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JOÃO CARLOS MAJOR

Edições
SAPIENTIÆ Æ

JOÃO CARLOS MAJOR


JOÃO CARLOS MAJOR
Psicólogo e Professor do Curso de Psicologia
do Centro Regional de Braga da Universidade
Católica Portuguesa - UCP. É Autor do livro
Recriar o (Ser) Humano: Crítica da Razão
Cognitiva no Contexto da Evolução Cultural do
Ocidente (Edições Sapientiae) e Coordenador
da obra colectiva em CD-ROM O que é Ser
Humano? (Edições da Faculdade de Filosofia
de Braga da UCP).

CÉREBRO, MENTE E SOCIEDADE

Cérebro, Mente e Sociedade


Por uma Psicologia Relacional

“Neste muito claramente redigido trabalho de síntese, vem expli-

CÉREBRO,
citada a (...) básica afirmação de que a verdadeira compreensão
da psicologia, como ciência, pressupõe uma antropologia. Per-
correndo a bibliografia, tem-se uma visão da largueza de vistas
e originalidade na utilização das fontes em busca das novas

MENTE E
definições, oferecendo um enquadramento do que há de mais
moderno na psicologia cognitiva e social, aliada a uma visão
dinâmica, também pelo uso singular dos conceitos da psicolo-
gia das organizações, ao focar as estruturas a criar pelo “eu” no

SOCIEDADE
seio da subjectividade (...) para explicitar os meandros do novo
ponto de vista relacional a colocar em cena”.
MARIA RITA MENDES LEAL
Professora Catedrática de Psicologia

Por uma
da Universidade de Lisboa e Psicoterapeuta

ISBN: 978-989-95880-2-8
Psicologia Relacional
9 789899 588028 SAPIENTIÆ
CÉREBRO, MENTE E SOCIEDADE
Por uma Psicologia Relacional

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Ficha Técnica

Autor: João Carlos MAJOR


Título: Cérebro, Mente e Sociedade
Subtítulo: Por uma Psicologia Relacional
Data: Dezembro de 2009
Edição: 1.ª edição
Cidade: Braga
ISBN: 978-989-95880-2-8
Depósito Legal: 303771/09

Edições SAPIENTIAE
sapientiae@mail.telepac.pt

Execução Técnica:
Departamento Gráfico das Edições SAPIENTIAE

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por escrito do editor.

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João Carlos Major

CÉREBRO, MENTE E SOCIEDADE


Por uma Psicologia Relacional

BRAGA ― 2009

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6
À saudosa memória de Ilda de
Lourdes Monteiro, minha Avó.

Braga, Natal de 2009

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ÍNDICE

PREFÁCIO.........................................................................11
INTRODUÇÃO .................................................................13
1 - A PSICOLOGIA PRESSUPÕE UMA
ANTROPOLOGIA.............................................................17
2 - RELACIONALIDADE VS. CLAUSURA
ORGANIZACIONAL ........................................................34
3 - DA POSSIBILIDADE DE UMA ANÁLISE
ESTRUTURAL DO SER HUMANO...............................44
3.1 - Uma Visão Dinâmica ............................................47
3.2 - Uma Visão Cognitiva............................................69
4 - POR UMA VISÃO INTEGRADA ..............................81
5 - A FÓRMULA RELACIONAL EM PSICOLOGIA ..107
5.1 - A Narratividade Clínica ......................................109
5.2 - A Abordagem Relacional Dialógica..................113
CONSIDERAÇÕES FINAIS ..........................................123
ANEXOS ..........................................................................127
BIBLIOGRAFIA..............................................................155

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10
PREFÁCIO

Sinto como lisonja e agradeço o convite de pre-


faciar a obra Cérebro, Mente e Sociedade: Por uma
Psicologia Relacional, do psicólogo clínico João
Carlos Major ― colega que também é formado em
teologia, como ainda é Mestre em filosofia e em psi-
cologia e apresenta aqui, como projecto, a sua visão
pessoal da psicoterapia relacional/dialógica encara-
da num formato narrativo.
Neste muito claramente redigido trabalho de
síntese, vem explicitada a sua básica afirmação de
que a verdadeira compreensão da psicologia, como
ciência, pressupõe uma antropologia. Percorrendo a
bibliografia, tem-se uma visão da largueza de vistas
e originalidade na utilização das fontes em busca
das novas definições, oferecendo um enquadramen-
to do que há de mais moderno na psicologia cogniti-
va e social, aliada a uma visão dinâmica, também
pelo uso singular dos conceitos da psicologia das
organizações, ao focar as estruturas a criar pelo “eu”
no seio da subjectividade, englobando em tudo isso
Järvilehto, Vygotsky, Bruner, com Leal e Aires, para
explicitar os meandros do novo ponto de vista rela-
cional a colocar em cena.
Gratifica-me o encontrar tão bem aplicada e
enquadrada a minha teoria da formação progressiva

11
das estruturas emocionais do Eu (Leal, 2007), tor-
nando claro (a partir da pág. 91), o que são esses
“processos que preparam outros processos que ain-
da não o são”, ou seja, realçando o pensar-se em
realidades biológicas que no desenvolvimento se
convertem em outros fenómenos relacionais.
A fórmula que refere o marco narrativo na expe-
riência individual humana ― conforme enunciada já
por João Carlos Major noutro lugar (Major, 2008c)
― é o que aparece então como aspecto diferencial
encaminhando a psicoterapia relacional do adoles-
cente e do jovem adulto na perspectiva de um “trei-
no activo do Eu”, abrindo perspectivas novas em
alternativa do pressuposto reconstitutivo das psico-
terapias analíticas. Deixa o leitor expectante.
Desejo ao autor o sucesso que merece de encon-
trar muitos leitores deste seu profundo estudo que
pode ser de grande proveito para os interessados do
ramo, e que venha a dar continuidade à pesquisa na
linha psicoterapêutica que anuncia.

Maria Rita Mendes Leal


Professora Catedrática Jubilada de Psicologia
da Universidade de Lisboa e Psicoterapeuta

12
INTRODUÇÃO

A perspectiva que denominamos por relacional


dialógica considera a inteligência como bioantropo-
lógica na sua origem, mas psicossocial no seu desen-
volvimento. Tal pressuposto promove um tipo de
intervenção psicológica que se aproxima daquilo
que Vygotsky denominou por zona de desenvolvi-
mento proximal do indivíduo, ou seja, do seu nível
de modificabilidade cognitiva.
Esta concepção de intervenção em psicologia
parte de um diagnóstico sobre como os indivíduos
objecto da nossa intervenção se colocam perante as
situações de observação e de como utilizam os seus
recursos cognitivos (entendida a cognição como a
propensibilidade para a resolução de problemas) e
que estratégias colocam em jogo para darem respos-
tas ou soluções aos problemas com que se deparam.
A finalidade deste tipo de observação está em nos
aproximarmos da arquitectura cognitiva do indiví-
duo observado.
Mas esta observação não é meramente passiva, é
antes uma abordagem participante!
A cognição, surgida primeiro de sistemas não
simbólicos e posteriormente de sistemas simbólicos
de representação, emergiu de estratégias de proces-

13
samento da informação de redes neuronais defi-
nidas para outras finalidades adaptativas. Daí a
cognição, sobretudo nos exemplos apontados pela
psicopatologia, reflectir a descontinuidade e a arti-
culação de sistemas distintos; afinal, a cognição
refere-se a um sistema complexo, baseado na modu-
laridade. Contudo, a cognição humana não decorre
apenas de tais sistemas pré-estruturados que ser-
vem primordialmente outros fins, mas também de
sistemas de mediatização inter-individual que se
co-constroem em contextos sócio-históricos.
No ser resultante de tal evolução, podemos
afirmar que sem experiências de aprendizagem
mediatizada, as habilidades humanas não emergem.
Não basta que a maturação neurológica ocorra no
homo sapiens sapiens de acordo com a lógica
temporal. É essencial que se observe um processo
intencional de interacção social e mediatizadora
entre indivíduos experientes e inexperientes, pois o
aprender envolve o somatório da integridade neu-
robiológica e a presença de um contexto social faci-
litador.
Portanto, a cognição humana e a aprendizagem
a ela associada, não emergem automaticamente por
maturação: do sapiens sapiens não surge o humano
sem o desenvolvimento psicossocial. O que encami-
nha à aprendizagem de novas formas de relação
intrapsíquica e interpessoal, enquadradas como
processo dialogante, conversacional, em situações

14
abertas. Ainda que, e sempre, em continuidade com
as nossas raízes bioantropológicas.
Um padrão inato de relação emocional dia-
logante, assente no “dar-a-vez” ou turn-taking, en-
contra-se na origem e na organização daquilo que
podemos chamar de mente. Mente que resulta de
um diálogo múltiplo sob o olhar de “outros” signi-
ficativos: eis o que promove a emergência de um
“eu” resiliente, regulador das relações profundas da
pessoa com o seu mundo interno e externo, em
comunicação múltipla, flexível e aberta.
A visão da psicoterapia que pretendemos apre-
sentar com este trabalho centra-se na valorização e
compreensão do encontro, estando em causa a
reconstrução da “relação de objecto” em que ine-
vitavelmente psique e soma se entrosam origina-
riamente, apostando naquilo que também nós
consideramos o instrumento primeiro de organi-
zação do “eu”: o “vai-e-vem” recíproco e alternante,
o turn-taking emocional, para induzir a movimen-
tação da mente, fazendo do intercâmbio o novo
berço de um treino activo do “eu”, na expectativa de
um re-começo para quem nos procura…

Endereço electrónico do autor: jcmajor@mail.telepac.pt

15
16
Em trabalho anterior (Major, 2008c), do ponto
de vista histórico e filosófico e no contexto de uma
elaboração crítica sobre as modernas Ciências
Cognitivas, procurámos fundamentar a ideia de que
a actual sociedade ocidental está estruturada sobre
um conceito iluminista do ser humano: um ser
racional e auto-suficiente. Nessa obra, defendemos
que tal concepção, que conduziu ao actual indivi-
dualismo liberal, é desviante, promove a desuma-
nização e toda uma série de patologias.
Aí, também defendemos a urgência de se en-
contrar um novo conceito de pessoa. O presente
trabalho continua essa ideia desde a perspectiva da
psicologia.

1 - A PSICOLOGIA PRESSUPÕE
UMA ANTROPOLOGIA

Estamos numa época de crise, não só económica


mas em geral. Uma crise da nossa civilização, no
que tem de tradicional mas também no moderno
(crise da modernidade), o que se reflecte na própria
biosfera (crise da ecologia). E todas essas crises
criam uma crise gigante do planeta e da humani-
dade.

17
Naturalmente, um momento de crise pode ser
um momento de soluções novas que permitam
superar o perigo e favorecer o ser humano. Apesar
dos riscos, também existem possibilidades novas de
superação (Major, 2008c). Mas não há nenhum tipo
de certezas relativas ao caminho que a humanidade
irá tomar.
Certo é que o actual sistema de pendor indivi-
dualista não tem a capacidade de resolver os seus
problemas (Dinis, 2003; Morin, 2009). Portanto, ou
o sistema se desintegra (não conseguindo resolver
os problemas, a catástrofe será certa) ou, então, se
torna capaz de fazer nascer um sistema mais rico e
melhor, procurando encontrar em si mesmo a capa-
cidade de regeneração, de metamorfose. É nesta
bifurcação que nos encontramos.
Praticamente até ao surgimento da filosofia, na
antiga Jónia, o ser humano não se terá diferenciado
do seu meio, mesmo quando esse meio deixou de
ser a natureza e as suas vicissitudes e passou a se
constituir como Estado. Naturalmente, um ou outro
indivíduo se terá destacado da massa. Mas só com
os gregos o indivíduo se afirma como realidade
social reconhecível. Hoje, justamente quando as
oportunidades de um cultivo responsável da sua
individualidade parece possível, o homem claudica e
parece tornar-se cada vez mais presa do individua-
lismo, por um lado, e mais massificado, por outro.

18
Até agora não houve suficiente desenvolvimento
de todos os implicados no actual estado de coisas
para concretizar a necessária mudança. Tanto mais
que, de acordo com Morin (2009), o problema não é
melhorar o caminho que tomamos, o problema é
mudar de caminho, alterar radicalmente de via. O
que se apresenta deveras difícil; mas a haver saída,
será esta a única possível.
Apesar de as probabilidades serem péssimas
(afinal, parece que rumamos directos ao abismo)
vale-nos a esperança de uma probabilidade não ser
uma certeza.
A saída consistirá numa multiplicidade de refor-
mas que possam chegar de todas as áreas. Ou seja, o
fim das abordagens e intervenções compartimenta-
das, individualistas e isoladas, fragmentadas e sem
comunicação entre si, o que impede a percepção dos
problemas fundamentais e globais.
É verdade que existem especialistas, e bons, em
todas as áreas; mas isso não basta, pois o que mais
falta é um pensamento de carácter global. A hiper-
-especialização, por muito útil que possa parecer,
não é compatível com a urgente e necessária inte-
gração das várias áreas do conhecimento. E só com
um pensamento global a humanidade será capaz de
compreender e enfrentar os problemas fundamen-
tais, cada vez mais complexos, bem como o impre-
visto e a mudança.

19
Morin o diz:

“Se pudesse existir um progresso de base


no século XXI, seria que os homens e mulheres
não fossem mais os brinquedos inconscientes
não só das suas ideias mas das suas próprias
mentiras. É um dever capital da educação ar-
mar cada um para o combate vital pela luci-
dez” (2002, p. 43).

Urge, pois, uma reforma do conhecimento, o


que implica uma reforma em todas as outras áreas.
Não se pode fazer uma só reforma, ela só é possível
em interligação. Cada reforma é fundamental ― re-
forma na educação, na ética, na economia, na ecolo-
gia, etc. ― e todas são necessárias.
Um dos males é estarmos domesticados por uma
visão quantitativa; já não conseguimos ver devida-
mente o qualitativo. Por conseguinte, a solidarieda-
de, a responsabilidade, em face do quantitativo se
esfumam. O mundo actual e a nossa civilização pro-
movem o desenvolvimento do individualismo, o que
tem rasgos muito positivos para a autonomia, mas
potencia o desenvolvimento do egocentrismo e da
desintegração das antigas solidariedades e respon-
sabilidade.

20
Quando as pessoas têm uma pequena responsa-
bilidade, no seu pequeno compartimento, já não
têm uma visão do todo, da sociedade, da comunida-
de. Precisamos de um pensamento de novo global e,
como tal, responsável. Responsável ao nível local
mas também ao nível nacional, europeu e planetá-
rio. Hoje, como nunca, o que existe é uma interde-
pendência geral, o que significa o reconhecimento
de termos um destino comum. E se assimilarmos
esse conceito de destino comum isso implicará uma
solidariedade humana em geral e o esforço por pro-
curarmos entender as motivações dos outros.
Morin (1994) parte de uma traumática expe-
riência pessoal (Edgar tinha nove anos quando mor-
reu a sua mãe, Luna Beressi) e mostra como uma
situação traumática se pode transformar na condi-
ção de emergência de um acto criador ― o seu acto
criador ― e como o conhecimento daí produzido
pode retroagir e redimensionar o que, à partida, se
constituia apenas numa contingência negativa. Mas
este movimento de retroacção transformadora não
se dá espontaneamente nem de forma mecânica
(Almeida, 2004).
Continua a sociedade, então, a precisar dos ape-
los e do esforço dos mais avisados. Não para se tor-
narem nos novos senhores à frente de novas e mais
requintadas prisões, mas para libertar o humano
aprisionado no meio de tanta escória e encaminhá-
-lo para a via da responsabilidade pessoal e social.

21
A construção de uma sociedade mais justa e
igualitária só será possível por meio de uma nova e
complexa compreensão do mundo. Entre os nossos
limites e possibilidades de tipo biológico e cultural,
um diálogo entre todos deve ser entabulado. Há a
possibilidade de nada ou tudo fazendo, optarmos
pelo desastre; mas também poderemos optar pela
salvação, dado que o futuro não está traçado e, ape-
sar de todos os determinismos (sejam eles biológi-
cos, genéticos, sociais, geográficos ou ecológicos) o
futuro depende em boa medida das decisões res-
ponsáveis que formos tomando.
É nesta medida que se torna urgente encontrar
um novo conceito de pessoa, mormente em psico-
logia. E a necessária “mudança de paradigma” po-
derá já se estar a anunciar, ainda que algo tímida,
nos resultados da investigação sobre o cérebro
humano dos últimos 30 anos. Lentamente (talvez,
demasiado lentamente), a imagem de um órgão
social tem vindo a impor-se: “o nosso cérebro é,
assim, menos um órgão para pensar que um órgão
social” (Hüther, 2006, 18).
Apesar das posições que defendem uma (certa)
“clausura organizacional” no ser humano terem a
sua pertinência ― vejam-se as teorias da auto-
-organização de Maturana e Varela e seus segui-
dores (de um modo sucinto, abordá-las-emos no
próximo capítulo) ― nesta obra procuramos reafir-
mar, na linha de Vygotski, Bruner ou Rita Leal, a

22
clara influência do meio ou do social nos compor-
tamentos e características humanas, procurando ser
mais uma dessas passadas, serenas mas firmes, no
sentido de uma necessária renovada visão do ser
humano.
Isto, ressalve-se!, sem esquecer que é verdade
que, num grande número de vezes,

“as pessoas estão de tal maneira fo-


calizadas na sua organização interna que se
tratam a si próprias não como sistemas fe-
chados, mas sim como se fossem sistemas iso-
lados, ou seja: não fazem qualquer esforço
para comunicarem com quem tenta comuni-
car. Estas perspectivas podem também ajudar
a compreender o êxito, ou o insucesso, das
práticas psicológicas clínicas” (C. Oliveira,
2003b).

Feito este alerta, declaremos alguns princípios


que nos movem:

“O self não reside apenas no corpo, mas


encontra-se distribuído entre posições loca-
lizadas num espaço real ou imaginário, com a
possibilidade de se ir movendo entre tais
posições. (…) Eis uma concepção muito di-

23
nâmica do self” (Hermans e Kempen, 1995,
112)1.

“O ponto fundamental (…) é que a mente


humana individual não está confinada ao
interior da cabeça, mas estende-se por todo o
corpo humano vivo e abarca o mundo para
além da membrana biológica do organismo
que é a pele, especialmente o mundo social e
interpessoal do eu e do outro” (Thompson,
2001, 2)2.

“São as relações que constituem a pessoa.


Esta não é anterior à, nem independente da,
teia de relações em que nasce e vive. Por isso
se pode dizer que a relacionalidade tem um
carácter não simplesmente psicológico, cog-
nitivo ou afectivo, mas ontológico” (Dinis,
2008, 5).

“The self is not simply in the body, but rather distributed


1

between positions located in a real or imaginal space, with the


possibility of moving to and fro between the several positions.
(…) This conception of the self is highly dynamic”.
2 “The theme (…) is that the individual human mind is not
confined within the head, but extends throughout the living
body and includes the world beyond the biological membrane
of the organism, especially the interpersonal, social world of
self and other”.

24
É o carácter relacional da pessoa humana o que
procuramos colocar em evidência: a perspectiva
segundo a qual o “eu” é indissociável do “tu” e
vice-versa, e que ambos se constituem na relação;
não fosse a identidade definida pela alteridade, isto
é: a organização do self3 obedece à lógica relacional
ou dialógica (Leal, 1975 a 2009 — consultar biblio-
grafia) que parece indicar que o eu será o que a
história das minhas relações faz dele.
São já clássicas as ideias de Bruner (1990) de
que a mente constitui e é constituída pela cultura,
sendo as pessoas o resultado destas configurações
relacionais, ou seja, do processo de produção de
significados por intermédio de sistemas simbólicos
culturais4. Contra o reducionismo de algumas cor-

3 “No campo da Psicologia, noções como as de self, identi-


dade e subjectividade remetem-nos a modelos teóricos volta-
dos à totalidade da pessoa, e não a comportamentos ou fun-
ções mentais isoladas (…). A visão do self mais frequente na
Psicologia, no entanto, remete à tradição filosófica que vai de
Descartes a Kant e Piaget: o self como o si mesmo, a tomada de
consciência de que se é uma entidade independente e autóno-
ma do outro. Apesar de apresentar perfeita consonância com o
enquadre racionalista do psiquismo, esta noção de self expres-
sa uma concepção individualista e auto-contida da unidade
psíquica, incongruente com as perspectivas [por nós] defendi-
das” (M. Oliveira, 2006, 430).
4 Quando os benefícios de uma cultura são negados a al-

guém, esse indivíduo corre o risco de privação cultural. Ou,


nas palavras de Vítor da Fonseca: “a síndroma de privação
cultural emerge da falha ou da falta de mediatização adequada
sobre as várias formas características de cultura, de percepção,

25
rentes das neurociências, para nós o conceito de
mente também é essencial bem como a influência
do social no pensamento humano (Vicente Castro,
2003), quer na sua constituição como na sua manu-
tenção e funcionamento correcto.
Naturalmente, definir o termo cultura não é
fácil, nem há consenso sobre o seu significado. Na
linha de Geertz (1989), poderemos defini-lo como as
imbricadas e complexas teias de significados que
são construídas e compartilhadas pelos membros de
um grupo social. Tal nos permite aproximar dos ter-
mos cultural e social praticamente como sinónimos,
considerando-se as suas interdependências. Neste
sentido, cultura, a despeito das discussões que pro-
curam estabelecer os limites entre o cultural e o
social, poderá ser considerada como um desdobra-
mento da característica humana de filiar-se, viver
em grupo, em sociedade. Da sociedade emerge a
cultura ou emergem culturas, que são mais restritas
à espécie humana, principalmente quando nos refe-
rimos à linguagem. Além deste sentido mais geral,
poderemos também considerar os sentidos mais
específicos (Correia, 2003) propostos tanto por
Geertz como por Bruner, ou seja, cultura como um
sistema simbólico.

de processamento de informação e de organização da realida-


de, podendo mesmo repercutir-se na inacessibilidade a pensar
sobre o pensar ou em definir ou resolver problemas” (2001,
92).

26
Mas dizer que o ser humano é na sua essência
relação, nada tem a ver com a velha máxima de que
o homem e a mulher são um ser social ou cultural.
Essa concepção apenas afirma que a vida em
sociedade é o seu habitat natural (Dinis, 2008).
Com efeito, a sociedade ou a cultura podem cons-
tituir-se por uma teia de relações exteriores aos
próprios indivíduos, um conjunto de interacções
apenas funcionais e opcionais. Mas o que preten-
demos definir com o vocábulo relacional pretende ir
mais longe e implica afirmar o carácter constitutivo
ou ontológico, da relacionalidade (Dinis, 2008;
Hoffmeyer, 2008).
Visão tão diferente da que emana do actual
paradigma científico de cunho individualista.
As neurociências parecem ser a fonte de todos os
nossos conhecimentos, presentes e futuros, sobre os
seres humanos. Do ponto de vista clínico, a pers-
pectiva que nos reduz ao funcionamento neuronal
parece ser hegemónica. Tudo se trata em termos
medicamentosos, dado se crer que as perturbações
se relacionam unicamente ou fundamentalmente
com a biologia do corpo humano. No caso das
perturbações psíquicas, as intervenções bioquímicas
têm por objectivo intervir unicamente a nível neu-
ronal.
É aquilo que Polly Young-Eisendrath, no prefá-
cio a uma obra de Dale Mathers, denomina por mito
da salvação biológica:

27
“Desde o advento daquilo que eu chamo de
‘mito da salvação biológica’ ― ideologia de
carácter biológico como meio de libertação da
miséria e da humilhação ― tendemos a reduzir
o significado do humano a ‘estratégias várias
de adaptação’. Dessas que se podem comparar
às do comportamento dos outros animais e/ou
explicáveis através de alguns logaritmos dos
genes face ao ambiente. Nós, nas profissões de
ajuda, parece que escolhemos este particular
momento histórico para reduzir o significado
do humano à ideologia biológica. (…) O mito
contemporâneo da salvação biológica é um
estreitamento da nossa imaginação ao nos
apresentar como menos complexos do que
aquilo que somos, reduzindo a pessoa a um
processo, um organismo, um sistema inte-
ractivo sem intencionalidade ou desejo ou
imaginação” (Mathers, 2001, X).

Convenhamos, muitos técnicos de saúde limi-


tam-se a ouvir os seus clientes5 com vista à pres-
crição de medicação; ou, então, no sentido da apli-

5Ainda que se possam usar outras palavras (paciente,


doente, utente, etc.), tendemos a usar a palavra cliente, dado
que esta última se refere a alguém que tem deveres e direitos
relativamente a um técnico de saúde.

28
cação de medidas manipulativas breves, rápidas, e
isto na esperança de um resultado duradouro…
Tal mentalidade, com excepção daqueles tera-
peutas com treino nas áreas mais narrativas, tem
vindo a contaminar as fileiras da psicologia. Por
isso, não é de estranhar que um considerável
número de psicoterapeutas contemporâneos se sin-
tam desiludidos e frustrados se não conseguirem
fazer “alguma coisa” de imediato, algo de visível, de
palpável por aqueles que os procuram e que se
encontram em sofrimento. É desta forma que as
noções de que nos devemos acercar e descodificar os
sistemas de significado de alguém, com o objectivo
de perceber as causas e razões que levaram ao actual
sofrimento, são ridicularizadas por aqueles que
subscrevem o mito da salvação biológica, que rotu-
lam estes expedientes de cientificamente não apoi-
ados na indústria médica e farmacêutica.
Por sua vez, tal crença na absoluta efectividade
das “respostas biológicas” contaminou inclusiva-
mente quem mais beneficiaria das medidas de mais
longo alcance: os próprios pacientes.
É assim que

“o ser humano surge cada vez mais como


uma máquina biológica inteligente, feita de
automatismos nos quais se torna cada vez mais

29
possível intervir sem que isso implique
escolhas filosóficas ou antropológicas, das
quais muitos neurocientistas nada sabem.
As neurociências não só pressupõem uma
antropologia de tendência mecanicista e deter-
minista, com algum paralelismo com a física
newtoniana, como, mais do que isso, reclamam
o direito de constituir uma nova antropologia,
de dizer aos seres humanos quem são, de onde
vêm, qual a sua natureza e destino, qual a
explicação dos seus comportamentos, dos seus
sonhos e derrotas, etc. Trata-se de uma pers-
pectiva internalista, que considera que tudo o
que realmente interessa no ser humano se
passa no seu cérebro e aí se devem procurar as
causas dos distúrbios mentais. Das neuro-
ciências se aproximam com alguma ansiedade
a maior parte das correntes psicológicas,
embora nem sempre de forma consensual”
(Dinis, 2008, 6).

Que imagem do ser humano nos parece mais


verosímil e qual deverá ser adoptada pelas ciências
psicológicas?
A perspectiva internalista e determinista, da
qual nos fala Dinis, tomada num sentido radical,
também nos parece incapaz de colocar adequa-
damente o ser humano no contexto do que o torna

30
humano, pois defendemos ser o ser humano na sua
essência relação. Nesta medida, as relações pessoais
não podem ser vistas como um anexo à sua condição
de pessoa, antes como o que o fazem ser pessoa.
Contudo, no contexto do individualismo contem-
porâneo, o carácter relacional da pessoa humana
acaba por ser demasiadas vezes negligenciado. A
consequência é lógica: as terapias tendem a cen-
trar-se no indivíduo, abstraído da sua teia de
relações interpessoais, recorrendo a métodos que o
mais das vezes deixam ignorado e intocado o ca-
rácter constitutivamente relacional da pessoa, por
conseguinte, da raiz das suas perturbações físicas e
mentais. Como defende Dinis (2008), as relações
que constituem a pessoa são no fundo o “lugar” de
todas as disfunções individuais e sociais. Mesmo as
doenças psíquicas de raiz genética e hereditária têm
muito a ver com as disfunções nas relações inter-
pessoais.
É o que podemos rotular por “perspectiva da
segunda pessoa” (visão que parece encontrar não
poucas resistências…):

“A perspectiva da primeira pessoa, sub-


jectivista, correspondente à introspecção ou à
relação da pessoa consigo mesma enquanto
auto-consciente, e a perspectiva da terceira
pessoa, objectivista, correspondente à dimen-

31
são física, biológica e neurobiológica da pes-
soa, enquanto objecto de estudo científico, são
as duas perspectivas geralmente consideradas
dignas de atenção” (Dinis, 2008, 6). “A pers-
pectiva chamada da segunda pessoa tem sido a
que até agora tem atraído menos atenções. É a
perspectiva da relação eu-tu na qual o ‘eu’ é
indissociável do ‘tu’ e vice-versa. O ‘eu’ e o ‘tu’
constituem-se concretamente na relação eu-tu,
e não podem subsistir fora dela senão por um
exercício de abstracção” (Dinis, 2008, 6).

Postulando, com Dinis, o carácter relacional da


pessoa humana, também nós só podemos concluir
que uma psicologia excessivamente identificada
com, e dependente de, uma antropologia introspec-
tivista e subjectivista, que é uma forma de indivi-
dualismo estéril, como uma psicologia objectivista,
identificada com, e dependente de, um modelo mé-
dico-biológico ou neurocientífico, só podem condu-
zir a correntes teóricas e a métodos terapêuticos
inadequados, se quisermos falar de uma ajuda tera-
pêutica profunda e de longo prazo. Por conseguinte,
acreditamos que é necessário repensar numa pers-
pectiva relacional conceitos tão fundamentais em

32
psicologia como, por exemplo, os conceitos de “eu”,
de “mente” e de “consciência”6.
Também por estas razões, a psicologia deve
estar precavida contra as “pré-compreensões” de
que muitas vezes padece sem ter consciência disso.
Por outro lado, se é verdade que o ser humano é,
por definição, um ser relacional, também é verdade
que essa relacionalidade não deixa de ser sempre
auto-centrada.

6 Como escreve Azevedo: “a perspectiva elementaris-

ta-associacionista dá lugar a uma perspectiva mais completa, a


perspectiva dinâmico-estruturalista ou relacional, que consi-
dera a personalidade como um sistema de relações dinâmicas
entre o eu e o mundo (…). Estava assim criado o contexto para
que, na segunda metade do século XX, surgissem teorias cog-
nitivas e sócio-cognitivas, tornando possível conhecer a diver-
sidade humana” (2005, 48).

33
2 - RELACIONALIDADE VS. CLAUSURA
ORGANIZACIONAL

“Passamos como num sonho sobre o


Deserto, saltando um Mundo que rotulamos
com uma palavra, mas esse Mundo assim tão
facilmente rotulado transborda-nos indefini-
damente, em todas as dimensões.
O nosso todo é realmente uma totalização
nossa, só possível por uma radical simplifi-
cação do nosso conhecimento. Vemos como
contínuas, realidades em si descontínuas.
O todo é uma percepção, não uma sensa-
ção pura” (Martins, 1961, 118-119).

O conhecimento das coisas do senso comum


erra quando julga ter uma percepção clara e distinta
dos objectos realmente existentes fora de nós. Na
verdade, todo o conhecimento sensível não é pura-
mente objectivo, como se atingisse independente-
mente da subjectividade o mundo “lá fora”.
Para o actual paradigma da psicologia, o realis-
mo ingénuo é inaceitável e nos obriga a considerar o
mundo dos dados imediatos dos sentidos como uma
transposição do mundo físico, que nos aparece re-

34
vestido de interioridade ao ser percebido sob a
forma de cores, sons, etc., em vez da ôntica bru-
talidade do puro ser físico das vibrações, das ondas
e dos corpúsculos. Assim, e ainda que saibamos que
o mundo “lá fora” existe, a nossa percepção orga-
niza-o, pinta-o de cores e enche-o de sons cuja re-
alidade concreta ignoramos na sua entidade física.
Muitos dos elementos espontaneamente atribuídos
às coisas só existem, efectivamente, no sujeito que
as conhece.
Naturalmente, isto não tem que nos condenar ao
idealismo, pois o mundo existe realmente e as
nossas percepções, afinal, são sugeridas por ele, não
obstante a heterogeneidade dos seus efeitos nos
órgãos dos sentidos ou a deficiência de acção directa
sobre eles.
Uma das correntes biológicas que mais se tem
debruçado sobre esta questão é a teoria da auto-
poiésis, enunciada pela primeira vez por Humberto
Maturana e Francisco Varela em 1972. Estes bió-
logos consideram que o que especifica os seres vivos
dos seres inorgânicos e das máquinas produzidas
pelos seres humanos é exactamente a capacidade
que os seres vivos têm de auto-produzirem espon-
taneamente componentes e processos de que neces-
sitam para sobreviver. Os seres vivos são, por isso,
caracterizados como sendo autopoiéticos, ou seja,
autónomos e fechados. Por fechados entendem-se
os sistemas que mantêm a lógica organizacional face

35
à influência daquilo que um observador pode
apelidar de “meio”. E, como chama a atenção Clara
Oliveira, é importante não confundir a clausura
organizacional dos sistemas vivos com o isolamento
energético dos sistemas termodinâmicos, como é o
caso dos cristais (C. Oliveira, 2003b).
Portanto, “fechado” não significa o mesmo que
“isolado”:

“Adoptamos como definição de sistema


fechado aquele que troca apenas energia, e não
matéria, com o meio, contrariamente aos
sistemas abertos que trocam matéria e energia,
e aos sistemas isolados que não trocam nem
matéria, nem energia. Um exemplo de um sis-
tema aberto é um computador: os componen-
tes que nele existem foram introduzidos por
um ser que lhe é exterior e o seu funciona-
mento necessita de energia exterior, quer se-
jam pilhas, electricidade, energia solar, etc.
(…) Um exemplo de sistema fechado são os
seres vivos que convertem o material pertur-
bador, quase sempre previamente selecciona-
do, em energia que eles podem utilizar para
reforço da sua manutenção. Aquele que não
pode ser utilizado como energia ou não signi-
fica o elemento perturbador, ou então, se o
significa, é eliminado. Caso não consiga ser

36
eliminado, os sistemas ou ficam tempora-
riamente doentes ou morrem” (C. Oliveira,
2003a).

Uma divisão que Maturana e Varela propõem é a


distinção entre sistemas autopoiéticos e sistemas
alopoiéticos. Os sistemas autopoiéticos são aqueles
que têm capacidade para produzir material e pro-
cessos (poiesis) que o sistema anteriormente não
possuía por si só, ou seja, que não são introduzidos
por elementos exteriores (auto). Os sistemas auto-
poiéticos são aqueles cujas partes se especificam a si
mesmas, aqueles que constroem a sua significação
interna, e que são todos os sistemas vivos que
conhecemos.
A partir da investigação destes autores, à qual se
soma a de Clara Oliveira, tem-se vindo a utilizar o
vocábulo “enacção” para descrever a actuação dos
seres vivos em função de uma lógica organizacional
própria de cada organismo. Ou seja, os organismo
compensam as perturbações que padecem em fun-
ção da sua lógica organizacional e que constitui a
história da sua ontogenia. A este processo denomi-
nam por conhecimento orgânico, isto é, um actuar
com base em mecanismos e processos já existentes
ou criados a partir deles num meio/comunidade no
qual o individuo se insere e participa, provocando a
mudança individual e comunitária.

37
Reclamando-se da linhagem de autores como
Husserl e Merleau-Ponty, Varela remete o enacti-
vismo para a tradição filosófica da crítica à repre-
sentação. Em termos gerais, a preocupação central
seria a de sobrepor o conceito de acção ao de repre-
sentação e fazer emergir um novo conceito, uma
nova abordagem (a enacção).
Nesta perspectiva, aquele que sabe e aquele que
é sabido, definem-se um ao outro e são correlativos.
É esta ênfase sobre a co-determinação que caracte-
riza este ponto de vista: a imagem da cognição/
/inteligência deixa de ser a resolução de problemas,
por meio de representações, passando a centrar-se
na faculdade de “fazer-emergir”, agindo. Por sua
vez, o acto de comunicar não se traduz por uma
transferência de informação do remetente para o
destinatário, mas sim pela modelagem mútua de um
mundo comum por meio de uma acção conjugada:
o nosso comportamento social modulado pela lin-
guagem ou (en)acção linguística, constrói o nosso
mundo.
Um exemplo, importado das neurociências, po-
derá ser útil: António Damásio demonstrou que a
percepção do meio antes de ser representacional, é
de ordem corporal, ou seja, há uma cognição não
representacional que se gera num corpo. Aqui, a
noção de corpo é entendida como o território onde
pontuamos as nossas experiências/aprendizagens,
ou mapas de significação, que orientam a nossa

38
existência. Alguns desses mapas de significação são
articulados numa lógica discursiva, verbal e escrita.
Damásio (1994) denominou esses mapas de
“marcadores somáticos”: quando surge um mau
resultado associado a uma dada opção de resposta
poderemos ter uma sensação desagradável. Dada a
sensação ser corporal, atribui-se-lhe o termo de
“somático”, e porque marca com um determinado
sinal (neste caso negativo) uma imagem, cha-
ma-se-lhe “marcador”. A sua função é actuar como
um “sinal de alarme”, que permite ao sujeito fazer
escolhas e tomar decisões mais vantajosas para si e
para a sua espécie. Damásio afirma que a maioria
dos marcadores somáticos foi criada nos nossos
cérebros durante o processo de educação e sociali-
zação, pela associação de estímulos a estados emo-
cionais. Mas para que se constituam mecanismos
adaptativos, os marcadores somáticos requerem que
o cérebro e a cultura sejam saudáveis; quando isso
não ocorre podemo-nos deparar com disfuncionali-
dades várias (Damásio, 1994, 189).
Portanto, cada um de nós nasceu num mundo
que nos precedeu e tem a sua história, aquela que
pertence à comunidade concreta em que nascemos.
Pelo que vamos incorporando significações desse
mundo, porventura diferentes daquelas configu-
rações básicas de carácter biológico que tínhamos
quando nascemos. É neste sentido que se fala de
uma cognição incorporada, ou seja, de um conheci-

39
mento orgânico. Isto verifica-se quando inscreve-
mos no nosso comportamento algo que aprendemos
e isso nos permite ou torna capazes de nos adap-
tarmos melhor ao meio em que estamos inseridos.
Voltando à perspectiva de C. Oliveira (1999),
aquilo a que apelidamos meio, ou mundo físico, não
existe independentemente do mundo humano, nem
possui uma história autónoma em relação ao uni-
verso humano. A história do mundo humano é a
história do mundo físico e dos seres vivos, bem co-
mo das mudanças que foram introduzindo mútua e
interactivamente. Todos somos responsáveis por
tudo o que ocorre na comunidade em que vivemos,
já que essa comunidade surge e se organiza a partir
da interacção e relações que os seres humanos efec-
tuam entre si, estabelecendo regras comunicacio-
nais que formam um padrão organizacional (regra
comunitária) desse grupo de pessoas.
A propensão natural de cada ser vivo quando
nasce, e que constitui o seu primeiro nível de cogni-
ção, corresponde à primeira actividade mental enac-
tiva de significação adquirida a partir das suas
(inter)acções com o meio e outros seres que o rodei-
am. Dessas acções surgem perturbações internas e
externas, que constituem um ajuste “informacional”
ou de referências que o sujeito possui e as ajusta
com as novas que adquiriu na interacção com o
meio, e isto é aprender. Caso não consiga transfor-
mar essas perturbações em mapas de significado

40
individual, o sujeito da acção pode adoecer ou até
morrer. Mas quando o sujeito é capaz de compensar
as perturbações inscrevendo-as e complexificando o
seu padrão organizacional, ele aprende, modifican-
do-se e tornando-se mais adaptado. Ou seja, enac-
ção corresponde a uma acção enquadrada no con-
texto significativo da história de vida de um orga-
nismo, por um lado, e no contexto significativo da
história da espécie a que esse organismo pertence,
por outro lado.

Outro aspecto importante da teoria auto-


-poiética é o seguinte: os seres vivos vivem em
acopulamentos estruturais ou, no caso humano, em
interacção comunitária. Essa interacção só é pos-
sível com organismos que apresentem um padrão
organizacional parecido já que é o padrão organi-
zacional de um ser vivo que especifica o tipo de
estrutura, isto é, o tipo de componentes que esse ser
vivo produz e admite. E é essa parecença o que per-
mite aos seres vivos comunicar.
Importa salientar que não se comunicam infor-
mações ou mensagens totalmente novas, dado que
essas mensagens não seria inteligíveis. Só poderão
ser comunicadas se o organismo conseguir integrar
essa mensagem no seu modo de significação inter-
na. Caso não o consiga fazer, o organismo que ten-
tou comunicar com outro organismo não teve qual-
quer êxito.

41
Escreve Clara Oliveira:

“Esta é uma questão muito importante


para a educação, e para o ensino em particular,
já que o que acontece na maior parte das aulas
a que todos assistimos, ou ministramos, é que
não chega a haver comunicação, já que as
lógicas organizacionais são de tal maneira dife-
rentes que não conseguem acopular-se estru-
turalmente” (C. Oliveira, 2003b).

Tal concepção é de extrema importância tam-


bém para a prática clínica, além de ser salutarmente
não dualista, na medida em que considera a existên-
cia humana não como dicotomizada num corpo que
é natureza, por um lado, e as relações sociais que
cada ser humano empreende, e a que está sujeito,
por outro. Também neste contexto se fala de cog-
nição encorporada, na medida em que os estados
mentais dizem respeito a todo o organismo. Daqui
podermos postular a inseparabilidade do conheci-
mento em relação à acção, à qual por sua natureza
está unido.
Também daqui se pode inferir que o vocábulo
mente se refere ao aspecto relacional que um orga-
nismo empreende para a compreensão da sua
existência, que se concretiza com os relaciona-

42
mentos (acopulamentos estruturais) que vai estabe-
lecendo. O que introduz a noção de que um
indivíduo só evolui no seu conhecimento (conheci-
mento orgânico) quando consegue inscrever no seu
comportamento corporal significações diferentes
das já existentes e que lhe permitam uma melhor
compreensão das suas interacções copulativas.
Ora, esta dialéctica entre relacionalidade e
clausura organizacional é de suma importância para
quem, como nós, tem por missão encontrar um
sentido para cada lágrima que se chora, transfor-
mando o sofrimento em algo de inteligível, de
nominável e, com isso, passível de ser enfrentado
sem que nos derrote.
Mas, se o ser no seu interior só em nós pode ser
conhecido, ou a partir de nós (a célebre questão dos
qualia7), tal não parece tratar-se de um problema
insolúvel? Como o “ser em si” pode ser conhecido
como “ser em si”, se só o conheço como “ser em
mim”? É o solipsismo radical de toda a natureza
interior… Mas a antinomia poderá ser apenas
aparente, porque o ser é em si como é em mim, já
que actua em mim como é em si (Martins, 1961). A
nosso modo, voltaremos a esta ideia.

7 Qualia, termo filosófico que define as qualidades subjec-

tivas das experiências mentais.

43
3 - DA POSSIBILIDADE DE UMA ANÁLISE
ESTRUTURAL DO SER HUMANO

Por um instante, detenhamo-nos nesta palavra


“analisar”. Tal vocábulo poderá significar o desco-
brir dos princípios gerais subjacentes a um fenóme-
no individual através da decomposição das suas
partes. Ou seja, caminhar do mais complexo para o
mais simples, indagando por um padrão que seja
passível de explicar a totalidade do fenómeno.
Poderá haver quem afirme que este método, que
disseca as partes, é a melhor forma de não atingir-
mos o todo ou, quando muito, de ficarmos com um
mero cadáver do todo; e um cadáver presta-se bem
às mais lamentáveis dissecações… E assim será, se
pretendermos com a psicologia atingir uma imagem
típica do homem como tal, uma ideia geral, conside-
rada à maneira de um universal, ou um conjunto de
leis acerca do mesmo homem8. Mas isto dar-nos-á
uma fisiologia ou uma anatomia? Não interessará
mais encontrar esse ser ainda vivo depois do estudo
a fazer sobre ele?

8 “A sobrevalorização lógica das leis e essências, em rela-


ção aos indivíduos em que essas leis e essências se verificam,
faz das leis um absoluto e dos indivíduos simples contingentes,
imperfeitamente conhecidos, em relação a essas essências e
leis” (Martins, 1961, 31).

44
Haverá, então, um “homem geral”? E, se houver,
que valor tem na sua aplicação ao homem concreto?
Se, outrora, o indivíduo interessava apenas co-
mo via ad essentiam, sem outro valor lógico do que
revelar a essência que nele se realizava (a mono-
grafia de um caso só interessava como elemento
para levar à determinação da lei geral que nesse
caso se manifestava), hoje, se reconhecermos que os
indivíduos só imperfeitamente são conhecíveis em
si, e que essa imperfeição afecta a natureza mesma
dos universais (ao contrário do que parece à pri-
meira vista); então, podemos dizer que o ser não se
deduz (de um universal), mas que só se conhece no
sendo.
É deste modo que fica inteiramente valorizada a
experiência individual, mesmo do caso único. A
frequência dum caso não pode, evidentemente, ser
conhecida por um só caso ― mas isso é outra ques-
tão (Martins, 1961).
Tal não é desdenhar dos alcances da ciência (e
ciência é sempre dos universais); mas no que ao ser
humano diz respeito, não basta a sua anatomia, pois
o ser humano se realiza através do tempo, o ser
humano é histórico, interior e exteriormente.
Para mais ― e é o menos que se pode dizer ― é
humano tudo o que na experiência individual se
manifestar. Portanto, numa só acção se pode tornar

45
completamente conhecida uma natureza, se essa
acção realizar a plenitude potencial dessa natureza.
Podemos dizer que se o homem é um ser em
evolução, a sua essência é inexistente como substân-
cia permanente, a sua essência é esse evoluir. Mas
mesmo assim terá o homem uma essência, uma
essência semelhante à do tempo. Então, a ciência,
para ser completa, deve englobar a ciência dos indi-
víduos e a ciência das abstracções, a ciência das
realizações e a ciência das ideias realizadas. E a
psicologia, para ser ciência perfeita, tem de ser ciên-
cia dos homens e ciência do homem.
Verdadeiramente, a par da ciência dos univer-
sais, deverá desenvolver-se uma ciência dos indi-
víduos, com valor próprio. A vertente clínica da
psicologia, pode bem ser essa ciência. Ainda que,
apenas e só, seja da cooperação de todas as escolas e
perspectivas da psicologia que se deva esperar o
progresso da psicologia como ontologia do homem.
Então, julgamos ser possível compaginar a his-
toricidade humana com a postulada necessidade
científica da busca de universais. A título de exem-
plo, enunciemos no próximo ponto uma visão psico-
(pato)lógica que intenta, mais ou menos consciente-
mente, este compromisso: reunir as questões histó-
ricas, relacionais, autopoiéticas e as universais. De
seguida, apresentaremos uma visão mais cognitiva.
Note-se, para além das linguagens nem sempre

46
unívocas, de ambas as perspectivas podemos e
devemos recolher o que têm de precioso; e ambas
têm o bastante.

3.1 - Uma Visão Dinâmica

Sem ― de modo algum! ― querermos entrar na


clássica querela filosófica entre empiristas e racio-
nalistas, haveremos de concordar que para além do
conhecimento intelectual cujo conteúdo vem das
sensações, há o conhecimento intelectual cujo con-
teúdo se atinge apenas com as sensações, mas a
partir dos actos intelectuais. Nesta medida, e inde-
pendentemente de qual é o primeiro (as abordagens
de tipo bottom-up ou top-down9), apesar das difi-
culdades, também julgamos ser lícito enunciar
algum tipo de organização/estruturação da mente
humana.
Não somos defensores dos paradigmas psicana-
líticos clássicos ou ortodoxos, contudo parece-nos
existir alguma razão em abordagens mais recentes e,
digamos, atenuadas dessas visões clássicas. Referi-
mo-nos às abordagens psicológicas de tipo dinâmi-

9 Top-down e bottom-up são estratégias de processamen-


to da informação e organização do conhecimento. Em muitos
casos top-down é usado como sinónimo de análise ou decom-
posição, e bottom-up como síntese.

47
co, como as enunciadas pela Escola de Lyon. Para
mais, subscrevemos que sem uma concepção
razoavelmente clara sobre como o psiquismo huma-
no está organizado ― ou, nas palavras do mentor
desta escola: “uma concepção clara e precisa da
organização económica profunda (…) no plano psí-
quico” (Bergeret, 1998, 149) ― não podemos fazer
com eficácia referência a quadros clínicos e à forma
de os tratar. Por outras palavras: o sujeito não res-
ponde simples e linearmente às influências do mun-
do, mas requalifica e reconstrói essas influências de
acordo com as leis e organizações desenvolvidas no
seio da sua subjectividade (cfr. as questões da clau-
sura organizacional atrás discutidas).
A vantagem de uma estruturação de cunho
dinâmico sobre as classificações de molde psiqui-
átrico (do tipo do DSM-IV), é que permite distinguir
entre afecções de tipo orgânico de afecções de tipo
psicológico; além disso, e o mais importante, aceita
de modo inequívoco que podem existir disfuncio-
nalidades de tipo psicológico sem que se tenham de
reduzir ao cerebral, como tal, aos tratamentos de
tipo farmacológico. O que não significa, necessaria-
mente, algum tipo de dualismo!10

10 Ainda que, “mais ou menos conscientemente, a

psicologia tem permanecido sempre num contexto dualista”


(Broyer, 2002, 14)… No entanto: “só artificialmente psique e
soma podem conceber-se em separado (…). Por isso, as
psicoterapias de orientação dinâmica (aliás, todas de qualquer

48
Tal tipo de psicopatologia procura estudar a
disfuncionalidade dentro do comportamento huma-
no e tudo o que está relacionado com o seu equi-
líbrio através do método psicoterapêutico e não do
método medicinal ou bioquímico. A razão não é
uma mera aversão ou rivalidade para com a psiquia-
tria ou as neurociências, mas a crítica de que a
medicação, se indevidamente prescrita ou mantida,
cristaliza a patologia (Brandão, 2000), na medida
em que procura eliminar a sintomatologia sem in-
dagar da etiologia da afecção psicológica. Natural-
mente, isto não invalida as abordagens neurológicas
quando se reconhece que a causa de uma afecção
reside não em eventuais relações disfuncionais mas
em afecções de cunho vincadamente orgânico.
Uma visão metapsicológica ou dinâmica, onde
os fenómenos do passado são vistos como relevantes
para a compreensão do comportamento do sujeito,
permite uma abordagem mais humana e mais pró-
xima da facticidade e unicidade da vida de cada
paciente. Para a psicopatologia cada caso é um caso
e qualquer generalização apresenta-se como peri-
gosa.

modo filiadas na psicanálise) procuram abarcar os significados


da pessoa total”. Maria Rita Leal continua: “é curioso notar
que os investigadores da medicina biológica encontram-se,
hoje, mais próximos do cerne do problema do ‘misterioso
salto’ entre psique e soma, do que muitos psicoterapeutas,
sobretudo os que apostam na intervenção comportamental”
(Leal, 1999, 47).

49
A estruturação apresentada pela escola de Lyon,
é recriada em cada ser humano através do tempo,
desde a infância, enriquecida cada dia com novos
dados, parte consciente parte inconsciente, sempre
pronta para entrar em acção, consciente ou incons-
cientemente, conforme a natureza e a eficiência dos
excitantes actuais e a força da vida psíquica, nas
suas várias camadas e diversos estratos. Nesta
medida, a vida é acção do eu sobre o mundo, depois
de ser, na primeira infância, reacção do eu aos
excitantes do mundo, para se lhe adaptar.
É assim que faz sentido falar de uma estrutura
de tipo neurótico, onde se apresenta um domínio do
Super-Ego sobre o Ego, combatendo o Id11. Bem
como podemos falar de uma estrutura de tipo psi-
cótico, onde o Id exerce domínio sobre o Ego (um
Ego fraco ou inexistente), com inexistência de
Super-Ego. E faz sentido dizer que estas estruturas
não são sinónimos de “doença”; antes são o modo
de funcionamento “normal” desse tipo de estru-
turação da personalidade. Como tal, Bergeret não
fala de patologia nestes casos. A patologia só surge
quando esses arranjos caracteriais se quebram,
quando acontece uma ruptura no equilíbrio da
estrutura, dando então origem ― e só então ― à sin-
tomatologia: as neuroses e as psicoses.

11 Estes termos da psicanálise são por demais conhecidos,

pelo que nos dispensamos de os definir.

50
Tenha-se em conta que o simples facto de dar
um nome a uma coisa naturalmente imprecisa
torna-a aparentemente clara, quando a única coisa
clara é a palavra à qual essa coisa fica ligada, e que a
fica substituindo (Wittgenstein, 1956; Martins,
1961). Também por esta razão, continua a reinar
uma certa confusão sobre os qualificativos “neuró-
tico” ou “psicótico”, sendo com frequência confun-
didos com a sintomatologia inerente às “neuroses” e
“psicoses”, respectivamente.
Detenhamo-nos um pouco na possível organi-
zação das estruturas profundas do psiquismo hu-
mano, ou organização da personalidade, tal como
apontada por Jean Bergeret (Bergeret, 1998; Ber-
geret, 2000). Tenha-se em consideração o diagrama
reproduzido no Anexo 1 (pág. 129) (Bergeret, 1998,
230). Neste diagrama podemos constatar a proposta
de Bergeret relativa às organizações possíveis da
personalidade e respectiva nosologia psicológica12.

12 Estas organizações e instâncias psicológicas não preten-


dem ser simples ideias ligadas umas às outras, mas um sistema
onto-lógico, uma expressão lógica da realidade ôntica como ela
aparece no contexto das relações humanas e no contexto clíni-
co. E para as conhecer (não dizemos para construir) este sis-
tema onto-lógico, temos de começar por um ponto qualquer,
uma vez que o ser humano não aparece como um quadro em
branco, mas um quadro que se nos apresenta já escrito quando
o estudamos (como, é o que resta determinar) e caminhar dele
em todas as direcções do ser, se o queremos abranger todo.
Não fosse verdade que só tarde, por reflexão, o sujeito se pensa
a si mesmo como sub-jectum.

51
Como se pode verificar graficamente, a diferen-
ciação entre os diversos tipos de organização reside
na diacronia dos acontecimentos.

A Organização Neurótica da Personalidade


É a personalidade neurótica (Chartier, 1998;
Rodrigues e Gonçalves, 1998) a que é caracterizada
por uma integração do “eu” e dos objectos signifi-
cativos. É esta a personalidade que poderemos alcu-
nhar de “normal”.
Na estruturação de tipo neurótico, a evolução
dita normal é conseguida justamente por causa do
conflito rotulado de edipiano, que se apresenta
como um expediente salutar e estruturador do
Super-Ego ― nesta fase são marcados os limites
sociais (por intermédio da actividade educativa)
para as pulsões do Id, estabelecendo-se então uma
estrutura de tipo neurótico onde se apresenta um
domínio do Super-Ego (um Super-Ego funcional, ou
seja, a internalização de um sistema de valores
estável e sem um excesso de proibições inconsci-
entes infantis) sobre o Ego, combatendo o Id. Facto
este que propicia a capacidade de diferir no tempo a
realização dos impulsos do Id.
Mas este normal a que nos referimos não é algo
de não-problemático, é antes um equilíbrio sempre
instável de forças psíquicas em permanente dispu-

52
ta… E no adulto, como na criança, a libido trans-
forma-se em angústia quando a pulsão não pode
alcançar a sua satisfação.
Apesar de todos os riscos, nestas condições ditas
“normais”, num momento posterior as represen-
tações completamente boas ou completamente más
são integradas num conceito unificado, que é o que
permitirá uma visão realista que tolera tanto os
impulsos de amor como de ódio, combinando os
aspectos completamente bons ou completamente
maus de cada uma das pessoas importantes na vida
da criança, e de si mesma.
Um Super-Ego desta forma integrado, fortalece
a capacidade para estabelecer relações de objecto
adultas, assim como a autonomia, na medida em
que um sistema de valores internalizado torna o
indivíduo menos dependente da confirmação exter-
na, ao mesmo tempo que facilita um empenho pro-
fundo no relacionamento com os demais. Tornan-
do-se patente, neste tipo de integração mental, um
predomínio dos impulsos libidinais sobre os agres-
sivos, o que não acontece nas perturbações graves
da personalidade, onde predomina largamente a
presença da agressão patológica.
Esta configuração proporciona a capacidade
para o estabelecimento de relações objectais profun-
das, tolerância à ansiedade, controlo dos impulsos,
funcionamento da sublimação, eficácia e criativida-

53
de no trabalho, capacidade para o amor sexual e
intimidade emocional. Sequência que se inicia
muito cedo na vida da criança sob a influência
dominante de um estado afectivo intenso, positivo
ou negativo, conduzindo, respectivamente, a repre-
sentações completamente boas ou completamente
más, de acordo com as experiências pelas quais o in-
fante vai passando. Estas unidades representacio-
nais constituem as estruturas básicas do que virão a
ser os adultos daí resultantes.

A Organização Psicótica da Personalidade


Esta estruturação (Dubor, 1998; Rodrigues e
Gonçalves, 1998) é marcada pela ocorrência de um
traumatismo desorganizador precoce. Este facto ori-
gina uma ausência de integração com os objectos, o
que se manifesta pela difusão da identidade, predo-
minância de operações defensivas primitivas, cen-
tradas na clivagem e alterações do teste da realida-
de. O teste da realidade refere-se à capacidade para
diferenciar o intra-psíquico dos estímulos externos e
manter a empatia com os critérios sociais da reali-
dade. Isto manifesta-se particularmente quando
este tipo de estrutura se “quebra” e surge a psicose.
A psicose manifesta-se particularmente pela
presença de alucinações e delírio: a informação
recebida faz “ricochete”, mas não se sabe onde
embate dada a inexistência de informação acerca

54
das consequências que a informação provoca no
aparelho psíquico, como tal o resultado desse rico-
chete aparece sob a forma de delírio, que funciona
como um mecanismo de defesa para estes indi-
víduos. O delírio pode, então, ser definido como
uma síndroma constituída por um conjunto de
ideias mórbidas, elaboradas muitas vezes a partir de
uma tendência afectiva ou de um trauma emocional,
“ideias” que traduzem uma alteração fundamental
da imaginação e do juízo, na qual o doente crê com
uma convicção inabalável.
O delírio paranóide. Este tipo de delírio corres-
ponde a formas delirantes de direcção centrífuga
constituídas essencialmente por conteúdos de gran-
deza, de reforma, de invenção, de reivindicação e de
transformação cósmica e que por vezes assumem
um carácter altamente reivindicante. São delírios
pouco compreensíveis, ilógicos ou incoerentes e
evoluem sem uma sistematização precisa, tor-
nando-se a personalidade do doente dificilmente
penetrável ou até impenetrável ao observador e
aproximando-se por vezes, em certos aspectos, da
personalidade autista. Os delírios paranóides são
considerados por muitos autores (sobretudo pela es-
cola psiquiátrica francesa) como delírios de carácter
passional (delírio de ciúme, delírio místico…).
Costuma estar presente nas crises maníacas graves,
nas psicoses do tipo paranóide propriamente dito,
incluindo as formas esquizofrénicas dessa natureza

55
(delírio de grandeza), nas parafrenias e em muitas
demências. Os temas apresentam-se como isolados,
justapostos, divididos e ao mesmo tempo sem
obedecer a qualquer lógica aparente ou interna. O
conteúdo do delírio é cada vez mais abstracto,
seccionado de toda a relação com a realidade limí-
trofe. Este pensamento “abstracto”, “simbólico”,
pode trazer problemas importantes para a lingua-
gem no que diz respeito ao léxico, à sintaxe e à
gramática. Nestas circunstâncias o delírio vai causar
perturbação na relação interpessoal. A síndroma de
despersonalização é típica do delírio paranóide, a
qual consiste numa forte preocupação com a inte-
gridade do seu corpo.
O delírio paranóico. Opondo-se ao paranóide, o
delírio paranóico é caracterizado por ser um delírio
hiperlógico, interpretativo, apresentando um certo
trabalho delirante e uma grande sistematização.
Este tipo de delírio vai-se enriquecendo todos os
dias, a partir de interpretações, de novos amantes,
de novos espiões… Embora se restrinja a um
domínio muito preciso, não se apoia num só tema.
O postulado inicial ― muito preciso, muito cir-
cunscrito, encaixa-se num ângulo da realidade, sem
com isso contaminar os outros pensamentos, sem
perturbar a actividade, visto que funciona com uma
“ideia fixa”.
O delírio agudo. O delírio agudo é caracterizado
por crises brutais e de grande intensidade; admite-

56
-se a hipótese do orgânico na génese deste tipo de
delírio.
Será interessante apontar a dificuldade de
distinguir, segundo Jean Ménéchal (1999, 54), na
psicose, e com acuidade, os sonhos dos delírios,
sendo esta uma questão pouco desenvolvida pelas
principais teorias; mas este autor aponta uma
excepção: a da psicopatologia de inspiração freu-
diana e, mais concretamente, na sua clínica das
demências.
De facto, já Freud entendia o sonho como o
delírio fisiológico do homem normal (Mancia, 1991,
105). Neste, o processo não se desenrolaria de forma
diferente quando arbitra entre o verdadeiro e falso:
ele parte de elementos considerados verdadeiros e
compara-os com os novos para os validar ou inva-
lidar.
No psicótico o processo é o mesmo, mas tudo é
levado num sentido que ignora o princípio da
realidade. Assim, Freud falava da relação estreita
entre sonho, psicose e delírio porque, tal como no
sonho, no delírio verifica-se um preenchimento do
desejo, por uma retirada da libido do mundo exte-
rior para o mundo interior.
Como a realidade pode ser muito penosa, a
satisfação dos desejos recalcados, no psicótico, pode
dar-se através de um complexo processo cuja lógica
pode-se transformar pela passagem pelo incons-

57
ciente e pela intervenção do recalcamento, e de uma
forma muito semelhante à do funcionamento do
sonho. Pelo que, e cada vez mais, irão investir no
mundo interior elevando este à categoria de postu-
lado fundamental, que será mantido em todas as
ocasiões; é desta forma que o delírio/sonho pode vir
a substituir o lugar da realidade, invalidando-a, por-
que só nesta neo-realidade encontram satisfação
(segundo Ménéchal, a abordagem da intencionali-
dade inconsciente é uma das perspectivas mais inte-
ressantes em psicopatologia das psicoses).
Deparamo-nos, então, com a explicação para a
confusão que os psicóticos fazem entre os sonhos e
os delírios; e esta encontra-se justamente no facto
de ambos obedecerem à mesma lógica: a da busca
da satisfação; satisfação esta que não encontram no
confronto com a dura realidade.
Resumidamente, nesta estrutura o Id exerce do-
mínio sobre o Ego (um Ego fraco ou inexistente),
com inexistência de Super-Ego.

A Organização Estado Limite ou Borderline da


Personalidade
Jean Bergeret apresenta uma “via media”, uma
evolução marcada por um traumatismo desorga-
nizador, mas não tão precoce e, portanto, não tão
limitativo quanto na estruturação psicótica (Berge-
ret, 1998).

58
Nesta evolução também se manifesta uma difu-
são da identidade e a predominância de meca-
nismos de defesa primitivos centrados na clivagem,
mas distingue-se da organização psicótica porque o
teste da realidade encontra-se mantido. Devido a
esse traumatismo, todavia, apresentam uma desor-
ganização acentuada do Super-Ego.
Bergeret não defende que esta seja uma ver-
dadeira estrutura ou organização da personalidade,
antes defende ― e disso o gráfico do Anexo 1 (pág.
129) é revelador ― que é de todos os desenvolvi-
mentos o mais penoso para o sujeito, e a tal modo
que terminará por desembocar numa das vias orga-
nizadas (neurótica ou psicótica). Contudo, um dos
seus discípulos, Adriano Brandão (2000), defende
que esta é uma verdadeira organização pois, talvez
fruto das acentuadas mutações sociais das quais
somos testemunhas, este tipo de organização é o
mais claramente evidente e mantém-se “estável” (no
âmbito de uma instabilidade não cristalizada) ao
longo de toda uma vida13. Cada vez mais existem

13 Como chama a atenção Neubern (2001; 2004), a tradi-

ção moderna em psicoterapia caracterizou-se tanto pela eluci-


dação empírica das essências como pela desvalorização das
manifestações mais aparentes das expressões dos sujeitos.
Enquanto as causas estariam na essência, de onde derivaram,
por exemplo, as noções de estrutura da personalidade, os efei-
tos estariam a um nível mais aparente e transitório. Esta noção
moderna, sucedânea das pressuposições cartesianas, começa
paulatinamente a ser substituída por uma visão integrada
organismo-meio (Järvilehto, 2009), tornando-se esta na uni-

59
indivíduos que, apesar de manterem as caracterís-
ticas de base desta estruturação, são capazes de
manter uma adaptação social relativamente satis-
fatória e também algum grau de intimidade nas
relações de objecto e na integração dos impulsos
sexuais com a ternura.
As perturbações da personalidade que se origi-
nam deste espectro borderline, apresentam, to-
davia, devido à difusão da identidade, alterações
graves das suas relações interpessoais, sobretudo
problemas nas relações íntimas com os outros, falta
de objectivos consistentes na profissão, incertezas
na condução das suas vidas em muitas áreas e vários
graus de patologia da sexualidade (existe frequente-

dade básica para as investigações em psicologia. Afinal, a sub-


jectividade não significa a exclusão do agente do seu mundo.
Como o desenvolvimento dos sentidos e significados dos
sujeitos não obedece à singela lógica linear preconizada pela
modernidade, mas a uma relação complexa, faz sentido o
reconhecimento da organização borderline por parte de Bran-
dão. O que também nos permite, no espírito da psicologia eco-
lógica, colocar em causa a pretensa cristalização definitiva das
demais estruturas da personalidade (neurótica e psicótica), e
até suspeitar da sua real existência…, o que abre interessantes
possibilidades para a prática clínica em psicologia/psicopa-
tologia.
Seja como for ― e como já referimos ― o sujeito não
responde simples e linearmente às influências do mundo, mas
requalifica e reconstrói essas influências de acordo com as leis
e organizações desenvolvidas no seio da sua subjectividade
(cfr. as questões da clausura organizacional atrás discutidas).

60
mente a incapacidade de integrar a ternura nos
comportamentos sexuais, mantendo uma vida
sexual caótica com muitas tendências polimorfas
infantis. Nos casos mais graves pode existir uma
inibição generalizada de todas as respostas sexuais,
como consequência da falta de activação suficiente
das respostas sexuais na relação precoce com o
prestador de cuidados ou devido à predominância
invasiva da agressão que interfere na sexualidade).
Também encontramos em todos estes pacientes
manifestações não específicas de fraqueza do Ego,
tais como: baixa tolerância à frustração, dificuldade
de controlo dos impulsos e dificuldade na utilização
da sublimação, que se evidencia na incapacidade
para a consistência, persistência e criatividade no
trabalho.

Da Validade de uma Visão Dinâmica


Longe vai o tempo em que precisávamos fazer
esforço para entender as teses narrativas da psica-
nálise. Assim, e independentemente de aceitarmos
ou não as suas asserções, há que reconhecer que a
cultura imbuiu-se dos ensinamentos dos chamados
filósofos da suspeita (Marx, Nietszche e Freud).
Bom para a sociedade ― as filosofias da suspeita
agitaram o mundo, sacudiram-no e muito do pó de
séculos foi afastado. Mas, actualmente, ainda nos
permitem o auto-conhecimento que, desde Sócrates,
todos almejamos?

61
Na verdade, nenhuma das correntes criadas
pelos filósofos da suspeita permitiu o verdadeiro
auto-conhecimento. Aliás, jamais uma filosofia, co-
mo também o é a psicanálise, conseguiu juntar à sua
volta o consenso generalizado dos ansiosos habi-
tantes deste mundo. Há sempre um lado limitado
em cada uma.
Mas passa hoje a psicanálise por um novo desa-
fio: não o de ter mais perto de si a capacidade de
chegar a possuir uma fundamentação mais cientí-
fica, mas o de estar a perder a frescura das origens.
Fundamentalmente, ela surgiu como uma reacção
emotiva contra o então estado de coisas. Estado de
coisas, a expressão é a correcta: contra a petrifica-
ção lutou Freud, procurando uma libertação para
tantos corações desvirtuados, desiludidos, apaga-
dos. Também o seu. Fundamentalmente, procurou a
sua própria libertação.
Te-lo-há conseguido?
Mas alguém o consegue de todo?
Perguntas para as quais não existirão jamais
respostas completas. Se existissem, já não faria mais
sentido a psicanálise e todas as “suspeitas” de ontem
e de hoje, todas as buscas, mas também todos os
sonhos e perspectivas.
E foram estes que a psicanálise procurou: para
os identificar, analisar, mas também para os fazer

62
seus, para verdadeiramente os sonhar, mas desta
vez da forma mais perfeita, da forma “correcta”:
longe da noite escura. Assim, e de uma maneira
libertadora, sonhar acordado liberdade ― nome-
ando o sonho mau, rememorando a inquietude,
afastando os demónios das trevas, tudo iluminando
pelo poder com-criador da palavra.
Então, desejo, palavra, corpo ― fundidos ― se
mostram nus perante o terapeuta ― psicanalista
ortodoxo ou heterodoxo ― não para os profanar,
antes para o ritual da purificação. Silencioso, talvez,
mas atento e profundamente participante, no gesto
ameno, na atenção prestada, na compreensão
jamais paternalista.
Mas, e hoje? Pode-se hoje ter ainda acesso a
isto? Tantas foram as vezes que os termos da
psicanálise se nos depararam no caminho que,
talvez, já tenham perdido o encanto. É, pois, agora,
o momento de a psicologia, sua descendente, não se
acomodar nem se vangloriar com a aceitação tão
alargada que conseguiu. Nem sempre esta é a
vitória. É tempo, portanto, de a psicologia ressus-
citar um traço fundamental do pensamento freu-
diano: a coragem de desafiar o senso comum e a
opinião pública.

Actualmente, cada vez mais sectores da psico-


logia distintos dos da psicologia dinâmica, consi-

63
deram que a personalidade individual, entendida no
âmbito de um “organismo funcional” (Brandão,
2002, 79), é afectada por vários processos psico-
lógicos e por influências que vão desde o biológico
ao social; e isto em clara oposição ao modelo psiqui-
átrico que vê na disfunção e no comportamento ape-
nas uma causa: a orgânica.
De facto, ressurge na actualidade, nomeada-
mente nas áreas das ciências cognitivas (que bem
longe se encontram da psicanálise), as noções de
mente e de suas relações ― incluindo uma noção
mais clara do comportamento humano, e menos
inclinado para o modelo da ciência neutra, des-
tituída de valores e alheia à diversidade da expe-
riência humana, compreendendo o impacto dos
acontecimentos situacionais e sócio-culturais sobre
a personalidade. Passando, assim, a personalidade a
definir-se como as causas internas subjacentes ao
comportamento, mais a experiência dos indivíduos.
E de algum modo a actual onda de mutação epis-
témica (Dinis, 1998) parece dar razão, em parte, à
velha psicanálise quando esta afirmava a possibi-
lidade do mental frente ao físico. Mesmo que para o
pai fundador da psicanálise o corpo fosse e perma-
necesse sempre como a fonte da vida psíquica
(Dumet, 2002, 8), Freud iria abandonar a fórmula
isomorfista do corpo em relação à mente (Mancia,
1991, 34).

64
Afinal, a fórmula isomorfista sempre se revelou
humanamente redutora. Não se estranha, assim,
que as nosologias médicas (que analisam os traços
da personalidade como uma característica orgânica
e estável) se vejam a braços com as limitações dessa
maneira de descrever.
Edelman refere:

“A individualidade do paciente consciente


é resultado de um padrão extremamente
complicado de eficácias sinápticas que funcio-
nam unicamente para ele ou para ela. Conse-
quentemente, a tarefa de comunicar com o
paciente através de meios verbais e emocionais
não pode ser substituída pela utilização de
drogas. É provável que continue a ser neces-
sária uma combinação das drogas com a psico-
terapia” (1995, 261).

Não fosse a personalidade algo de dinâmico e


epigénico: o genético só determina o curso do epi-
génico no ponto de partida! Em termos biológicos,
sermos não apenas genótipo significa que o cito-
plasma não é uma mera bolsa para o núcleo, é antes
uma arquitectura que na rede mais vasta das
relações permite que se estabeleça o fenótipo
(Major, 2001; Barbieri, 2003).

65
Afirmar o mental, realçar o inconsciente, não
significa a exclusão do corpo; pelo contrário. Valo-
rizar o inconsciente significa a inclusão do corpo
(além de ser por ele representado). É que o corpo
não é um obstáculo ao pensamento psicológico, ele é
fermento, a base, uma realidade incontornável
(Dumet, 2002) ― não fosse o ser do homem uma
unidade sómato-psíquica: em verdade, quando
consideramos a multiplicidade dos sistemas corpo-
rais e o evidente entrecruzamento e cooperação dos
processos químico-biológicos e neuro-psíquicos, dos
quais só se podem captar, do prisma das ciências da
natureza, apenas uns quantos processos particu-
lares, verificamos que este corpo funciona como um
organismo unitário e total. Todos os processos
parciais, desde os processos perceptíveis ultra-
microscospicamente ou invisíveis, até ao grande
sistema da circulação sanguínea e às reacções do
sistema nervoso, decorrem coordenadamente e são
destinados uns aos outros em mútua interdepen-
dência. Inclusivamente os processos psíquicos, os
pensamentos, têm uma correlação física (“de algum
modo tudo reflecte-se nas sinapses” (Edelman,
1995, 259)); e por sua vez são influenciados pelos
estados corporais. Portanto, mesmo dualistica-
mente, temos de falar de o inconsciente implicar
sempre a inclusão do corpo. E quando se fala de
Terra, essa Terra identifica-se simbolicamente com
o corpo, assim como também a fuga à Terra é

66
sempre ao mesmo tempo fuga ao corpo (Neumann,
1991, 96).
Perigoso é, então, tudo aquilo que impede, para
além da aparente dualidade, o reconhecimento da
unidade. E tudo o que ensina a apontar isto ou
aquilo como indigno, em mim ou fora de mim, sem
conseguir reconhecer que eu sou também aquilo que
aponto como mau e perdido, impede o meu cres-
cimento como homem e me destrói. Porque “mau” é
o que me afasta da responsabilidade de possuirmos
a profunda consciência de nós mesmos ― das nos-
sas culpas e das nossas impotências, e das prisões
em que, invariavelmente, caímos. Mas tudo isto
deve ser encarado com alguma complacência e ―
porque não!? ― com doçura. É que, “para paranói-
de, paranóide e meio”:
Como indica Claude Olivenstein, podemos en-
contrar pelo caminho o espelho de uma contra
paranóia e, se levarmos as coisas demasiado a sério,
pode acabar por ocorrer

“uma escalada a dois ou com mais parti-


cipantes, todos tentando não se desacreditar e
aumentando, sucessivamente, as fasquias de
uma represália progressiva. Quantas guerras
idiotas se desencadearam nestas condições,
enquanto os observadores se deixavam enga-
nar por justificações ideológicas? Quem se

67
sabe capaz de cometer actos injustificados
pode imaginar que outros, mais poderosos,
não são menos vulneráveis. (…) Não é simples
retórica: recordo-me, com um vivo mal estar,
de ter impedido a saída de um jovem doente
do hospital psiquiátrico, porque teve a audácia
de ser insolente durante a última entrevista. O
remorso que senti não apagou a vilania do
acto, agravada ainda pelo facto de o ter conde-
nado, por ele ter persistido na atitude, a ficar
só, sem roupa, numa cela de isolamento. Ava-
liei nessa ocasião a perigosidade do poder e a
imperiosa necessidade da ética, dessa fronteira
que você ergue contra si próprio, para assegu-
rar o estancamento entre os problemas pesso-
ais que defronta e o cargo público que exerce”
(Olievenstein, 1996, 39).

É preciso, pois, assumir que a “sombra”, a


“instintividade corporal”, ou o que quer que lhe
chamemos, reside em nós, que somos nós próprios o
“mal” ― talvez isto faça com que ele se afaste, e
possamos ser homens livres; mas de um tipo de
liberdade toda outra: forte, porque esclarecida, uni-
ficada. É preciso força para crer que tal é possível: é
possível ser uno e livre (ou espontâneo, no sentido
etimológico de sponte: “por sua própria vontade”).
É esta a esperança. Mas onde o simbolismo for
fraco, e o imaginário for dualista, então é inevitável

68
que se torne monstruoso, infeliz, doloroso, inteira-
mente submetido à negatividade. E se o real contri-
bui para isso pela farsa das suas representações, “se
as fachadas são dignas e os interiores podres, a
exclusão fabrica-se no imaginário dos mais vulnerá-
veis e produz-se o movimento oscilatório progres-
sivo ou brutal, e entramos na paranóia” (Olievens-
tein, 1996, 58)…

3.2 - Uma Visão Cognitiva14

“O estudo da mente humana é tão difícil, e


de tal maneira enredado no dilema de ser ao
mesmo tempo objecto e agente do seu próprio
estudo que não pode limitar as suas pesquisas
a modos de pensar que dimanaram da física do
passado” (Bruner, 1997, 12).

“Após um longo e frio inverno de objectivismo”


(Bruner, 1997, 15), foi mérito da revolução cogniti-
va inserir de novo a “mente” e o “pensamento” nas

14Referimo-nos ao que Bruner “iria denominar a ‘segunda


revolução cognitiva’: enquanto a primeira fez migrar a atenção
dos comportamentos para o pensamento, a segunda retira o
foco das explicações psicológicas dos pensamentos (internos)
para a linguagem (social) em acção nas comunidades de práti-
ca” (M. Oliveira, 2006, 430).

69
Ciências Humanas, bem como a questão de os pro-
cessos superiores ― a mente, o pensamento e a cul-
tura ― poderem ser “causa” de alguma coisa.
Por demasiado tempo havia-se tido por bem
colocar no círculo das questões proibidas tudo aqui-
lo que hoje a psicologia vai assumindo com natura-
lidade como sendo a actividade mental e tudo o que
tem a ver com a compreensão, o processamento e a
comunicação do saber ― ou seja, a cognição15.
A seu tempo, a psicologia científica acabou por
reconhecer que o pensamento funciona por meio de
agrupamentos mentais denominados conceitos e
representações que por sua vez se agrupam em clus-
ters cada vez mais vastos. Sendo a capacidade para
elaborar e utilizar esses elementos própria do cha-
mado pensamento racional, como também o é a
capacidade para resolver problemas, isto é, enfren-
tar situações novas para as quais não temos uma
resposta bem elaborada.
Alguns problemas, é certo, são resolvidos atra-
vés do sistema de experiência e erro, mas outros ― a
maioria ― o são através da compreensão dos mes-
mos, o que, e por entre a formulação de juízos, leva
à tomada de decisões.

15Por cognição podemos entender todos os processos


pelos quais o impulso sensorial é transformado reduzido, ela-
borado, armazenado, recuperado e usado na conduta com vista
à resolução de problemas (Ramos, 2001).

70
A cognição humana aglutina-se na forma de
esquemas mentais. Esquema é uma denominação
criada por Jean Piaget para explicar a maturação
mental das crianças e, em geral, a progressão men-
tal de qualquer indivíduo. Os esquemas são manei-
ras de ver o mundo que organizam as experiências
anteriores e atribuem um padrão para compreender
as experiências futuras. Iniciam-se de um modo
simples e acabam construindo e adquirindo outros
até formar uma grande gama de conhecimentos.
Trata-se de um processo de assimilação de novas
experiências a esquemas anteriores e de acomoda-
ção dos existentes, de modo a que se ajustem às
novas experiências. Quando não se podem assimilar
experiências novas porque não se ajustam aos
velhos esquemas, é possível que estes mudem para
se acomodarem à nova situação.
Tenha-se em conta o caso da memória: a memó-
ria humana é composta por núcleos representacio-
nais (um núcleo semântico e simultaneamente figu-
rativo: duas palavras ou três e uma imagem…) que
se aglomeram em configurações complexas cujo
âmago se torna resistente à mudança e que somente
à informação satélite é permitido um pouco mais de
capacidade de variação. Assim, e à semelhança dos
esquemas de Piaget, só quanto muita informação é
recolhida em contacto directo com a realidade, exis-
te a possibilidade de mudança. Mas este processo,
como Bruner e Geertz com razão afirmaram, tem

71
muito a ver com a interacção social ― o que nos leva
para além de Piaget: afinal, a criança não está sozi-
nha no seu desenvolvimento e este não é só genético
mas também sócio-cognitivo.
Reconhecemos ser, assim, o comportamento
humano não tanto influenciado pelos objectos exter-
nos mas sim pelas representações sociais (que por
norma se mantêm estáveis) e pelas emoções evoca-
das por essas representações (razões pelas quais é
tão difícil mudar um núcleo significativo).
Os esquemas cognitivos, todavia, são algo de
mais complexo do que uma simples representação:
são blocos de representações estruturadas em uni-
dades de processamento de informação e, como tal,
são os elementos mais básicos da memória (deno-
minando-se de esquemas pessoais); e estão de acor-
do com a teoria sistémica para a qual o todo é maior
do que as partes (todo o esquema é diferente da
soma das partes que o constituem). Deste modo,
podemos caracterizar por esquemas os conjuntos
organizados de expectativas sobre a forma como os
diferentes tipos de comportamentos humanos se
encontram associados. O que tem claramente a ver,
e como acima vimos, com as expectativas criadas e
mantidas a nível social.
Fenómenos deste tipo indicam que os processos
da cognição são activos (teoria motora da mente) e
que funcionam pela activação recíproca de nódulos

72
ou esquemas mentais. Isto é claramente patente na
depressão, dado a nossa memória ser cíclica ― razão
pela qual existe como que uma auto-manutenção
mental da depressão. Contudo, usando o mesmo
mecanismo, é possível fazer com que o indivíduo
saia desse círculo vicioso no acto mesmo de levar a
que a pessoa se consciencialize dessa ciclicidade
(Allen, 1999).
Resumindo, esquema cognitivo é: a unidade
mais básica da memória; o organizador e guia da
percepção; a estrutura que permite criar representa-
ções; estrutura fortemente organizada e inconscien-
te que influencia todas as fases do processamento da
informação; baseia-se na experiência e interacção
social; tem conteúdos gerais e específicos, episódios
e expectativas; o seu conjunto equivale às teorias
implícitas sobre a realidade pessoal e social; é a res-
ponsável pelo comportamento e interacção; simpli-
fica o processamento da informação numa perspec-
tiva de economia cognitiva (o que leva também a ser
o responsável pelo enviesamento cognitivo); quase
sempre é positivo (os esquemas são muito comple-
xos mas têm uma marca de positividade; excepto se
o indivíduo estiver a atravessar um quadro depres-
sivo) (Ramos, 2001).
Nestes breves elementos enunciados encontra-
-se já bem patente a linha que está a nortear a inves-
tigação actual em psicologia cognitiva, nomeada-
mente no que à “cognição” e à “memória” diz respei-

73
to. De facto, esses dois factores são hoje encarados
como as faces de uma mesma moeda, não se mos-
trasse a memória “o espaço no qual são organizadas
e classificadas as representações mnésicas, ou es-
quemas” (Ramos, 2001) e, em última análise, é por
isso que aquilo para o qual estamos a olhar depende
daquilo que já sabemos.
Portanto, nunca lidamos com a informação de
uma forma isenta, mas sempre de acordo com o que
já conhecemos. É também por isto que o construti-
vismo de algum modo nega a realidade “em-si” em
favor das nossas construções e acomodações men-
tais. Mas tal processo não é um “limite”, num senti-
do negativo, da nossa percepção, é antes uma carac-
terística com um fim invariavelmente positivo, ou
seja: adaptativo. E este processo é genético, bem
como são genéticos certos esquemas e significados.
Mas os esquemas são mais do que genéticos: são
mentais. E ainda mais: são sociais. Jerome Bruner o
menciona, referindo-se ao seu colega e amigo
Geertz:

“Como Clifford Geertz refere, sem o papel


constituinte da cultura, somos ‘monstruosida-
des inexequíveis… animais incompletos ou
inacabados que só se completam a si próprios
através da cultura’” (Bruner, 1997, 23).

74
Citemos dessa paradigmática obra de Clifford
Geertz ― A Interpretação das Culturas:

“As pesquisas recentes da antropologia


indicam como incorrecta a perspectiva em
vigor de que as disposições mentais do homem
são geneticamente anteriores à cultura e que
suas capacidades reais representam a amplifi-
cação ou extensão dessas disposições preexis-
tentes através de meios culturais. O facto apa-
rente de que os estágios finais da evolução bio-
lógica do homem ocorreram após os estágios
iniciais do crescimento da cultura implica que
a natureza humana ‘básica’, ‘pura’ ou ‘não-
-condicionada’, no sentido da constituição ina-
ta do homem, é tão funcionalmente incomple-
ta a ponto de não poder ser trabalhada. As fer-
ramentas, a caça, a organização familiar e,
mais tarde, a arte, a religião e a ‘ciência’ mol-
daram o homem somaticamente. Elas são, por-
tanto, necessárias não apenas à sua sobrevi-
vência, mas à sua própria realização existen-
cial” (Geertz, 1989, 96-97).

O que sugere não existir o que chamamos de


natureza humana independente da cultura, pois foi
a cultura que “criou” o homem. A cultura, em vez de
ser acrescentada, por assim dizer, a um animal vir-

75
tualmente acabado, foi um ingrediente essencial, na
produção desse mesmo animal.
Ainda que o simples aumento no número de
neurónios possa ser a razão do florescimento da
capacidade mental do homem, o facto de o cérebro
humano maior e a cultura humana emergirem sin-
cronicamente, e não serialmente, indica que os
desenvolvimentos mais recentes na evolução da
estrutura nervosa andaram a par e foram pressiona-
dos pelas estruturas simbólicas socialmente cons-
truídas.
Assim, e muito antes de ser influenciada por for-
ças culturais, a evolução do que chegou a constituir,
finalmente, o sistema nervoso humano foi positiva-
mente modelada pelas forças sociais. Ou seja: em
vez de a cultura funcionar simplesmente para suple-
mentar, desenvolver e ampliar capacidades organi-
camente baseadas, lógica e geneticamente anterio-
res a ela, ela parece ser o ingrediente dessas capaci-
dades. Um ser humano sem cultura seria, prova-
velmente, não um macaco intrinsecamente talento-
so, embora incompleto, mas uma monstruosidade
totalmente sem mente e sem possibilidade de ser
trabalhada. O que significa que o pensamento hu-
mano é, basicamente, um acto aberto conduzido em
termos de materiais objectivos da cultura comum, e
só secundariamente um assunto privado (Geertz,
1989).

76
Pensamento de algum modo semelhante é o de
Gregory Bateson (1987). Na mesma linha, este in-
contornável autor defende que ao mesmo tempo que
o homem nasceu, nasceu a cultura e, uma vez nasci-
da, ela determinou seu próprio curso de forma a
crescer totalmente independente de qualquer evolu-
ção orgânica do homem. Todo o processo de criação
da capacidade do homem moderno de produzir e
usar a cultura, seu atributo mental mais destacado,
é conceptualizado como sendo uma mudança quan-
titativa marginal, que deu origem a uma diferença
qualitativa radical.
É por estas razões que a pessoa humana não
pode ser vista unicamente como um fenómeno psi-
cológico, possivelmente explicável pela biologia. An-
tes, a pessoa humana emerge como resultado da in-
terferência entre as suas raízes biológicas e a corre-
lação cultural da qual cada um é parte. E é assim
que, distinto quer do fisicalismo reduccionista e do
funcionalismo computacional, está um terceiro pa-
radigma: a emergência e estabilização da “pessoa
humana” requer a co-evolução do cérebro e da cul-
tura, no qual âmbito as capacidades mentais das
pessoas humanas acontecem. Esta visão podemos
denominar por paradigma bio-cultural (que, assim o
cremos, aos poucos irá tomar conta do panorama
“cognitivo”).

77
Da Validade de uma Visão Cognitiva
É certo que na actual reflexão científica e filosó-
fica acerca da pessoa humana existem alguns sinais
que em terminologia kuhniana denunciam a exis-
tência de uma crise, isto é, a não existência de um
modelo que satisfaça, por um lado, e a pulverização
da investigação com a consequente competição
entre vários candidatos a novo paradigma, por
outro. Mas o certo é que este paradigma relacional,
bio-cultural, cognitivo ou como se lhe queira cha-
mar, tem vindo a conquistar terreno. Isto é bem
revelador da mudança de perspectiva que se iniciou
no pensamento do séc. XX: de uma visão individua-
lista para outra de cunho relacional. Neste contexto,
uma antropologia holista tem vindo a desenhar-se,
segundo a qual a pessoa humana é corporal no
mesmo grau em que é mental: toda ela é corporal e
toda ela é mental. E tal acontece dada a humana
capacidade de transcender as condições naturais
através da capacidade de relação interpessoal.
Assim, revela-se verosímil que a mente tenha
surgido através de uma retroacção: o cérebro criou a
linguagem, a linguagem criou o cérebro, e ambos em
conjunto criaram a consciência superior do “eu”
(Popper e Lorenz, s/d).
Popper escreve:

78
“Não há (…) na evolução animal de que
temos conhecimento, outra coisa que se tenha
transformado tão rapidamente como o cérebro
humano. E esta transformação, esta rápida
evolução do cérebro humano, é (…) produto da
linguagem” (1987, 72).

Ou seja:

“Antes tomada como um processo mental


encarregado da representação e da comunica-
ção do pensamento, por meio dos códigos
sociais, a linguagem passa a ser compreendida
como aspecto nuclear da constituição subjecti-
va da pessoa, à medida que estabelece o elo
entre a ordem do psicológico e a da cultura,
por meio dos significados (…). Dessa forma
deixa de figurar como uma função cognitiva
para constituir um meio para a acção, a ferra-
menta por excelência dos processos interde-
pendentes de interacção social e formação pes-
soal” (M. Oliveira, 2006, 429).

Em resumo, os problemas passaram a tornar-se


conscientes através da linguagem que os extraia do
sujeito que por sua vez já os tinha tirado do mundo,
e podiam agora ser debatidos, o que levou ao incrí-

79
vel desenvolvimento da espécie humana (de certo
que isto a um nível, digamos, rudimentar nas fases
primievas). Ora, isto tem uma importância biológica
tão grande que motiva a pressão selectiva que
depois conduziu ao incrível desenvolvimento do
nosso cérebro (Deacon, 1997; Hoffmeyer, 2008).

80
4 - POR UMA VISÃO INTEGRADA

“Numa ordem que mais ou menos se


repete, costumam as psicologias estudar
sucessivamente os métodos, as sensações, as
percepções, a imaginação, a atenção, a me-
mória, a vida afectiva, as emoções, as paixões,
as tendências, os instintos, os hábitos, a
inteligência, a vontade, o temperamento, o
carácter, a personalidade… No fim sabemos
imensa coisa do homem. Mas o homem não se
pode reduzir a um somatório de sensações, de
percepções, etc.” (Martins, 1961, 120).

No seu tempo, Freud teve o mérito de ter


demonstrado a existência do inconsciente, e até que
ponto a teia de relações da primeira infância com os
pais e com a sexualidade determinam o homem e a
história da humanidade.
Na actualidade, até as correntes mais positivis-
tas da psicologia estão a reassumir noções de carác-
ter relacional e processual, nomeadamente ao real-
çar as virtudes da relação terapêutica16. Portanto,

16 Apenas a título de exemplo, veja-se o número especial

da Psychotherapy Research dedicado à “relação terapêutica”


(consultar bibliografia).

81
hoje, todo e qualquer determinismo, quer psicológi-
co quer biológico e suas visões da vida dos homens
como governada apenas pelas leis cegas e impiedo-
sas da natureza, de um inconsciente mais ou menos
tirânico, ou pelo jogo do acaso e da sobrevivência do
mais forte, deverá ser ponderado à luz de outras
evidências: a relacionalidade que nos humaniza.
A questão da origem da linguagem parece-nos
interessante não porque nos queiramos imiscuir
nesta controvérsia, mas porque alguns dos argu-
mentos nos parecem úteis para a nossa problemá-
tica relacional.
Após a polémica que no séc. XIX resultou na
proibição da discussão sobre o tema da génese da
linguagem na Sociedade Linguística de Paris, a in-
trodução de uma metodologia científica de estudo
considerada válida, recolocou a questão no séc. XX e
acendeu um debate epistemológico e também ideo-
lógico entre inatistas e construtivistas. Os inatistas
defendiam a existência de um núcleo de universais
do comportamento humano, enquanto os construti-
vistas admitiam a possibilidade de uma aprendiza-
gem sem restrições.
Podemos integrar os investigadores daí resul-
tantes em três grupos:
1) Os comportamentalistas, representados por
J. B. Watson e B. Skinner. Estes encaram a génese

82
da linguagem como o resultado de simples exposi-
ção a uma comunidade de falantes.
2) Os formalistas, sendo N. Chomsky o mais
visível representante, e para quem a linguagem tem
origem numa estrutura cerebral inata contendo
informação sobre a construção futura da linguagem
(princípio formante). Para estes, tal acontecimento
resultaria da interacção com falantes de uma língua
específica (princípio activante).
3) Por seu turno, os sócio-históricos, repre-
sentados na primeira metade do séc. XX por L.
Vygotsky17, A. Luria ou mais recentemente, por J.
Bruner e R. Leal, encaram a linguagem como um
produto histórico, possível em resultado de estru-
turas cerebrais não especificamente endereçadas
para a linguagem serem (re-)construídas a partir da
actividade relacional humana, esta estimulando
recursos comunicacionais de origem biológica. Ou
seja, no decurso da história evolutiva conducente à
linguagem, vão sendo recrutadas e integradas na
organização cerebral redes de neurónios que, apesar
de nada terem de específico para o processamento
da linguagem, servem ao processamento de vários
dos seus componentes. Resulta daqui uma integra-

17Uma pertinente sistematização do pensamento deste


autor encontra-se na Tese de Doutoramento de Joaquim Quin-
tino Aires, defendida em 2007 na Universidade Nova de Lis-
boa (consultar bibliografia).

83
ção orquestrada dos componentes do sistema fun-
cional complexo da linguagem. Então, podemos
dizer que estas redes neuronais não eram para a
linguagem mas servem à linguagem. Melhor, a
linguagem que existe é a que essas redes de neu-
rónios permitem estruturar (Deacon, 1997; Aires,
2007; Hoffmeyer, 2008).
Se a primeira18 e a segunda19 posições nos pare-
cem simplistas, esta terceira posição se nos afigura
como o ponto intermédio entre essas posições extre-
mas; e é aqui que nos desejamos situar.
É verdade que as crianças não fazem for-
malmente nenhum curso intensivo de língua, no

18 Note-se que o behaviorismo ou comportamentalismo

não procurou “negar” a existência dos estados mentais ou do


que quer que existisse no interior da caixa negra, antes dese-
jou aplicar os cânones da ciência, isto é, os ideais de previsibi-
lidade e controlabilidade, na consideração dos eventos priva-
dos, no sentido de tornar científico e sistemático o projecto de
pesquisa da conduta humana (a psicologia) num tempo em
que as neurociências ainda não se encontravam desenvolvidas.
19Chomsky insurge-se contra o comportamentalismo por
entender que a ideia da génese da linguagem ser apenas o
resultado da aprendizagem por imitação não daria conta da
imensa criatividade que a linguagem permite, nem do carácter
sistemático das produções linguísticas realizadas pelas crian-
ças. Neste sentido tem razão; mas já não nos parece ter quan-
do, a partir do argumento da pobreza do estímulo e da rapidez
com que as crianças aprendem a falar, postula a existência de
um órgão cerebral capaz de, por si, responder pela génese da
linguagem no ser humano.

84
entanto a sua condição biológica coloca-as num
padrão comunicacional (relacional) mutuamente
contingente (Leal, 2004) que as mobiliza como que
para um “curso intensivo”, ainda que não formal.
Além de que o “muito breve”, como diria Chomsky,
é muito relativo e subjectivo, dado que existe um
enorme volume de processos de interacção linguís-
tica entre o prestador de cuidados e a criança, que
dão conta do muito trabalho que ocorre nos primei-
ros quatro anos de idade.
Trata-se da questão da aprendizagem explícita
versus a aprendizagem implícita. Ou seja, a lingua-
gem adquire-se através do seu uso activo em con-
textos de interacção, e não por simples exposição.
Naturalmente, para que tal aconteça, assume-se
a necessidade de uma competência comunicativa
prévia à linguagem, para que esta se adquira. Nesta
abordagem, o peso da estrutura inata fica mais
associado a padrões de natureza comunicativa ou
cognitiva global, do que a uma gramática universal.
Daí a necessidade de uma experiência interactiva
para que se desenvolva a linguagem, uma experi-
ência significativa para a criança, embora ainda não
compreendida linguisticamente. Note-se que, quan-
do não se produz linguagem em contexto significa-
tivo e no qual a criança esteja implicada de forma
activa, a linguagem não é adquirida.

85
Portanto, o que é “inato” na criança é a comuni-
cação. Mas esta dicotomia entre inato e adquirido
não é real. É antes um

“mero artifício conceptual, erroneamente


dialectizado, já que inato se refere ao genótipo
e adquirido ao fenótipo, nenhum dos conceitos
sendo oposto do outro. Nos processos bioló-
gicos há interacções, reaferências e retroacções
em todos os níveis: os próprios genes não são
abstracções, mas códigos materializados com
um substrato químico mergulhado no meio
interno dos organismos; enquanto a capa-
cidade mais ou menos lata para aprender é
designada em cada espécie por um certo grau
de abertura do programa. Ou seja: os genes,
hierarquizados e agrupados em constelações
interactivas (que provocam estimulação, adi-
ção ou inibição de efeitos), são eles próprios
um elemento do ambiente; e a aprendizagem
tem uma base genética, fixada em graus
diversos pela história natural de cada espécie.
Os genes interagem com as células, os tecidos e
o meio interno, dirigem a ontogénese e dão
instruções para a realização do plano geral do
fenótipo, que é edificado a partir deles e com a
concorrência dos factores do ambiente exte-
rior” (Vieira, 2009, 74-75).

86
Assim nos deparamos com a pertinência da
posição sócio-histórica para o âmbito do nosso inte-
resse.
Ainda que, hoje, Vygotsky se assuma como uma
referência quase obrigatória, foi só nos anos 90 que
assistimos a uma generalização do interesse pela
sua obra. O que torna sumamente actual o pensa-
mento de Vygotsky é o entendimento que ele teve
sobre a relação entre o biológico e o social na génese
do psiquismo humano:

Organização sistémica das funções nervosas


superiores
A primeira tese importante de Vygotsky (1896/
/1934) é que as funções nervosas superiores (FNS)
do cérebro têm uma organização sistémica. O que
não se mostra distinto de outros sistemas funcionais
do corpo humano. Também a digestão é um sistema
funcional complexo que recruta várias estruturas; a
título de exemplo: boca, língua, glândulas salivares,
esófago, estômago, intestino. Quer no caso da
digestão como no da fala, não se tratam de funções;
tal poderia induzir-nos em erro e fazer com que
andássemos à procura da localização dessas funções
(como se fossem o produto de órgãos únicos). No
caso da fala, no cérebro estão localizados os
componentes dos sistemas funcionais e não as
funções, as quais só existem como conceitos ou

87
distinções académicas (Wittgenstein diria “jogos de
linguagem”); ou seja, têm o estatuto de “função”
apenas no pensamento filosófico que lhes deu
origem.
Ao contrário do que, no séc. XIX, pensaram Paul
Broca ou Karl Wernicke, cada produto cerebral é o
resultado do funcionamento sistémico de várias
regiões cerebrais, cujos vários componentes inte-
grados e orquestrados entre si, concorrem cada um
de forma específica com um determinado com-
ponente para esse produto (Deacon, 1997). O que
está localizado no cérebro não são as funções, nem
mesmo os componentes das funções, mas os
reflexos das conexões nervosas que realizam o
trabalho que nós associamos às componentes das
funções: “a nossa referência a elas, para efeitos de
estudo ou de comunicação, não se deve confundir
com a sua existência. Aquilo a que chamamos
funções mentais, são na verdade sistemas funcionais
complexos, estes sim com existência real, e que
recrutam vários processadores neurológicos. Estes
processadores não existem como peça única no
cérebro, antes resultam do funcionamento sistémico
‘orquestrado’ de várias unidades cerebrais” (Aires,
2007, 185).

88
Localização dinâmica das funções nervosas
superiores
A segunda tese de Vygotsky defende a
localização dinâmica das FNS. Vygotsky postula que
ao longo do desenvolvimento a estrutura interna das
FNS altera-se. Por isso, em estádios diferentes do
desenvolvimento a mesma FNS recruta regiões
cerebrais diferentes. O modo como se organizam os
sistemas funcionais não é sempre o mesmo.
Aires (2007) refere trabalhos recentes recor-
rendo a modernos métodos de neuroimagem que
aparentam demonstrar tal tese20. Apenas a título de
exemplo, também Edelman (1995) e Deacon (1997)
subscrevem este aspecto dinâmico.
Ou seja, em fases diferentes do desenvolvimento
das FNS, elas apresentam processamentos e ca-
racterísticas diferentes, e essas diferenças são reali-
zadas em regiões cerebrais diferentes.

20 F. Ostoresky-Solís (2004). “Can literacy change brain


anatomy?” In International Journal of Psychology, 39 (1), 1-4.
B. Kotik-Friedgut (2003). “A systemic-dynamic lurian theory
and cultural neuropsychology today. In Jornal de Psicologia
Clínica, vol. 3, pp. 5-21.

89
A origem relacional das funções nervosas
superiores
A tese mais revolucionária de Vygotsky é a da
origem relacional das FNS: as funções tipicamente
humanas, como a atenção voluntária, a memória
lógica, a linguagem, etc., não são inatas, não resul-
tam de uma biologia com milhões de anos de
evolução filogenética, mas são estruturadas no
cérebro num processo relacional com outro hu-
mano.
Ao longo da ontogénese, as relações entre os
componentes dos sistemas funcionais cerebrais
vão-se alterando e, à medida que se modificam,
emergem novas constelações que estavam ausentes
no estádio anterior. O desenvolvimento destas
novas e flexíveis relações entre componentes funcio-
nais cerebrais é o que dá origem ao sistema psico-
lógico.
Eis a importância, na estruturação do sistema
psicológico, das ligações extra-cerebrais que, influ-
enciando a organização do cérebro desde o exterior,
possibilitam a formação dos assim denominados
“novos órgãos cerebrais”. E esta é uma nova forma
de evolução: os cérebros humanos contêm as condi-
ções e possibilidades para a combinação de compo-
nentes funcionais numa nova síntese, possibilitando
o surgimento de “novos órgãos” cerebrais (como se

90
compreende, “novos órgãos” deve permanecer entre
comas).
Estes “órgãos” funcionam da mesma maneira
que os órgãos de morfologia constante, mas distin-
guem-se por serem neo-formações que aparecem no
decurso da ontogénese. É nesta medida que pode-
mos dizer que o cérebro humano se tornou num
órgão capaz de formar órgãos funcionais.
Repare-se na importância dos excitantes exte-
riores para a criação e manutenção do que podemos
rotular por mente. Assim, podemos afirmar que a
mente não “reside” no interior do cérebro, ainda que
dependa da orquestração cerebral, mas sim em toda
a dinâmica de factores “internos” e excitantes “ex-
ternos” (Järvilehto, 2009). O que, por sua vez, torna
evidente o papel crucial da cultura no aparelho
cognitivo e cerebral, ou seja, no desenvolvimento do
cérebro e das suas funções: a literacia, assim como
outras instrumentalidades culturais disponibiliza-
das numa relação significativa, verdadeiramente
alteram a organização funcional do cérebro adulto.
É um aspecto relevante que Vygotsky tenha
acentuado o carácter relacional entre humanos para
o processo de apropriação de instrumentos de cul-
tura, ainda que nunca tenha apresentado a estrutura
desse carácter relacional (Aires, 2007).
É aqui que o contributo da psicóloga portuguesa
Maria Rita Leal surge como deveras relevante.

91
Um padrão inato de procura de resposta do
outro (coisa, pessoa ou evento) como locus de
estruturação das FNS
Rita Leal (1975; 2004), dando conta do compo-
nente natural, de carácter comunicacional e não
linguístico (pré-linguístico) que Bruner postula em
1990, escreve:

“Impõe-se encontrar uma regra que aclare


as diferenciações em curso desde os primór-
dios e que, nos humanos, se define prospecti-
vamente como ‘padrão inato de procura da
resposta’. O padrão inato de procura de
resposta do outro (coisa, pessoa ou evento) é
uma função de orientação e apreciação
(‘appraisal’), que se vem a organizar como ca-
pacidade simbólica (Fordham) ou seja, uma
atitude criadora de significados.
O padrão inato ‘de procura de resposta
contingente’ falha na criança perturbada e
encontra-se como atributo da criança saudá-
vel” (Leal, 2004, 119).

Com efeito, o bebé dá sequência à imitação por


parte do prestador de cuidados das expressões que
ele próprio emitiu (não o inverso), imitando-as de
novo. Deste intercâmbio de imitações emerge uma

92
diálogo prazeroso, de gestos e motivações, em que
se descobrem significados. Este intercâmbio desem-
boca em mútua ressonância e torna-se “proto-
-conversação”, um diálogo com fases e ritmos bem
diferenciados, observado desde as oito às doze se-
manas de vida (a solidez deste sistema relacional
estruturante da relação eu/outro comprova-se a
partir das doze semanas de idade, assim como a
experiência de desorganização por parte de bebés
para quem falha, repetidamente, a consistência da
resposta reguladora) (Leal, 2007).
É importante referir que esse “jogo de imi-
tações” refere-se a processos que preparam outros
processos que ainda não o são (Aires, 2007). Ou
seja, estão a descrever-se mecanismos biológicos
(inatos) que no desenvolvimento se convertem em
outros (por exemplo, nos que permitem estruturar a
linguagem). Nesta medida, este jogo de imitações
(sendo pressuposto esse impulso inato de busca, por
parte do bebé) nada tem a ver com o processo de
imitação (repetitiva) que permite à criança adquirir
a linguagem no formato apresentado na teoria
behaviorista da aprendizagem de Skinner.
São estes mecanismos inatos o que dão conta da
passagem do biológico ao mental, e a permitir en-
quadrar o entendimento de significados: à seme-
lhança dos mecanismos inatos que existem nos
demais animais e que os programam para a in-
tegração social e comunicativa da espécie, também

93
no animal humano existe uma determinação bio-
lógica que permite a adequada integração filiativa
na espécie. Uma determinação que é anterior à
linguagem, e que constitui instrumento de comuni-
cação por excelência entre os humanos. A nível
neurofisiológico, como explica Leal (2004), esta
comunicação é servida por estruturas cerebrais pré-
-corticais, sendo depois integrada em estruturas
nervosas de circuito cortical.
Esta autora utilizou os resultados do estudo
experimental de J. S. Watson sobre a “análise da
contingência recíproca”21, um padrão inato de pro-
cura contingente à própria iniciativa com as caracte-
rísticas de um “padrão fixo de acção”, e encontrou
neste fenómeno um ponto de partida para a sua
intenção de operacionalizar e entender o mecanis-
mo relacional humano precoce, estudando experi-
mentalmente a sua eficácia em projectos de reabi-
litação. Descreveu, então, que esta troca comporta-
mental do tipo agora-eu-agora-tu-agora-eu, com
características de jogo, era vivida pelo bebé como

21 Bebés, de oito a catorze semanas, tomavam a iniciativa

de relação com pessoas e coisas. A este comportamento foi


chamado de “análise da contingência”, expressão que se refere
ao facto destes bebés bastante pequenos seleccionarem siste-
maticamente entre os seus actos espontâneos, aqueles que, de
uma forma mais consistente e dentro de um certo intervalo de
tempo (dois a cinco segundos em média e nunca superior a
nove segundos), os presenteavam com um estímulo interes-
sante, como se o estímulo estivesse sob o seu próprio controlo.

94
imensamente prazerosa. E concluiu que o compor-
tamento do bebé é o resultado de uma procura, uma
necessidade do outro que esteja ali a responder. Daí
Leal (2006) falar de emoção como moção e não
como entidade.

“A reacção emocional define-se como


fenómeno relacional, pelo qual é assegurada a
comunicação de organismo para organismo:
ressonância implícita de um organismo ao
seu meio circundante que é também reconhe-
cível (como mensagem) por outro organismo
da mesma espécie.
A emoção como fenómeno relacional
primário, pré-verbal, encontra indicadores
claros nos comportamentos do filhote huma-
no, pelo menos desde o nascimento” (Leal,
1999, 48-49).

Será este o locus que configura a matriz


relacional: comprometido emocionalmente, o adulto
imita espontaneamente qualquer gesto ou movi-
mento do bebé. Também o adulto vai realizar
pausas e observar o que se segue (de notar que este
intercâmbio comportamenal é absolutamente praze-
roso para os humanos ― bebé e adulto ― interveni-
entes), e esta postura de espera e aceitação, este
“diálogo” de actos, confirma a agência do bebé.

95
“A comunicação primária envolve para o
Sujeito (seja ele pato, peixe ou humano) uma
expectativa inata de reciprocidade: de que um
outro se encontra ao alcance para completar o
Meu acto. Nesta perspectiva, a vida emocional,
como um todo, define-se como comunicação
envolvendo intenções (que podem ser frus-
tradas) respeitantes a um outro que é, a um
tempo, co-agente, recipiente e respondente de
mensagens que mutuamente se pressupõem e
se regulam. (…) Vivências que se irão diferen-
ciando como ‘objectos internos’” (Leal, 1999,
49).

De notar que perturbações deste formato


relacional estão na origem de desordens graves do
desenvolvimento. Mas quando um profissional trei-
nado permite reatar esta configuração de inter-
câmbio, uma nova oportunidade pode-se configurar,
já que o mecanismo inato de busca da resposta
contingente à própria iniciativa não se extingue ao
longo da vida (Leal, 2003). O que depende

“de se instituir desde o início, com o paci-


ente, o intercâmbio pré-verbal, dialógico, en-
tendido nos moldes primitivos do ‘vai-e-vem’
recíproco e alternante, o ‘turn-taking’ emocio-
nal primeiro que se observa nos estados de boa
relação inicial mãe/filho” (Leal, 1999, 50).

96
Eis a importância do trabalho de Rita Leal: “na
medida em que oferece a resposta à questão de
Bruner (1990) sobre a estrutura e a natureza da
relação precoce na qual se inicia a estruturação da
linguagem, e explicita a categoria ‘social’ em bio-
logia e psicologia” (Aires, 2007, 182). O que nos
remete para o que já referimos: este social ou esta
relacionalidade não tem um carácter simplesmente
psicológico, cognitivo ou afectivo, mas ontológico.
Implica, portanto, um intercurso mutuamente
contingente, o que não interfere apenas no compor-
tamento, mas também na organização interna.
É assim que a teoria de Vygotsky e suas teses da
organização sistémica, localização dinâmica e ori-
gem relacional das funções nervosas superiores, e a
perspectiva dialógica de Leal (cfr. Anexo 2, pág. 131)
nos aproximam de um novo entendimento do que
nos faz humanos.
Sem receio, podemos então afirmar que o que
nos faz humanos é bioantropológico na sua origem e
psicossocial no seu desenvolvimento e manutenção.
Por isso é que o “indivíduo” ou homem neuronal
(Caldas, 2003) é apenas um conceito abstracto e
espúrio. O que existe são “pessoas” (seres relacio-
nais) humanas, o que faz com que cada um de nós
não dependa exclusivamente da sua biologia mas
essencialmente dos relacionamentos nos quais e
pelos quais vive, ou seja: o humano só existe na sua
dimensão sócio-psicológica.

97
É neste sentido que “as formas de incarnação
que conduzem à consciência são únicas em cada
indivíduo, únicas do corpo dele ou dela e das suas
histórias individuais” (Edelman, 1995, 197), porque
“cada consciência está dependente da sua história e
forma de realização, que são únicas. (…) Um eu
humano consciente se constrói, algo paradoxal-
mente, através de interacções sociais” (Edelman,
1995, 201). Em suma, um “ser humano” é o produto
do seu corpo e da sua história relacional.
Portanto, não se pode deduzir linearmente as
paixões do homem, de acordo com essa curiosa
expressão outrora muito usada, a partir de preten-
sos instintos biológicos, pois elas se formam e mol-
dam sócio-biologicamente a partir da relação entre
as necessidades humanas e o ambiente (Soczka,
1994); dessa forma, já são substancialmente o resul-
tado das condições sociais e culturais22. O que o

22“Na literatura científica mantém-se a confusão concep-


tual entre ressonância emocional (fenómeno originário e
dimensionável no bebé humano) e os chamados afectos (ou
emoções estruturadas de elaboração tardia no percurso da
criança humana com significado sócio-cognitivo)” (Leal, 1999,
48). “Quando se parte do princípio, hoje aceite por todos, de
que a representação interna dos objectos da realidade é cons-
trução progressiva da mente (…) forjada laboriosamente atra-
vés da actividade do sujeito nos seus primeiros anos de vida,
também se poderá admitir que a vida emocional se estrutura
em passos sucessivos. Estes vão da ressonância pura do infan-
te (o que não fala…), à organização em complexas estruturas
dos elementos da experiência de estar em relação, e à organi-
zação simbólica das relações de presença e de ausência, dos

98
mesmo é dizer, o homem não poderá mais ser visto
como um sistema mecânico ― um homem máquina
― impelido pelas leis da física e da química, um ser
basicamente isolado e egoísta, mas terá de ser enca-
rado como um ser que primariamente está referido
aos outros, impelido por instintos vitais, sim, mas
que anseiam por união com outros: não existo eu e
os outros, mas eu-em-relação-com-tudo-o-mais.

Por tudo isto, a noção substancial de “res


cogitans” de Descartes ou o substancialismo neuro-
nal de algumas vertentes da investigação cognitiva
devem ser ultrapassados em prol de uma noção
“processual” e “relacional” (de acordo com a nossa
perspectiva relacional). Partilhando, a nosso modo,
do “materialismo sofisticado” de Edelman (1995,
230), recusamos as visões teleológicas emanadas do
antigo paradigma medieval bem como a substan-
cialidade23 defendida de modo ora tácito ora explí-
cito no antigo paradigma medieval e no novo para-
digma cognitivo (Major, 2008c), em prol de uma
“terceira via” relacional e mais abrangente, de modo
a justificar plenamente o significado e a ipseidade.

afectos mais elaborados, do enquadramento estético e ético


dos significados do Eu e do Outro e daquilo que os transcende”
(Leal, 1999, 49-50).
23 No sentido de “auto-subsistente”; portanto, nos antípo-

das da perspectiva relacional que aqui defendemos.

99
Assim, e porque não existe qualquer análise
externa objectiva que possa suplantar as respostas
individuais e a troca intersubjectiva que têm lugar
dentro de uma determinada tradição e cultura,
autores como Jerome Bruner deram tanta ênfase ao
papel central desempenhado pela construção do
significado na psicologia humana e ao facto do “eu”
surgir a partir das interacções interpessoais numa
cultura sob a influência de narrativas (Bruner,
1990). O que, a seu modo, nos subtrai às leis darwi-
nianas.
Apesar das determinações e constrições a que a
nossa física de base nos condena, encontramos algu-
ma liberdade na “nossa gramática” (Edelman, 1995,
244), e esta ensina-nos que antes do eu está o tu, e
por fim o nós, não fosse essa a sequência que nos
leva da infância (de “infante”: o que não fala) à
idade adulta. Tal perspectiva nos afasta, de modo
salutar, do fatalismo biológico e/ou físico. O que
permite, por exemplo, a manutenção da moralidade
apesar da nossa condição unicamente material
(portanto, limitada e finita), bem como explica que
os dados das neurociências, qualquer que seja a sua
quantidade, não conseguirão, por si só, explicar o
ser humano. Contudo… “nada há de misterioso ou
de místico nesta afirmação” (Edelman, 1995, 251).
Subscrevemos.
Em certa medida, poderemos dizer que pos-
suímos uma “‘alma’ individual baseada na lingu-

100
agem” (Edelman, 1995, 67). Preferimos, contudo, a
mais complexa e abrangente qualificação de uma
existência baseada em mecanismos processuais
relacionais. Talvez isto se torne mais compreensível
se referirmos que a “mente biológica” ― e correlata
consciência ―, evoluiu como um órgão para contro-
lar o corpo e mediar as suas relações com o entorno
(Pinker, 1999). O que não implica, necessariamente,
a linguagem, mas sim a relação. Afinal, alguns ani-
mais cujos comportamentos são não linguísticos e
não semânticos também parecem possuir uma
consciência, ainda que primária. Tal consciência
primária parece ser eficaz (no sentido causal) e
potenciar as capacidades evolutivas de adaptação.
Por sua vez, a consciência elaborada, dependente da
linguagem, parece ser ainda mais adaptativa,
porque epigenética. E é aqui, nesta recursividade
que não só é biológica mas essencialmente social,
que podemos radicar a intencionalidade e o que
hoje denominamos por humano. Afinal, consciência
é, sobretudo, consciência de algo e das relações do
sujeito com esse algo (Méndez Paz, 2003), o que não
é apenas fruto da biologia, mas essencialmente da
dimensão recursiva, social e comunitária.
Ainda assim, é verdade que “a psicologia não
pode continuar a declarar a sua autonomia em face
da biologia, e tem sempre que ceder às descobertas
da biologia” (Edelman, 1995, 255). Não fosse a
nossa liberdade uma liberdade sempre relativa e

101
situada (o que desde os tempos da psicanálise e da
“descoberta” do inconsciente se sabe). Quanto mais
não fosse porque, mais cedo ou mais tarde, tudo
acaba por se reflectir nas sinapses (Edelman, 1995,
259)…
Por causa do aspecto recursivo do cérebro
humano e, qual correlato “exterior” deste processo
neuronal/cerebral, a faceta social da pessoa huma-
na, Edelman chega a afirmar: “não existe verdade
absoluta nem perspectiva divina. A nossa pers-
pectiva daquilo que existe (metafísica) não é inde-
pendente do modo como conhecemos (episte-
mologia)” (Edelman, 1995, 356). O mesmo poderá
ser dito se afirmarmos que não existe uma teoria
óptima sobre nada ou um “mapa” óptimo de uma
zona concreta. Tal como diria Bateson: “o mapa não
é o território e o nome não é a coisa nomeada”
(Bateson, 1987, 35).
Consequentemente, temos de complexificar os
nossos discursos e
“incorporar a biologia nas nossas teorias
do conhecimento e da linguagem. Para con-
seguir isso, temos que desenvolver (…) uma
epistemologia biologicamente fundamentada
― uma explicação do modo como conhecemos
e somos conscientes, à luz dos factos da
evolução e da biologia do desenvolvimento.
Uma realização mais completa destes objecti-

102
vos fará expandir os nossos horizontes cientí-
ficos. Através das suas ligações com aquilo que
nos torna especificamente humanos, uma
epistemologia biologicamente fundamentada
enriquecerá as nossas vidas” (Edelman, 1995,
358-359)24.

Com efeito, o nível de explicação da psicologia


deverá percorrer as etapas dos processos que têm
lugar a nível molecular (sináptico) até ao nível
modular formado pelo conjunto das redes neuro-
nais, passando pelos padrões que se estabelecem a
nível social. Ainda que não seja fácil determinar
onde começa e acaba cada nível, dado que a maior
parte das vezes tais processos actuam em simul-
tâneo numa dança complexa de interacções e retro-
acções.

Em síntese, e usando uma metáfora (desde que


se não olvide que é apenas uma metáfora), podemos
dizer que o ser humano é, à partida, constituído
por algo semelhante à bios (“basic input-output
system”) de um computador: um programa muito

24 Cremos que tal se anuncia na emergente disciplina cien-


tífica denominada por biosemiótica (Barbieri, 2002; 2009), na
qual se enquadram eminentes académicos e cientistas como,
por exemplo: Deacon (1997), Favareau (2001), Markoš (2002),
Barbieri (2003), Hoffmeyer (2008), Cowley (2009).

103
básico (no duplo sentido de simples e de estar na
base do demais), que dá sentido às partes que
constituem o todo orgânico do ser humano e ao que
lhe acontece. Esta bios funciona de acordo com as
leis da biologia humana que são o resultado de
milhões de anos de evolução filogenética. No estado
actual do ser humano, tudo parte daqui, desta confi-
guração básica, inata e filogeneticamente muito an-
tiga, onde se encontram codificados o tipo de es-
tímulos que devem ser considerados relevantes;
todos os demais serão considerados irrelevantes ou
simplesmente não serão detectados pelo sistema
sensorial do ser humano25. É só neste sentido que o
início do “processo da mente”, ou conducente à
mente, poderá ser rotulado de top-down (ou proces-
samento descendente). De cima para baixo, do
interior para o exterior, do programa biológico para
a realidade.
Este é o mecanismo inicial. Mas desde esse
início entra em acção a relação com os outros e o
entorno, que vai transformar a biologia cerebral de
um modo tal que desemboca num “cérebro novo”,
resultante do efeito transformador das instrumen-
talidades culturais, ou seja, a partir do exterior.

“Estes mecanismos cerebrais inatos e amadurecidos à


25

nascença são sempre contextualizados numa posição atitudi-


nal e dimensionados por critérios dicotómicos: avaliação do
novo (versus o irrelevante ou habitual), do agradável ou atrac-
tivo (versus o que é desinteressante)” (Aires, 2007, 177).

104
Diante da multiplicidade dos estímulos exterio-
res (bottom-up, ou processamento ascendente)
novas relações/conexões neuronais se começam a
estabelecer. De início de modo frágil, com o passar
do tempo de modo mais vincado. Por outro lado,
redes neuronais pré-existentes começam a ceder
face à pressão da aprendizagem.
Toda esta abordagem depende da adequação das
ligações, o que geralmente é regido por uma regra
de “alteração” gradual das ligações (ou conexões) a
partir de um estado mais ou menos arbitrário.
Segundo a “regra de Hebb”26, se dois neurónios ten-
dem a ser activos em conjunto, esta ligação é forta-
lecida, caso contrário, é diminuída. É desta forma
que as redes neuronais, para além das tarefas defi-
nidas a priori para um determinado sistema, se tor-
nam inseparáveis da história da sua transformação.
Dado que a acção real acontece ao nível das ligações,
a designação de conexionismo (muitas vezes cha-
mado neo-conexionismo) foi proposta para esta via
de investigação/explicação.
Distinção que já era realizada por Pavlov, em
1924, quando falava sobre os circuitos neuronais
generalizados, inatos ou herdados e comuns a todos
os membros da espécie, e os circuitos neuronais

26 Em 1949 Donald Hebb sugeriu que a aprendizagem

podia ser baseada em modificações no cérebro, as quais pro-


vêm do grau de actividade correlacionada entre neurónios.

105
individuais, estruturados ao longo do desenvolvi-
mento. A actividade nervosa superior é a que resulta
da integração de ambos os circuitos.

106
5 - A FÓRMULA RELACIONAL
EM PSICOLOGIA

“A actual situação das sociedades ociden-


tais é a da afirmação de um individualismo
auto-suficiente, contrariado embora por movi-
mentos de solidariedade que revelam afinal o
que há de mais constitutivo no ser humano: a
abertura ao outro. A razão cognitiva, ao situar
ao nível meramente neurobiológico o elemento
essencial constitutivo do ser humano, transfor-
mando-o (…) numa máquina biológica regida
pelas leis da sobrevivência, não parece ter
qualquer contributo humanizante a oferecer às
sociedades modernas onde (…) a dimensão
interpessoal se fragmenta cada vez mais, e o
homem-máquina, produtor-consumidor, per-
dido nas povoadas avenidas das cidades que
não param de crescer, se arrisca a tornar-se
um desconhecido para si mesmo e para os
outros” (Major, 2008c, 146-147).

O que especifica a experiência humana é o seu


marco narrativo, manifesto de modo esplendoroso
na linguagem, a qual assume a forma de uma trama
narrativa de cunho generativo ― a explicação de

107
algo por intermédio de uma narrativa lógica, a qual
tem mais a ver com a nossa história pessoal27 do que
com uma realidade exterior e factual. É esta
dinâmica da linguagem o que tem vindo a elaborar a
experiência humana, o nosso self, e permite referir-
-nos a ele como tendo uma identidade narrativa
(M. Oliveira, 2006), o que simultâneamente nos
possibilita sair da mera imediatez dos sentidos.
Desafortunadamente, foi também esta dinâmica
quem nos fez perder a harmonia com o mundo, que
consistia justamente na simultaneidade. No espírito
de Maturana (1998), poderíamos dizer que uma
mosca não pergunta pelo sentido do seu ser, apenas
limita-se a existir, a estar ali, a “mosquear”28…
Muitas outras espécies podem ter símbolos e
linguagens para se comunicarem entre si, mas
apenas os humanos possuem a habilidade de ver,
pensar e teorizar sobre sítios e eventos nos quais
nunca se encontraram, para se imaginarem em
mundos tão pequenos para serem examinados
mesmo pelos mais avançados aparatos técnicos, ou
tão estranhos e infinitos que se tornam literalmente
inatingíveis.

27 Por oposição à linguagem como janela para a mente ou

como acto de revelação de uma subjectividade pré-existente.


A história desta desarmonia terá cerca de 80.000 anos
28

(a idade aproximada da forma de falar como a nossa); suma-


mente recente, portanto. Além de que o primeiro alfabeto foi
datado pelos 1.500 anos a.C.

108
Esta forma especificamente humana de inte-
ligência é o nosso maior dom e, porventura, a nossa
mais triste maldição. Dádiva, porque nos permite
imaginar o que os outros sentem, vermo-nos em
outros lugares e em outros seres, ampliando a nossa
capacidade de sentirmos empatia. Por outro lado, o
descentramento que essa capacidade proporciona
pode-se tornar numa terrível maldição na medida
em que nos pode abstrair das consequências das
nossas acções. Inventamos armas de destruição
maciça, separamos os fins dos meios na nossa actu-
ação, e esquecemos que dependemos dos demais
para a nossa própria sobrevivência.
Mas, se esta capacidade por um lado desarmo-
nizou-nos com o meio, por outro lado permitiu-nos
abrir uma perspectiva enorme ao ampliar-nos o
passado e o futuro. E ao questionarmo-nos sobre o
sentido da existência, pela narratividade da resposta
esperada asseguramos o sentimento de continui-
dade; mas agora de um tipo de continuidade que é
dada por entre as descontinuidades.

5.1 - A Narratividade Clínica

Em psicologia, a linguagem é uma importante


ferramenta terapêutica. Mas é também um instru-
mento básico, pois ela é o fenómeno da consciência

109
constitutivo para o humanizar-se. Por outras pala-
vras: é a linguagem o que faz do homem humano.
Assim, no próprio veneno encontrámos o antídoto e
coetânea cura: a narratividade deu-nos a ocasião de
ampliarmos de forma abissal a nossa existência,
pelo forjar de um relato mais rico, mais dinâmico e,
como tal, passível de nos reconstruir ― e isto é tera-
pia: uma meta-linguagem que nos afasta do concre-
tismo, dos momentos aflitivos, e por esse afasta-
mento reflexivo serena-nos, de modo a podermos
viver a imediatez de uma forma mais solta, mais
livre, mais adaptativa; ou, se quisermos voltar a
aplicar a palavra: de uma forma (mais) “humana”.
Se considerarmos a ontologia dos actos huma-
nos (e isso é psicologia), temos de concluir que as
questões relacionais são na sua essência afectivas
(Veríssimo, 2000). Os afectos aparecem exterior-
mente como meros episódios da vida humana, mas
no íntimo de si, o homem é todo ele afectividade e
desejo de relação. O homem não é só: é-em-
-presença-de; não existe propriamente: co-existe. A
vida humana é essencialmente com-vívio (Matura-
na, 1998). É por isso que a ideia helénica de homem
como pura razão solipsista mostra-se descabida no
contexto do que nós somos e do modo como adoece-
mos psicologicamente. A consideração existencial
do ser humano sob este aspecto, dá uma nova luz
sobre o problema, tornando-o compreensível mes-
mo quando se apresenta sob as vestes do irracional.

110
Além de que a supressão do “outro” acarretaria a
nossa própria supressão. Pelo menos neste sentido,
é lícito afirmar com os clássicos que: “nihil est in
intellectu quod non prius fuerit in sensu”.
Então, por intermédio de uma cumplicidade
também ela afectiva com o terapeuta, procurar-se-á
reformular, no presente, pelo desfiar do drama
emocional ― eis a narratividade clínica (Guidano,
1991; Ruiz, 2003), os momentos que por não terem
sido no passado digeridos, ficaram estagnados,
bloqueando o são processo de criação de sentido29.
E é nesta fossilização, rigidez, que residirá a
patologia ― daí os terapeutas da linha narrativa se-
rem de algum modo avessos à medicação (apenas
aceitando-a nos casos mais graves das psicoses e
apenas como terapia inicial de choque), por
entenderem que a acção dos “fármacos” (álcool,
drogas, anti-depressivos…) inevitavelmente corrom-
pe o processo de criação de sentido, justamente por
interromper o processo de individuação ou, como
diria a psicanálise, do estabelecimento e manuten-
ção dos bons objectos internos. É por isso, também,
que se torna numa missão de suma importância o
recuperar dos hábitos de leitura nas crianças, pois
só estes permitem o despertar, isto é, a criação e

29 Desde a partida, esta forma de actuar em clínica psico-


lógica assegura a individualidade de cada caso; não pertences-
se a uma determinada pessoa, com uma história e um porvir
únicos.

111
manutenção de uma meta-linguagem geradora de
sentido. O que promove, ao mesmo tempo, a
superação do império das imagens, as quais, sem
uma meta-linguagem capaz, nada mais serão que
estímulos desconexos e paralisantes.
Na mesma linha, refere M. Oliveira: “é possível
supor que em tempos como os actuais, em que a
velocidade das transformações sociais, nos planos
tecnológico, cultural e económico, torna-se verti-
ginosa, os sujeitos e, especialmente, os adolescentes,
tenham ainda maior necessidade de dispositivos de
sustentação de si, que forneçam a ancoragem aos
diferentes posicionamentos do self, adoptados
segundo o sistema de actividade em foco” (2006,
432).
Convenhamos, a neurose característica do nosso
tempo não é mais a sexualidade reprimida (como o
foi no tempo de Freud e da nascente psicanálise) ―
o que haveria hoje para ser reprimido? ― mas sim a
falta de ligação e de orientação, a falta de normas, a
falta de sentido e o sucedâneo vazio de que padece
grande parte da população actual (Küng, 2005).
Portanto, este precioso método narrativo e dialógico
de conhecimento deverá ser levado até às últimas, e
desejáveis!, consequências. A grande regra é, pois, a
produção do máximo de mudanças com um máximo
de auto-consciência. Mesmo correndo o risco de, no
final do caminho, nos surgirem questões de sentido
que nos apelam para o patamar meta-linguístico do

112
desejo que faz ansiar pela Origem de toda a palavra
e de toda a narrativa: a Palavra, escrita com
maiúscula30…

5.2 - A Abordagem Relacional Dialógica

“A educação cognitiva encerra uma visão


dialógica do desenvolvimento cognitivo huma-
no, uma construtivista e outra co-construti-
vista. A construtivista, inspirada em Piaget,
visa a construção centrípeta, significativa e
estruturada do conhecimento, e não a pura
acumulação acrítica de dados da informação. A
co-construtivista, inspirada em Vygotsky, re-
força a construção centrífuga do conhecimento
com base em interacções sociais interiorizadas

30 Neste contexto, com Küng, podemos afirmar: “não

advogo uma psicoterapia religiosa ou uma psicoterapia unica-


mente para o elemento religioso, mas sim uma terapia que ―
entre outras formas de expressão humanas ― também leve a
sério o fenómeno da religião” (Küng, 2005, 128-129).
Não se pode afirmar que todos os problemas do nosso
tempo possam ser resolvidos por uma nova religiosidade. Mas
o que ― também para nós ― está claro, é que na nossa época
muitos problemas só existem precisamente por causa das
questões de sentido. E se uma verdadeira psicologia/psi-
coterapia tem por função libertar, curar e estabilizar, então,
com vista à almejada auto-realização do ser humano, esta só
poderá ser a um só tempo pessoal e social.

113
e mediatizadas envolvendo um diálogo inten-
cional entre indivíduos experientes e inexpe-
rientes” (Fonseca, 2001, 8).

Apesar de toda a psicologia ser, por sua própria


essência, “relacional”, lamentavelmente alguns sec-
tores da psicologia parecem ir esquecendo esse facto
― nomeadamente, aqueles sectores muito ligados às
neurociências e às ciências cognitivas… Aqui, procu-
ramos apenas uma simples ― mas essencial! ― cor-
recção do percurso: não pode ser o “homem neuro-
nal” o paradigma da psicologia, mas sim o “homem
relacional”.
Nesta medida, desde há muito que está claro
para um crescente número de educadores que a
experiência do self não é algo que emana exclusiva-
mente do lado biológico ou “instintivo” do ser
humano, como também não se apresenta como uma
pura construção cognitiva. O self é uma co-cons-
trução que vai acontecendo entre estes dois pólos
(Leal, 2007), envolvendo o “eu” (com toda a sua
carga biológica) e os “outros” no encontro com a
realidade; o que evoca Pierce (1932) e a sua visão
triádica da realidade.
Se o humano emerge da interacção com pessoas
significativas numa lógica de experiência de conver-
sação, essa mesma lógica deverá ser usada no con-
texto da clínica psicológica. Com efeito, a principal

114
ferramenta da psicologia relacional de cunho narra-
tivo reside na evidência de as competências ditas
humanas resultarem da interacção sócio-linguística.
Falamos, portanto, de uma intervenção dialógica
sobre um self relacional, em que surge a figura do
mediador (palavra, coisa ou pessoa) e se verifica
uma visão não apenas dual, mas triádica.
Como atrás referimos, os primeiros passos do
processo de crescimento mental podem ser obser-
vados quando o bebé (e até mesmo o neonato) busca
activamente no seu ambiente por uma resposta con-
tingente à sua actuação comportamental espontânea
(isto é, a busca primária do outro como interlocutor
respondente). A partir daqui, a única condição para
que o self aconteça é o encontro de um outro que se
preste a essa transacção emocional, proporcionando
as necessárias pausas para que a resposta da criança
aconteça. Quando a criança percebe que um outro
lhe responde, está aberto o caminho para que ela
própria se descubra como uma entidade distinta e
merecedora de valor: um “eu” por direito próprio.
Tal se atinge por intermédio de uma presença
atenta ― só assim o infante se irá encontrar consigo
próprio. Também é no contexto deste jogo comuni-
cacional, sustentado pelo sentimento básico da con-
fiança, que a tolerância da criança à frustração se irá
desenvolver e, na mesma medida, irá aprender a
retardar ou diferir no tempo a satisfação. É destes
factos que provém a terminologia de Rita Leal e sua

115
descrição de um desenvolvimento “dialógico” da
vida mental, isto é, dos actos que precedem a lenta
construção de um sistema pessoal ou self.
Com Leal (cfr. Anexo 2, pág. 131), constatamos
que desde o nascimento todos os constructos huma-
nos têm na sua origem uma narrativa comporta-
mental que se estabelece numa rede de relações
recíprocas, nas quais as emoções e as acções inter-
nalizadas (i. é, as cognições) são as fundações de tal
edifício; e que desta narrativa comportamental
emerge uma outra: as raízes da linguagem se estabe-
lecem na mesma medida em que um adulto aceita
os sons emitidos pelo infante como um chamado à
relação. As primeiras experiências do apontar em
conjunto (apontar a dois) e de referenciação, de
característica triangular, o que paulatinamente leva-
rá à criação do símbolo como um veículo consensual
para o significado ― eis o triângulo básico da comu-
nicação: infante/objecto/prestador de cuidados31. É
nesta medida, segundo a qual o comportamento, a

Reconhece-se esta triangulação como desencadeante da


31

actividade fundamental da criação simbólica, em que o objecto


apontado a dois (desde o início que qualquer gesto ou objecto
serve à transacção emocional) é por consenso rotulado e parti-
lhado no novo formato simbólico em que se origina a lingua-
gem (Peirce, 1932). De notar, como refere Rita Leal (2007),
que os actos de fala são um dos tipos possíveis de expressão
humana ― a capacidade para representar objectos e estados de
coisas faz parte de uma capacidade mais geral da mente para
referenciar o organismo à realidade.

116
linguagem e o pensamento se manifestam interde-
pendentes, que se pode vir a dizer, como Bruner
(1991) o fez, que a realidade humana tem uma estru-
tura narrativa.
Trata-se do estabelecimento de uma narrativa
interna que se demonstra dependente de uma nar-
rativa externa que se forma na conversação com os
adultos ou os outros em geral acerca dos aconteci-
mentos e episódios do passado e sua implicação no
presente e no futuro. Com efeito, “o self não é uma
estrutura que se desenvolve no silêncio do desen-
volvimento cognitivo intrapsíquico, mas surge de
um jogo de interacções sociais e linguísticas que
ajudam a criança a sistematizar os significados das
experiências pessoais. A significação da experiência
permite gerar um impacto e um reflexo emotivo no
Mim (auto-conhecimento) e este processo dialéctico
engendra, por seu turno, o self” (Ramos, 2008, 65).
Mas tal “auto-conhecimento” só será uma reali-
dade na medida em que os eventos passados adqui-
ram existência e consistência através dessas expe-
riências de evocação. Na evocação ou recordação, o
evento adquire uma nova oportunidade de codifica-
ção de significado, uma vez que a própria evocação
precede a codificação, que depende do diálogo com
os outros, como defende Ramos. Uma tal aborda-
gem (dita psicossociogénica), possibilitada pela prá-
tica do uso de narrativas, permite o reelaborar e sis-
tematizar dos eventos do dia-a-dia possibilitando

117
esse conhecimento pessoal à luz do modo como cada
um enfrenta os acontecimentos quotidianos e os
elabora, potenciando as suas competências cogniti-
vas e, por conseguinte, modelando o seu self de
formas eventualmente mais adaptativas, e tudo isto
numa óptica de meta-aprendizagem.
Com isto, voltamos a tocar numa noção cara a
Vygotsky: a noção de “zona de desenvolvimento
proximal” (ZDP) do indivíduo, ou seja, do seu nível
de modificabilidade cognitiva: o aprendiz (bebé,
criança ou adulto) só avançará no conhecimento,
quando o educador/professor que lhe serve de
mediatizador (os termos são mediatizador/medi-
atização, e não apenas mediador/mediação, para
não se confundir com um processo negocial) com as
suas instrumentalidades (alguém mais velho ou
mais apto ou mais experiente) se referenciar à sua
ZDP.
Como indica Rita Leal (2009), o comportamento
espontâneo da criança durante qualquer desempe-
nho, mesmo assistido, revela as competências que
estão em vias de emergir. Se insistimos em avaliar
os desempenhos independentes com o intuito de
descobrir “onde é que uma criança está” ― o que
sabe e o que pode fazer ― então as habilidades que
estão à beira de emergir nunca serão evidentes.
Vygotsky ao introduzir a noção de ZDP reforça a
ideia de que o desenvolvimento de seres inexperien-

118
tes depende da interacção com seres experientes,
sugerindo que as formas superiores de desenvolvi-
mento humano, nomeadamente emocionais (altru-
ísmo, solidariedade, etc.), as cognitivas e as simbóli-
cas, são função da mediatização destes sobre aque-
les. Neste sentido, a mediatização é a chave do
desenvolvimento social e cognitivo da espécie hu-
mana.
Portanto, quando uma “habilidade” está fora da
ZDP, as crianças ignoram-na, falham ou usam-na
incorrectamente. Será pela observação das reac-
ções/respostas espontâneas que os educadores/pro-
fessores conhecerão se a sua intervenção didáctica
cai dentro da ZDP, que é uma “janela” da aprendi-
zagem. Daí que o trabalho em colaboração com um
colega mais apto dá fácil acesso à ZDP.
Sem experiências de aprendizagem mediatiza-
das, as habilidades não emergiriam, pois não basta a
maturação neurobiológica; como divisámos, é fun-
damental a interacção social e mediatizadora entre
indivíduos experientes e inexperientes.
Assim mediatizada, a informação não é recebida
de modo passivo, fragmentário ou assistemático,
pelo contrário, por efeito da interacção intencional
posta em prática pelo mediatizador, a informação
passa a ser integrada de forma adequada, interiori-
zada e significativa.

119
O que se pretende não é apenas a assimilação de
conhecimentos (a génese do insucesso escolar talvez
se deva por a tónica estar aqui centrada) mas desen-
volver competências de resolução de problemas. Por
conseguinte, joga-se com as funções que estão já
maturas e as funções que estão em processo de
maturação; e estas só podem ser manifestadas
quando o indivíduo trabalha com outro mais expe-
riente ou competente. Por sua vez, o que um indiví-
duo faz hoje em colaboração com outro mais expe-
riente, fá-lo-á amanhã de modo independente.
Se a avaliação tradicional e normalizada pers-
pectiva aquilo que Vygotsky definiu por zona de
desenvolvimento actual (ZDA), uma verdadeira
avaliação para além de detectar a ZDA deverá ir
mais longe e procurar determinar aquilo que o ava-
liado pode fazer com a ajuda de um colaborador (o
observador-mediatizador) mais experiente, isto é,
atingir a ZDP. Isto porque a ZDP é onde deve decor-
rer o nível de instrução/intervenção. O que sugere
que o modelo adequado deverá ser o seguinte:
pré-teste → intervenção-mediatização → pós-teste
(ou teste → intervenção-mediatização → reteste).
Como refere Fonseca (2001, 65), este modelo
compreende um olhar clínico e semiológico: tra-
ta-se, pois, de avaliar um processo e não um produ-
to final, bem como de reconhecer que a modificabi-
lidade não ocorre por si própria, mas só quando se
introduzem estratégias de aprendizagem mediatiza-

120
das, cujo objectivo é maximizar a ZDP e potenciar a
aprendizagem futura.
Nesta concepção educacional cooperativa e não
competitiva, o diagnóstico psicopedagógico deverá
anteceder a intervenção cognitiva. Daí que o “desen-
volver o potencial de aprendizagem com programas
de enriquecimento cognitivo não é uma futilidade,
na medida em que o potencial não se desenvolve no
vacuum, nem apenas por instrução convencional;
para que ele se desenvolva, é preciso que ele seja
estimulado e treinado intencionalmente” (Fonseca,
2001, 55).
Tal como na clínica psicológica, do que se trata é
de um processo de aprendizagem clinicamente
orientado que adopta uma estratégia relacional vin-
culada e afectiva, intencionalmente voltada para a
produção de relações significativas com a informa-
ção inerente às tarefas.

Assim, e

“em conclusão, a pedagogia mediatizada


aplicada no contexto familiar e escolar pode
evitar muitas perturbações emocionais e com-
portamentais, deixando rastos numa infância
dolorosa ou numa adolescência atípica ao
mesmo tempo que pode criar crianças e jovens

121
mais competentes, alegres e motivados para
aprender, isto é, mais solidários. Como a vida
familiar constitui a primeira escola de aprendi-
zagem, os pais devem investir mais na interac-
ção mediatizada para os tornar socialmente
mais hábeis; também na escola os professores,
por meio da mediatização, podem criar futuros
adultos mais solidários e mais aptos a respon-
derem aos desafios complexos da sociedade
futura. Em síntese, se queremos uma socieda-
de mais solidária, a família e a escola terão de
ser mais mediatizadas” (Fonseca, 2001, 106).

122
CONSIDERAÇÕES FINAIS

“Com relação à concepção de self e a rela-


ção self-narrativa, buscamos argumentar que a
mudança de perspectiva que a abordagem nar-
rativa impregna no enfoque do self, saindo de
um self individuado, consciente e prenhe de
representações, e chegando a um self dialógi-
co, discursivo, que se faz nas interacções, não
se resume a uma mudança geográfica, desde
uma localização interior para outra exterior.
Trata-se de uma mudança conceitual, que leva
da representação para a apresentação, a emer-
gência, a novidade; a transição do modelo de
self como sistema fechado, encapsulado, o qual
escapa da clausura pela via da linguagem (a
visão da linguagem como janela da mente),
para um modelo de self como sistema aberto e
em constante reconfiguração nas práticas dis-
cursivas em situações sociais. De acordo com a
visão aqui explicitada, a linguagem não expres-
sa o self, mas o fabrica” (M. Oliveira, 2006,
434).

Numa perspectiva clínica, com este trabalho


procuramos abordar algumas questões que nos pa-

123
recem essenciais à psicologia como prática, mas que
também se prendem com o seu ensino/aprendi-
zagem.
Afinal, como Ramos (2003; 2008) evidenciou, a
memória autobiográfica se estrutura com base
numa narrativa autobiográfica adquirida na cultura
através das experiências sociais de conversação32.
Nesta continuidade, também se pode afirmar como
verdadeiro que a “elaboratividade” (perfilhamos o
vocábulo usado por este autor), entendida como
competência básica, também é algo que se transmite
e se desenvolve (“elaboratividade” pode-se definir
por: “uma acção verbal ou não verbal de confirma-
ção, aprofundamento e, sobretudo, melhor definição
e significação verbal (…) aquando da expressão de
uma emoção relativa a uma experiência vivida”
(Ramos, 2008, 107). Leal diria: é a resposta contin-
gente à actuação comportamental de alguém).
Nesta medida, a forma como alguém se compor-
ta perante outrem em termos de reminiscência face
às suas experiências passadas, permite potenciar o
auto-conhecimento (dependendo, naturalmente, do
nível da elaboração emocional da conversação e, por
conseguinte, da reminiscência) e, neste sentido,

É o princípio de que o indivíduo constrói a sua identi-


32

dade com base em reminiscências do passado. E se é verdade


que a memória autobiográfica é um produto cognitivo interno,
a reminiscência, condição da primeira, é essencialmente social.

124
incrementar as capacidades adaptativas humanas,
mormente ao nível do auto-conceito33.
No que às crianças diz respeito, “após o reco-
nhecimento emocional, por parte do filho, da expe-
riência enunciada pela figura materna, esta, pode ou
não continuar a aprofundar a recordação. Não é
uma mera repetição da palavra-emoção, mas a ten-
tativa de aumentar a coerência da narrativa” (Ra-
mos, 2008, 107).
Assim, também se poderá traduzir “elaborativi-
dade” por suporte emocional. Ora, é justamente este
suporte emocional que se defende estar na base da
auto-estima34 e da transição do sexto passo da “afec-
tologia genética” de Leal para o sétimo passo, ou se-
ja: da transição da adolescência/juventude para os
alvores da maturidade (cfr. Anexo 2, págs. 147-154);
não se manifestasse a adultez pela alternância pos-
sível entre ser cuidador e ser cuidado, entre o poder
receber ajuda e o oferecê-la, sem que se desencade-

33Apesar de representar as cognições do sujeito sobre si


próprio, note-se que o auto-conceito começa por ser essen-
cialmente de natureza social para, depois e gradualmente, se
internalizar constituindo o sentimento de si próprio. O que
mais uma vez põe a nu a importância da interacção social na
construção do self.
34 “Contrariamente ao auto-conceito, que assume um
carácter essencialmente cognitivo, a auto-estima refere-se a
aspectos especialmente avaliativos e emocionais” (Azevedo,
2005, 66).

125
iem sentimentos de inferioridade ou de superiori-
dade.
Ao que, uma vez mais, se manifesta fundamental
a existência de uma estrutura narrativa (Bruner,
1991): “a estrutura narrativa é fundamental para o
desenvolvimento da memória autobiográfica, na
medida em que, esta, se torna efectivamente mais
disponível para realizar a sua função básica, que é a
projecção do self no futuro, no planeamento dos
objectivos pessoais e na orientação das escolhas”
(Ramos, 2008, 65).

Em suma, do sapiens sapiens não surge o


humano sem a ajuda dos demais. Por sua vez, a
psicoterapia, para ser verdadeiramente humana e,
assim, eficaz, deverá centrar-se no instrumento
primeiro de organização do “eu”: “o ‘vai-e-vem’ recí-
proco e alternante, o turn-taking emocional, para
induzir a movimentação da mente, fazendo do inter-
câmbio o novo berço de um treino activo do ‘eu’, na
expectativa de um re-começo para quem nos pro-
cura”.

126
ANEXOS

127
128
Anexo 1

Bergeret, 1998, 230.

129
130
Anexo 2

DA GÉNESE À IDENTIDADE PESSOAL

Designada por “afectologia genética” (por analo-


gia com a “epistemologia genética de Piaget), fun-
damentando-se em Lev S. Vygotsky, John S. Watson
(não confundir com o seu homónimo, o behaviorista
John B. Watson) e outros eminentes nomes, Rita
Leal estabeleceu uma sequência descritiva que lhe
pareceu mais adequada a responder à sua pertinen-
te questão sobre a construção do sentido do “eu”35.
De um modo conciso, apresentemos tal sequên-
cia:

1 - Primeiro Passo da Construção do Eu


No primeiro passo, Leal caracterizou o recém-
-nascido como um ser selectivamente respondente

Nos anos cinquenta, quando Rita Leal iniciou a sua acti-


35

vidade de psicoterapeuta, a visão cognitivista que então reina-


va não lhe possibilitou responder de modo cabal à sua preocu-
pação básica (oriunda dos casos clínicos que tinha em mãos):
como se constrói a pessoa, entidade psico-social emergindo
da comunicação?

131
aos estímulos do ambiente, parecendo movido por
uma clara intencionalidade: “percebe-se que vive na
expectativa (e na busca de um interlocutor/cuidador
válido ― com características humana (e até femini-
nas). O reflexo de ‘orientação’ exprime a busca de
um qualquer outro, algo que emerge como imedia-
tamente contingente ao seu próprio acto espontâ-
neo. (…) A criança coloca-se, claramente, como pólo
de um relacionamento em que se distingue como
alguém, face ao outro, enviando-lhe mensagens e
mostrando que aguarda resposta” (Leal, 2006, 9).
Deste diálogo comportamental entre bebés de
doze semanas de idade e o seu cuidador (descrito
por J. S. Watson nos anos sessenta), Leal cunha a
expressão: desenvolvimento dialógico da vida emo-
cional: “percebe-se que a criança se sente ligada
mentalmente (emocionalmente) ao seu interlocutor,
aquele com quem ‘joga o jogo’ recorrente da alter-
nância recíproca do: ‘agora-eu-agora-tu-agora-eu-
-agora-tu’, que tão naturalmente ocorre no convívio
biológico entre mãe e filhote ― e no qual também se
encontra o ponto de partida do diálogo recíproco e
alternante e das dádivas mútuas que também per-
passam, por vezes, nos relacionamentos adultos”
(Leal, 2006, 10-11).
Inicialmente regulada por centros pré-corticais
do cérebro (ou seja, sem recurso à elaboração con-
ceptual), é a partir desta sequência de alternâncias
na comunicação que se vai estabelecendo a sociali-

132
zação da criança, sendo as informações registadas
como eventos relacionais, que o mesmo é dizer,
memórias emocionais pré-cognitivas. Daqui a for-
mação de uma matriz pré-cognitiva, ou emocional,
de processamento da informação (facto que hoje em
dia é tornado manifesto por investigações em neu-
rociência).
“Resumindo: Fala-se do primeiro passo da
‘afectologia genética’ (em analogia com a ‘epistemo-
logia genética’ descrita por Piaget), ou da estrutura-
ção do ‘Eu’, em que se subentende um sentido do
‘Outro’ assente na ‘relação dialógica’. Começa a
desenhar-se quando se verifica a consistência das
expressões da reciprocidade no encontro com um
interlocutor presente e ressonante.
A solidez desse sistema relacional estruturante
da relação ‘Eu’/’Outro’ comprova-se em bebés, a
partir das doze semanas de idade (assim como a
experiência de desorganização, quando repetida-
mente não experimentam essa consistência regula-
dora).
Enquadra-se aqui a sugestão de que certas per-
turbações autistas de comportamento e de comuni-
cação com o mundo e com a vida (o isolamento
observado em crianças, mas também em certos
adultos) se enraízam na deficiente organização deste
primeiro modelo de relacionamento interpessoal
registado na mente.

133
Foi possível, então, formular-se estratégias de
intervenção psico-terapêutica condizentes com essa
disfunção do relacionamento, dita autista ― estando
colocada, à partida, a hipótese da modificabilidade
das estruturas de personalidade (hipótese baseado
no modelo ‘relacional dialógico’)” (Leal, 2006, 12-
-13).

2 - Segundo Passo da Construção do Eu


Com o passar das semanas, alarga-se o padrão
originário de relação interpessoal pela projecção do
jogo de alternâncias para fora do corpo próprio,
num vai-e-vem de objectos do ambiente (designados
de objectos transicionais) que se entende englobar a
busca de compreensibilidade do que existe.
São, então, encadeadas sequências de gestos, de
aparência aleatória, mas que não dizem respeito à
eficácia ou ao sucesso material, mas que têm uma
função organizadora de significados. Os materiais
tornam-se mediadores ou “metábulos” de experiên-
cias fundadoras de relação. É aqui que se julga radi-
car a primeira intuição de um “eu” e de um “outro”,
coisa ou pessoa ― que, do ponto de vista do infante,
já estiveram ali em outras ocasiões para cumprirem
o seu papel de respondentes na alternância de um
vai-e-vem dialogante.

134
Ao mesmo tempo em que se desenrola esta
exploração mediada do eu e do mundo, vai-se esta-
belecendo uma vinculação exclusiva e absoluta a um
cuidador principal, situação comummente conheci-
da como attachment36, fenómeno relativamente
passageiro mas que em certos casos se estende pelos
anos com claros prejuízos para o desenvolvimento
do indivíduo e sua estruturação do “eu”. Ou seja, de
laço de pertença e suporte de protecção aquando
das explorações no desconhecido, passa a grade que
aprisiona.
A flexibilização desta relação privilegiada (ainda
que mantendo o laço afectivo seguro e firme e
assente na confiança) deve envolver a continuidade
do movimento primitivo de diálogo recíproco e
alternante; e este renovado turn-taking deverá enca-

36 “O ‘attachment’ serve de estrutura de protecção do


andarilho, numa fase em que deseja intensamente penetrar
tudo o que o rodeia, e vai ensaiando, por vezes perigosamente,
a exploração do ambiente. Ao cuidador eleito é remetida a fun-
ção de promover um equilíbrio entre esses dois impulsos pri-
maciais: a curiosidade para penetrar tudo o que é desconheci-
do; e a necessidade de colagem a um laço de pertença” (Leal,
2006, 16).
Será importante referir também a seguinte passagem: “o
‘attachment’ talvez tenha uma evolução diferente noutras
sociedades da que se conhece nas sociedades ocidentais ―
como as representadas por emigrantes provenientes de socie-
dades tribais africanas. Aí a relação filial parece manter uma
normal ligação de tipo simbiótico pelos anos adiante que
necessitaria de estudo aprofundado” (Leal, 2006, 17).

135
minhar o indivíduo a uma nova e mais rica adjecti-
vação do brincar com os elementos da realidade
assim como a abertura ao desconhecido na base da
autoconfiança.
Quando não se realiza a saudável evolução para
a autonomia e o attachment se mantém como força
cega para além dos limites temporais em que se
apresenta como útil, resulta uma criança insegura,
estando implícito na sua mente que aquela figura de
vinculação única pode abandoná-la de repente, pelo
que a tem de vigiar em permanência; o que resulta
na incapacidade de brincar e de se entusiasmar pela
exploração do mundo, até mesmo na presença desse
cuidador.
Mas se a ligação apresentar o carácter de uma
vinculação segura, poderá manter-se sólida até nos
períodos de ausência material do cuidador eleito.
Pelo que as suas ausências e regressos podem ser
supridos pela criança enquanto o mantém presente
no foro interno, podendo tais momentos ser passa-
dos como realidade incómoda mas isenta do perigo
de abandono.
“Resumindo: O segundo passo de organização
do ‘Eu’, ou da afectologia genética, diferencia-se
pela atenção circular por parte do bebé às alternân-
cias na movimentação recíproca de objectos e de
eventos, como projecção da elaboração desse jogo

136
instituidor de regulação das alternâncias na comu-
nicação.
Observa-se a manipulação repetitiva de objectos
de uso corrente que são propícios para trocas recí-
procas e alternantes. Esses objectos lúdicos manipu-
láveis são de entender como objectos ‘transicionais’
(Winnicot, 1951), vividos entre realidade e fantasia,
sempre transportando uma função ‘metabolizadora’
de significados encaminhando a compreensão das
relações entre o ‘Eu’ e o seu mundo.
Do ponto de vista da criança, os objectos (passi-
vos) estão ali para cumprirem um papel, enquanto o
adulto cumpre o seu ― se estiver disponível para
algumas vezes se inserir nesse brincar e responder
na alternância de um vai-e-vem dialogante.
Assim, na exploração de actos recíprocos e
alternantes, a criança pode encenar um modelo de
estruturação (incipiente) do ‘Eu’, na medida em que
nessa movimentação em vai-e-vem pode vivenciar
repetidamente aquela primeira intuição de um ‘Eu’
(subjectivo) face a um ‘Outro’ externo (pessoa/
/coisa).
Considerando certos fenómenos de regressão e
de desorganização do modelo básico do ‘Eu’, por
exemplo, da desorganização na psicose afectiva (e,
em adultos, a psicose maníaco-depressiva), pro-
põe-se que este se enraízam na deficiente organiza-
ção do segundo passo de organização do ‘Eu’ e, sen-

137
do colocada a hipótese da modificabilidade das es-
truturas de personalidade sugere-se uma estratégia
de intervenção condizente com a disfunção relacio-
nal encontrada, estruturando objectos transicionais
que transportem a potencialidade de um vai-e-vem
dependentes da iniciativa da pessoa carente em cau-
sa” (Leal, 2006, 17-18).

3 - Terceiro Passo da Construção do Eu


Para além do choro e dos gritos não dirigidos,
por volta dos seis meses de idade observa-se o bal-
buciar dos bebés em contextos sociais.
É importante situar o início e a evolução da lin-
guagem como elemento organizador do sistema
“eu”, não fosse a língua um poderoso instrumento
das trocas humanas. Mas os sons produzidos nesta
idade não parecem estar associados a qualquer sig-
nificado que se possa referir como linguístico.
Próximo do final do primeiro ano de vida
extra-uterina, o gesto de apontar, já observado des-
de os três meses de idade, irá enquadrar-se em con-
dutas do “apontar a dois” e na referenciação de algo,
ambos de característica triangular. Aí vai surgir o
rótulo referencial, designado por alguns como a
primeira “palavra”, ainda que não tenha o carácter
formal de vocábulo articulado. E deste jogo irá
emanar um prazer intenso quer para a criança quer

138
para o adulto/cuidador: “dois interlocutores, face ao
objecto ou evento/circunstância referenciado pelo
rótulo, vivem o prazer do encontro ao intuírem um
significado por eles partilhado” (Leal, 2006, 19).
Reconhecido a dois, tal rótulo já pode ser consi-
derado mais do que um sinal, é um signo, isto é:
esse rótulo referencial assumiu um significado
independente da circunstância que lhe dá origem,
passando a haver como que uma tomada de posse
da realidade pelo “eu”: “dizemos que a vida está
encadeada, desde o início, num padrão de relação de
presença e contacto com um ‘Outro’ que responde e
que estabelece um encontro com o mundo de signi-
ficados, que se situam para além desse encontro,
que transcendem a relação” (Leal, 2006, 20).
Por intermédio deste tipo de aprendizagem que
se coaduna com o formato consensual e social, a lin-
guagem, ou seja, a fala que resulta como nova tra-
dução das vivências e intenções, antes expressas só
por sinais, pré-símbolos ou metábulos, logo assume
os códigos encontrados no ambiente. É o que acon-
tece entre os nove e os dezoito meses de idade: os
rótulos, tornados signos, colados a situações do
dia-a-dia, podem vir a ser evocados para significar
situações idênticas mas ausentes. Diz-se, então, que
ocorreu generalização.
Por sua vez, quando estes factos da experiência
emocional, sensorial e motora são expressos ver-

139
balmente de modo socialmente comunicante, tam-
bém poderão ser transformados em conceitos que,
em momentos posteriores, poderão ser submetidos
à reflexão.
“Resumindo: O terceiro passo de construção da
identidade (da ‘afectologia genética’) diferencia-se
pelo encontro ‘triádico’: Eu-Outro-objecto (coisa ou
evento), em que se enraíza a construção da lingua-
gem expressiva e comunicante.
Um objecto (coisa ou evento) corporaliza um
significado porque apontado ao mesmo tempo por
um e outro interlocutor, recebendo por consenso
um rótulo ― que, por sua vez, pode ser traduzido
pelo signo.
Quando reconhecido como ‘signo’, o dito rótulo
referencial assumiu um significado independente da
circunstância que lhe dá origem, existindo uma dife-
rente tomada de posse da realidade pelo ‘Eu’. O
signo é, então, fonte de linguagem partilhada num
mundo familiar e social consistente e estável: um
significado em relação com um mundo, nomeado e
reconhecido no encontro de ‘Eu’-‘Outro’ com outro
‘outro’, a coisa/evento (…).
Referem-se a este passo as perturbações de
organização da relação ‘Eu’/’Outro’ manifestadas
nas estruturas psicopáticas de personalidades em
que se observa não ter sido conseguido ou assumido
um consenso viável quanto aos significados aponta-

140
dos e sequer ao significado de ter um lugar no
mundo.
A estratégia de intervenção então proposta
(sempre supondo a modificabilidade das estruturas
de personalidade) consiste em movimentar um
intercâmbio, a projectar repetidamente numa qual-
quer estrutura narrativa propícia, em busca de oca-
siões para focar em conjunto e nomear significados,
e, ainda, promover o recurso às capacidades de se
maravilhar e de se manifestar em linguagem corpo-
ral e verbal, para vir a construir a capacidade de
designar, conceptualizar, reflectir e abstrair e de
gerar novos símbolos, tidos em comum” (Leal,
2006, 22-23).

4 - Quarto Passo da Construção do Eu


Entre os três e os cinco anos de idade anotam-se
momentos importantes para encaminhar a separa-
ção/individuação do self/si-mesmo, distanciando-se
a criança ― em situações propícias ― do primeiro
afecto fusional. Ao mesmo tempo destituída do seu
sonho de ser o centro do mundo de um “outro”, a
criança começa a incorporar a narrativa dos adultos,
identificando-se ao seu nível com a figura parental
do próprio sexo, podendo tomar consciência e
exprimir verbal e não verbalmente os seus afectos
(amor, ciúme, rivalidade, etc.).

141
Outro importante aspecto que Leal chama à
atenção nesta fase é a relativa liberdade com que a
criança transita da realidade para a fantasia e desta
para a primeira.
Note-se, também, que apesar de estar a integrar
o imaginário dos pais, ainda está muito dependente,
pela sua condição de criança, de cargas emocionais
que a transcendem. Nesta fase, a frequência da cre-
che ou do jardim de infância ou o convívio com
outros grupos extra-escolares pode ter uma acção
benéfica sobre a criança. Nestes sistemas de comu-
nicação múltipla, promove-se a contínua diferencia-
ção de cada um ao assumir-se como eu/pessoa, ori-
gem de actos e de intenções, ao lado de outros seus
iguais.
Nesta multiplicidade de grupos e de relações, a
criança pode encontrar-se de um modo diferente do
seu estar na família e, se for bem encaminhada,
poderá aprender no grupo estratégias de entreajuda
e de partilha mútua, aprendendo/vivendo a tolerân-
cia para com o diferente e a alegria da reciproci-
dade.
“Resumindo: No quarto passo de construção da
identidade encontra-se em causa o poder-se abrir
espaço na criança para a autonomia do sentir, con-
frontada com as exigências do ambiente e da pro-
gressiva diferenciação do seu viver face ao viver dos
seus pais.

142
Na medida em que continuam a digladiar-se no
seu íntimo as necessidades de separação com o seu
reverso de vivência de perda ― resultantes de uma
individuação mal aceite ― esta ambiguidade estará,
ainda, acompanhada, para a criança, pelo sentimen-
to de estrago quando da descoberta de não ter pais
tão perfeitos quanto deseja.
Tudo isto se agrava quando a criança vive confli-
tos dolorosos na família.
Quando as perplexidades dos impulsos ‘edipia-
nos’ não se encontram em vias de solução e a vida
familiar não preparou a criança para sair ao encon-
tro do grupo de pares (na escola e nas actividades
ditas dos tempos livres), é difícil que ela não se viva
como socialmente desadequada e com dúvidas em
relação à capacidade própria de lidar com os desa-
fios da vida (acrescendo, por vezes, os problemas da
‘exclusão social’ de que já se está a perceber…).
É de notar que, nestas idades, a criança poderá
interiorizar e guardar em segredo as suas perplexi-
dades e ansiedades, tornando difícil a compreensão
de perturbações neuróticas que apresente. O adulto
terá, então, dificuldades acrescidas de acesso para a
ajudar a superar o seu sofrimento.
Aqui enquadra-se a sugestão de que vivências
neuróticas que se manifestem na criança como reac-
ções fóbico-ansiosas podem ser melhor compreen-
didas à luz da procura de consistência própria, sepa-

143
rada e das exigências da autonomização no enqua-
dramento da família de origem, numa idade em que
procura alcançar uma relativa consistência e identi-
ficação sexual harmónica, enquadrando um papel já
reconhecido no seu grupo de pares” (Leal, 2006,
26-27).

5 - Quinto Passo da Construção do Eu


Entre os seis e os doze anos encontra-se o ponto
de viragem na diferenciação em curso, no sentido da
emergência de uma identidade social própria: situ-
ando-se como pessoa distinta, a criança irá estabe-
lecer novos relacionamentos que se abrem ao mun-
do lá fora: “o brincar e o fantasiar continuam a ser
necessidades fundamentais, mas também os ‘jogos’
entendidos como tarefas com que se alcança um
produto real. A aprendizagem das artes da escrita e
da leitura são, igualmente, objectivos prementes (no
mundo ocidental) para conseguir o reconhecimento
e satisfação resultantes do sentimento de sucesso
alcançado com o próprio esforço” (Leal, 2006, 28).
Existe um vivo interesse, da parte da criança, em
descobrir como as coisas funcionam, de que são fei-
tas, e como se lida com elas; acções que as crianças
se propõem a elas próprias. No pólo oposto, a crian-
ça também poderá viver um sentimento de inferio-
ridade, mesmo que seja dotada, mas se sente in-
compreendida e rejeitada ― formato de perturbação

144
desestruturante comum em crianças social e cultu-
ralmente desenraizadas, o que se encontra “aliado a
uma restrição da elaboração linguística ― para
quem falha a inteligibilidade, porque está afectado o
encontro social e cultural em que se geram os signi-
ficados” (Leal, 2006, 29).
São estas crianças e adolescentes desintegrados
e/ou socialmente submetidos os que estão prontos
para todo o tipo de revoltas sem sentido; e igual-
mente prontos para todo o tipo de destruições.
Realidade de risco social e pessoal que só será
superada se a criança refizer o percurso de nomear
significados em parceria e de construir uma nova
linguagem, de modo a encontrar acesso a valores
tidos em comum, e suas expressões socialmente
reconhecidas. Tarefa que se não for realizada nesta
idade de abertura para a vida, depois poderá reve-
lar-se demasiado tarde.
Nesta fase assistimos ao surgimento do arbítrio
próprio e único, e ao expressar de opiniões e sua
defesa. Com efeito, a criança começa a distanciar-se
interiormente o suficiente para redescobrir o mundo
e mesmo os seus pais e os demais adultos de um
modo diferente, tendo-os avaliado e eventualmente
aceite como pessoas não perfeitas.
São importantes os cuidadores que nesta fase
acompanhem os grupos de pares nas diversas acti-
vidades fora da família. Lamentavelmente, nem

145
todos são capazes de gerar uma atmosfera que auxi-
lie a aprendizagem espontânea do estar em grupo, e
de promover o desenvolvimento das iniciativas de
interacção e de cooperação na busca do encontro
mútuo. Desejam-se, pois, educadores que tenham
dentro de si um sentimento natural que impele na
busca de realização própria (também do próprio) e
de alegria, junto com o sentido dos valores impes-
soais e o reconhecimento do bom e do belo na vida
de cada um.
“Resumindo: Neste movimento que se vai pro-
cessando, o quinto passo de estruturação do ‘Eu’, ou
da ‘afectologia genética’, as crianças/os jovens estão,
também, a preparar-se para assumirem uma maior
autonomia, e um maior distanciamento da família,
ao se deixarem inspirar por intuições de parceria no
grupo de amigos.
O brincar e o fantasiar continuam a ser uma
necessidade fundamental, mas também o crescer e o
aprender são objectivos prementes para conseguir o
reconhecimento e o sentimento de sucesso alcança-
do com o próprio esforço.
A individuação entendida como capacidade de
se assumir conscientemente como pessoa separada,
com seu próprio destino ― aliada ao fortalecimento
do que se designa a linguagem interna, reflexiva ―
será melhor sucedida quando se possam manter e
fortalecer as trocas dialógicas com os adultos de

146
referência. Na ligação com eles poderá distanciar-se
e aproximar-se, ir e voltar, sob o seu próprio contro-
lo, procurando o equilíbrio entre a demasiada iden-
tificação e o total desamparo.
Quando se continuam a guerrear entre si os
impulsos de autonomia e as carências de protecção
ambiental, o desamparo pode manifestar-se por
receios face a tudo o que rodeia o viver do dia-a-dia
― ou, pelo contrário, pode surgir uma necessidade
de controlo absoluto sobre tudo e todos. (De notar
que esta perturbação se tornará mais manifesta nos
anos seguintes, na adolescência).
Aqui enquadra-se a sugestão de que as vivências
neuróticas manifestas como neurose histérica, as-
sim como os indícios de neurose obsessiva-compul-
siva (esta imersa em deduções racionais), podem
ser melhor compreendidas à luz das tarefas de
autonomização mal resolvidas encadeando-se nos
movimentos de construção da identidade pessoal
que ocupam necessariamente o pré-adolescente”
(Leal, 2006, 30-31).

6 - Sexto Passo da Construção do Eu


Na continuidade da evolução, o adolescente/
/jovem dá por si à procura de si próprio, comparan-
do-se aos outros, assumindo papeis sociais e pes-
soais e posicionando-se face às exigências dos valo-

147
res, realidades maiores do que a das figuras de auto-
ridade a que se devem submeter quer na família
quer na escola.
É assim que a existência do indivíduo nesta fase
se situa entre os pólos extremos de uma identidade
definida e de uma identidade difusa ou confusa: “em
tudo isto, comunga na expectativa de haver uma
ordem e de existirem regras que alguém assegura,
estando implícito um sentimento moral e um com-
promisso de responsabilidade pessoal a aceitar ou a
combater acesamente ― ou a desilusão possível e
perigosa…” (Leal, 2006, 32).
Nesta fase o grupo de pares tem uma forte acção
como instrumento de mobilização, e pode-se colocar
ao serviço de tarefas que sejam programadas ou
minimamente intencionadas ou promovidas por um
condutor. Ao promover não directivamente a parti-
cipação de todos os membros do grupo, este é parti-
cipante na vida do grupo e também regulador da
comunicação múltipla, assegurando deste modo a
formação de uma “matriz de relação” constituída de
acordo com as leis da comunicação: “Wilfred Bion
(1961) sugeriu que as experiências de grupo podem
oferecer condições óptimas para retomar as tarefas
organizativas da infância em termos da comunica-
ção e estruturação do ‘Eu’ nas suas relações com o
‘Outro’ ― se conduzidas por um adulto habilitado”
(Leal, 2006, 33); daí fazer falta a formação dos
docentes em dinâmicas de grupo, sem a qual tornam

148
qualquer tarefa mais difícil, senão mesmo improdu-
tiva, inclusive a tarefa de alcançar a adultez…
O intercâmbio múltiplo com os pares e o jogo de
amizades e de oposições, irá ser o caminho para o
desenvolvimento da pessoa social, que irá reformu-
lar-se, um dia, como “eu” adulto. A génese e o
desenvolvimento deste tipo de “eu” descrevem-se
em termos de diferenciação de uma matriz de gru-
po, considerada uma entidade mais primitiva do
que a individualidade que, afinal, se separou de uma
matriz relacional mãe – pai – família extensa.
“Resumindo: No que se descreve como sexto
passo de estruturação da identidade, o adolescente
define-se como estando ‘em busca de si mesmo’,
comparando-se a outros, assumindo papeis, ‘roles’
sociais e pessoais.
O intercâmbio múltiplo com os pares e o jogo de
amizades e oposições, que se reconhecem como
características do pré-adolescente e do adolescente,
irá ser o caminho para o desenvolvimento da pessoa
social ― que irá reformular-se ética e esteticamente,
um dia, como ‘Eu’ adulto.
Sempre esforçando-se por apreender as exigên-
cias do grupo e situar os ‘valores’ e o papel das figu-
ras de autoridade ― na família, na escola e no mun-
do social mais vasto, o/a jovem reflecte sobre as rea-
lidades complexas e o sentido da vida, o significado

149
do estar no mundo, assumindo-se numa atitude de
sucesso ou de inferioridade…
Surgindo novas identificações ligadas a um sen-
timento forte de pertença ao grupo de amigos pró-
ximos (os que falam a mesma ‘gíria’ e têm os mes-
mos costumes), é pelo contacto com o seu grupo de
parceiros, os da sua geração, que o aparelho emo-
cional do jovem se poderá voltar a equilibrar como
sistema de ressonância ao serviço da integração
numa ordem social e promovendo a continuada
construção cognitiva e de partilha.
Há que ponderar que se conhece bem o fenóme-
no de jovens que se congregam como marginais
(fruto de diversas vicissitudes), para exprimirem
com os seus companheiros os sentimentos destruti-
vos, encobrindo com isso os sentimentos de deses-
perança e de descrença depressiva. Parecem em
fuga de si mesmos, ao mesmo tempo vivendo forte
rejeição da ordem social.
Referem-se a este passo as perturbações de
comportamento de jovens disruptivos, os actos
anti-sociais e as dependências de tóxicos (que tantas
vezes encobrem problemas da auto-estima lesada)
em que se supõe a quebra de relacionamentos pri-
mários e a perda do sentido da vida não devidamen-
te reconhecidos e tratados, a seu tempo, em contac-
to continuado com orientadores avisados.

150
Um grupo de suporte positivo pode ser fonte de
solidez e de protecção contra as estruturas sociais
adversas. (O movimento escutista tem larga expe-
riência neste tipo de actuação. Mas também há os
grupos de entreajuda e os grupos comunitários com
funções assumidas…).
A estratégia de intervenção então proposta
(sempre supondo a modificabilidade das estruturas
da personalidade) consiste em criar situações (reais
ou de fantasia) para movimentar intercâmbios múl-
tiplos a projectar repetidamente numa qualquer es-
trutura narrativa, quando trazida pelo/a jovem à
consulta individual ou de grupo.
Buscam-se ocasiões para nomear significados no
vai-e-vem da comunicação múltipla, e, assim, cons-
truir ou reconstruir um relacionamento instituinte”
(Leal, 2006, 34-36).

7 - Sétimo Passo da Construção do Eu


Trata-se do “eu” adulto: “ser adulto respeita a
poder arriscar-se a ir sempre de novo em busca de
caminhos para satisfazer carências básicas, e colo-
car-se na brecha para realizar propósitos e signifi-
cados íntimos e/ou públicos, defendendo o foro
próprio, sem deixar de se mover flexivelmente no
âmbito das realidades do trabalho e do convívio
comum” (Leal, 2006, 37).

151
É o passo onde se tornam possíveis relaciona-
mentos não íntimos e o convívio impessoal, amigá-
vel ou não. Circunstância também emanada da per-
cepção consciente de que as intenções dos outros
podem ser diferentes da própria intenção, e que
podem ser fingidas ou enganosas; por outro lado, há
o claro reconhecimento de que também existem
acções verdadeiras e generosas.
A adultez também se manifesta pela alternância
possível entre ser cuidador e ser cuidado, entre o
poder receber ajuda e o oferecê-la, sem que se
desencadeiem sentimentos de inferioridade ou de
superioridade.
Ser adulto também diz respeito a escolhas de
vida de acordo com propósitos e significados pró-
prios, mesmo fora dos padrões comuns, e a entrega
a ideais superiores; bem como pela possibilidade de
discutir pacificamente esses ideais e de os aprofun-
dar, pelo estudo e pelo trabalho.
É também a fase em que existe a possibilidade
de se construir uma relação estável de intimidade a
dois, unidade de pertença moldada na interactivi-
dade dinâmica das contribuições de cada um dos
parceiros. E tal estabilidade radica na possibilidade
de os dois se poderem relacionar em profundidade
com o seu próprio self e também com o do(s)
outro(s).

152
Ao atingir este nível evolutivo/maturativo, Rita
Leal considera que se encerra a etapa em que os
indivíduos adquirem uma configuração interna per-
sonalizada, o que também lhes permite, na sua fun-
ção de companheiro/a e de genitor, serem uma refe-
rência identificadora para as gerações futuras, cri-
ando e transmitindo valores com liberdade interna
(em que há lugar para os desentendimentos e as
mútuas concessões) em que pode constituir-se o po-
tencial definitivo para a satisfação amorosa, sexual,
de partilha de corpos e das vidas.
“Resumindo: Ser adulto respeita a poder arris-
car-se a procurar realizar propósitos e significados
próprios, defendidos no foro interno, sem deixar de
se mover flexivelmente também no âmbito das rea-
lidades da vida, do trabalho e do convívio comum.
Isto implica a capacidade de assumir escolhas de
vida, no trabalho, na união de família ou mesmo na
entrega exclusiva a um ideal.
Na família, a condição básica para um relacio-
namento amadurecido que implica a partilha dura-
doura entre duas pessoas que se amam reside em
poder-se relacionar em profundidade com o seu
próprio ‘Self’ e também com ‘Outros’.
As vivências neuróticas manifestas como de-
pressão clínica podem ser melhor compreendidas
quando encadeadas nos movimentos de construção

153
da identidade pessoal e o amadurecimento das rela-
ções em profundidade com o próprio ‘Self’.
Admitindo a modificabilidade das estruturas de
personalidade e tendo tomado a decisão própria de
encetar ‘um novo caminho’ ― o adulto sofrendo de
depressão clínica poderá vir a retomar os seus
rumos na vida, ao permitir-se a experiência (de par-
ceria com um outro adulto que se coloca na posição
de cuidador, ‘comprometido’ na relação de ajuda),
de um encontro reflexivo com o seu ‘Eu’, no modelo
de intercâmbio dialógico mutuamente contingente.
Irá ponderar os meandros da sua vida, com as suas
preocupações, fantasias e intenções ― para desco-
brir a paz e poder reassumir uma atitude de con-
fiança expectante” (Leal, 2006, 38-39).

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