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Amadeu de Oliveira Weinmann

Reflexões sobre a crítica de Deleuze e Guattari à


teoria do complexo de Édipo

O artigo discute a crítica realizada por Deleuze e Guattari à teoria do complexo de Édipo,
comparando-a com aquela efetuada por Wilhelm Reich. Por outro lado, demonstra que,
ao contrário do que afirmam aqueles autores, o desejo, em psicanálise, sempre se refere
a objetos parciais. Por fim, questiona a possibilidade de se conceber um sujeito
radicalmente descentrado, livre de uma referência fundante derivada de sua filiação ao
simbólico.
> Palavras-chave: Desejo, objetos parciais, inconsciente, sujeito

This article discusses Deleuze’s and Guattari’s criticism of the theory of the Oedipus
complex, comparing it to Wilhelm Reich’s critique. Contrary to what both these
authors have stated, this article argues that desire in psychoanalysis always refers
to partial objects. Finally, the article questions the possibility of conceiving a
radically decentered subject free from any reference derived from its relation to the
symbolic. artigos > p. 31-35
> Key words: Desire, partial objects, unconscious, subject

Passados trinta anos de sua publicação, a texto que, evidentemente, não tem a pre-
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leitura de O anti-Édipo segue sendo uma tensão de ser exaustivo, mas de compar-
experiência instigante – para não dizer tilhar algumas reflexões que me foram
provocativa. Talvez pela natureza assumi- suscitadas.
ano XV, n. 160, ago/2002

damente esquizo desta obra, senti-me in- Deleuze e Guattari principiam sua exposi-
citado a responder desde diferentes luga- ção propondo que se pense o conceito de
res, produzindo um verdadeiro fogo cru- Isso (o das Es, freudiano) em termos ma-
zado entre diversos autores: Freud, La- quínicos. Esta escolha não é aleatória: de
can, Melanie Klein, Wilhelm Reich – além acordo com Laplanche e Pontalis (1986),
dos criadores de O anti-Édipo, claro. O Freud recolheu este conceito de
resultado deste colóquio é este pequeno Groddeck e de Nietzsche a fim de designar
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o que existe de impessoal, de para além Guattari (1976, p. 67) se perguntam: “Sob
dos desígnios do eu , na alma humana. a ação de que forças a triangulação edi-
Para Deleuze e Guattari, isso funciona em piana se fecha?”. Para eles, “... a criança
toda parte – às vezes sem parar, às vezes desde pequena tem toda uma vida dese-
de modo descontínuo –, respira, caga, jante, todo um conjunto de relações não
fode. Sobretudo, isso produz – e pouco familiares (...), que não se refere aos pais
importa o que isso significa. Isto porque do ponto de vista da produção imediata,
isso não representa nada – é máquina mas que lhes é referido (com amor ou
impessoal, usina de produção do desejo, ódio) do ponto de vista do registro do
e não teatro –, não sendo passível, por- processo” (Ibid., p. 67). De acordo com
tanto, de interpretação. estes autores, seria apenas sob esse enfo-
Deleuze e Guattari criticarão a psicanáli- que – o do registro do processo – que se
se por ter amarrado a potência disruptiva poderia pensar a fixação do desejo no
da descoberta das produções do inconsci- âmbito familiar, o Édipo. Mas esta pers-
ente a um mito unificador: o Édipo. Esta pectiva deixaria de fora toda uma vasta
crítica decorre da premissa assumida por dimensão do campo da sexualidade, que
estes autores de que a produção desejan- se distribui nas mais diversas direções,
te é irredutível à unidade, é multiplicida- reduzindo-a ao que os autores denomi-
de pura. É o eu – dirão –, esta instância nam de um “pequeno segredo sujo”, fami-
de síntese, unidade e identidade, que cla- liar, em vez da fantástica usina de desejo
ma por re-territorialização neurótica e que a sexualidade constitui.
que escraviza o desejo ao romance fami- É interessante observar que, em relação
liar. Ao remeter o paciente, permanente- ao complexo de Édipo, algumas conver-
mente, a seus vínculos parentais, o psica- gências existem entre o pensamento de
nalista operaria no sentido de manter o Wilhelm Reich e o de Deleuze e Guattari.
desejo deste paciente encarcerado na Antes, porém, convém assinalar que Reich
fina rede de suas relações familiares. Ci- – freudiano que era – pensava a consti-
artigos

tando Michel Foucault, os autores de O tuição subjetiva como organizando-se em


anti-Édipo lembrarão que foi apenas no torno do Édipo. É assim que postulará
século XIX que a sociedade burguesa atri- que: “A formação do caráter principia
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buiu à família a responsabilidade por seus como uma forma definida de superação
membros, construindo, então, um discur- do complexo de Édipo” (Reich, 2001, p.
so familiar e moralizante em torno da pa- 152). Por formação do caráter neurótico,
tologia mental. Ao relacionar o sofrimen- Reich entendia o processo pelo qual os
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to psíquico a um “complexo parental”, fluxos libidinais tornam-se como que en-


envolvido em culpa e em autopunição, a rijecidos, defensivamente, à medida que o
psicanálise incorporar-se-ia ao projeto sujeito é incapaz de desvencilhar-se da fi-
burguês, que mantém o desejo aprisiona- xação em seus desejos incestuosos.
do no triângulo papai, mamãe e eu. Entretanto, o complexo de Édipo, para
Ainda em relação ao Édipo, Deleuze e Reich, não era algo natural, ou universal,
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mas uma construção social, culturalmen- máquinas-fonte, umas emitindo um fluxo,
te determinada.1 Reich (1994) sustentará que as outras cortam”. Por exemplo: seio-
que a fixação incestuosa das crianças e boca, raios de sol-ânus do presidente
dos adolescentes da sua época – e dos Schreber, etc. Corolário desta concepção
adultos neuróticos, que atendia – decor- é a dissolução das noções clássicas de su-
ria de um ordenamento cultural que ini- jeito e de objeto – unificados e totaliza-
bia a fruição do prazer corpóreo. Deste dos especularmente – e, por conseguinte,
modo, a ligação primordial da criança a das fronteiras entre ambas.2 Em seu lugar,
seus pais era sobreinvestida com libido cadeias heterogêneas e fragmentárias
retirada de todo um conjunto de experiên- produzindo fluxos, operando cortes e sus-
cias prazerosas, possíveis de serem viven- citando angústias esquizoparanóides de
ciadas para além do registro edípico. Às re-territorialização neurótica (antes de-
experiências de prazer situadas fora dos primido, mas ligado a papai-mamãe, do
muros do Édipo (as quais pressupõem que esquizo, desterritorializado).
uma boa resolução da problemática edípi- Deleuze e Guattari atribuem a Melanie
ca), Reich denominará sexualidade orgás- Klein a descoberta genial dos objetos par-
tica, verdadeira usina do desejo funcio- ciais; no entanto, consideram que esta
nando a pleno vapor, livre da culpa e das autora não conseguiu se livrar da tenta-
inibições tipicamente edipianas. Por ex- ção de remeter estes objetos a um objeto
ternar estes pontos de vista, Reich será total, unificado. Penso que esta é uma
acusado de querer fazer retornar a teoria afirmação controversa. Para Freud (1996
da sexualidade a suas formulações pré- [1905]), os primeiros objetos do gozo in-
freudianas; por outro lado, Reich – assim fantil consistem em partes do próprio
como Deleuze e Guattari, muito tempo corpo da criança (são auto-eróticos, por-
depois – criticará o movimento psicanalí- tanto), que não se integram, psiquicamen-
tico por querer reduzir a sexualidade hu- te, constituindo uma unidade. Será ape-
mana a sua dimensão edípica. nas em um momento posterior da infân-
Feito este contraponto, retornemos a O cia que serão investidas, libidinalmente,
artigos

anti-Édipo. Outro importante aspecto das as imagens unificadas de si próprio – o eu


teorizações de Deleuze e Guattari, ainda – e do objeto. Entretanto, tal unificação
em conexão com o Édipo, é a idéia de que imaginária não destrói o vínculo irredutí-
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o inconsciente é órfão, isto é, que toda vel a objetos parciais, como o demons-
produção desejante refere-se a objetos tram o fetichismo, a formação dos traços
parciais , “máquinas-órgão acopladas a de caráter e aquela operação psíquica
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1> Reich (s/d) buscará na obra de Malinowski, A vida sexual dos selvagens, e em A origem da família, da
propriedade privada e do estado, de Engels, elementos para apoiar esta sua tese, desenvolvida a partir
de sua experiência clínica e do trabalho com a juventude trabalhadora em Centros de Orientação Sexual.
2> “Não há mais nem homem nem natureza, mas apenas o processo que produz um no outro e acopla
as máquinas. (...) eu e não-eu, exterior e interior não querem dizer mais nada” (Deleuze e Guattari,
1976, p. 16).

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que, para Freud (assim como para Lacan), denadas de referência:4 “o sujeito se es-
é estruturante do sujeito – a castração. tende sobre a circunferência do círculo
Assim, se algo tem de ser louvado, ou cri- de cujo centro o eu desertou” (Deleuze e
ticado, nesta concepção parece-me que Guattari, 1976, p. 37).
deve ser debitado de Melanie Klein e cre- Parece-me que nesta controvérsia retor-
ditado a Freud. na um debate, já referido acima, em tor-
Retomando Freud, Lacan também conce- no de uma posição frente à organização
be o desejo em relação a fragmentos cor- da cultura. Talvez se possa pensar que a
póreos – que denomina objeto causa do psicanálise, enquanto teoria e clínica, in-
desejo (objeto “a”) –, bem como entende corpora o falocentrismo cultural, que es-
que a unificação imaginária que constitui tabelece a neurose como sintoma social
e enlaça o eu e o objeto é o principal sin- hegemônico. A psicanálise nunca fez se-
toma a ser analisado. Nesta perspectiva, gredo de sua dificuldade em compreender
se há um sujeito para Freud e Lacan, este a psicose, e mesmo um autor de indubitá-
não é o eu, um objeto total, ou um supos- vel filiação lacaniana, como Contardo
to sujeito da consciência, mas o sujeito do Calligaris, reconhece que a operação psí-
inconsciente, que se erige a partir do cor- quica definida por Lacan como sendo
te efetuado na ligação primordial da cri- constituinte da psicose – a forclusão do
ança a seus “objetos ‘a’” (castração). Édi- Nome-do-Pai – é imprópria, pois “... é
po, nesta concepção, consistiria na opera- uma afirmação negativa, segundo a qual a
ção psíquica que outorga – ou não – o di- psicose não é a neurose, e só” (Calligaris,
reito à sexualidade, em torno da qual se 1989, p. 19). Em contrapartida, a esquizo-
constitui a possibilidade do sujeito assu- análise, de Deleuze e Guattari, propõe
mir sua condição de ser sexuado: decifra- uma radical desterritorialização concei-
me, ou te devoro. tual e clínica, tomando a psicose como
Deleuze e Guattari sustentarão que este modelo. Em que medida esta concepção
também é um sujeito centrado (ainda que pode prescindir de uma referência ao pai
artigos

desde o inconsciente3), constituído em simbólico, que se oferece ao sujeito como


torno de um significante-mestre: o Nome- possibilidade – sempre parcial – de dis-
do-Pai, agente da castração simbólica. solver sua coagulação em torno do núcleo
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Para os autores de O anti-Édipo, só há su- edípico original é uma questão a ser veri-
jeito fixo pela repressão (Freud e Lacan ficada. Por outro lado, não seria algo tirâ-
não fariam qualquer reparo a esta obser- nico impor ao neurótico um modelo que
vação); indo além, afirmarão que se trata recusa sua ancoragem em uma referência
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de pensar um sujeito errante, sem coor- central?

3> Na perspectiva de Freud e de Lacan, este é um sujeito descentrado (tomando como referência o
sujeito da consciência).
4> Esta definição de sujeito aproxima-se, significativamente, do que Calligaris (1989) denomina de
estrutura psicótica fora da crise.

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Uma outra crítica dirigida por Deleuze e sua topologia do nó borromeu, produziu
Guattari à teoria psicanalítica refere-se à uma interessante articulação de elemen-
idéia de desejo enquanto falta. Afirmam tos fragmentários e heterogêneos, em um
os autores que esta perspectiva pressu- sistema aberto a fluxos diversos. Curiosa-
põe que o desejo seja concebido como mente, este modelo passou a ser utilizado
produção de fantasma, o que implicaria por Lacan a partir de 1972 (Chemama,
em uma duplicação da realidade, como se 1995), mesmo ano da publicação de O
houvesse um objeto fantasmático para anti-Édipo. Influência pós-estruturalista?
cada objeto perdido (Freud), ou faltante
(Lacan). É esta duplicação do real – veicu- Referências
lada pela idéia de representação, que se- CALLIGARIS, Contardo. Introdução a uma clínica
ria atualizada pela noção de significante e diferencial das psicoses. Porto Alegre:
que é intrínseca à utilização da interpre- Artes Médicas, 1989.
tação como método de análise –, que pa- C HEMAMA , Roland (Org.). Dicionário de
psicanálise Larousse. Porto Alegre: Artes
rece inconcebível a Deleuze e Guattari.
Médicas, 1995.
Esta mesma crítica será dirigida ao mar-
D ELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. O anti-Édipo:
xismo, que concebe a superestrutura po- capitalismo e esquizofrenia. Rio de
lítico-ideológica como sendo um reflexo Janeiro: Imago, 1976.
da infra-estrutura socioeconômica. FREUD , Sigmund (1905). Três ensaios sobre a
A idéia de um caráter imanente do dese- teoria da sexualidade. ESB . Rio de
jo é muito cara a Deleuze e Guattari. Para Janeiro: Imago, 1996. v. 7.
eles, o desejo produz real, percorre o real ___ (1908). Caráter e erotismo anal. Op. cit. v.
em toda a sua extensão, é real. No entan- 9.
to, estes autores parecem incorrer no ___ (1923). A organização genital infantil. Op.
mesmo tipo de duplicação que pretendem cit. v. 19.
criticar, quando afirmam que “... a crian- ___ (1924). A dissolução do complexo de
ça refere o seio como objeto parcial à Édipo. Op. cit. v. 19.
artigos

pessoa de sua mãe, e não cessa de con- L APLANCHE , J.; P ONTALIS, J.-B. Vocabulário da
psicanálise . 9. ed. São Paulo: Martins
sultar o rosto materno” (Deleuze e Guat-
Fontes, 1986.
tari, 1976, p. 67). É nesta dimensão do re-
pulsional > revista de psicanálise >

REICH, Wilhelm. A função do orgasmo. 18. ed.


gistro do processo, como afirmam os au- São Paulo: Brasiliense, 1994.
tores de O anti-Édipo, que se daria o apri- ___ Análise do caráter. 3. ed. São Paulo:
sionamento na problemática edípica. Des- Martins Fontes, 2001.
ano XV, n. 160, ago/2002

te modo, vê-se restabelecida a duplicação ___ A irrupção da moral sexual repressiva.


real da experiência/registro do processo São Paulo: Martins Fontes [s/d].
(talvez porque não seja assim tão fácil
libertarmo-nos dos “binarismos” que pu-
lulam em nossos modos de pensar). Nes- Artigo recebido em abril/2002
te sentido, cabe assinalar que Lacan, em Aprovado para publicação em julho/2002
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