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TURISMO E TERRITÓRIO: APORTES TEÓRICOS PARA UMA


NOVA AGENDA DE ESTUDOS GEOGRÁFICOS

Marcos Aurélio Tarlombani da Silveira


Universidade Federal do Paraná – UFPR
Curitiba, 2009
marcos.ufpr@yahoo.com.br

INTRODUÇÃO
Este ensaio busca fazer uma revisão teórica das contribuições da Dra. Adyr
Balastreri Rodrigues com vistas a identificar novas perspectivas de análise que
possam subsidiar a abordagem geográfica do turismo no Brasil. Rodrigues (2006)
enfatiza a apropriação do território pelo turismo em suas mais variadas escalas.
Destaca o turismo como um dos elementos fundamentais da globalização, ao
considerar tanto a subordinação da atividade turística aos atores hegemônicos da
economia global, bem como o seu caráter contemporâneo mediado pelo modelo de
acumulação capitalista.
Para a autora, as matrizes conceituais-metodológicas que configuram o
contexto social da modernidade são basilares e fundamentais para o entendimento
do fenômeno do turismo, particularmente a partir do período fordista, sob a
imposição de um “[...] pacto social baseado na redistribuição do excedente material
da produção e na distinção bipolar do espaço-tempo, nomeada como esfera de
trabalho e esfera do ócio. [...]” (RODRIGUES, 2006, p.297-298).
Durante o pós-fordismo, nos países centrais do capitalismo, ocorre uma maior
flexibilidade da produção e dos calendários operativos, contudo a dualidade entre as
esferas do trabalho e do ócio não desaparece por completo. As ambigüidades entre
estas esferas “[...] dificultam as análises que procuram apreender as dinâmicas dos
espaços de lazer, tanto no campo como na cidade, assim como nas novas
territorialidades produzidas pelo turismo” (RODRIGUES, 2006, p.297-298).
Nesta perspectiva, segundo autora, a fase pós-fordista do lazer e do turismo
baliza a dualidade (trabalho-ócio) a partir dos anos 1980, quando há uma maior
flexibilidade da oferta como um novo modelo na ordem de produção que permite à
gestão integrada em um processo contínuo de vários produtos turísticos
intermediários, tornando possível, a partir do manejo da informação, a oferta de
produtos mais flexíveis.
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Pode-se entender este processo como “estratégia para a desmassificação do


mercado”, afinco de atender a “nichos subordinados a interesses vários,
correspondentes a demandas cada vez mais exigentes” (RODRIGUES, 2006,
p.298). Trata-se do predomínio do lazer alienado e dos pacotes estandardizados,
caracterizando o turismo, importante segmento da economia de mercado, como viés
de atuação e reprodução de sistemas produtivos globais, capitaneados por
macroatores e permeados por uma “lógica organizacional reticular, cada vez mais
competitiva e tecnificada” (RODRIGUES, 2006, p.298).
Ratificando a idéia da autora argumenta-se que a popularização do lazer está
ligada ao maior tempo livre do trabalho, a partir das conquistas trabalhistas do
século XX, como a redução na jornada de trabalho, o direito a férias e ao décimo
terceiro salário. Além de ser uma conseqüência da ampliação do tempo livre e das
atividades de lazer, o crescimento do turismo no mundo tem profunda ligação com o
desenvolvimento do capitalismo e das técnicas (CANDIOTTO e FARIAS, 2005,
p.168). Ora, no Brasil não é diferente. No entanto, o esboço da atividade turística no
país apresenta peculiaridades distintas do turismo mundial, como a configuração do
turismo de massa europeu, por exemplo.
Considerando o caso brasileiro, Rodrigues (2006) destaca a necessidade de
repensar as escalas de análise, em que o local passa a ser reconhecido como “único
recorte territorial que pode conjugar interesses dos vários segmentos envolvidos no
turismo” – deixando de ser visto apenas como cenário para novas práticas –,
perspectiva esta que se contrapõe à “lógica do mercado hegemônico globalizado”
(RODRIGUES, 2006, p.298).
Neste contexto, as novas tendências que caracterizam o turismo
contemporâneo são: as estratégias de cooperação, alianças parcerias nas
destinações para suprir bens e serviços; a criação de ambientes artificiais e
simulacros, desvinculando-se de condicionantes e elementos naturais; o maior
comprometimento com a conservação ambiental e com as comunidades locais; a
adoção de códigos de certificação e de ética; dentre outras.
Essas novas tendências caracterizam a descentralização da gestão no
turismo contemporâneo apontadas pela autora, demonstrando, ainda que
teoricamente, que é possível pensar em um caráter territorial de desenvolvimento
para a atividade turística, visto que, na empiria, ainda está longe de se firmar como
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paradigma frente ao modelo desenvolvimentista preconizado no Brasil, cada vez


mais suscetível à injeção de investimentos do capital estrangeiro.
Em busca de novas abordagens geográficas para o estudo do fenômeno do
turismo no Brasil, aponta-se o território enquanto categoria de análise norteadora.
Assim, considerando o dinamismo ao qual a prática turística está subordinada, no
primeiro momento deste trabalho, o turismo é elencado como uma prática social
marcada pelo hibridismo territorial, conforme descreve Rodrigues (2006).
Na seqüência, são travadas algumas reflexões, a partir da essência de
territórios plurais, objetivando mostrar que o território turístico resulta da prática
turística, e que é transformado por ela num processo dialético de desterritorialização
e reterritorialização, perpassando a multiterritorialidade, cujo marco teórico utilizado
por Rodrigues (2006) se apóia em Haesbaert (2004 e 2005).
A abordagem teórica segue balizando a discussão sobre a apropriação
territorial pelo turismo sob dois modelos territoriais de turismo que, em princípio, são
excludentes por se basearem em lógicas opostas. Em seguida, são feitas algumas
considerações sobre a prática turística enquanto objeto de estudo, destacando a
importância da analise geográfico de análise

Turismo e o hibridismo territorial


Em seu trabalho, Rodrigues (2006) destaca o dinamismo ao qual a prática
turística está subordinada, como característica significativa para suas reflexões.
Destaca, também, alguns modelos que procuram ilustrar tal dinamismo, sendo o
mais conhecido e divulgado o modelo do ciclo de vida do turismo de Butler (1980).
Críticas ao uso de modelos explicativos a parte, a autora observa que, na prática,
muitos destinos turísticos têm apresentado um rápido crescimento de demanda,
passando por um estágio de estagnação, evoluindo para uma retomada em novas
bases de oferta de produtos, ou, ainda, por um declínio lento ou rápido de demanda.
Diante da dinâmica da atividade turística no mercado, surge a necessidade de
recorrer a novas estratégias para sua recuperação (RODRIGUES, 2006, p.299).
Deste modo, objetivando uma competição mais expressiva no mercado,
criam-se novos produtos que se contrapõem aos modelos em voga até então,
caracterizados pelo “turismo de massa”. A nova ordem emergente do mercado
turístico valoriza e oferece cultura e tradição, muitas vezes de forma artificial, criada
para o turista, sem o menor vínculo com as tradições do lugar. Vale ressaltar que
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são aspectos estes fortemente utilizados pelo marketing do turismo rural 1 e do


ecoturismo, tipologias que têm apresentado crescimento significativo nas duas
últimas décadas, rotuladas como segmentos alternativos ao segmento dominante
até então, o turismo “sol e praia”. São características deste produto/segmento
alternativo:

[...] tratamento personalizado, caseiro artesanal, familiar, hospitaleiro,


que inclui “comida da avó”, pães artesanais, cerveja e vinho caseiros,
casas restauradas, tecidos naturais, ciclismo, antigas vias férreas e
trens restaurados, enfim símbolos plenos de apelos nostálgicos que
nos remetem ao passado distante, quando o tempo se escoava
lentamente, em oposição aos tempos frenéticos e à agitação das
grandes metrópoles [...]. (RODRIGUES, 2006, p.300).

No entanto, os símbolos elencados pela atividade turística são utilizados


como produtos e atrativos, considerando, ainda, casos em que a simbologia, os
costumes e a tradição, e a própria configuração social é adaptada para receber
determinado nicho de mercado, atendendo as vigências postuladas pelo turismo
massificado de lógica extremamente economicista. Há que se considerar, ainda, o
processo de des/reterritorialização arraigado à prática turística, a partir das técnicas
e do trabalho, considerando, ainda, a dualidade entre o sujeito que se desloca de
seu território de origem para usufruir do lazer propiciado pelo produto turístico e o
sujeito que trabalha para ofertá-lo.
A polaridade entre as esferas do trabalho e do lazer, considerando sua
dimensão social e territorial, “[...] dificulta sobremaneira a análise mais precisa da
natureza das territorialidades turísticas, uma vez que as práticas são cada vez mais
imbricadas” (RODRIGUES, 2006, p.300). Verifica-se uma co-presença no mesmo
espaço, efetuada por aqueles em situação de trabalho, e por outros, em situação de
lazer (Gama e Santos, 1991 apud Rodrigues, 2006). Ainda nesta perspectiva é
possível dizer que “os territórios se superpõem subjugados a novas temporalidades”
(RODRIGUES, 2006, p.300). Evidentemente, estes fatos ocasionarão
desdobramentos de significativa repercussão, em aspectos sociais, culturais,
políticos, territoriais, ambientais, sendo que os desdobramentos econômicos são,
geralmente, os mais estudados.

1 O Turismo Rural é entendido como qualquer manifestação do turismo no espaço rural, entretanto,
alguns autores questionam a aplicação dessa expressão, estando o “[...] Turismo Rural ligado ao
conteúdo rural, excluindo outras formas de turismo no Espaço Rural como, por exemplo, o
Ecoturismo e o Turismo de Aventura”. (TULIK, 2003, p.11).
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A análise dos desdobramentos sociais do turismo tem recebido maior atenção


dos estudiosos nos últimos vinte anos, dividindo-se, basicamente, em estudar a
demanda turística (os sujeitos que praticam o turismo) e a comunidade receptora (os
sujeitos que dão suporte para o turismo acontecer). Neste contexto, a autora
destaca que os sujeitos do território de destino “[...] são envolvidos em relações
sociais complexas que modificam, de forma dialética o território que se transforma
no seu todo ou em partes, o que igualmente irá produzir a transformação do todo
[...]” (RODRIGUES, 2006, p.301).
Assim, ao considerar a dinâmica territorial como criação e recriação de
territorialidades, o resultado é que nada será como antes, ou seja, o turismo irá
interferir no cotidiano local em todas as suas dimensões e, portanto, criará novas
territorialidades. Ora, observa-se uma complexa trama de relações entre os turistas
e a comunidade receptora que “[...] também é heterogênea, segmentada e com
interesses diferentes, definindo-se distintas territorialidades [...]” (RODRIGUES,
2006, p.301).
A autora faz menção à teoria de campos de Bourdieu (1989 e 1990),
referindo-se a Figueiredo Santos (2002), autor que propõe uma profunda e
consistente análise da experiência turística. “[...] Bourdieu preconiza a
interdependência recíproca entre indivíduos e estruturas sociais, onde o elemento de
mediação é o ‘habitus’ [...]” (RODRIGUES, 2006, p.302). Segundo ela, a categoria
de “hábitus” “[...] permite entender a articulação entre o objeto e o subjetivo, entre
interioridade e exterioridade, enfim conduz à reflexão sobre a construção das
territorialidades e ao entendimento da articulação entre o local e o global,
imprescindível na análise do turismo” (RODRIGUES, 2006, p.302). Ressalta ainda
que o conceito de “habitus” foi (re) trabalhado pelo autor em várias das suas obras e,
ultrapassando as abordagens deterministas iniciais, passa a ser concebido como
agente social.

[...] ou seja, como o sujeito atua, ao mesmo tempo em que sofre a


ação do campo social. Para Bourdieu, no “habitus” situam-se as
disposições duradouras que se formam na prática da vida social e
que se apresentam, ao mesmo tempo, como determinações
estruturadas, como resultado do processo histórico e das inter-
relações entre os sujeitos, e de disposições estruturantes, enquanto
polarizadoras das práticas e das representações individuais e
coletivas, delineando nos contextos sociais concretos, as
possibilidades de pensamento e de ação (FIGUEIREDO SANTOS,
2002 apud RODRIGUES, 2006, p.303).
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Entende-se, assim, que as condições sociais são interiorizadas pelos sujeitos


sob forma de princípios inconscientes de ação e reflexão, de condições de
sensibilidade e de entendimento, subordinados à subjetividade. Ou seja, embora
haja todo um arcabouço complexo nas relações sociais, o sujeito, ou grupo de
indivíduos, é capaz de (re) criar condições socioespaciais, de pensar, escolher e
modificar seus modos de vida. Deste modo, “[...] o que está em jogo são os pontos
de vista que os sujeitos sociais possuem do território, a partir da posição que nele
ocupam, e das posições de conservação ou mudanças resultantes dos seus
embates” (RODRIGUES, 2006, p.303).
A autora revela que os estudos empíricos demonstram uma variedade muito
grande de contextos do cotidiano impactados pelas práticas turísticas e os
resultados finais tendem à homogeneidade, quase sempre indiferentes ao entorno e
às condições históricas das comunidades receptoras. Neste contexto, Pearce e
Moscardo (2002 apud Rodrigues, 2006) apresentaram um interessante estudo
teórico entre as conseqüências do turismo nas comunidades locais, com base na
teoria das representações sociais, argumentando que os efeitos provocados pela
atividade turística são parte de uma grande representação da forma pela qual os
fenômenos sociais são percebidos. “[...] As representações sociais são meta-
sistemas complexos do conhecimento diário que perscrutam os valores, crenças,
atitudes e comportamentos” (RODRIGUES, 2006, p.304).
Já Moscovici (1981) elucida que não há um conceito unitário para definir as
representações sociais, uma vez que estas se expressam através de “[...] um
conjunto de conceitos, proposições e explicações originadas na vida cotidiana [...].
São equivalentes em nossa sociedade aos mitos ou sistemas de crenças das
sociedades tradicionais, podendo ser vistas como uma versão contemporânea do
sentido comum” (MOSCOVICI apud RODRIGUES, 2006, p.304). Deste modo, o
tema do turismo pode ser considerado como um tópico interessante ser focalizado
sob esta perspectiva, sobretudo, ao se questionar “[...] a razão pela qual as
comunidades evoluem entre a posição de perplexidade, de adesão, ou de
antagonismo ao turismo [...]” (RODRIGUES, 2006, p.304).
Observa-se, empiricamente, que a adesão das comunidades receptoras à
atividade turística está sempre relacionada à alternativa do processo de inclusão,
aos interesses econômicos e potenciais vantagens, enquanto que o antagonismo
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está diretamente relacionado à exclusão destes aspectos por parte dos moradores
locais. Assim, o turismo só será “bem vindo” se for efetivamente voltado aos
interesses de quem realmente faz parte do cotidiano do território receptor, o que se
considera de fundamental importância para o desenvolvimento local da atividade e
para o benefício das relações sociais como um todo.

Turismo e territórios plurais


A partir das reflexões propostas por Rodrigues (2006) é possível dizer que o
território turístico resulta da prática turística, através de um processo dialético de ser,
ao mesmo tempo, concretizado e transformado por ela, processo este de “[...]
desterritorialização e reterritorialização, perpassando a multiterritorialidade, cujo
marco teórico se apóia em Haesbaert (2004 e 2005)” (RODRIGUES, 2006, p.305).
Não desconsiderando as diversas dimensões do conceito de território que se
compõem pelas perspectivas materialista, naturalista, economicista, política,
idealista, a autora elege a perspectiva integradora como base da sua reflexão.
Perspectiva esta em que “[...] o território é concreto e abstrato, uma complexa
tessitura do material e do ideal” (RODRIGUES, 2006, p.305).

Yves Barel (1986) insiste na dimensão simbólica do território ao


observar que todo território social é um produto do imaginário
humano. Assim, territorializar é construir e reconstruir sem cessar o
quadro de vida do ator social, tanto materialmente como do ponto de
vista das representações. Para a instituição é a sua área de poder e
influência; para o indivíduo é uma sutil alquimia entre o pessoal e o
coletivo. É oportuno, então, discutir o tema da multiterritorialidade,
que significa experimentar vários territórios ao mesmo tempo
(RODRIGUES, 2006, p.305).

Ainda nesta perspectiva é possível dizer que a dinâmica territorial é sempre


“vida e morte” dos territórios, sejam eles territórios contínuos, conhecidos como
territórios-zona, sejam eles territórios espacialmente descontínuos,
denominados por Rogério Haesbaert de territórios reticulares (Haesbaert, 2005)
“[...] produzidos pela estrutura das redes em pontos, arcos e nós, cujos fluxos
conduzem bens materiais, energia, pessoas e capitais, assim como bens intangíveis,
como idéias e informações” (RODRIGUES, 2006, p.3005).
Assim, o espaço de origem da demanda dá origem aos fluxos turísticos, mas
é no espaço de destino que se concretiza, criando novas territorialidades. Em
grande parte, os dois vetores ocorrem no mesmo território, “[...] produzindo
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hibridismo, demarcando fragmentos que se superpõem” (RODRIGUES, 2006,


p.3005).

[...] Esta flexibilidade territorial do mundo contemporâneo, dito pós-


moderno, possibilita que alguns grupos, em geral os mais
privilegiados, que alimentam os fluxos internacionais, experienciem
uma multiplicidade de territórios, seja no sentido da sua sobreposição
num mesmo local, seja na sua conexão em rede pelo espaço
planetário (RODRIGUES, 2006, p.3005).

Considerando que as territorialidades expressam a mediação entre os grupos


humanos e entre a sociedade e o espaço, também rompem com a dicotomia
clássica entre sociedade-natureza. Assim, o território passa a ser visto pelo seu
papel ativo, como agente de transformação social, abrangendo conotação de ator e
não apenas como um receptáculo da ação humana. Expressa, também, sentido
mais simbólico, de apropriação por meio das representações sociais.
Quanto ao território turístico, em particular, a autora elucida que “[...] sendo
um espaço dominado e/ou apropriado, assume um sentido multiescalar e
multidimensional que só pode ser devidamente apreendido dentro de uma
concepção compósita, ou seja, de multiterritorialidade” (RODRIGUES, 2006, p.306).
Portanto, Rodrigues ressalta a importância do entendimento das dinâmicas
territoriais, aprofundando a discussão da desterritorialização e da multiterritorialidade
ao analisar processos de construção, desconstrução e reconstrução dos territórios,
sobretudo a contribuição de Haesbaert (2004 e 2005) para tal entendimento.

Apropriação territorial pelo turismo


A partir das considerações anteriores, ressalta-se os dois modelos de turismo
apresentados pela autora. De um lado, o “modelo economicista”, onde o território é
descontínuo, reticular, de textura complexa e de caráter funcional e mercantil,
integrando o turismo local-regional à lógica vertical do mercado global, em que os
fluxos do turismo internacional são capitaneados por macro-atores. E, de outro, a
proposta humanista, que compreende o território zona (Haesbaert, 2005), visto
como recurso e simbologia, onde se expressam as relações de poder ditas
horizontais, com ênfase local.
É possível perceber, facilmente, que o turismo monopolista manifesta-se onde
não há infra-estrutura, aproveitando para se beneficiar através da implementação de
seus próprios equipamentos e serviços, e explorando mão-de-obra local barata. Este
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modelo de implantação da atividade turística, denominado pela autora de “modelo


tecnocrático-hegemônico” (RODRIGUES, 2006, p.307), está subordinado ao sistema
reticular de fluxos e à lógica vertical do mercado global. Assim, os mega-
empreendimentos desenham novas funcionalidades territoriais, desestruturam a
organização social local, imprimem novos valores ambientais e socioculturais,
formatando novas territorialidades de forma arbitrária e autoritária.
Contudo, a autora releva que, por outro lado, estas implicações podem
desencadear relações locais, introduzir novas formas de sociabilidade e beneficiar
antigos territórios a romper condições de inércias. A seguir, serão elencadas, de
forma sucinta, as características do modelo de apropriação territorial reticular
através dos itens apontados por Rodrigues (2006):
▪ aspecto locacional: articulação local-global.
▪ aspecto econômico: alimentado por capitais externos com contrapartida de
investimentos nacionais; voltado à demanda turística internacional.
▪ aspecto técnico: planejamento imposto em escala federal; necessidade de
infra-estrutura significativa a cargo do setor público; privilégio às empresas
corporativas; incentivos fiscais, infra-estrutura, etc.; formação de clusters,
objetivando a reprodução ampliada do capital investido; causa um grande
ônus social à população local, má alocação de recursos ao estabelecer
prioridades e não contempla os habitantes das áreas receptoras.
▪ aspecto ambiental: discurso que promete a sustentabilidade, mas, no
entanto, trata-se de mega-empreendimentos que causam sérios danos
ecológicos.
▪ aspecto social: turismo segregador e excludente, tanto à demanda de
menor poder aquisitivo, quanto para a população local, considerando que
os moradores das áreas receptoras são eventualmente inseridos no
processo como mão-de-obra barata para a prestação de serviços que não
requerem qualificação especializada e, em grande parte, pela forma de
trabalho informal.

Como foi visto, este modelo contempla o segmento “sol e praia”, sob o qual
pode-se encontrar diversos mega-empreendimentos de investimentos externos,
implantados nas últimas duas décadas na Região Nordeste do Brasil, com apoio e
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incentivos do Programa de Desenvolvimento do Turismo no Nordeste –


PRODETUR-NE.
Ao que manifesta a autora, sobre a lógica deste segmento, que em áreas de
praias quase desertas, “[...] de rara beleza cênica, de baixa densidade populacional,
ocupadas eventualmente por pequenas aldeias de pescadores, impõem novas
territorialidades que estão modificando radicalmente o mapa e a paisagem regional
[...]” (RODRIGUES, 2006, p.309).
Em contrapartida, ela nos apresenta uma proposta interessante: a proposta
humanista, pautada num modelo territorial de turismo alternativo, concebida,
implementada e gerida pelos vários segmentos que compõem a população local, e
elencada pelo exercício das horizontalidades e integração solidária local, através de
recursos endógenos. As reflexões da autora referem-se à implantação do turismo
em territórios anteriormente apropriados e que atendem aos seguintes requisitos:

[...] a) os recortes territoriais mantêm um adensamento populacional


que permitia vínculos sócio-espaciais entre seus habitantes,
expressando uma apropriação territorial, ainda que simbólica; b) as
atividades econômicas que davam suporte a estas comunidades –
monoatividade ou poliatividade – encontram-se em crise ou em vias
de transformação, não permitindo mais o suprimento das
necessidades comunitárias, pelo menos, as básicas; c) as
comunidades não se encontram geograficamente isoladas,
articulando-se minimamente com o exterior por uma rede de
transportes e de comunicação; d) o território dispõe de um capital
social e material capaz de alavancar mudanças que transformem
estes territórios em meios inovadores através do empreendedorismo
local. (RODRIGUES, 2006, p.310).

Os requisitos supracitados fazem parte de uma proposta alternativa de pensar


o turismo enquanto prática social, passível de valorização do ser humano enquanto
ser individual e social, fundamentos estes também elencados pelo conceito de
desenvolvimento do modelo de Boisier (2001), conforme refere-se Rodrigues (2006).
Esse modelo sinaliza “[...] como requisito fundamental a possibilidade de todo
indivíduo alcançar sua plena dignidade enquanto sujeito do desenvolvimento,
elegendo os valores: liberdade, democracia, justiça, ética, estética, solidariedade
como decisivos [...]” (BOISIER apud RODRIGUES, 2006, p.310).
Com base nestas premissas fundamenta-se a proposta humanista como
alternativa de fomentar as atividades de turismo enquanto desenvolvimento e prática
social, apresentando uma estrutura conceitual para o desenvolvimento em quatro
marcos, sinalizados por Boisier (2001 apud RODRIGUES, 2006), a saber:
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▪ marco territorial: território zona, contíguo; pautado na sustentabilidade em


todas as suas dimensões, destarte certa desconfiança em torno da
expressão desenvolvimento sustentável;
▪ marco valórico: pautado na democracia, na justiça, na ética e na
solidariedade; perspectiva do ser humano enquanto indivíduo e sujeito
coletivo que, vivendo em sociedade, tem um compromisso com os seus
semelhantes e com todas as formas de vida;
▪ marco material ou instrumental: elenca os recursos materiais, as
condições de emprego com dignidade, a distribuição eqüitativa dos
benefícios e o uso de tecnologias de baixo impacto ambiental, resgate dos
saberes tradicionais e valoração da cultura local;
▪ marco endógeno: pautado na valorização do capital cognitivo, cultural e
simbólico, priorizando a identidade territorial. Sinaliza, também, os valores
cívicos e institucionais, resgatando o papel fundamental do estado
enquanto provedor de suas funções básicas, e destacando a importância
do setor público para dar aparato material e jurídico ao projeto.

No que se refere ao aspecto político, a autora salienta as relações de força


por meio das quais se processam alianças/acordos e conflitos entre os sujeitos
sociais, bem como a formação de identidades sociais e práticas de gestão. Vai além,
dizendo que na prática política ocorre um desequilíbrio nas relações de poder, onde
alguns atores exercem o poder legislativo e executivo e outros são subordinados a
eles. “[...] Com muita freqüência os interesses pessoais ou de alguns grupos
estabelecem prioridades de ação a fim de auferir vantagens que se sobrepõem ao
coletivo [...]” (RODRIGUES, 2006, p. 311).
Quanto ao funcionamento do sistema local e o exercício de poder dos sujeitos
no lugar e sobre o lugar, a autora elucida que:
[...] O exercício de poder dos sujeitos no lugar e sobre o lugar dá-se,
de um lado, pela capacidade de construção das mediações
necessárias ao funcionamento do sistema local de modo a fortalecê-
lo e, de outro lado, ao lançar mão de meios externos para assegurar
sua reprodução. Os empreendedores locais, qualquer que seja a
modalidade de mediação, seja como membro de uma cadeia
integrada ou franqueada, seja como membro inserido em redes
institucionais amplas (veja-se, por exemplo, a rede DLIS –
Desenvolvimento Local Integrado Sustentável), podem contribuir
para expansão do sistema local, amparando-se no poder que lhes
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confere a aludida articulação e inserção [...] (RODRIGUES, 2006,


p. 311).

Neste contexto, os vários segmentos envolvidos no turismo necessitam


negociar suas estratégias com o poder público local, o qual deverá assumir seu
papel de mediador da relação com outras lógicas que podem definir a supremacia
para outros setores da economia, como por exemplo, da indústria, do comércio, da
agricultura, etc. Neste caso, a autora elucida que “[...] a pluriatividade dá mais
margem de manobra para os territórios, atribuindo-lhes maior autonomia”
(RODRIGUES, 2006, p. 311).
Na seqüência, a autora encaminha novas reflexões ao frisar que a
contigüidade espacial “[...] entre os sujeitos envolvidos com o turismo não garante,
de fato, sua cooperação, a qual depende, antes de tudo, da capacidade de construir
novas territorialidades através de um consenso local que permita a união de forças,
tendo em vista um objetivo comum [...]” (RODRIGUES, 2006, p.312).
Aponta ainda, que a multiterritorialidade, constituída pela fragmentação das
diferentes culturas, “[...] pode ser vista tanto pelo seu viés alienante, reprodutora de
opressão e exclusão social, como pela sua força de articulação, oposição e
resistência no efetivo exercício das horizontalidades, processo que poderá ensejar a
apropriação e consolidação do território em novas bases [...]” (RODRIGUES, 2006,
p.312).
Nesta perspectiva, tende à administração pública ser flexível também e
corresponder aos anseios da comunidade, dando espaço à participação da
sociedade civil organizada nas decisões. Contudo, vale ressaltar o conseqüente
aumento do poder de barganha política, a partir do crescimento das organizações
não-governamentais, como destaca a autora.

[...] Todavia, é importante salientar que, apesar do discurso de


participação e “empoderamento”, os organismos internacionais não
deixaram de influenciar, padronizar e controlar as decisões. Observa-
se, lamentavelmente, com muita freqüência, a interferência dos
agentes externos na orientação das ações coletivas locais,
transformando a chamada participação popular em estratégias de
dominação e não como um caminho para o exercício pleno da
cidadania. Isto já é perceptível em alguns casos de projetos turísticos
em território brasileiro, os quais são apresentados até na literatura
especializada, decorrente de eventos científicos, como iniciativas
muito exitosas. É o caso da Prainha do Canto Verde, no estado do
Ceará e de Silves e Mamirauá, no estado do Amazonas, amparadas
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por ONGs, só para citar alguns exemplos (ROGRIGUES, 2006,


p.313).

Por fim, Rodrigues (2006) sugere linhas de pesquisa que, para além da
sustentação a projetos de turismo com base local, sirvam também como “[...] canal
para socializar o conhecimento neste tema de estudo, a fim de encorajar novos
projetos em âmbito acadêmico, assim como dar subsídios para novas políticas e
ações na prática turística [...]” (ROGRIGUES, 2006, p.313).

CONSIDERAÇÕES FINAIS
A partir das reflexões aqui expostas, com base no trabalho de Rodrigues
(2006), pode-se afirmar que o território é uma categoria geopolítica, produzido por
ações políticas, sociais e econômicas, e articulado por relações de poder. Pode-se
considerar, ainda, o território enquanto lócus de conflitos que necessitam de controle
social e político, ou seja, precisa ser ordenado, planejado e gerido.
A posse, a identidade e as relações de poder transformam o lugar e/ou a
região em território. É assim que os lugares e as regiões são valorizadas,
disputadas, especuladas, apropriadas e utilizadas. É neste contexto que emerge o
território turístico, resultado da prática turística, uma vez que a concretiza e é
transformado por ela, através de um processo dialético de desterritorialização e
reterritorialização, dando lugar à convivência pacífica ou conflitos de territórios
plurais cada vez mais submissos aos discursos tecnocráticos do planejamento e da
gestão territorial (TARLOMBANI, 2008).
A partir desta premissa, vale resgatar a contribuição de Santos (2002) para
melhor entendimento sobre as relações de poder que são permeadas a partir da
técnica. A prática turística é mais uma “virtude” do meio técnico-científico-
informacional – momento histórico em que a construção ou reconstrução do espaço
dar-se-á crescente de ciência, de técnica e de informação, elementos fundamentais
nos processos de remodelação do território e reorganização da sociedade.
Essa união entre técnica e a ciência leva o mercado à sua emergência em
nível global. Os objetos técnicos tendem a ser ao mesmo tempo técnicos e
informacionais, já que a intencionalidade de sua produção e localização surge como
informação, sendo esta a energia principal de seu funcionamento. Santos (2002),
não se refere ao turismo em particular, mas, estas premissas são pertinentes á
análise da atividade turística, calcada por técnicas.
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Sociedades diferentes usam diferentes formas de técnicas e de relações de


poder. Elas têm diferentes organizações geográficas e concepções de espaço e
lugar. Para Santos (2002), as paisagens geográficas e os significados mudam como
as sociedades mudam. Percebe-se o mesmo teor cíclico na segmentação das
práticas turísticas. A Geografia se preocupa com estas interconexões, apontando
para o contexto historicamente social que dependente da organização do espaço e
dos conceitos.
Farias e Candiotto (2005) argumentam que as transformações na sociedade
levaram a mudanças e especializações da ciência, da análise geral para a particular.
Cada campo de interesse passou por transformações variadas que em nenhum
momento deixaram de acompanhar as mudanças gerais pelas quais passava a
Geografia. Nessa perspectiva, o interesse geográfico pelo estudo do turismo
desenvolveu-se de forma bastante particular e alcançou um papel de destaque no
contexto da ciência geográfica.
Assim, ressalta-se a importância da abordagem geográfica do turismo,
sobretudo, considerando a prática turística enquanto prática social elencada pela
técnica. Considera-se o turismo um agente transformador de territórios, que causa
impactos dos mais variados níveis e transforma as estruturas sociais. O “(...) turismo
é como uma ciência que cria e recria as configurações espaciais diversificadas (...)
(RODRIGUES, 1996, p.27), e cabe a Geografia interpretar e analisar essas formas
espaciais que são (re)criadas pelo turismo, enfocando as estruturas, além de buscar
a reflexão sobre a organização e construção desses espaços através do turismo.
Apesar de ser uma importante fonte de geração ou de complementação da
renda em diversas localidades, a prática turística apresenta conseqüências sociais e
ambientais geralmente maléficas para as comunidades receptoras, sobretudo as
mais carentes. As implicações das atividades turísticas modificam a dinâmica
espacial/territorial e, portanto, são passíveis de análises geográficas. Neste
contexto, busca-se a compreensão integrada das características socioeconômicas,
políticas, culturais e ambientais das áreas receptoras, com vistas a refletir sobre a
dinâmica do turismo enquanto prática social. A partir destas reflexões, espera-se
contribuir para uma nova agenda de estudos geográficos no Brasil, através de
reflexões sobre a dinâmica, o desenvolvimento e a apropriação territorial pelo
turismo.
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