com ações e também pode não ser imediata: “cedo ou tarde, o que
atenção às reações dos personagens representados (posturas, foi ouvido e ativamente entendido responde nos discursos
movimentos do corpo, expressões faciais etc) e seus efeitos subsequentes ou no comportamento do ouvinte” (2003, p.
de sentidos. 272). (ZOZZOLI, 2012, p. 260)

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interacional deve ser considerada em qualquer Para delimitar os pontos de enquadramento,
processo analítico. os autores apresentam os seguintes parâmetros
No âmbito das interações, pode-se considerar de representação do participante na estrutura
que o olhar mobiliza a busca de uma compreensão imagética: a) plano fechado (close shot): inclui retratar,
responsiva por parte do sujeito-espectador, o que aproximadamente, até a cabeça e os ombros do
permite admitir que esse processo, articula-se, de participante representado (maior proximidade);
certo modo, com a modalização deôntica. O olhar b) plano médio (medium shot): inclui a imagem até
do personagem para fora da cena, cabisbaixo, incita o joelho (proximidade intermediária); c) plano
a um compadecimento por parte do espectador, aberto (long shot): corresponde a uma representação
mobilizando-o à ação solidária. ainda mais ampla, por exemplo, todo o corpo do
participante (menor proximidade).
Figura 2: Olhar
Pietroforte (2008, p. 77) pontua que “esse
efeito de sentido não é apenas efeito ornamental,
que torna a visão das imagens mais interessante,
mas que há relação entre ele e categorias semânticas
que dão forma ao conteúdo do texto”. Nesse
contexto, essa categoria analítica pode articular-se
com as modalizações pragmáticas e apreciativas.
Na dimensão da modalização pragmática, há
Fonte: Videoanimação Alegoria das longas colheres. “uma avaliação acerca da responsabilidade de um
personagem representado em relação à ação por
Esse tipo de modalizador, na concepção ele desempenhada. Ao escolher diferentes meios
de Nascimento (2010), gera diferentes efeitos de modalizar um texto, o seu produtor busca
de sentido no enunciado e funciona como uma orientar a forma como essa organização textual será
estratégia semântico-argumentativa e pragmática interpretada pelo receptor do texto.” (FERREIRA;
que é utilizada para o locutor não só imprimir seu ALMEIDA; DIAS, 2017, p. 833).
ponto de vista no enunciado, mas interagir com Assim, as escolhas de organizar um plano
seu interlocutor, indicando como espera que esse mais aberto ou mais fechado buscam imprimir
(re)aja a sua enunciação, ou seja “como quer que maior ou menor percepção dos detalhes das
seu enunciado seja lido ou ainda dizer como o cenas e, desse modo, proporcionar uma relação
interlocutor deve portar-se diante da enunciação”. de maior ou menor intimidade, de vínculo social
(p. 41) e de impessoalidade. Na figura 2, o sujeito-
Outro processo que merece destaque é a espectador pode perceber a dimensão psicológica
distância social, que se trata de uma representação da personagem - percebe a sua tristeza - e pode se
imagética que tem por intenção criar, estabelecer compadecer dela.
maior nível de envolvimento do observador com Em relação à modalização apreciativa, pode-
o participante representado, sendo que quanto se considerar que a organização da produção
maior o plano de enquadramento, ou seja, o plano imagética pode trazer uma maior ou menor
aberto, maior o distanciamento e menor o nível de intimidade, isso possibilita que o sujeito-espectador
intimidade entre os participantes, de acordo com perceba as pistas deixadas pelos produtores para
Kress e van Leuween ([1996],[2006]). reconstrução do projeto de dizer. A escolha da

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distância constitui uma estratégia enunciativa, Na videoanimação selecionada, os ângulos
ou seja, envolve as avaliações subjetivas do se apresentam de modo diversificado: a) ângulo
enunciador. Na videoanimação analisada, o plano alto (plongée ou mergulho), que apresenta a cena
aberto apresenta a situação enunciativa em que o focalizada de cima para baixo; b) ângulo médio,
texto se concretiza (abismo da condição de fome), que apresenta o personagem de frente; c) ângulo
o plano fechado focaliza o estado emocional de baixo, que apresenta o personagem de baixo para
um dos personagens representados (tristeza, raiva, cima. Como exemplo, destaca-se que o ângulo alto
satisfação). Nesse sentido, é possível considerar focaliza o contexto da cena e o ângulo baixo, um
que a distância social se configura como uma apelo emocional.
estratégia utilizada pelos produtores para agenciar
Figura 3 - Ângulo Alto
o sujeito-espectador para uma participação ativa no
processo de interação. Segundo o Bronckart (2012),
o agente, ao produzir um texto, mobiliza dadas
representações sobre os mundos objetivo, social
e subjetivo. Por um lado, essas representações são
reivindicadas como contexto da produção textual,
influenciando o julgamento do agente sobre em
que situação de interação se encontra e, assim,
exercendo “controle pragmático ou ilocucional Figura 4 -Ângulo Baixo
sobre alguns aspectos da organização do texto” (p.
92).
No que tange à perspectiva, pode-se
considerar que, de acordo com Kress e van
Leeuwen ([1996] [2006]), há uma representação
de uma imagem dos personagens representados,
envolvendo a seleção de um ponto de vista, de
um ângulo pelo leitor. Para Santos (2013, p. 52),
os ângulos determinam a dimensão da objetividade Fonte: Videoanimação Alegoria das longas
ou da subjetividade. Assim, colheres. Fonte: Videoanimação Alegoria das
longas colheres.
as imagens subjetivas são retratadas a partir de
um ponto de vista escolhido pelo produtor e Na videoanimação, são explorados diferentes
imposto tanto aos participantes representados
quanto aos observadores. Já as imagens ângulos e a simulação do movimento da câmera
objetivas são produzidas a partir de ângulos
de visão privilegiados, que podem neutralizar que permite que o sujeito-espectador reconstrua
a perspectiva, as distorções resultantes de
sua exploração e a atitude subjetiva que ela o projeto de dizer, a partir da combinação das
envolve. [...] as imagens objetivas mostram imagens e dos movimentos que compõem a
o participante representado da forma
como ele pode ser, ao passo que as imagens produção. É relevante destacar que nas animações
subjetivas mostram-no como ele é visto a
partir de determinado ponto de vista. A as escolhas são planejadas, uma vez que as cenas
seleção do ângulo converge para expressar
o envolvimento e o distanciamento entre os são organizadas de modo mais sequencial para
participantes nas imagens. imprimir a ideia de movimento (seja na produção
manual, seja na produção digital).

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Nesse sentido, as escolhas dos ângulos sinalizam para diferentes tipos de modalizações: a) lógicas:
na seleção de um ângulo, o(s) produtor(es) explicitam um juízo de valor sobre os sentidos sugeridos pelas
cenas. Essa exteriorização de um posicionamento encontra-se pautado em um critério que se fundamenta
em modos convencionais de apresentação, ou seja, cada escolha fornece pistas para o processo de
produção de sentidos. Assim, a escolha de um ângulo representa uma proposição que demonstra certezas
ou incertezas, possibilidades ou probabilidades, eventualidades do mau uso, necessidades, entre outros;
b) apreciativas: na seleção de um ângulo, o(s) produtor(es) deixam marcas de seu mundo subjetivo que
vão indiciar uma avaliação das situações; c) pragmáticas: na seleção de um ângulo, o(s) produtor(es)
constroem sinalizações relacionadas aos modos de agir e de ser dos personagens e de instituições; d)
deônticas: na seleção de um ângulo, o(s) produtor(es) podem caracterizar por constituir o mundo social,
imprimindo valores, regras e lições que são do domínio do direito e da obrigação social, ou seja, planejam
um projeto de dizer que mobiliza o sujeito-espectador para uma ação ou para a adoção de um determinado
comportamento.
No que tange à modalidade, a videoanimação analisada não apresenta o compromisso com uma
representação fiel ao contexto social, uma vez que, por se caracterizar como uma produção metafórica,
a conotação abstrata se sobreleva. As personagens são representadas por meio de bonecos que, de certo
modo, são caricaturas de seres humanos.
Além disso, merece destaque o uso de cores, pois a animação se inicia com uma escolha monocromática
para representar o momento de dificuldades, de fome, de luta, de insucessos, e, posteriormente, alterna-
se, progressivamente, para o um ambiente composto por diferentes cores, para representar a superação
da fome, a importância da solidariedade e a valorização do esforço coletivo (Figura 5).

Figura 5 - Sequência de cenas/ Progressão da narrativa marcada pelo uso de cores

Fonte: Videoanimação Alegoria das longas colheres.

No que diz respeito à iluminação, a figura 5 também permite uma análise desse recurso. Para
efeitos de análise, destacam-se quatro cenas: o vídeo se inicia com dois feixes de luz nos personagens
representados, depois, o foco passa para o alimento, em seguida, posteriormente, a iluminação vem do
ambiente (cor clara ao fundo da imagem) e, por fim, a falta de iluminação no abismo, que não se configura
mais como um destaque para a forme.

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A relevância dos personagens representados, o interlocutor da problemática apresentada no
das ações e das situações é, notadamente, texto, situação em que a modalização deôntica
marcada pela seleção das cores e pela distribuição aparece como uma forma de regular a interação,
da iluminação. Nesse sentido, se destacam as pontuada nos conhecimentos técnicos (semióticos)
modalizações lógicas, deônticas e apreciativas, uma que a ONG tem, por um lado, e, por outro, na
vez que os produtores imprimem no enunciado um autoridade que representa ter perante o assunto
juízo de valor, uma avaliação a respeito do conteúdo tratado e mesmo perante o interlocutor. No
proposicional. Assim, ao utilizar a iluminação e caso acima, é possível inferir que tal autoridade
as cores de determinado modo, há um destaque advém da condição de uma organização católica
para pontos que o(s) produtor(es) considera(m) internacional10, condição essa que valida a asserção
relevantes. Há uma organização compatível de dever posta no texto.
com o cenário de fome e de fartura (lógica); há No que tange à disposição das imagens nas
uma incitação ao engajamento por parte dos cenas, as escolhas realizadas pelos produtores estão
interlocutores (deôntica) e há um apelo emocional/ relacionadas à posição dos elementos presentes
afetivo (apreciativa), provocado pelo jogo de cores nas cenas: personagens, objetos, cenários), a
e de (pouca ou de incidência) iluminação. saliência (destaque e acentuações relacionados às
Na sequência de cenas, a saliência é explorada cores, aos contrastes, aos sons, aos movimentos)
pela progressiva coloração do espaço representado, e ao enquadramento (elementos que provocam
que fica de cor verde, após os personagens obterem uma atenção mais efetiva por parte do sujeito-
êxito no compartilhamento de alimentos – o que espectador).
pode induzir a uma percepção de uma modalização Observa-se na videoanimação uma tendência
pragmática, em que a ação do personagem para a inserção dos personagens em destaque
desencadeia uma transformação do espaço (alimento, pessoas, inscrição verbal etc) na posição
circundante. Assim, há uma avaliação acerca da central da imagem (fig. 6)
responsabilidade de um personagem representado
Figura 6 - Valor da informação
em relação à ação por ele desempenhada. No caso
em pauta, essa transformação representa a voz
de uma instituição, que constrói um discurso que
busca a promoção do desenvolvimento humano
integral. A progressão da coloração representa o
discurso da esperança e da transformação social.
O contraste em relação ao uso de cores possibilita
a constatação da ocorrência da modalização
apreciativa, uma vez que os produtores ressaltam Fonte: Videoanimação Alegoria das longas
colheres.
a melhoria da qualidade de vida, após o acesso à
10 Caritas Internationalis é uma confederação de mais de 160
alimentação. Nesse enunciado, o leitor não somente membros que trabalham nas bases em quase todos os países
do mundo, ttem sua sede em Roma - coordenando operações
é interpelado a tomar uma atitude, mas também a de emergência, formulando políticas de desenvolvimento e
defendendo um mundo melhor para todos. Desde a fundação
aceitar como pertinente a situação apresentada. da primeira Caritas na Alemanha em 1897, até a criação da
Sustentado em “princípios morais ou legais” Caritas Internationalis em 1951, até hoje, a Caritas tem uma
rica história de escuta respeitosa do sofrimento dos pobres
(LYONS, 1977, p. 824), os produtores organizam o e de lhes dar as ferramentas para transformar suas próprias
vidas. Fonte: https://www.caritas.org/who-we-are. Acesso:
contexto enunciativo num esforço para convencer 24 de jun. 2020.

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Outro recurso que também é sinalizado na do projeto de dizer e fornecem pistas para o
videoanimação em pauta é a saliência, que pode ser percurso de interpretação.
observada por meio do contraste do uso das cores Já em relação ao enquadramento, Gualberto
vibrantes e tamanho dos elementos, como disposto (2016) aponta que esse recurso é de suma importância
também na figura 6. O alimento é retratado durante para a composição dos textos imagéticos, pois a
toda a videoanimação com cores vibrantes que aproximação/distanciamento de imagens/cenas
contrastam com o cinza, o preto e o branco dos pode indiciar uma determinada ênfase, seleção
demais elementos que compõem as cenas. ou exclusão, que contribuem para a construção
Em se tratando de um texto multissemiótico do projeto de dizer pretendido pelos produtores.
em movimento, também pode-se observar o Corroborando esse pressuposto, Aumont (2012)
recurso da saliência presente por meio dos sons sinaliza que a função do enquadramento seria
apresentados durante a videoanimação. No início direcionar ou propor caminhos interpretativos,
da videoanimação, o tom da música está em ou seja, o tratamento que é dado a uma situação,
conformidade com a leitura que se pode fazer do corresponde “a tudo o que faz com que um
semblante dos personagens, marcados por uma enquadramento traduza um julgamento sobre o
demonstração de tristeza e melancolia, resultantes que é representado, ao valorizá-lo, ao desvalorizá-
da fome que os aterrorizam. A cadência da lo, ao atrair a atenção para um detalhe no primeiro
percussão se apresenta forte, sugerindo uma luta plano etc.” (p. 160).
entre o sentido de não haver harmonia entre os Nesse viés, pode-se observar na
personagens, sinalizando, assim, um contraste entre videoanimação em pauta que os produtores
o andamento da música incidental e a cadência fazem opção ora por apresentar os personagens
rítmica. juntos em uma única cena, ora por apresentá-los
O som dos tambores vai se destacando enquanto individualmente ou em dupla. Em suma,
no desenvolvimento da narrativa sinalizando a nessa videoanimação, o enquadramento conecta
interação dos personagens, ressaltando que há e desconecta os elementos da composição visual
momentos em os instrumentos soam juntos, por meio de dispositivos, criando significados
harmonicamente, e em outros, os produtores coesivos, enfatizando, assim, a importância desse
destacam apenas um, visando talvez retratar a recurso ao revelar mais diretamente as escolhas do
própria ação dos personagens, que ora agem produtor em relação ao que será mostrado e como
individualmente ora realizam uma ação coletiva. será mostrado, como pontuam Villarta-Neder e
Convém destacar ainda que a cadência Ferreira (2019). Assim, o enquadramento se presta
musical se torna ainda mais viva a partir do sorriso a uma modalização apreciativa, em que há uma
do personagem ao receber o alimento, enfatizando manifestação do posicionamento dos enunciadores.
ali uma mudança de atitude que passa do No texto em movimento, há um
individualismo para o coletivismo. Dessa maneira, redimensionamento dos modos de organização dos
os produtores utilizam a harmonia dos sons para textos imagéticos, o que evidencia diferenças no
sinalizar que se todos os seres humanos agirem processo de composição de imagens estáticas. No
no mesmo compasso, colaborando uns com os entanto, na videoanimação analisada, observa-se
outros, a fome mundial poderá ser combatida. Essa uma opção pela presença da figura feminina à direita
articulação de semioses contribui para a construção da cena, na condição de provedora do alimento,

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sinaliza para a importância do personagem para a temático (combate à fome), que apresentam um
construção do projeto de dizer (Figura 7). julgamento sobre a importância da solidariedade
para a redução da fome no mundo. Desse modo,
Figura 7- Solidariedade
a escolha por destacar o alimento representa uma
avaliação acerca do objeto do discurso abordado.
Na figura 7, pode-se considerar que
há a presença de uma avaliação apoiada em
conhecimentos pautados no mundo objetivo, com
elementos do conteúdo apresentados como uma
questão comprovada. Seja no âmbito das ciências
sociológicas, seja no âmbito do senso comum, o
trabalho colaborativo é considerado como uma
estratégia para a produção de melhores resultados.
Nesse contexto, é possível considerar que a escolha
por representar esse esforço coletivo por meio do
uso de colheres se constitui como uma ocorrência
de modalização lógica, que se funda na assertiva de
Fonte: Videoanimação Alegoria das longas que “a união faz a força”. Para além da modalização
colheres. lógica, a figura 7 também suscita um apelo para
ações de solidariedade, o que pode contemplar
Essa opção coaduna com o posicionamento de
uma ocorrência de modalização deôntica.
Kress e van Leeuwen ([1996] 2006), que consideram
Diante do exposto, a partir da análise realizada,
que as informações possuem maior relevância em
observa-se que fenômenos multissemióticos não
relação aos demais elementos da imagem estão
verbais podem atuar como modalizadores em
posicionadas à direita. Nessa direção, essa escolha
textos dinâmicos, cooperando para a construção do
autoral pode representar uma modalização lógica,
projeto de dizer pretendido por seus produtores,
uma vez que a construção semiótica está apoiada
evidenciando, assim, posicionamentos, intenções,
em conhecimentos construídos e organizados no
sentimentos e atitudes. A análise em questão aponta
quadro das coordenadas formais que definem o
para a complexidade dos textos multissemióticos,
mundo objetivo, ou seja, a mulher, na sociedade, é
que demandam uma formação que contemple os
uma figura que, recorrentemente, é a responsável
diferentes usos dos recursos semióticos. Assim,
pelo provimento da alimentação, seja pela
articular tais recursos ao fenômeno da modalização
amamentação, seja pela tradição de ocupação com
permite uma sinalização de que as escolhas feitas
as atividades domésticas.
pelos produtores de um texto não são neutras.
Além disso, os produtores também colocam
em destaque o alimento - no centro da cena e em
Considerações Finais
cor amarela - que constitui a questão basilar que
norteia a narrativa. Essa ênfase pode constituir
O presente artigo teve por objetivo analisar
um exemplo de modalização apreciativa, pois é
como o fenômeno da modalização se configura
apresentado um posicionamento por parte dos
nos textos multissemióticos em movimento, de
produtores acerca de um aspecto do conteúdo
modo restrito, em uma videoanimação. A partir

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da análise desse fenômeno, buscou-se demonstrar que contempla as dimensões textuais sob uma
que pesquisas acerca de determinados mecanismos perspectiva da multimodalidade, pode possibilitar
linguísticos podem fundamentar o estudo dos um tratamento ético das informações dos textos
modos de organização e de funcionamento de que circulam em contextos digitais, bem como
textos multissemióticos, contribuindo, assim, para propiciar uma atuação responsiva ativa por parte
uma reflexão acerca das práticas de leitura, dos dos leitores, além de permitir um enfrentamento da
processos de produção de sentidos e das relações complexidade da ação leitora.
entre interlocutores (enunciadores e leitores). Essa Nesse viés, a análise das modalizações na
reflexão poderá contribuir para o aperfeiçoamento videoanimação “Alegoria das longas colheres”
de habilidades relacionadas aos multiletramentos, sinaliza para as possibilidades de utilização de
seja para constituir uma base teórica/epistemológica pressupostos teóricos relacionados à dimensão
necessária à formação de professores, seja para verbal da linguagem em textos constituídos
viabilizar o encaminhamento de práticas educativas pela diversidade semiótica. Assim, foi possível
que contemplem os contextos de produção dos compreender que o recurso da modalização pode
textos/discursos. ser utilizado para pontuar modalizadores lógicos,
Convém ressaltar que os elementos deônticos, apreciativos e pragmáticos, demarcando
modalizadores são de extrema importância para a o posicionamento enunciativo de seus produtores.
produção dos sentidos no texto, pois se configuram Nessa perspectiva, espera-se que este
como mecanismos enunciativos responsáveis pela artigo possa contribuir de maneira significativa
coerência interativa dos textos e por demarcarem, para a ampliação do arcabouço teórico sobre
de certa forma, o posicionamento enunciativo de modalizações e que, dessa forma, possa contribuir
seus produtores. Analisar esses mecanismos permite para a ciência linguística trazendo novas reflexões
demonstrar, assim como demonstrado no presente que instiguem outras possibilidades de análise sobre
artigo, que as práticas de leitura, assentadas em uma gênero videoanimação, tão presente no cotidiano
perspectiva discursiva, demandam não somente a digital, assim como demais gêneros discursivos em
análise dos recursos linguísticos e semióticos, mas movimento que emergem na contemporaneidade.
também os efeitos de sentido suscitados por eles, as Além disso, espera-se, ainda, contribuir para a
marcas enunciativas e as sinalizações presentes nos profissionalidade docente, seja a partir da reflexão
textos para a orientação do percurso interpretativo. acerca da complexidade constitutiva dos textos
Nessa direção, a análise aqui apresentada multissemióticos, que demandam novas habilidades
indicia que as escolhas dos recursos semióticos leitoras, seja a partir dos marcadores enunciativos,
que compõem a videoanimação selecionada que apontam para a interação entre produtores e
não são neutras e podem ser consideradas como leitores, viabilizando ações leitoras efetivamente
mobilizadoras de um diálogo com os leitores, a dialógicas e responsivas.
partir dos modos de representação apresentados.
Desse modo, as cores, a iluminação, as imagens REFERÊNCIAS
dos participantes representados (pessoas, cenários,
objetos), as expressões faciais, enquadramentos,
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