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Escola de Comunicações e Artes – Universidade de São Paulo – 20 a 23.08.

2013

LEITURA E COMPREENSÃO DE TIRAS DE QUADRINHOS: CONTRIBUIÇÕES


DA LINGUÍSTICA TEXTUAL PARA O ENSINO DE LÍNGUA PORTUGUESA

Maria da Penha Pereira Lins


Universidade Federal do Espírito Santo, Vitória, Brasil

Vanda Maria da Silva Elias


Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, Brasil

Rivaldo Capistrano de Souza Júnior


Universidade Federal do Espírito Santo, Vitória, Brasil

RESUMO

Neste trabalho, objetivamos discutir tópicos da Linguística Textual (LT) que têm contribuído para o
desenvolvimento de pesquisas sobre texto e coerência e apresentar possibilidades de aplicação
desses estudos nas práticas de leitura em aulas de língua portuguesa na educação básica. Tendo
como foco o gênero textual tirinhas e ancorados em fundamentos teórico-metodológicos da LT, cuja
abordagem multidisciplinar da linguagem enfatiza aspectos sociais, culturais, cognitivos e
interacionais do fenômeno textual (CAVALCANTE et al, 2010; KOCH, 2002, 2004, 2012; KOCH
& ELIAS, 2006, 2009; MARCUSCHI, 2008), pressupomos nesta reflexão: i) uma visão de contexto
como um conjunto de suposições que se delineia no curso da interação e nele vai se remodelando
(Van Dijk, 2012), considerando-se a mobilização de um vasto conjunto de saberes; ii) uma
compreensão de texto como como uma “entidade multifacetada”, resultado de um processo
extremamente complexo de interação social e de construção social de sujeitos, conhecimento e
linguagem” (Koch, 2004); iii) uma concepção de leitura que privilegia os sujeitos e seus
conhecimentos em eventos interacionais. Damos destaque para a abordagem de tópicos como
referenciação, progressão textual e intertextualidade. Os dados que constituem o “corpus” para a
realização desta pesquisa compõem-se de tiras extraídas de autores contemporâneos.

PALAVRAS-CHAVE: tirinhas; leitura, ensino de língua portuguesa; linguística textual.

INTRODUÇÃO

Toda prática de linguagem se organiza em conformidade com um gênero textual,


isto é, o querer dizer do locutor se realiza na escolha de um gênero, e essa escolha é
determinada em função da especificidade de uma dada esfera de comunicação verbal, das
necessidades sociocomunicativas dos participantes da interação etc.
Os gêneros textuais se constituem historicamente e se caracterizam por tipos
diferenciados de conteúdo, de estilo verbal e de formas composicionais específicas. Dessa
forma, cada esfera de atividade social, devido a sua função socioideológica, formula,
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na/pela interação verbal, determinados gêneros que permitem nossa comunicação e ação no
mundo. Entretanto, não podemos pensar essa realização apenas como peças linguísticas,
uma vez que vários são os modos de representar e comunicar uma mensagem, em que
diferentes linguagens se articulam.

Contamos, então, com sistemas semióticos para a construção simbólica da realidade.


Quando falamos além das palavras, concorrem, para a realização da mensagem e para a
construção de efeitos de sentidos, as expressões faciais e corporais, o tom de voz, o ritmo, a
proximidade entre os participantes etc.
Isso, é claro, não é só um privilégio da fala. Quando escrevemos, as marcas
tipográficas, o estilo da letra, a disposição das palavras no papel, a diagramação do texto,
etc. também produzem importantes significações.
No caso, por exemplo, de tiras, os recursos icônicos não são meramente ilustrativos
de fragmentos da história. Pelo contrário, são parte constitutiva da história, já que o
desenrolar das ações na trama narrativa é também realizado por meio do desenho. Por isso,
a leitura de quadrinhos deve ser incentivada em ambiente escolar, mas ancorada
instrumentais teóricos que auxiliem na busca de produção de sentidos.

A leitura, como prática sociocultural, propicia aos sujeitos formas de inserção e de


participação não só no ambiente escolar, mas também na vida profissional e no mundo.
Nesse sentido, cabe à escola, em sua tarefa de aprimoramento da competência textual-
comunicativa, fazer com que os alunos leiam e compreendam adequadamente diferentes
gêneros textuais, em especial, as tiras, objeto de nossa atenção neste trabalho.
Longe de ser uma mera atividade mecânica de decodificação de signos gráficos e de
extração de informações, a leitura constitui-se num processo interativo de construção e de
negociação de sentidos. Conceber a leitura dessa forma implica entender que o sentido é
uma construção que depende da interação do leitor com o autor e texto, atividade que
demanda a mobilização de variados sistemas de conhecimento. Nessa acepção, o sentido
não é fixo, preestabelecido, uma propriedade do texto, nem depende exclusivamente do
leitor, mas é uma construção que tem como ponto de partida a materialidade textual, em
suas dimensões verbal e não verbal, e o que ela revela sobre a intencionalidade do autor e o
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que este pressupõe como conhecimento compartilhado com o leitor, razão que explica as
muitas lacunas contidas no texto.
Buscamos, neste artigo, no primeiro momento, discutir tópicos da Linguística
Textual (LT), cujas investigações teóricas atuais têm alargado a compreensão sobre o texto
e o modo pelo qual produzimos sentido. Trata-se de tópicos que atualmente são caros aos
linguistas de texto, cujas pesquisas se situam no panorama da sociocognição. No segundo
momento, indicamos como esses estudos podem ser aplicados ao ensino de língua
portuguesa, em especial, à leitura e à compreensão do domínio quadrinhos, especialmente
ao gênero tiras.
Com esse propósito e respaldados em princípios teórico-analíticos da LT, elegemos
os tópicos referenciação, progressão textual e intertextualidade. Os dados que constituem o
“corpus” para a realização deste trabalho compõem-se de tiras de autores contemporâneos.

1. O TEXTO NO QUADRO ATUAL DA LT: ALGUNS TÓPICOS DE ESTUDO

A LT, cujas origens remontam à década de 1960, vem ampliando seus objetivos e
procedimentos de análise, de acordo com a concepção de texto que norteia suas reflexões e
estudos. Da visão de texto como unidade de linguagem superior à frase para a perspectiva
pragmático-enunciativa, que privilegia a interação e os interlocutores, e, posteriormente,
para a abordagem cognitiva, que considera o texto como o resultado de operações de
mentais; hoje os estudiosos em LT pautam-se na perspectiva sociocognitiva e interacional
da linguagem e concebem o texto como um evento comunicativo, no qual operações
cognitivas estão intrinsecamente vinculadas a fenômenos sociais, propósitos comunicativos,
crenças e intersubjetividade.
De acordo com essa nova perspectiva, o sentido de um texto é (re)construído na e
pela interação e envolve ações conjuntas, coordenadas e orientadas para um determinado
fim (KOCH, 2002). Assim, os interlocutores, na realização de procedimentos
interpretativos finalisticamente orientados, guiam-se por elementos da superfície textual
(linguísticos, visuais etc.) e mobilizam um vasto conjunto de conhecimentos, considerando
que todo texto contém uma gama de informações somente detectáveis quando se tem, como
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pano de fundo, o contexto sociocognitivo dos participantes da interação (KOCH; ELIAS,


2006).

1.1 REFERENCIAÇÃO

A referenciação textual é concebida como uma atividade dinâmica, que desencadeia,


intersubjetivamente, a contrução e reconstrução de referentes, objetos cognitivo-
discursivos.
Nessa perspectiva, os referentes não resultam de uma mera atividade de designação,
rotulação ou etiquetamento do mundo externo ao texto, mas evidenciam como os sujeitos,
coparticipativamente, percebem realidades e estabelecem suas expectativas e avaliações.
Em outras palavras, os referentes são construídos no curso da interação, não preexistem à
atividade discursiva, nem estão invididualmente na mentes dos sujeitos. Uma vez
introduzidos, os referentes, no decorrer da interação, podem ser desativados, reativados,
modificados, possibitando a progressão referencial.
Sob esse ponto de vista, e considerando, ainda, que o processamento e a configuração
textual envolvem planejamento de ações e sua realização em textualidade multimodal,
podemos afirmar que o referente, ao ser instituído no texto, pode ser percebido, numa
relação de imbricação, por meio de elementos linguísticos (expressões nominais) e
elementos visuais (imagens) (Capistrano Júnior, 2011).
Desse modo, o processo referencial requer trabalho inferencial em que sujeitos atuam
sobre vários elementos do cotexto, o que evidencia ser a referenciação, em todo e qualquer
gênero textual, um processo multilinear. Nesse sentido, acreditamos que a análise de
processos referenciais pode auxiliar o processo de construção interacional de sentidos.

1.2 TÓPICO DISCURSIVO E PROGRESSÃO TEXTUAL

A noção de tópico discursivo, ou “o tema central de um texto” ou “o que está sendo


falado/escrito”, é definido, inicialmente, por Jubran et al. (1992), como uma categoria
abstrata, primitiva, que se manifesta na conversação, mediante enunciados formulados pelos
interlocutores a respeito de um conjunto de referentes explícitos ou inferíveis, concernentes
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entre si e em relevância num determinado ponto da mensagem (1992, p. 361), tendo como
mira a análise do texto conversacional, mas também aplicável à análise do texto escrito.
Assim formulada a definição, o tópico discursivo abrange duas propriedades
particulares: a centração, que consiste no inter-relacionamento das unidades de sentido do
texto, convergindo para um eixo temático, e a organicidade, que diz respeito à relação entre
os vários tópicos de um mesmo texto. A identificação do tópico, para Lins (2008), atua em
processos interpretativos, pois permite ao leitor identificar o sentido global do texto.
A depreensão de tópicos em quaisquer textos implica a necessidade de estabelecer o
uso dos termos “assunto” e “tema”, na medida em que representa um “fio unificado” que
transpassa o texto como um todo e, assim, expande-se, ou seja, pode ser visto como um
frame unificado (Goutsos, 1996). Nesse caso, tem-se como partida menos sobre “o que” se
fala e mais sobre “como” se fala de determinado tema. Dentro dessa perspectiva, a
focalização é feita na organização do discurso como um todo na busca da determinação do
tópico, isto é, aquilo de que se fala provém necessariamente do modo como se fala. Assim,
teoricamente, tópico pode ser representado como uma estrutura organizada que opera tanto
no interior quanto fora das fronteiras das sentenças. E não é definido e identificado como
uma unidade a priori, mas como resultado de marcação de fronteiras, o que leva à
percepção da coerência dentro da sequencialidade.
Dentro dessa consideração da categoria tópico no sentido geral de “acerca de”, Brown
e Yule (1983) ensinam que qualquer reflexão sobre tópico inclui averiguar por que o falante
disse o que disse numa situação de discurso particular. Reportando-se a Grice (1975)1,
traduzem a máxima ‘Seja relevante” para uma forma, segundo os autores, mais prática e
mais útil, tal qual, “Faça com que sua contribuição seja relevante tendo em vista a
existência de uma estrutura tópica, isto é, “fale topicamente”.
Relevante na determinação do tópico é a noção de frame porque auxilia na tarefa de
estabelecimento dos assuntos que compõem o tema, tendo em vista que a noção de frame
concebe o discurso como uma forma social e cultural organizada, através da qual

1
Grice (1975) estabeleceu o Princípio da Cooperação, uma espécie de guia geral que rege a conversação: Faça
sua contribuição conversacional tal como é requerida, no momento em que ocorre, pelo objetivo da
comunicação em que você está engajado. Esse Princípio incorpora quarto máximas: máxima da quantidade
(grau de informatividade), máxima da qualidade (evidência de sinceridade), máxima da relação ( relevância) e
máxima do modo (clareza).
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determinadas funções são realizadas. Focaliza os padrões de fala usados para fins
determinados, como resultado do uso de estratégias comunicativas. Desse modo, identifica
ações realizadas por pessoas para certos propósitos, interpreta sentidos sociais, culturais,
interpessoais e justifica as interpretações (Schiffrin, 1987).
A definição de frame incorpora, então, a noção de interações estereotipadas, o que
explica que nosso conhecimento de mundo é arquivado na memória em forma de estrutura
de dados. Van Dijk (1996) insere a noção de frame em uma teoria do contexto e procura
caracterizar os diversos componentes que estão incluídos nessa noção. O autor considera
frames como informações semânticas gerais guardadas na memória, e afirma que os
contextos sociais podem ser organizados por certa estrutura de frames sociais.
Numa análise contextual, as propriedades específicas e as relações (por ex. ações,
interações) do falante podem ser analisadas, isto é, seus comportamentos prévios (feitos,
ações etc.), as afirmações específicas que ele fez anteriormente, bem como as inferências
que fazemos sobre o falante, em termos de conhecimentos, crenças, desejos, preferências,
atitudes, sentimentos, emoções.
Desse modo, a consideração desses fatores contextuais auxilia na detecção do tópico de
textos em geral, e em específico de textos em quadrinhos. Na medida em que se tem
internalizado o frame de determinada personagem, tem-se já um conjunto de possibilidades
de qual tema poderá ser desenvolvido numa tira ou numa história maior.

1.3 INTERTEXTUALIDADE

A intertextualidade é traço constitutivo do texto e diz respeito a um conjunto de


relações explícitas e implícitas que se estabelece com outro(s) texto(s). Segundo Koch e
Elias (2009), a explicitação ou não explicitação do texto fonte ocorre por razões distintas:
neste caso, porque se pressupõe que o texto fonte faça parte da memória social do leitor e
como tal será facilmente ativado; naquele caso, porque se considera que o leitor talvez
desconheça o texto origem e, assim sendo, quer lhe dar a informação para posterior
consulta/verificação, ou porque quer chamar a atenção não só para o que foi dito, como
também para quem o produziu.
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Koch (2007), tratando do conceito de intertextualidade no sentido amplo, cita Kristeva


(1974), para afirmar que “qualquer texto se constrói como um mosaico de citações e é a
absorção e transformação de um outro texto. A autora cita, ainda, Bauman e Briggs (1995),
que estabelecem as relações entre gênero, intertextualidade e poder social, direcionando a
perspectiva no sentido de que as ligações que podem ser estabelecidas entre um texto e
outro(s) texto(s) ocorrem não apenas com enunciados isolados, mas com modelos gerais
e/ou abstratos de produção e recepção de textos/discursos.
Ainda focalizando o fenômeno da intertextualidade, Koch (2007) busca em Marcuschi
(2002) a noção de configuração híbrida, o que alerta para a possibilidade de um gênero
exercer a função de outro, e revela o traço da maleabilidade que dá aos gêneros enorme
capacidade de adaptação e ausência de rigidez. A autora lembra que é muito comum, por
exemplo, o uso de fábulas, contos infantis, cartas etc. em colunas opinativas de jornais, bem
como em gêneros de caráter parodístico, irônico e/ou argumentativo, inclusive charges
políticas. Nessas configurações híbridas, pode-se verificar o quanto a mobilização do
contexto sociocognitivo é essencial para a detecção da ironia, da crítica, do humor e,
portanto, para a construção de um sentido consentâneo com a proposta de dizer do produtor
do texto. Caberá ao leitor fazer um exercício para descobrir todos os intertextos neles
presentes e checar a extensão de seu repertório (Koch, 2007, p.66).
No caso de tiras de quadrinhos essa estratégia pode ocorrer normalmente com o
objetivo de produzir humor, focalizando a ironia e a crítica social.

2. A TIRA EM SALA DE AULA

A partir da análise do material selecionado, buscamos explicitar a maneira como os


dispositivos teórico-analíticos da LT colaboram para a compreensão de processos
interpretativos envolvidos em tirinhas, gênero textual cuja narrativa curta leva a um
desfecho humorístico, como corre em piadas. Entre as características desse gênero,
podemos apontar: a) predomínio de sequências narrativas, com uso de diálogos; b) formato
horizontal e retangular, composto de um ou mais quadros; c) personagens fixas ou não; d)
funcionamento textual-discursivo semelhante ao das piadas (RAMOS, 2009, 2011).
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Exemplo 1:

Figura 1: Nascimento dos bebês


Fonte: http://www.monica.com.br, acesso em 09/06/2013

No primeiro quadro da tirinha, temos dois referentes visuais: uma cegonha e o


Cebolinha, personagem de Maurício de Souza.
São esses referentes, introduzidos por meio de signo icônico, que indicam o tema
central da tirinha: “de onde vêm os bebês?”. Dessa maneira, cabe ao leitor ativar o
conhecimento de que existe uma explicação mitológica para o nascimento das crianças,
segundo a qual elas não são geradas por suas mães, mas trazidas pelas cegonhas.
No segundo quadro, por meio do desenho, ocorre a retomada do referente cegonha e
a introdução de um novo referente: a personagem Mônica. Esses referentes visuais atuam
como mecanismos de articulação tópica, conferindo à tirinha uma unidade de sentido.
Já no terceiro quadro, com a introdução de novos referentes (Cascão, urubu), a
expectativa do leitor é frustrada, o que leva a um desfecho inesperado, constituindo-se em
uma estratégia para a produção do humor. Por meio de outro signo icônico, não vemos mais
uma cegonha, mas um urubu que leva o personagem Cascão, um menino que está sempre
sujinho, porque odeia tomar banho. Infere o leitor que, em se tratando dessa personagem de
Maurício de Souza, somente um urubu, ave que se alimenta de coisas em processo de
decomposição e mal cheirosas, poderia levá-lo.
Assim, no terceiro quadro, com a introdução do novo referente visual (urubu), há
uma mudança de perspectiva do assunto, mas mantém o vínculo com o tópico central.
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No que se refere à definição do tópico desenvolvido na narrativa, é a partir da noção


de frame que se inicia a interpretação do que é encenada na tira. É de conhecimento de
leitores de quadrinhos que Cascão é um personagem que não gosta de fazer sua higiene
pessoal, daí a explicação para o fato de ser um urubu e não uma cegonha que participa de
sua vinda ao mundo. Assim, pode-se depreender daí um tópico geral “nascimento de
bebês”, com dois subtópicos: bebês trazidos pela cegonha (Mônica e Cebolinha) e bebê
trazido por urubu (Cascão). O conhecimento partilhado (frame) referente a esses três
personagens são essenciais no desenvolvimento do que é narrado. O inusitado da situação
encenada está no fato de o segundo subtópico romper com o frame estabelecido socialmente
sobre cegonhas trazerem bebês.
Na tira em discussão, o efeito intertextual ocorre na medida em que o leitor faz
esforços cognitivos no sentido de relacionar o mito popular da chegada das crianças ao
mundo com a substituição da cegonha pelo urubu. Esta configuração híbrida faz depreender
do texto um efeito de ironia.

Exemplo 2:

Figura 2: As cobras filhotes


Fonte: VERÍSSIMO, L. F. As cobras – antologia definitiva. Rio de Janeiro: Objetiva, 2010, p. 106.

No primeiro quadro, duas cobras adultas, referentes visuais, se questionam sobre os


ideais da juventude. No segundo quadro, um terceiro personagem aparece. Seu tamanho
reduzido sinaliza tratar-se de uma cobra mais jovem.

O diálogo entre esses personagens transcorre ao longo dos quadros que compõem a
tira em análise e sugere dois pontos de vista divergentes: o juvenil e o adulto. A cobra mais
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jovem demonstra que seus ideais de vida são marcados pela ganância (“ser rico”) e pela
individualidade.

Essa individualidade é inferida pelo leitor que, ao interagir com o texto, leva em
consideração pistas verbais e não verbais: 1) o emprego ambíguo do termo “próximo” nos
balões de fala: para a cobra adulta, significa “semelhante”, tem, portanto, papel nominativo;
já para a jovem cobra, desempenha função atributiva; 2) o quarto quadro da tira sem uma
moldura e o olhar da cobra jovem voltado para o leitor dão destaque a esse personagem e
sugerem sua incompreensão em relação à pergunta feita no quadro anterior, pois ele é
incapaz de considerar “o próximo”, “o outro”.

Nessa perspectiva, o texto é uma entidade multifacetada, dinâmica e multimodal,


uma vez que a seleção e a mobilização de várias semioses constituem uma configuração
veiculadora de sentidos.

Pode-se afirmar que a temática focalizada na tira gira em torno de atitudes perante à
vida, que é o tópico principal. Esse tópico desdobra-se em dois subtópicos: ideal de vida
de jovem e ideal de vida de adultos. Novamente aqui, nesta tira, a noção de frame auxilia
na depreensão tópica. O último subtópico rompe em termos de frame social com as
expectativas que se tem de ideal social, o que representa uma estratégia de construção de
humor.

A intertextualidade da interação encenada nesta tira está na relação entre o esquema


social estabelecido de que devemos ter um ideal na vida e de que este ideal deva ser ético e
respeitável. Na medida em que essa estrutura de expectativa é quebrada, quando leitor
percebe o jogo intertextual, cria-se, então, o efeito humorístico.

Exemplo 3
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Figura 3: Interação pai e filha


Fonte: Paiva, Miguel. Gatão de meia-idade. Rio de Janeiro: Objetiva, 1995, s.p.

Nos dois primeiros quadros da tira em destaque, o personagem Gatão e sua filha Bia
aparecem tomando o café da manhã, numa típica situação familiar. O enquadramento
(planos) dado por Miguel Paiva aos personagens contribui para que o leitor infira estarem
eles em ambiente doméstico, em que a filha agradece ao pai o que ele faz por ela. No plano
visual, a personagem infantil segura um sanduíche (primeiro quadro) e um copo com
refrigerante (segundo quadro). É nessa relação entre o verbal e o não verbal que emerge o
referente “café da manhã em casa”.
A emergência e a continuidade desse referente não se fazem apenas pelo conteúdo
proposicional, nos dois primeiros quadros, da fala da personagem Bia, filha do Gatão,
indiciado pelo papel semântico do verbo “adorar”, o que contribui para a construção de uma
imagem de pai dedicado e zeloso, haja vista o modo como ele olha para a filha. Fazem-se
também pelo fato de esses personagens estarem enquadrados em primeiro plano (Cagnin,
1975), ou seja, limitados à altura do ombro, o que faz com que o leitor focalize sua atenção
para a expressão dos personagens.
Esse referente, ancorado em pistas cotextuais, desencadeia, por meio de uma
hipótese interpretativa, a construção da imagem (face) de pai cuidadoso, em que o
personagem Gatão exerce uma atividade tipicamente feminina (Nolasco, 1993), ou seja, a
realização de atividades domésticas, como a de preparar alimentos para a família.
Entretanto, no último quadro, essa imagem de pai exemplar é desfeita. O leitor toma
conhecimento de que o local do café é a padaria do “Seu Pereira” e de que o Gatão não teve
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o trabalho de preparar o café da manhã. Tem-se, então, a recategorização do referente, “café


da manhã na padaria do Seu Pereira”.
Contribui para esse processo de recategorização e, consequentemente, para o
desfecho inesperado, a mudança de enquadramento do primeiro plano para o plano
americano (CAGNIN, 1975), recorte do espaço na altura dos joelhos, em que o leitor tem
seu campo visual ampliado. Isso contribui para a percepção de que o cenário da interação
ocorre numa padaria.
Nessa recategorização, o item “mas” cumpre importante papel, juntamente com o
não verbal. Esse item marca uma cláusula cujo conteúdo semântico quebra a expectativa em
relação ao curso normal dos acontecimentos. Sua função é dar sequenciação às informações
e marcar a contraexpectativa. Sinaliza, então, para o leitor, a mudança de perspectiva, que
culmina num desfecho não esperado.
O humor é, então, desencadeado quando a face de pai exemplar, delineada nos dois
primeiros quadros da tira em análise é desfeita no último quadro. Nesse momento, ocorre
uma quebra de estruturas de expectativas, e o personagem Gatão fica “fora de face”, uma
vez que ele não se deu ao trabalho de preparar o café; ele comprou tudo pronto para a filha
Bia.
Na observação da sequenciação tópica, o leitor de quadrinho não se surpreende com
o clímax da narrativa, apenas acha graça, pois reconhece o frame relacionado ao
personagem Gatão, no subtópico final.
O efeito intertextual, como na tira anterior, se faz a partir da configuração híbrida,
em que um modelo social de família cristalizado é desconstruído quando o pai leva sempre
a filha para tomar café na padaria, em vez de ele mesmo preparar o café da manhã para ela,
que vem passar o final de semana com o pai divorciado de sua mãe.

Exemplo 4
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Figura 4: Mafalda e Miguelito


Fonte: Quino. Toda Mafalda. Trad. de Andrea Stahel M. da Silva et al. São Paulo: Martins
Fontes, 1993, p. 117.

Na tira em tela, os referentes “lobo”, “avó” e “chapeuzinho” ativam a memória


intertextual do leitor, aludindo a um clássico do conto de fadas, “Chapeuzinho Vermelho”.
Trata-se da história de uma menina de capuz vermelho, que desobedeceu à mãe e foi
comida pelo lobo mau.
Na versão de Quino, a história rompe com o discurso moralizante, na medida em
que o verbo “comer” possibilita a ativação de dois frames diferenciados. O tópico
discursivo inicia-se com a abordagem do assunto “comer a vovozinha” dentro do frame da
história de Chapeuzinho Vermelho, mas se desenvolve de modo a levar o leitor a pensar no
verbo “comer a vovozinha” no interior do frame relação sexual. Essa inferência é feita
porque se sabe de antemão que o texto tem intenção de gerar humor, daí a fala inocente da
criança na finalização do tópico ser reconhecida como quebra de expectativa em relação a
esquemas sociais e, principalmente, a esquemas referentes à linguagem do humor.
Pode-se perceber aí uma relação intertextual entre a história de Chapeuzinho
Vermelho e a intenção que o texto da tira quer deixar no ar. Essa configuração híbrida opera
com o gênero história infantil relacionado ao gênero tira de quadrinho.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Neste trabalho, buscamos evidenciar dispositivos teórico-analíticos da LT, que


contribuem para a compreensão da natureza sociocognitivo-interacional do texto. O texto,
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fenômeno multifacetado, é concebido como unidade básica de interação em que sujeitos


ativos, dialogicamente, nele se constroem e por ele são construídos (KOCH, 2012), deve
ser tomado como unidade de ensino. Como objeto de ensino-aprendizagem, cabe ao
professor, como mediador desse processo, propiciar ao aluno o desenvolvimento de
habilidades relacionadas ao uso de estratégias que contribuam para o aprimoramento da
competência leitora, tais como levantar hipóteses, inferir informações a partir da
integração da linguagem verbal e não verbal, confirmar suposições etc.
No processamento textual das tiras, evidenciamos a importância de se considerar a
imbricação de elementos verbais e não verbais no gênero tiras, para produção/negociação
de efeitos de sentido. Nesse sentido, destacamos, ainda, o papel de processos de
referenciação, da progressão tópica e da intertextualidade na mobilização de diversos tipos
de conhecimentos armazenados na memória discursiva.

O trabalho com leitura de tiras em ambiente escolar demanda o desenvolvimento de


habilidades de letramento, que vão da busca por informações específicas à percepção de
efeitos de sentido que recursos não verbais engendram.
Surge, nesse contexto, a necessidade de um letramento visual, a fim de desenvolver
no aluno habilidades de compreender múltiplos recursos de linguagem que constituem
diferentes gêneros orais e escritos.

REFERÊNCIAS

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1983.
CAGNIN, A. L. Os quadrinhos. São Paulo: Ática, 1975.
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