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J.F.

KRAKBERG
BRIGITTE MONTFORT

CRIME
SAGRADO
DA ESPIÃ NUA

Tantas vezes o mistério da mulher que se despe!


Homens de olhar em brasa. Segredos revelados. Jamais
alguém poderia esquecer Giselle, a espiã nua que abalou
Paris. Seu corpo de linhas esculturais, despido, oferecido
aos apetites sórdidos dos nazistas de Hitler, durante a
ocupação de Paris.
O sacrifício da própria honra, por uma tão sonhada
hora de libertação. A heroína da Resistência, a deusa dos
maquis, vivendo acontecimentos dramáticos em 1941, na
França humilhada pelos leões louros da SS e da SA.
Tudo isso contado, em linguagem violentamente
realista. Aos quais, seguiram-se os outros relatos sobre a
vida, não menos trepidante, de Brigitte Montfort, filha de
Giselle, surgindo vinte anos depois, nos Estados Unidos,
bonita, elegante, inteligente e — admirável coincidência!
— dotada da mesma ousadia que tomou famosa a Espiã da
Resistência Francesa.
Brigitte, uma versão aprimorada de Giselle, também
sedenta do aventuras; Brigitte, um desafio constante ao
perigo e uma perigosa tentação aos homens de boa
vontade!
Por que se despe uma espiã? — perguntaria alguém,
intrigado talvez com esta reincidência da nudez na segunda
geração Montfort. E teríamos um milhão de respostas, que
não seriam melhores do que a simples leitura desta
narrativa.
Brigitte Montfort, estrela do jornalismo norte-
americano. Só os que a amam a entendem. Brigitte sem
preconceitos. Revolucionária do método jornalístico.
Desprezando todo convencionalismo antiprogressista.
Usando monoquínis. Apaixonando-se pelo amor do
momento. Cedendo suas prerrogativas de recato feminino a
qualquer nova emoção crepitante. Trabalhando, com
dinamismo e inteligência, para o seu jornal, o “Morning
News”, o matutino de maior tiragem de Nova Iorque.
Entrando em acordo com inspetores do FBI e da CIA,
fazendo trabalho de detetives e agentes secretos, sempre em
busca de uma reportagem sensacional. Obedecendo ao seu
chefe (e eterno apaixonado) Miky Grogan, diretor do
“Morning News”. Mantendo em constante ansiedade seu
colega de redação, Frank Minello, uma espécie de curinga
das suas escapadas românticas... enfim, Brigitte Montfort
vivendo uma vida agitada de mulher moderna, interessada
na emoção.
CAPÍTULO PRIMEIRO
Onde o leitor, pela primeira vez, assiste à geração de um mistério
Impossível toque de sobrenatural na experiência realista de um incêndio
A esperança nua e a nudez que espera
A viagem e um simpático piloto com uma 45 debaixo do braço

Explosões! Incêndio violento! O maior depósito de óleo


cru da Refinaria de Abadan, na Pérsia, transforma-se, em
poucos minutos, numa tocha gigantesca! Labaredas
monumentais, arrasadoras! Prenúncio do inferno!
Em torno a confusão própria dos incêndios. O terror!
Cheiro de carne humana queimada. Gritos lancinantes.
Sirenas de bombeiros e ambulâncias, num ritmo alucinante.
Um muezim, a dois passos das chamas, vergado, a testa
contra o solo, numa prece desesperada, invocando a
misericórdia de Alá: — Allahur Akbar! Allahur Akbar!
Incêndio! A face cruel de Ahriman, o espírito mau,
iluminada pelo fogo do deus Ormuzd! O improvisado
policiamento, numa tentativa de reduzir o caos. Ordens
confusas, em árabe e inglês. Correrias. Alguns gestos
isolados de heroísmo: O guarda, vestido de asbesto, indo
buscar o companheiro torturado pelo fogo, entre as
estruturas rubras de aço retorcido.
Centro e vinte mortos. Duzentos e quarenta feridos. Os
hospitais e ambulatórios em vigília, atulhados de corpos
deformados. A cidade em suspense. E uma revelação
apavorante:
— O guarda falou, antes de morrer! Disse que foi
sabotagem! Não de gente! Ele viu... ele viu! Seres
misteriosos, formas grotescas, inumanas, arrastando-se
como criaturas de outro mundo! Ele viu! Monstros, coisas,
entrarem embaixo do depósito e jogarem as bombas
incendiárias! Não era gente! Por Deus! Não era gente!
***
O mundo é, hoje, um ridículo pedaço de minério
superpovoado, sem fronteiras muito nítidas e sem grandes
segredos. As distâncias foram reduzidas pelos vôos
supersônicos, pelos telegramas mais velozes do que o som.
O incêndio da Refinaria de Abadan, na Pérsia misteriosa
e sagrada, transforma-se em notícia, antes mesmo que as
labaredas se extingam. Os jornais de Londres, Paris e Nova
Iorque fazem manchetes simultâneas, iguais às dos
matutinos de Teerã. O Xá, Sua Majestade Reza Pahlevi, lê o
mesmo noticiário que Miky Grogan, diretor do “Morning
News” de Manhattan.
UM MISTERIOSO INCÊNDIO NA REFINARIA DE ABADAN,
PROVOCADO POR FANTASMAS! — diz o telegrama da United
Press. Sabotagem no Oriente Médio, com fumaças de
sobrenatural! Petróleo e assombração!
Miky Grogan, na redação do “Morning News”, diante do
telex, emocionado, sente dentro do peito o tumulto das
coronárias. É com as mãos crispadas que agarra o telefone,
para chamar sua repórter favorita, Brigitte Montfort das
tarefas impossíveis.
Duas horas da madrugada. O tilintar monótono fere os
ouvidos da filha de Giselle, que, sobre o leito de vicunha
dourada, dorme vestida apenas com o seu perfume. Uma
voz de homem gordo, aguda, excitada:
— Alô? Sou eu, Miky! Para avisar que você tem apenas
o tempo de arrumar duas valises, e viajar, dentro de
algumas horas... para bem longe!
Brigitte, ainda mal desperta, gagueja: — Você está
louco! Isto são horas? Mas... viajar para onde? Que história
é essa?
— Uma história das mil e uma noites! Você verá!
Prepare-se! Seu destino é Teerã, capital da Pérsia! O
próximo avião para Roma levanta vôo às seis... já me
informei... e você vai nele, menina!
— Mas... quer ter a gentileza de me fornecer alguns
detalhes, antes de me despachar assim, como um foguete
para a Lua?
— É claro! Vou levá-la ao aeroporto. No caminho
conversaremos. Vista-se depressa! Sei que está nua, a estas
horas...
— Tem televisão, para me ver daí?
— Ainda não. Sou um homem primário. E TV de
troglodita é a imaginação...
— Miky, você é incorrigível! Pode passar dentro de hora
e meia. Estarei pronta.
***
Acionava-se, agora, o mecanismo de reportagem do
“Morning News”, matutino de maior tiragem de Nova
Iorque, um dos melhores e mais modernos jornais do
mundo. Enquanto, no começo da madrugada, preparava-se a
viagem surpreendente da jovem Brigitte Montfort, dezenas
de pessoas (dentro e fora da redação) cuidavam dos
detalhes, com requintes de precisão suíça. Arquivos
consultados. Relatórios redigidos, para suprir a pasta de
informações da repórter. Passagens requisitadas. Prioridades
conseguidas. Telegramas enviados às autoridades iranianas.
Cartas de apresentação datilografadas em tempo recorde.
Miky Grogan chegou à residência de Brigitte, na Quinta
Avenida, precisamente às quatro da manhã. Encontrou a
garota de malas prontas, na portaria do edifício. Fez uma
curiosa mesura (de mordomo inglês) ao abrir-lhe a porta do
carro, elogiou-lhe a beleza cada vez mais tentadora das
pernas, e entrou logo no assunto:
— Veja, menina! Isto é “Organização Morning News”!
Trouxe esta pasta com tudo, mas tudo mesmo, sobre a
Pérsia! Recortes. Relatórios. Mapas e instruções que você
deve seguir. Leia tudo no avião. A missão é arriscada! Tive
que acordar o embaixador iraniano, em Washington, para
saber de detalhes não divulgados pelas agências. O homem
ficou danado, mas cooperou. Nosso jornal tem muita força;
defende a política do Xá na ONU. Mas, o que interessa, é o
seguinte: a explosão da Refinaria de Abadan... que será
motivo da sua reportagem... é um ato típico de terrorismo.
Estão dizendo, por lá, que os sabotadores são fantasmas,
seres estranhos, almas do outro mundo. Investigue. Este ato
terrorista não é o primeiro. Há uma seqüência deles, sempre
no setor do petróleo. E sempre com os tais fantasmas pelo
meio... Fantasmas que adoram refinarias, petroleiros,
depósitos de gasolina etc. Serão fantasmas incombustíveis,
certamente. Veja que história é essa. Depois das últimas
ocorrências de agosto, a Pérsia (ou Irã, como queira) andava
em relativa calma1. O povo só quer saber do Xá, do herdeiro
1
Esta história foi escrita pouco depois dos acontecimentos de 16 de agosto de 1953, no
Irã, quando o Premier Mohamed Mossadeg já havia sido deposto pelo General Fazlolak
do Xá que não aparece porque a rainha Soraya é estéril.
Mas, agora, tudo indica que há um personagem misterioso
movimentando os cordéis. Um chefe, um coordenador
dessas sabotagens. Um fantasmão qualquer, dirigindo
fantasminhas. Investigue! Chegando a Teerã, vá direto às
autoridades. Apresente esta carta de recomendação e
procure uma entrevista com o monarca, pessoalmente. Ele
não será insensível ao seu charme. Aliás, dizem que está
para se divorciar da rainha. Investigue isso também.
— Tudo bonito, chefe — falou, afinal, Brigitte, afogada
naquele mar de instruções. — Mas, diga: qual é o meu
roteiro?
— Dacar, Roma, Bagdá e Teerã... Parece, até, viagem de
Sherazade em tapete mágico, bem? Você devia estar
orgulhosa!
— E quanto vamos gastar nesse servicinho?
— O mínimo possível. Não estamos em época de
esbanjamentos.
— Mas o meu mínimo é diferente, você sabe...
— Infelizmente sei, e concordo com ele. No envelope
você encontrará um livro de “travellers checks”. Confira no
avião. Se precisar de mais, peça ao nosso correspondente,
em Teerã. Não sei como tenho coragem de mandá-la para
tão longe! Sou mesmo um desalmado atiçador de almas e
recolhe- dor de notícias!
As despedidas foram simples, fraternais. Brigitte beijou
o chefe na testa larga, fabricou uma adorável carinha de
namorada triste em véspera de partida, prometeu as

Zahedi e o Xá voltara do exílio para tomar as rédeas do poder, no seu país. NA


promessas de sempre e dispôs-se a embarcar. O avião
esperava a sua última passageira. Nisso, um rapaz risonho
foi ao encontro da linda turista, alcançando-a na subida da
escadinha.
— Miss Montfort? Um momento, por favor!
— Sim?
— Sou Turner, do FBI. O Inspetor Pitzer deseja-lhe boa
viagem. Ele me pediu que lhe entregasse este bilhete.
Brigitte suspirou, mas recebeu o envelope lacrado,
sorrindo para o jovem federal. Depois, subiu para bordo. Aí,
abriu o envelope, pescou um bilhete (e um cheque verde) e
leu:
“Também estamos interessados nos atos de
terrorismo em Abadan. O “Inteligence Service”
pediu a cooperação da CIA, pois o caso afeta a
segurança do Ocidente. Envie-me seus relatórios,
à medida que for progredindo na solução do
mistério, e não publique nada no seu jornal sem
receber ordens oficiais. Nosso homem no Irã fará
contato com você. Anexo, um cheque de mil
dólares, para ser descontado no New York City
Bank do Teerã. Destrua esta mensagem.
Felicidades e breve regresso. Pitzer.”

Já em pleno vôo, mal iniciada a primeira etapa da


viagem, a jovem repórter tratou de aproveitar o tempo para
informar-se do conteúdo do seu dossiê, tão diligentemente
preparado, por Miky. Era ama obra-prima de concisão.
Toda a história da Pérsia milenar e profana, resumida em
trinta linhas datilografadas. Outra nota sobre costumes
locais, hotéis, padrão de vida, endereços úteis. Duas cartas
de apresentação, dirigidas a nomes complicados, de gente
importante. Um livro de “travellers checks” com mais
dinheiro do que esperava; talvez não precisasse dos mil
dólares do Serviço Secreto...
— Miky é um “pão”! — pensou Brigitte, radiante,
enquanto examinava o resto do conteúdo da pasta.
Havia, ainda, uma série de recortes de jornais, falando
do problema político do petróleo no Irã, as investidas russas
contra o domínio britânico etc. Um desses recortes,
particularmente, chamou-lhe a atenção. Começou a ler:

ONDE HÁ PETROLEO.
por Victor Crawford
(enviado especial do “Morning News”)

Teerã (setembro, 18) — Ao pôr do sol, as cúpulas


prateadas da refinaria de Abadan brilham
Inquietas. São enormes globos metálicos, ao lado
de cilindros descomunais, reluzentes,
acrescentando um novo mistério à cidade exótico.
O solo é o mesmo que, há quarenta anos
passados, sustentava raquíticos varais de
palhoças humildes, malcheirosas, habitadas pelos
taciturnos pescadores da aldeola. Hoje, Abadan é
uma das melhores cidades da Pérsia, e tudo se
deve ao fabuloso tesouro de seu chão: o petróleo.
Em outros tempos, os adoradores de Zoroastro
iam construir seus templos em cima dos
“respiradouros”. O gás saía à superfície por
meios aparentemente milagrosos, e assim
dispunham de uma fonte inesgotável para
alimentar seu “fogo sagrado”. Hoje, os ingleses
edificaram outros templos no lugar. São templos
de alumínio e aço, de prateadas esferas e
tubulações levantadas para o céu, num esforço
pagão: a Refinaria de Abadan, propriedade da
“Anglo-Iranian Oil Company”, para onde aflui
todo o ouro negro dos riquíssimos poços
iranianos. Lá, entre nuvens azuladas, entre roncos
de monstros mecânicos, o óleo cru se transforma
em dezenas de produtos refinados, que fazem
girar as rodas do planeta. Abadan! Á cobiça do
mundo! Um centro vital de energia! Ponto
estratégico, vizinho da União Soviética e no
limiar do Ocidente livre. Nos seus fantásticos
campos de petróleo fervilham setenta mil
trabalhadores persas, coordenados pelos ingleses,
que os ensinam a manipular os instrumentos da
civilização. O ardente sol do deserto cai sobre
este forte núcleo de progresso, como uma
advertência. As águas do Golfo Pérsico dormem
de uma banda; a planície interminável estende-se,
da outra. Abadan fica entre duas vastidões
solitárias, recordando os tempos em que d’Arcy,
inspirado pelas esbranquiçadas chamas de
Ormuzd (o deus do fogo da religião Mazda)
arrancava do subsolo as primeiras toneladas do
ouro negro. Hoje, diante do espanto dos humildes
persas, estas refinarias lançam, diàriamente, no
mercado ocidental, cerca de vinte milhões de
galões de petróleo! Constituem riqueza maior do
que a de todos os potentados do Oriente, dos
tempos românticos das mil e uma noites. Por
isso...

Brigitte foi interrompida pela voz jovial do piloto que se


acercava: — Alô! Desculpe se atrapalho...
— Pode se sentar — admitiu ela, fechando a pasta do
dossiê e sorrindo com toda a claridade azul de seus olhos
mediterrâneos.
— Não quero ser importuno — disse o piloto, fingindo
timidez. — Vim apenas saber se está sendo bem tratada, se
deseja alguma coisa de especial. Recebemos instruções da
Diretoria a seu respeito. É a mais bela passageira VIP que
temos a sorte de transportar!
— Ora, comandante! É um prazer tê-lo ao meu lado por
alguns instantes. Se o co-piloto é bom, não me preocupo.
— O avião voa sozinho — gracejou ele, completando a
frase com o lugar-comum de sempre; — Aliás, todos os
caminhos levam a Roma...
Riram-se e apresentaram-se. Comissários pressurosos
trouxeram o drink favorito de miss Montfort. “old
fashioned” com cereja fresca. O comandante explicou:
— Sou William Forster, com três mil horas de vôo, sem
jamais atropelar um anjo no meio das nuvens. Você é o
primeiro. Chame-me de Bill, por favor.
Brigitte respondeu, no mesmo tom:
— Sou jornalista há seis anos. Atropelada, muitas vezes,
por rapagões do seu tipo. Jamais tão delicadamente. Chame-
me de Brigitte Bardot, se quiser.
Houve a confraternização natural das pessoas
inteligentes (e experimentadas) nos encontros de
circunstância. A conversa brotou, espontânea, os
temperamentos foram reciprocamente sondados, e, ao fim
de cinco minutos, ambos já sabiam que na escala em Roma
haveria uma escapada noturna, sem maiores problemas
filosóficos...
O comandante teve de voltar à cabina, envolvido numa
dúvida brumosíssima. Aquela mulher seria uma experiência
fascinante, um mistério novo a desvendar! Mas, como? Se
tinha métodos inteiramente diversos, fora do seu alcance
ordinário de conquistador aéreo...
Brigitte, novamente entregue a si mesma (alerta da pelo
que observara), voltou à leitura atenta do artigo sobre
Abadan:
... várias potências internacionais espreitam,
àvidamente, estas terras de onde brotam as
maiores riquezas do mundo, e até contra o
Governo do Xá Reza Pahlevi chegaram a soprar
ventos agitados do exterior. No dia 16 de agosto
de 1953, depois de uma série de atos violentos
entre a Guarda Imperial e as forças populares,
obedientes ao Primeiro-Ministro Mohamed
Mossadeg, praticamente perdia o trono Sua
Majestade o Soberano Pahlevi, amigo dos
ingleses. Teve de exilar-se e todos os seus
supostos colaboradores foram presas.
Manifestantes extremados chegaram a pedir a
cabeça do Xá, acusa. do de inepto e traidor,
atrelado aos Interesses de Londres. Mas Sua
Majestade já se encontrava, então, bem seguro e
distante do Teerã. Enquanto isso, o Premier
Mossadeg fez-se dono absoluto da situação e
parecia apoiado firmemente pelo povo.
Sucederam-se os clássicos discursos patrióticos,
carros blindados desfilaram pelas ruas, foram
dados vivas e morras e proclamada a República,
com um Conselho de Regência. Mas a reviravolta
não tardou, O monarca persa, depois de uma
breve estada em Bagdá e Roma, voltou a Teerã,
onde o General Zahedi depusera o líder
nacionalista. E tudo se transformou, como num
passe de mágica oriental, O povo veio recebê-lo
triunfalmente nas ruas, exaltá-lo em comícios
disciplinados e exigir sua permanência à frente do
Governo. Serenamente, Sua Majestade recolheu-
se à segurança do seu “Palácio das Portas de
Ferro”, nas encostas das montanhas de Shimrack,
para daí dirigir, com firmeza, os destinos da velha
Pérsia legendária. O traidor Mossadeg seguiu o
destino de todos os nacionalistas extremados:
fugiu e, mais tarde, reconhecido, foi preso pela
polícia do General Zahedi, sendo encarcerado
por sua ousadia. E, em agosto de 1954, os
ingleses voltavam a explorar o petróleo do Irã,
pagando um excelente royalty ao Xá. Mas a luta
não estaria terminada. Os agitadores vermelhos
continuariam a açular as camadas
subdesenvolvidas da população, provocando
protestos contra os ingleses, agressões à
magnífica e progressista política ultramarina do
Reino Unido, atos de terrorismo contra as
dispendiosas Instalações da Anglo-Iranian..

Ia lendo, com atenção de repórter esclarecida, todos os


dados que seu redator-chefe Miky Grogan havia reunido no
precioso dossiê sobre a questão persa. Assuntos passados.
Episódios, já repetidos, da crônica ocidental. O novo
mistério apenas sugerido. A ela competia investigar. A ela
competia esclarecer o caso atual das sabotagens fantasmas.
Um mergulho na aventura... e no Oriente, terra de véus e de
segredos milenares. Terra dos Daevas, os fantasmas do
demônio Ahriman...
Ah! os fantasmas...
Brigitte recordou-se de suas passagens na infância. O
medo das almas do outro mundo, dos seres do terror.
Existiriam, de verdade, as vampiros, os morto-vivos, os
zumbis, as bruxas de vassoura, além da literatura e da
imaginação infantil? Seria normal admiti-lo? Ela fora
educada na escola do raciocínio puro, em um mundo novo,
de ciência e de técnica. Os fantasmas estavam banidos da
sua memória. Fantasmas eram, para Brigitte, os fenômenos
inexplicáveis da Antiguidade. Um simples choque elétrico
— pensava ela — experimentado por qualquer arqueiro das
legiões de Ciro, o Grande, na velha Babilônia, teria
significado bruxaria da mais terrível, arte do demônio! Mas,
agora, na era do jato e das viagens espaciais, a existência
dos fantasmas parecia-lhe um contra-senso. Era preciso
investigar. Gente sensata, gente moderna, gente da Polícia
da Pérsia de hoje havia declarado ter visto os fantasmas. E
fantasmas sabotadores. Seres estranhos, desfigurados,
repelentes, sem forma humana, manipulando bombas e
artefatos incendiários. Fantasmas à luz do dia. E agindo de
um só lado. Do lado político contrário aos interesses do Xá,
dos ingleses, do mundo livre. Dava para desconfiar!
Todos esses pensamentos tumultuavam a mente da
repórter, a três mil metros de altitude, num vôo
intercontinental. Seria ela também uma bruxa, cavalgando a
moderna vassoura mágica de quatro motores, acima das
nuvens? Ah! Os feitiços e os feiticeiros de todos os tempos!
Associações de idéias a se multiplicarem no seu veloz
pensamento de repórter. Em busca de um dado concreto, de
um ponto de partida para o raciocínio esclarecedor...
Afinal, o primeiro pouso, em Dacar, a porta escaldante
da África. No aeroporto, durante um autêntico refresco de
pitanga (fruta nativa), Brigitte pôde trocar palavras
amistosas com os outros companheiros de viagem, que lhe
cobiçavam a figura. Ficou cercada de cavalheiros gentis,
ouvindo frases sobre o calor e o tempo de vôo, as mesmas
que se pronunciam, eternamente, nos aeroportos tropicais de
escala. De longe, do balcão da Companhia, o comandante
Forster vigiava-a, preocupado. Ela sorria, com alma,
perturbando-lhe ainda mais o juízo. Seria uma temeridade
agitar os nervos do piloto, antes da decolagem. Mas Brigitte
amava o perigo. Uma feiticeira dos tempos modernos...
Além disso, sabia agora, coma certeza, que Bill Forster
usava uma pistola 45 escondida sob o braço esquerdo. Não
poderia deixar de fazê-lo despir a roupa (e descobrir quem
ele era, realmente) num hotelzinho discreto de Roma. O
prazer (e o dever) de uma espiã do século XX....

CAPITULO SEGUNDO
Noite romana
Na trilha da aventura
O coronel não acredita em fantasmas
Outro homem com uma 45 debaixo do braço

Mais seis horas de vôo e Roma surgia, vibrante, atingida


por uma luz profana. Seu rio Tibre de tantas histórias
violentas! Suas colinas sulcadas de passes de Césares! Seu
Coliseu belo e sinistro! O Quirinal! O Templo de Júpiter!
A etapa suave, antes do mistério denso de Teerã. Roma
por uma noite. Com bons prenúncios de Bill Forster e
vinho... Talvez uma canção... “Adormentarsi cosi”...
Do aeroporto de Fiumicino ao Hotel Excelsior, poucos
minutos no belo conversível Lincoln oferecido pelo
correspondente do seu jornal na Cidade Eterna.
Apartamento de luxo, como sempre. Chuveiro rápido e um
pouco de exercício, para manter a forma, tão importante em
sua carreira. Afinal, nua sobre a cama, num relaxamento
igual ao das melhores figuras da Renascença, ela pôs-se a
pensar:
“Como farei para fingir um encontro casual com Bill
Forster? Ou será que ele, armado com a 45, se encarregará
de tudo?”
Teria sido um desejo de Sherazade? Mal acabara de
formular o pensamento, ouviu o telefone tilintar.
Fez voz neutra, ao atender: — Sim?
Era mesmo o farejador emérito. Já descobrira seu
paradeiro e articulava o encontro; mas, cauteloso, como
quem vai à caça de narcejas ariscas... Brigitte deixou-o
armar todo um esquema tático de aproximação. Divertia-se
com o estudo e a comparação dos vários métodos de avanço
masculino. Ali estava mais um espécime, tentando o
romance a curto prazo... E com uma pistola debaixo do
braço.
Bill Forster encenava um ato de simpatia intelectual,
com toda a humildade:
— Escute, meu bem... Não estou bancando o lobo para
cima de você. Sinceramente, quero jantar, conversar, viver
uma noite ao seu lado, admirar a sua inteligência...
— Viver uma noite romana, ou simplesmente uma noite
em Roma, comigo?
— Ora, Brigitte! Não faça “blagues”! Quero estar ao seu
lado, do jeito que você quiser! Andar pelas ruas. Fazer o
roteiro comum da Via Venetto, ou ir a um restaurante
típico, longe do centro. Dite as condições e escolha o
programa. Mas não me deixe sozinho nesta cidade imensa!
Ela pensou um pouco, deixou que um silêncio
angustiante interrompesse a conversa e, afinal, decidiu-se
pelo óbvio:
— Bem, meu caro tenho pouco tempo para dormir... e
você também. Minhas obrigações são muito severas e
começam amanhã cedo. Se formos jantar fora e percorrer
lugares românticos, voltaremos muito cansados de
caminhar, muito saciados de pratos italianos, muito
entorpecidos de bebidas fortes, você não acha?
Bill Forster ouvia tudo, pálido de emoção, do outro lado
do fio. Brigitte prosseguia raciocinando:
— Assim, em nome da Lógica, venha até meu
apartamento, aqui no hotel, entre sem bater... pois o trinco
vai ficar aberto... e estabeleça o acaso do nosso encontro
com a maior brevidade possível. É provável que, afinal de
contas, tenhamos fome para jantar, e ânimo tranqüilo para
ver um pouco da noite romana lá fora.
O Comandante Forster jamais havia escutado, em toda a
sua vida de homem experiente, palavras de tão contundente
bom senso. Um milagre de concisão! Um exemplo de
espírito prático, diante da urgência do amor, na breve escala
da viagem, quando as regras tradicionais do jogo de negaças
femininas precisam ser racionalmente encurtadas. Ali estava
uma solução brilhante para o caso aparentemente difícil de
resolver. E tudo porque Brigitte estabelecia princípios
cartesianos para determinar sua norma de conduta em
situações especiais como aquela. Era, mesmo, uma situação
muito especial.
— Viva a Lógica! — gritou Bill Forster, do outro lado
do fio.
A porta do quarto foi deixada estratègicamente aberta,
conforme o combinado, e o ansioso Romeu aéreo não
demorou nem quinze minutos a chegar.
***
Ele acordou durante a noite e sentou-se
instantaneamente na cama. A forma nua e voluptuosa de
Brigitte estava inclinada sobre as suas roupas, que ele
atirara em cima de uma cadeira.
— Não se assuste — sussurrou a repórter. — Quis
apenas verificar seus papéis de identidade. Você usava uma
pistola debaixo do braço... e isso me deixou intrigada.
Agora, já sei que você é amigo do inspetor Pitzer.
O rapagão louro sorriu, sonolento.
— Eu ia lhe dizer, colega. Mas no tenho nenhuma
instrução para lhe dar. E também não sei quem será o seu
contato, no Irã.
— Você é do FBI? — quis saber Brigitte, voltando para
a cama.
— Não. Da CIA. Nossa agência também está interessada
nas sabotagens contra o petróleo de Abadan. Recebi ordens
para não perder você de vista e protegê-la, no caso de algum
contratempo, durante a viagem. Mas não sabia que você era
tão bonita e carinhosa... Vamos esquecer a política e voltar
ao amor?
— Boa idéia — aprovou Brigitte, aninhando-se, outra
vez, nos braços dele. — Eu me sinto mais protegida se você
me vigiar de perto...
***
O Comandante Forster foi-se embora às primeiras horas
da manhã. Não sem alguma preguiça, Brigitte levantou-se
(uma hora depois) para retomar a sua viagem, no rumo da
aventura. Afinal, a noite romana, bem vivida é
invariavelmente extenuante...
A próxima escala seria Bagdá, sem acontecimentos de
maior monta. Uma parada de meia hora, dois martinis no
bar do aeroporto, e novamente o vôo tranqüilo de céu azul
Três horas mais e Teerã surgiria no horizonte, com seu raro
colorido de ametista, seu ar de mistério envolvendo palácios
e mesquitas, suas velhas ruas de pedra, gastas pelas
passadas dos séculos...
A bordo, ainda com uma cadeira vaga a seu lado.
Brigitte recebeu nova visita cavalheiresca. Já no era o piloto
Bill Forster, mas um gentleman simpático, de olhar
brilhante e arguto, rosto afilado, expressivo, marcado de sol.
Tinha embarcado na capital do Iraque.
— Não quero incomodar, miss Montfort, mas creio que
uma estada de duas horas ao seu lado, nesta poltrona, me
faria um enorme bem à vista e ao espírito.
A jovem sorriu: — Como sabe o meu nome?
— Vi na lista de passageiros, em Bagdá. Sei que é
jornalista do “Morning News”, de Nova Iorque, com
destino a Teerã... o que é uma penal.
— Por quê?
— Porque Abadan seria mais sugestivo para o seu
trabalho...
Brigitte ficou alerta.
— O senhor será, por acaso, algum agente da polícia
iraniana?
— Não. Simples funcionário itinerante da Anglo-Iranian
Ou Company. Chamo-me John Delancey e não vou ficar em
Teerã. Devo seguir imediatamente para Abadan, a fim de
internar-me no hospital da companhia.
— Coisa grave?
— Nada. Pequeno transtorno traumático na perna direita.
Um acidente sofrido no Kuwait, a que não dei maior
importância. Agora, preciso tratar-me... mas não há de ser
por muito tempo. Gostaria de ser-lhe útil na Pérsia, miss
Montfort.
— Brigitte, por favor, Mr. Delancey.
— John, por favor, Brigitte.
E John Delancey foi mais eficiente que a pasta de
recortes. A repórter soube conduzir a palestra para os
assuntos que a interessavam, sem se incomodar com as duas
ou três investidas impertinentes do Comandante Bill
Forster, que não parava na cabina, nervoso, tentando
cortejá-la a despeito da presença do novo admirador.
Delancey era altamente informativo; Bill Forster, apenas
sedutor. Brigitte preferiu dedicar-se ao que lhe renderia
material para o noticiário. Descartou-se do homem da CIA e
fez charme para o funcionário da Anglo-Iranian:
— Diga, John... Estou interessadíssima na sua
conversa...
Delancey, todo sorridente, prosseguiu (não sem arriscar
um olhar aceso para as pernas esculturais, de sua notável
companheira de viagem):
— O ambiente, em Abadan, está muito perturbado. Atos
de sabotagem se sucedem, contra a Anglo-Iranian Oil
Company. E o curioso de tudo isso é que andam falando de
uma estranha legião de seres fantásticos, criaturas
disformes, do outro mundo, como sendo os autores desses
atos de terrorismo. Falam de uma força oculta, imensamente
poderosa, que os estaria comandando. Naturalmente,
ninguém de bom senso vai acreditar em fantasmas
sabotadores... mas esta é a velha Pérsia, onde a lenda se
mistura com a realidade. Abadan é uma cidade moderna,
com todos os atrativos que o dinheiro pode dar. Mas está
encravada neste país milenar, onde o mistério oriental ainda
persiste, apesar da bomba atômica o da televisão. A Polícia
Militar, criada especialmente para velar pela segurança da
Companhia, recebeu ordens de revolver a terra, em busca de
um personagem fantasioso, apelidado de Cafar. Dizem que
este “ser”, “bruxo”, ou “daeva”, conduz os monstros e é por
eles cegamente obedecido. Cafar é, na opinião do povo — e
da própria Polícia — uma criatura onipresente. Já foi visto
em dois lugares ao mesmo tempo e suas impressões digitais
foram colhidas num reduto vasculhado pelos soldados, mas
inexplicàvelmente encontrado vazio. As impressões digitais
são quadradas, inteiramente diferentes das impressões
normais dos seres humanos! É de deixar todo mundo
maluco!
Brigitte ouvia a narrativa de olhos fixos no rosto de seu
interlocutor. Ali estava o primeiro parágrafo de sua
reportagem! Sim, apenas o primeiro parágrafo, talvez a
primeira linha! Havia, decerto, ainda milito que investigar!
Ah! A velha Pérsia e os seus segredos! Um súbito Mr. John
Delancey, surgindo ao seu lado para atiçar-lhe a curiosidade
com um esboço da história, em pleno vôo, ainda antes de
pôr o pé em terra!
A voz, gentilmente inflexionada, da comissária de bordo
(através dos alto-falantes) veio como um sinal de alerta:
— Passageiros com destino a Teerã, queiram manter em
mãos seus passaportes e atestado de vacina! Aterrissaremos
dentro de 15 minutos! A temperatura local é de 28 graus
centígrados. Haverá condução da Companhia para os
principais hotéis do centro da cidade. Agradecemos a
preferência que nos dispensaram e esperamos encontrá-los,
brevemente, noutro vôo desta aeronave. Afivelem os cintos,
obedeçam ao aviso de “não fumar” e até breve!
Ali estava, afinal, Teerã, o ponto de partida da missão de
Brigitte Montfort! Um pouso tranqüilo, vinte minutos de
Alfândega, e eis a nossa heroína entregue ao mistério de
uma cidade quase to velha quanto a civilização.
Do Hotel Palace a jovem repórter saiu, minutos depois
de instalada, para a filial do New York City Bank, onde
recolheu mais mil dólares para a sua bolsa; em seguida,
tocou para os endereços escritos nas cartas de
recomendação que lhe preparara Miky Grogan.
Havia uma carta que a fez penetrar no inexpugnável
Palácio das Portas de Ferro, nas encostas de Shimrock. Sua
Majestade o Imperador Reza Pahlevi (descendente de sete
gerações de reis), o Xá, em pessoa, concedeu a Brigitte uma
entrevista de duas horas. Ninguém jamais pôde conhecer o
resultado dessa conversa (em sala reservada), mas a repórter
deixou o palácio com um sorriso nos lábios. Trazia na bolsa
determinado papel, com o selo de Sua Majestade, que lhe
serviria de salvo-conduto, de passe livre para qualquer lugar
do Irã. Uma ordem do próprio punho do soberano, para que
a repórter fosse recebida, como figura VIP, nos hotéis, nas
repartições do Estado, nos Ministérios e, até mesmo, nas
reservadas salas onde se tratam dos maiores negócios de
petróleo do mundo. Alguns maledicentes andaram dizendo
que o Xá se teria pronunciado, posteriormente, sobre os
encantos fora do comum de sua formosa visitante... Pura
intriga da oposição! O Xá é um verdadeiro gentleman.
***
Depois de uma noite reconfortante no seu apartamento
(refrigerado) do Hotel Palace, Brigitte partiu para a cidade
do petróleo, a moderna Abadan.
Vestida com um Chanel de oitocentos dólares, foi
diretamente ao Posto da Companhia, procurar o Coronel
Cadman, encarregado das investigações sobre as últimas
sabotagens e atos de terrorismo da refinaria. À entrada, o
tenente ajudante barrou-lhe a passagem, mas foi convencido
pelo precioso “passe livre” que Brigitte lhe exibiu, além de
um sorriso de 40 graus. O rapaz ficou vermelho como um
tomate.
— Perdão, miss, mas, mesmo dispondo desta ordem, terá
de esperar alguns instantes. Nosso comandante, o Coronel
Cadman, está tratando de um assunto urgentíssimo com o
Capitão O’Brien. E a coisa não está boa para o lado do
capitão...
De dentro do gabinete vinham gritos exasperados, que
pareciam pontilhar uma discussão violenta, O tenente, à
porta, nervoso, sem saber o que fazer para cumprir à risca a
ordem soberana assinada no ‘passe livre” da jornalista,
resolveu dar-lhe ingresso a um gabinete contíguo ao do
coronel. Com mesuras e monossílabos, indicou-lhe uma
poltrona e retirou-se, não sem antes garantir-lhe que o
coronel a receberia dentro de poucos minutos.
Vendo-se só, Brigitte procedeu como qualquer mulher
curiosa, ou como qualquer boa repSrter procederia:
encostou o Ouvido à porta, para escutar a discussão. O
diálogo áspero decorria nestes termos:
— Não sei, capitão, como diabo o senhor levou tanto
tempo para atender ao meu chamado! Onde estava metido,
seu imbecil?
— Meu coronel, antes de mais nada peço permissão para
eximir-me do qualificativo “imbecil”...
— Nego a permissão, seu imbecil! Onde estava metido?
— Só há poucos minutos recebi a sua ordem, meu
coronel.
— E de quantos minutos precisaria para vir ao meu
gabinete, seu...? Mas vamos ao caso, porque os meus
miolos já estão prestes a estourar! Estou revoltado com a
sua falta de iniciativa, Capitão O’Brien! Nossa corporação
foi enviada a Abadan para zelar pela segurança e pelos
interesses da Anglo-Iranian Oil Company que, de certa
forma, são os próprios interesses do Ocidente! Não lhe
tenho reiterado a importância desta missão? Contudo, nem o
senhor, nem os seus homens, fizeram qualquer esforço
visível para deter esta onda de sabotagens que vêm nos
atingindo! Afinal de contas, o que é que o senhor anda
fazendo, Capitão O’Brien?
— Tais assuntos secretos não podem ser debati...
— Estupidez, capitão! Estupidez, inércia, burrice!
Fizeram voar pelos ares os oleodutos de Haft -Kel
Afundaram o petroleiro “Cavalier”! Danificaram as bombas
de Masjid-Suleiman! E tanta coisa mais! Que fizeram
vocês?
Uma pausa. Brigitte de ouvido colado à porta, sem
perder palavra. Depois, a mesma voz do coronel:
— Saiba, Capitão O’Brien, que já são duzentos mortos,
fora os de hoje! Soldados, sentinelas, funcionários, que
perderam a vida no cumprimento do dever! E ainda tivemos
sorte com o fato do petroleiro “Cavalier” estar ancorado,
sem tripulantes a bordo! Já imaginou se a explosão fosse em
alto-mar?
Nova pausa, sem qualquer contestação do oficial
acusado.
— Veja este comunicado — prosseguiu o coronel. —
Acaba de chegar. Diz .que, em vista de próxima visita ao Irã
de uma missão econômica soviética, as investigações, daqui
por diante, serão entregues ao Intelligence Service.
Considero uma medida acertada, já que fracassamos... mas
que vergonha para nós! Em todo caso, como última
esperança, veja se consegue trazer-me um plano viável de
combate a esta horda de monstros, de capetas, sei lá do quê!
Não me venha dizer que acredita nas histórias dos nativos,
nos demônios da religião Mazda, nos Daevas, nas bruxas
Drujes, nos Yatus, nos Satars, nos Karapans... Não há
fantasmas que possam colocar bananas de dinamite em
oleodutos! Não há demônios que afundem petroleiros! Deve
ser gente de carne e osso, como todos nós! Investigue! Seja
homem! Faça alguma coisa!
Novo silêncio. Depois, outra vez a voz irada do coronel:
— Agora, veja isto! Repare neste papel azul, ensebado,
sujo, enrugado, com estas garatujas indecifráveis...
O capitão, afinal, falou:
— É uma mensagem... sobre os pontos em que foram
atingidos os soldados de Haft-Kel. Está assinada por um tal
de “Cafar”, que quer dizer “infiel”.
— Muito bem! Vejo que entende bem o idioma da terra.
Já é alguma coisa! Mas não é tudo! Este papel foi
encontrado no cadáver de um dos sabotadores, talvez um
chefe! Pode alcançar sua utilidade?
— Bem... Pode ser que, com isso, consigamos descobrir
o tal Cafar...
— Exatamente! Revire a Pérsia de pernas para o ar,
examine mesquitas, casas, lojas, mas descubra o paradeiro
deste criminoso! E não pense que ele seja, necessàriamente,
um persa, só porque escreveu a mensagem em persa! Pode
ser um estrangeiro hábil, mascarando-se de nativo, de
bruxo, de fantasma, para despistar! Pode retirar-se, capitão!
Veja se consegue provar que os nossos soldados não são
apenas imbecis de espingarda na mão! E o senhor, procure
livrar-se da pecha de incompetente!
Brigitte deixou que os passos do Capitão O’Brien
soassem afastados e abriu a porta do gabinete, dando de
cara com o afogueado Coronel Cadman. O tenente-ajudante
já vinha entrando, pelo outro lado, cheio de explicações. O
“passe-livre” foi novamente exibido e o coronel aquietou-
se.
— Queira sentar-se, miss Montfort... Sua presença é
uma festa para os meus olhos, cansados de olhar caras de
oficiais imbecis neste destacamento! Estou às suas ordens.
A repórter, já que tinha escutado o melhor do Outro lado
da porta, achou que o coronel nada mais teria de
interessante para lhe dizer. E resolveu entrar num bate-papo
informal de jornalista, aguardando o meio-dia e, certamente,
um convite para o almoço. Almoço de coronel sempre seria
melhor do que o de qualquer restaurante da cidade... Cruzou
as pernas no ponto exato onde a virtude desmaia, O
sazonado Coronel Cadman merecia uma folga daqueles
assuntos de dinamite, sabotagem, Cafar e O’Brien. O tema
da entrevista foi deliberadamente alterado para uma
conversa agradável, de ocidentais inteligentes. E o convite
não tardou. Almoçariam. Não como o agitado Coronel de
Lanceiros teria preferido, num “tête-à-tête” ameno, ela e ele
sem testemunhas; havia, já, um inevitável convidado, o
Comandante do petroleiro “Cavalier”, recém-afundado
pelos sabotadores. Foram três à mesa.
Brigitte gostou de conhecer o novo personagem,
Comandante Bernard Curtis, ainda jovem, louro espigado,
cara ingênua, mãos fortes de lobo do mar. Via-se, na sua
pele tostada, na sua postura elegante, que teria aproveitado
as rotas do petroleiro para desenvolver o físico, em
suarentas manhãs de ginástica, ao longo do tombadilho.
Houve boa conversa e bom vinho. Da palestra, Brigitte
deduziu que o coronel, na verdade, confiava quase nada em
seus homens; tampouco tinha qualquer pista concreta que
pudesse levar a alguma solução imediata dos casos dos
sabotadores fantasmas. Observou, ainda, que o louro
comandante do petroleiro pouco ou nada teria podido
adiantar sobre o sinistro; estivera ausente de bordo com
quase toda a tripulação desobrigada. Era curiosa a
coincidência: o petroleiro só fora pelos ares depois que seu
capitão se ausentara...
— Conheci, em viagem, um simpático funcionário da
Anglo-Iranian — disse a repórter, para animar a conversa.
— Embarcou em Bagdá. Não creio que o conheçam.
Chama-se John Delancey.
— Ora, miss Montfort! — exclamou o comandante
Curtis. — Conheço-o muitíssimo! Foi meu companheiro de
tripulação durante a guerra! Muito meu amigo!
— Que bom! Assim, já temos um amigo em comum!
Brigitte sorriu e completou:
— Vejam como o mundo é pequeno! John Delancey tem
qualquer coisa numa perna, um ferimento antigo. Disse-me
que viria internar-se no hospital da Companhia, aqui em
Abadan. Suponho que não seja nada grave.
— Seja como for — disse o comandante — iremos
visitá-lo! Tenho uma grande notícia para lhe dar!
Brigitte fez seu charme:
— Talvez nos encontremos no hospital, então. Estarei lá
às quatro horas. — Acentuou o sorriso sedutor e
acrescentou: — A propósito, comandante: O senhor
conhece o meu amigo Pitzer?
— Pitzer? — O louro pestanejou. — Não, miss
Montfort. Nunca ouvi esse nome. Tenho poucos amigos
norte-americanos.
Aquilo era estranho. O jovem comandante Bernard
Curtis (que estava à paisana) também tinha uma pistola
escondida debaixo do braço! Brigitte podia jurar que era um
45, igual à de Bill Forster, o homem da CIA.
CAPITULO TERCEIRO
Por que uma enfermeira estremece
Jantar com truta e desconfiança
Brigitte tem um palpite feliz

No hospital, de perna estirada, alheio a tudo o que não


fosse a sua bela e loura enfermeira, John Delancey
repousava. A tarde não estivera agradável. Mas havia o que
ver nas linhas do corpo de sua nurse, Virginia Seigel, um
anjo de abnegação e desvelo, saudável na sua bata branca,
generosa no arfar do busto firme, reconfortante no ondular
das ancas perfeitas. Uma enfermeira capaz de curar um
cardíaco! E ele doente da perna... Que azar!
Veio a hora do termômetro, e a conversa foi prolongada,
estratègicamente. John Delancey fazendo pose de mártir,
procurando despertar os instintos maternais da jovem. Ela,
maliciosa, enveredando por outros caminhos. Afinal, lhe
disse:
— Mr. Delancey, o senhor me mentiu! Meia hora atrás,
lamentou-se, dizendo que era sozinho no mundo, que
ninguém o visitaria aqui. Agora, fui informada de que há
alguém à sua procura, na portaria do hospital!
— Impossível!
— Então, vamos fazer uma aposta. O senhor me pagará
um belo jantar, no melhor restaurante da cidade, de alguém
aparecer aqui, dentro de dois minutos para visitá-lo! Certo?
Delancey não titubeou:
— Certíssimo! Mas não seria preciso uma aposta para
que eu a convidasse a jantar. Basta que me dê alta especial,
hoje a noite, e iremos comer uma truta azul, com vinho do
Reno, no “Treze Dinares”.
— Está combinado! Esta noite, às nove.
— Mas não sei o seu endereço!
— Não se preocupe. Vou chamar a sua visita, que espera
na portaria. Depois, verei se já pode fazer esforço com a
perna. Garanto que...
A jovem enfermeira mudou de expressão. A visita já
vinha vindo, sem pedir licença, entrando pelo quarto
adentro, surpreendendo a todos. Delancey pulou em pé,
como se tivesse ficado completamente bom.
— Brigitte Montfort! Mas é uma visão das “Mil e Uma
Noites”!
A estonteante repórter, sorrindo um sorriso azul, de
olhar azul, irresistível no seu vestido colante (Emilio Puci,
legítimo) ignorou os gestos da enfermeira e aproximou-se
da cama do feliz funcionário da Anglo-Iranian.
— Como vê, meu caro John, aceitei sua sugestão
Abadan, é, realmente, meu campo de experiências.
— Que alegria! — fez ele, já agora um tanto tímido, no
seu pijama branco de paciente. — Acredito que fará um
trabalho do maior interesse para o seu jornal. Mas... gostaria
de apresentar-lhe minha adorável “tirana”, miss Virginia
Seigel.
Houve uma saudação cortês, sem muito entusiasmo. E
Brigitte revelou:
— Ainda hoje conheci um amigo seu, meu caro John.
Coincidência agradável. O comandante do petroleiro
“Cavalier”, disse-me que vocês foram camaradas de guerra.
Almoçamos, ele e eu, com o coronel Cadman.
— Ah! Já sei! Bernard Curtis! Já está na cidade, então?
Um súbito estremecimento abalou, nesse instante, o
corpo de Virginia Seigel. A jovem enfermeira deixou cair o
termômetro. Brigitte e John notaram a sua estranha atitude.
— Que aconteceu, miss Seigel? — perguntou o rapaz.
— Oh, nada... — a moça se desculpou, nervosamente.
— Creio que estou cansada... Talvez precise de repousar um
pouco... Com licença.
Foi saindo, sem jeito. John acudiu:
— E o nosso jantar?
— Depende do senhor.
— Tudo certo! Não esqueça! Trutas e vinho do Reno!
A loura saiu. E Brigitte retomou o assunto interrompido:
— Pois seu amigo Curtia prometeu vir visitá-lo, ainda
hoje. Já soube que o navio dele foi afundado? Ele teve sorte
de não estar a bordo! A carga de dinamite dava para matar
um regimento!
— Quer dizer que a onda continua? E ninguém ainda
tem uma pista?
A repórter observou:
— Sua bonita enfermeira parece também conhecer o
Comandante Curtis... Não reparou? É estranho! Será que...?
Bem... você viu. Ela estremeceu quando falei em Bernard
Curtis.
— Fale baixo! Eu também notei. Há qualquer coisa no
ar! Já começo a ficar interessado. E, a propósito, tenho um
encontro com ela, para jantarmos esta noite. No quer vir
conosco?
— Não. Não iria estragar seu programa com essa bela
loura. Mas...
—Mas...?
— Acho que você deveria ir além do simples... idílio.
Deveria investigar: saber o motivo daquele estremecimento.
É muito suspeito.
— Ora! A garota é tão ingênua... tão boazinha! Você
tem alma de repórter; em tudo vê uma possível pista.
— Bem, é um palpite. Mas, agora, tenho de sair, voltar
ao hotel e escrever o meu primeiro despacho para o jornal.
Contarei detalhes sabre a sabotagem do petroleiro
“Cavalier”, desse seu amigo Curtis.
Nesse momento, deu entrada a segunda visita, Bernard
Curtis em pessoa.
— Ora vejam, quanta gente boa junta! — foi dizendo,
enquanto estendia a mão a Delancey, que já voltara para a
cama, mas estava longe de parecer um doente.
Brigitte cumprimentou-o com um aceno de cabeça,
enquanto John se iluminava em exclamações:
— Que satisfação! Jamais contava rever este Vicking
dos mares modernos! Não tinha ido à América do Sul?
— Não cheguei até lá. Despejei tudo em Marselha e
voltei. Antes não tivesse voltado! Perdi o navio... Já soube
da sabotagem?
— Brigitte acabou de me dizer. Uma pena! Mas, não há
mesmo nenhuma pista que nos leve a esses malditos
sabotadores?
— Nada! É um mistério! Ninguém sabe de coisa
alguma! Por enquanto, a única notícia agradável, nesta terra,
é a chegada de miss Montfort. Uma beleza de presença na
cidade!
— Ora, ora! — fez a repórter, evitando a seqüência de
elogios comuns. — Vocês, homens, são uns bobos! Não
podem ver mulher de perna bonita!
O Comandante Curtis interveio:
— Brilha quem pode, não adianta negar. Aliás, até
mesmo para um velho marinheiro como eu, recém casado
com uma garota adorável, sua presença é desnorteante.
— Você casou? — indagou John Delancey, curioso.
— Sim, meu velho. Pensava em conservar meu celibato,
como uma carta de alforria, mas encontrei Pat, um amor de
garota, e cá estou devidamente argolado.
Delancey acompanhou o sorriso de Brigitte e ajuntou:
— Há aqui, neste hospital, uma enfermeira muito loura e
bonita que anda pensando em me ferrar também com uma
argola no dedo... Mas, diante da beleza de Brigitte, recobro
os sentidos e desisto!
Sorriram. E nada disseram sobre o nome da enfermeira,
ficando acertado um almoço em família, para o dia seguinte,
quando iriam conhecer a jovem esposa de Bernard Curtis.
— Já que os médicos recomendam exercícios para a sua
perna — disse o comandante — não haverá problema se
tivermos de fazer uma pequena viagem. É que Pat está em
Lingahacha, com seus parentes, aguardando o meu regresso.
Com o problema da sabotagem do navio, fui obrigado a
ficar aqui hoje e amanhã. Mas, depois, irei vê-la, com
vocês. Combinado?
— Não seríamos importunos? — observou Brigitte.
— De modo algum! Pat gostará de conhecer meus
amigos... meu velho amigo e minha linda nova amiga. Terá
certo problema ao enfrentar a sua elegância... mas até é
bom, um contraste. Pat se julga imbatível... Brincadeira! Pat
é um amor de pequena, vocês verão!
— A mais bela mulher do mundo — sentenciou Brigitte
— é aquela que a imaginação do homem constrói, quando
ama!
— Além do mais, esta garota é uma fazedora de frases!
— concluiu John Delancey, vestindo o robe-de-chambre
que, até então, estivera abandonado aos pés da cama.
Acertaram o plano da viagem a Lingahacha para daí a
dois dias e despediram-se.
***
A bela jornalista voltou para o hotel, onde escreveu a sua
primeira reportagem, com cópia para o inspetor Pitzer, do
FBI. Mais tarde, por volta das oito horas da noite, desceu
para os aperitivos do jantar, no cocktail lounge. Ali estavam
as personalidades da terra, atraídas pela atmosfera
cosmopolita do bar. Brigitte fez sua entrada triunfal,
exibindo um vestido de gaze de Jean Desses, com os
drapeados geniais das estátuas gregas. Era uma obra-prima
de mármore. Todos os freqüentadores do cocktail lounge
voltaram os olhos para ela, num silêncio deslumbrado. De
um canto, à esquerda, surgiu o rubicundo Coronel Cadman,
perfilando-se à inglesa, para cumprimentar a ilustre
visitante.
— Boa-noite, miss Montfort... Por que não janta
Conosco? Seria uma honra e uma alegria para mim! Estou
naquela mesa, com alguns amigos. .. — O oficial britânico
tomava o braço da linda garota, envaidecido por conduzi-la
sob os olhares cobiçosos de tanta gente.
Brigitte sorria, feliz, enquanto se faziam as
apresentações. Gente importante do lugar, inclusive o
simpático engenheiro Henry Lovett, de vastos bigodes
bretões, que lhe fez a corte imediatamente. Era viúvo, rico e
sozinho no mundo. Sua filha, Alice, falecera alguns anos
antes (num desastre de automóvel) deixando-lhe funda
amargura. Parecia um bom partido. Mas não chegava a
entusiasmar uma deusa internacional, como Brigitte
Montfort.
Houve o jantar animado, com cinco fortes cavalheiros
em torno da admirável repórter. As conversas recaindo,
inevitàvelmente, sobre sua beleza e seus efeitos diretos no
espírito daquela noite. O ajudante de ordens do Coronel
Cadman (um latagão de quase dois metros de altura) tirou a
jovem para a primeira dança, precipitando os
acontecimentos. O próprio coronel, logo em seguida,
animou-se e bailou, entusiasticamente, tecendo elogios
diretos à leveza de seu par. Brigitte juntou o rosto ao do
velho lanceiro e permitiu que ele se envaidecesse um pouco
do seu próprio charme de cavalheiro. Foi uma noite
memorável, a daqueles cinco cavalheiros solitários. O
coronel, principalmente, sentiu-se um ousado capitão...
Enquanto isso, longe dali, ocorria outro jantar mais
íntimo. Abadan é uma cidade inglesa, encravada na Pérsia
milenarmente muçulmana. As preces a Alá se misturam, em
alguns de seus bairros, com o ruído dos telex, transmitindo
as últimas cotações da Bolsa de Nova Iorque. Ao lado das
refinarias imensas, templos da seita de Maomé projetam os
seus minaretes contra o céu imenso.
A noite encontrou Virginia Seigel e John Delancey
unidos no assento dianteiro de um velho Oldsmobile,
trafegando pelas ruas bem asfaltadas, a caminho do
restaurante “Treze Dinares”, recanto grã-fino da zona sul. A
moça não conversava muito. Dava a impressão de estar
vivendo um súbito drama íntimo. Isso deixava John
Delancey profundamente intrigado.
O “Treze Dinares”, num pequeno edifício de dois
andares, é um recanto de bom gosto, freqüentado por
oficiais ingleses, altos funcionários da Companhia de
Petróleo e eventuais turistas. John e Virginia ali chegaram
discretamente, serviram-se da admirável truta azul com
vinho Traminer (sem muita animação) e retiraram-se cedo.
Delancey dirigiu o carro pela orla do Grande Golfo e,
afinal, quebrou o silêncio:
— Há quanto tempo você conhece Bernard Curtis?
Foi encostando ao meio-fio, à espera da resposta. A
loura fingiu-se admirada:
— Por que supõe que eu o conheça?
— Ora, Virginia! Você não pode me enganar! Conte
logo tudo, vamos!
Ela escondeu o rosto entre as mãos, soluçando.
— É horrível! Horrível! — conseguiu, afinal, dizer.
Delancey insistiu, cauteloso:
— Não entendo! O que é horrível?
A enfermeira estava visivelmente transtornada, indagou:
— Você falou a ele a meu respeito? Diga! Falou?
— Não. Não pronunciamos o seu nome.
A loura dominou-se. Enxugou as lágrimas e articulou:
— Agradeço-lhe a discrição. Você foi prudente e fez
bem. Se falasse a Bernard... — Voltou a comover-se. —
Oh! Por que havia de acontecer isto? Por quê?
Delancey impacientou-se:
— Ora, vamos! Que aconteceu? Onde está a gravidade
do caso?
Virginia olhou para ele, surpresa.
— Você não chegou a conhecer Pat Michell, a mulher de
Curtis?
Delancey não esperava ouvir aquele nome.
— Jamais a vi — assegurou. — Mas Bernard me falou
sobre ela, esta tarde.
— E nada lhe disse sobre Sarah Barrow?
— Não. Quem é Sarah Barrow?
A enfermeira suspirou, angustiada.
— Creio que você é, realmente, um bom amigo de
Bernard. Tudo faria para ajudá-lo, não é mesmo? Sim,
mas... Agora, é tarde! Muito tarde! Sarah Barrow já
conseguiu o que queria!
John Delancey exasperou-se:
— Agora, moça, faça o favor de falar claramente! Nada
de mistérios e choros! Não entendi bulhufas, até agora, e
quero saber de que se trata! Quem é Sarah Barrow?
Virgínia procurou as palavras e, afinal, murmurou:
— Pat e Bernard nunca mais se encontrarão!
O rapaz explodiu:
— Que diz você, criatura?! Está ficando maluca?! Por
que não iriam se encontrar?
— Pat está morta!
Ao dizer isto, Virginia baixou a vista. Delancey ficou
um minuto em silêncio. Depois, perguntou com voz rouca:
— Quando foi que ela morreu?
— Faz duas semanas.
—De quê?
— Síncope cardíaca.
— E você, onde estava?
— Na casa dela, em Lingahacha, passando uns dias.
Éramos boas amigas. Mas nada pude fazer! Nada!
John Delancey percebeu estranha inflexão nas palavras
da enfermeira. Como se ela, por último, falasse
maquinalmente, tentando ocultar alguma coisa. Resolveu
insistir:
— Por que mencionou o nome de Sarah Barrow?
— Bem... Queria saber se você conhecia o passado de
Bernard.
— Que tem a ver essa mulher com a morte de Pat?
— Nada, absolutamente! Nenhuma relação! Pat morreu,
eis tudo.
— Você não parece segura do que afirma — insistiu
Delancey, com voz pausada. — Não alcanço o motivo por
que me oculta alguma coisa, possivelmente grave! Só quero
ajudar meu amigo, e a você também, se for o caso. Esta
tarde ele me disse que ia a Lingahacha, rever a esposa.
— Não a encontrará, John! Nunca mais! Acredite-me!
Pat está morta!
Delancey alongou a vista para as águas do Golfo
Pérsico, agora prateadas pela lua. Queria fugir à tristeza que
sua companheira lhe anunciava, febril- mente. Não se podia
conformar. A verdade era Outra. E insistiu:
— Você ainda vai me dizer tudo o que esconde,
Virginia! Muito mais cedo do que imagina!
Nesse momento, um velho Chevrolet preto passou
lentamente por eles, conduzindo dois árabes, vestidos com
albornozes azuis; os homens olhavam ardentemente para o
Oldsmobile e seus ocupantes. Virginia fitou Delancey com
imensa tristeza no olhar. E pediu com voz cansada:
— Leve-me para casa, John. É muito tarde... e já não lhe
posso dar qualquer alegria. Você não imagina o quanto
estou me arriscando, ao falar com você!
***
Preocupado, cheio de pensamentos desconexos sobre os
fatos que se precipitavam à sua volta (e ainda sentindo
algumas dores na perna acidentada) John Delancey
regressou ao hospital. Antes de jogar-se no leito, pediu uma
ligação telefônica (urgente) com o hotel onde se hospedava
Brigitte.
Era, então, uma hora da madrugada. Após o agradável
jantar, a repórter já sé encontrava no seu quarto, lendo um
jornal. Nenhuma notícia alarmante; apenas um comentário,
anunciando a visita de Sua Majestade, o Xá, a Lingahacha
na tarde do dia seguinte. A chegada a Teerã, da missão
econômica soviética estava marcada para daí a três dias.
Nisso o telefone tocou. Brigitte largou o jornal e
atendeu. Era a voz excitada de John Delancey, com as
informações sobre Virginia Seigel.
— Como?! — exclamou Brigitte, surpresa. — A mulher
do Comandante Curtis está morta?
— Foi o que me disse a enfermeira — esganiçou-se
Delancey, através do fio. — Também estou preocupado
com as suas alusões a essa misteriosa Sarah Barrow! Agora,
preciso que você me faça um grande favor, Brigitte. Não sei
até que ponto esta confusão poderá interessá-la, como
assunto jornalístico, mas seria fundamental conseguir a
verdade verdadeira de Virginia Seigel! Fazê-la falar! Talvez
você, como mulher — e mulher inteligente — consiga isto
melhor do que eu. Poderíamos, assim, esclarecer o assunto
para o pobre Bernard.
A repórter concordou.
— Fique tranqüilo, John. Irei visitá-lo, amanhã de
manhã, às nove horas. Veremos se sua misteriosa
enfermeira me atende melhor. Estudarei uma maneira hábil
de fazê-la falar. Tenho um palpite feliz, sabe? Acho que a
sua loura me levará aos terroristas que sabotaram a refinaria
e destruíram o petroleiro “Cavalier”!
E desligou maciamente, deixando John Delancey de
boca aberta, com o fone na mão.
CAPITULO QUARTO
Sentido de tragédia
Onde estará a enfermeira loura?
Dois bilhetes de Cafar — Os árabes de albornoz azul

Pontualmente as nove, no dia seguinte, Brigitte


empurrava a porta do quarto de John Delancey, no hospital
da Anglo-Iranian. O rapaz estava já bem desperto, lendo
jornais.
— Muito obrigado por ter vindo — disse à guisa de
saudação. — Mas Virginia Seigel não compareceu hoje ao
trabalho. Informei-me na portaria. Ela até conseguiu licença
para repouso. Não está em casa, nem seu telefone responde.
Brigitte ampliou seu grande olhar azul, numa expressão
de assombro. E concluiu:
— Estamos, então, diante de um mistério profundo! A
coisa começa a me interessar... E Bernard Curtis? Já foi
avisado?
— Infelizmente, creio que ainda não sabe de nada. Sou,
talvez, seu único amigo nestas bandas; terei de dar-lhe a
notícia.
Brigitte meditou alguns instantes e prosseguiu, já dentro
de um raciocínio mais frio:
— Temos de perguntar a Bernard alguma coisa sobre
essa tal Sarah Barrow, mencionada pela enfermeira. Seria
uma boa pista, você sabe.
Nesse momento, chegou Bernard Curtis, risonho e
tranqüilo. Saudou a jovem repórter com os elogios de
sempre e foi dando explicações sobre o serviço:
— Quase não pude chegar aqui! O Coronel Cadman
acordou, hoje, com toda a corda e, apesar de haver chegado
à Refinaria com meia hora de atraso — fato inédito na sua
vida de militar — apareceu bem-humorado, querendo
conversa com todo mundo, fazendo questão de dizer que
passara uma noite maravilhosa. Pegou-me para um “papo”
demoradíssimo e quase não me solta. Creio que passou,
mesmo, uma noite de general.
— Eu faço idéia — comentou Brigitte.
Curtis prosseguiu discorrendo sobre os problemas do seu
serviço, resultantes do afundamento do petroleiro:
— Estão dizendo que a sabotagem foi planejada por um
tal de Cafar. E o nosso robusto coronel insiste em não
querer admitir a versão dos nativos, de que Cafar é um
daeva, um demônio a serviço de Ahriman, o gênio do mal,
O coronel acha que Cafar é tão de carne e osso quanto
qualquer oficial inglês, embora — diz ele — alguns oficiais
do seu regimento insistam em parecer tão tapados como
uma porta. É uma indireta contra o Capitão O’Brien... Eu,
por mim, já nem sei o que pensar! Estou louco para que esse
inquérito termine e eu possa ir a Lingahacha, para rever a
minha mulher! Conto com vocês, amanhã, conforme
prometeram. Vamos fazer uma bela surpresa a Pat!
John e Brigitte entreolharam-se, sérios.
— Há quanto tempo você está casado? — perguntou a
repórter.
— Há seis meses, precisamente — respondeu Curtis,
sorrindo. — Mas nem conto seis meses, pois passei quatro
em viagem. Da última vez que estivemos juntos, foi por
algumas horas. Mas espero, desta feita, ficar meio ano por
aqui!
Neste ponto, John Delancey resolveu atacar o assunto,
com habilidade:
— Creio que você conhece minha enfermeira Virginia
Seigel... não?
— Conheço demais! — exclamou Curtis. — a melhor
amiga de Pat! Não sabia que vocês... Onde está ela? Deve
ter notícias lá de casa!
Delancey informou:
— Não veio hoje, Bernard. Está de licença. — E, com
voz resoluta: — Você não admitiria, por acaso, que, na sua
ausência, pudesse ter havido algo desagradável com Pat?
O comandante titubeou:
— Ora, John! Por que seríamos tão pessimistas? Por que
isso, agora? Acho que ela deve estar bem, mas... Será que
Virginia lhe contou alguma coisa má? Fale! Explique-se!
Brigitte saiu em auxílio de John:
— Curtis, você deve preparar-se para uma surpresa
desagradável.
O comandante levantou-se, sobressaltado.
— Por favor! Digam depressa! Que houve?
John Delancey pigarreou e foi falando, sem ter coragem
de fitar os olhos do amigo:
— Bem... até aqui, sabemos o que me disse Virginia
Seigel... ontem, quando jantamos juntos. Virginia falou-me
de Pat. Você não calcula, Bernard, quanto me custa... Bem,
ela me disse que Pat está morta!
Curtis ficou lívido. Fez um esgar estranho e explodiu:
— Morta? Como? Pat está morta? Mentira! Vocês estão
loucos! Meu Deus! Como poderia Pat estar morta? Como?
John, com voz pausada, explicou:
— Virginia não me deu outros detalhes. Disse, apenas
que sua esposa faleceu, há algum tempo, de um ataque
cardíaco. É só.
Bernard abateu-se na poltrona, com o rosto entre as
mãos. Afinal, depois de alguns segundos de silêncio, John
resolveu perguntar:
— Quem é Sarah Barrow?
Ao ouvir este nome, Curtis pareceu transfigurar-se.
Ergueu-se bruscamente, os olhos faiscantes.
— Quem lhe falou em Sarah Barrow?
John, ainda calmo, completou:
— Virginia me perguntou se você me dissera algo sobre
essa mulher. Nada mais. Não me quis explicar coisa
alguma.
Bernard Curtis, sem outra palavra, abriu a porta do
quarto e saiu correndo, como um alucinado.
Brigitte, sem perder a calma, sugeriu ao outro rapaz:
— Vamos à casa da “sua” Virginia, John. Creio que, já,
conseguiremos alguma coisa.
— Boa idéia — aprovou Delancey. — Só que não a
considero, de modo algum “minha”! E, agora, muito
menos!
Saíram, apressados, John esforçando-se para caminhar o
melhor que podia, com a perna dolorida.
***
Na casa de Virgínia, uma senhora idosa, grandalhona,
muito pintada, veio atender à porta. O prédio era pequeno,
baixo e quadrado, e tinha um jardim nos fundos.
— Miss Seigel saiu — informou a mulher, numa voz de
cocotte aposentada.
— Sabe para onde ela foi? — indagou Brigitte.
— Infelizmente, não. Saiu sem me comunicar nada.
Querem deixar recado?
John interveio, enérgico:
— Escute aqui, minha senhora! Precisamos falar com
Virginia, pessoalmente! É da maior urgência! Miss
Montfort e eu somos amigos dela!
— Queiram entrar, por favor. Acomodem-se aqui...
Desculpem a desordem. Acabei de chegar da rua e não tive
tempo de arrumar nada. Esperem um pouco. Já volto.
John e Brigitte aguardaram o tempo de um cigarro, na
sala de visitas. A velhota reapareceu, de vestido trocado,
com um envelope na mão.
— O senhor, por acaso, se chama — leu o nome, na
carta — ... John Delancey?
— Isso mesmo — concordou o rapaz, pressuroso.
A carta foi entregue, aberta e lida por John e Brigitte.
Dizia:
John: Bernard sabe de tudo. Sei que você é amigo
dele e procurará ajudá-lo. De minha parte,
também farei o que puder. Precisamos impedi-la
de chegar a Lingahacha. Lá, ele seria
assassinado. Se você puder ir antes de mim,
procure a mulher chamada Sarah Barrow e veja
se consegue impedi-la de matar Bernard. Sarah
Barrow está louca!
Até breve.
Virginia.
P.S. — Hospede-se no Hotel Sadrabad. É para lá
que eu sempre vou.

A velha senhora grandalhona, defronte de Brigitte e John


que liam nervosamente a carta, aguardava uma explicação.
O rapaz fabricou sua desculpa, para não ter que entrar em
detalhes:
— Virginia teve que ausentar-se, com urgência. Saiu de
Abadan e deve demorar-se.
— Bem me parecia — comentou a mulher. — Não me
disse nada. E ela não costuma sair assim! Minha empregada
falou que estiveram aqui dois árabes, de albornoz azul, à
procura dela. Deve ter havido alguma desgraça!
Brigitte interveio:
— Quero pedir-lhe um favor, minha senhora. Deixe-me
entrar no quarto de Virginia. Já que ela vai demorar, preciso
ver se deixou uma encomenda para mim.
— Lamento muito — retrucou a mulher, fechando a
cara. — Virginia me pediu, diversas vezes, que não
deixasse ninguém entrar no seu quarto! E ela levou a chave
da porta.
— De qualquer maneira, obrigada — sorriu Brigitte. —
Voltarei noutra ocasião.
Essa ocasião não tardou. Logo que se despediram da
mulher e cruzaram a calçada, a linda repórter sussurrou para
o seu companheiro:
— Espere-me na esquina, John. Se eu não voltar dentro
de dez minutos, avise a polícia. Vou dar uma espiada no
quarto de Virginia!
Delancey acenou, suspirando. Ela regressou à casa da
enfermeira (cuja porta e janela da frente estavam fechadas)
e deu volta ao prédio, até encontrar a janela do quarto dos
fundos. Espiou pela vidraça e comprovou que era uma
alcova feminina. Com gestos rápidos e silenciosos, tirou um
arame da bolsa e enfiou-o por um interstício da janela,
pescando o trinco, pelo lado de dentro. Em poucos
segundos a vidraça estava aberta. Saltou por cima do
peitoril e deixou-se cair, maciamente, no assoalho do
quarto. Não se ouvia nenhum som, em toda a casa. A jovem
repórter, trabalhando com perícia de verdadeira agente
secreta, revolveu, em minutos, todos os pertences de
Virginia, sem fazer barulho. Encontrou papéis sem
importância, pequenas jóias baratas, talões de cheques,
cápsulas vazias de remédios e algumas fotografias. Entre
estas, uma onde aparecia Bernard, com uma bela jovem, de
mãos dadas. Seria Pat, sem dúvida. E outra, de outra mulher
bonita, esta ainda mais expressiva, cabelos pretos, rosto
excessivamente maquilado, olhar cintilante. Do lado, uma
dedicatória: “Á minha querida amiga Virginia, Sarah.”
Guardou as duas fotos na bolsa e olhou, mais uma vez, ao
redor. Esquecera de examinar uma gavetinha do armário.
Ali, encontrou mais papéis e um bilhete, amarrotado, que
lhe deu o que pensar. Dizia:
Anexo, o cheque, 5 mil dólares combinado.
Continue mantendo contato com Sarah.
Cafar.
Também guardou o bilhete na bolsa, arrumou tudo
ràpidamente (o melhor que pôde) e voltou a sair pela janela.

E, para sua grande surpresa, caiu nos braços de dois árabes


musculosos, vestidos com albornozes azuis! Eles já deviam
estar ali há algum tempo, esperando a sua saída.
— Quietinha! — rosnou o mais forte. — Você não pode
escapar! Depois trataremos do outro, que está esperando na
esquina!
Brigitte deixou que ele a segurasse firme, pelas costas;
em seguida, usando-o como ponto de apoio, ergueu as duas
pernas e atingiu o segundo agressor com um pontapé duplo,
que lhe destroncou o maxilar. O homem caiu de costas, na
grama, e ficou imóvel. Imediatamente, o segundo árabe
meteu a mão num bolso interno do albornoz, à procura de
uma arma. Brigitte aproveitou a circunstância de estar sendo
agarrada apenas por uma das mãos do captor, e
desvencilhou-se, com uma quebra de corpo, batendo-lhe
com a bolsa na cara. O árabe grunhiu e recuou, exibindo um
punhal na mão direita. Mas a repórter não lhe deu trégua,
agredindo-o outra vez com o bolsa. Pam... pam... pam...
Cada pancada fazia um lanho, na bochecha do árabe. Cego
de dor, ele cortou o espaço (com o punhal) em várias
direções, sem alcançar a sua ágil antagonista. Brigitte saltou
para um lado, uniu os dedos da mo direita e descarregou
uma terrível cutilada de caratê na nuca do adversário,
fazendo-o cambalear.
— Mal-hun! — grasnou o árabe, segurando-a por um
braço.
— Tarak — respondeu a garota, ordenando-lhe que a
largasse.
E aplicou-lhe outra cutilada na testa, sobre os olhos. O
homem gemeu e caiu de costas, largando o punhal. Mas
ainda não tinha perdido os sentidos. Brigitte deu-lhe um
tremendo pontapé na cara, fazendo o sangue espirrar de seu
nariz aquilino. Aí, sim, o árabe entortou os olhos e
desmaiou.
A valente repórter revistou os albornozes dos inimigos
desacordados, mas não encontrou nenhum documento de
identidade. Apenas outro bilhete, escrito com os mesmos
garranchos do primeiro:
Vigiem Virginia Seigel. Ela não pode falar.
Cafar

Brigitte guardou o novo bilhete na bolsa e voltou,


correndo, para a esquina da rua, onde John Delancey
continuava à sua espera.
— Que aconteceu? — perguntou o rapaz, apreensivo. —
Você está bem? Tem o casaco rasgado!
— Nada de grave. Tive que me descartar de dois
“campanas”, pertencentes ao bando de Cafar. Esses não
eram fantasmas... Eu não lhe disse que a “sua” enfermeira
poderia me pôr na pista certa? Agora, quero que você me
faça um favor.
— Até dois — disse o rapaz, pálido e contrariado.
— Quando nos separarmos, telefone para a polícia e
avise que há dois ladrões, adormecidos, no quintal da casa
de Virginia. Pode ser que as autoridades iranianas consigam
fazê-los falar. Mas acho difícil. Eles me parecem muito bem
organizados.
— Vamos indo — disse John, apreensivo. — Vejo que
uma repórter tem muito de detetive...
Seguiram ao longo da rua deserta.
— Uma coisa puxa outra — concluiu Brigitte.
— Quanto a mim, vejo que estamos de partida para
Lingahacha, não é mesmo?
— Certo. Não há outra coisa a fazer, no momento. Mas
juro que não esperava tê-la por companheira nesta viagem,
que se prenuncia um tanto perigosa. Você é bonita demais
para morrer por acaso...
— Ora, meu caro! Uma jornalista, como eu, só começa a
se entusiasmar na vizinhança do perigo. Afinal de contas,
em qualquer parte do mundo onde haja homens, uma
mulher bonita está em perigo... não acha?
— Nem tanto. Toda mulher é um “querer que venha”,
enquanto que o homem é um “querer ir”... As precipitações
são naturais. Não vejo maiores perigos na experiência.
Brigitte sorriu, altiva, e respondeu:
— Você finge que não me entende, mas é melhor assim.
Vamos ao nosso assunto: Virginia Seigel e Sarah Barrow.
Veja as fotos que encontrei no quarto da loura. São,
naturalmente, de Pat e Bernard, em lua-de-mel, e de Sarah
Barrow, com dedicatória, O rosto de Sarah é uma máscara
de pintura abstrata.
— Por que teria de ser Sarah, necessàriamente, uma
criminosa? — perguntou John, como se o fizesse a si
mesmo.
— Por que teria de ser sempre o crime um assunto
interessante? — murmurou Brigitte. — Até mesmo para as
mulheres bonitas...
Despediram-se pouco adiante e, enquanto Delancey
entrava numa delegacia de polícia, Brigitte continuava o
caminho, à procura de um táxi. Estava ansiosa por tomar
um banho morno e perfumado.

CAPITULO QUINTO
Mais um bilhete de Calar
Um empregado curioso
O antro dos viciados
A aventura do Comandante Curtis

Delancey deixou a sua queixa registrada, na delegacia de


polícia, e voltou ao hospital, enquanto Brigitte tomava
banho no hotel. Antes de se separarem, tinham combinado
novo encontro, quando acertariam os detalhes da viagem a
Lingahacha, ou qualquer outra providência referente à sorte
de Bernard Curtis.
Delancey telefonou a uma agência de automóveis e
conseguiu alugar um Austin capaz de vencer a estrada
lamacenta que separa Abadan de Lingahacha. Tinha
intenções muito definidas. Achava, porém que, antes de
empreender a viagem, deveria visitar o endereço de Curtis,
ali em Abadan.
Brigitte, outra vez só, no hotel, fazia conjeturas. Pensava
no bilhete da enfermeira Virginia Seigel, a possível relação
de tudo aquilo com a saída abrupta de Bernard Curtis do
quarto de John, no hospital, e a menção a Sarah Barrow,
que estaria interessada em eliminar o comandante. Tudo
muito confuso ainda. A ameaça contra Bernard Curtis teria
algo a ver com os atentados terroristas? E por que os
sabotadores agiam justamente nas vésperas da chegada, ao
Irã, de uma missão econômica soviética?
Nisso, o telefone tocou. Era a voz alegre do piloto Bill
Forster, o homem da CIA:
— Alô? Brigitte? Seu contato, em Lingahacha, é um
persa, que lhe falará de passarinhos. Você pode lhe entregar
seus relatórios, para o amigo Pitzer. Felicidades, tesouro!
Estou voltando para Roma!
A repórter desligou, pensativa. Então, a CIA já estava na
jogada? Isso a decidiu: iria sozinha a Lingahacha!
Por coincidência, noutra parte da cidade, John Delancey
teve a mesma idéia. Antes de partir, porém, informou-se
sobre a pousada de Curtis, em Abadan, e foi até lá. O
bangalô do Comandante estava deserto. Nem um criado
para atender ao chamado da campainha. Intrigado, John
resolveu forçar uma das janelas o penetrar no interior da
casa. Assim fez, cautelosamente. Revistou todos os
aposentos, sem notar nada de anormal. Já ia saindo, quando
seu olhar foi atraído por um cartão, atirado sobre a pequena
mesa de trabalho. Destacava-se entre outros papéis, até
porque estava rabiscado no estranho idioma persa. John
traduziu, admirado:
Encontro normal, no lugar do costume
Cafar

Um impacto violento nos seus nervos! Que espécie de


ligações poderia existir entre o misterioso Cafar e seu amigo
Bernardo Curtis? Não se demorou muito fazendo
conjeturas. Saiu da casa (como entrara) e arrancou, no seu
Austin alugado, rumo a Lingahacha.
***
O Irã (a Pérsia moderna) é cheio de contrastes. Nem todo o
ouro negro, refinado nas engrenagens caríssimas de
Abadan, consegue acelerar o progresso de certas regiões
vizinhas das cidades mais ricas. Assim, o sistema de
comunicações é precário. As rodovias são pobres e estreitas.
Uma velha e obsoleta estrada de ferro (construída no tempo
dos avós do Xá) atravessa o país desde Sari, no Mar Cáspio,
até o Golfo Pérsico. Fora do seu traçado, nada mais existe
de bom. Precárias estradas carroçáveis, aqui e ali, são as
únicas vias de acesso transitáveis por automóveis
resistentes, de carroçaria alta.
Brigitte Montfort fora informada destas dificuldades,
graças ao oportuno dossiê sobre a Pérsia que lhe preparara
Miky Grogan. Assim, com vistas a economizar etapas,
telefonou a um oficial (ajudante do Coronel Cadman) falou-
lhe sobre seu “passe livre”, assinado pelo monarca, e obteve
um jipe, com chofer, para levá-la a Lingahacha. Afinal, para
alguma coisa valia o seu documento de VIP...
A viagem se fez sem maiores problemas. No fim de três
horas, depois de passarem em frente a uma curiosa casa de
azulejos azuis e brancos, avistavam o exótico povoado, com
suas mesquitas negras envolvendo a silhueta moderna de
alguns edifícios recém construídos. Ainda com o
pensamento fixo no bilhete de Virginia Seigel, Brigitte
escolheu o Hotel Sadrabad para hospedar-se. Na portaria,
soube que a enfermeira tinha, realmente, chegado de
Abadan, e ocupava o quarto n.° 30. Ligou para lá, mas
ninguém respondeu; a loura devia ter saído. A repórter
instalou-se numa suíte do último andar e resolveu meter-se
num banho reconfortante. Ah, o calor do Irá, sua umidade
opressiva!
Abriu as imensas janelas, de frente para o golfo, e
deixou que o vento do generoso Pérsico lhe acariciasse o
corpo livre, desnudo e puro como o das estátuas. Sorria para
si mesma, executava passos de balé dentro do quarto,
observava os próprios seios firmes, trepidando com sua
ginástica rítmica improvisada. Seria uma sílfide moderna,
com um pouco de twist no bamboleio das ancas perfeitas...
De repente, seus olhos caíram sobre determinado ponto
escuro, na porta de entrada. Que seria aquilo? Simples
mancha na pintura? Uma falha na superfície da madeira?
No segundo exame, pôde perceber que se tratava de um
pequeno orifício, possivelmente usado pelos maliciosos
funcionários do hotel. E ela, ali, naquele instante, estaria
sendo observada? Toda nua, como se tinha posto, era um
espetáculo digno de qualquer gerente!
Teve uma idéia engraçada. Correu até a porta e abriu-a
de supetão. As suspeitas se confirmaram: um jovem nativo,
com o uniforme de empregado do hotel, projetou-se, de
cabeça, para dentro do quarto. Ao recuperar o equilíbrio,
ainda encabuladíssimo, o rapaz viu Brigitte à sua frente,
despida, maravilhosa, as mãos nos quadris, sorrindo do
episódio houve um minuto de perplexidade e, logo, a voz
musical de Brigitte, concertando o vexame:
— O orifício da porta é muito pequeno... Você não teria
conseguido me ver assim, de corpo inteiro, não é mesmo?
— a fazia uma pose torturantemente bela, diante do
abobalhado iraniano. Ele esbugalhava os olhos famintos,
crispando as mãos, sem saber o que fazer. Brigitte
prosseguiu:
— Por favor, acalme-se, menino! Afinal de contas, ver
uma mulher nua, de vez em quando, não faz mal a
ninguém...
Mas o rapaz, apavorado, deu um salto e desapareceu no
corredor, Brigitte deu uma risada e fechou a porta,
pensando:
“Certos rapazes são engraçados! Capazes de toda a
ousadia, quando não se julgam observados, tornam-se
tímidos e covardes na hora de assumirem a responsabilidade
de seus desejos... Esse bobão, afinal, também não me falou
em passarinhes...
***
Pouco antes do jantar, resolveu sair à rua, buscando uma
idéia qualquer, um princípio de orientação. O quarto do
Virginia Seigel, no hotel, continuava mudo; Brigitte soube,
porém, que a loura mandara descer uma grande mala, para o
porão, sinal de que contava ficar alguns dias em
Lingahacha.
A bela repórter andou pelas estreitas ruas do centro,
perscrutando a multidão, quase toda composta de árabes
morenos, de nariz adunco, sem alegria no rosto. Procurava
avistar uma cara de estrangeiro. Queria encontrar Bernard
Curtis. Mas era como procurar agulha em palheiro.
Foi andando, sem pressa, até que se viu na parte mais
velha da cidade, num aglomerado de casas toscas, separadas
por vielas escuras e tortuosas, um bairro típico do Oriente
lendário, fervilhante mercado de especiarias e objetos
regionais, tecidos de estranho colorido, cerâmicas, vasos de
cobre, alfanjes e punhais reluzentes, frutas e pratos de
comida, beberagens malcheirosas. De repente, sentiu-se
temerosa. Afagou, na bolsa, a pequena pistola de coronha
de madrepérola, mortífera jóia que costumava levar, colada
com esparadrapo, à coxa esquerda. Prosseguiu, resoluta, já
agora censurando-se, intimamente, pelo fugaz instante de
temor. Aventurou-se pela rua maior do mercado, fascinada
pela algaravia dos pregões, à sua volta.
Escureceu, repentinamente, e um violento temporal
desabou sobre aquele trecho da cidade. A repórter correu
para o primeiro portal, buscando abrigo, e viu-se envolvida
por uma quantidade de homens escuros, malcheirosos, na
promiscuidade de uma loja de secos e molhados. Não se
sentia à vontade, entre aqueles estranhos de olhar bovino,
que a observavam, cúpidos, sem dizer palavra. Rezou para
que a chuva passasse. E ficou a observar as caras dos raros
transeuntes, até que uma face conhecida surgiu de entre as
sombras:
— Que surpresa, miss Montfort! Por aqui, sozinha, a
estas horas?
Era o simpático engenheiro Henry Lovett, o viúvo de
meia-idade que, na noite anterior (no grupo do Coronel
Cadman, em Abadan) fizera-lhe a corte, durante o jantar e a
dança.
— Que prazer! — exclamou Brigitte, sincera- mente
aliviada. — Estou mesmo precisando de alguém que me
oriente neste terrível formigueiro humano!
O engenheiro foi solícito:
— Estou às suas ordens, mis Montfort. Conheço bem
este inferno, aqui em Lingahacha; só acho uma temeridade
a sua vinda, sozinha, a este lugar! Não sabe como se
arriscou! Os árabes não podem ver mulher branca e bonita!
Ficam loucos, tarados! Aliás, no seu caso, não seria de
admirar que ele$ perdessem a cabeça...
— Muito obrigada, Mr. Lovett. Sou jornalista o tenho
que ir buscar meus assuntos na origem. Os leitores amam o
pitoresco e o misterioso.
— Concordo — fez Lovett. — Mas, por favor, não saia
sozinha! Use-me como guia. Conheço os lugares onde as
andorinhas dormem. Aliás, tenho uma pequena propriedade
nas imediações, e ando sempre por aqui. Este bairro,
precisamente, chama-se Tarut. É um dos mais velhos
recantos de Lingahacha e de toda a Pérsia. Fascinante, não
acha?
Brigitte fez que sim, com a cabeça, mas pôs o dedo no
nariz, indicando que o cheiro não era lá muito bom. Lovett
entendeu e convidou-a a sair.
— Já jantou, miss Montfort?
— Ainda não. Estava pensando nisso mesmo...
— Então, vou levá-la a um lugar curioso, talvez não
muito simpático à primeira vista, mas famoso pela sua boa
comida.
Andaram alguns quarteirões sob a chuva (já agora
esparsa, e, em pouco, deram com uma porta de aspecto
sombrio, encimada por letreiros ininteligíveis. Dali
passaram para um corredor escuro, onde Brigitte sentiu-se
oprimida pela violenta onda de calor que vinha lá de dentro,
misturada com o aroma de ervas adocicadas e temperos
fortes. O engenheiros Henry Lovett, solícito, fê-la
atravessar uma sala em meia penumbra, onde punhados de
homens magros, de raças diferentes, fumavam enormes
cachimbos, sentados em tamboretes, recostados na parede,
os olhos vidrados a contemplar o vazio. Áditos do ópio!
Tinham entrado num fumatório!
Cruzaram outra sala maior, por entre viciados quase
desnudos. Só mais adiante, após filas intermináveis de
fumantes, deram num salão cheio de mesas desocupadas.
Ao fundo, um velho árabe, enrugado e solene, mascava
sementes de betel com a mesma abstração com que elevava
suas preces a Alá. Nem pareceu notar os recém-chegados.
Usava um grosso albornoz azul, que lhe ocultava metade do
rosto.
Lovett escolheu uma das mesas do centro. Brigitte
sentou-se e deu um olhar em volta, procurando surpreender
o mistério do lugar. Não demorou muito a aparecer o
garçom, velho persa de barbas negras, usando seu clássico
camisolão listrado que lhe ia até aos tornozelos. Ao ver
Lovett, alegrou-se.
— Miss Montfort é minha amiga — o engenheiro fez
questão de dizer. — Mande seu filho vir nos servir as
especialidades da casa.
O árabe fez uma curvatura e retirou-se. O engenheiro
explicou:
— Nagdi é o dono desta espelunca, onde se come
excepcionalmente bem. É uma homenagem que lhe presto,
pedindo que o filho nos sirva. Assim, livro-o de trabalhar.
Aliás, o garoto é um nativo muito inteligente. Também
trabalha, durante o dia, no hotel em que você está
hospedada. Vem aqui toda noite, para ajudar o pai.
Da cozinha veio vindo, afinal, o filho de Nagdi. Todo
paramentado em roupas típicas, com o albornoz dos
beduínos, chamava-se Noiso e tinha 19 anos.
Brigitte reconheceu-o imediatamente. Era o empregado
do hotel que a havia contemplado nua, poucas horas antes!
O jovem procedeu, ali, como se não a reconhecesse. Que
senso profissional tinha aquele adolescente!
A repórter apreciou a comida de Nagdi, delicada e cheia
de tradição. Henry Lovett sentiu-se também homenageado,
vendo-a comer com apetite. Afinal, a escolha fora sua.
Na mesa do fundo, o mesmo ancião do albornoz azul
continuava mastigando nozes de betel, distante do mundo.
Ao lado da mesa, Noiso, braços cruzados sobre o peito
largo, aguardando ordens. Mais ninguém no salão.
Foi já no fim do jantar que o velho Nagdi surgiu,
atarantado, quase correndo, fazendo urna rápida reverência
a Brigitte e chegando-se ao ouvido de Lovett para lhe dar
um recado, incompreensível para a repórter. Lovett
empalideceu e levantou-se bruscamente.
— Que houve? — ela quis saber.
O engenheiro deu explicações vagas:
— Desculpe-me, Brigitte. Tenho que retirar-me. Não há
perigo. Mas não espere por mim. Está tudo pago. O rapaz,
Noiso, vai acompanhá-la ao hotel. Mais uma vez, peço o
seu perdão!
Retirou-se, veloz, acompanhado pelo velho Nagdi, sem
esperar qualquer palavra da convidada. Brigitte tratou de
sondar o ambiente e observou que o ancião do albornoz azul
também desaparecera, como que por encanto. Fez sinal a
Noiso, levantou-se e saiu, guiada por ele, através das
inúmeras salas atulhadas de fumadores de ópio. Ninguém
pareceu notar a sua passagem.
Na rua, o nativo explicou:
— Temos que caminhar até a próxima esquina, miss
Montfort. E lá tomar um táxi para o hotel. Não tenha medo,
sou muito respeitador...
A repórter seguiu, calma, mas, ao chegar à esquina
(quase deserta àquela hora da noite) estacou, de repente,
pondo a mão direita na bolsa onde tinha a pistola. Indagou
do nativo, com voz severa:
— Sabes por que Mr. Lovett se retirou, assim, tão
depressa?
— Não sei — gaguejou Noiso. — Re... recebeu um
cha... chamado!
— De quem?
— Não sei, miss! Não sei do nada!
Brigitte tirou a arma da bolsa e apontou-a para o peito do
rapaz.
— Sei que sabes, pois teu pai foi o portador do recado!
Se não me contares tudo, agora mesmo, puxo o gatilho!
Noiso ficou cinzento. Gaguejou ainda mais:
— Não, miss! Por favor! Não posso lhe dizer! Não
posso!
— Tens medo de quem?
O jovem nativo olhou ao redor e murmurou, apavorado:
— De Sarah Barrow! Ela é muito má! É igual a Naçu, a
mais terrível das Péris! Sarah Barrow é o próprio demônio!
— Quem é ela? Onde mora? Vamos, responde! Onde
mora Sarah Barrow?
— Eu sei, mas não passo nunca por lá! É o covil de
Ahriman!
— Pois vais agora lá, comigo! Vamos! Adiante! Noiso
obedeceu, relutante, andando devagar. Brigitte foi atrás, de
pistola em punho. De repente, o jovem nativo deu um salto
e saiu correndo, dobrando na primeira esquina e
desaparecendo dentro da noite. E Brigitte não teve coragem
de atirar.
***
Sem se fazer notado, Bernard Curtis chegara a
Lingahacha, com a alma cheia de ódio. A idéia da morte de
Pat ainda não se tinha firmado no seu espírito. Precisava
investigar.
Demorou-se pelas ruas e, afinal, partiu para uma
localidade próxima (chamada Nishkan), onde ficou o resto
do dia, só regressando às dez e meia da noite. De volta a
Lingahacha, foi andando na direção do certo endereço
misterioso, até uma casa de tijolos nus que se disfarçava
entre as choças de mendigos daquele submundo sinistro.
Perscrutou o interior, por uma fresta da primeira janela.
Sombra e quietude. De um salto, alcançou a porta fechada e
abriu-a violentamente.
E viu, afinal, o horror!
À luz de um toco de vela de sebo, faces medonhas, de
criaturas mutiladas, mostravam esgares demoníacos.
Deitadas em colchões imundos, estranhas mulheres de olhar
de serpente, como que se contorciam em movimentos
espasmódicos.
Bernard fixou aqueles vultos e arrepiou-se. Seriam seres
humanos? Seriam bichos?
Com a vista já mais adaptada à penumbra, pôde observar
detalhes das figuras grotescas. Eram mulheres.
Farrapos de mulheres! Fêmeas esquálidas, com
cicatrizes, feridas nojentas, tatuagens, corcundas. Muitas
aleijadas, com braços raquíticos e pernas disformes, outras
sem lábios, sem orelhas, mostrando cavidades hediondas na
face, em vez de narizes. O odor que se desprendia de seus
corpos era nauseabundo, sufocante. Algumas tinham chagas
abertas em todo o corpo e de suas feridas escorria sangue
negro, supurado. Mas todas, sem exceção, seguravam,
àvidamente, seus cachimbos de ópio.
Bernard Curtis, apenas recobrado do impacto nauseante,
falou, com a voz de quem chegou para ajustar contas:
— Onde está Sarah Barrow?
Nenhum monstro lhe respondeu. Dos olhos vidrados
daquelas harpias brotava uma luz macabra. Ao fim de
alguns segundos, uma ergueu-se lenta- mente e veio vindo
na direção de Curtis. Seria jovem ou velha, como as
demais? Ninguém lhe adivinharia a idade. Trazia o rosto
inteiramente desfigurado por cicatrizes de ácidos. Em vez
de boca, um buraco sangrento, nauseabundo, emitindo sons
de grilo. Conseguiu formular palavras guturais:
— Vai-te embora, Curtis! Ninguém te chamou aqui!
— Perguntei onde está Sarah! — rugiu o comandante.
Fez-se, de novo, um silêncio de túmulo. Bernard Curtis
aproximou-se do monstro e falou:
— Queres que esta seja a tua última tragada de ópio? —
E foi lhe arrancando o cachimbo das garras crispadas.
A resposta veio, violenta:
— Desaparece daqui, idiota! Sarah não quer te ver e tu
não a verás!
Curtis só então percebeu que os outros monstros se
levantavam dos seus colchões e vinham cercá-lo, como
hienas famintas. Sacou da pistola 45 que trazia debaixo do
braço.
A primeira que der um passo, leva chumbo!
E foi-se afastando, de costas, arma em punho, até a porta
do fundo, coberta por uma cortina velha e enegrecida. A
mesma voz gutural advertiu-o:
— Não podes passar dessa porta, Curtis! Não podes
entrar no templo!
O comandante encostou-se ao pano sujo da cortina,
insistindo:
— Quem se mexer, leva bala!
E, de costas, atravessou o umbral. Foi quando violenta
pancada prostrou-o por terra. Caiu de joelhos, zonzo, e
ainda notou que o vulto (que o atingira por trás) estava
agora à sua frente, ameaçador. Era outra das mulheres-
monstros, que o enfrentava, de barra de ferro em punho.
Bernard ainda teve forças para dar ao gatilho de sua arma.
A figura grotesca soltou um uivo e caiu ao chão, em
estertores, numa poça de sangue.
Bernard viu que estava em perigo.
A casa fervilhava de opiômanas assassinas! Em poucos
minutos, seis delas marcharam na sua direção, possessas,
babando ódio! Houve uma luta dramática. A mais forte
conseguiu tomar o revólver da mão de Curtis, mesmo à
custa da vida de outra de suas companheiras, que tombou
com o segundo balaço.
Envolvido pelas harpias, Curtis acabou de atravessar a
porta velada pela cortina. Encontrou-se numa ampla sala,
que mais parecia o templo de um deus pagão. No centro,
ardia uma fogueira, cujas chamas lambiam a figura (talhada
em pedra) de
Ahriman, o gênio do mal da religião Mazda, oposto a
Ormuzd, o deus da luz e da bondade.
— Somos as Péris de Naçu! — guinchavam as
dementes. — Ahriman é o nosso guia. Morte ao infiel!
Agora, o comandante estava cercado e tolhido por garras
e pernas horríveis de mulheres fanáticas. Num último
esforço, conseguiu desvencilhar-se, agarrando urna delas
pelos tornozelos e brandindo-a, como um porrete humano,
contra as outras, abrindo um claro à sua volta. Por sorte, seu
pé direito bateu na pistola, no chão. Num segundo, abaixou-
se, apanhou-a e começou a fazer fogo, desordenada- mente.
Nova leva de monstros cercou-o, na semi-escuridão, e a
pistola foi outra vez jogada longe.
Curtis sentia se exaurirem suas forças. Uma das
fanáticas vinha brandindo a barra de ferro novamente contra
ele, quando, súbito, uma voz clara, bem nítida, ecoou na
sala:
— Parem com isso!
No umbral da porta recortava-se uma figura linda de
mulher, contraste impressionante com a legião de monstros.
Seria uma deusa, surgida das sombras, empunhando duas
pistolas (uma pequena, de coronha de madrepérola e uma
enorme negra, pesada) ambas firmes em seus dedos
afilados.
Bernard Curtis, tolhido como numa cruz (tendo um
monstro a agarrá-lo em cada perna e cada braço) não
conteve uma exclamação de júbilo:
— Brigitte Montfort! É um milagre!
Mas a bela repórter estava sozinha. E isto não era muito
tranqüilizador.

CAPITULO SEXTO
Encontro com a enfermeira loura
Entra em cena o Inspetor Maraghesi
Brigitte chega a tempo
E Noiso também.

John Delancey, com o seu Austin alugado recoberto de


lama, só conseguira chegar a Lingahacha com muitas horas
de atraso. Ficara atolado na estrada, tivera problemas com o
motor e recorrera, até, aos moradores de uma casa à beira da
rodovia, à entrada da cidade. O prédio, todo de azulejos
azuis e brancos, era habitado por um grupo de homens
estranhos, vestidos com albornozes azuis, que não o
deixaram passar do pátio. Enquanto pedia que lhe
alugassem uma junta de bois, John alongara um olhar para
uma das janelas da casa e vira outro homem, também
vestido com um albornoz azul, o rosto encoberto e uma
pistola na mão. Desviar os olhos, perturbado, e tratara de
sair dali. Felizmente, os homens dos albornozes azuis não
tinham criado dificuldades em ajudá-lo a desatolar o carro;
também pareciam ansiosos de se verem livres dele.
Afinal, depois de todos estes percalços e já na portaria
do Hotel Sadrabad, ao registrar-se, recebera do chefe da
recepção um envelope, com este comentário:
— A moça que deixou esta carta garantiu que O senhor
chegaria, mais cedo ou mais tarde.
John subiu ao apartamento quase a se arrastar. A perna
lhe doía horrivelmente, depois da extensa e acidentada
viagem. Deu uma boa gorjeta ao empregado do hotel que
lhe transportava a valise e deixou que ele se retirasse, para
abrir o envelope. Continha um cartão de visitas de Virginia
Seigel. No verso, esta mensagem:
Estou aqui, no apartamento n° 30, mas não
atendo o telefone. Tenho que tomar precauções.
Depois explicarei. Venha ver-me, sem despertar
suspeitas, depois das dez da noite.
Virginia.

Delancey olhou para o relógio de pulso. Uma hora da


madrugada. Gostaria de tomar um banho, estirar-se na
cama, descansar a perna dolorida. Mas era preciso agir,
recuperar o tempo perdido! Nem abriu a valise; saiu, direto,
para o no 30.
Esgueirou-se cautelosamente pelos corredores, sem
encontrar vivalma. Deu com a porta do apartamento e tocou
a campainha. Nada. Tentou, outra vez. Nenhuma resposta.
Experimentou a fechadura.
A porta estava apenas fechada com o trinco. Ele a abriu
e foi entrando.
— Virginia? — chamou, no escuro.
Ainda nenhum sinal de vida. Tateou, em busca de um
interruptor de luz. Acendeu. O quarto estava vazio.
Mas... era estranho! A cama desfeita; a cortina da janela,
em frente, balançando ao vento; um cheiro adocicado de
desinfetante... Delancey aproximou-se da cama e examinou
os lençóis. Sangue! Havia manchas de sangue por toda
parte! Sangue nas roupas de cama, na parede, no assoalho!
Dir-se-ia que aquela alcova tinha servido de palco a uma
carnificina! Pálido de espanto, o rapaz revistou todos os
móveis, à procura de um cadáver. Não o encontrou em parte
alguma. Contudo, agora tinha a certeza: Virginia Seigel fora
assassinada! Onde estaria o corpo?
Só a polícia poderia responder a essa pergunta. O
funcionário da Anglo-Iranian compreendeu que teria de
apelar para as autoridades persas, se quisesse solucionar o
mistério. Não perdeu tempo com maiores divagações e
apanhou o telefone.
Meia hora depois, aparecia no Hotel Sadrabad um
pitoresco inspetor da polícia, baixinho, redondo, vestido à
européia, ostentando uma pêra negra no queixo volumoso, e
olhando para todos os lados com um olhar penetrante.
— Salahmalick! Inspetor Maraghesi. Que é que há?
Ao entrar no apartamento 30, foi logo encarando
Delancey, antes mesmo de se interessar pelas manchas de
sangue.
— Quem é você? — inquiriu, balançando a pêra.
— John Delancey.
— Que tem a ver com o crime?
O rapaz titubeou:
— Ainda não sei se Virginia...
— Você me disse, pelo telefone, que houve um crime! A
primeira impressão é sempre a mais correta! Houve um
crime!
— Sim, tem razão. Veja o aspecto deste quarto. Houve
um crime.
— E que tem você a ver com ele?
Fui amigo da vítima. Isto é, suponho que a vítima seja
Virginia Seigel, a hóspede deste apartamento. Ela era minha
enfermeira, num hospital de Abadan.
— Ah! Quer dizer que é uma mulher... Uma senhora de
idade, presumo?
— Não. Moça, loura e muito bonita.
— Naham, compreendo! Vamos, conte-me tudo! Você é
inglês?
— Sou.
— Nota-se, pela pronúncia. Eu já estive nos Estados
Unidos e, lá, falam de outra maneira... E ela? Também era
inglesa?
— Era.
— Conte-me tudo, tudo mesmo!
— Infelizmente, no lhe posso ser muito útil.
— Como sabe que espero que me seja útil, meu rapaz?
— Pela insistência das suas perguntas. Acabei de chegar
e...
— Por que chegou a Lingahacha tão tarde da noite?
— Tive problemas, na estrada de Abadan. Se não fosse o
auxilio daquele grupo de árabes de albornozes azuis...
— Ithamma! — O inspetor tinha arregalado os olhos. —
Onde encontrou um grupo de homens com albornozes
azuis?
— Na entrada da cidade — explicou John. — Numa
casa de azulejos azuis e brancos. Eles me ajudaram a
desatolar o carro.
O inspetor tomou nota das informações, como se elas
tivessem muita importância, o continuou:
— Vamos, Conte o resto! Foi você quem comunicou o
crime. Onde está o cadáver da enfermeira?
Isso, Delancey não sabia responder. O pitoresco inspetor
de polícia fez sinal aos seus auxiliares (outros três detetives,
de aspecto ameaçador) e eles farejaram o quarto,
examinando todos os indícios. Delancey esperava, tenso,
enquanto o inspetor olhava para ele de esguelha.
— Devia haver uma grande mala — disse um dos
detetives. — Os pingos de sangue acabam neste canto, onde
ela estaria pousada. Temos que procurar o túmulo
improvisado. Talvez ainda esteja no hotel.
— Naham — rosnou o inspetor Maraghesi, mal-
humorado. — Ou talvez tenha sido levada para longe!
Sigam a pista da mala! Interroguem a arrumadeira deste
andar! Saibam se não apareceram carregadores de alguma
empresa de transportes.
Os três agentes saíram correndo. Alguns minutos depois,
voltaram a aparecer, arrastando uma iraniana gorda e
aterrorizada. A mulher usava o uniforme das arrumadeiras
do hotel.
— Repita ao inspetor o que nos disse — ordenou-lhe um
dos detetives.
A mulher balbuciou:
— Miss Virginia pediu, pelo telefone interno, que
levassem a sua mala para o porão. Dois funcionários da casa
atenderam ao pedido. A mala já estava no corredor, quando
eles chegaram, e foi só baixá-la pelas escadas. Nenhum de
nós voltou a entrar no quarto.
— A que horas foi isso?
— Às dez da noite, sahib.
O inspetor Maraghesi acenou.
— Tayyib! Vamos ao porão!
John Delancey viu os olhos do gordo pousados no seu
rosto e estremeceu.
— Eu também?
— O senhor também! Preciso de testemunhas. Não há
dúvida de que o cadáver de sua amiga está dentro da mala!
Desceram ao porão do hotel e localizaram a mala de
camarote de Virginia Seigel. Estava depositada perto do
grande incinerador do prédio. Atendendo a uma ordem do
inspetor, seus auxiliares arrombaram a fechadura da mala e
puseram à mostra o seu macabro conteúdo.
John Delancey recuou, soltando um gemido do horror. O
corpo da bela enfermeira loura ali estava, encolhido,
retorcido, as vestes em frangalhos e o rosto deformado por
profundas lanhaduras! Sangue coagulado de um ferimento
no peito, sobre o coração.
— Usaram uma sikkin — comentou um dos detetives.
O inspetor anuiu.
— Naham, uma faca afiada! — Voltou-se para Delancey
e cravou nele seus olhos penetrantes. — Reconhece-a, meu
rapaz?
— Sim — murmurou John, lábios trêmulos. — É
Virginia Seigel! Mas não sei quem a matou!
— Provàvelmente — insinuou outro detetive — os
assassinos pretendiam voltar ao hotel, para queimar o corpo
na fornalha. Agora, não voltam mais.
— Provàvelmente — admitiu o inspetor, fazendo uma
careta. — Isso, se o assassino já não estiver entre nós! —
Voltou a encarar, severamente, John Delancey. — Vamos,
moço! Vá contando tudo o que sabe!
O rapaz suspirou.
— Só lhe posso dizer que a vítima se chamava Virginia
Seigel, era inglesa, enfermeira do Hospital Central de
Abadan, onde estive internado, O Hospital Central pertence
à Anglo-Iranian Oil Company.
— Por que esteve internado no hospital? Ferido?
— Sim. Uma queda.
E mostrou-lhe a perna inchada. O rotundo inspetor,
prendendo nos dentes uma imensa piteira, acendeu seu
cigarro turco, trançou as mãos atrás das costas e pôs-se a
andar de cá para lá, os olhos no chão, fazendo o “sherlock”.
Parou, de repente, no meio do porão, e sentenciou:
— É tudo muito claro e simples. O enfermo que se
apaixona pela enfermeira bonita... A jovem foge ao assédio
do importuno... O passional, enfurecido, persegue a sua
dama indócil... Torna conhecimento de sua viagem a uma
cidade vizinha. Não titubeia. Corre ao seu encontro e, não
conseguindo convencê-la, mata-a num ímpeto furioso de
paixão!
O inspetor fez uma pausa, empostou a voz e prosseguiu:
— Considere-se preso, em nome da lei, Mr. John
Delancey! É acusado do assassínio de Virginia Seigel o da
tentativa de destruir o seu corpo, no incinerador deste hotel!
John sorriu, incrédulo.
O senhor está brincando, inspetor!
Mas os três policiais já o algemavam, inapelàvelmente.
Ao saírem do porão, o inspetor ainda olhou para John, com
curiosidade.
— A propósito, meu rapaz. Você gosta de passarinhos?
Pardais, pombos e andorinhas?
Mas o funcionário da Anglo-Iranian estava tão abatido
que não respondeu. Seu silêncio era uma resposta, para o
inspetor Maraghesi: o prisioneiro não entendia nada de
passarinhes.
***
Algumas horas antes, quando o jovem nativo Noiso
fugira pelo beco, desaparecendo na escuridão da noite e
deixando Brigitte sozinha, numa rua deserta do bairro de
Tarut, a bela repórter resolvera ir adiante, por conta própria,
contando apenas com sua coragem, seu faro e sua
determinação de decifrar o mistério. Assim, marchou firme,
por aquelas ruas estreitas, a mão dentro da bolsa, segurando
a pistola. Depois de muito caminhar, a valente filha de
Giselle estacou, de súbito, ante um vulto que lhe cortava os
passos, de braços no ar.
— Por Alá, miss Montfort! Não fique mais aqui! É
muito tarde! Volte para o seu hotel! Isto não é lugar para
uma môça...
Brigitte comoveu-se com os cuidados de Noiso. O rapaz
não suportara a idéia de abandoná-la à sua própria sorte e
viera seguindo-lhe os passos, oculto nas sombras. Brigitte,
vendo-o fraquejar, resolveu fazer a proposta:
— Voltarei ao hotel com você, mas depois que me disser
onde é a casa de Sarah Barrow!
O nativo olhou para o outro lado da pequena praça
deserta. Só havia mesmo uma casa ali, entre as choças de
mendigos. Uma casa velha, à beira do rio que cruzava o
Tarut. A esperta jornalista compreendeu e apressou o passo
naquela direção.
Chegando, encontrou a porta encostada e ouviu ruídos lá
dentro. Entrou e, à luz da vela de sebo, pôde notar o brilho
de uma pistola, no chão do vestíbulo imundo. Era uma 45
negra. Brigitte empunhou-a com a mão esquerda (pois já
levava a de coronha de madrepérola, firme, na mão direita)
e afinal, penetrou na segunda sala, onde Bernard Curtis se
debatia com as fanáticas opiômanas.
— Parem com isso! — gritara, para a horda de monstros.
E Bernard Curtis exclamara:
Brigitte Montfort! E um milagre!
E as megeras foram largando o comandante, virando-se
para a nova invasora. Todas de olhos fuzilantes, grunhindo
histèricamente. Agitaram-se, frenéticas, dispostas a
enfrentar a jovem armada. A primeira que o tentou tombou
ferida com um disparo da 45. Magnetizadas pela presença
de Brigitte, as outras não perceberam que Bernard Curtis se
esgueirava, até alcançar a porta. De braços estendidos, em
grupos de quatro, babando como cães hidrófobos, as
monstrengas investiram. E tantas tombaram quantas foram
as balas das armas de Brigitte. Caíam as da frente, mas as
de trás vinham por cima, como hordas de demônios
invencíveis.
Somos as Péris de Ahriman! Queremos o Grande
Sacrifício!
Quando os pinos das armas da jovem repórter bateram
nas cápsulas já deflagradas, os monstros ululantes
conseguiram cercá-la e atirá-la ao solo. À luz vacilante da
fogueira, a batalha tomou um aspecto ainda mais selvagem.
Frenéticas, arquejantes, fazendo ruídos de pesadelo, as
sacerdotisas do mal levantaram Brigitte e principiaram a
carregá-la, como um troféu magnífico.
— Xucran, Ahriman! Vamos para o Grande Sacrifício!
Entretanto, na rua, Curtis procurava desesperadamente
uma idéia salvadora. Foi quando Noiso se acercou, trazendo
duas preciosas Winchester automáticas.
— Vamos, mister! — foi dizendo o nativo, aflito. — Eu
sei o que elas vão fazer com miss Montfort! São
sacerdotisas de Angro Maimys, o espírito do mal, e farão
um sacrifício diante da Atar, o fogo sagrado! Arranjei estas
armas na casa de meu primo, ali na Sharia Kubbet! Por Alá,
foi uma sorte! Mas vamos lutar! O senhor, agora, tem de me
ajudar a salvar a moça dessas taradas! Pegue numa arma
que eu pego na outra! As desgraçadas vão abusar de miss
Montfort... queimar-lhe o rosto com ácidos... É um horror!
Vão estragá-la, para que ela se torne, também, uma
sacerdotisa de Angro Maimys! Miss Montfort é muito
bonita! Não posso permitir que essa desgraça lhe aconteça.
Posso morrer, posso morrer fulminado... mas vou lutar! O
senhor me ajude, mister! Vamos livrá-la da maldição de
Sarah Barrow!
Curtis entendeu tudo. Junto com Noiso, penetrou outra
vez na casa sinistra, já agora com a Winchester engatilhada.
As salas da frente estavam vazias. Um rumor, mais para o
fundo, os atraiu.
— É ali! — gritou o Comandante. — Atrás daquela
cortina!
Atravessaram a porta e viram a cena dantesca: diante da
pira que iluminava a imagem de Ahriman, estava Brigitte,
completamente despida, subjugada pelas megeras loucas,
em cima de um estrado negro. Cinco a contê-la, com uma
força de mil demônios, e as outras, mutiladas, disformes,
numa fila terrível, esperando a vez de morder o corpo
maravilhoso da jovem repórter! Brigitte se debatendo,
gritando desesperada. E a primeira megera levantando uma
tigela de ácido nas mãos esqueléticas, para queimar-lhe o
rosto!
Somos as Péris de Ahriman! Queremos o Grande
Sacrifício!
Nisso, o tiroteio começou. Bernard Curtis e Noiso,
fazendo funcionar as armas automáticas, empreenderam a
devastação das figuras hediondas. Brigitte aproveitou a
confusão e saltou do estrado, ganhando o corredor, agora
seguida por Noiso, enquanto Curtis tentava fazer a
cobertura, atirando e afastando-se de costas.
As monstrengas tombavam, umas após as outras, como
trapos, sobre poças de sangue. Em poucos minutos, Brigitte
e Noiso estavam a salvo, já fora da casa sinistra. Mas o
comandante não aparecia na porta.
Aguardaram alguns minutos... e nada.
— Espere aqui — ordenou a repórter, tomando a
Winchester das mãos do nativo. — Bernard deve ter sofrido
algum contratempo! Vou buscá-lo!
Voltou a entrar na casa maldita, onde só se ouviam
gemidos de agonia, mas não viu mais o comandante. Uma
das mulheres-monstros, moribunda, caída aos pés da
fogueira, gemeu:
— Ele se foi! Nosso inimigo morreu! Caiu no Nahr e
morreu!
Só então Brigitte reparou que uma porta lateral do
pardieiro dava diretamente para um estreito rio subterrâneo,
quase um canal. Ali havia uma trilha de sangue, que
desaparecia bruscamente nas águas negras e movediças.
Brigitte chamou várias vezes pelo nome do comandante,
mas ninguém respondeu. Certamente, ele tentara sair por ali
e tombara nas águas putrefatas. Ameaçada por três ou
quatro harpias (sobreviventes da carnificina), a garota
recuou precipitadamente e voltou a sair, pela porta
principal, reunindo-se a Noiso, que esperava na praça.
Inteiramente nua, arranhada, mas sem grandes ferimentos, a
bela repórter exibia os seios lindos, tremendo como
pombinhas assustadas. Noiso emprestou-lhe o seu manto
árabe e a estátua velou-se, sob o luar, numa cena digna de
velhos poemas orientais. Afinal, decidiram correr para
longe daquele antro infernal.
***
Brigitte e Noiso continuaram andando, pelas ruelas do
estranho bairro de Tarut. Seguiram ao longo do rio e, mais
adiante, onde este aflorava à superfície da terra, Noiso
soltou uma exclamação de alegria:
— Veja, miss Montfort! Nosso amigo escapou!
Na beira do rio, entre duas pedras, via-se uma
Winchester abandonada. O nativo recolheu a arma e
continuou a andar, ao lado de sua bela companheira. Agora,
mais calmos, pois o encontro da arma dera-lhes a certeza de
que o comandante Curtis atravessara o rio, a nado, e saíra
ali. Não devia estar muito ferido, pois não havia sinais de
sangue nas pedras.
A repórter queria obter dó nativo outras revelações. E foi
conversando, com o maior charme possível:
— Obrigado, Noiso. Você me salvou a vida, com a idéia
de trazer essas duas Winchesters. Do contrário, eu e
Bernard estaríamos perdidos.
— Só cumpri o meu dever — disse o jovem persa,
encabulado. — E foi muita sorte nossa que a terrível Sarah
Barrow não estivesse na casa, dirigindo as fanáticas. Ela se
julga Naçu, a mais terrível das Péris! Se Sarah Barrow
estivesse no templo, teria sido uma desgraça! Com ela, as
Péris combatem como verdadeiros demônios! E dispõem de
armas e tudo! Mas, quando Naçu se ausenta, deixa fechado
o arsenal. Não confia nas bruxas, quando estão sozinhas;
sabe que elas se destruiriam até mesmo umas às outras!
— E ninguém aqui toma providências contra esse bando
de fanáticas? Nem as autoridades?
Noiso não parecia, agora, temer o efeito de suas
respostas. E explicou:
— A coisa toda é bem difícil. Primeiro, elas variam
muito de lugar. Têm vários redutos e aparecem onde menos
se espera. Conseguem fugir, quase que por milagre. Depois,
são bastante numerosas. Ainda há muitos partidários da
religião de Zoroastro na Pérsia e, com medo dos demônios
de Abriman, eles traem a Ormuzd, protegendo as
sacerdotisas do fogo sagrado. E quem as dirige tem muito
poder. As bruxas são informadas de tudo com antecedência.
Quando a polícia ataca um lugar, esse lugar está vazio!
Minutos antes da batida, elas debandam! Parece, até, que
são informadas por algum antena, ou algum espião... E
lutam até do metralhadora! Armas tchecas, miss Montfort...
Por outro lado, como lhe disse, existe o medo dos nativos,
que ainda crêem em Ahriman e seus poderes infernais.
Ninguém quer atiçar o ódio das fanáticas de Sarah Barrow.
— E esta Sarah Barrow? Ninguém põe a mão nela?
— Essa mulher parece um fantasma! Ninguém conhece
a sua cara, nem sabe onde ela anda! Dizem que tem vários
rostos, como as sedutoras Drujes, e vários esconderijos,
com subterrâneos e passagens secretas, para fugir na hora
do aperto. Só os mais velhos da seita a conhecem de perto...
só os mais velhos crentes, que procuram a bênção de Ahura
Mazda.
— Seu pai a conhece?
— Certamente. Mas nunca dirá uma palavra sobre o
assunto. Não é doido de dizer! Se falar, pode amanhecer
morto, por aí, com uma facada no coração e a cara toda
roída de ácido! Alá nos livre! Sarah Barrow está ligada aos
fanáticos da seita dos Albornozes Azuis!
— Que seita é essa?
— Não sei lhe dizer, miss. Sei, apenas, que os homens
dos albornozes azuis são seguidores de Cafar e trabalham
para que os poços de petróleo do Irã não sejam explorados
pelos ingleses.
— Nacionalistas?
— Talvez sim e talvez não. Alguns velhos persas dizem
que Cafar é um agente comunista. Não sei de mais nada.
— Nesse caso — concluiu Brigitte, experimentando a
coragem de seu jovem companheiro — só há um jeito:
teremos de descobrir tudo por nós mesmos!
Noiso reagiu:
— Por favor, miss Montfort, não se meta nisto! Não
esqueça que já quase ia morrendo... e ainda quer se arriscar?
Vá-se embora desta terra, enquanto é tempo! Olhe, daqui a
pouco tenho que voltar para o hotel. Deve ir comigo e, de
lá, embarcar para Abadan! Por que tem tanto empenho em
saber destas coisas?
Brigitte não lhe deu ouvidos. Limitou-se a afagar
ternamente no rosto escuro do nativo num carinho
perturbador de mulher que conhece o seu próprio poder de
sedução. O pobre rapaz não teria meios de resistir a
tamanha voltagem de charme. E com voz meiga, ela falou:
— Preciso investigar outro assunto e você vai-me ajudar,
direitinho, como um bom rapaz! Prometo que, no fim de
tudo, lhe darei uma boa recompensa. De acordo?
O jovem fez que sim, pensando ninguém sabe em que
maravilhas... Brigitte pediu-lhe, então, o endereço de Henry
Lovett, o engenheiro que, horas antes, deixara-a no
restaurante para sair com Nagdi, o pai de Noiso. O rapaz,
inteiramente hipnotizado deu as explicações:
— Esse Mr. Lovett mora aqui mesmo, desde que se
aposentou da Companhia. Sua mulher e sua filha perderam
a vida num desastre de automóvel. Parece que tem um filho
estudando em Londres, mas esse, nunca veio por aqui. Mr.
Lovett vive numa chácara, do outro lado da cidade. Se saiu
apressado daquele jeito, com meu pai, não tenha dúvidas:
foi por artes de Sarah Barrow! O velho deve tê-lo prevenido
de alguma coisa. Ele gosta de Mr. Lovett. E tem muita pena
dele.
Nessa altura, já estavam chegando perto do hotel. Noiso
entristeceu subitamente. A repórter quis saber por quê.
— Já amanheceu, miss — queixou-se o rapaz. — Com
toda esta trapalhada, sou capaz de perder o meu emprego!
Eu devia ter-me apresentado às cinco horas, para pegar às
cinco e meia!
Brigitte consolou-o com um afago maternal. Depois,
abriu a bolsa (que Noiso não esquecera de recuperar,
durante a luta) e de lá retirou o famoso papel, assinado pelo
Xá. Ao vê-lo, o nativo esbugalhou os olhos.
— Mas... será obedecida como uma rainha, com esse
papel! Pode ter o que desejar, aqui no Irã!
Brigitte foi sucinta:
— Você, estando às minhas ordens, não perderá seu
emprego. Fique tranqüilo, pois, e faça o que eu mandar.
Noiso fez uma saudação muçulmana, curvando-se até o
chão. Brigitte retomou o fio de suas atividades detetivescas:
— Não percamos tempo. Faltam poucos minutos para as
seis. Precisamos visitar o engenheiro Lovett, enquanto o sol
não nasce de todo! Vamos pegar meu jipe, estacionado na
travessa ao lado do hotel, e façamos uma viagem rápida à
chácara desse inglês.
Passando em frente ao hotel, ainda pensou em entrar e
perguntar pelo seu amigo Delancey. Teria chegado? A
urgência do tempo não lhe deixou margem a outras
especulações. Embarcou no jipe, com seu fiel Noiso, e
seguiu no rumo da cidade nova.
Atrás deles, também seguiu um pequeno carro Triumph,
dirigido por um velho árabe, embuçado num albornoz azul,
mascando sementes de betel. Era o mesmo sujeito sonolento
que fora atrás de Nagdi e Henry Lovett, quando eles tinham
saído do restaurante do pai de Noiso.

CAPÍTULO SÉTIMO
A mulher que não ria
Outro retrato de Alice
Tiroteio na casa azul e branca
Revelações do inspetor Maraghesi
Brigitte fala em passarinhos

Em quarenta minutos chegaram ao local, graças às


indicações de Noiso, que encurtaram o caminho. Brigitte
parou o jipe a uma boa distância da chácara e manobrou,
para escondê-lo atrás de uma providencial moita de capim.
O dia amanhecera de todo. Ela saltou e acenou para o
companheiro.
— Você ficará aqui, Noiso, esperando por mim. Se eu
me demorar mais de meia hora, então sim, vá ver o que terá
acontecido.
Vestida com a túnica árabe do nativo, Brigitte era um
vulto familiar na paisagem oriental. Aproximou-se da cerca
e conseguiu introduzir-se por uma abertura. Atravessou um
campo de golfe e uma quadra de tênis, chegando, afinal, a
uma pérgula com piscina, atrás de cujos pilares tratou de se
esconder. Um carro, estacionado na frente da casa entre o
jardim e uma faixa de seixos rolados, chamou-lhe a atenção.
Foi-se esgueirando sem ruído e logo se encontrou ao lado
do automóvel, protegida por uma touceira de fícus.
De repente, iluminou-se o vestíbulo do palacete. A porta
da frente se abriu para o pórtico, deixando passar um casal,
que parou no topo da pequena escada de mármore. Brigitte
olhou, prendeu a respiração e apurou o ouvido.
Era Mr. Henry Lovett, sem dúvida. E a mulher, alta,
esguia, envolta num elegante manto branco, parecia unia
figura grega, de um baixo-relevo de Corinto. Seu rosto,
excessivamente pintado, era uma máscara de cosméticos; as
palavras saíam de seus lábios sem que suas feições se
movessem. Ao contrário do “homem que ri” de Vitor Hugo,
aquela mulher não devia rir nunca! E, o que era mais
extraordinário, seu rosto não se parecia com o do retrato de
Sarah Barrow, que Brigitte encontrara na casa de Virgínia
Seigel.
— Veja, minha filha — dizia Mr. Lovett à moça,
fazendo um gesto largo que abrangia toda a propriedade. —
Sempre que contemplo esta chácara lastimo a sorte! Aqui
seria o seu refúgio. Mas o destino não quis que fosse assim.
Talvez apenas seu irmão queira aproveitar esta chácara,
esses jardins, essa piscina, esse campo tão bonito que tanta
gente desejaria possuir.
A moça de branco murmurou alguma coisa que Brigitte
não pôde ouvir. Seus lábios se moveram, mas a face
permaneceu impassível. Henry Lovett continuou falando,
em voz alta e clara:
— Ora, minha filha! Já era tempo de você ter aplacado
esse ódio, esse desejo de vingança tão feroz! Por que odiar
seu antigo noivo? Aquele idiota nem merece sua atenção,
seu tempo perdido! Mas, enfim...
A mulher do branco falou novamente. Lovett contestou:
— Sim, foi afundado, no porto. Ninguém a bordo. Mas
deixei na casa dele um bilhete, como se fosse do tal Cafar.
A polícia investigará, tenho certeza. E ele será detido.
Pagará pelo que não fez...
Interveio novamente a mulher de branco, e o engenheiro
continuou:
— Mas viu como seu irmão está um bonito rapaz? Pena
que você não tenha querido se revelar a ele. Robert a julga
morta, mas isso não seria uma razão tão forte. Você poderia
contar-lhe a história do acidente. O rapaz é um artista...
Passa o dia inteiro a ler, a pintar. .. Não aproveita, como
devia, esta piscina, estes campos de esporte. Você, sim,
saberia aproveitá-los bem, alegrá-los... Mas fica fechada no
seu ódio, só por causa do acidente! Que bobagem, minha
filha! Hoje, a cirurgia plástica faz milagres! Você poderia ir
a Londres, ou Nova ler- que, e voltaria perfeita, como antes!
E, quem sabe, curada do vício... Bem, o dia ralou. Vou levá-
la de volta à sua “fortaleza”... Quando é que vocês terão o
novo encontro com Cafar, nas cavernas? — Outra pausa;
não se ouviu a voz da moça, mas o engenheiro acrescentou:
À meia-noite? Está bem, minha filha. Você talvez gostasse
de conhecer essa jornalista americana, a tal Brigitte
Montfort, que eu larguei, no restaurante de Nagdi, mal
recebi o seu chamado...
Desceram as escadas e tomaram o carro, conversando.
Lovett saiu de marcha à ré, saltou para abrir o portão, parou,
fechou e saiu de arrancada, pela rodovia. Brigitte correu até
o palacete, abrigando-se nas sombras. Encostou-se à parede
e deslizou até a porta principal. Mas, quando a atingiu,
ouviu um baque surdo. Imobilizada contra a parede, soltou
um gemido de surpresa. A manga direita de seu albornoz
fora traspassada por uma faca atirada com perícia e estava
presa à parede, onde a lâmina se espetara! Antes que abrisse
a bolsa com a mão esquerda, um vulto largo surgiu do
jardim e avançou para ela. Era um árabe de meia-idade,
sonolento, ruminando como um boi. Vestia um albornoz
azul.
— Apanhei-te! — rosnou o estranho, no qual Brigitte
reconheceu o freguês do restaurante de Nagdi. — Sou Ali
Ben Kasadan, um dos daevas de Ahriman! Você é muito
curiosa, ainda mesmo para uma repórter... E parece que
descobriu a pista de Sarah Barrow!
Brigitte não disse nada, atenta aos gestos do árabe.
Súbito, ele sacou um punhal de dentro do albornoz, e deu
um golpe. A repórter furtou o corpo e a lâmina apenas lhe
rasgou a outra manga da túnica. Era evidente que o bandido
queria matá-la, sem mais delongas! Desesperada, sem poder
retirar a manga presa à parede, despiu ràpidamente o
albornoz e atirou-se ao chão. A segunda punhalada apenas
atingiu a roupa, pendurada no primeiro punhal. Brigitte
rodopiou e puxou, com força, as canelas do adversário,
fazendo-o perder o equilíbrio e cair de costas. Rolaram pelo
pórtico, abraçados, trocando socos. Ela completamente nua
e o beduíno do deserto armado com um punhal recurvo,
afiado, que voltou a descer, faiscante, errando o rosto de
Brigitte por um centímetro. Ela conseguiu agarrar o pulso
do agressor e, girando espetacularmente, montou a cavalo
em cima dele, mantendo-o de costas contra o solo.
— É você o carrasco de Sarah Barrow? — perguntou,
apertando-lhe o pescoço, sem lhe largar o pulso armado.
— Nahan — confirmou ele, lutando por livrar a mão. —
Matei a enfermeira, no hotel, porque ela ia falar... e, agora,
vou matar você! Todos os que sabem demais precisam
morrer! São as ordens de Cafar!
O gangster oriental era muito mais forte do que ela e,
dando um safanão, conseguiu soltar o pulso. No mesmo
momento, tinha girado e invertido as posições, cavalgando
o corpo branco e nu de sua gentil adversária. Debalde
Brigitte contorceu-se tentando escapar como pudesse ao
golpe que inevitàvelmente aquele perigoso assassino ia lhe
desferir. Ele ergueu o braço, armado com o punhal, e
preparou-se para tirar-lhe a vida. A filha de Giselle viu
chegada a sua última hora. Porém, de repente, ouviu-se uma
detonação e o velho árabe ficou estático, o punhal no ar e o
rosto contorcido pela surpresa. Depois, estranhamente, uma
expressão de beatitude tomou conta de sua fisionomia
bestial e ele tombou de lado, hirto como uma estátua.
Brigitte desvencilhou-se e pôs-se de pé, olhando para o
cadáver. Agora, o homem do albornoz azul tinha o buraco
de uma bala no meio das costas. Uma bala que lhe atingira o
coração.
Noiso saiu das sombras, sem ruído, empunhando uma de
suas Winchesters.
— É Ali Ben, o matador — anunciou a meia voz. — Eu
o reconheci logo... e, por isso, atirei! Ele trabalhava para
Sarah Barrow e Cafar! Agora, não matará mais ninguém!
Brigitte revistou o albornoz azul cio morto e não
encontrou nenhum papel. Então, encarou Noiso:
— Esse bandido deve ter vindo para aqui em algum
veículo. Talvez possua automóvel. Dê uma busca pelas
cercanias e veja se descobre algum carro... e, dentro dele,
algum documento com o endereço do proprietário.
Noiso acenou e tornou a desaparecer, silenciosamente,
no jardim, com a mesma discrição com que tinha aparecido.
Brigitte recuperou-se, retirou o albornoz da parede
(soltando o punhal que o prendia) e vestiu-o,
transformando-se outra vez, numa jovem árabe. Em
seguida, voltou a aproximar-se da porta do palacete. Aí,
abriu a bolsa e retirou o arame retorcido que sempre
carregava quando em missão. Forçou o trinco, fàcilmente. A
casa era ampla e rica. Pé ante pé, subiu lanços de escada até
o andar superior. Os criados, em alojamentos do fundo, não
foram despertados. Avançou com sua lanterninha de pilha e
escolheu a porta de um dos quartos. Vazio. Mas, no
seguinte, alguém ressonava. Com muita suavidade,
aproximou-se do leito e ficou a contemplar, na penumbra, o
rosto da pessoa que dormia. Era um rapaz de feições
belíssimas; Brigitte notou imediatamente sua semelhança
com a moça da fotografia retirada do quarto de Virginia
Seigel. Seria o irmão de Sarah Barrow, sem dúvida. O
mistério começava a se esclarecer. Sarah Barrow, jovem
misteriosa de rosto impassível, que saíra minutos antes
levada pelo engenheiro Lovett, possivelmente seu pai, tinha
aquele irmão, recém-chegado de Londres, vivendo no
palacete. E, pelo que deduzira da conversa, esse irmão não a
havia visto... julgava-a morta. Mas, por que o rosto da moça
de branco não era igual ao do retrato? Tudo muito estranho!
Brigitte dirigiu o foco da sua lanterninha para o rosto do
jovem, querendo examiná-lo melhor. Ele abriu os olhos,
espantado, e sentou-se na cama.
— Quem está aí? —Estirou o braço, para acender a
lâmpada de cabeceira, e estarreceu-se, ante a visão de
Brigitte. — Quem é você?
E levantou-se abruptamente, abotoando o pijama de
cetim. Brigitte mentiu:
— Não se assuste. Sou amiga de seu pai. Vim visitá-lo,
esta madrugada, porque terei de viajar em seguida. Não o
encontrando, vim ter aqui, por acaso, e vi você, o filho de
que tanto me falava. Chegou de Londres, não é mesmo?
O rapaz sorriu, ingênuo, tranqüilizado, e convidou-a a
sentar-se.
— Perdoe-me, mas fico sem jeito de recebê-la nesta
intimidade... É amiga de meu pai, então? De Lingahacha ou
Abadan?
— De Abadan. E você, quando chegou?
— Há três dias. Vim de Londres, para este lugar ermo.
Papai mantém-me aqui recluso, como um castelão
medieval! Não quer me levar ao centro da cidade, nem
permite que eu fique em Abadan, pelo menos. Diz que eu
tenho de repousar aqui. Que aqui é o meu paraíso... coisas
assim... O velho tem lá as suas manias. Aliás, esta é a
primeira vez que venho ao Irã. Desde pequeno, estive
internado no colégio, em Londres. Nem quando minha mãe
e minha irmã morreram, papai consentiu que eu viesse ao
Oriente.
Brigitte animou a conversa:
— Você O artista da família, não é?
— Sim. Vejo que papai andou lhe contando... Quero
dedicar minha vida a fazer qualquer coisa de bonito. Gosto
de tecer tapetes. Talvez não me realize, mas me esforço
muito. Aqui, já estou rabiscando uns croquis, com motivos
persas. Creio que realizarei algo de novo, usando velhos
temas. Só que agora, diante de você, penso em tornar-me
um retratista. Você, que eu não conheço, é um modelo raro!
Como fica fascinante em vestes nativas! Deve ser
americana, não é? Por que fez questão do albornoz
iraniano?
Brigitte não se atrapalhou:
— Sou americana, sim, e talvez um tanto inclinada ao
turismo colorido. Resolvi andar por aí fantasiada de persa...
— Você me parece um tanto maluca, mas é simpática,
sem dúvida.
— Acha mesmo? Então, fale-me de sua irmã, que
também devia ser muito simpática.
— Ah, não me lembro com detalhes! Era ainda muito
garoto, quando a vi pela última vez. Papai não quer que haja
retratos de Alice pela casa. Gostava tanto dela que lhe fazia
mal vê-la, a todo instante, nas fotografias. Mas ainda guardo
um antigo retrato de minha pobre irmã.
Foi até uma cômoda e de lá voltou com uma fotografia.
Brigitte examinou-a demoradamente. Não se parecia com a
mulher de branco. Leu a dedicatória:
Ao meu querido irmão Robert um instantâneo da sua
Alice, num dia muito feliz.
Robert Lovett explicou:
— Foi batido no dia de seu noivado com Bernard Curtis,
um sujeito muito legal. Na semana seguinte, Alice sofreu
um desastre de automóvel e morreu.
— Que horror! E você nunca soube de detalhes? Nunca
indagou?
— Bem... Meu pai me escreveu uma longa carta, na
época, narrando o fato. Eles moravam, minha mãe e ele, na
cidade de Lingahacha — não nesta chácara, que ainda não
lhes pertencia — e mamãe e Alice seguiam, de automóvel,
para Abadan, para comprar o enxoval de minha irmã, O
carro tombou num despenhadeiro e ambas morreram
carbonizadas. O pobre Bernard Curtis desesperou-se. Dizem
que se alistou na Legião Estrangeira e por lá mesmo se
acabou, nas mãos dos marroquinos. Tudo muito triste, como
vê.
Brigitte sentiu que as informações estavam se arrumando
em seu cérebro, para revelar uma ponta do mistério. Alice,
ao que tudo indicava, deveria ser o verdadeiro nome de
Sarah Barrow. Alice Lovett.
A jovem repórter começou a raciocinar. Alice Lovett e
Sarah Barrow eram a mesma pessoa. O pseudônimo
acobertando os crimes. Mas... por que o rosto de uma não
era igual ao da outra? E por que a necessidade de cometer
crimes? Por que o comando sobre as megeras fanáticas, a
organização daquela verdadeira sociedade diabólica para
fazer o mal?
Brigitte preferiu continuar as suas investigações noutro
lugar. Ainda lhe restava ligar Sarah Barrow a Cafar e, este,
à Liga dos Albornozes Azuis. Despediu-se do jovem Robert
Lovett e saiu do palacete. Lá fora, o fiel Noiso estava
impaciente, sua espera.
— Encontrei um pequeno carro Triumph escondido no
mato — informou ele. — O nome do condutor é Ali Ben
Kasadan. E o endereço fica na estrada de Abadan, na
esquina da Sharia Kuwait.
— Onde é isso?
— Na entrada de Lingahacha. Conheço a casa de Ali
Ben. É a única, de azulejos azuis e brancos que existe
naquela rua.
***
O dia nascera de todo. Apesar dos protestos de Noiso,
tomaram o jipe o dirigiram-se para a tal casa de azulejos
azuis e brancos. Pelo caminho, Brigitte prendeu a pistolinha
com esparadrapo à coxa esquerda e recarregou as duas
Winchesters. Não confiava na polícia local e tinha o
pressentimento de que precisava agir ràpidamente, se
quisesse evitar outra tragédia tão grave quanto o incêndio da
Refinaria de Abadan. Pensava na notícia, que lera no jornal,
sobre a visita que Sua Majestade, o Xá, faria naquela tarde a
Lingahacha. Pouco a pouco, a inteligente repórter formava a
sua teoria...
Deixaram o jipe na Sharia Kuwait e seguiram, a pé, para
a estrada real, levando as Winchesters na mão. Era muito
cedo e metade da população ainda não se levantara. A
grande casa de azulejos azuis e brancos estava tão silenciosa
que parecia deserta.
— Ou muito me engano — sussurrou Brigitte ao ouvido
de Noiso —, ou esta é a sede da Liga dos Albornozes
Azuis! Temos que investigar com cautela!
O nativo estava pálido e trêmulo. Ele sabia que era ali o
reduto dos agentes comunistas de Cafar; por isso, tentava
demover sua companheira do intento de enfrentá-los. Mas
Brigitte estava decidida a colher os últimos dados para a sua
reportagem. Cautelosamente, entraram no quintal da casa.
Tudo deserto e silencioso. Súbito, dois vultos azuis
surgiram por trás das árvores e encostaram duas facas à
garganta da repórter e seu acompanhante. Noiso deixou cair
logo a espingarda, mas Brigitte só soltou a sua quando um
dos árabes a arrancou das mãos.
— Venham — ordenaram os homens dos albornozes
azuis. — Não façam barulho! Entrem pela porta da frente!
Falavam em persa e a repórter no os entendeu; mas o
empurrão que lhe deram era bastante eloqüente. A porta
principal da casa acabara de se abrir; caminharam para lá,
subiram uma pequena escada o entraram numa sala enorme,
com as paredes cobertas de valiosas tapeçarias. Os dois
guardas reuniram-se a outros dez árabes, todos com
albornozes azuis, que esperavam na sala. Um deles, que
parecia ser o chefe, usava um lenço no rosto, que lhe
ocultava as feições; apenas se viam os seus olhos. Ao
encará-los, Brigitte sentiu-se, outra vez, no Palácio das
Portas de Ferro; isso lhe causou um tremendo choque.
Erguia-se outra ponta do véu que ocultava o mistério!
— Cafar? — perguntou a repórter, na dúvida.
O homem embuçado não respondeu. Tinha uma pistola
na mão, que engatilhou cuidadosamente. Outro árabe falou,
em inglês:
— Fizemos mal em deixar escapar o seu amigo, que
esteve aqui procurando desatolar o carro! Foi ele,
certamente, que aos denunciou! Mas, depois da morte
destes dois espiões, e da chegada do Xá, não precisaremos
mais ‘desta casa. Cafar será avisado de tudo.
Então, o homem que escondia tão cuidadosamente o
rosto não era o chefe do bando. E, depois de ter visto os
seus olhos, Brigitte já imaginava como seria o seu rosto...
Era um complô extraordinário, com efeito! Um golpe de
mestre! Esse Cafar devia ser um demônio em figura de
gente!
Mas não teve tempo para novas reflexões: o embuçado
agarrou sua túnica com a mão esquerda e abriu-a
violentamente. A filha de Giselle surgiu quase inteiramente
nua aos olhos assombrados dos árabes. Estes ainda não
tinham voltado a si do espanto, quando a repórter arrancou a
pequena pistola da coxa o disparou-a, certeiramente, contra
a testa do homem do rosto velado, que emitiu um gorgolejo
e caiu de costas, ficando imóvel, O lenço saltou de seu rosto
e todos puderam ver as feições aristocráticas de Sua
Majestade, Reza Pahlevi, o Xá da Pérsia! Era inacreditável!
Ouviu-se um “oh” de surpresa e, depois, um “uh” de
indignação; ato contínuo, todos os homens de albornozes
azuis tiraram punhais da cintura. Mas, nesse momento,
estrondaram tiros e rajadas de metralhadoras, no quintal. As
vidraças da casa voaram em estilhas. Outro árabe entrou
correndo pela porta aberta, exibindo o rosto coberto de
sangue.
— Fujamos! — gritou, em persa. — É a polícia!
Ninguém mais se lembrou de Brigitte ou Noiso. Os
homens dos albornozes azuis começaram a correr de um
lado para o outro, como baratas assustadas. Dois deles
tinham revólveres e puseram-se a atirar pela porta e pela
janela. Mas logo a casa foi invadida por uma dúzia de
policiais uniformizados. Brigitte agarrou na mão de Noiso e
arrastou-o para os fundos. Não lhe agradava ser presa, para
ter que dar explicações antes da hora.
Na cozinha, um dos árabes acabara de suspender a
tampa de um alçapão e preparava-se para fugir por ele:
Brigitte voltou a disparar a pistolinha e liquidou-o; depois,
sempre arrastando Noiso, desceu pelo alçapão e fechou-o,
com o trinco, pelo lado de baixo. Estavam num corredor
subterrâneo, que ia dar noutra casa velha e desabitada, do
lado oposto da Sharia Kuwait. Saíram para a rua e puderam
ver alguns carros da polícia, parados junto da calçada. Na
casa de azulejos azuis e brancos o tiroteio continuava. Um
policial, gordo e prazenteiro, estava encostado a uma das
viaturas oficiais.
— Que aconteceu? — perguntou Noiso, na sua língua
natal.
— Não se meta! — rosnou o agente da lei. — Vão-se
embora daqui! Depressa!
Era isso mesmo o que eles queriam. De braço dado,
tomaram o jipe (que esperava pouco adiante) e voltaram,
tranqüilamente, para o Hotel Sadrabad.
A bela o astuta filha de Giselle dormiu apenas algumas
horas, para refazer-se dos sucessos da noite. Os impactos de
emoção eram, para ela, verdadeiramente tranqüilizantes.
Qualquer mulher, depois do todos aqueles acontecimentos,
teria necessitado uma internação em clínica de repouso, por
prescrição médica. Brigitte sentiu-se nova em folha, às onze
horas da manhã, como se os episódios da noite anterior não
tivessem sido mais do que pequeninas doses de excitantes.
Antes de pedir o café, ligou para a recepção.
— Não terá chegado a este hotel, procedente de Abadan,
um senhor chamado John Delancey?
O funcionário confirmou:
— Sim, miss Montfort... e já há algum tempo.
— Obrigada. Quer ter a bondade de passar esta ligação
para o quarto dele?
— Ele não está — respondeu o funcionário, com voz
grave. — Acontece que Mr. Delancey foi preso!
— Como?
— Isso mesmo. Foi preso, esta madrugada, acusado de
assassinato da hóspede do quarto n.° 30!
A repórter não perdeu tempo com novas perguntas. Já
sabia que a hóspede do quarto n.° 30 era Virginia Seigel, e
fora morta por Ali Ben Kasadan. Apressou a toalete,
desceu, chamou o seu fiel “escudeiro” Noiso, já firme junto
à entrada e embarcou no jipe, rumo à Delegacia. A prisão de
Delancey precipitara os acontecimentos; agora, ela
precisava se explicar com a polícia.
***
O rotundo inspetor da barbicha negra perdeu-se em
salamaleques, quando Brigitte deu entrada no seu exíguo
gabinete de “sherlock” subdesenvolvido.
— Sou Ali Maraghesi, miss. Um criado às suas ordens...
Brigitte apresentou-se discretamente, com suas
credenciais de jornalista do “Morning News” de Nova
Iorque. Perguntou, em seguida, pelo seu amigo John
Delancey, funcionário da Anglo-Iranian. O inspetor
encarou-a suspicazmente.
— Conhece o acusado, miss Montfort? De onde?
— É meu amigo. Tínhamos combinado visitar juntos a
cidade, que mostra aspectos interessantes para o meu
trabalho de repórter. Agora, sou surpreendida com esta
notícia absurda, de que John foi detido e indiciado, e que
sua prisão é inafiançável! Que loucura é esta? Estaremos
assim tão longe da civilização que um cavalheiro como Mr.
Delancey possa ser trancafiado sem provas, da noite para o
dia?
Falava energicamente e conseguia impressionar. O
inspetor Maraghesi fez sinal aos guardas para que se
retirassem e dirigiu-se, com voz mansa à repórter:
— Presto-lhe uma homenagem, miss. Ao seu encanto
pessoal e à sua condição de jornalista americana. Devo
explicar-lhe que exorbitei das minhas funções, ontem,
quando dei ordem de prisão a Mr. Delancey. Fingi-me de
imbecil, banquei o “sherlock” de novela, mas com um
objetivo: guardar imediatamente seu amigo atrás das grades,
para protegê-lo, evitando assim mais um crime. Ele poderia
ter visto alguma coisa especial no caminho de Lingahacha
e... Além disso, a vítima era sua enfermeira... e foi morta de
maneira muito cruel!
— Eu sei. Virginia Seigel morreu porque ia falar.
O inspetor arregalou os olhos empapuçados.
— Então, também conheceu Virginia Seigel?
Houve uma conversa prolongada, em que Brigitte fez
ver ao inspetor que nem ela nem Delancey poderiam ter
qualquer relação com o crime, praticado por um
profissional. Mas o detetive iraniano não cogitava disto e já
formulara suas suspeitas em torno de outro personagem.
— Eu sei, miss — explicou ele, em voz baixa. —
Observei as lanhaduras na face da vítima e compreendi, de
pronto, do que se tratava. Não lhe posso dar maiores
explicações.
Brigitte teve de mostrar a Ali Maraghesi o documento
assinado pelo Xá. O homem quase se desmanchou em
reverências. Então ela explicou:
— Colaboro, nisto tudo, com o Intelligence Service e
quero ver resolvido este mistério, que apavora o país, dos
atos de terrorismo contra a Anglo-Iranian. Venho seguindo
uma pista segura, há algum tempo. Não estou em
Lingahacha por acaso. Creio que descobri o roteiro dos tais
“fantasmas” comandados por Cafar. Suponho que o senhor
já ouviu falar nesse Cafar, não?
— O assunto é motivo de comentário geral por aqui —
disse o inspetor, cauteloso.
— Pois é. Mas os tais “fantasmas” não são levados a
sério, ou são levados a sério demais, isto 6, ou duvidam de
sua existência, ou acreditam na organização terrível que eles
constituem... e calam o bico!
— Tem razão — assentiu o inspetor, sacudindo a
barbicha. — E há de compreender que, com essa confusão,
a polícia não sabe por onde começar a agir. Pessoalmente
lhe digo... e peço-lhe toda a reserva... que já agarrei metade
dos cúmplices de Cafar e estou na pista dos seus
“fantasmas”. Há uma mulher que comanda, aqui, certas
fanáticas fumadoras de ópio. Seu nome é Sarah Barrow. Já
ouviu falar nela?
Brigitte assentiu, O inspetor continuou:
— É uma estranha mulher, que tem várias caras e chefia
um bando de loucas viciadas. Ela as induz a cometer crimes
e atos de terror, sob o efeito de entorpecentes. Estou me
aproximando de toda a verdade. É difícil conseguir
delatores. Ninguém quer falar, no bairro de Tarut, onde sei
que existem redutos dessas megeras. Elas desfiguram o
rosto dos informantes e os profanam terrivelmente. Mas os
mais velhos do lugar sofrem com a onda de crimes, e talvez
cheguem a me fornecer algum dado precioso sobre os
pontos-chave dos encontros sinistros.
A repórter ouvia tudo em silêncio. Ali Maraghesi
prosseguiu:
— O mais importante é que dois terroristas, que acabam
de ser presos em Abadan... dois árabes vestidos com os
albornozes azuis da seita de fanáticos do “fogo sagrado”...
confessaram que há ligações entre esta Sarah Barrow e
Cafar, além de darem a entender que há pessoas influentes,
disfarçadas, metidas no caso. Por isso, temos que agir com
cautela. Ainda agora, graças a uma indicação de Mr.
Delancey, acabei de aprisionar metade dos cúmplices de
Cafar, numa casa isolada da rodovia de Abadan. Mas
nenhum deles falou. E o chefe escapou, outra vez!
— O senhor julga que Cafar é algum nativo?
— Acho que não. Suponho... e tenho razões para
fundamentar minhas hipóteses... que Cafar seja um arguto
agitador, funcionando para uma potência estrangeira
interessada no petróleo do Irã. O próprio Partido Tudé, de
tendências comunistas, não deve estar alheio ao caso! As
mulheres desfiguradas de Sarah, encarnando os “fantasmas”
de Cafar, servem para excitar a imaginação dos nativos
supersticiosos e com isso estabelecem confusões que
dificultam o trabalho da polícia e do serviço secreto. Há três
quadrilhas criminosas trabalhando para
Cafar: os comunistas dos albornozes azuis, os
sabotadores nacionalistas e as mulheres-monstros de Sarah
Barrow.
— Bem pensado — aprovou Brigitte, contente de
encontrar alguém com as suas mesmas conclusões.
— E, na sua opinião, por que Sarah Barrow mandaria
matar Virginia?
Ali Maraghesi cofiou a barbicha e raciocinou em voz
alta:
— As mulheres de Sarah são viciadas em tóxicos. A
própria Sarah é morfinômana. Para sustentar seu “exército”
de bruxas, precisa de entorpecentes. E as drogas são cada
vez mais caras. A ligação com uma enfermeira de hospital
de grandes recursos é essencial para os contatos com
fornecedores. São Cafar e os seus seguidores que dão o
dinheiro a Sarah Barrow. A morte de Virginia talvez se
prenda ao tráfico de drogas. Algum fornecimento gorado,
algum atraso nas entregas...
— Não — sorriu Brigitte. — Nesse ponto o senhor se
engana. Virginia Seigel, estava arrependida e disposta a
falar. Por isso, foi apunhalada pelo carrasco da seita dos
Albornozes Azuis. Agora, solte Mr. Delancey e prometo-lhe
a maior ajuda. Traga-me John e vamos, juntos, para o hotel.
Tenho urna revelação estarrecedora a fazer-lhe. Mas só no
hotel.
O inspetor curvou-se quase até ao chão. E logo arregalou
os olhos, quando a bela repórter acrescentou:
— A propósito o carrasco de Sarah Barrow, um árabe
chamado Ali Ben Kasadan, morreu misteriosamente no
pórtico da casa de campo do engenheiro Henry Lovett.
Outro persa, sósia do Xá, também morreu, noutro local...
Porventura, o senhor não devia me falar em passarinhos?
— Por Alá! — exclamou o policial, batendo na testa. —
Então, estou falando com a amiga do inspetor Pitzer?! E eu
que pensava que fosse Mr. Delancey! Nesse caso, foi quem
fez o diabo na casa de azulejos azuis e brancos?
— Sim — respondeu Brigitte, modestamente. — Fui eu.

CAPITULO OITAVO
Um bilhete do Comandante
Os “comandos” do Inspetor Maraghesi
Encontro dramático
Revelação final

John Delancey apareceu e juntou-se a eles. Ao saírem da


Delegacia, o inspetor ainda insistiu, segurando no braço de
Brigitte:
— Desculpe, miss Montfort. Recebi ordens para ser o
seu contato no Irã. Deverá entregar-me o seu relatório, antes
de enviar a sua reportagem para o “Morning News”.
— Agora é tarde — obtemperou ela, sem perder o seu
sorriso. — O caso já está quase terminado. Levarei o meu
relatório, pessoalmente, ao Inspetor Pitzer.
Meia hora depois, já no apartamento da bela jornalista, o
inspetor Maraghesi e Delancey ouviam o relato Completo
dos episódios vividos por ela, na noite anterior. O tiroteio
na casa das mulheres desfiguradas, a fuga de Bemard Curtia
pelo rio, a visita à chácara de Henry Lovett, as conversas
ouvi- das, o assalto à casa azul e branca, e tudo o mais. A
repórter só teve o cuidado de omitir o nome do atirador que
liquidara Ali Ben Kasadan, pois não queria complicar o seu
amigo Noiso.
John Delancey estava mais do que estupefato. O inspetor
coçava a barbicha, frenèticamente. Noiso foi posto de
sentinela, na portaria, aguardando a possível chegada de
Bernard Curtis, agora uma peça-chave em todo aquele caso
apaixonante. Ali Maraghesi arriscou um palpite:
— Podemos deduzir, então, que Virginia Seigel viera a
Lingahacha tentar entrevistar-se com Sarah Barrow,
possivelmente para evitar a morte iminente de Bernard
Curtis. Mas falhou e foi eliminada pelo carrasco, que já
andava atrás dela. — Resolveu, então, expor o que sabia de
mais interessante: — Em Abadan, consegui aprisionar um
certo Kuhi, integrante do bando de sabotadores
nacionalistas. Em vez de castigá-lo, enchi-o de presentes,
cuidei de sua família, captei-lhe a confiança, enfim.
Transformei-o num auxiliar precioso. Através de suas
informações, pude seguir várias pistas. Até porque esse
Kuhi, já devidamente instruído, continuou a encontrar-se
com alguns dos membros do bando, colhendo informações.
Tal como os homens dos albornozes azuis e as viciadas de
Sarah Barrow, os sabotadores reuniam-se nos pontos ermos
da cidade, ou nas cavernas de Yad-Morian, ao norte de
Tarut.
— Quem sabe essas cavernas não se comunicam,
subterraneamente, com aquela casa onde encontrei as
mulheres? — sugeriu Brigitte. — Noiso me informou que
as megeras sempre desaparecem dos redutos, como que por
milagre. Só se pode concluir que existam passagens
secretas. Ora, a filha do engenheiro Lovett falou que, esta
noite, haveria reunião da quadrilha numa caverna e...
O inspetor assentiu e deu seqüência à sua narrativa:
— Esse homem, Kuhi, assistiu, há três dias, a uma cena
muito expressiva. Reunião do bando quase completo,
dirigido por Salim Fasan, um agitador terrível. Esperavam a
visita de Mut Sacha, outro líder nacionalista, e de um
personagem embuçado. Mas foi Mut Sacha quem falou.
Disse que iriam cessar os ataques à Companhia Anglo-
Iranian, pois assim o determinara o chefe da missão que
estavam cumprindo. O personagem embuçado, que depois
se soube tratar-se do próprio Cafar, estranhou essa
resolução. Mas Salim Fasan explicou. Obedeciam ao grande
chefe religioso, Kashani, por graça de Alá. Kashani estava,
agora, ao lado do Xá, e o soberano, “filho de sete reis”, não
queria que se tocasse nos ingleses. Declarou, por fim, para
dar uma medida da fidelidade fanática que os ligava ao seu
chefe religioso, que, se Kashani resolvesse botar fogo no
próprio Parlamento, eles o fariam de bom grado. Nesse
ponto, Cafar exaltou-se. Retrucou com algumas palavras
que não agradaram à assembléia. Alguns dos presentes se
dispuseram a avançar contra o mascarado, mas este
desapareceu, como que por encanto, protegido pelos
homens dos albornozes azuis.
— Deve ter usado o tal subterrâneo que dá na casa de
Sarah Barrow — concluiu Brigitte. — Aliás, deve ser por
isso que os nativos afirmam haver visto Cafar em dois
lugares ao mesmo tempo. É óbvio que ele não se mostra em
dois lugares no mesmo tempo, mas usa os subterrâneos,
para confundir os asseclas e o próprio povo. É um
prestidigitador hábil. Inclusive, deve produzir as tais
impressões digitais quadradas, para causar espanto...
— Naham — fez o inspetor. — Como lhes disse, acho
que Cafar usa Sarah Barrow e suas mulheres disformes
como uma espécie de horda auxiliar nas sabotagens e atos
de terrorismo. Para dar a entender que controla seres do
outro mundo...
— O senhor sabe de muita coisa — interveio Brigitte. —
Mas não sabe do principal. Investigou a origem daquele
árabe, morto na casa azul e branca, que tinha as feições do
Xá?
— Nahan — afirmou o inspetor, piscando os olhos. —
Ele veio de Quazvin e também trabalhava para Cafar. Só
não compreendo, ainda, as intenções dos homens dos
albornozes azuis, ao manterem aquele sósia de Sua
Majestade, embuçado, na casa da Sharia Kuwait! Isso, eu
não compreendo!
— Posso lhe explicar o resto — disse Brigitte,
triunfante. — Agora, possuo elementos para reconstituir
todo o quebra-cabeças. Só me falta descobrir a verdadeira
identidade de Cafar. Este líder comunista estava empenhado
em entregar o petróleo do Irã às potências do leste. Seus
“albornozes azuis” dirigiam os atos de sabotagem,
executados pelos nacionalistas por patriotismo, e pelas
viciadas de Sarah Barrow, para receberem os tóxicos
fornecidos por Virginia Seigel. Mas as intenções de Cafar
eram mais ambiciosas: Ele planejava raptar, ou assassinar,
o Xá Reza Pahlevi, colocando um sósia no trono! O
atentado teria lugar esta tarde, quando Sua Majestade
visitasse Lingahacha; e o substituto do Xá, de volta ao
Palácio das Portas de Ferro, receberia a missão econômica
soviética, denunciando o acordo feito com os ingleses e
assinando um novo contrato com os russos! Por sorte do
soberano, seu sósia foi morto na casa da Sharia Kuwait e a
conspiração fracassou. Agora, só nos resta esperar que
Cafar compareça ao encontro, nas cavernas de Yad-Morian.
— Ele vai comparecer — afirmou o inspetor, com voz
grave. — Eu já sabia que as três quadrilhas iriam se reunir
na caverna, pois fui eu quem deu ordem para essa reunião.
— O senhor?! — exclamou Delancey, sobressaltado.
— Eu. Meu auxiliar, Kuhi, conseguiu um papel assinado
por Mut Sacha. Nossos peritos falsificaram sua letra, num
convite forjado, para atrair Sarah Barrow e Cafar às
cavernas. Diz o falso convite que haverá reunião geral, para
deliberações importantes, quando serão conhecidas novas
ordens de Kashani. Cafar decerto se sentirá atraído, pois
seus “albornozes azuis” nada podem fazer sozinhos, sem a
ajuda dos nacionalistas. Já informei a miss Montfort que
tenho uma boa ligação com um árabe desta zona, um dos
mais velhos, revoltado com os crimes da horda e
interessado em colaborar com a polícia. Aliás, sei agora que
miss Montfort já o conhece. Trata-se do pai de Noiso, o
velho Nagdi. Pois bem: a esta hora, Nagdi já entregou uma
mensagem a Sarah Barrow, que, por sua vez, a transmitirá a
Cafar, esteja ele onde estiver. Resta-nos aguardar um pouco
e partir para as cavernas, ao norte de Tarut.
Nesse instante, Noiso bateu na porta e entrou com uma
carta. Brigitte abriu ràpidamente o envelope e leu em voz
alta:
Cara Miss Montfort: Resolvi dar-lhe alguns
esclarecimentos para a sua reportagem, em
retribuição ao fato de haver-me salvo a vida, ontem,
naquela casa sinistra. Perdoe-me se não vou ao seu
encontro pessoalmente, mas estou a preparar-me
para uma solução decisiva. Fui noivo de Sarah
Barrow, aliás, Alice Lovett, filha do engenheiro
aposentado Henry Lovett. Alice escapou de um
desastre de automóvel, em que pereceu a mãe dela.
Ficou horrivelmente queimada e mutilada. Padeceu
como mártir. No hospital, teve que submeter-se a
tratamentos cruéis e terminou viciada em morfina.
Proibiu-me de voltar a vê-la. Desfez o noivado, mas
declarou que não poderia jamais ver-me casado com
outra. Dava mostras de loucura progressiva,
revoltada contra a vida e a humanidade. Culpava o
gênero humano, o destino, de havê-la privado de sua
beleza. Deu para reunir-se com outras infelizes
viciadas, míseros farrapos humanos. Desapareceu da
circulação, isto é, deixou de ser comentada, quando
seu pai, Henry Lovett, anunciou que havia morrido
numa clínica americana. Por esse tempo, eu,
veterano da guerra no mar, consegui o comando de
um petroleiro da Anglo-Iranian, deixando o serviço
de terra. Numa de minhas permanências em
Lingahacha conheci Pat e casei-me com ela. Sabia,
por rumores, que já existia o tal grupo de mulheres
viciadas, chefiadas por uma tal Sarah Barrow, com
jeito de sociedade secreta, amparada e temia pelos
mais velhos. Jamais desconfiei, porém, que Alice
estivesse viva e fosse a própria Sarah. Só fiz a ligação
entre os dois nomes quando John Delancey
mencionou a conversa de Virginia Seigel sobre
Sarah. Virginia era amiga de Pat e aqui viveu muito
tempo. A intuição me deu a chave do mistério. Corri
até aqui e não encontrei minha esposa. Virginia deve
saber de tudo, mas também desapareceu. Minha
sogra, a única pessoa viva da família de Pat, está
apavorada e nada me quis revelar. Apenas me
informou que Pat desaparecera, levada por uma
mulher muito pintada e vestida de branco. Tive que
recorrer a um grupo de amigos de Nishkan, uma
aldeia próxima, contrabandistas a quem tive
oportunidade de servir, no passado. Disseram-me
muitas coisas de Sarah Barrow, de sua legião de
monstros na cruzada de vingança contra a
Humanidade. Deram-me o endereço da casa
apontada como sede da terrível sociedade. Fui lá,
com um pressentimento, pois sentia que não era
verdadeira a notícia da morte de Pat. Procurava
arrancar minha mulher daquele antro tenebroso, O
resto você sabe. Você viu o horror com seus próprios
olhos. Eu acreditava que, sozinho, pudesse enfrentar
as mulheres. Errei. Mas estou convencido de que Pat
ainda vive, reclusa, seqüestrada por Sarah. Contei
tudo aos meus amigos, depois que escapei pelo rio,
ontem. Resolveram ajudar-me. Hoje, tentarei salvar
minha mulher. Se não morrer, amanhã lhe darei
notícias. Se John Delancey aparecer, mostre-lhe esta
carta. Você estranhará por que procuro fazer justiça
com minhas próprias mãos, mas é que a polícia local
é lenta e inepta, e seus soldados têm medo das
mulheres fantasmas, supersticiosos como são. Adeus.
Bernard Curtir.
O inspetor Maraghesi desfez o pesado silêncio que se
seguiu:
— Ele tem razão. Nossos soldados, alguns muito
ignorantes, tremem com o nome de Sarah Barrow. Já pedi
reforços ao Coronel Cadman, em Abadan, para o cerco de
hoje. Não acredito que cheguem a tempo. É sempre um tal
de Capitão O’Brien quem comanda a tropa, e parece-me um
oficial inepto, descuidado, preguiçoso. Faz questão de
chegar sempre atrasado, O coronel fica furioso, mas que
adianta?
Mal acabara de falar, o telefone tocou. Era da portaria. o
inspetor ouviu um minuto e desligou, anunciando:
— O Capitão O’Brien acaba de chegar de Abadan. Mas
continua sendo um inepto! Sua tropa só chegará amanhã!
Que adianta?
A noite caiu. Tudo combinado, o inspetor Maraghesi não
queria que Brigitte participasse da operação. Mulher bonita,
dissera ele, não entrava em tiroteio! Mas não conhecia a
força da repórter...
Diante da ameaça de Bernard Curtis, de fazer justiça
pelas próprias mãos, o inspetor resolveu partir mais cedo
para o ataque. Mostraria que a polícia de Lingahacha não
era assim tão medrosa! Além do mais, contava com.o
auxílio do Capitão O’Brien, que se antecipara aos seus
soldados e dos “comandos” nacionalistas de Salim Fasan e
Mut Sacha, agora inclinados para o lado do Xá.
— Esse bando de loucos me ajudará — afirmava,
coçando a barbicha. — A gente tem que lutar com o
material possível! Quem não tem cã caça com gato!
Delancey juntou-se a ele na Delegacia e pediu para
tomar parte na expedição. Brigitte e Noiso foram para o
restaurante de Nagdi, aguardar o desenrolar dos
acontecimentos. Mas a repórter ficou indócil por se ver
afastada do perigo e induziu Noiso a levá-la até a casa de
seu primo, perto da praça, onde na noite anterior o nativo
conseguira as Winchesters.
— Tenho que ficar de olho — disse Brigitte. — Talvez
só eu faça uma vaga idéia de quem é Cafar. E quero estar
preparada para agarrá-lo!
Ali, ao lado da casa de Sarah Barrow, poderiam observar
de mais perto a operação. Viram quando a viatura de Ali
Maraghesi deu uma volta pelo local, indo parar, por
instante, numa das ruelas próximas do rio. O jipe de Brigitte
ficara na frente do restaurante de Nagdi, garantindo a sua
desculpa.
Seguiu-se um silêncio expectante, de uma hora.
Maraghesi já rumara para as cavernas de Yad-Morian. O
Capitão O’Brien e Delancey esperavam. Dois carros
pararam na praça e despejaram uma dezena de homens,
armados com submetralhadoras. Fez-se um círculo, no
estilo dos “comandos”, que se foi fechando cautelosamente
em volta da casa de Sarah Barrow. Apenas o Capitão
O’Brien resolveu ficar para trás e penetrar no reduto por
outra entrada secreta, entre a casa e as cavernas. Brigitte e
Noiso seguiram-no, já armados com duas novas
Winchesters automáticas.
Seguiram ao longo das choças dos nativos e atingiram a
entrada de uma pequena gruta de pedra, na beira do rio. Aí,
pararam. Nesse momento, o matraquear terrível das
metralhadoras explodiu no silêncio, atingindo portas e
janelas da casa de Sarah Barrow. Para surpresa dos
“comandos”, o fogo foi respondido imediatamente. Seguiu-
se um combate terrível. As mulheres mutiladas, secundadas
por turmas de homens armados do bando de Cafar, todos
vestidos com albornozes azuis, saíram da casa sinistra,
cuspindo fogo. Ao clarão da metralha, Brigitte pôde
vislumbrar, a distância, a figura loura de Bernard Curtis,
também acompanhado por um grupo de combatentes, os
seus amigos contrabandistas, O comandante queria mesmo
entrar na casa, a ferro e fogo. Afinal, com os monstros
acuados na grande sala do fundo onde estava a estátua de
Ahriman, Bernard conseguiu penetrar, outra vez, no antro
dos daevas. E teve uma grande surpresa! Uma voz, lá no
fundo da terra, gritando por socorro! Era a voz do sua
mulher, naturalmente presa num dos subterrâneos. Como
alucinado, Curtis sapateava no assoalho e berrava:
— Pat? Pat! Onde está você? Sou eu, Bernard! Vim
salvá-la dessas taradas!
Então, a voz chegou, como que das entranhas da terra,
fanhosa mas reconhecível:
— Bernard! Estou trancada aqui embaixo!
Localizado o alçapão no assoalho imundo, junto ao altar
do Ahriman, Curtis bradou:
— Saia da frente, Pat! Vou abrir caminho a bala!
Atirando na penumbra, abriu o alçapão e teve
confirmadas suas terríveis suspeitas. Pat, sua querida Pat,
tão bonita, tão suave, não passava agora de mais um
monstro de Sarah Barrow! O rosto inteiramente desfigurado
por ácidos! Cicatrizes, chagas terríveis! O nariz decepado!
Um olho vazado!
Aquele impacto quase o fez rugir de cólera. Avançou
para o buraco, de pistola em punho, com um brilho
assassino nos olhos. No subterrâneo, saiu em perseguição
das megeras. Mas encontrou pela frente um vulto branco, de
rosto excessivamente pintado, que se recortava contra a
parede imunda. Não teve tempo de dar ao gatilho; a mulher
de branco foi mais rápida e cobriu-o de metralha, numa
rajada fatal. Também Pat, atingida, tombou inerte sobre o
corpo ensangüentado de seu marido.
Depois, silêncio e uma corrida vertiginosa da mulher de
branco, para os fundos do subterrâneo. Súbito, uma
explosão reboante, um tiro de Winchester. O vulto branco
abateu-se como que fulminado.
Das entranhas da terra tinham surgido Brigitte, Noiso e o
Capitão O’Brien. E fora o jovem nativo quem matara Sarah
Barrow.
Pouco antes, nas grutas de Yad-Morian, o capitão guiara
Brigitte e Noiso pelos complicados corredores subterrâneos,
que iam dar na casa sinistra, O oficial marchava na frente,
mantendo a pistola em riste, e Brigitte ia logo atrás, com a
Winchester nas mãos. Noiso fechava a fila.
— Cuidado com os pés, miss Montfort — avisou
O’Brien. — Agora, vamos atravessar um charco de águas
fétidas. Falta pouco para entrarmos, pelos fundos, no reduto
dos monstros!
Realmente, daí a pouco desembocavam no subterrâneo
do pardieiro, justamente a tempo de assistir à morte de
Bernard e Pat. E Noiso apertara o gatilho da sua
Winchester, abatendo a mulher de branco.
Brigitte debruçou-se sobre o cadáver de Alice Lovett,
cujo rosto pintado era diferente daquele com que se
apresentara na chácara, e arrancou-lhe a fina máscara de
borracha que escondia suas verdadeiras feições. Estas eram
horríveis, hediondas, deformadas pelo vício e pelas
cicatrizes do desastre em que quase perdera a vida.
— Ela usava uma pele pintada sobre o rosto — explicou
a repórter. — Por isso, parecia ter muitas caras. Mas ainda
não encontramos Cafar!
O Capitão O’Brien assentiu.
— Provàvelmente, escapou pelo rio. Ou, então, foi
prevenido e não veio ao encontro. Nunca saberemos quem é
Cafar!
— Eu sei — retrucou Brigitte. — Cafar desconfiou da
cilada, realmente, o preveniu-se, entrando aqui pelos
fundos, numa tentativa de ajudar os seus asseclas. Fiquei
muito admirada, capitão, ao ver que o senhor conhecia os
meandros das cavernas de Yad-Morian. Só o próprio Cafar
conheceria tão bem a topografia do local!
O Capitão O’Brien ergueu a pistola, mas a reporter foi
mais rápida e disparou sua Winchester, atingindo o militar
na mão armada. A pistola caiu.
***
— Vá erguendo os braços, Cafar! — intimou Brigitte. —
Sei que você é o tal que domina esses monstros! Não tente
qualquer movimento em falso; puxo o gatilho em um
segundo! E o KGB não está aqui para ajudá-lo!
Já então os “comandos” de Ali Maraghesi entravam no
subterrâneo, dominando a situação. O Capitão O’Brien não
teve saída e entregou-se.
Na outra extremidade da passagem subterrânea, o grupo
foi encontrar John Delancey e outros “comandos”,
responsáveis pela fuga de Sarah Barrow por aqu&le lado.
Surpreenderam-se ao verem Brigitte surgir, armada de
Winchester dominando o Capitão O’Brien, cuja mão
pingava sangue. A repórter não comentou seu feito; apenas
conferiu:
— Não lhes disse que havia um subterrâneo? Ê um
verdadeiro túnel natural. E aqui está o misterioso Cafar, ou
seja, o Capitão O’Brien, sem máscara nem roupa preta! Ele
está pronto para confessar a sua traição!
O inspetor Maraghesi soltou um grunhido de espanto.
Mas John Delancey foi mais calmo:
— Imagine com que cara vai ficar o Coronel Cadman!
Ele que é anticomunista ferrenho!
Noiso interferiu, respeitosamente:
— Seria melhor pedirmos a ajuda do povo. Há muitos
cadáveres para serem enterrados.
Mas foi o grupo de Salim Fasan e Mut Sacha que se
encarregou da tarefa sinistra de transportar os cadáveres. Na
praça, o povo se comprimia para ver a saída dos
“fantasmas” de carne e osso. Tão de carne que sangravam.
Na manhã seguinte, tudo serenado, a prisão do
engenheiro Henry Lovett foi um ato de rotina. O velho
chorava convulsivamente e pedia para ver o corpo de sua
filha Alice, abatida no subterrâneo. Alice (ou Sarah Barrow)
no esquife, sua cara medonha, repuxada por velhas
queimaduras, parecia a encarnação do demônio, do próprio
Buiti que perseguiu Zoroastro.
Robert Lovett, informado dos fatos, pediu a Deus que
tivesse misericórdia da alma de sua irmã. E derramou
lágrimas quentes, sem mais palavras.
O inspetor deu outras explicações sobre Henry Lovett,
um homem alucinado pela filha, capaz de sujeitar-se a todos
os seus caprichos, inclusive os do crime. Henry Lovett
também não se poderia classificar como um homem normal;
recolheram-no a um manicômio judiciário.
***
E a missão econômica soviética que esperava encontrar
um Xá dócil aos interesses imperialistas do Kremlin, voltou
para Moscou sem ter conseguido o controle do petróleo do
Irã.
No meio de tudo isto, só o jovem Noiso não parecia
feliz. Afeiçoara-se à bela jornalista americana de tal modo,
que a esta não custou pouco trabalho consolá-lo da mágoa
que antecipadamente senti por sua ausência.
John Delancey e o Coronel Cadman fizeram insistentes
apelos a Brigitte para que permanecesse alguns dias mais
em Abadan, embelezando a paisagem. Queriam ter uma
chance, por certo. Até o inspetor Maraghesi- ficara de olho
aceso.
Mas a bela repórter já se comunicara com seu chefe
Miky Grogan e recebera um telegrama com instruções sobre
sua nova missão: — Atenas!
Uma repórter bonita não se detém nas cidades
conquistadas. E Abadan já era, para ela, uma praça
vencida...
© 1963 - J F KRAKBERG
450111/450112

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