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A SOCIOLOGIA DAS AUSÊNCIAS E DAS

EMERGÊNCIAS EM SALA DE AULA


SOCIOLOGY OF ABSENCES AND SOCIOLOGY
OF EMERGENCIES IN THE CLASSROOM

SANTOS, Boaventura de Souza. A crítica da razão indolente: contra o des-


perdício da experiência. Para um novo senso comum. Vol. 1. 4a. ed. São Paulo:
Cortez, 2002.

SANTOS, Boaventura de Souza. A gramática do tempo. Para uma nova


cultura política. Vol. 4. 2ª. Ed. São Paulo: Cortez, 2008.

Ana Laudelina Ferreira Gomes1

A consagração da ciência moderna são invisibilizadas pela racionalidade da


ocidental naturalizou-a, ou seja, construiu ciência moderna faz parte de uma estra-
uma concepção de que ela é o conheci- tégia de globalização contra-hegemônica.
mento naturalmente mais verdadeiro, Nessa esteira, a racionalização operada
como se esta concepção não fosse também pelo conhecimento científico se coloca
histórica e construída sócio-culturalmente como uma forma de colonialidade para a
no tempo e no espaço. O pretenso univer- qual precisamos pensar alternativas teóri-
salismo da racionalidade dessa ciência cas, epistemológicas e práticas.
é falso justamente porque se presta a Um dos modos de tratar do problema
transformar experiências dominantes/ vem da Sociologia das Ausências e das
hegemônicas em experiências univer- Emergências proposta por Boaventura
sais – verdades objetivas válidas para Santos (2008), onde o sociólogo discute
todos (BOAVENTURA SANTOS, 2008). a produção social da não existência e
Estes saberes tidos como globais leva- alternativas contra-hegemônicas. Por um
ram à destruição e ao silenciamento de lado, discute formas, estratégias, práticas
povos e culturas submetidos à sua razão e dispositivos de invisibilização social
etnocêntrica/eurocêntrica. através de sua Sociologia das Ausências.
A luta pela visibilização de formas Por outro lado, discute práticas sociais
de conhecer e compreender o mundo que alternativas e epistemologias que visem a

1
Professora do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), Brasil.
A SOCIOLOGIA DAS AUSÊNCIAS E DAS EMERGÊNCIAS EM SALA DE AULA

emancipação social, utilizando categorias em seus trabalhos acadêmicos de alunos


de sua Sociologia das Emergências. de graduação. Essa é, acreditamos a forma
Boaventura Santos (2008) nos mais efetiva de se ter uma visão geral das
alerta que assumir a diversidade epis- obras do autor aqui apresentadas.
temológica do mundo implica em Inicialmente, cabe-nos apresen-
renunciar a uma epistemologia geral e tar sucintamente as principais ideias
buscar uma mudança paradigmática. O que norteiam a sociologia das ausên-
novo paradigma (cosmopolitismo) esta- cias e a sociologia das emergências de
ria compromissado com a revalorização Boaventura Souza Santos, a partir das
de conhecimentos e práticas não hege- quais os estudantes partem em suas
mônicas que ficaram invisibilizadas no investidas iniciais de pesquisa.
processo de colonização do pensamento Boaventura Santos (2008) faz uma
e do conhecimento no seio do paradigma crítica ao modelo de racionalidade (razão
dominante e da sociedade técno-científica indolente) e propõe outro modelo (razão
da modernidade ocidental. No novo cosmopolita), cujos fundamentos esta-
paradigma seria o diálogo entre os conhe- riam em suas “sociologia das ausências” e
cimentos plurais o método para validação “sociologia das emergências”, e no traba-
do conhecimento, não se configurando lho de tradução intercultural.
somente como um paradigma científico, O pressuposto base sobre a razão
mas também como um paradigma social. indolente é que ela
Nele o colonialismo seria a ignorância da
reciprocidade e incapacidade de conceber Manifesta-se, entre outras formas,
no modo como resiste à mudança
o outro senão como objeto E para o qual das rotinas, e como transforma
uma das alternativas seria o processo de interesses hegemônicos em conhe-
tradução intercultural balizado, entre cimentos verdadeiros. [... e que] é
outras ecologias, pela ecologia de saberes necessário começar por mudar a razão
que preside tanto aos conhecimentos
(BOAVENTURA SANTOS, 2008). como à estruturação deles (p. 97)
Problematizar essas ideias do autor
em sala de aula e trazer experiências de
estudo onde elas puderam ser aplicadas A sociologia das ausências tem por
foi o que realizamos e que trazemos para objetivo “transformar objetos impos-
demonstração dos primeiros resultados síveis em possíveis e com base neles
em seis trabalhos escritos de alunos do transformar as ausências em presenças”
curso de ciências sociais da UFRN. Uma (SANTOS, 2008, p. 102). Consiste em
experiência que temos realizado atra- demonstrar a produção da não existên-
vés de atividades em sala de aula onde cia, ou seja, demonstrar que o que não
lecionamos no Brasil. Trazemos aqui existe na verdade é produzido como
algumas das potenciais aplicações do não existente, como explica Boaventura
referencial teórico das sociologias das Santos (2008): há produção da não exis-
ausências e sociologia das emergências tência toda vez que uma dada entidade
que foram construídas pelos estudantes é desqualificada e tornada invisível,

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ininteligível ou descartável de um modo disponíveis e possíveis resultam em ampla


irreversível. (p. 102). fragmentação do real dificultando e de
Haveria cinco modos ou lógicas de definir o sentido da transformação social,
produção da não existência sendo que “A colocando-se como desafio chegar-
produção social destas ausências resulta -se a convergências éticas e políticas.
na subtração do mundo e na contração Daí o trabalho de tradução aludido por
do presente, e, portanto, no desperdício Boaventura Santos (2008).
da experiência” (BOAVENTURA SANTOS, O trabalho de tradução intercultural
2008, p. 104) incide sobre saberes, práticas e agen-
A sociologia das ausências visa tes. Traduzir é identificar preocupações
identificar essas experiências produzidas isomórficas entre culturas e explorar suas
comoausentes e torná-las presentes e respectivas respostas. A tradução pode
alternativas (inclusive epistemológicas) acontecer entre saberes hegemônicos e
às experiências hegemônicas. Uma das não hegemônicos, mas também entre
formas de operar a sociologia das ausên- saberes não hegemônicos. Seu obje-
cias é substituir as lógicas de produção tivo é sempre construir possibilidades
da não existência (ou monoculturas) por contra-hegemônicas de saberes. Os respon-
ecologias. A Ecologia dos saberes é uma sáveis pela tradução são os intelectuais
delas, da qual trataremos mais a frente. cosmopolitas, enraizados nas práticas e
Uma das faces da razão indolente saberes que representam. A tradução acon-
é a razão proléptica, fundada na mono- tece através de trabalho argumentativo nos
culturado tempo linear, com ela o futuro diferentes mundos, saberes e experiências
não tem que ser pensado. A luta contra quando são partilhados. A tradução justi-
este tipo de razão implica em se contrair fica-se em face da necessidade de justiça
o futuro para torná-lo escasso e objeto cognitiva, nas palavras de Boaventura
de cuidado, resultando na dilatação do Santos (2008): “criar as condições para uma
presente.Esse seria o modo de agir da justiça social global a partir da imaginação
sociologia das emergências: “consiste em democrática” (p. 135).
substituir o vazio do futuro segundo o A ecologia de saberes é uma das
tempo linear, por um futuro de possibili- formas de operar a sociologia das ausên-
dades plurais e concretas [...]” centrado na cias, no sentido de substituir a lógica
“possibilidade” (BOAVENTURA SANTOS, monocultural de produção da não
2008, p. 116). Essa sociologia propõe-se a existência. Seu ponto de partida é o epis-
investigar alternativas dentro de possibili- temicídio, processo histórico pelo qual a
dades concretas. ciência moderna ocidental marginalizou
Enquanto a sociologia das ausên- ou descredibilizou todos os conhecimentos
cias se dá no domínio das experiências tidos como não científicos convertendo-se
já disponíveis, a sociologia das emer- em conhecimento uno, universal e única
gências busca expandir o domínio das fonte de progresso. As ecologias que vem
experiências sociais possíveis. A multipli- para substituir as lógicas monocultu-
cação e diversificação das experiências rais de produção da não existência são

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constelações de saberes. A Ecologia de contra-hegemônica. Justifica-se, pois,


saberes faz coexistir saberes não científicos discutir formas, estratégias, práticas e
que sobreviveram ao epistemicídio ou que dispositivos de invisibilização social atra-
emergiram das lutas sociais contra a desi- vés da Sociologia das Ausências. E, em
gualdade e a discriminação. Assenta-se contrapartida, discutir práticas sociais
na ideia de que todo conhecimento é alternativas e epistemologias alternativas
interconhecimento, reconhecimento que visem a reinvenção social, com base
e autoconhecimento. Pressupõe que a na Sociologia das Emergências. Abaixo
injustiça social está fundada na injustiça fazemos referências a elementos desta-
cognitiva. Ou seja, já que o conhecimento cados de seis trabalhos de estudantes
científico não está distribuído equitati- de nossa disciplina no curso de ciências
vamente, as intervenções no real que ele sociais nos quais buscaram refletir sobre
privilegia tende a ser aquelas fornecidas estas sociologias e aplicar a situações
por grupos sociais que detém acesso a ele. concretas do cotidiano ou de expressões
Sendo assim, para se ter justiça social é do imaginário, como cinema e literatura.
preciso alcançar a justiça cognitiva, o que
pode acontecer valorizando práticas cien-
tíficas alternativas e a interdependência INVISIBILIDADE NOS HOSPITAIS
entre saberes científicos e não científicos PSIQUIÁTRICOS
(BOAVENTURA SANTOS, 2008).
A luta pela visibilização de formas
de conhecer e compreender o mundo que As estudantes autoras (SILVA, VOTORIANO
foram invisibilizadas pela racionalidade & SANTIAGO, 2014) questionam a validade
da ciência moderna e pela colonialidade do saber/poder médico (psiquiátrico)
do saber que ela ajudou a sustentar é uma sobre a loucura e as formas de tratamento
necessidade premente e tem implicações arbitrárias que daí advém, exemplificando
também para a educação. É o que Inês com um caso de invisibilidade social na
B. de Oliveira (2008) salienta ao discutir cidade de Barbacena – Minas Gerais – Brasil
a necessidade da educação considerar em um hospício que ficou conhecido como
em suas concepções e práticas a identifi- Colônia (1903-1980) onde os pacientes
cação e valorização de “outros modos de eram submetidos a condições desumanas.
pensar e de estar no mundo para além Entre estas o fato de que 70% dos pacien-
dessa razão [dominante]” que se entende tes que lá viviam não sofriam de fato de
como universal (p. 70). O que passaria por doença mental mas ali se encontravam por
entender como estas formas não hegemô- serem considerados indesejados social-
nicas tem sido negligenciadas. mente em vista de alcoolismo, pobreza,
Entendemos que a racionaliza- discriminação racial, homossexualidade,
ção estreita e redutora operada pelas prostituição, adolescentes grávidas rejei-
formas de conhecimento dominantes tadas pela família etc... A sociologia das
expressam colonialismo e refletir sobre ausências foi usada neste estudo para
o assunto já faz parte de uma estratégia caracterizar a produção da não existência

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desses indesejados socialmente respalda- AS MULHERES BENEFICIÁRIAS DO


dos pela hegemonia da ciência através do PROGRAMA BOLSA FAMÍLIA (PBF)
poder médico/psiquiátrico. ATRAVÉS DO VÍDEO DOCUMENTÁRIO
“SEVERINAS: AS NOVAS MULHERES
DO SERTÃO”
AS PRAÇAS PÚBLICAS COMO ESPAÇOS
DE AUSÊNCIAS NO MEIO URBANO E O
PROJETO ECO-PRAÇAS DE NATAL/RN/ O estudante autor (SILVAb, 2014, s/d) usa
BRASIL COMO EMERGÊNCIA como operador do pensamento este vídeo
documentário que trata da realidade de
mulheres sertanejas na cidade de Guaribas,
As estudantes autoras (MOURA, interior do Estado do Piauí, Brasil, num
WAINBERG, DONATI, 2014, s/d) obser- contexto social de pobreza e resignação.
vam que a maior parte das praças públi- A política pública federal do PBF foca na
cas da cidade do Natal encontram-se em transferência de renda do governo para a
situação de abandono não só pelo governo população mais pobre e o documentário
municipal como pela sociedade, o que narra como a realidade vai sendo transfor-
configuraria a produção de não existên- mada. O autor relata que a região consi-
cias (ausências). Em vista disso, o Projeto derada tinha em 2003 o segundo pior IDH
Eco-Praça que acontece em várias locais do país, e, após dez anos de implantação
da cidade busca a mobilização social para do primeiro programa de transferência de
o problema e oferecer alternativas para renda (o Fome Zero), a miséria foi erradi-
a revitalização das praças públicas, com cada no local. A diretora do documentá-
feiras de produtos artesanais, shows musi- rio ouviu relatos das famílias beneficiárias
cais e outras atividades culturais. Assim, o dando visibilidade a uma realidade produ-
projeto é visto pelas autoras como alterna- zida como não existente (ausente). Frente
tiva à ocupação e revitalização das praças ao que Boaventura Santos fala, sobre a
públicas natalenses onde ele acontece, necessidade do processo de globalização
transformando ausências em emergên- ser pensado de forma alternativa, o estu-
cias, dizem as autoras: “Felizmente, vemos dante autor observa que “pensar possibi-
que as ausências, apesar de continuarem lidades de mudanças sociais e políticas
grandes, tem sido gradualmente substi- também a partir da ótica dos que foram
tuídas por ecologias de saberes, que unem invisibilizados e que atualmente tem mais
responsabilidade social e ambiental com possibilidade de emergência, é o caso das
lazer e promoção da cultura” (MOURA, mulheres de Guaribas” (SILVAb, 2014, s/p).
WAINBERG & DONATI, 2014, s/d).

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O PROBLEMA DA CULTURA-LÍNGUA reclusa e sob o autoritarismo do pai. Em


NA PRODUÇÃO DAS HEGEMONIAS E face disso, os filhos, apesar de adultos, tem
INVISIBILIDADES NA CRÔNICA atitudes infantilizadas e reações mecani-
DE MIA COUTO zadas e repetitivas. Nenhum personagem
tem nome, exceto Cristina, contratada
pelo pai da família para saciar necessida-
Os estudantes autores (FAGNO, MELO, des sexuais de um de seus filhos, e que é
FREIRE, 2014, s/d) buscam analisar o quem acaba sendo um elo da filha mais
processo de invisibilização que sofre a velha com o mundo exterior o qual não
cultura africana pelo poder hegemônico conhece. As práticas desse pai autoritário
global através de um conto do escritor acabam se configurando como uma metá-
moçambicano Mia Couto “Línguas que fora da razão indolente pois produz invisi-
não sabemos que Sabíamos”2. Segundo bilidades políticas e culturais, realizando
os autores, “o que Mia Couto denuncia é epistemicídios com diversos saberes que
o processo de essencialização e folcloriza- não são aceitos como válidos.
ção do povo africano, e que muito daquilo No entendimento da autora, o filme
que se proclama como autenticamente “[...] deixa margem para a busca daquilo
africano é produzido fora da África” que Boaventura Santos chamou de
(FAGNO, MELO & FREIRE, 2014, s/p). ecologia de saberes, que é uma contra-
Eles entendem que a lógica que produz -epistemologia, onde diversas alternativas
invisibilidades e, portanto, desperdício são estimuladas e não podem ser agrupa-
da experiência social, apresenta a cultura das em uma única forma global, fazendo
africana de modo massificado, lógica esta com que o pensamento seja sempre plura-
criada por uma cultura hegemônica euro- lista e propositivo. [...]. ‘Dente Canino’
cêntrica que hierarquiza as mais diver- motiva o expectador a pensar em um
sas formas de saberes e as dicotonomiza novo pensamento político que estimula
tratando como local tudo que não está sob visões do mundo não contempladas pela
a égide hegemônica. atenção da ordem vigente, resistências ao
que está posto, gerando um movimento
contra-hegemônico” (SILVA, 2014, s/p).
UMA CRÍTICA À RAZÃO INDOLENTE NO
FILME “DENTE CANINO”

A estudante autora (SILVA, 2014c, s/d)


toma o filme “Kynodontas” (dente canino,
em português) para fazer uma crítica da
razão indolente. O filme retrata um casal
de pais que criam seus três filhos de forma

2
Publicado no livro “E se Obama fosse africano?: e outras intervenções. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.

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O FILME "FAHRENHEIT 451" E SUA do discurso científico. Do mesmo modo,


RELAÇÃO COM A SOCIOLOGIA DAS buscar identificar formas alternativas de
AUSÊNCIAS E COM A SOCIOLOGIA DAS luta contra-hegemônica para transformar
EMERGÊNCIAS essas invisibilidades/ausências em sujei-
tos com voz e vez.
Trata-se de uma abordagem que
Os estudantes autores (SOUZA FILHO; busca uma prática de conhecimento que
MELO, 2014, s/d) tomam o referido filme atue efetivamente como potencialidade
como emblema para pensar os conteúdos emancipatória para além da mera trans-
destas sociologias. Segundo eles, no filme missão de conteúdos sociológicos (ou de
é possível “caracterizar a sociologia das outras disciplinas científicas)3. Por decor-
ausências como o ato daquela sociedade rência, a construção de subjetividades
repudiar, marginalizar os livros e qualquer compromissadas com a emancipação
prática escrita, ou qualquer prática inte- social vai depender de práticas de conhe-
lectual” (MELO & SOUZA FILHO, 2014, cimento igualmente notáveis neste
s/p). Uma das faces da razão indolente é a sentido, dentro e fora de sala de aula.
razão metonímica, que objetiva a ideia de Afinal, os estudantes, como também os
totalidade sob a forma de ordem. Segundo professores, incorporam valores e crenças
os autores, no filme essa ordem é obser- não somente a partir de saberes formais
vada no momento em que se apresenta (como os veiculados pelos conteúdos
um futuro onde todos os livros são proi- curriculares ministrados) mas através
bidos e opiniões próprias são considera- de saberes cotidianos/informais, muitos
das anti-sociais e hedonistas, onde todo deles dos corredores, do pátio, da relação
pensamento crítico é suprimido. professor-aluno, com a escola, a família, a
Entendemos que cada uma dessas comunidade, as redes sociais etc.
experiências de reflexão utilizando a Na universidade, temos nos
sociologia das ausências e ou a sociologia acostumado a valorizar quase que
das emergências em sala de aula (ou a exclusivamente os saberes formais, espe-
partir dela) mostra um pouco do caráter cialmente os considerados científicos,
crítico e combativo dessas teorizações através dos autores e teorias científicas
fazendo com que os estudantes saiam de estudadas. E assim, secundarizamos sabe-
uma postura de conformismo ou derro- res cotidianos/informais dos próprios
tismo e se empenhem em explorar formas estudantes, do professor, dos grupos de
e estratégias de produção da não exis- pertencimento e dos saberes do imagi-
tência veiculado no ou com o respaldo nário artístico e cultural que nos são

2
Toma aqui o sentido de emancipatório que lhe dá Boaventura Santos (2008). Ele diz que, ao contrário das concepções do pós-mo-
derno que renunciam a projetos coletivos de transformação social e que consideram a emancipação social um “mito sem consistência”
(p. 29), sua perspectiva “pós-moderna de oposição” ainda aposta nela acreditando numa pluralidade de projetos coletivos articulados,
sem hierarquiza-los, isso sendo possível através de procedimentos de tradução que substituem uma teoria geral da transformação
social.

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transmitidos sem necessariamente nossa revalorizando os estudos humanísticos


consciência disso. Saberes cujas informa- e a racionalidade estético-expressiva das
ções que veiculam integram a enormidade artes e da literatura. Estes elementos
de informação que a universidade deveria também foram encontrados nos traba-
aprender a trabalhar, a tratar, a dialogar. lhos dos alunos como a alusão aos filmes
Oliveira (2008) explica que para “Dente canino” e “ Fahrenheit 451” e
Boaventura Santos o grau de democratici- ao vídeo documentário “Severinas, as
dade do diálogo entre os conhecimentos novas mulheres do sertão”, no sentido
plurais interfere decisivamente na valida- de produção de um conhecimento mais
ção do conhecimento do novo paradigma, auto-biográfico na medida em que
e lembramos que este novo conhecimento estreita a distância entre sujeito e objeto
não é somente científico mas também até o limite de sua superação, como requer
social (BOAVENTURA SANTOS, 2002). o trabalho com obras do imaginário
Assim, pensamos que o ensino univer- (GOMES, 2015). Sendo assim, pensamos
sitário não deve se respaldar apenas na que as ciências humanas em diálogo com
dimensão científica do conhecimento, as humanidades podem reclamar para si
mas fazer o científico dialogar com os um certo compromisso de humanizar os
demais saberes cotidianos. A amostra de saberes científicos no sentido de colo-
trabalhos dos alunos que trouxemos nessa cá-los a serviço da contra-hegemonia
comunicação demonstram essa preocu- epistemológica e política, possibilitando
pação com o diálogo com outras formas visisbilidade aos saberes subalterniza-
de conhecimento, com saberes do “sul dos em face de interesses do mercado e
global” como na alusão ao conto de Mia do poder, e a sociologia das ausências e
Couto tratando de como a África é veicu- sociologia das emergências aparece como
lada para o resto do mundo pelo Ocidente. grande potencial de participar desse luta
Também no trabalho que crítica o caráter de modo decisivo, como uma epistemo-
político do saber/poder médico psiquiá- logia prática e social, assumidamente
trico no caso do hospício Colônia. Os interventiva.
saberes cotidianos e sobre a vida cotidiana
também se revelam presentes no trabalho
dos alunos sobre “as praças como espaços
de ausências no meio urbano e o Projeto
Eco-praças de Natal como emergências”.
Não sendo somente científico, mas
social, o novo paradigma caminha no
sentido de uma superação da dicoto-
mia ciências naturais/ciências sociais, o
que para o autor tem acontecido sobre a
égide das ciências sociais, à medida que
as ciências naturais se aproximam destas
e estas se aproximam das humanidades

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REFERÊNCIAS
MOURA, Ana Lívia Lins Procópio de;WAINBERG,Bianca;DONATI,
Luisa Galvão. As praças como espaços de ausências no meio urbano
e o Projeto Eco-Praças de Natal como emergência. Trabalho para a
Disciplina de Epistemologia das Ciências Sociais, Curso de Ciências
Sociais/UFRN, 2014.

FAGNO, Danilo; MELO, Gutemberg; FREIRE, Suzanne. O problema


da cultura-língua na produção das hegemonias e invisibilidades na
crônica de Mia Couto. Trabalho para a Disciplina deEpistemologia
das Ciências Sociais, Curso de Ciências Sociais/UFRN, 2014.

GOMES, Ana Laudelina Ferreira. Por que buscar articulações


científico-humanísticas? In: GOMES, Ana Laudelina Ferreira (org.).
Festins de seda. Festival Mythos-Logos e outras inventices de
inspiração bachelardiana. Natal: EDUFRN, 2015.

SANTOS, Boaventura de Souza. A crítica da razão indolente: contra


o desperdício da experiência. Para um novo senso comum. Vol. 1. 4ª.
ed. São Paulo: Cortez, 2002.

SANTOS, Boaventura de Souza. A gramática do tempo. Para uma


nova cultura política. Vol. 4. 2ª. Ed. São Paulo: Cortez, 2008.

SILVA, Adara Pereira da; VITORIANO, Jussara de Oliveira; SANTIAGO,


Manuella Elias. Invisibilidade nos hospitais psiquiátricos. O caso
de Colônia. Trabalho para a Disciplina deEpistemologia das Ciências
Sociais, Curso de Ciências Sociais/UFRN, 2014.

SILVA, Roberto Rosemberg Freitas da. As mulheres beneficiárias


do Programa Bolsa Família através do documentário “Severinas:
as novas mulheres do sertão”. Trabalho para a Disciplina de
Epistemologia das Ciências Sociais, Curso de Ciências Sociais/
UFRN, 2014a.

SILVA, Maria Alice Souza Silva. Uma crítica à razão indolente no


filme “Dente canino”. Trabalho para a Disciplina de Epistemologia
das Ciências Sociais, Curso de Ciências Sociais/UFRN, 2014b.

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SOUZA FILHO, Marcos Luiz; MELO, Amarilis Freitas de.


Relacionando “uma sociologia das ausências e uma sociologia das
emergências” de Boaventura Santos, com o filme Fahrenheit 451.
Trabalho para a Disciplina deEpistemologia das Ciências Sociais,
Curso de Ciências Sociais/UFRN, 2014.

OLIVEIRA, Inês Barbosa de. Boaventura & Educação. Coleção


Pensadores & Educação. 2ª. Ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2008.

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