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Enquadramento teórico

1.2 – A TEORIA DAS TRANSIÇÕES DE MELEIS


“O exercício profissional da enfermagem centra-se na relação de um enfermeiro e uma
pessoa ou de um enfermeiro e um grupo de pessoas […] Os cuidados de enfermagem tomam
por foco de atenção a promoção dos projectos de saúde que cada pessoa vive e persegue”
(OE, 2001:8).
É hoje consensual para a disciplina que o objectivo da prestação dos cuidados de
enfermagem deixou de ser a doença propriamente dita, para passar a ser a ser a resposta do
indivíduo aos processos de saúde e de vida, tal como as transições vivenciadas por ele, família
e grupos ao longo do ciclo vital.
Ao analisar a teoria de Orem, constata-se o enfoque que é dado às respostas que os
indivíduos dão no sentido de executarem, ou não, actividades de autocuidado, ao longo da sua
vida. É necessário, no entanto, analisar o conceito de transição, definindo a sua importância
para a enfermagem e para o futuro da profissão.
Transição é um tema contemporâneo que provém da teoria da crise, bastante estudada
no passado. Segundo esta, uma crise é essencialmente um distúrbio do equilíbrio, uma
perturbação de um estado estável, exigindo imediatamente novos padrões de comportamento
e cuja resposta, normalmente surge através dos mecanismos e reacções habituais que cada
um tem disponível para lidar com os problemas. Considera-se que é um perigo porque ameaça
o ser humano pelos seus efeitos negativos e uma oportunidade, porque durante os períodos de
crise a pessoa está mais receptiva à influência terapêutica (Zagonel, 1999). Meleis et al.
(2000:12) referem que:

Changes in health status may provide opportunities for enhanced well-being and expose
individuals to increased illness risks, as well as trigger a process of transition.

Nos últimos anos Afaf Meleis e os seus colegas contribuíram para aumentar o
conhecimento da disciplina de enfermagem ao desenvolverem uma teoria sobre o fenómeno
das transições. Foram objecto de estudo alguns factos da vida quotidiana com interesse para a
enfermagem como: a gravidez, a menopausa, a transição de adolescente a jovem adulto
dentro de doentes com patologia cardíaca, a perda de entes queridos, a emigração, entre
outros.
O conceito de transição é definido por Meleis e Trangenstein (1994:256) como:

(…) a passagem de uma fase da vida, condição ou estado para outro… transições
refere-se tanto ao processo como aos resultados da complexa interacção pessoa/ambiente…
denota mudança no estado de saúde, nos papeis relacionais, nas expectativas, ou nas
habilidades. Denota uma constelação única de padrões de resposta ao longo de um espaço de
tempo.

Durante os períodos de transição as pessoas podem passar por episódios de


instabilidade e vulnerabilidade. Como se observa na teoria de Orem, o autocuidado é um
conceito dinâmico ao longo do ciclo vital o que implica que o ser humano tenha que estar em

1 A reconstrução da autonomia face ao autocuidado após um evento gerador de dependência – estudo exploratório no contexto domiciliar
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permanente mudança para fazer face às exigências da vida. Situações de défice de


autocuidado, em que as exigências são superiores à capacidade de resposta do indivíduo,
podem provocar profundas alterações ao nível da vivência pessoal, familiar e social, tendo
implicações importantes no que diz respeito à saúde e ao bem-estar.
Essas transições, segundo Meleis (2007) exigem novos conhecimentos para mudar
comportamentos, dentro de um determinado contexto, alterando a definição do “self”. Um
processo de transição passa por três fases: entrada, passagem e saída. A conclusão de uma
transição traz um período de menor perturbação e maior estabilidade decorrente do
crescimento resultante da experiência.
Considerando que o foco de enfermagem se centra nas respostas que os indivíduos
dão à doença e aos processos de vida, Meleis (2007:219) considera que “o conceito de
transição é central à Enfermagem” e com os seus colegas desenvolveu uma teoria de médio
alcance, representada esquematicamente na figura 1.

Figura 1 - Teoria das Transições (Meleis et al, 2000:17)

1.2.1 – Natureza das transições

Ao longo de vários estudos Meleis e seus colaboradores foram analisando diversos


fenómenos de mudança, registados em diversas áreas de interesse para a enfermagem. No
seu modelo teórico identificaram uma categoria major que denominaram de Natureza das
transições que, engloba os vários tipos de transição, a forma como se manifestam e se
relacionam entre si, bem como as propriedades que cada uma evidencia.

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1.2.1.1 – Tipos de transições

Segundo Meleis et al (2000), existem vários tipos de transições que o indivíduo pode
vivenciar de forma sequencial ou em simultâneo, uma vez que elas não são discretas ou
mutuamente exclusíveis. Os enfermeiros devem estar sensíveis quando analisam a natureza
das transições para não se concentrarem apenas num tipo específico de transição em
detrimento de outras que podem ser também relevantes.
Foram identificadas transições do tipo: Saúde/Doença; Desenvolvimento; Situacionais
e Organizacionais.
De acordo com Meleis & Schumacher (1994:119):

(…) as transições de desenvolvimento ocorrem quando o ser humano enfrenta uma


mudança decorrente da sua evolução ao longo do ciclo vital (adolescência, gravidez, papel
parental, menopausa, etc.), o que implica que a maior parte dos trabalhos desenvolvidos se
tenham focado unicamente na pessoa.

As transições organizacionais estão muito ligadas a mudanças no ambiente que rodeia


o indivíduo/família. Normalmente são precipitadas por mudanças ao nível do contexto (social,
político ou económico) ou devido a alterações dentro da organização e dinâmica de um grupo
que afecta o indivíduo.
Existem ainda diversas situações como a imigração, lidar com uma doença terminal,
mudar de trabalho, etc., que podem despoletar transições, neste caso classificadas como do
tipo situacional.
Por último, Meleis & Schumacher (1994:119) descrevem as transições do tipo saúde-
doença como aquelas em que “o indivíduo tem de enfrentar as dificuldades decorrentes do
episódio de doença”.

1.2.1.2 – Propriedades das transições

As transições são fenómenos complexos e multidimensionais onde é possível


identificar várias propriedades que normalmente se relacionam entre si.
A consciencialização está relacionada com a “percepção, conhecimento e
reconhecimento de uma experiência de transição” (Meleis et al, 2000:18). A consciência é
portanto uma propriedade essencial e para estar numa transição é necessário que o indivíduo
tenha consciência das mudanças em curso. No entanto, os autores acrescentam que, a
ausência de manifestações de consciência, não impede o início da transição. Fica, por isso, a
dúvida relativamente ao que despoleta a transição: a consciência do enfermeiro ou do
indivíduo?
O envolvimento define-se como o grau que a pessoa mostra estar envolvida com os
processos inerentes à transição. Os níveis de compromisso do indivíduo têm uma estreita
relação com a consciencialização, uma vez que o nível de envolvimento de alguém que está
consciente da mudança que tem de encetar será obviamente diferente daquele que
desconhece tais necessidades.

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A mudança e a diferença são também propriedades importantes. Meleis et al.


(2000:19) referem que “apesar de todas as transições implicarem mudança, nem toda a
mudança está relacionada com processos de transição, no entanto, as transições são o
resultado de mudanças e resultam em mudanças”. Para compreender na íntegra o processo, é
necessário descobrir e descrever os efeitos e significados da mudança em todas as suas
dimensões. A diferença, por seu lado, associa-se a uma forma diferente de se ver a si mesmo,
ao mundo e aos outros, bem como sentir-se diferente e ser percebido de forma diferente.
Assim, ao analisar o fenómeno, os enfermeiros necessitam também de considerar o nível de
conforto e de domínio dos indivíduos, na forma como lidam com estas duas propriedades.
Todas a transições são caracterizadas por fluxo e movimento ao longo do tempo.
Qualquer processo tem início com os primeiros sinais de mudança, passa por um período de
instabilidade até a um potencial fim, onde o indivíduo adquire um novo conceito de
estabilidade. A duração da transição é, portanto, variável e muitas das vezes indefinida,
podendo haver avanços e retrocessos que implicam uma avaliação contínua dos resultados ao
longo do tempo e redefinição dos objectivos.
As transições estão associadas a acontecimentos desequilibrantes. Os pontos e
eventos críticos (quer se associem ao início da transição ou ocorram durante a mesma)
correspondem frequentemente a um aumento da sensibilização para a mudança, diferença ou
para o aumento do envolvimento na experiência de transição. Cada ponto crítico implica
atenção, conhecimento e experiência do enfermeiro para saber como identificar, facilitar,
promover e apoiar as pessoas, sendo considerada a chave para a prática de uma enfermagem
baseada na teoria das transições (Ibidem).

1.2.2 – Condições facilitadoras e inibitórias

A pessoa é um ser social e agente intencional de comportamentos baseados nos


valores, nas crenças e nos desejos de natureza individual […] Os comportamentos da pessoa
são influenciados pelo ambiente no qual ela vive e se desenvolve. Toda a pessoa interage com o
ambiente: modifica-o e sofre a influência dele durante todo o processo de procura incessante do
equilíbrio e da harmonia (OE, 2001:6).

Meleis (2007:471), defende que “a forma como os seres humanos lidam com as
transições e como o meio ambiente afecta esse processo, são questões fundamentais para a
Enfermagem”, que deve explorar os factores que as condicionam ou facilitam.
Segundo Meleis et al (2000:21), “existem determinadas condições pessoais como as
crenças culturais, atitudes, e o estatuto sócio-económico que influenciam a vivência das
transições”.
Um outro factor importante é o significado pessoal que cada um atribui à mudança:

The meanings attributed to events precipitating a transition and to the transition process
itself may facilitate or hinder healthy transitions (Ibidem).

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Por último, os autores identificaram ainda o nível de conhecimento e preparação para


lidar com a mudança. Assim, nas situações em que há preparação prévia, com conhecimento
do expectável e das estratégias necessárias para resolver os problemas, as experiências de
transição ficam facilitadas.
Para além das condições pessoais, Meleis et al (2000) acrescentam também as
condições comunitárias (como a existência de apoio social ou de recursos instrumentais) e
as condições sociais (como a marginalização ou a estigmatização social relativamente à
mudança) como facilitadoras ou inibidoras das transições.

1.2.3 – Padrões de resposta

Uma transição saudável postula tanto os processos como as respostas resultantes.


Meleis et al. (2000) referem que à medida que a transição vai decorrendo, a identificação de
indicadores de processo que guiam as pessoas para uma vida saudável ou em direcção à
vulnerabilidade ou risco, permite aos enfermeiros fazerem uma avaliação e uma intervenção
precoce de modo a ajudar o indivíduo a atingir o bem-estar (indicadores de resultado).

(…) nursing… is concerned with the process and the experiences of human beings
undergoing transitions where health and perceived well-being is the outcome (Meleis &
Trangenstein, 1994:257).

1.2.3.1 – Indicadores de Processo

Meleis & Trangenstein (1994:257) referem que “a enfermagem preocupa-se com o


processo como os seres humanos vivem as transições, tendo como objectivo a saúde e a
sensação de bem-estar”. Assim, os enfermeiros devem centrar-se na identificação de
indicadores de processo que demonstrem se os participantes estão a viver as transições de
forma saudável ou a mover-se em direcção à vulnerabilidade, intervindo precocemente para
facilitar a obtenção de resultados positivos.
São vários os indicadores de processo apresentados pelos autores. Sentir-se
envolvido, por exemplo, implica uma ligação responsável do indivíduo com a mudança e com
os participantes que o ajudam a mudar; a interacção permite clarificar e ajustar os
comportamentos de resposta às transições, pois é através dela que todo o ser humano
aprende e evolui; sentir-se situado, por sua vez, é de extrema importância, pois uma das
características das transições é a criação de novos significados e percepções, permitindo que o
indivíduo deixe de estar ligado ao passado e enfrente os novos desafios; desenvolver
confiança manifesta-se através da compreensão dos diferentes processos relativos à
necessidade de mudança, ao nível da utilização dos recursos e no desenvolvimento de
estratégias para lidar com os problemas. Essas estratégias de coping, por seu lado,
evidenciam um conhecimento cumulativo da situação, maior adaptabilidade aos eventos
críticos e um sentido de sabedoria resultante da experiência.

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1.2.3.2 – Indicadores de Resultado

Na teoria de Meleis (ver a figura 1), são evidenciados dois tipos de indicadores de
resultado que segundo a autora servem para assinalar um novo ponto de equilíbrio na vida de
uma pessoa que viveu uma transição: a Mestria e a Integração fluida.
Mestria significa domínio da situação. “Uma conclusão saudável de uma transição é
determinada pelo grau de domínio demonstrado, das competências e comportamentos
necessários para lidar com as novas situações e ambientes” (Meleis et al, 2000:26). A
competência desenvolve-se ao longo do tempo com a experiência, devendo por isso medir-se
os indicadores de resultado perto do final do processo de transição para saber até que ponto
esta pode ser considerada saudável.
O outro indicador resulta da constatação de que, após uma experiência de transição,
por vezes ocorre uma reformulação da identidade, fruto das modificações que se operaram ao
longo do tempo, proporcionando maior adaptabilidade às exigências actuais. A esta alteração
designa-se por Integração fluida.

1.2.4 – Terapêuticas de Enfermagem

As Terapêuticas de Enfermagem são constituídas por “todas as actividades e acções


deliberadas de Enfermagem destinadas ao cuidado dos seus clientes” (Meleis, 2007:443).
Como os enfermeiros são, na maior parte das vezes, cuidadores de pessoas que
enfrentam transições, bem como das suas famílias, eles atendem às mudanças e exigências
que surgem (Meleis et al, 2000) tentando desenvolver neles competências para que possam
modificar comportamentos e atingir o bem-estar (Meleis & Trangenstein, 1994). Assim,
seguindo esse raciocínio, a enfermagem preocupa-se com as pessoas que atravessam
processos de transição quando a saúde e o bem-estar são as metas desse processo. É o
enfermeiro que deve facilitar a aprendizagem, tendo em conta as mudanças e necessidades
que acompanham as transições sendo que o “cuidar deve ser visto como um processo que
facilita transições bem sucedidas que não está vinculado por início e fim a um evento
determinado medicamente” (Meleis & Trangenstein, 1994:257).

Só a Enfermeira está interessada na articulação das transições que são


biopsicossocioculturais – e não somente para saber mas, em última instância, também para
obter conhecimento acerca da utilidade daquilo que nós sabemos e, em particular, para obter
maneiras de efectivamente usar esse conhecimento para obter transições individuais de saúde,
saudáveis (ibidem: 256).

“A prática de Enfermagem preocupa-se, por isso, com a forma como os seus clientes
vivem e respondem às transições, assim como com os factores que com elas interferem”
(McEwen et al, 2007:201).
O conhecimento das transições permitirá manter, apoiar e aumentar o bem-estar físico-
psíquico-social, o autocuidado e a qualidade de vida das pessoas que as vivenciam, uma vez
que para Meleis & Trangenstein (1994:255) o conceito de transição pode ser “pensado como

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sendo congruente com ou relacionado com conceitos, tais como adaptação, autocuidado,
desenvolvimento humano unitário…”
“Apenas a enfermagem como disciplina desenvolve uma base de conhecimento para
ajudar as pessoas a adquirir um nível de funcionamento, conhecimento e mestria para lidar
com os processos de transição” (Meleis & Trangenstein, 1994:257), o que implica o
desenvolvimento de terapêuticas de enfermagem focadas na prevenção de transições mal
sucedidas, na promoção da sensação de bem-estar e em estratégias para ajudar as pessoas a
lidarem com as transições.

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