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Proença, Cortesão, Sérgio

e o Grupo Seara Nova

Organização
Amon Pinho
António Pedro Mesquita
Romana Valente Pinho

Lisboa
Centro de Filosofia da Universidade de Lisboa
2015
Amon Pinho • Anita Vilar - António Almodovar • António Braz Teixeira • António Cândido

Franco • António Pedro Mesquita • António Reis • Carlos Leone • Celeste Natário • Daniel

Pires • Duarte Drumond Braga • Duarte Ivo Cruz • Ernesto Castro Leal • Guilherme d’Oliveira

Martins • João Maria de Freitas Branco • João Príncipe • Joaquim Domingues • Joaquim

Romero Magalhães • José Carlos Seabra Pereira • José Manuel Garcia • José Manuel

Quintas • Luís Bigotte Chorão • Luís Lóia • Luís Prista • Magda Costa Carvalho • Manuel

Cândido Pimentel • Manuel Ferreira Patrício • Maria de Lourdes Sirgado Ganho • Mário

Barroso • Miguel Real • Paulo Borges • Pedro Baptista • Pinharanda Gomes • Renato

Epifânio • Romana Valente Pinho • Rui Lopo • Sérgio Campos Matos • Ulpiano Nascimento

Proença, Cortesão, Sérgio


e o Grupo Seara Nova

Organização

Amon Pinho
António Pedro Mesquita
Romana Valente Pinho

Preparação de originais e revisão técnica

Amon Pinho
Romana Valente Pinho
FICHA TÉCNICA

Título
Proença, Cortesão, Sérgio e o Grupo Seara Nova

Organização
Amon Pinho
António Pedro Mesquita
Romana Valente Pinho

Preparação de originais, revisão técnica,


revisão de texto e notas editoriais
Amon Pinho e Romana Valente Pinho

Comissão Científica
Fernando Catroga (Universidade de Coimbra)
José Esteves Pereira (Universidade Nova de Lisboa)
Leonel Ribeiro dos Santos (Universidade de Lisboa)
Norberto Cunha (Universidade do Minho)
Pedro Calafate (Universidade de Lisboa)

Pesquisa iconográfica
Amon Pinho e Romana Valente Pinho

Capa
Lou Bertoni. Pintura digital a partir da capa, de autoria de Leal da Câmara,
do primeiro número da revista Seara Nova

Ilustrações
Pinturas digitais de Lou Bertoni a partir da capa, também da autoria de
Leal da Câmara, do segundo número da revista Seara Nova e de fotografias
de Raul Proença, António Sérgio e Jaime Cortesão

Editor
Centro de Filosofia da Universidade de Lisboa (CFUL)

Colecção
ACTA 22

Apoios
Fundação para a Ciência e a Tecnologia (FCT)
Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa (FLUL)
Centro de Filosofia da Universidade de Lisboa (CFUL)

Impressão e acabamento
Clássica – Artes Gráficas

Depósito legal
388340/15

ISBN
978-989-8553-34-8
ÍNDICE

Prefácio................................................................................................................. 9
António Reis

Nota Introdutória.................................................................................................. 11
Amon Pinho
António Pedro Mesquita
Romana Valente Pinho

I. O GRUPO SEARA NOVA

O Grupo Seara Nova em seus ideais e propósitos fundadores.............................. 17


Amon Pinho

A “Renascença Portuguesa” e a “Seara Nova”..................................................... 27


Pinharanda Gomes

Leonardo Coimbra e a Seara Nova......................................................................... 45


Manuel Cândido Pimentel

Depois da Renascença Portuguesa........................................................................ 55


Joaquim Domingues

Entre os movimentos da Renascença Portuguesa e da Seara Nova – da


Lusitanidade à Lusofonia: o caso de Agostinho da Silva...................................... 65
Renato Epifânio

Uma efémera união de “almas republicanas”..................................................... 77


José Manuel Quintas

Sobre a revista Homens Livres. O que é a liberdade dos livres?............................. 105


Rui Lopo

O Grupo Seara Nova, a crise nacional e a “ilusão sobre os governos


de técnicos”. Alguns aspectos (1921-1924).......................................................... 127
Ernesto Castro Leal
6 ÍNDICE

As perspectivas educativas abertas por Faria de Vasconcelos na Seara Nova....... 137


Manuel Ferreira Patrício

A Seara Nova na actualidade.................................................................................. 145


Ulpiano Nascimento

II. RAUL PROENÇA

Raul Proença: Republicano e Panfletário.............................................................. 153


Daniel Pires

A matriz socialista liberal no pensamento político de Raul Proença................... 161


António Pedro Mesquita

A ideia de democracia em Raul Proença e António Sérgio.................................... 173


António Braz Teixeira

Ordem e ditadura no pensamento de Raul Proença............................................. 183


Luís Bigotte Chorão

Os valores em Raul Proença.................................................................................. 199


Mário Barroso

O heroísmo trágico em Proença como superação do positivismo........................ 213


Pedro Baptista

Raul Proença: a moral epicurista e o homem de elite.......................................... 223


Celeste Natário

A leitura de Raul Proença do “Eterno Retorno” em Nietzsche............................ 233


Paulo Borges

E7/2060, 2061, 2062.............................................................................................. 243


Luís Prista

A enfermidade que abateu Raul Proença.............................................................. 269


Anita Vilar
ÍNDICE 7

III. ANTÓNIO SÉRGIO

António Sérgio, a primeira Seara Nova e a República Moderna.


Algumas notas...................................................................................................... 283
Guilherme d’Oliveira Martins

António Sérgio e os nacionalismos....................................................................... 293


Sérgio Campos Matos

A doutrinação económica em António Sérgio − algumas notas de leitura........... 309


António Almodovar

O idealismo de António Sérgio: Sobre algumas considerações cartesiano-


espinosistas.......................................................................................................... 321
Romana Valente Pinho

A percepção em António Sérgio: do sensível ao inteligível.................................. 329


Luís Lóia

“Uma filosofia para as Alforrecas”: Sérgio crítico de Bergson............................ 337


Magda Costa Carvalho

Inspirações para um ensaio: O Considerações sobre o problema da cultura............. 353


João Príncipe

Sérgio e Einstein: Aspectos de uma empatia intelectual..................................... 371


João Maria de Freitas Branco

IV. JAIME CORTESÃO

Jaime Cortesão – Pensar e cantar “a vida intensiva e expansiva”


(Entre Guyau e a voz que falava baixo a S. Francisco).......................................... 425
José Carlos Seabra Pereira

Do mito da Águia ao simbolismo da Seara (modos e processos da poesia de


Jaime Cortesão)..................................................................................................... 451
António Cândido Franco

Entre história e poesia, entre Pascoaes e Pessoa: Jaime Cortesão nos


Inquéritos Literários de 1912 e de 1920................................................................. 463
Duarte Drumond Braga
8 ÍNDICE

Jaime Cortesão contista........................................................................................ 483


Miguel Real

O teatro de Jaime Cortesão: história, cultura, política, literatura.


Uma reflexão pessoal............................................................................................ 491
Duarte Ivo Cruz

A “Parábola Franciscana” de Jaime Cortesão....................................................... 503


Maria de Lourdes Sirgado Ganho

O civismo político nos homens da Seara Nova: o caso de Jaime Cortesão............ 509
Carlos Leone

António Sérgio, Jaime Cortesão e a necessidade seareira da concepção de


uma História de Portugal...................................................................................... 517
Joaquim Romero Magalhães

A obra de Jaime Cortesão no contexto da historiografia portuguesa do seu


tempo.................................................................................................................... 531
José Manuel Garcia

ANEXO: REPERCUSSÃO DO COLÓQUIO “PROENÇA, CORTESÃO, SÉRGIO E O


GRUPO SEARA NOVA” NAS PÁGINAS DA (ACTUAL) SEARA NOVA

Proença, Cortesão, Sérgio e o Grupo Seara Nova.................................................. 557


Redacção da Revista Seara Nova

Idealismo e neokantismo no pensamento de António Sérgio. ............................ 559


Romana Valente Pinho

A Seara Nova no itinerário pedagógico de Faria de Vasconcelos........................... 565


Manuel Ferreira Patrício

SOBRE OS AUTORES: NOTAS BIOBIBLIOGRÁFICAS............................................. 581


282 A enfermidade que abateu Raul Proença
António Sérgio, a primeira Seara Nova
e a República Moderna.
Algumas notas
GUILHERME D’OLIVEIRA MARTINS
Centro Nacional de Cultura

1. Originário de uma família culta e fidalga do liberalismo, tendo sido


seu avô ajudante de campo do rei D. Luís e governador-geral do Estado da
Índia, António Sérgio de Sousa desde cedo revelou qualidades intelectuais
e cívicas, que caracterizariam o seu percurso de vida. Depois de ter estado
em Angola, para onde seu pai foi destacado em missão, foi aluno do Colégio
Militar e alistou-se na Armada, seguindo a tradição familiar. Após o curso
da Escola Naval, foi para Macau (1905), viajou para Newcastle (1906) e foi
colocado na Estação Naval de Cabo Verde (1907). Em Junho de 1910, casou
com Luísa Estefânia Gerschey da Silva, que, pela sua cultura e sensibilidade,
teria uma influência decisiva no percurso de seu marido. Nesse tempo,
Sérgio visita Paris, e aquando da implantação da República defronta-se com
um dilema moral, agravado pelo suicídio de um seu grande amigo, Frederico
Pinheiro Chagas – ou seguir a actividade intelectual, para que sente incli-
nação e gosto, ou continuar na carreira das armas, por tradição familiar.
Optará pela actividade de publicista e depois de pedagogo, começando por
dirigir a revista Serões (1911) e aproximando-se da Renascença Portuguesa
e de Jaime Cortesão e Raul Proença. Na revista A Águia, publicará, aliás, um
conjunto essencial de ensaios, que reunirá no volume Educação Cívica, onde
é nítida a influência de John Dewey, Kerschensteiner, Schleiermacher,
Wilson Gill, autores que ligam a pedagogia à actividade cívica e à construção
da Democracia. Dedicado à actividade editorial e interessado pelos estudos
educativos, vai afastar-se (exprimindo publicamente as razões da sua crítica)
do magistério saudosista de Teixeira de Pascoaes em A Águia – sem deixar
de respeitar o talento de artista do autor de Arte de Ser Português. A polémica
tornar-se-á, aliás, um dos terrenos por excelência em que Sérgio se afirma.
Depois da derrota do sidonismo (1917-18), no qual o ensaísta acreditou,
284 ANTÓNIO SÉRGIO, A PRIMEIRA SEARA NOVA E A REPÚBLICA MODERNA

dirigindo a revista Pela Grei, órgão da Liga de Acção Nacional1, regressa


ao estrangeiro (Brasil e Suiça). Raul Proença desafia-o, porém, a vir e a
entrar na Seara Nova (“Para que salvemos a Pátria, necessário é que a não
abandonemos nos piores momentos, que firmemos bem rijamente os pés
na lama” – escreveu Proença no número 3 da Seara Nova, de 20 de Novembro
de 1921, dirigindo-se-lhe). E António Sérgio aceita o repto, pensando poder
ser útil para a definição dos novos destinos de Portugal. A primeira metade
da década de vinte será, assim, de intensa participação política, sendo o
autor dos Ensaios Ministro da Instrução Pública, fugazmente, no governo
presidido por Álvaro de Castro (1923-24). Os seus textos na Seara Nova,
neste período, correspondem às preocupações que tem nesse momento:
havia que encontrar um caminho de regeneração de Portugal, para o que se
tornava imperioso lançar pontes para diferentes grupos, de modo a criar uma
República moderna, pluralista e aberta. Quando apresenta, em Dezembro
de 1923, a revista Homens Livres, que congrega seareiros e integralistas,
dirá ao Diário de Lisboa: “Na verdade, a grande linha de separação política,
hoje em dia, não é aquela que nos reparte em monárquicos e republicanos;
é, sim, a que distingue os reformadores dos conservadores. Uns querem
conservar o que aí vemos, e conservar-se no que aí vemos; outros querem
purificar, regenerar e progredir. (…) Uns e outros são anti-conservadores;
uns e outros são radicais; uns e outros regionalistas; uns e outros defendem
a criação de uma assembleia representativa das classes e categorias sociais
e intelectuais (com a diferença de que os primeiros só desejam essa e os
segundos a combinam com um parlamento político); uns e outros atacam
a plutocracia da sociedade portuguesa; uns e outros querem uma educação
primária trabalhista e regional, etc.”2. Depois do 28 de Maio de 1926, inter-
virá activamente na oposição ao novo regime, designadamente na Liga de
Paris (Liga de Defesa da República, 1926-1932), sempre preocupado com a
necessidade de construir uma República moderna, baseada em instituições
legítimas centradas nos cidadãos. Regressado a Portugal, iniciará um longo
magistério cívico, apesar de estar na incómoda posição de ser contestado
pela direita e pela esquerda. E em 1945, no fim da Guerra, parece que as
novas circunstâncias oferecem uma oportunidade ao ensaísta e activista
político, que tem papel muito activo na tentativa de criação de uma oposição

1
Cf. LOPES, Fernando Farelo. A Revista Pela Grei (Doutrina e Prática Políticas). Análise
Social, vol. XVIII, n.os 72 a 74, 1982, pp. 759-772.
2
A afirmação foi produzida em entrevista ao Diário de Lisboa, em Dezembro de 1923, e é
desenvolvida no editorial do primeiro número da revista em MEDINA, João. O Pelicano
e a Seara, A Revista Homens Livres. Lisboa: Edições António Ramos, 1978, p. 39 e ss.
Guilherme d’Oliveira Martins 285

social-democrática3. A candidatura do General Humberto Delgado será, aliás,


resultado de uma intervenção decisiva de Sérgio4… Fiel às suas ideias de
sempre, o fundamental para regenerar Portugal exigiria a congregação de
esforços de gentes de diversos horizontes. Por isso, em 1958, julga chegado
o momento de ir buscar alguém que provém do Estado Novo e que poderá
estar em condições de concretizar o fim da “frente nacional” em que Oliveira
Salazar se tinha baseado na sua acção. Há, deste modo, uma coerência no
pensamento do ensaísta que o acompanhará durante toda a vida, e que se
manifesta de um modo muito especial no período 1921-1926, durante o
qual o grupo da Seara Nova pensa poder haver condições favoráveis a uma
mudança reformadora.

2. O pensamento filosófico de António Sérgio, desde a juventude,


situa-se na reacção ao cientismo naturalista, seguindo na esteira de Antero
de Quental e da Geração de Setenta, desde o anti-positivismo à busca de
um programa cívico e pedagógico. Contudo, é o idealismo crítico de raiz
neokantiana (que vai evoluindo ao logo do tempo) que constitui o elo durável
entre as diversas intervenções filosóficas. A sensibilidade empírica da
actividade mental, o conhecimento do mundo exterior, a espontaneidade da
actividade mental organizadora, por comparação de conceitos e noções e a
realidade mental que precede a ciência levam à posição idealista que permite
considerar a faculdade mental como a própria unidade da consciência. E a
razão torna-se, por definição, especulativa, espiritual e prática. Mas esta
razão não pode esquecer as preocupações éticas – daí o carácter não egoísta
do individualismo sergiano e a consideração do carácter de “uno unificante”
que a razão possui5. O ensaísta procura, assim, permanentemente, um

3
A 1 de Maio de 1947 profere a célebre Alocução aos Socialistas, na qual surge a tentativa
de criação de um pólo oposicionista demarcado da posição comunista e centrada na
influência trabalhista e social-democrata. O Directório Democrato-Social foi criado
em 1950, por António Sérgio, Jaime Cortesão, Mário de Azevedo Gomes. Acácio Gou-
veia, Armando Adão e Silva, Carlos Sá Cardoso, Raul Rego, Artur Cunha Leal, Nuno
Rodrigues dos Santos foram membros do grupo, tendo a partir de 1956 Mário Soares
feito parte do mesmo em representação da Resistência Republicana e Socialista.
4
Cf. DELGADO, Frederico. Humberto Delgado, Biografia do General Sem Medo. Lisboa:
Esfera dos Livros, 2008. O papel de António Sérgio fica bem evidenciado. Foi uma
causa em que o pensador se empenhou activamente, esperando sucesso. O desfecho
da tentativa terá contribuído para o desalento e a depressão finais do escritor.
5
Leia-se SÉRGIO, António. Explicações para os que entendem a língua que eu falo.
Vértice, n.os 36 a 39, Junho de 1946; idem, Ensaios, tomo VII. Lisboa: Editora Sá da Costa,
1974, pp. 191-194. Leia-se TEIXEIRA, António Braz. António Sérgio Filósofo. In: AA.VV.
António Sérgio – Pensamento e Acção, vol. I. Lisboa: INCM, 2004, pp. 15-30 e, do mesmo
286 ANTÓNIO SÉRGIO, A PRIMEIRA SEARA NOVA E A REPÚBLICA MODERNA

sistema completo capaz de responder universalmente aos anseios da huma-


nidade, o que obriga à consideração da ligação intrínseca entre liberdade e
justiça social. Como “intelectual comprometido”, António Sérgio considera
que as diversas facetas da modernidade constituem desafios permanentes
de carácter cívico e ético. De facto, o pensador acredita na capacidade de
reformar para reeuropeizar a cultura portuguesa, na linha dos intelectuais
de 1870, e recusa uma técnica sem mundivivência filosófica – contrapondo
a visão histórica do isolacionismo à perspectiva do cosmopolitismo e da
abertura. Por isso, gostava de citar Goethe, para quem a História seria um
meio de nos livrarmos do passado, e, desde muito cedo, insistia no facto
de no caso português haver mortos que era preciso matar, para os enterrar
definitivamente. Não sendo historiador de profissão, usou a História para
tentar desvendar os mistérios da inércia colectiva e para descobrir cami-
nhos no devir. Assim, era fundamental compreender os portugueses, que
mantiveram a sua ligação à modernidade europeia, apesar do isolamento do
país à custa do auto-exílio ou de uma acção semi-clandestina em Portugal,
e o “escol (de intelectos, não de minorias sociais privilegiadas, como Sérgio
insistia) que ainda antes do isolamento colheu ensinamentos necessários à
expansão e que deve servir de exemplo para o escol ambicionado por Sérgio
(diz Carlos Leone) para, em termos similares, se formar do exterior do país,
para depois retornar a ele e contribuir para a sua modernização, sinónimo de
europeização”6. Note-se que Sérgio funda a ideia de uma República moderna
(e de uma Educação Republicana) menos num programa pormenorizado a
aplicar às instituições e mais numa orientação moral e pedagógica, daí a sua
preocupação com o elemento formativo, desenvolvido em Educação Cívica,
e com a proposta de algumas medidas específicas: redução do número de
partidos políticos, obrigação dos proponentes de moções de censura ao
governo apresentarem um programa e um governo alternativos (moção
de censura construtiva), criação de um período posterior a uma moção de

autor, Sobre a Noção de ‘uno unificante’ na filosofia de António Sérgio. In: AA.VV.
Poiética do Mundo, Homenagem a Joaquim Cerqueira Gonçalves. Lisboa: Edições Colibri,
2001, pp. 365-374. Veja-se ainda MESQUITA, António Pedro. Aspectos do ideário
sergiano em ontologia. Prefácio a SÉRGIO, António. Notas sobre Antero de Quental,
Cartas de Problemática e Outros Textos Filosóficos. Lisboa: INCM, 2001; e CARDIA, Mário
Sottomayor. O pensamento filosófico do jovem Sérgio. Cultura – História e Filosofia,
vol. I. Lisboa: INIC, 1982.
6
LEONE, Carlos. O Essencial sobre António Sérgio. Lisboa: INCM, 2008, p. 60.
Guilherme d’Oliveira Martins 287

censura em que os proponentes ficassem inibidos de reincidir na iniciativa,


reforço de um sistema de freios e contrapesos7.

3. Nesta linha de pensamento, e considerando a história portuguesa


e a sua evolução, a noção de “estrangeirado” assume, de modo claro, em
António Sérgio, uma pertinência não pela mentalidade mas pelo carácter
educativo e não histórico, reformista das práticas e não só dos princípios.
E é assim que o ensaísta, ao contrário de algumas simplificações, matiza a
oposição, designadamente entre fixação e transporte. De facto, estes dois
conceitos revelam-se fundamentais. Não são inéditos, uma vez que estão
subjacentes ao pensamento de Antero na conferência do Casino sobre as
Causas e seguem as concepções fundamentais da geração do poeta de Odes
Modernas ou de pensadores como Basílio Teles. O decisivo está na concepção
de Portugal como país moderno, capaz de condenar a inevitabilidade do
sebastianismo. Na linha de Herculano ou de Oliveira Martins, Sérgio recusa
os providencialismos e o fatalismo do atraso. A decadência nada tem a ver
com um factor externo ou com uma conspiração anti-nacional, sendo sim o
resultado de uma série de opções comummente adoptadas. O fechamento
não é uma opção atribuível a um agente ou pequeno conjunto de agentes. É
a Portugal, como um todo, que Sérgio atribui as raízes da decadência – isto
é, à renúncia voluntária à modernidade a que deveria pertencer. Portugal
é corrupto por se ter corrompido, e não por ter sido corrompido. Daí a
necessidade de uma auto-responsabilização colectiva. Nesta perspectiva,
o verdadeiro veículo da mudança social não é a alteração das leis, mas a
sua remodelação económica. E assim, fiel a Antero, considera a economia

7
Cf. PEREIRA, José Esteves. António Sérgio Político. A Ideia de Democracia. In: AA.VV.
António Sérgio – Pensamento e Acção, vol. I, p. 87 e ss. O autor salienta, neste texto
fundamental, que para Sérgio a democracia é o regime em que os governos são fisca-
lizados pela opinião pública, através dos seus representantes, visando a liberdade e a
igualdade dos cidadãos, no entanto, as instituições políticas e administrativas devem
ter um valor instrumental, daí que as reformas das instituições devam ir ao económico
e social. Daí a importância da orgânica corporatista ou do cooperativismo, em que o
pedagogo activo se empenha. Para que a opinião pública fosse actuante, haveria que
apostar na educação, a fim de formar uma elite interessada, informada, conhecedora
e empenhada na defesa da grei. Assim, democracia torna-se demopedia, isto é, no
princípio e no fim, acção, e formação para essa acção. O pedagogo activo é, assim,
fundamental, devendo tornar-se dispensável, de modo a que (na linha de Dewey)
sejam os cidadãos os verdadeiros actores da mudança, a partir do impulso educativo.
Espíritos lúcidos e organizadores, criadores pacientes e reflectidos. Relativamente
às questões económicas, leia-se ALMODOVAR, António. António Sérgio Economista?
In: AA.VV. António Sérgio – Pensamento e Acção, vol. I, p. 103 e ss.
288 ANTÓNIO SÉRGIO, A PRIMEIRA SEARA NOVA E A REPÚBLICA MODERNA

um instrumento com intuito moral. Temos de saber lidar com “as duas
políticas nacionais” e com os dois países que coexistem em Portugal – um
conservador e isolacionista e outro moderno e aberto ao exterior8. Uma
vez que estamos perante faces de uma mesma identidade, é indispensável
compreender os dois aspectos e matizá-los, pela acção pedagógica, para
que a perspectiva aberta e cosmopolita possa prevalecer de modo estável…
Como afirma Manuel Ferreira Patrício: “Ainda hoje não é possível enten-
der, compreender e discutir a questão educativa nacional sem conhecer o
pensamento pedagógico de António Sérgio”9. Assim, a persistente tentativa
de levar a República moderna a executar uma política educativa eficaz,
revendo os métodos pedagógicos, articulando ensino e vida económica,
incentivando o sentido crítico do conhecimento da história, organizando
a República escolar, integrando internacionalmente o ensino superior e a
investigação científica, conduz Sérgio numa linha de acção que coloca as
transformações educativas no cerne da reforma nacional. Daí que a leitura
do pensamento pedagógico de António Sérgio seja um exercício fundamental
para a melhor compreensão da sua obra e do seu alcance. Deste modo,
insista-se em que O Problema da Cultura e o Isolamento dos Povos Peninsulares
(1914), o já citado Educação Cívica (1915), Considerações Histórico-Pedagógicas
(1916), Cartas sobre as Educação Profissional (1916), A Função Social dos Estudantes
(1917), O Ensino como Factor de Ressurgimento Nacional (1918) e Sobre Educação
Primária e Infantil (1939) são textos de leitura obrigatória10. Afinal, temos
de voltar a ouvir António Sérgio a pôr-nos de sobreaviso nas Considerações
Histórico-Pedagógicas: “Nós mantenhamos o santo horror ao palavreado
nacional, lembrando-nos do estrangeiro que muito seriamente afirmou
que a causa da decadência dos povos peninsulares – era a retórica”…

4. O ensaísta foi sempre um “homem político” e um “pedagogo activo”.


Tudo o que lemos do seu pensamento decorre desta dupla assunção. Aliás,
o homem político decorreu, naturalmente, do cidadão e do pensador. Se
há, no século XX português, um exemplo de intelectual comprometido e
empenhado na coisa pública, em coerência com o seu pensamento, apesar
de todas as adversidades e nunca numa perspectiva de exercício imediato

8
SÉRGIO, António. As Duas Políticas Nacionais. In: ______. Ensaios, tomo II. 2.ª edição,
Lisboa: Publicações Europa-América, 1957, pp. 85-122.
9
PATRÍCIO, Manuel Ferreira. Prefácio a SÉRGIO, António. Ensaios sobre Educação. Lisboa:
INCM, 2008, p. 11.
10
Cf. ibidem, passim. Vd. tb. SÉRGIO, António. Autobiografia inédita de António Sérgio
[Livre D’Or do Instituto Jean-Jacques Rousseau, Genève, 1915]. Recuperado por Daniel
Hameline e António Nóvoa. Revista Crítica de Ciências Sociais, n.º 29, Fevereiro de 1990.
Guilherme d’Oliveira Martins 289

de poder, esse é o de António Sérgio de Sousa. E se digo sem uma pers-
pectiva imediata do poder, é porque quer no final da Primeira República
quer durante a oposição a Oliveira Salazar, Sérgio manteve-se fiel àquilo
que Julien Benda tratou em La Trahison des Clercs e que o ensaísta traduziu
deste modo: “Está bem, a meu ver, que os intelectuais se interessem pela
vida pública: mas devem fazê-lo todavia para tentarem submeter a acção
política a um pensamento universal e des-subjectivado, a um ideal de
racionalidade o mais pura possível – e não para formularem justificações
sofísticas das paixões de preconceitos de qualquer facção” (como afirmou
em entrevista à Vértice, em Junho de 1956)11. O fundamental estaria, pois,
na procura de um princípio universal, um ideal de racionalidade (ou não
fora ele um idealista) demarcado da lógica oportunista do imediato. Tanto
quando foi Ministro da Instrução Pública com Álvaro de Castro (1923-24),
como quando animou a candidatura do General Delgado, encontramos o
mesmo desejo – realizar um ideal de uma Democracia de cidadãos livres e
unidos por um desígnio de cooperação.

5. “Poucos países há, certamente, em cuja história seja tão sensível,


de ponta a ponta, o influxo do facto económico, como este nosso: poucos
há também cuja história económica fosse tão desprezada; e será acaso
dos maiores obstáculos ao ressurgimento da nossa pátria a falta geral de
conhecimentos sólidos das condições económicas em que se evolucionou”12.
Afinal, Sérgio segue o ensino de Antero de Quental: “A moralidade colectiva
é um facto, em grande parte, de ordem económica, ainda que esta afirma-
ção pareça paradoxal”. Por quê? Como diz em 1924 a Jaime Magalhães de
Lima: “O exemplo do santo é adjuvante; o de homem de carácter, necessário;
nenhum deles é o factor suficiente da prosperidade social. Só frutificam,
ambos eles, pela acção educativa da formação particularista”. Por isso
insistirá em que: “A nossa futura pedagogia deverá ser, essencialmente,
uma pedagogia de trabalho e da organização social do trabalho”13. Economia
e dignidade humana são faces da mesma moeda. Não se entende a satisfação
das necessidades sem a consideração da moralidade e vice-versa, ideias e
coisas relacionam-se intimamente. Não se pense, pois, que há compar-
timentos estanques na reflexão de António Sérgio. Há, sim, uma ligação
íntima entre a interpretação histórica e económica, a concepção filosófica
e a intervenção cívica e política. Tudo se articula. Afinal, para o ensaísta “a

11
Vértice. Coimbra, n.º 153, Junho de 1956, p. 270.
12
Cf. Antologia dos Economistas Portugueses. Lisboa: Biblioteca Nacional, 1924, p. III.
13
Lusitânia. Revista De Estudos Portugueses. Lisboa, fasc. I, vol. II, Setembro de 1924, p.126.
290 ANTÓNIO SÉRGIO, A PRIMEIRA SEARA NOVA E A REPÚBLICA MODERNA

pátria é um ir sendo pela vontade e pela consciência”. Alexandre Herculano


e a melhor reflexão historiográfica oitocentista estão bem presentes,
prolongando-se para a intervenção transformadora. E vem à baila a ideia
de “fixação”: Adoptei a palavra fixação para designar o investimento dos
lucros do transporte em fainas produtoras nos territórios nacionais em
vez de deixarmos que os ditos lucros passassem todos a gente estranha
para pagamento do muito que nós importávamos. Se a ideia de política de
fixação não supusesse a existência de transporte, chamar-lhe-ia política
de produção, e não política de fixação (a ideia de fixação – ao que me
parece evidente – pressupõe a de um algo que se está movendo, que está
sendo transportado)”14. Mas, para António Sérgio é preciso saber quem é
o sujeito da História, enquanto ser livre, actuante e racional. Daí a noção
do “terceiro homem” – “O homem do Libertarismo auto-disciplinado e
reformador”. É o “Homem apegado à liberdade cívica, sim, mas com a
plena consciência de que a liberdade é difícil, com exigências de correlativa
responsabilidade estreita, com o desejo de providências de disciplinação
rigorosa, com práticos anseios de justiça social”15. E, ao reler reflexões como
esta, Joaquim Montezuma de Carvalho, que incansavelmente procurou
revelar-nos quem foi António Sérgio na dimensão múltipla do seu labor
de filósofo, de historiador, de pedagogo activo e de doutrinador do coope-
rativismo, afirmou magistralmente: “Sérgio realiza entre nós a apoteose
de unidade. Ética, Estética e Ciência são a unidade na diversidade. Depois
dos gregos, a dispersão, o homem unilateral. Sérgio prolonga na moder-
nidade o pitagorismo dos versos de ouro: sem unidade não há orientação,
sem auto-domesticação não atingimos a imortalidade dos deuses. Sérgio
é helénico por excelência. É o homem integral”16.

6. A ideia de “República Moderna” para António Sérgio, no fundo, não


era encarada como um tema de regime político, mas como de construção
da Democracia – regime em que os governos são fiscalizados pela opinião
pública, através dos seus representantes, visando a liberdade e a igualdade
dos cidadãos. Nesse sentido, o ensaísta manteve-se fiel às preocupações
de seu mestre Antero de Quental e da sua geração. Como pedagogo activo,

14
Cf. SÉRGIO, António. Ensaios, tomo VIII. Lisboa: Sá da Costa, 1960, pp. 144-145.
15
Idem. Cartas ao Terceiro Homem. In: ______. Democracia. Lisboa: Sá da Costa, 1974,
pp. 149-150.
16
CARVALHO, Joaquim Montezuma de. António Sérgio, a Obra e o Homem. Lisboa: Arcádia,
1979, p. 485. A obra é de um grande interesse, pelo percurso que faz pela produção
multifacetada de António Sérgio, constituindo um bom “vademecum”, sem pretensões
analíticas, sobre o muito que disse o ensaísta.
Guilherme d’Oliveira Martins 291

ligou sempre a construção da Democracia à Educação – deixando claro


que as instituições políticas e administrativas deveriam ter um valor
instrumental, já que as mudanças económicas e sociais teriam de estar
na primeira linha das preocupações reformadoras. A Educação para a
cidadania constitui, assim, um caminho de emancipação, de modo que os
cidadãos, desde as idades mais jovens, ganhem sentido de responsabilidade
que permita um exercício efectivo da liberdade e o assumir da igualdade.
Daí a crítica à mera alfabetização, ao ler, escrever e contar, e a ligação que
António Sérgio sempre fez a uma educação profissional. Por outro lado,
a doutrinação e a orgânica cooperativistas inseriam-se na necessidade de
reorganizar a sociedade a partir da máxima responsabilidade de todos. Por
exemplo, nas Cartas ao Terceiro Homem nota-se uma insistência particu-
larmente evidente na autonomia individual, na inserção desta numa ideia
dinâmica de “vontade geral” (diferente da de Rousseau), na ligação entre
democracia e acção e na defesa de um paradigma (que é associado à figura
de José Xavier Mouzinho da Silveira, por contraponto à de António Maria
Fontes Pereira de Melo) de criação e “fixação” de riqueza, em contraste
com os “melhoramentos materiais”, baseados no mero “transporte” das
riquezas. O dualismo das “duas políticas nacionais” é, assim, recorrente em
Sérgio, vindos dos anos vinte aos anos cinquenta. E só haveria Democracia
se essa mentalidade estivesse enraizada e fosse assumida por uma elite
interessada, informada, conhecedora e empenhada naquilo que António
Sérgio designa como “defesa da grei”. E diz-nos o próprio ensaísta: “Se
o leitor meditou um pouco sobre a definição que aqui demos de vontade
geral como sendo a vontade de um qualquer indivíduo quando ele procede
segundo uma concepção objectiva, universalista, do acto que vai praticar,
desprendendo-se do seu ponto de vista de indivíduo para se colocar no
ponto de vista espiritual da reciprocidade de relações com os demais indi-
víduos; se meditou sobre tal definição, dizemos nós, concluiu decerto que
há duas maneiras bastante diversas de conceber a Democracia, a uma das
quais poderíamos chamar a maneira passional e materialista, ao passo que à
outra – à nossa – caberia a designação de idealista e crítica”17. A actualidade
do testemunho de António Sérgio fica, deste modo, salvaguardada, uma
vez que, se é verdade que está preocupado com os problemas imediatos, e
com a crítica política desde a Primeira República ao Estado Novo, o certo
é que não se perde na formulação de propostas circunstanciais, centra-
das no funcionamento das instituições. A coerência é, assim, um dado

SÉRGIO, António, Democracia, p. 99. O texto aqui citado, intitulado Democracia, foi
17

publicado em opúsculo, em 1934, pela Seara Nova. Seguimos a 3.ª edição, de 1937.
292 ANTÓNIO SÉRGIO, A PRIMEIRA SEARA NOVA E A REPÚBLICA MODERNA

marcante no percurso sergiano. O longo prazo, a economia e a sociedade,


a indispensabilidade de superar os factores de atraso, tudo isso preocupa o
escritor de Ensaios, que usa a História, a Economia e a Filosofia para lançar
pistas de reforma para o país. E se muitas vezes há quem se surpreenda
pela dispersão de energias do pensador ao longo da vida, não podemos
esquecer que foi o ânimo pedagógico que o levou a preferir a maiêutica e
a polémica, à mera teorização. Daí a sua extraordinária influência até aos
anos cinquenta nos mais diversos domínios (em especial no da História
económica e social). E um certo apagamento nos últimos anos não pode
fazer esquecer a força e importância do seu método bem como a actualidade
da sua reflexão. Como pedagogo activo, antes de tudo o mais, Sérgio viu
cumprido aquilo que sempre defendeu – a cidadania activa deve afirmar-se
por si, desenvolver-se, singrar pelos seus próprios pés. Questão diferente
é a da actualidade do sentido crítico do ensaísta. Continua a haver sinais
preocupantes de atraso. Continua a prevalecer o curto prazo e a falecer
o sentido da criação e do desenvolvimento. A “República moderna” e a
Democracia continuam na ordem do dia.
António Sérgio e os nacionalismos

SÉRGIO CAMPOS MATOS


Universidade de Lisboa

Dos finais do século XIX ao final da II Guerra Mundial, a Europa viveu


um tempo marcado pelo exacerbar dos nacionalismos, pelo sentimento de
crise de civilização e crise do próprio sistema liberal. Tempo de afirmação
de nacionalismos tradicionalistas, conservadores, de matriz étnica que, em
Portugal, se exprimiram, entre outras vozes, no movimento do Integralismo
Lusitano. Os anos que antecederam a I Guerra Mundial e depois toda a
devastação provocada pelo conflito mostraram aquilo que os sociólogos
do final do século XIX e homens como Darwin, Nietzsche ou Freud vinham
revelando –o instinto, o irracional, a pulsão de morte, enfim o lado oculto
da natureza humana.
Na sequência da Grande Guerra, a Europa e o panorama internacional
mudaram drasticamente. O velho continente, agora dividido, perdeu o
domínio do mundo (lembre-se a emergência a leste da URSS). A guerra
prolongou-se ainda em conflitos regionais alargados (Grécia-Turquia;
Irlanda-Grã-Bretanha, Guerra Civil Russa) e aprofundaram-se as clivagens
entre sistemas políticos e doutrinários radicalmente opostos. À oposição
entre a ideia comunista e a doutrina liberal veio somar-se no pós-guerra
o aparecimento dos movimentos fascistas que depressa alcançaram o
poder na Itália (1922) e depois na Alemanha (1933). Revoluções de direita,
comandadas pela ideia de raça ou a ideia de império – por oposição ao
sistema liberal, considerado decadente, e ao conceito de classe que, por
seu lado, marcava os movimentos socialista e comunista. “Guerra civil
europeia” foi a expressiva designação dada por alguns historiadores a todo
o período que se estenderia até 1945 e em que se situa também a Guerra
Civil espanhola (1936-39).
Vivia-se numa época dominada por sistemas deterministas de expli-
cação do mundo, muito marcados por positivismos de diverso teor, por
teleologias da história e pela convicção na previsibilidade do futuro. Estabe-
leciam-se conexões consideradas necessárias entre fenómenos – incluindo
os acontecimentos sociais e humanos – e acreditava-se ainda em relações
unilineares de causa-efeito. Mas se a ciência se tornara uma fé e as espanto-
sas conquistas tecnológicas e materiais continuavam a deslumbrar, também
294 António Sérgio e os nacionalismos

é verdade que ainda no século XIX o cientismo suscitara forte resistência


patente numa reacção idealista, mística e espiritualista, que se exprimira
nas artes e nas ciências humanas, na sua propensão para manifestar e
compreender o irracional. Eça de Queirós viu bem esta tendência em Paris,
no final de Oitocentos1. Entre atracção e repulsa, a modernidade revelava o
homem como um ser problemático, em sociedades mais secularizadas, em
que as crenças religiosas tradicionais encontravam novos concorrentes. É
o caso do culto das nações e dos nacionalismos. Por outro lado, a figura de
Deus parecia tornar-se distante ou refluir para os recessos da consciência
individual. E não tardaria muito que os totalitarismos ocupassem todo
o espaço público e invadissem até o espaço privado. Neste contexto os
nacionalismos exclusivistas e expansionistas viviam-se como novos credos
religiosos, integradores e totalizantes.
António Sérgio viveu numa época em que se confrontaram o naciona-
lismo liberal e o nacionalismo tradicionalista e conservador. Este último,
durante o Estado Novo, ganharia um cariz exclusivista. No confronto, para
além da dimensão política, tiveram função relevante as argumentações
históricas. Crítico do Integralismo Lusitano mas também do republicanismo
no poder, o ensaísta construiu uma teoria europeísta e universalista do
percurso histórico nacional que, em larga medida, justifica a sua posição em
relação à I República e, depois, aos regimes de ditadura. A crítica daqueles
nacionalismos não o levou, como de resto sucedeu com Jaime Cortesão
e Raul Proença, a enjeitar in limine todo o conceito de nacionalismo e de
patriotismo.
Como se posicionou António Sérgio face aos nacionalismos? Que
conceitos adoptou de nação, nacionalismo e patriotismo2? No tempo do
ensaísta e dos seus companheiros da Seara Nova, nação e nacionalismos
eram grandes referentes identitários colectivos que, desde as revoluções
liberais, estruturavam o imaginário das sociedades europeias. Tendo em
conta a proliferação da bibliografia sobre estas temáticas, importa à partida
estabelecer uma precisão conceptual. Entendemos o nacionalismo não

1
QUEIRÓS, Eça de. Positivismo e idealismo. In: ______. Notas Contemporâneas [Texto
de 1893]. Lisboa: Livros do Brasil, s.d., pp.185-196.
2
Não pretendo aqui revisitar as polémicas que manteve com outros intelectuais e
políticos portugueses – de resto já bem estudadas. Veja-se, entre outros, MACEDO,
Jorge Borges de. Significado e evolução das polémicas de António Sérgio. Revista de
História das Ideias, n.º 5, t. II, Coimbra, 1983, pp. 471-531; FERREIRA, Olga da Cunha.
António Sérgio e os Integralistas. Idem, pp. 427-469; e FRANCO, António Cândido.
António Sérgio e Teixeira de Pascoaes ou o conflito cultural português. In: AA.VV.
António Sérgio: pensamento e acção, vol. I, Lisboa: INCM, 2004, pp. 139-161.
Sérgio Campos Matos 295

apenas como ideologia que visa a autonomia e afirmação de uma nação, mas
como movimento político e social que envolve uma doutrina sobre o Estado e
até uma antropologia (E.Kedourie, K.Minogue, A.Smith)3. Creio ser vantajoso
estabelecer a distinção teórica entre nacionalismo e patriotismo, entendido
este último como amor à pátria, lealdade em relação às suas instituições,
empenho na sua defesa (E.Kedourie). Seguindo estes conceitos, estamos a
falar de tendências modernas, que se afirmam com as revoluções liberais,
embora com raízes muito anteriores. Ficamos assim mais habilitados a
compreender as posições de António Sérgio e dos seareiros a este respeito.

É necessária a nacionalização cultural dos portugueses?


No primeiro número da Seara Nova (Outubro de 1921), já no contexto
do pós-guerra, pela pena de Raul Proença, a nova revista revelava-se muito
crítica em relação aos nacionalismos, invocando a necessidade de uma
“consciência internacional” (lembre-se que a Sociedade das Nações, a
primeira instituição supranacional fora criada em 1919). E declarava aber-
tamente o combate a “todas formas de nacionalismo, essas doutrinas anti-
humanas que pretendem erguer em volta de cada país um círculo espesso de
muralhas da China”4. Manifestava-se também contra as revoluções políticas
e militares. A memória da Grande Guerra ainda sangrava – lembre-se que
Raul Proença nela tinha combatido como voluntário e que Jaime Cortesão
tinha aí servido como médico, deixando esse livro notável que constitui
as memórias em que relata a sua experiência no conflito5. Numa atitude
moderna, a Seara Nova reagia também contra a mentalidade historicista e
retrospectiva então dominante: “O GRUPO SEARA NOVA não se limita a
prosternar-se perante as glórias passadas da Pátria: quer criar para a Pátria
uma nova glória; (…) não olha o Passado, marcha resolutamente para o
futuro” (n.º 1, 15-10-1921). A divergência com os cultores do tradicionalismo
integralista logo se tornavam evidentes. Contra uma atitude de fechamento
na tradição e de sobrevalorização do nacional, os seareiros afirmavam uma
posição ecuménica, de fraternidade entre as nações – um internacionalismo6

3
KEDOURIE, Elie. Nacionalismo. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 1988;
MINOGUE, Kenneth R. Nationalism. Londres: B.T.Batsford, 1967 e SMITH, Anthony
D. Theories of nationalism. 2.ª ed., Londres: Duckworth, 1983.
4
PROENÇA, Raul. Apresentação da Seara Nova (n.º 1, 15-10-1921). In: ______. Páginas
de Política, vol. II. Lisboa: Seara Nova, 1972, p. 77.
5
CORTESÃO, Jaime. Memórias da Grande Guerra. Lisboa: Livros Horizonte, s.d.
6
REIS, António. Raul Proença, António Sérgio e a Seara Nova. In: AA.VV. Seara Nova.
Razão, Democracia, Europa. Porto: Campo das Letras, 2001, p. 236. Sobre o universalismo
e o nacionalismo no pensamento dos seareiros, veja-se também AMARO, António
296 António Sérgio e os nacionalismos

que não pode todavia ser confundido com o internacionalismo comunista,


assente na ideia de classe.
Como se define o conceito de nação dos seareiros? Quer Raul Proença
quer Jaime Cortesão – figuras de proa da doutrinação seareira nos seus
primeiros anos –, admitem um conceito essencialista de “pátrias eter-
nas”. Acima destas é que deveria construir-se a consciência internacional.
Proença e Cortesão eram republicanos, democratas herdeiros da filosofia
iluminista do progresso. Mas, como é bem sabido, não se coibiam de adoptar
um ponto de vista crítico sobre a experiência política da I República. Uma
das clivagens mais marcadas na sua crítica ao sistema partidário vigente
estabelece-se em torno da oposição nação/facção, o que, deve dizer-se, já
se verificara no confronto muito anterior entre a primeira geração liberal
(caso de Almeida Garrett) e os legitimistas (absolutistas), no prolongado
debate sobre a legitimidade de D. Pedro ou de D. Miguel (1828-33). Para os
seareiros, perfilhar um ponto de vista nacional e não de facção, não partidá-
rio (não dependente de interesses particulares de grupo), tornar-se-ia uma
das suas imagens de marca. Daí a invocação do conceito de “vontade geral
da nação”, expressa pelo parlamento, mas esclarecida pela competência
dos melhores7. Embora, como se sabe, Proença e Sérgio fossem críticos do
conceito de vontade geral teorizado por Rousseau.
Há muito os tópicos pátria, nação, patriotismo e nacionalismo mar-
cavam a cultura política nacional e a própria afirmação dos intelectuais
no espaço público8. Oliveira Martins e depois Eça de Queirós (este na
célebre polémica com Pinheiro Chagas, em 1880) tinham mostrado bem
que, na sua retórica, os intelectuais e políticos do Portugal da Regeneração
recorriam frequentemente a estes termos, visando a sua promoção pública.
Mas mais do que isso, tratava-se de temas centrais na formação das elites

Rafael. A Seara Nova nos anos vinte e trinta. Viseu: Universidade Católica Portuguesa/
Instituto Universitário de Desenvolvimento e Promoção Social, 1995, pp. 70-82.
7
PROENÇA, Raul. Seara Nova. Seara Nova, n.º 22, Abril de 1923, também reproduzido
em PROENÇA, Raul. Páginas de Política, vol. II. Lisboa: Seara Nova, 1939, pp. 255-260.
8
Vd. Fernando Catroga. Ensaio respublicano. Lisboa: Fundação Francisco M. dos Santos,
2011, pp. 9-35 e A geografia dos afectos pátrios. As reformas político-administrativas (sécs.
XIX-XX). Coimbra: Almedina, 2013 (especialmente a parte IV), e os meus estudos
“Nación”. In: Diccionario político y social del mundo iberoamericano (dir. de Javier Fernán-
dez Sebastián). Madrid: Fundación Carolina-Sociedade Estatal de Commemoraciones
Culturales e Centro de Estudios Políticos y Constitucionales, 2009, pp. 953-966, e “A
linguagem do patriotismo em Portugal: unidade e conflito, da crise do Antigo Regime
à I República”. In: Linguagens e fronteiras do poder (José Murilo de Carvalho et al. ed.).
Rio de Janeiro: FGV Editora, 2011, pp. 36-54.
Sérgio Campos Matos 297

(nomeadamente através da escola) e na disputa do poder cultural9, de


especial acuidade nessa época.
Ora, António Sérgio foi porventura a figura da Seara Nova que mais
longe foi na teorização crítica em relação ao nacionalismo e ao patriotismo
dominantes. Que concepção adoptou a este respeito? Destaque-se, à partida,
um momento marcante na sua teorização (embora, cronologicamente, não
o primeiro): refiro-me à sua distanciação crítica em relação ao diagnóstico
de desnacionalização que Teixeira de Pascoaes e Jaime Cortesão aplicavam
à sociedade portuguesa, nos primórdios da I República.
No âmbito da sua campanha saudosista, levada a cabo no contexto
da Renascença Portuguesa, Pascoaes via na acção da Companhia de Jesus
e nas influências culturais estrangeiras factores de desnacionalização e
decadência da sociedade portuguesa. Importava, a seu ver, contrariá-las no
campo do ensino, cultivando a alma nacional e uma educação lusitana. Por
essa época, Jaime Cortesão estava muito próximo desta posição, preocupado
que estava em renovar a consciência nacional com recurso ao ensino da
história. Compreende-se assim que, no seu curso de História Pátria na
Universidade Popular do Porto (iniciativa da Renascença Portuguesa),
Cortesão introduzisse um tópico sobre “Desnacionalização actual”, logo
seguido de um outro, “Necessidade de nacionalização. Importância dos
estudos históricos para esse fim”10.
Ora, António Sérgio estava longe deste tipo de intenções. Reconhecia
a relevância da disciplina de História nos cursos secundários, não como
instrumento político mas como meio de cultivar o espírito crítico. Com-
preende-se que se opusesse à ideia de uma educação lusitana: procurava,
em alternativa, uma escola voltada para o trabalho e para o self-government,
sugestão que colhera no contacto com a pedagogia anglo-saxónica e suiça.
E que estivesse longe de considerar o povo português num estado de des-
nacionalização. Antes, pelo contrário, este talvez estivesse menos desna-
cionalizado do que os outros, pois a seu ver tinha estacado no progresso11.
Donde, se não estava mais desnacionalizado do que outros povos, não fazia
sentido acentuar o seu processo de nacionalização.

9
Vd. CATROGA, Fernando. As vanguardas culturais, da Geração de 70 à Seara Nova.
In: AA.VV. Seara Nova. Razão, Democracia…, pp. 41-60.
10
A este respeito, o meu estudo A Renascença Portuguesa – consciência histórica e
intervenção cívica (1911-1914), comunicação apresentada no Congresso Pensamento,
Memória e Criação no I Centenário da Renascença Portuguesa (no prelo).
11
SÉRGIO, António. Golpes de malho em ferro frio. A Vida Portuguesa, n.º 16, 2-08-1913,
p. 124. Note-se contudo que o conceito de nacionalização de Cortesão não excluia uma
expressão cosmopolita e ecuménica.
298 António Sérgio e os nacionalismos

A centralidade da problemática pedagógica é bem evidente nos pri-


meiros anos da República entre a elite política e intelectual. António Sérgio
não perde de vista a intenção de construção de uma consciência de res
publica nos estudantes através da educação cívica e uma escola nova, voltada
para as actividades produtivas e para a autonomia dos educandos12. Mas
a educação tem no seu pensamento uma marca filosófica que o distingue
claramente dos pedagogos republicanos (caso de João de Barros), sem a qual
seria impossível compreendê-la num sentido profundo. A sua pedagogia
é indissociável da filosofia racionalista que desde cedo perfilha: educar
significa, para o ensaísta, “favorecer o crescimento da capacidade de racio-
nalização, de espiritualização, de universalização, de superação dos limites vários
que confinam o indivíduo numa pátria ou grupo, numa localidade ou época”13.
Torna-se assim evidente que para o autor dos Ensaios a ideia ideal de
formação do ser humano se situava nos antípodas dos particularismos
nacionais e dos nacionalismos.
Há, a este respeito, uma distinção relevante que estabelece entre o
antigo patriotismo, que anulava a liberdade individual e aspirava à “expan-
são política da comunidade”, com o patriotismo moderno. Distinção que se
afigura do maior interesse, pois para o ensaísta há um patriotismo que não
se limita ao espaço da pátria mas aspira ao universal (caso do de Camões
n’Os Lusíadas). Explica ele, interpretando Camões:

“Há um aspecto moderno neste amor da pátria, pelo qual se avantaja ao


de um figurino de hoje: e é que o patriotismo, aqui, não se apresenta como
nacionalista, não fica na pátria como ideal humano, não pára nela; o seu
objecto é o universal; e o seu fim, a sociedade católica, quer dizer: a da
doutrina verdadeira (para Camões) onde só é possível a salvação das almas.
Como concretização do universal é que ele ajuíza do valor da pátria. Um
patriotismo, em suma, que é um meio de catolicidade; uma pátria que se
torna digna na própria medida em que se faz divina, universal, unificadora,
chamando todos – povos e homens – ao mesmo culto do Pai celeste”.

E mais adiante:
“Como o moderno, pelejava o patriota da Antiguidade por certos inte-
resses fundamentais: dominava-o, porém, um patriotismo nacionalista,
passional e instintivo, o deus da grei, a voz da ‘raça’; para o cidadão

12
SÉRGIO, António. Educação cívica. Pref. de Vitorino Magalhães Godinho. 3.ª ed., Lisboa:
Ministério da Educação, 1984.
13
SÉRGIO, António. Educação e filosofia. Ensaios, t. I. 3.ª ed., Lisboa: Livraria Sá da
Costa, 1980, p. 160. Sublinhado meu.
Sérgio Campos Matos 299

moderno a voz suprema é a da liberdade e da justiça, e a defesa da sua


pátria tende a confundir-se com a da pessoa moral, com a independência
do seu espírito”14.

A este conceito moderno de pátria associa-se um conceito racional


de nação cívica, baseada no ideal de um “pacto cívico”, de livre adesão,
de auxílio mútuo. Uma pátria ideal acima das pátrias contingentes. Acima
das diferenças étnicas, linguísticas, sociais e culturais, António Sérgio
situava a humanidade como comunidade da razão. É aqui ainda evidente
o distinguo que Sérgio estabelece entre, digamos, um patriotismo ideal (o
moderno) e um patriotismo nacionalista (que se prende ainda com o antigo).
Actualmente, em ciência política e em história, esta dissociação não fará
sentido: há diferentes ideais de patriotismo como há diferentes naciona-
lismos (liberal, conservador, fascista, comunista, cívico, étnico, etc.). Mas
à época, e tendo em conta a filosofia racionalista e neo-iluminista do autor,
ela é bem compreensível (a esta luz, compreende-se bem que não tivesse
concordado com as sugestões dos seus antigos companheiros da Renascença
Portuguesa que iam no sentido de nacionalização dos portugueses).
Vivia-se então o tempo dos grandes confrontos imperialistas e nacio-
nais que atingiu um dos seus zénites na I Guerra Munidal. Não supreende
pois que no prefácio dos Ensaios I (1920) dedicasse especial atenção crítica
ao tópico do nacionalismo. Aí, o autor definia-se sobretudo por oposição
a um nacionalismo tradicionalista e conservador, voltado para o passado
e, a seu ver, em larga medida de importação francesa (Charles Maurras,
Maurice Barrès). Mostrava-se implacável em relação aos poetas portu-
gueses dos finais do século XIX – Junqueiro, António Nobre e Alberto de
Oliveira – e ao seu “romantismo nacionalista” (no caso dos dois últimos
neo-garretista), que idealizava a raça lusitana. Em nome de uma atitude
clássica e universalista que visava a harmonização de sentimento e razão
(Fúria e Ordem), submetia o nacionalismo “estético” da chamada Geração
de 90 a uma crítica cerrada, procurando estabelecer um estreito nexo entre
essa estética nacionalista, que, a seu ver, vivia de instintos e paixões, e o
tradicionalismo em política. Mas, por outro lado, António Sérgio demarcava-
se em termos críticos da tendência que designava de “Insurreccionismo
de 71” (a chamada Geração de 70), que em larga medida responsabilizava
pela voga de diversos mitos na opinião pública, entre eles os de raça e
sebastianismo – referia-se sobretudo a Teófilo Braga e Oliveira Martins,

Idem. A educação cívica, a liberdade e o patriotismo antigos e modernos [texto


14

publicado originalmente em 1917]. Ensaios, t. I, pp. 221 e 223.


300 António Sérgio e os nacionalismos

mas também a João de Deus. Reconhecendo o brilhantismo de alguns


autores desta geração, que, de resto, muito o marcaram (caso de Oliveira
Martins), distanciava-se contudo do carácter abstracto da sua doutrinação
desordenada e não construtiva.
António Sérgio procurava um caminho alternativo à prática política
do republicanismo que chegara ao poder em 1910 e ao tradicionalismo que
a ele se opunha. Célebre ficou a sua auto-definição:

“Democrata, mas antijacobino; anticlericalista, mas respeitador do


Catolicismo; partidário da instrução democrática, mas inimigo (…) da
superstição do abc”15.

E explicava que a sua distanciação em relação àquelas duas correntes


assentava em três tendências suas: o método racionalista, a subalternização
da questão formal do regime (monarquia ou república) e a crítica ao conceito
de patriotismo então dominante16. Note-se, no que respeita aos dois últimos
pontos, o quanto era devedor de Oliveira Martins e de Herculano.

O legítimo nacionalismo
Durante a I República, o ensaísta situava-se assim numa posição
crítica intermédia entre republicanismo e tradicionalismo (monárquico ou
republicano). Significa isto que rejeitasse todo e qualquer nacionalismo? De
modo algum. No seu entender tinha todo o cabimento o que qualificava de
“legítimo nacionalismo”, que identificava com uma atitude universalista
e cosmopolita:

“O nacionalismo bem entendido é o estudo e elaboração das realidades


nacionais feitos sob os métodos e finalidade de um espírito universal”17.

Ora, a seu ver, aqui haviam falhado os intelectuais da Geração de 70 ao


adoptarem uma cultura de importação. E, no entanto, o legítimo naciona-
lismo de António Sérgio alguma coisa tinha de comum com o “patriotismo
dos patriotas” que Eça de Queirós esgrimira contra Pinheiro Chagas. Estava
voltado para a nação do presente e não para o passado, para o pensamento
mobilizador da acção e não para a retórica passadista.
O “legítimo” nacionalismo prendia-se pois com uma atitude reflexiva
e racional. Significa isto que deixasse então de assumir um carácter dou-
trinário para adoptar um discurso analítico, reflexivo, próprio do discurso

15
Idem. Prefácio. In: ______. Ensaios, t. I, p. 60.
16
Ibidem, pp. 60-61.
17
Ibidem, p. 64.
Sérgio Campos Matos 301

científico? A resposta é evidentemente não. Na revista Pela Grei, que António


Sérgio dirigira em 1918-19 durante o regime de Sidónio Pais (em relação ao
qual manteve algumas expectativas), a sua intervenção centrara-se muito
no objectivo de um ressurgimento nacional e de regeneração da Pátria por via
de uma acção supra-partidária e independente, voltada para a formação das
elites e da opinião pública. Esse era o espírito da Liga de Acção Nacional, pre-
sidida por Pedro José da Cunha (Reitor da Universidade de Lisboa), fundada
à data da publicação do primeiro número de Pela Grei, órgão desse efémero
grupo de pressão de que António Sérgio era secretário-geral. Propósitos de
resto coincidentes com os de Raul Proença, na Renascença Portuguesa, em
191118. O ponto de vista de António Sérgio era o nacional, contra facções e
interesses particulares, tal como viria a ser o da Seara Nova, que integraria
só em 1923 por se encontrar a viver no Brasil. No quadro deste ideário,
compreende-se a sua rejeição do conceito de luta de classes, então muito
em voga, e a distinção que estabelece entre uma “Pátria ideal”, de carácter
universalista, e as pátrias contingentes19. António Sérgio idealizava todo um
percurso histórico para a nação portuguesa: o que deveria ter sido e não o
que foi. O que deveria ser, em sintonia com o seu humanismo racionalista,
o modo de ser do português e a vocação histórica de Portugal no mundo.
Importa por isso lembrar que António Sérgio viu na história uma
finalidade pragmática e de pedagogia cívica. É sabido que não se consi-
derava historiador. E que ao invés de um historicismo nacionalista que
sempre combateu, adoptava uma posição presentista: parte-se sempre de
problemas do presente, o presente é que empresta significado ao passado.
Uma história prospectiva20, sem dúvida, mas também – e por isso mesmo –
uma história que não existe “em si”, é uma construção que resulta de um
processo categorial e universalista21. Um olhar sobre o passado comandado
pelos problemas que o ensaísta via no presente. Daí na sua insistência
na crítica sistemática às intromissões do nacionalismo retrospectivo
na história, o seu combate contra os “espectros” (termo que herdou de
Antero de Quental), contra a “tirania do passado”22. Para António Sérgio,

18
PROENÇA, Raul. Ao povo “A Renascença Portuguesa”. A Vida Portuguesa, n.º 22,
10-2-1914, pp. 11-12 [o texto é de 1911].
19
SÉRGIO, António, Ensaios, t. I, p. 224.
20
SERRÃO, Joel. O lugar da história no pensamento de António Sérgio. Homenagem a
António Sérgio. Lisboa: Academia das Ciências, 1975, p. 47.
21
CUNHA, Norberto Ferreira da. História e método em António Sérgio. In: AA.VV.
António Sérgio: pensamento e acção, vol. I, Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda,
2004, p. 61.
22
SÉRGIO, António. Espectros. In: ______, Ensaios, t. I, p. 184.
302 António Sérgio e os nacionalismos

os nacionalismos dominantes constituíam limitações intelectuais, estavam


do lado do instinto por oposição à necessidade de uma compreensão racio-
nal dos problemas históricos. Já Alexandre Herculano e Oliveira Martins
tinham chamado a atenção para a necessidade de separar as águas entre
historiografia e patriotismo: havia que evitar a contaminação do trabalho
dos historiadores pelo sentimento patriótico. Os heróis do passado não se
repetiam no presente, lembrava Martins. Contra o que sugerira Auguste
Comte, os mortos não deviam comandar os vivos.
Na sua oposição ao nacionalismo historicista, António Sérgio chega
a uma afirmação radical de que “não há histórias nacionais no rigor do
termo”23. Isto porque a compreensão da parte é indissociável do todo – da
Europa, do mundo. Neste sentido, a seu ver, só existia uma história da civi-
lização dominada pelo ponto de vista universalista. Pode pois perguntar-se
se, neste seu combate crítico e actualista contra os mitos nacionalistas em
história, não caiu o ensaísta noutros pré-conceitos, por exemplo, na sua
teoria segundo a qual a formação de Portugal na Idade Média teria sido uma
“obra de estrangeirismo”24, produto da presença de outros povos no seu
território (cruzados, mercadores italianos e flamengos, colonos do Norte
da Europa, judeus, árabes, etc.), ou de aspirações de uma alegada burguesia
comercial europeia; a adopção do discutível conceito de “estrangeirados”25,
ou a tentadora ideia do pendor dos portugueses para o transnacionalismo
e a aculturação26, apropriada não apenas de autores portugueses como
Oliveira Martins e Teófilo Braga mas de Gilberto Freyre, ou a própria noção
do carácter universalista da nação e do seu cosmopolitismo. Mas este pendor
cosmopolita dos portugueses ter-se-ia distanciado do espírito europeu no
século XVII, e estes não puderam realizar o seu tipo ideal: a seu ver “só é
profundamente português o que for como tal um cidadão do mundo”27.

23
Cit. por SERRÃO, Joel, O lugar da história no pensamento de António Sérgio, pp. 47-48. Cf.
também, a este respeito, de António Sérgio, as relevantes Divagações proemiais ao
jovem leitor sobre a atitude mental que presidirá a este ensaio. In: SÉRGIO, António.
Introdução geográfico-sociológica à História de Portugal. Lisboa: Sá da Costa, 1973 (1941),
p. 13.
24
Vd. o meu estudo “António Sérgio europeísta?” In: MATOS, Sérgio Campos (coord.).
A Construção da Europa, problemas e perspectivas. Lisboa: Colibri, 1996, pp. 143-162.
25
MACEDO, Jorge Borges de. Estrangeirados, um conceito a rever. Sep. de Bracara Augusta,
Braga, 1973.
26
SÉRGIO, António. Para a definição da aspiração comum dos povos luso-descendentes.
In: ______. Ensaios, t. VI. Lisboa: Livraria Sá da Costa, 1980 (1.ª ed., 1946), pp. 172-173.
27
Idem. Breve interpretação da História de Portugal. Lisboa: Sá da Costa, 1974 (1.ª ed.,
1928), p. 146.
Sérgio Campos Matos 303

Ora, é sintomático que António Sérgio identificasse como característica


do filósofo a “busca da universalidade”, pois só no plano universal se
encontraria o Bem28. O seu próprio percurso biográfico, levara-o de uma
infância em Damão, então Índia portuguesa, a múltiplas vivências em
África, Portugal, Inglaterra, Brasil, Suiça, França e Espanha (nestes dois
últimos países em que esteve exilado de 1926 a 1933). Vivências em quatro
continentes que decerto lhe proporcionaram uma considerável abertura de
horizontes intelectuais, também patentes num percurso que o levou das
ciências experimentais e da matemática na Escola Politécnica, às Huma-
nidades, que sempre cultivou. Cidadão do mundo, sem dúvida, pelas suas
vivências, mas sobretudo pela sua atitude. Seria tentador aproximar o seu
humanismo crítico e universalista da ideia ideal que construiu da história
nacional – também ela impregnada de universalismo até ao desvio histórico
do século XVI29 e depois disso no pensamento de figuras destacadas das
suas elites.
Ora, sabe-se – e os estudos históricos ao longo do século XX comprova-
ram-no largamente – que, a par da mercantilização da sociedade portuguesa,
localizada em torno de alguns centros urbanos, grande parte do território
nacional e da sua população permaneceram até muito tarde mergulhados
numa economia tradicional de Antigo Regime. É certo que António Sérgio
não empregava a expressão “carácter nacional” – o que se compreende
se tivermos em conta o seu pioneiro combate ao determinismo étnico e à
psicologia da raça em voga ainda no seu tempo, especialmente ao celtismo
de Teófilo Braga e de Oliveira Martins. Mas acabava por aproximar-se de
uma teoria essencialista sobre a nação, não obstante exprimisse dúvidas
a esse respeito já nos anos 50:

“Duvido da realidade de uma maneira de ser portuguesa, unitária, indiscu-


tível; há sim portugueses, diferentes entre si, sendo que a mente de cada
cidadão português me não parece ser uma coisa rígida (…) mas sim uma
actividade em evolução contínua, que se modifica com a sua experiência,
com o novo saber que ganhou”30.

28
António Sérgio responde ao nosso inquérito. Vértice, vol. II, fasc. VII, Maio de 1946,
p. 161.
29
SÉRGIO, António. O Reino Cadaveroso ou o problema da cultura em Portugal. In:
______. Ensaios, t. II. 2.ª ed. Lisboa: Livraria Sá da Costa, 1977 (1926), em que
retomava, corrigindo-a, a sua crítica ao isolamento histórico e “purificação”, que se
teriam seguido aos descobrimentos e conquistas ultramarinas.
30
Idem. Sobre cultura portuguesa. In: ______. Ensaios, t. VII. Lisboa: Livraria Sá da
Costa, 1974 (1.ª ed., 1954), p. 112.
304 António Sérgio e os nacionalismos

Seja como for, evidente é que, para o ensaísta, o melhor do percurso


histórico nacional tinha-se cumprido na relação com os outros povos, nessa
alegada vocação universalista. Note-se que, ao invés dos republicanos,
não falava de missão civilizadora nem, tão pouco, como os nacionalistas
conservadores, de missão evangélica dos portugueses. Também não per-
filhava qualquer ideia de federação europeia, federação dos povos latinos
ou dos povos ibéricos – propostas que tanto circularam desde os finais do
século XIX entre os republicanos federais (caso de Sebastião de Magalhães
Lima). Tudo isto, na verdade, o distancia dos nacionalismos dominantes:
o liberal-republicano e o conservador.

Um atributo universal do Homem


Mas a posição de António Sérgio face aos nacionalismos não se reduz
ao plano crítico da intervenção cívica e política bem como à sua apologia de
um nacionalismo ecuménico ou de um patriotismo ideal. Noutros textos da
Grande Enciclopédia Portuguesa e Brasileira, identificados por Jacinto Baptista31
como sendo de sua autoria, encontramos uma perspectiva histórica do
nacionalismo que torna mais clara a sua posição e, noutro plano, o ponto
de vista da sua filosofia racionalista. Ao invés do que poderia supor-se,
nessa extensa colaboração na Grande Enciclopédia, o autor exprime o seu
pensamento filosófico e até opiniões pessoais. Aí, o ensaísta estabelece uma
distinção entre um conceito político de nação, relacionado com a construção
do Estado-nação nos seus primórdios (1815-1880), e um conceito étnico e
cultural que pode não se identificar com um estado (embora possa aspirar
a isso). E prolongando esta tipologia ainda hoje frequentemente adoptada
e discutida, António Sérgio identifica dois nacionalismos bem distintos: o
nacionalismo liberal, político e cultural, dominante na Europa e na América
no período que vai de 1815 a cerca de 1880, inspirando muitos processos
políticos e sociais nessa época, e o nacionalismo tradicionalista que se
afirma a partir dos finais do século XIX, distanciando-se dos princípios
liberais, “cada vez mais reaccionário, imperialista e intolerante” (e dava
como exemplo deste último a doutrina da Action Française, em que a seu ver
convergiam três componentes: o positivismo comtiano, o tradicionalismo
de De Bonald e a teoria do élan vital bergsoniana)32.
Não menos interessantes se afiguram as considerações que desen-
volve na entrada “Patriotismo” da referida Enciclopédia. Assente numa

31
BAPTISTA, Jacinto. António Sérgio enciclopedista. Lisboa: Colibri, 1997.
32
[SÉRGIO, António]. Nacionalismo. Grande Enciclopédia Portuguesa e Brasileira, vol.
XVIII, Lisboa/Rio de Janeiro: Ed. Enciclopédia, s.d., pp. 336-337.
Sérgio Campos Matos 305

diversificada bibliografia, compreende a pluralidade de elementos que o


fenómeno assumiu na cultura política e histórica ocidental: do amor à terra,
às tradições de ascendência comum, passando pela glorificação dos heróis,
“a ideia de uma missão cultural do próprio país em relação a todos os outros”
e a “dedicação a uma comunidade política” (este último seria, a seu ver,
o uso mais geral do termo). Este patriotismo político só teria ressurgido
nos primórdios da estruturação do Estado-nação e só posteriormente
ter-se-ia associado ao nacionalismo (interpretação que não se afigura em
consonância com a distinção que estabelecera entre nacionalismo liberal
e nacionalismo conservador, na entrada “Nacionalismo” atrás referida
e decerto anterior). Para além desta discrepância, refiram-se dois outros
aspectos que se afiguravam comuns nos estudos sobre esta temática no
período da guerra (caso de Carlton Hayes e Hans Kohn): 1) o patriotismo
como força de coesão e, por outro lado, como força de divisão da huma-
nidade; 2) a identificação de uma forte componente de patriotismo e de
nacionalismo na doutrinação comunista, não obstante fosse teoricamente
oposta ao nacionalismo na sua apologia do internacionalismo proletário.
Procurando compreender os nacionalismos do ponto de vista das
ciências humanas e assente numa considerável bibliografia, neste texto
posterior à II Guerra Mundial33, o ensaísta deixava contudo trair os seus
ideais: por um lado, distanciando-se dos juízos de valor radicais a favor ou
contra o patriotismo, admitia que este “é um atributo universal do Homem em
sociedade” (e grafava homem em maiúscula; sublinhado meu); por outro,
dando conta que

“as escolas idealistas inglesas sustentavam (…) que um genuíno patriotismo


pode ser compatível com um rígido respeito das obrigações internacionais
e com uma política que subordine os interesses nacionais imediatos a
interesses nacionais de maior alcance, favorecidos por uma cooperação
internacional para a manutenção da paz. De facto, a atitude militarista é
tão pouco essencial ao patriotismo que o maior dos pacifistas pode ser um
bom patriota, sustentando que a guerra traz irremediáveis males – morais,
culturais, intelectuais, económicos – ao seu país”34.

Um patriotismo prospectivo
Voltamos, pois, ao ponto de partida. Para António Sérgio, nacionalismo
e patriotismo só seriam “legítimos” ou “genuínos” – e estes atributos são

33
Na bibliografia, constam os Ensaios VI do autor, cuja 1.ª edição surgiu em 1946.
34
[SÉRGIO, António]. Patriotismo. Grande Enciclopédia Portuguesa e Brasileira, vol. XX,
p. 634.
306 António Sérgio e os nacionalismos

bem significativos da sua exigência ética normativa – se se situassem num


ponto de vista da relação harmónica entre o nacional e o universal, entre a
parte – a nação – e o todo – a Humanidade. Tal como procedeu em relação
a outros princípios que considerava imanentes à consciência humana e
eternos, como Justiça, Democracia ou o Bem, o ensaísta erigia os conceitos
de nacionalismo e de patriotismo em categorias universais, fora do tempo
e da história. Em contraste, evidentemente, com os nacionalismos e os
patriotismos contingentes, não controlados por um Dever Ser moral e pelas
exigências éticas do seu racionalismo idealista: os nacionalismos jacobino,
o tradicionalista, o fascista ou o nacionalismo soviético. Sublinhe-se que o
racionalismo que legitimava esta posição crítica não era apenas de método,
não envolvia apenas uma epistemologia, mas também uma ética, um “ideal
de harmonia íntima”, expressão imanente do Bem platónico35.
Contra todas as formas estreitas destes movimentos que, nesse tempo
atribulado, tinham levado aos dois devastadores conflitos mundiais de
1914-18 e 1939-45, o ensaísta subordinava nacionalismo e patriotismo aos
imperativos de um Dever Ser racional, uma razão teórica e prática universal.
Contra as atitudes de radical enraizamento e apego a tradições míticas
nacionais (caso do tão difundido pressuposto de uma unidade étnica nas
origens de Portugal, que vai de Teófilo Braga a António Sardinha e aos
seus herdeiros), apregoava a necessidade de abertura e estreitamento de
relações com outras nações. Contra o nacionalismo historicista dominante
na cultura portuguesa até meados do século XX, sustentava um patriotismo
aberto à cidadania do mundo, um patriotismo prospectivo comandado
pela atitude universalista que era, afinal, coincidente com a dos seareiros
– em especial a do seu amigo Raul Proença. Na verdade, a par da crítica
a um nacionalismo estreito, o autor das Páginas de Política fazia convergir
patriotismo e cosmopolitismo, afirmando já em 1910: “Amamos tanto mais
a nossa pátria quanto mais nela pomos de universal”36. Proença era muito
crítico em relação ao patriotismo “retrospectivo e sensibilista” que vivia
tão só do culto das glórias passadas e da tradição – exemplo disso eram as
comemorações do 1.º de Dezembro de 1640, incentivadas pela I República,
e que, a seu ver, eram totalmente estéreis37.

35
PEREIRA, Miguel Baptista. O neo-iluminismo filosófico de António Sérgio. Revista de
História das Ideias, Coimbra, vol. 5, t. I, 1983, p. 65.
36
Cit. por AMARO, António Rafael, A Seara Nova nos anos vinte e trinta, p. 80.
37
Na sua crítica frontal ao comemorativismo nacionalista dominante, muito próxima
aliás da que Oliveira Martins tecera em 1880 ao centenário de Camões e à Comissão
1.º de Dezembro, Proença chega ao ponto de considerar que Portugal não precisava
de mais comemorações. Cf. PROENÇA, Raul. A semana portuguesa e o nacionalismo
Sérgio Campos Matos 307

Embora não fundamentado nos mesmos termos e com os mesmos


argumentos, também António Sérgio era adepto de um patriotismo pros-
pectivo. Neste sentido se pode dizer que, sendo um clássico alheio a modas
do seu tempo, na sua atitude de radical ruptura com o passado (e várias
vezes disse que era um homem sem passado), António Sérgio esteve do
lado da modernidade. Mas a par dos princípios a priori do seu racionalismo,
essa atitude de ruptura transportada para o domínio da história levou-o a
adoptar conceitos abstractos, que remetem mais para as exigências da razão
teórica do que para os problemas concretos dos homens do passado. Em
nome de um futuro ideal de harmonia e de paz entre as nações, o passado
só interessava na medida em que se pudesse inscrever nesse ideal de futuro.
E todavia – como é complexo o pensamento sergiano – por diversas vezes
o ensaísta notou a imprevisibilidade do futuro, distanciando-se também
aqui dos historicismos que dominaram o seu tempo.

antipatriótico. In: ______. Páginas de Política, vol. 2. Lisboa: Seara Nova, 1972 (texto
publicado originalmente na Seara Nova, n.º 1, 15-10-1921). Cf. também a sua crítica à
Cruzada Nun’Álvares, em O manifesto da Cruzada Nun’Álvares. In: PROENÇA, Raul,
Páginas de Política, vol. 2, p. 139 (texto de Dezembro de 1921).
308 António Sérgio e os nacionalismos
A doutrinação económica em António
Sérgio − algumas notas de leitura

ANTÓNIO ALMODOVAR
Universidade do Porto

Introdução
Um dos grandes temas em debate no período em que António Sérgio
se iniciou na doutrinação económica dizia respeito à evolução do capi-
talismo. Esta discussão deu origem a diversas orientações, indo desde
aquelas que defendiam de forma mais ou menos intransigente senão
as virtudes pelo menos o carácter “natural” e inevitável desse sistema,
até às propostas para a sua eventual substituição por um outro modelo
de organização económica e social, passando por diversas tentativas de
delinear reformas pontuais de alguns aspectos vistos como indesejáveis.
De acordo com as designações convencionais, esse debate travava-se
basicamente entre liberais e socialistas, sendo que cada um destes
grandes grupos albergava vários tipos de sensibilidades − e de propostas
concretas − no seu interior.
Ora, é importante não o esquecer, os grandes protagonistas deste
debate, quer do lado liberal quer do socialista, foram por via de regra
oriundos dos países mais desenvolvidos à época. A sua atenção estava
por isso mesmo fundamentalmente centrada na evolução da realidade
económica e social dos seus próprios países e na análise dos fenómenos
decorrentes do desenvolvimento e da modernidade. Quer os sucessos,
quer os insucessos do capitalismo, eram identificados em países como
a Inglaterra ou a França, e não através de exemplos retirados de países
digamos que menos representativos. Podemos por isso dizer que a reflexão
económica e o debate doutrinal se desenvolviam em dois planos que, apesar
de interligados, eram ainda assim bastante diferentes. Num primeiro
plano, tínhamos as análises construídas sobre a evidência fornecida pelos
países mais desenvolvidos. Noutro, tínhamos as análises elaboradas pelos
pensadores dos países menos desenvolvidos, a quem coube a difícil tarefa
de procurar acompanhar a evolução do primeiro debate, e de fazer um
esforço adicional no sentido de dele ir retirando as ilações mais apropriadas
para as suas próprias realidades nacionais − realidades essas que eram
310 A doutrinação económica em António Sérgio − algumas notas de leitura

comparativamente diferentes, e que em certos casos mereciam inclusi-


vamente ser classificadas como “atrasadas”.
É este o pano de fundo em que pretendemos posicionar a obra de dou-
trinação económica feita por António Sérgio, perspectivando-a como uma
obra de intermediação cultural entre as doutrinas económicas oriundas dos
países mais desenvolvidos e a realidade de uma economia nacional atra-
sada. Esta abordagem, que enquadra o trabalho deste autor numa tradição
de que ele próprio deu conta, ainda que de forma parcelar, tem quanto a
nós a vantagem de permitir uma percepção mais clara dos elementos de
continuidade e dos aspectos mais originais da doutrinação económica que
foi levada a cabo por António Sérgio.

A intermediação doutrinária em Portugal


Não há lugar a qualquer dúvida sobre o facto de que António Sérgio
considerava Portugal como um dos países atrasados, e também é indiscu-
tível o facto de que considerava ser seu dever servir como intermediário
entre o debate de ideias prosseguido nos países mais desenvolvidos e a
nossa realidade nacional, por forma a criar as condições para promover o
desenvolvimento do país. A sua atitude era assumidamente pedagógica, e
estava baseada na convicção de que o trabalho de difusão de bons exemplos
era uma actividade imprescindível para a desejável alteração de práticas e
mentalidades. A este nível genérico não há, portanto, na sua obra qualquer
novidade digna de registo. Desde os inícios do século XIX que os economis-
tas portugueses tinham começado a abandonar a ideia de decadência e a
falar preferencialmente do nosso atraso, esforçando-se ao mesmo tempo
por definir as linhas mestras de uma política capaz de nos aproximar dos
níveis de desenvolvimento verificados noutros países. A intermediação
por eles realizada consistia por via de regra na identificação de práticas e
instituições bem sucedidas, e num trabalho subsequente e complementar
de difusão das doutrinas económicas que eventualmente as tinham ins-
pirado. É isso que encontramos, por exemplo, no agrarismo das Memórias
Económicas da Academia Real das Ciências de Lisboa, ou no industrialismo das
obras de José Acúrsio das Neves e de António de Oliveira Marreca. Uns e
outros estribavam as suas propostas em exemplos concretos, prosseguidos
por grandes estadistas, referindo-se apenas de uma forma relativamente
secundária ao aval científico que lhe era dado pela economia política.
Para estes autores, uma parte do nosso atraso residia − ou pelo menos
manifestava-se − na nossa própria ignorância científica. Compreende-se,
por isso, que as tentativas de difusão de boas práticas se estribassem nos
António Almodovar 311

exemplos concretos, e que a argumentação puramente teórica não fosse


por eles vista como uma estratégia verdadeiramente capaz de persuadir os
governantes. E compreende-se também que todos eles fossem favoráveis
a uma reforma dos estudos, por forma a que a economia política pudesse
vir a ser ensinada e difundida entre nós. Isso acabou por se verificar em
1836, passando-se a ensinar economia política aos estudantes de Direito
na Universidade de Coimbra. Com esta medida, deu-se naturalmente um
passo importante no sentido da criação de melhores condições para que se
pudessem analisar com maior atenção os aspectos teóricos e doutrinais.
Passava agora a existir uma base institucional ao mais alto nível, a partir
da qual se poderia proceder à selecção e difusão de conceitos e sistemas
científicos, valorando os economistas estrangeiros mais pelos seus con-
tributos analíticos do que pelo eventual sucesso das políticas económicas
por eles defendidas.
Com o estabelecimento do estudo da economia política ao nível aca-
démico, a intermediação doutrinal passou, portanto, a ser feita por duas
vias distintas.
A tradicional, protagonizada pelos publicistas, continuava a procurar
e a destacar exemplos práticos de sucesso, fazendo a sua apologia junto de
governantes e da opinião pública em geral. A outra, oriunda fundamental-
mente da Universidade de Coimbra, trabalhava no sentido de desenvolver
a cultura económica das elites nacionais, mantendo-as a par do que lá fora
se ia produzindo. Para o fazer, os professores da Universidade de Coimbra
levaram a cabo um trabalho notável, filtrando a literatura existente, e
difundindo entre nós os contributos internacionais das principais escolas
de pensamento económico. Os seus beneficiários mais directos eram os
bacharéis de Direito, mas a sua influência atingia igualmente as escolas
politécnicas e os liceus, onde o ensino da economia política veio a encontrar
guarida um pouco mais tarde.
Com o avançar do século XIX, estas duas linhas de intermediação
foram de certa forma convergindo, seja pela maior familiaridade que a
opinião pública adquiriu em relação às principais doutrinas económicas,
seja devido à participação de alguns professores de economia no debate
público sobre as grandes linhas de orientação de política económica. Gra-
dualmente, o debate público e o académico mudavam de teor. No início do
século, os debates centravam-se fundamentalmente sobre os modos mais
apropriados para fazer progredir uma economia capitalista e assegurar o seu
desenvolvimento económico e social. Nos finais do século XIX, a discussão
tinha-se alargado, uma vez que para além das tradicionais oposições entre
312 A doutrinação económica em António Sérgio − algumas notas de leitura

livre-cambismo e proteccionismo, ou entre agrarismo e industrialismo,


já se debatia agora igualmente a eventual necessidade de optar por uma
evolução para outros tipos de organização da vida económica. Discutiam-se
as virtudes do associativismo e do mutualismo como contraponto necessário
para uma concorrência desenfreada e socialmente insensível, e os ideais
socialistas e cooperativistas começavam a fazer o seu caminho entre nós1.

As duas teses de António Sérgio


Tendo em vista o que acima dissemos, parece muito adequado o retrato
que António Sérgio de si próprio fez, descrevendo-se “como que irmão
já tardio, miudito e desgarrado pelo fluir dos tempos” de uma ilustre
família de socialistas portugueses “que se realçaram pelo anseio de uma
mutação no económico, pelo brado de protesto contra a organização social,
e também pelo desprezo, fundamentado e lúcido, para com a mera ideia
de uma alteração política”2. Mas também é verdade que logo a seguir é
acrescentado que, nessa família socialista, só Oliveira Martins se havia de
facto “consagrado aos estudos propriamente económicos”, quedando-se
os restantes dois (Antero de Quental e Eça de Queirós) por uma defesa
convicta mas pouco especificada da necessidade de uma “alteração visceral
da ordem económica”3.
A existência de lugar em aberto − e a função a ser prioritariamente
desempenhada nesse lugar – era, portanto, justificada pela necessidade
de dotar a família socialista de uma visão fundamentada e lúcida sobre a
mutação a realizar no económico. Para tal, havia pois que aprofundar os
conhecimentos económicos, seja por forma a ter uma percepção correcta
da ordem económica existente e da sua evolução, seja para construir em
bases sólidas um programa de efectiva melhoria dessa mesma ordem.
Ora, do ponto de vista das ideias económicas, julgo que há um acordo
generalizado sobre o facto de que António Sérgio se notabilizou funda-
mentalmente pela defesa publica de duas teses. A primeira diz respeito à
existência de duas grandes orientações de política económica que teriam
ditado a sorte dos povos a partir do século XVII – uma dita de fixação e
outra de transporte. Quando prosseguida a primeira, ter-se-ia assistido
a um processo de desenvolvimento económico e social; quando se optou

1
Veja-se COSTA, Fernando Ferreira da. Doutrinadores cooperativistas portugueses. Lisboa:
Horizonte Universitário, 1978.
2
SÉRGIO, António. Ensaios, t. VIII. Lisboa: Guimarães Editores, 1958, p. 191 (itálico no
original).
3
Ibidem, pp. 192 e 194.
António Almodovar 313

pela segunda, os países estagnaram e ter-se-ia instalado uma situação de


atraso. Esta primeira tese é obviamente uma simplificação, um instru-
mento conceptual útil que permitiria a António Sérgio poder vir a chamar
a atenção para um vasto conjunto de factores cuja presença explicava os
processos de desenvolvimento bem sucedidos, e cuja ausência explicava
as situações de atraso e de bloqueio económico, político e social. É, assim,
uma tese relativa ao desenvolvimento histórico da ordem económica do
capitalismo. A segunda tese diz respeito às virtudes do cooperativismo,
sendo este apresentado não como uma prática destinada a minorar algumas
das dificuldades económicas das classes operárias, mas antes como um
modelo de organização económica e social susceptível de vir a substituir
de forma gradual e vantajosa o modelo de organização capitalista. Uma vez
que é atribuída essa dimensão ao cooperativismo, compreende-se que se
trata de uma tese complementar da primeira, agora sobre a construção de
um futuro visto como possível e desejável.
É, portanto, a partir destas duas teses que António Sérgio estrutura
a sua doutrinação económica, desenvolvendo-as em vários momentos da
sua vasta obra, e utilizando-as de forma persistente para tentar corrigir e
esclarecer a forma como se reflectia sobre a realidade portuguesa, parti-
cularmente no âmbito da sua família socialista.

A teoria do capitalismo e do socialismo


Uma forma expedita de ilustrar a forma como esse trabalho foi feito
consiste em continuar a acompanhar o longo prefácio que António Sérgio
fez para a reedição do Portugal e o Socialismo e da Teoria do Socialismo, de
Oliveira Martins.
Neste texto, a tese relativa ao desenvolvimento histórico da ordem
económica do capitalismo é explicada em dois passos. O primeiro passo
consiste em chamar a atenção para o facto de que “nos cumpre não repelir
a ideia de que o capitalismo é evolutivo por natureza própria; a de que ele é
‘uma série de revoluções no modo de produção’, pelos termos com que se
exprime um manifesto célebre”4. Em segundo lugar, surge a preocupação
de especificar claramente em que reside na realidade o elemento dinâmico
e progressivo do capitalismo:

“Sem dúvida, o mais eficaz acicate dessa evolução do regime não é pro-
priamente o que possui capitais, o detentor do dinheiro, o que dá o nome
ao sistema, senão que sim a personagem do inovador crematístico; não

Ibidem, p. 198.
4
314 A doutrinação económica em António Sérgio − algumas notas de leitura

o comum empresário, mas o que verdadeiramente inova. Labutam no


regime social capitalista os meros exploradores desta estrutura económica,
os simples empresários, palmilheiros por veredas que estão já traçadas;
mas aparecem também, ademais desses homens, os pioneiros inventores
de soluções inéditas (de processos mais baratos, de melhores métodos
de venda, de qualquer novo artefacto), descobridores audazes do que se
pode chamar sobrelucros, − ou «extra-rendimento», pelo modo de falar
de Martins”5.

Quanto à segunda tese, relativa agora à determinação de um futuro


desejável para a ordem económica capitalista, dá igualmente lugar a uma
exposição feita em duas etapas. Na primeira etapa, que me parece decisiva
do ponto de vista do próprio autor, António Sérgio cuida de demarcar-se
daqueles que utilizavam um argumentário baseado em razões “naturalistas”
e “mecânicas” para anunciar uma inevitável evolução do capitalismo para
uma forma de organização socialista:
“Digo que o socialista rigorosamente idealista (o de norma moral que é
imanente à consciência, racionalista e apriórico) não ataca o capitalismo
porque traz o declínio em si próprio, mas somente por um ditame da sua
consciência ética, por um juízo da razão que é teórica e que é prática; não
fundamentado no que ele comprova que é, mas naquilo que pensa que
deveria ser. (…) Seria sempre socialista, pois, ainda que no sistema do
liberalismo económico não houvesse essas crises e esses choques íntimos,
que se assegura levarem-no por uma feição automática a uma «crise
final» que virá a ser decisória e de onde um bem imarcescível há-de florir
para o Mundo”6.

Para António Sérgio, a opção pelo socialismo deveria ser necessaria-


mente o resultado de uma verdadeira escolha, inspirada por um desejo de
“esclarecimento intelectual do povo, com dignidade para as almas, com
libertação do espírito”7, e devidamente estribado numa reflexão filosófica
autêntica.
Esta declaração de princípios, que indicia claramente a prioridade da
reflexão filosófica sobre a doutrinação económica, é subsequentemente
confirmada:

“A ciência procura a intelecção do que é, ou a dedução de consequências


de postulados prévios: não pode apontar-nos o que deve-ser. Um regime

5
Ibidem, p. 199.
6
Ibidem, pp. 202-203, itálico no original.
7
Ibidem, p. 238.
António Almodovar 315

de economia, para o estudioso social, representa o papel de um postulado


prévio. Aí, a ponderação e escolha do postulado prévio é um acto da alçada
do moralista político: cai fora da competência do investigador científico. Ao
que me quer parecer, a economia política dos defensores do capitalismo é
a ciência do funcionamento de um certo regime de economia, que é aquele
que adopta por postulado básico os intangíveis «direitos da propriedade»,
com a consequente «exploração do homem pelo homem»; e a economia
social dos preconizadores do socialismo é a ciência do funcionamento de
um outro regime de economia, que é o que toma por postulado o direito
de todos a um nível mínimo de vida humana, − desoprimida e culta. Com
objectos ou assuntos que são bem diversos, tanto ciência é uma como é
ciência a outra”8.

Uma vez esclarecido este primeiro aspecto, e estando, portanto, expli-


cada a opção pelo socialismo, faltava agora justificar o porquê da opção pelo
cooperativismo. Uma vez mais, este texto que temos vindo a acompanhar
oferece-nos uma resposta detalhada a este problema, ao enumerar as van-
tagens que o autor encontrava na via do socialismo cooperativista quando
comparado com outras vias de alcançar o socialismo:
“Em quanto concerne à revolução económica, o método político é o de
substituir destruindo: é o do apossar-se do Estado, ou por eleição ou por
armas; e, uma vez empolgada a grande máquina do Estado, nacionalizar
as empresas industriais e a terra, aniquilando o capitalismo por uma
legislação conveniente, apoiada na força de quem está no mando. Por outra
banda, o método económico − ou seja o cooperativista − segue o caminho
de destruir substituindo: criar cooperativas na matriz do capitalismo,
desenvolvê-las e federá-las progressivamente, para fazerem a produção
segundo um plano, − e absorverem por fim dentro do seu próprio âmbito
a imensíssima maioria de toda a produtividade de um povo”9.

O raciocínio seguido é pois passível de ser resumido desta forma: o


capitalismo, de inspiração liberal, tem a virtude de ser uma ordem dinâmica
que permitiu indiscutivelmente o progresso da humanidade, nomeada-
mente porque criou um espaço de liberdade onde a figura do inovador se
desenvolveu. Porém, os postulados de base desse mesmo capitalismo não
deram a importância devida ao direito de todos a um nível mínimo de vida
humana. Daí a necessidade sentida por alguns que, tal como António Sérgio,
entendiam ser possível e desejável avançar para uma organização socialista

Ibidem, p. 207, itálico no original.


8

Ibidem, p. 256.
9
316 A doutrinação económica em António Sérgio − algumas notas de leitura

mais perfeita. E, a este nível, o cooperativismo aparecia como a melhor via


para alcançar a desejada ascensão moral de todos − uma via construtiva, de
genuína auto-ascensão, feita de uma forma pacífica e gradual.

Portugal, o capitalismo e o socialismo


O conjunto de citações que escolhemos para ilustrar o ponto anterior
destacam fundamentalmente os aspectos gerais das duas grandes teses de
António Sérgio sobre o capitalismo e o socialismo. Por isso, correspondem
apenas a uma das fases do processo de intermediação doutrinal, concreta-
mente àquela que diz respeito à escolha de um conjunto de ideias de autores
estrangeiros para discussão − e que no caso do texto que acompanhámos
inclui referências explícitas às ideias de Marx, Proudhon, Hegel, Lassalle,
Platão, Owen, Ricardo, Say, Du Pont de Nemours, De Bonald, Carlyle e
Ruskin. Importa agora completar a nossa análise, verificando a forma como
essas teses gerais foram aplicadas à análise do caso português.
Neste plano, a primeira questão que importava esclarecer era o porquê
do atraso do capitalismo português. Essa explicação é dada através de
uma chamada de atenção para a ausência entre nós do factor dinâmico
fundamental desse tipo de ordem económica:

“O mal do constitucionalismo português não foi o de introduzir o libera-


lismo económico (o que era fase necessária do nosso processo histórico,
onde a parte de Mousinho é de fulgor sem par), mas sim o de nos trazer
uma estrutura liberalista em que teve de predominar o capitalista pas-
sivo, − esterilizador, parasita, − com ausência da mentalidade do capita-
lista empresário, criador de riqueza (e portanto também da do inovador
crematístico): um capitalismo caracterizado pelo ocioso rentista, pelo
intermediário pantagruélico, pelo vampirismo do agiota, pelas aventuras
corruptoras dos jogadores na Bolsa, esquecendo Martins que desse desvio
da rota tinha culpa o ambiente da tradição histórica, − a força de inércia,
em suma, a orientação de espírito daquele antigo regime, que se pretendeu
cassar, sustentado pelas Índias e logo depois pelo Brasil”10.

Essa ausência, que como se pode ver é explicada pela longa prevalência
de um ambiente mental malsão e muito difícil de erradicar, coloca obvia-
mente problemas de difícil resolução11. Como proceder a uma mudança de

10
Ibidem, p. 229.
11
Recorde-se que António Sérgio já havia referido detalhadamente os esforços análogos −
e igualmente frustrados − desenvolvidos por um conjunto de economistas portugueses
do Setecentos. Ver SÉRGIO, António. Antologia dos economistas portugueses. Século XVII.
António Almodovar 317

mentalidades? Onde encontrar os apoios necessários para promover essa


mudança necessária?
A resposta a estas questões é aqui dada fazendo um paralelo implícito
entre a situação vivida por Antero de Quental e Oliveira Martins e a que o
próprio António Sérgio continuava a ter que enfrentar:

“De que maneira prática (através de que gentes) reagir contra o capitalismo
no Portugal do tempo? Antero de Quental esperou sempre a reforma da
acção moral da classe operária: mas quando existiria nesta nossa terra uma
classe operária preparada para ela? Parece que o corolário que tal situação
implicava era pois o de limitar a aspiração socialista a uma tarefa de edu-
cação da nossa gente obreira, desistindo ele de assistir (o Martins, digo
eu) ao espectáculo da realização da sua própria ideia. «Mal dos políticos
ao mesmo tempo apóstolos!», como pronunciou noutro livro (História
de Portugal, I, 2, 1); «mal dos apóstolos ao mesmo tempo políticos!»,
poderia também ter pensado”12.

Repare-se que esta conclusão se aplica quer a um programa de reforma


e melhoria da mentalidade capitalista existente entre nós, quer a um
programa de verdadeira revolução das mentalidades, destinado a instilar
a revolucionária ideia do socialismo cooperativista. A solução para o atraso
nacional seria pois a mesma em qualquer dos casos: na ausência de uma
mentalidade adequada nas gerações presentes, a única esperança passaria
inevitavelmente pela educação das gerações vindouras.
Entronca aqui, portanto, o manancial de preocupações e de iniciativas
pedagógicas características de António Sérgio, preocupações essas que,
no fundo, vão moldar de forma bastante sensível a sua forma pessoal de
intermediação doutrinal. O seu trabalho seria então fundamentalmente o de

“Pensar com clareza e catequizar tenazmente, realizando a tarefa da


educação dos espíritos, que prepare as veredas aos reformadores futuros.
Mas catequizar que pessoas? Catequizar a juventude que frequenta as
escolas e os obreiros que constituem o genuíno escol popular, quer dizer:
os trabalhadores capazes de encaminhar os outros pela obra quotidiana de
criação positiva, nos sindicatos operários e nas associações de consumo”13.

Lisboa: Publicações da Biblioteca Nacional, 1924. Ver igualmente SÉRGIO, António.


Ensaios, t. II. 2.ª edição. Lisboa: Publicações Europa-América, 1957, pp. 87-122.
12
Idem, Ensaios, t. VIII, p. 226.
13
Ibidem, p. 245.
318 A doutrinação económica em António Sérgio − algumas notas de leitura

Esta dependência que é assumida em relação às gerações futuras teve,


ao que julgamos, a consequência de levar António Sérgio a relegar para um
segundo plano o enunciado de todo o conjunto de reformas que poderiam
ser feitas ao capitalismo português14, apostando preferencialmente na
divulgação da via revolucionária que deveria vir a ser prosseguida por
essas mesmas gerações vindouras. É, portanto, esta aposta no futuro
que leva a que a doutrinação cooperativa – onde avultava a importância
do cooperativismo de consumo15 − ganhe um crescente destaque na sua
doutrinação económica.
Para além disso, parece igualmente claro que António Sérgio acredi-
tava que a via cooperativa era particularmente apropriada para conseguir
ultrapassar vários dos bloqueios característicos da sociedade portuguesa:

“A acção cooperativa dos consumidores associados começa desde logo


a fazer socialismo, sem ter que esperar por intervenções políticas, no
ambiente do capitalismo e fora do Estado, por livre iniciativa dos coope-
radores, − e por isso mesmo de maneira pacífica, essencialmente criadora,
experimentalista e provida (…). O método da cooperativa, por outro lado,
é um processo pedagógico por excelência, porque pede a colaboração dos
que beneficiam dela. O cooperador contribui para o seu próprio bem em
todos os seus actos a favor do próximo, abolindo toda espécie de com-
petição económica, de lutas de classes: porque destrói pela raiz todas as
distinções de classe. Não espera que o beneficie um senhor governante,
um Estado-providência, um esforço alheio. Se o vício principal do regime
capitalista é o que pode chamar-se a «alienação do homem», cumpre que
não vamos para outra ordem económica em que se dê igualmente uma
alienação das pessoas. E não a há no método dos consumidores associados.
Pelo contrário: é o todo que se estriba na exaltação das almas, na libertação
perfeita. O cooperativismo é um movimento de ascensão moral, de retoma
social, que se serve, como instrumento, das necessidades económicas dos
homens”16.

14
Ainda assim, António Sérgio foi dando um apoio − pontual e selectivo − a algumas
propostas contemporâneas de índole reformista. Veja-se, por exemplo, as referên-
cias ao pensamento económico de Ezequiel de Campos e de Basílio Teles em Sérgio
(SÉRGIO, António. Ensaios, t. II, pp. 116-121). Veja-se igualmente a recensão do livro
Para a Ressurreição de Lázaro, de Ezequiel de Campos, incluída em Idem. Ensaios, t. III.
3.ª edição. Lisboa: Livraria Sá da Costa Editora, pp. 203-214.
15
Sobre as várias modalidades de cooperativismo e respectiva hierarquia no pensamento
deste autor, veja-se SÉRGIO, António (org.). O cooperativismo. Objectivos e modalidades.
Lisboa: Edição do Autor, s.d., pp. VII-XLI.
16
Idem, Ensaios, t. VIII, pp. 255-256.
António Almodovar 319

Faça-se uma inventariação sumária das dificuldades encontradas


pelos reformistas portugueses: alegadamente, todos esbarraram na falta
de apoio − quer do Estado quer da sociedade civil − para as medidas que
propunham. Ora, o cooperativismo não necessitava, para poder começar
a ser praticado, de um apoio político e social significativo. De facto, podia
ser posto em prática muito rapidamente, através da acção de um número
relativamente reduzido de indivíduos, por uma elite de pioneiros. Estes
serviriam de exemplos para os restantes, desempenhando assim uma função
pedagógica fundamental, ensinando pela prática e pelo exemplo o caminho
para a ascensão moral das massas, nelas desenvolvendo o espírito de auto-
governo. Outro obstáculo de monta era também a mentalidade do “ocioso
rentista”, do “intermediário pantagruélico”, do “vampirismo do agiota”.
Também aqui o cooperativismo permitia a implantação de uma alternativa
imediata, nomeadamente porque no seu seio se premiava o trabalho e a
iniciativa individual ao mesmo tempo que exigia o desenvolvimento de
laços fraternais entre os participantes. Com o desenvolvimento gradual
da mentalidade própria ao cooperativismo, erradicar-se-iam gradualmente
os vícios da mentalidade tradicional, sem ter necessidade de os afrontar
directamente. Tudo somado, chegava-se então à conclusão de que o coope-
rativismo, quer enquanto ideário de uma nova ordem económica e social,
quer enquanto método de mudança, tinha por si as enormes vantagens de
ser pacífico, democrático, e exequível no imediato.

Notas finais
Para podermos dar por concluída a análise a que nos propusemos neste
ensaio, falta-nos apenas responder à questão que colocámos no início:
tendo presentes as grandes linhas da doutrinação económica prosseguida
por António Sérgio, e tendo igualmente presente a forma como este autor
actuou enquanto intermediário entre o pensamento económico estrangeiro e
a realidade portuguesa, há ou não lugar a que se possa falar de originalidade?
A resposta − que desde já se adianta que é pela afirmativa − merece
ser justificada.
O que pretendemos determinar não é a originalidade deste autor no
plano internacional, mas sim e tão-somente no plano que lhe atribuímos,
de intermediário doutrinal. Se olharmos para as duas grandes teses que
estruturaram essa doutrinação, devemos ter presente que a primeira
delas – as duas políticas económicas – corresponde, no fundo, a uma
glosa da ideia de que o desenvolvimento requer que se invista (capitais,
trabalho) em actividades que permitam um aumento regular do produto
320 A doutrinação económica em António Sérgio − algumas notas de leitura

anual. O capitalismo bem sucedido é isso que faz, sendo esse processo de
investimento regular (e rotineiro) particularmente bem sucedido quando
estimulado pelo surgimento de inovações. Estas ideias estão presentes
nos fisiocratas e nos economistas clássicos, tendo Jean-Baptiste Say sido
um dos autores que se destacaram no elogio do papel desempenhado pelos
empresários inovadores. Ora, o facto é que qualquer destas ideias já tinha
sido previamente difundida entre nós. E outro tanto se pode dizer quanto à
tese relativa ao cooperativismo, cujos doutrinários portugueses anteriores
a António Sérgio são fáceis de identificar.
O que de facto é original, peculiar, na sua obra de doutrinação econó-
mica é a forma como retoma esses temas. Refiro-me concretamente não
a uma questão de estilo pessoal, mas sim à atenção e ao rigor que António
Sérgio procura dar à fundamentação filosófica das doutrinas económicas
que difunde. Essa preocupação é claramente visível nas críticas que dirige
a Oliveira Martins (e aos autores em que este se inspirou) ao longo do texto
que tivemos ocasião de utilizar. Mas essa preocupação também é facilmente
identificável se atentarmos na aparente facilidade com que António Sérgio
conseguiu articular de forma coerente a sua mensagem doutrinal ao longo
de uma extensa obra: a forma como as virtudes e os males do capitalismo
são identificados é coerente com os remédios socialistas que são propostos;
a preocupação pedagógica, a importância da difusão de ideias é coerente
com a importância atribuída às mentalidades e à consequente aposta na
educação das gerações vindouras; a liberdade e o auto-governo são com-
patíveis com a criatividade e a mudança.
A originalidade de António Sérgio reside pois no filtro filosófico que
utilizou para seleccionar as ideias económicas, escolhendo aquelas que
eram susceptíveis de se ajustar e de servir a uma matriz filosófica de base.
Foi esse o seu critério de leitura, e foi assim que entreteceu e transmitiu,
entre nós, um conjunto de ideias retiradas dos economistas clássicos e
socialistas, cuidando de lhes criticar os “desvios naturalistas”. Foi esse
também o critério com que retomou os ideais cooperativistas, cuidando de
lhes especificar um sentido revolucionário preciso através da atribuição de
uma dimensão inequivocamente idealista – voluntária, criativa, pacífica,
e democrática − de ultrapassagem da ordem económica capitalista.
O idealismo de António
Sérgio: Sobre algumas considerações
cartesiano-espinosistas
ROMANA VALENTE PINHO
Universidade Federal de Uberlândia
Centro de Filosofia da Universidade de Lisboa

É a dúvida metódica, camaradas e amigos, a primeira das lições a tomar do Descartes. Ora,
o propagandista, por definição do género, tende a não duvidar de coisa alguma. Não vos
esqueçais de que o labor filosófico, antes de constar de uma discussão de teses; antes de nos
dar uma investigação de problemas, antes de consistir numa apresentação de doutrinas –, é
uma atitude e uma disciplina do espírito. E qual disciplina? – A disciplina crítica. A filosofia é
uma ascese; e não fará obra de divulgação filosófica – mas sim de divulgação antifilosófica –
quem não se empenhe em responder à dúvida por meio de uma exposição explicativa e crítica.
Propaganda é uma coisa; filosofia é outra.
António Sérgio, Cartesianismo Ideal e Cartesianismo Real.

Tem-se difundido amiúde que António Sérgio é medularmente carte-


siano. Todavia, concordar com tal afirmação implica analisar em que aspecto
o ensaísta o é, já que a maioria do seu pensamento filosófico não coincide
com o do filosófo francês. No entanto, poder-se-á afirmar que Sérgio, em
absoluto, é metodicamente cartesiano.
Não temos muitas dúvidas de que, desde os primeiros textos filosóficos,
datados de 1909, até aos últimos que escreveu na sua vida, a grande meta
de António Sérgio fosse a disciplina crítica. E dizêmo-lo com esta convicção
não só porque, em muitos dos escritos, o ensaísta sublinha tal objectivo
de uma forma veemente, mas também porque, na grande maioria dos
casos, o que Sérgio realmente faz, mais do que tecer um sistema filosófico,
é autoprovocar-se criticamente e incitar os seus leitores a criticarem e a
duvidarem.
É num texto publicado na revista Seara Nova, no ano de 1937, que
António Sérgio destrinça o cartesianismo real daquilo que considera o
seu cartesianismo ideal. Tal conceituação fa-lo-á aprofundar a sua visão
do idealismo que, há muito, vinha já sendo estruturada. Em Cartesianismo
Ideal e Cartesianismo Real, António Sérgio não se limita, portanto, somente a
322 O idealismo de António Sérgio

diferenciar cartesianismo, platonismo ou kantismo ideal de cartesianismo,


platonismo ou kantismo real, estabelece outrossim todas as linhas que
tecem a sua proposta idealista e criticista.
Além da metodologia cartesiana, reconhecemos na obra de Sérgio a
herança de um idealismo proposto por Descartes no século XVII, embora
livre e voluntariamente adaptado pelo director da Seara Nova. Nesse aspecto,
António Sérgio é idealmente mais cartesiano do que o próprio Descartes, no
entanto, e por outro lado, a leitura facciosa que o nosso autor faz do filósofo
seiscentista, enaltecendo determinados conceitos, desprezando outros com
os quais não concorda e propondo hermenêuticas paralelas, fazem dele
um intérprete arguto, astuto e peculiar. Segundo a perspectiva sergiana,
Renée Descartes foi propositadamente obscuro, ambíguo e infiel ao seu
próprio pensamento em muitos excertos das suas obras com o objectivo
de se mascarar e fugir das ameaças da Inquisição. O trabalho, ao fim e ao
cabo, que Sérgio se propõe fazer, é ler nas entrelinhas e sistematizar a
base do pensamento cartesiano com o sentido de detectar incoerências e
ambiguidades. Avisa, porém, de antemão e contraria muitos daqueles que
criticaram a falência e a nebulosidade do sistema cartesiano, que Descartes
sabia tudo1, ou seja, que

“enxergou a pleno (se não digo asneira) certas ideias que se concluíam das
características fundamentais da sua obra; mas… Mas não lhe convinha,
evidentemente, revelar que as via; e o que nos deu, segundo imagino, foi
uma mistura do cartesianismo ideal com umas tantas crenças tradicionais
e rígidas que se achavam nas bases da teologia católica”2.

A leitura que António Sérgio propõe, então, nas páginas de Cartesianismo


Ideal e Cartesianismo Real reflecte um Descartes ideal, limpo das impurezas
históricas que, por vezes, maculam a obra filosófica de um autor; um
cientista revolucionário; e um crítico atroz do sistema aristotélico. Ora,
seguindo estes parâmetros, António Sérgio não é medularmente cartesiano,
é, por sua vez, ideal e metodicamente cartesiano.
A admiração que o ideólogo dos Ensaios sentia pelo filósofo seiscentista
francês sustentava-se, acima de tudo, no facto de Descartes ter promovido
uma verdadeira reforma na Filosofia. Para além de ter colocado em causa
a debilidade do sistema aristotélico quer no campo da Física e da Ciência

1
Cf. SÉRGIO, António. Cartesianismo Ideal e Cartesianismo Real. In: ______. Notas
sobre Antero, Cartas de Problemática e outros textos filosóficos. Lisboa: Imprensa Nacional-
Casa da Moeda, 2001, p. 188.
2
Ibidem, pp. 188-189.
Romana Valente Pinho 323

como um todo, quer na sua relação com a teologia católica (aristotelismo e


tomismo tinham-se aliado há muito), segundo Sérgio, o autor de O Discurso
do Método realizou uma verdadeira reformação filosófica. O que significava
dar uma atenção a Platão como nunca antes havia sido dada e contestar a
sedimentação que a ciência aristotélica havia construído. Uma das principais
propostas que Descartes faz neste âmbito, diz respeito, tal como Sérgio tão
eficazmente relembra, à apologia de uma filosofia espiritualista, geométrica
e matemática, lançando um novo olhar sobre a tradição filosófica que, à
sua época, estava instituída.
A partir do momento em que António Sérgio faz a apologia do car-
tesianismo ideal em detrimento de um certo cartesianismo real, o autor
coloca em questão alguns dos principais conceitos cartesianos, a saber: res
cogitans, res extensa, matéria ou imaginação, por exemplo.
A bem da verdade, quando o autor dos Ensaios sustenta a superioridade
do seu cartesianismo ideal face ao cartesianismo real ou de direito, está
a contestar um conjunto de ideias que Descartes difundiu e que, tomadas
em absoluto, não implicam directa e objectivamente a defesa de um car-
tesianismo de facto. Só é possível postular um cartesianismo ideal depois
de Espinosa, Malebranche e Huyghens, por exemplo, terem concebido
uma metafísica idealista. Ou seja, o cartesianismo de Sérgio é, pois, neste
sentido, um cartesianismo essencialmente espinosista e malebranchista.
Ou, em duas palavras, idealista e metafísico. Só por esse motivo, aliás, é
que se compreende que, a partir das teses de Renée Descartes, e levantando
a bandeira de uma idealismo cartesiano, o nosso autor proponha a edifi-
cação de uma ciência física baseada na Geometria e arredada, portanto,
da intuição sensível e do figurativismo. Na concepção de Sérgio, o filósofo
francês tinha o objectivo de transformar a Física em Geometria e esta,
por sua vez, em Matemática pura, em ciência do espaço inteligível e uno,
liberta de quaisquer influências sensoriais, imaginativas e figurativas.
No entanto, e realmente, estas inferências não procedem de uma leitura
imediata das teses cartesianas, até porque, como é sabido, as hipóteses
físicas que Descartes sugere são de natureza imaginativa e figurativa, na
medida em que são visionáveis e promanam da impressão sensível.
Não obstante o autor de O Discurso do Método tivesse tido a intenção
de reduzir a Física à Geometria (“toute ma physique n’est autre chose que
géométrie”), o certo é que a Geometria a que ele se refere não é de natureza
algébrica ou matematicamente pura, tal como Sérgio gostaria. A Geome-
tria cartesiana ainda é de índole figurativa e imaginativa, não é extensão
puramente mental. A defesa desta concepção leva-nos a crer que, para
324 O idealismo de António Sérgio

além de Descartes ter objectivado estabelecer uma clareza tanto para o


intelecto como para a intuição sensível, tanto para a res cogitans como para
a res extensa, visou igualmente fundir elementos contrários. Se, a priori, o
filósofo francês alerta para o perigo de se confiar plenamente na intuição
sensível, nos dados que nos chegam por meio dos sentidos, se constata a
vulnerabilidade dos corpos, por outro lado, acredita que, após um exame
efectuado pelo intelecto e dissipadas todas as dúvidas, os sentidos podem
ser úteis para o conhecimento verdadeiro, assim como o corpo, por mais
perecível e deteriorável que seja, está unido ao espírito (elemento que o
orienta e conduz) por via da glândula pineal. Afinal, por mais elementar-
mente diversos que sejam, corpo e alma estão reunidos num só ponto,
fazendo com que ambos se misturem, com que cada um, em específico, se
torne fundamental para o outro.
Partindo desse princípio, o cartesianismo de facto não convence o
Sérgio que escreve, em 1937, o artigo Cartesianismo Ideal e Cartesianismo Real.
Todavia, poderia ter convencido o Sérgio que, vinte e oito anos antes, em
Notas sobre os Sonetos e as Tendências Gerais da Filosofia de Antero de Quental,
escrevera

“Separar o sentimento da inteligência ou o facto da ideia, é uma ilusão na


vida e um erro na especulação. O próprio trabalho científico pressupõe
um amor e um ideal, ainda que mascarado ou inconsciente. Fazer ciência
não é só especular, mas sentir, actuar, produzir”3;

Ou o Sérgio de Educação e Filosofia, quando assentara que


“doutrina intelectualista, talvez, a que vos proponho nestas páginas; [mas
de um intelectualismo que vê no intelecto, não a faculdade de abstrair e o
depositário das ideias gerais, mas sim o construtor do Universo concreto,
pelas relações inteligíveis que ele próprio cria;] e se me opuserdes a ela
o sentimento e o instinto, respondo-vos que a Razão, por sua vez, é um
sentimento e um instinto [, também criadora e também intuitiva (…)]”4.

Em 1909 e em 1920, portanto, o cartesianismo real convenceria inteira-


mente António Sérgio. Só o amadurecimento intelectual do autor, sobretudo
uma leitura mais detalhada de Espinosa e Malebranche, conduzi-lo-á a

3
Idem. Notas sobre os Sonetos e as Tendências Gerais da Filosofia, de Antero de Quental.
In: ______. Notas sobre Antero, Cartas de Problemática e outros textos filosóficos, p. 142.
4
Idem. Educação e Filosofia (Princípios de uma Pedagogia Qualitativa de Acção Social
e Racional). In: ______. Ensaios, t. I. 3.ª ed. Edição crítica de Castelo Branco Chaves,
Vitorino Magalhães Godinho, Rui Grácio e Joel Serrão; org. Idalina Sá da Costa e
Augusto Abelaira. Lisboa: Livraria Sá da Costa, 1980, p. 140.
Romana Valente Pinho 325

postular um cartesianismo ideal que, em lato senso, assentará numa reunião


entre os aspectos idealistas de Descartes e os pontos fulcrais da metafísica
espinosista e malebranchista.
O que realmente interessa a António Sérgio é o modelo científico, revo-
lucionário5 e sapiencial em que Renée Descartes se constitui. Isto é, importa-
lhe a sua metodologia gnosiológica e o seu potencial idealismo. No fundo,
interessa-lhe o Descartes arquetipal. Tal como lhe interessará o Espinosa e o
Malebranche arquetipais. Até porque a sua proposta se baseia precisamente no
que, em potência, estes autores comportam em termos metafísicos e idealistas.
O Descartes que Sérgio reverencia é o Descartes da Ideia, o Descartes
do Cogito. Ou seja, o cogito ergo sum, na sua opinião, é mais do que, tal como
estabelece Antero de Quental, a carta de alforria da inteligência moderna6,
é, igualmente, o modelo mais acertado das teorias gnosiológicas. Por um
lado porque se fixa a unidade e a autonomia do princípio pensante, por
outro porque se associa pensar e ser, pensar e existir. É o cogito que implica
a existência, é a partir do cogito que se define o ser. Ora, esta identificação
com o cogito cartesiano não implica, para o pensamento e para o projecto
educativo e cultural de António Sérgio, nenhum desvirtuamento. Muito
pelo contrário. A defesa de uma metodologia cartesiana pode abarcar a
apologia de uma filosofia puramente intelectualista. E, no caso da pro-
posta sergiana, tal é possível. A bem da verdade, a aplicação, por parte de
Sérgio, de uma metodologia que se baseia na dúvida metódica, na crítica
e na explicação filosófica dialoga com a doutrina do cogito ergo sum, com a
explanação de uma filosofia de viés idealista. Para além disso, assenta como
uma luva no projecto sergiano como um todo. A sua intenção de formar
uma sociedade mais consciente, mais livre, mais autónoma e mais crítica
passa, absolutamente, por assumir as principais coordenadas do idealismo
cartesiano: através do bom uso do intelecto, da Razão (na medida em que
estes são tão-só dinamismos inventores e criadores), poder-se-á edificar
uma sociedade e uma elite político-social mais responsável moralmente.
Neste sentido, não podemos dissociar, na obra de António Sérgio, as suas
intenções filosóficas das suas intenções morais. Elas estão estritamente
relacionadas. Como, aliás, também estavam no corpus filosófico do seu
Mestre Renée Descartes.

5
António Sérgio escreve até, possivelmente identificando-se com a figura de Descartes
em alguns aspectos, que “se sou revolucionário, é por ser idealista”. Idem. Prefácio
da Segunda Edição. In: ______, Ensaios, t. I, p. 44).
6
Cf. idem, Notas sobre os Sonetos e As Tendências Gerais da Filosofia, de Antero de Quental,
p. 123.
326 O idealismo de António Sérgio

Em uma só palavra, o que une Sérgio a Descartes é a metodologia.


A obra magna de Espinosa foi uma das primeiras de cariz filosófico que
o nosso autor leu (com apenas 18 anos) e que, por consequência, o despertou
para a descoberta da tradição da Filosofia Ocidental. Como o próprio afirma,
depois da Ética, leu “sem método Descartes, Pascal, Leibniz, Berkeley, Kant,
Schopenhauer, Comte, Taine, Stuart Mill, Spencer, Guyau, Fouillée”7. Ora,
esse primeiro contacto com os escritos de Espinosa, não só será fundamental
para o alicerce intelectual de Sérgio, como para a interpretação que fará do
pensamento deste filósofo. Espinosa instigará intelectual e metafisicamente
o pensador português. Aliás, são as leituras sistemáticas da obra daquele
autor que clarificam e condicionam a interpretação final que António Sérgio
fará de um Platão ou de um Descartes, por exemplo. Espinosa é, no nosso
entender, uma chave nodal para a interpretação de todo o corpus literário
do autor dos Ensaios.
Em Considerações sobre o Problema da Cultura, António Sérgio escreve
que foi a Espinosa quem “coube erigir nos modernos tempos o primeiro
exemplar de um pensar metafísico suficientemente fiel à mentalidade
europeia, isto é, à mentalidade racionalista que definiu a Europa”8. Esta
citação revela que, apesar da importância que Descartes teve para a evolução
do pensamento científico da modernidade, o filósofo seiscentista francês
não se emancipou a ponto de desbravar o seu potencial idealismo e de se
libertar do realismo e do substancialismo escolásticos. Para além disto,
quer Sérgio dizer ainda que a mentalidade racionalista que caracteriza a
mentalidade europeia e, especificamente, a mentalidade de Espinosa, é
uma mentalidade metafísica. Para tal contribui a proposta de um noção de
substância que se revela inédita e particularmente abrangente, sobretudo
depois do que Descartes, tempos antes, havia sugerido a esse respeito.
O que interessa, portanto, a António Sérgio, a partir da leitura de
Espinosa, é a ideia de uma substância9 não corpórea, livre das qualidades

7
Idem. Autobiografia inédita de António Sérgio [Livre D’Or do Instituto Jean-Jacques
Rousseau, Genève, 1915]. Recuperado por Daniel Hameline e António Nóvoa. Revista
Crítica de Ciências Sociais, n.º 20, Fevereiro de 1990, p. 15: “Je lis alors (19-26 ans) sans
méthode Descartes, Pascal, Leibniz, Berkeley, Kant, Schopenhauer, Comte, Taine,
Stuart Mill, Spencer, Guyau, Fouillée”.
8
Idem. Considerações Sobre o Problema de Cultura. In: ______. Ensaios, t. III. 2.ª ed.
Edição crítica de Castelo Branco Chaves, Vitorino Magalhães Godinho, Rui Grácio e
Joel Serrão; org. Idalina Sá da Costa e Augusto Abelaira, Lisboa: Livraria Sá da Costa,
1980, p. 50.
9
ESPINOSA, Baruch de. Éthique, vol. I, I, def. III, trad. Charles Appuhn, Paris: Éditions
Garnier Frères, s.d, p. 19 (ESPINOSA, Bento de. Ética. Trad. Joaquim de Carvalho,
Romana Valente Pinho 327

sensíveis, e que tem a capacidade de se expressar una, infinita, indivisível


e universalmente10. E desenganemo-nos se pensamos que a denominação
de tal substância enquanto Natureza ou Deus11 incomoda a sensibilidade
sergiana. Até porque, se outras premissas não existissem, talvez bastasse
para convencê-lo aquela que afirma: “Deus é uma coisa pensante”12. Ora,
para além deste postulado, existe ainda aquele outro que sustenta que “Deus
é uma coisa extensa”13. Ambos permitem, assim, que Sérgio conclua que as
teses espinosistas se caracterizam por uma radicalidade de tal ordem que
é capaz de abalar a herança aristotélico-tomista e fomentar o idealismo
cartesiano. Afinal, é do primado da Ideia que se trata e também, como o
nosso autor tão bem observa, de uma dialéctica que nos permite “subir
dos sentidos à razão, da razão à intuição, – do primeiro ao segundo e ao
terceiro género do conhecimento, – e atingir assim a ideia do Pensamento
universal, infinito, absoluto”14. É nesse sentido, igualmente, que António
Sérgio constata que a compreensão das coisas nos aproxima da compreensão
de Deus15.
É a partir destas premissas que António Sérgio se entusiasma pelo
pensamento de Espinosa, afinal, o que está em causa, tendo como meio
a matemática e a geometria puras, é o alcance do ser supremo, isto é, da
substância que tudo une, unifica e explica. No fim de contas, no entender
de Sérgio, o autor da Ética está a referir-se, ainda que por outras palavras,
ao Pensamento universal e eterno, ao seu Uno unificante. São argumentos

Lisboa: Relógio D’Água Editores, 1992, p. 100: “Por substância entendo o que existe
em si e por si mesmo é concebido, isto é, aquilo cujo conceito não carece do conceito
de outra coisa do qual deva ser formado”).
10
Ibidem, I, prop. VIII, p. 27 (trad. portuguesa, p. 111: “Toda a substância é necessaria-
mente infinita”); Ibidem, I, prop. XIII, p. 43 (trad. portuguesa, p. 120: “A substância
absolutamente infinita é indivisível”).

11
Ibidem, I, apêndice, pp. 103, 105 (trad. portuguesa, p. 169: “…pelas demonstrações
em que fiz ver que tudo o que existe provém de certa necessidade eterna e da suma
perfeição da Natureza”); Ibidem, I, prop. XXIX, escólio, p. 81 (trad. portuguesa, p. 151:
“…deve entender-se por Natureza naturante o que existe em si e é concebido por si,
ou por outras palavras, aqueles atributos da substância que exprimem uma essência
eterna e infinita, isto é, Deus, enquanto é considerado como causa livre”).
12
Ibidem, II, prop. I, demonstração, p. 119 (trad. portuguesa, p. 199: “É por isso que o
Pensamento é um dos atributos infinitos de Deus, o qual exprime a essência eterna
e infinita de Deus, isto é, Deus é uma coisa pensante”).
13
Ibidem, II, prop. II, p. 121 (trad. portuguesa, p. 199).
14
SÉRGIO, António, Notas sobre os Sonetos e As Tendências Gerais da Filosofia, de Antero de
Quental, pp. 124-125.
15
Cf. ibidem, p. 125.
328 O idealismo de António Sérgio

como estes, aliás, que permitem a António Sérgio afirmar que, na filosofia
espinosista, “a alma humana é em Deus eternamente”16, ou, em outras
palavras, que o pensamento dos homens é coincidente com o Pensamento
universal e eterno; que toda a realidade, no fim de contas, se encontra
“não fora ou acima do intelecto, mas no mais profundo e no mais íntimo
do nosso acto de intelecção”17.
Se seguirmos uma interpretação que minimiza os argumentos parado-
xais de Espinosa, tal como propõe o autor dos Ensaios, podemos enveredar
por uma linha de pensamento que sustenta que a prática da Razão não
só concede conhecimento e sabedoria, como também salva. Até porque,
partindo dos pressupostos do próprio filósofo holandês, ao pensar-se
inteligentemente, poder-se-á chegar a Deus18. No fundo, o que as teorias
de Espinosa parecem evidenciar é que, além de todas as outras dimensões
que caracterizam a actividade racional, há uma outra que pode igualmente
ser apontada: a dimensão salvífica. Se os homens conseguirem realizar,
por meio do seu pensamento, o Pensamento divino em si mesmo, não
só conhecerão (a) Deus instantaneamente (acederão à plenitude do Ser),
como serão, de igual modo, salvos de um pensamento inferior e de uma
realidade equivocada. Para a visão de Sérgio, esta argumentação configura-se
fundamental na medida em que um dos seus principais objectivos consiste
em formar uma sociedade mais racional, mais consciente e mais livre.

16
Ibidem, p. 125.
17
Ibidem, p. 125.
18
ESPINOSA, Baruch de. Éthique, vol. II, IV, apêndice, cap. IV, trad. Charles Appuhn, Paris:
Éditions Garnier Frères, s.d, p. 147 (trad. portuguesa, p. 431: “É que a beatitude não é
outra coisa que o contentamento do espírito que provém do conhecimento intuitivo
de Deus. Ora, aperfeiçoar a inteligência também não é outra coisa que conhecer a
Deus”).
A percepção em António Sérgio:
do sensível ao inteligível

LUÍS LÓIA
Universidade Católica Portuguesa

O título desta reflexão enuncia o plano da inquirição que intentamos


ao longo desta exposição. De facto, procuraremos aquilatar o estatuto
epistemológico do conceito de percepção no pensamento de António Sérgio.
Procurar-se-á demonstrar como, a partir da sensação, dos sinais-sentires, se
formam os constructos percepcionais, e como, a partir destes, a actividade
criadora da mente “inventa” constructos formais sob os quais constrói a
ciência.
Verificar-se-á se o sensível é condição prévia para a descoberta (cons-
trução) da inteligibilidade da Physis e se essa inteligibilidade, postulada que
está a unidade formal da ideia, só é reconhecida e confirmada no confronto,
na verificação, no sensível pela experimentação.
Importa pois esclarecer o estatuto epistemológico da sensação, da
percepção e das actividades superiores do intelecto ou, se quisermos,
importa compreender em que consiste o nível sensorial, o nível percepcional
e o nível formal ou, se quisermos ainda, o plano dos sentires, o plano dos
constructos percepcionais e o plano dos constructos formais.
Há, desde logo, uma diferença a assinalar: pela forma como os distintos
planos são nomeados, podemos verificar que, no plano dos sentires, parece
não estar envolvida uma actividade construtora ou criativa da mente, como
se parece verificar no plano dos constructos percepcionais e no plano dos
constructos formais.
Começando pelo primeiro – e primeiro aqui não é inocente –, é no
nível sensorial, segundo António Sérgio, que se dá o encontro entre nós e
o chamado mundo material ou físico, que, num dado momento, é afirmado
como sendo de natureza e existência independente da nossa mente. Para
o autor:

“(…) o estímulo da sensação não provém da psique: sim, é o que vos


digo; vem de algo independente da nossa psique; vem do Mundo físico,
cuja existência eu afirmo, e que suscita em nós os sinais sensações (…).
330 A percepção em António Sérgio: do sensível ao inteligível

A sensação é o degrau inferior da consciência (…). Sensação é um algo,


estímulo é outro; a sensação é da consciência; o estímulo da Físis, que é
o exterior ou interior ao nosso próprio corpo, mas não exterior à nossa
actividade mental, porque o exterior à psique não faz sentido (…)”1.

No seu aspecto presentativo, o mundo ainda não é posto pela actividade


da mente, mas a natureza desse mundo físico é já concebida como actividade
(como se identifica essa actividade? Pelos sinais que compõem a sensação
– não são coisas, são sinais que nos estimulam). É dizer que a sensação
acontece por via do impulso da Physis, como estímulo. Aí, parece-nos, o
autor sustenta que é o mundo físico que age sobre a mente, recebendo esta,
passivamente, tais estímulos, tais sentires.
Sendo, como afirmado neste momento, a sensação da consciência e o
estímulo da Physis, concebe, pois, o autor, uma instância anterior à própria
sensação, um momento prévio de recepção do estímulo, de estímulos
originados na actividade desse mundo que é exterior (aquilataremos a
coerência desta afirmação).
Ora, para António Sérgio, a experiência do mundo sensível não se funda
no contacto de um sujeito com um objecto, de uma consciência com um algo
que se lhe apresenta como estando diante de si, opondo-se-lhe. A experi-
ência do mundo, segundo o autor, é, desde logo, criação por antecipação
do intelecto, pois é o intelecto, na sua actividade judicativa, que confere
conteúdo aos dados da sensação. É o intelecto que cria a percepção, que
opera a construção mental prévia ao enquadramento dos dados sensíveis
e, só aí, no conteúdo perceptivo ou, como refere o autor, no constructo
perceptivo, só aí, se origina a experiência2.
Assim sendo, torna-se difícil compreender em que consiste a sensação.
Parece que o autor reduz a sensação a um mero mecanismo bio-fisiológico,
privando-o de qualquer conteúdo sugestivo, pois este só será dado pelo inte-
lecto ao tornar actual o conteúdo perceptivo. Ou seja, não faz sentido falar
de um objecto da consciência que possa estar situado fora da consciência; o
mesmo será dizer, o objecto não tem realidade além da consciência. Assim
o afirma: “Não há objecto situado fora, para além do intelecto; o objecto em

SÉRGIO, António. Cartas de Problemática. Lisboa: Ed. Inquérito, 1952-1955, Carta 2, p. 4.
1

SÉRGIO, António. Migalhas de Filosofia. In: ______. Ensaios, t. VII, 1.ª ed., Lisboa: Sá
2

da Costa, 1974, pp. 203-204: “(…) o percepto é já uma construção da inteligência. (…)


nenhum percepto existe para os sentidos se não for construído pela inteligência (…).
A percepção pressupõe um raciocínio, a antecipação mental do percepto a obter (…)”.
Luís Lóia 331

si, e a experiência em frente da inteligência, são meros fantasmas”3 – ora,


tal parece contradizer o acima afirmado.
Fará sentido conceber esse mundo independente da nossa actividade
mental? Ao acontecer o estímulo, não estamos já a pressupor, necessa-
riamente, que uma estrutura é estimulada por se confundir, disseminar,
pelo corpo, nesse mundo? Tais sentires-sinais não o são apenas quando
são sinalizados e sentidos mas também significados?
Bem certo que possamos admitir uma instância anterior à significa-
ção; no entanto, o mundo do estímulo ocorre já em nós e, neste sentido,
interrogamos: será o estímulo em si já significativo?
Diz-nos o autor que o primeiro dos três níveis sucessivos do funcionar
do intelecto é o nível sensorial, constituído por farrapos de sensação, por
sentires, e aí, nesse nível, não há ainda espaço, nem polarização da psique
em sujeito objecto, em não-eu e eu. Mas como conceber o sentir sem
diferenciar, desde logo, o que sente daquilo que é sentido?
À parte da dificuldade em delimitar conceptualmente esta noção de
sensação, importa compreender que é sobre os impulsos, ou acção da
Physis, que se projecta o dinamismo mental criador, isto é, o acontecer dos
sinais-sentires é ocasião para a construção mental, inventiva, em ordem ao
conhecimento, à ciência. Aí se dá, segundo o autor, o trânsito do sensorial
ao percepcional. Aquilo que era mero sinal, sentir, é agora matéria-prima
para a actividade criadora da mente, é agora o conteúdo dos constructos
percepcionais, dos perceptos. É, então, no nível percepcional que o mundo
exterior acontece significativamente em nós; onde se dá a polarização da
psique em sujeito e objecto, entre eu e não-eu, entre eu e a Physis.
No nível percepcional, a mente selecciona e combina os dados, o
datum, da sensação; tal selecção é já do domínio da experiência que se faz
das coisas que são assim criadas. Por essa unificação dos sinais e por essa
atribuição de significados, a actividade mental inventiva constrói o objecto,
impõe a coisa e fá-lo ajuizando, isto é, atribuindo predicados a sujeitos,
acidentes a substâncias4. Assim se inaugura a ciência, pois a ciência não

3
Cf. ibidem, p. 187.
4
Ibidem, pp. 209-210: “Um objecto, ao que tenho suposto, é sempre um objecto do
pensamento, criado no pensar e pelo pensar, com o conhecimento e pelo conhecimento;
quando digo ‘objecto’, por conseguinte, não digo uma coisa inteiramente dada, fora e
independente do nosso pensar. Todo o objecto, seja ele qual for, ‘está no pensamento
como ideia’ (…). Repito: um objecto é sempre do pensamento; é sempre, afinal,
um tecido de ideias; é, por isso mesmo, a ‘parcial representação’ de qualquer outro
objecto – de qualquer outro objecto do pensamento. (…) a verdade, portanto, não é o
332 A percepção em António Sérgio: do sensível ao inteligível

é senão elaboração da razão especulativa que intenta estabelecer relações


compreensivas entre os fenómenos.
Como afirma:

“(…) a inteligência – vá de repeti-lo – não é para nós a faculdade de realizar


abstracções, extraídas de percepções que nos sejam dadas, mas a de criar as
percepções e concepções do Universo – do Universo concreto – por síntese
de impressões e de relações inteligíveis”5.

Ora, esta polarização acontece, segundo António Sérgio, pelo facto de


sermos capazes de unificar os sinais da sensação, de atribuirmos significado
ao que é sentido. Fazemo-lo projectando as nossas categorias compreensivas
sobre a disparidade do datum dos estímulos, estabelecendo correlações
segundo “regras de correspondência” e “processos de construção”. Tais
regras e processos fundam o juízo, que unifica os sinais da sensação num
objecto unitário – constructo percepcional – e fornece a matéria-prima
para a elaboração dos constructos formais, para a actividade superior do
intelecto; o conteúdo do fazer ciência6.
Com efeito:

“(…) acima dos constructos percepcionais, ou perceptos, encontramos os


constructos formais ou científicos, inventados com o fim de inteligir ou
explicar (com base no postulado da universal unidade, do Bem intelectual)
os fenómenos do mundo das percepções”7.

As formas que surgem nos constructos percepcionais ligam-se entre


si, correlacionam-se, permitindo que, a partir deles, se deduza, ou se
verifiquem, as mesmas relações que acontecem na Physis. A Physis surge
como impostamente ordenada a partir de operações do intelecto. Assim,
se denotam dois sentidos para o fazer da ciência: por um lado, a criação
intelectiva dos constructos formais, por outro lado, a verificação ou “impo-
sição” dessas estruturas no mundo da física, no mundo exterior.

acordo da ideia com a coisa (porque não há o absoluto da dita ‘coisa’), é uma harmonia
progressiva de ideias”.
5
SÉRGIO, António. Educação e Filosofia. In: ______. Ensaios, t. I. 1.ª ed. Lisboa: Sá da
Costa, 1971, p. 152.
6
Idem, Migalhas de Filosofia, p. 207. “Para mim, porém, o essencial do conceito não
é imagem: é a relação; o conceito, segundo creio, não precede o acto do juízo, mas
resulta, pelo contrário, da actividade judicatória do nosso espírito; e é esta actividade
judicatória da mente (e não a imagem ou a representação) o que está no ponto de
partida e arranque do operar efectivo do saber científico”.
7
Idem, Cartas de Problemática, Carta 3, p. 3.
Luís Lóia 333

“A Forma, desde que a inventaram, não somente unifica no seu próprio


seio as constatações dispersas do saber empírico (que agora se deduzem
como consequências dela) senão permite adivinhar fenómenos que não
foram observados até à data, de que ninguém até aí se tinha dado conta”8.

O que aqui se pressupõe é que, do mesmo modo que o nível sensorial


fornece a matéria para a constituição e efectivação do nível percepcional,
este não mais é do que a ponte entre aquele e o nível formal do intelecto.
“[É necessário] distinguir, naquilo a que demos até agora o nome de
inteligência, o intelecto propriamente dito e a razão especulativa, sendo o
primeiro a função do espírito pela qual ligamos as percepções em sintéticas
unidades, em sistemas coerentes [graças à invenção de relações que as
unam]; e a segunda, a série de princípios incondicionais que se impõem ao
conhecimento, como os de identidade, [de não-]contradição, de terceiro
excluso, e, finalmente, o princípio da universal inteligibilidade”9.

Pretende, assim, o constructo formal compreender e explicar quer


os fenómenos mentais, quer os fenómenos do mundo percepcionado.
Mas serão os constructos formais, formados pela actividade inventiva do
intelecto, que explicam e permitem compreender, pois que os organizam
por sua actividade também inventiva, os constructos percepcionais?
António Sérgio pressupõe uma correlação entre a actividade do intelecto
e a natureza que é exterior ao ser pensante. No fundo, o que se afirma é que
essa realidade exterior ao pensamento, que em si é acção – actividade  –,
configura-se com a actividade do próprio pensamento10. No entanto, é o
pensamento que põe essa realidade exterior, é o constructo formal que
esclarece, compreende, conhece e diz do ser do mundo da Physis. Ora, é
no mínimo discutível que possa ser uma realidade pensante, que admite
uma existência independente de si, dizíamos, que possa ser essa realidade
pensante a outorgar, por si só, o critério absoluto de verdade ao que lhe é
exterior e independente, sem que essa outorga não se funda, ela própria,
num outro diverso de si. Se assim não fosse como se poderia avaliar da
qualidade do constructo formal? Como se poderia conceber que a capaci-
dade inventiva e criadora da mente estivesse sempre ordenada à correcta

8
Idem, ibidem, p. 6.
9
Cf. idem, Educação e Filosofia, pp. 136-138.
10
Idem, Migalhas de Filosofia, p. 206: “O facto sensível, desde o princípio, é uma espécie
de entroncamento de relações actuantes, que o pensar determina cada vez mais, ligando
ao conjunto cada vez mais ideias. Não é o abstracto, mas sim o concreto, que a mente fabrica
por operações sucessivas” [itálicos do autor].
334 A percepção em António Sérgio: do sensível ao inteligível

explicação e compreensão do mundo da Physis? Mais ainda, concebendo,


como o autor o faz, que o mundo da Physis é compreendido por nós como
actividade ou Acção, como é que o intelecto conhece, a cada momento,
os resultados e as possibilidades das relações novas e constantes que os
fenómenos tecem entre si?
O autor afasta-se assim de qualquer concepção, mesmo idealista, que
possa admitir que a estrutura da consciência seja também moldada pelo
contacto continuado com a realidade e, de outro modo, que a realidade
externa tenha qualquer tipo de racionalidade intrínseca à qual a razão se
possa adequar ou descobrir. Pelo que afirma, podemos deduzir que são os
princípios a priori da razão que tornam inteligível a realidade e esta só é
aquilo que é quando é fundada pela razão.
Deste modo, e como reconhecido pelo próprio autor, a afirmação do
seu pensamento filosófico faz-se pela oposição ao empirismo ou, melhor
dizendo, a alguns princípios específicos da teoria empirista do conheci-
mento. O seu racionalismo idealista não admite a possibilidade da existência
de um mundo exterior à mente que se apresenta aos sentidos com qualidades
e características próprias. Tais qualidades ou características, mais do que
descobertas, são dadas pela razão. Isto significa que a impressão sensível
não traz à mente quaisquer qualidades específicas e a sua correspondente
ideia não é uma mera representação, reprodução, cópia ou imagem desse
objecto na mente11.
No universo empirista a que António Sérgio se refere, parece que esta
crítica se dirige, em particular, a Locke, para quem a imaginação não tem
mais do que uma função criadora de imagens que são cópias dos objectos
sensíveis; no entanto, em David Hume, a imaginação é mais do que isso – é
a faculdade combinatória das ideias simples que cria ideias complexas.
Logo nas páginas iniciais da sua obra primeira, na primeira referência
explícita à imaginação, David Hume admite a excepção de que as ideias
podem ser formadas sem relação com as impressões que se originam nos
sentidos e fá-lo em dois sentidos; por um lado, parece admitir um princípio
criador que a imaginação possui para, por si só, produzir ideias; por outro
lado, embora as ideias se originem a partir de impressões, a imaginação,
ainda assim, tem o poder de formar ideias, ditas secundárias, a partir, já não
de impressões, mas de ideias que resultaram de impressões. No segundo
caso, poderemos sempre afirmar que há sempre um resíduo da impressão
que deriva dos sentidos; de qualquer modo, a actividade da imaginação não
se debruça, aqui, sobre matéria que resulta directamente dos sentidos, não

Cf. ibidem, p. 190.


11
Luís Lóia 335

trabalha com os dados imediatos da sensação, senão com o conteúdo já


percepcionado. Ora, o que aqui é relevante é que a imaginação se assume
como uma faculdade que já não é apenas reprodutora de imagens, que opera
com os conteúdos das impressões, mas que, para além disso, é também
uma faculdade criadora de ideias e, desse modo, criadora de conteúdo do
conhecimento, isto é, uma faculdade do conhecimento12.
Opondo-se ainda ao princípio empirista da causalidade, que se funda
no hábito e no costume, isto é, na forma constante como os fenómenos
aparecem aos nossos sentidos, associados uns com os outros, para António
Sérgio, a causa é sempre uma criação da mente a partir do conhecimento
dos efeitos. Se os fenómenos ou efeitos são conhecidos a partir dos con-
teúdos da percepção, já a causa resulta de uma inferência produzida pelo
intelecto sem qualquer conteúdo sensível – o mesmo se poderá dizer das
operações de relação entre os fenómenos, seja por semelhança, conexão
ou contiguidade13.
No limite, António Sérgio afirma:

“A criação do saber é uma criação completa; no limite, não recebe nada, e


cria tudo. A consciência científica, portanto, não consiste num prolonga-
mento da consciência perceptiva, mas, muito ao contrário, numa reacção
contra ela. (…) O espírito só chega à ‘luz’ racional pela ruptura da ‘treva’
da intuição sensível”14.

O recurso à crença num postulado de uma Unidade comum é inevitável.


“(…) o pressuposto básico da busca da inteligibilidade e da investigação
científica: o princípio ou postulado da Unidade dos muitos pela participação
desses muitos numa Forma comum. (…) é essa faculdade de vaticinar

12
HUME, David. Tratado da Natureza Humana. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian,
2001, pp. 34-35: “E agora pergunto se será possível essa pessoa, usando a sua ima-
ginação, suprir esta deficiência para alcançar a ideia dessa cambiante que os seus
sentidos jamais lhe transmitiram? Julgo que poucas pessoas serão de opinião que não
é possível, e isto pode servir de prova de que as ideias simples nem sempre derivam
das impressões correspondentes: contudo o caso é tão particular e tão singular que
quase não vale a pena notá-lo e não merece que, só por causa dele, modifiquemos a
nossa máxima geral. Mas, além desta excepção, talvez não seja descabido notar aqui
que o princípio da prioridade das impressões sobre as ideias deve entender-se com
outra limitação, a saber: que assim como as nossas ideias são as imagens das nossas
impressões, assim também podemos formar ideias secundárias que são imagens das
ideias primárias…”.
13
Cf. SÉRGIO, António, Migalhas de Filosofia, pp. 191-192.
14
Cf. ibidem, p. 196.
336 A percepção em António Sérgio: do sensível ao inteligível

coisas novas que julgo eu uma característica do saber científico, derivado


do seu dom de unificação formal”15.

De qualquer modo, o postulado não se confina às mais altas operações


do intelecto; ocorre, desde logo, na formulação do juízo que permite dizer
algo sobre esse mundo sentido, que permite ordenar os sinais, os estímulos
da sensação. Ocorre, desde logo, ao nível da percepção, pois os modos de
unificação dos sinais são já categoriais, são já informados pelos constructos
formais de que, a cada momento, no fazer ciência, dispomos.
Assiste-se a um desenvolvimento progressivo na actividade inventiva
da mente em ordem a essa Unidade da Ideia postulada16. É esse Uno Formal
possível à actividade intelectiva? Poderemos estar a caminhar para os
limites da Física e para o fim da ciência?
Se assim não for, o Homem fica, como sempre, situado entre dois
mundos de que não é senhor – o mundo da Physis e o Mundo da Unidade
Formal da Ideia. Aí, talvez os princípios epistemológicos da teoria da
probabilidade se possam constituir como regras gerais para o estabele-
cimento de uma metodologia que permita avaliar a criação e a revisão do
conhecimento científico.

Cf. SÉRGIO, António, Cartas de Problemática, Carta 7, pp. 7-8.


15

Idem, Migalhas de Filosofia, p. 203: “Se procuro entender as coisas, é porque parto
16

do princípio a priori de que elas devem ser inteligíveis”.


“Uma filosofia para as Alforrecas”:
Sérgio crítico de Bergson

MAGDA COSTA CARVALHO


Universidade dos Açores
Centro de Filosofia da Universidade de Lisboa

A leitura das páginas de reflexão que António Sérgio dedicou à obra


de Henri Bergson constitui, porventura, um dos maiores desafios que
se apresentam aos intérpretes do autor francês. O tom irreverente das
suas críticas contrasta com a profundidade das reflexões apresentadas e
consideramos que, sendo o crítico mais veemente de Bergson em língua
portuguesa, Sérgio foi o autor luso que o leu com maior minúcia exegética1.
Um pouco à margem do que acontecia com outros colegas geracionais,
António Sérgio dedicou-se mais ao estudo da obra bergsoniana propriamente
dita do que ao bergsonismo enquanto orientação especulativa, o que confere
à sua escrita um momento único de diálogo directo com os pressupostos e
com as teses expressas por Bergson em obras como o Essai sur les données
immédiates de la conscience (1889), Introduction à la métaphysique (1903) ou
L’évolution créatrice (1907).
Próximo da retórica divulgada em França pelo feroz anti-bergsonista Julien
Benda, Sérgio desconcerta o leitor através do tom provocador dos comentários
com que tempera os momentos da escrita de maior abstracção argumentativa:
Bergson é apontado com epítetos como “o autor filosófico mais preso ao banco
da Caverna platónica”2, um “filósofo para donzelinhas”3 ou o “escravo da tirania da
Imaginação”4. O seu pensamento é descrito como “pirotécnica argumentação”5,

1
Nas palavras de Vasco de Magalhães-Vilhena, a crítica sergiana ao anti-intelectualismo
bergsoniano constitui a mais vigorosa e lúcida de quantas existem em qualquer língua.
MAGALHÃES-VILHENA, Vasco. António Sérgio: o idealismo crítico e a crise da ideologia
burguesa. Lisboa: Edições Cosmos, 1975, p. 35.
2
SÉRGIO, António. Em torno da «ilusão revolucionária» de Antero. In: ______.
Ensaios, t. V. Lisboa: Livraria Sá da Costa, 1981, p. 156.
3
Ibidem, p. 145.
4
Ibidem, p. 144.
5
Idem. Cartas despretenciosas a um anti-intelectualista bergsoniano. Carta sexta.
Seara Nova, Revista de Doutrina e Crítica, Lisboa, n.o 381, 22 de Março de 1934, p. 328.
338 “Uma filosofia para as Alforrecas”: Sérgio crítico de Bergson

“prestidigitação vocabular”6 ou uma “filosofia para Alforrecas”7 – expressão que


escolhemos como título da nossa reflexão e a cujo sentido regressaremos.
A irreverência desta hermenêutica verifica-se sobretudo em momentos como
estes em que, justificando os seus invulgares dotes de prosador, Sérgio afirma
de modo contundente sobre Bergson que “quem o come em uvas, não o bebe em
vinho”. E, contudo, Sérgio não recusa a degustação.
A nossa reflexão centrar-se-á numa sistematização dos principais
aspectos da posição do pensador português perante o legado de Bergson,
evidenciando o que nos parecem ser o alcance e os limites da sua análise.
Ressalvamos desde já que não pretendemos esgotar o teor das críticas de
Sérgio, pelo que encaramos a nossa contribuição como um convite para
que os textos e temas que iremos abordar sejam revisitados.
Dividimos a exposição em três momentos distintos: começaremos
por uma brevíssima introdução à recepção do bergsonismo em Portugal;
abordaremos depois as circunstâncias gerais da aproximação de Sérgio a
Bergson; e, por fim, apresentaremos as posições críticas sergianas pro-
priamente ditas.

1. A recepção do bergsonismo em Portugal


É hoje claro o importante papel que a obra de Henri Bergson desem-
penhou junto da formação de determinadas orientações do pensamento
filosófico português do século XX. Numerosos foram os autores lusos que
incluíram contributos do filósofo francês nas suas reflexões, sedimentando
determinadas mundividências com recurso a conceitos e perspectivas
vincadamente bergsonianos.
Contudo, estas perspectivas presentes no pensamento português
são de carácter plural – compostas por diversas e diferentes linhas de
leitura –, não tendo existido no nosso País o que se pudesse caracterizar
como uma “escola bergsoniana”. O que encontramos nas páginas dos
pensadores portugueses é sobretudo um diálogo com ideias e modos de
filosofar entendidos como sintomas de uma renovação especulativa que
se pretendia trazer para a cultura nacional.
Em traços muito gerais e sinópticos, podemos dividir a recepção
portuguesa da filosofia de Bergson em três núcleos distintos: as primeiras
sintonias de pensamento, implícitas e explícitas, com a mundividência

6
Idem. Cartas despretenciosas a um anti-intelectualista bergsoniano. Carta segunda.
Seara Nova, Revista de Doutrina e Crítica, Lisboa, n.º 381, 15 de Fevereiro de 1934, p. 243.
7
Idem, Em torno da «ilusão revolucionária» de Antero, p. 168.
Magda Costa Carvalho 339

bergsoniana; a influência directa de Bergson na filosofia criacionista de


pendor leonardino; e a oposição e crítica às principais ideias bergsonianas.
No primeiro núcleo, incluímos a obra de Sampaio Bruno, cuja ausência
declarada de referências a Bergson contrasta com a proximidade a temas e
perspectivas relacionadas, por exemplo, com o modo bergsoniano de pensar
a temporalidade, a dinâmica evolutiva da existência ou a contestação da
hegemonia positivista. Por outro lado, em termos de primeiras sintonias
explícitas, reportamo-nos concretamente ao estudo de psicologia A dinâ-
mica do pensamento, publicado em 1919 por António Aleixo de Sant’Anna
Rodrigues, assistente na Faculdade de Medicina de Lisboa, responsável pela
primeira tradução para o português de excertos da obra Matière et Mémoire,
publicada por Bergson em 18968.
No segundo núcleo da exegese portuguesa, reportamo-nos à obra e ao
magistério de Leonardo Coimbra, cuja concepção dinamista da Vida e do
Espírito promoveu uma forte aproximação ao pensamento de Bergson, quer
em termos da importação de modos de leitura da realidade, quer também
em tom de acurada crítica. Pensadores da linhagem leonardina como José
Marinho, Álvaro Ribeiro ou Delfim Santos – este último protagonizou um
importante encontro com Bergson, em Paris, em 19359 – assumiram nas
suas obras determinadas posturas de cunho bergsoniano, sobretudo no que
respeita a uma leitura metafísica dinâmica cuja relevância impunha ser
continuada e desenvolvida. Mais do que um corpo discipular, estes autores
viam-se como promotores e continuadores de um legado filosófico para o qual
a obra e a figura de Bergson constituíam incontornáveis pontos de referência.
É neste sentido que consideramos que os pensadores da órbita leonardina se
identificavam mais com o bergsonismo enquanto movimento filosófico, em

8
O estudo de Sant’Anna Rodrigues representa um importante cruzamento entre deter-
minadas teses da filosofia bergsoniana e estudos provenientes de ciências da vida
como a psicologia. Esta inter-relação era, aliás, um dos principais objectivos que
animou a obra de Bergson, tendo o filósofo investido largamente no estudo positivo
dos fenómenos vitais. Contudo, os principais leitores e comentadores de Bergson em
língua portuguesa deixaram por explorar esta via, centrando-se essencialmente na
dimensão gnoseológica e metafísica do seu pensamento. É ainda curioso ressalvar que
Sant’Anna Rodrigues enviou um exemplar de A Dinâmica do Pensamento a Bergson, que
consta ainda hoje no espólio do filósofo depositado na Bibliothèque Littéraire Jacques
Doucet, em Paris. Bergson respondeu ao autor português numa pequena carta onde
agradece o gesto, cf. BERGSON, Henri. Correspondances. Paris: Presses Universitaires
de France, 2002, p. 892.
9
Veja-se a este propósito o nosso estudo “Delfim Santos e Henri Bergson: proximidade
e divergências”. Philosophica. Revista do Departamento de Filosofia da Faculdade de
Letras da Universidade de Lisboa, Lisboa, n.o 30 (2007), pp. 245-275.
340 “Uma filosofia para as Alforrecas”: Sérgio crítico de Bergson

especial na sua transversal importância no todo da filosofia contemporânea,


do que propriamente com análises exegéticas verticais das obras de Bergson.
No terceiro e último núcleo da hermenêutica lusa que a nossa análise
sistematiza, referimo-nos concretamente a dois críticos: o P.e Diamantino
Martins, jesuíta que contesta sobretudo os fundamentos gnoseológicos da
perspectiva bergsoniana; e António Sérgio, cujas críticas assentam na dupla
perspectiva que engloba uma dimensão metafísica, aposta ao que conside-
rava ser uma excessiva valorização do dinamismo do real em detrimento
da permanência, e uma dimensão gnoseológica preponderante, dedicada
sobretudo à crítica da concepção bergsoniana de inteligência.
Importa ainda referir que o conceito de inteligência constitui um dos
aspectos da obra bergsoniana que mais censuras sofreu por parte dos autores
portugueses, encontrando-se a sua crítica quer nas análises de António
Sérgio e Diamantino Martins, quer nas leituras de Leonardo Coimbra ou
de Delfim Santos. Sem nos querermos antecipar no que respeita às nossas
considerações acerca das críticas sergianas, avançamos apenas que este facto
nos parece derivar da imposição hermenêutica ao texto de Bergson de uma
matriz filosófica cartesiana. Regressaremos a esta ideia na devida ocasião.

2. A aproximação de António Sérgio a Henri Bergson


António Sérgio tece considerações sobre Bergson em diversos momen-
tos da sua vasta e dispersa obra. Contudo, são três os momentos em que
privilegia o desenvolvimento da sua crítica: o diálogo “Em torno da «ilusão
revolucionária» de Antero”, publicado pela primeira vez na Seara Nova, em
1934, e reformulado para integrar os Ensaios, dois anos mais tarde; uma série
de sete textos em forma de cartas, saídos no mesmo periódico, também
em 1934, intitulados “Cartas despretenciosas [sic] a um anti-intelectualista
bergsoniano”; e, por último, duas reflexões de 1935, igualmente na Seara Nova,
“Em torno da teoria bergsoniana sobre o instinto e sobre as suas relações
com a inteligência”. São estes os textos que orientam a nossa reflexão.
De acordo com o que António Sérgio nos relata em 1955, no Prefácio
da segunda edição ao tomo V dos Ensaios, a sua escrita aproximou-se da
obra de Bergson por via indirecta, na sequência de um pedido que lhe foi
formulado para que escrevesse uma crítica a um estudo publicado sobre
Antero de Quental. Tratava-se da obra Antero: algumas notas sobre o seu drama
e a sua cultura, publicada em 1934 por Sant’Anna Dionísio e que referenciava
a teoria bergsoniana da inteligência.
Mas o interesse de António Sérgio não era puramente teórico ou espe-
culativo. Como ele próprio afirma, não sem uma dose considerável de ironia
Magda Costa Carvalho 341

e mordacidade, movia-o também um motivo “cívico” (que caracteriza como


social, moral, educacional e humano10). Sérgio considerava necessário esclarecer
que não se orientava por uma estrita inclinação polemista, antes encarava a
crítica a Bergson como uma espécie de missão em prol da própria filosofia
portuguesa. Em seu entender, a aversão lusa à clareza de pensamento e
a sua excessiva proximidade a uma “literatura fácil” encontrava na obra
bergsoniana um reforço evidente. Criticar Bergson seria, então, uma espécie
de nobre missão pedagógica à escala nacional. (Julgamos escusado proceder
aqui a uma contestação detalhada destas imponderadas afirmações que, de
tão pouco fundamentadas, desconsideram quer o pensamento filosófico
português, quer a própria obra de Bergson. Consideramos que o tom impon-
derado que exalam é, sobretudo, fruto da retórica sergiana).
Sérgio visava, então, sobretudo os pensadores próximos da mundivi-
dência leonardina, e as suas posições acerca do pensamento bergsoniano
surgiam como mais um estandarte de batalha das polémicas públicas
travadas entre si e aqueles outros filósofos nacionais.
Em bom rigor, Sérgio afirma que tropeçara à força em Bergson durante
duas décadas, convivendo com “discípulos sectários” que o confrontavam
com a necessidade de se manifestar acerca do bergsonismo. O convite para a
recensão crítica surgido em 1934 apresentara-se, então, como a oportunidade
de aceitar o desafio há tanto tempo adiado. “Não sei escrever senão provocado
– confirmava mais tarde –, mas custa-me a não escrever quando me incitam”11.
Conforme avisa o leitor em diversos momentos da sua escrita, a análise
de António Sérgio não visava o pensamento de Bergson na sua totali-
dade, mas apenas a sua dimensão gnoseológica. Assim sendo, começa por
dirigir-se à primeira obra de Bergson, o Essai sur les données immédiates de
la conscience (1889), estudo que apresentava uma leitura dinamista da vida
interior da consciência individual e criticava determinadas orientações
da psicologia da época. Bergson expunha uma contestação clara às teses
associacionistas que aceitavam o enquadramento espacial dos fenómenos
psicológicos, tratando-os com os mesmos mecanismos de estratificação e
solidez característicos do modo de pensar as coisas materiais exteriores.
Era esta “psicologia bergsonista” que impregnava, no entender de
Sérgio, o estudo de Sant’Anna Dionísio sobre Antero, o que explica que o
poeta-filósofo açoriano ocupe apenas um terço do diálogo sergiano que, a

10
SÉRGIO, António. Prefácio da segunda edição. Ensaios, t. V. Lisboa: Livraria Sá da
Costa, 1981, p. 5.
11
Idem. Em torno da teoria bergsoniana sobre o instinto e sobre as suas relações com
a inteligência. Seara Nova, Lisboa, n.º 434, 11 de Abril de 1935, p. 19.
342 “Uma filosofia para as Alforrecas”: Sérgio crítico de Bergson

julgar pelo menos pelo título – “Em torno da «ilusão revolucionária» de


Antero” –, lhe deveria ter sido integralmente dedicado. Antero parece-nos,
por isso, apenas o pretexto para que Sérgio exponha uma exegese das ideias
e do texto bergsoniano que há muito fermentava, aguardando apenas a
ocasião propícia para se manifestar.
Contudo, independentemente dessas circunstâncias polémicas de
aproximação de Sérgio à obra de Bergson, e apesar do tom polemista que
a situação assumiu12, é inegável que o pensador português construiu uma
importante e incontornável interpretação do pensamento bergsoniano e
é dela que daremos nota de seguida.

3. A posição crítica de António Sérgio

3.1. A perspectiva gnoseológica da crítica sergiana: uma epistemologia


com virtude hipnótica
António Sérgio situa-se, então, no ponto de vista gnoseológico, a partir
do qual procura denunciar o efeito “hipnótico” que detectava em certos
leitores menos avisados de Bergson. O autor dedica-se a evidenciar na noção
bergsoniana de inteligência uma série de inconsistências e fragilidades.
Como vimos, em Portugal a crítica a esta noção não foi exclusiva do
pensador dos Ensaios, encontrando-se mesmo em autores que, de um modo
geral, se identificavam com o pensamento de Bergson. Aliás, sobretudo nas
primeiras décadas do século XX, o conceito de inteligência constava entre as
apreciações dos maiores críticos do bergsonismo ao nível internacional. Em
França, por volta de 1900, racionalistas como o já mencionado Julien Benda ou
Léon Brunschvicg entreviam nas obras de Bergson um perigoso irracionalismo
a combater e situavam precisamente na inteligência o núcleo das dissidências.
Começamos por entender esse movimento crítico generalizado como sinal
dos desafios decorrentes da inovação trazida pela obra do filósofo francês. É
o próprio Bergson que aponta para o trabalho filosófico como uma espécie de
via dolorosa de inversão das inclinações naturais do pensamento, o que – tal

Em 1935, um ano após a publicação na Seara Nova das “Cartas despretenciosas a um


12

anti-intelectualista bergsoniano”, Delfim Santos promove um encontro em Paris com


Bergson. Na primeira carta que lhe dirige, datada de 6 de Outubro, informa-o de que
existiam em Portugal alguns “discípulos” que ensinavam e publicavam sobre a sua obra,
e que se envolviam em polémicas na defesa das suas ideias. Esta e outra carta de Delfim
Santos a Bergson são pertença do espólio do filósofo francês e estão depositadas na
Bibliothèque Jacques Doucet em Paris, tendo sido por nós encontradas em 2007. Está já
prevista a sua inclusão na reedição da publicação da correspondência de Delfim Santos,
da responsabilidade do Prof. Doutor Filipe Delfim Santos, filho do filósofo português.
Magda Costa Carvalho 343

como prenunciado figurativamente por Platão na sua famosa alegoria – natu-


ralmente acarreta uma violenta resistência e, até, uma categórica recusa por
parte do seu auditório: “O nosso espírito […] pode instalar-se na realidade
móvel – afirmava Bergson –, adoptar a sua direcção constantemente variável,
enfim captá-la intuitivamente. Para isso será necessário que ele se violente, que
contrarie o sentido da operação pela qual pensa habitualmente, que regresse
ou antes recrie continuamente as suas categorias. […] Filosofar consiste em
inverter a direcção habitual do trabalho do pensamento”13.
Pois que melhor forma de atestarmos o cumprimento deste desiderato
por parte da obra bergsoniana do que o surgimento das reacções acalora-
das acerca do conceito de inteligência por parte de críticos como Benda,
Brunschvicg ou Sérgio?
Procuraremos, então, enunciar de modo breve e conciso como entendia
Bergson o conceito de inteligência, de forma a compreendermos posterior-
mente o teor das críticas do pensador português.
Esta foi uma noção que se consolidou no percurso bibliográfico do
filósofo: no Essai, de 1889, era entrevista essencialmente como a função
prática do pensamento, a faculdade encarregue de conceber fenómenos
no espaço. Será em 1903, no artigo “Introduction à la métaphysique”, que
Bergson irá desenvolver o que entende por “função prática”: a inteligência
está vocacionada para o conhecimento da matéria, pelo que funciona
mediante “percepções sólidas” e “concepções estáveis”, pontos de apoio
seguros para que a nossa actividade seja capaz de fazer uso do que a cerca em
proveito de uma integração bem sucedida do indivíduo no meio exterior14.
Quatro anos mais tarde, em L’évolution créatrice, o filósofo contextualiza
esta explicação no seu evolucionismo metafísico, identificando a inteligência
com o modo biológico da acção humana: a função prática da inteligência está
na base da inserção de cada indivíduo, enquanto corpo, no meio que o rodeia.
Ao traduzir as relações existentes entre as coisas exteriores, a inteligência traça
uma espécie de mapa de coordenadas que permite ao sujeito preparar e orientar
a sua acção. Assim sendo, em termos propriamente evolutivos, a inteligência
compõe uma das três direcções que a vida adopta ao manifestar-se (sendo
as restantes o torpor vegetativo e o instinto animal), sendo preponderante
na nossa constituição assim como o instinto o é nos animais e o torpor nas
plantas. A inteligência é, portanto, a sede da actividade fabricadora humana

13
BERGSON, Henri. Introduction à la métaphysique. In: ______. La pensée et le mouvant.
Paris: Presses Universitaires de France, 2009, p. 213. Sublinhados do autor.
14
Ibidem, p. 212.
344 “Uma filosofia para as Alforrecas”: Sérgio crítico de Bergson

(a faculdade de fabricar utensílios para fabricar utensílios15). A partir de L’évolution


créatrice (1907), a inteligência irá ser sempre conotada pelo filósofo com a
percepção da estabilidade material, da regularidade com que o pensamento
caracteriza a solidez exterior das coisas que nos cercam e que serve de base
aos procedimentos gnoseológicos das ciências de pendor matemático16.
Mas onde a posição bergsoniana se torna verdadeiramente polémica
é no facto de Bergson retirar como consequência da função prática da
inteligência a sua limitação em termos de compreensão do fundo íntimo da
realidade movente. Recorrendo à célebre imagem do cinematógrafo – que
reproduz o movimento pela justaposição exterior de diversas imagens –,
para Bergson, a inteligência apenas nos poderá fornecer uma aparência ou
ilusão do dinamismo último do real que, em si mesmo, só é apreendido pelo
esforço mental intuitivo. É esta a origem do suposto, e muito contestado,
“anti-intelectualismo” do autor.
António Sérgio não aceita o estatismo de uma concepção que, em seu
entender, confundia “imaginação sensível”, no sentido declaradamente
cartesiano de representação de imagens na extensão sensível17, e “inte-
ligência”, ou seja, a faculdade dinâmica e criadora18 de juízos mediante a
interpenetração e a interdependência de ideias. No seu entender, enquanto
actividade por excelência, onde cada ideia apenas vive pela vida inteira da orga-
nização mental19, a inteligência caracteriza-se por um dinamismo constitutivo
cuja actividade está longe de se resumir à justaposição exterior de partes
desconexas. Assim sendo, a tese bergsoniana segundo a qual o intelecto
reconstruiria visões da realidade mediante uma colecção avulsa de partes
sobrepostas é, no entender de Sérgio, a mais absurda das considerações. Na
verdade, continua o autor, os juízos não se reduzem à junção de partes nem
são o resultado da conjugação de conceitos atomisticamente concebidos,
antes existe uma anterioridade mental do todo em relação às partes:

15
Idem. L’évolution créatrice. Édition critique sous la direction de Frédéric Worms, dossier
critique par Arnaud François. Paris: Presses Universitaires de France, 2007, p. 612.
16
António Sérgio tece igualmente uma série de considerações acerca do modo como
Bergson articula uma noção estática de inteligência com uma leitura parca e insufi-
ciente dos procedimentos científicos no que respeita à compreensão da essência da
realidade. Porém, dado o âmbito desta reflexão, não nos deteremos na sua análise.
17
SÉRGIO, António. Cartas despretenciosas a um anti-intelectualista bergsoniano.
Carta Quinta. Seara Nova, Lisboa, n.º 380, 15 de Março de 1934, p. 311.
18
Idem. Cartas despretenciosas a um anti-intelectualista bergsoniano. Carta Terceira.
Seara Nova, Lisboa, n.º 377, 22 de Fevereiro de 1934, p. 261.
19
Idem. Cartas despretenciosas a um anti-intelectualista bergsoniano. Carta Sexta.
Seara Nova, Lisboa, n.º 381, 22 de Março de 1934, p. 332.
Magda Costa Carvalho 345

“[…] quando nós emitimos qualquer juízo – por exemplo: «a gaivota


voa» –, não existe nesse acto […] primeiro a ideia da gaivota mais a ideia
de voadora, só depois conectadas por tal juízo; não, nada disso: partimos da
percepção de um todo concreto, que se desenvolve em objecto de tal juízo
quando nós o dividimos nas duas partes: gaivota, voo. (Assim como o todo
precede as partes, a actividade relacionante precede os termos). O juízo
não é uma associação de conceitos, ligados numa frase de predicação: o
conceito é que é um produto do juízo”20.

Aliás, Sérgio contesta qualquer leitura discursiva do modo de ser próprio


da inteligência, afirmando que por se exprimir em discurso não significa
que se exerça intimamente como tal21. Quanto a si, seria essa a fonte de erro
que levara autores como Bergson a considerar que o pensamento intelectual
constrói o todo com as partes, quando o que sucede é um procedimento a
dois tempos: a inteligência começa por ir do todo às partes, apresentando
um modo de compreensão holístico, para que posteriormente o discurso
religue os diversos termos na actividade relacionadora central.
Na leitura sergiana, Bergson teria, então, resvalado para o vício asso-
ciacionista que a sua leitura da psicologia da época pretendera inicialmente
combater. Daí que, ao contrário do que o filósofo francês queria fazer crer,
a inteligência não se encontra limitada pelo plano espacial sensível, pro-
curando referenciar todos os seus conteúdos ao modo artificial e inflexível
de entender a matéria, mas projecta as ideias para lá dessa forma limitada
e atomista de percepcionar o real.
Para Sérgio, Bergson ficara refém da dimensão imaginativa dos proce-
dimentos intelectuais e, se bem que seja certo que as imagens são elementos
fundamentais no processo de formação das ideias, a actividade mental
não pode ser reduzida ao seu âmbito. Apesar de alguns dos conteúdos da
inteligência incidirem sobre dados imagéticos, há ideias que ultrapassam
meros registos sensíveis espacializados, considera o autor.
Assim sendo, a inteligência é uma faculdade apta a conceber o dina-
mismo próprio da realidade22, já que opera com base na interdependência e
acção recíproca das ideias entre si. Ao contrário do que afirmara Bergson, a

20
Idem, Em torno da «ilusão revolucionária» de Antero, p. 141.
21
Idem. Em torno da teoria bergsoniana sobre o instinto e sobre as suas relações com
a inteligência. Continuação do n.º 434 da Seara Nova. Seara Nova, Lisboa, n.º 437, 30
de Maio de 1935, p. 74.
22
António Sérgio afirma que é possível inteligir cientificamente o movimento, uma
vez que uma lei ou uma equação são relações entre variáveis e não entre sólidos. Cf.
Em torno da «ilusão revolucionária» de Antero, p. 138.
346 “Uma filosofia para as Alforrecas”: Sérgio crítico de Bergson

inteligência não é o domínio do estático e do sólido, mas do movimento por


excelência. Sérgio vai ainda mais longe: o pensamento apenas reconhece o
modelo organizacional nos fenómenos vitais por analogia com o seu próprio
modelo relacional23, já que o movimento da inteligência é entendido pelo
autor como o paradigma de qualquer outra forma de movimento.
A crítica de Sérgio à concepção bergsoniana de inteligência insistia ainda
numa falha de coerência interna no raciocínio do filósofo francês: pois como
poderia Bergson atribuir à inteligência a função prática de nos orientar na
acção exterior, se a sua função é projectar num conjunto de dados estanques
uma realidade em permanente mudança? Se tudo é movimento, concluía
António Sérgio, o sólido inerte apresentado pelo intelecto é uma tradução
falsa e ilusória do real que, consequentemente, terá grandes limitações no
que respeita a situar com sucesso prático a actividade do indivíduo24.
Enquanto intérpretes das reflexões bergsonianas e sergianas, conside-
ramos que o cerne do debate reside, então, no confronto entre duas formas
de entender a organização da vida mental. Bergson pugna pela defesa de uma
actividade psíquica que tem na inteligência a apetência para o material e cuja
expressão máxima se encontra num modo de conhecimento intuitivo; Sérgio,
recusando qualquer tipo de conhecimento extra-intelectual25, identifica a
inteligência com a expressão por excelência da vida mental, considerando que
o dinamismo que a caracteriza lhe permite, por si só, conhecer a realidade.
Em primeira instância, parece-nos que os dois correlatos do conceito
de inteligência não coincidem em termos de âmbito semântico, pelo que
as posições dos dois autores não se nos afiguram como irredutivelmente
contrárias ou incomunicáveis. Sérgio alarga à inteligência algumas das
apetências que Bergson opta por conceder à intuição: quando o autor portu-
guês apresenta a actividade intelectual como um pensamento primacial do
todo que, apenas num segundo momento, referencia as partes a esse todo,
parece-nos bastante próximo do modo como Bergson se refere à relação entre
o conhecimento intuitivo e os dados da inteligência. O pensador francês
considerava que a “simpatia espiritual” intuitiva, pela qual o sujeito coincide
interiormente com a realidade, só se torna possível mediante uma “cama-
radagem” com as manifestações exteriores inteligíveis dessa realidade26.

23
Idem. Em torno da teoria bergsoniana sobre o instinto e sobre as suas relações com
a inteligência. Seara Nova, Lisboa, n.º 434, 11 de Abril de 1935, p. 24.
24
Idem. Em torno da teoria bergsoniana sobre o instinto e sobre as suas relações com
a inteligência. Continuação do n.º 434, Seara Nova, n.º 437, p. 70.
25
Ibidem, p. 74.
26
BERGSON, Henri. Introduction à la métaphysique. In: ______. La pensée et le mouvant,
p. 213. A intuição é uma forma de conhecimento imediato, sensível e temporalmente
Magda Costa Carvalho 347

Ou seja, os conhecimentos materiais são bases indispensáveis para que o


esforço intuitivo se torne possível27 e, assim sendo, no nosso entender o que
diferenciaria neste ponto Sérgio e Bergson seria o sentido do movimento
que vai de uma a outra forma de conhecimento: para Sérgio, começamos
por conhecer o todo, para Bergson chegamos lá através da familiaridade
com as partes28.
Em segundo lugar, consideramos que as leituras de Sérgio, de assumido
tom cartesiano, incorrem num certo estatismo hermenêutico ao sujeitarem
o texto de Bergson a uma metodologia analítica que não se lhe adequa29. Em
bom rigor, Bergson inscreve-se numa linha radicalmente distinta daquela
que Descartes havia cunhado alguns séculos antes com a imagem da mathesis
universalis como paradigma do conhecimento filosófico. O autor de L’évolution
créatrice propõe um novo modelo de inteligibilidade especulativa, já não à
imagem das ciências matemáticas, mas escolhendo como paradigma as
várias ciências da vida que, no início do século XX, haviam já afirmado a sua
credibilidade. Se a filosofia se torna, então, ciência à imagem da biologia,
isso implica privilegiar a inteligibilidade dinâmica dos factos positivos em
detrimento dos procedimentos demonstrativos rígidos e impassíveis. Sem
abandonar o rigor, o critério de inteligibilidade é agora o de uma “metafísica
positiva”30 que procura importar para o campo da metafísica a positividade

situado, é uma visão directa das realidades singulares pela consciência individual.
Para Bergson, o conhecimento intuitivo é um esforço, correspondendo ao instinto
tornado desinteressado, consciente, capaz de reflectir sobre o seu objecto e de o ampliar
indefinidamente. Cf. L’Évolution créatrice, p. 178.
27
Não se pode negligenciar o facto de que a expressão superior da vida psicológica é,
para Bergson, a intuição, que não é imediatez nem espontaneidade, antes fruto de
um trabalho interior árduo e contínuo.
28
Um dos aspectos que não teremos ocasião de desenvolver em termos de proximidade
entre os dois autores prende-se com uma não consideração estática das faculdades
mentais: Sérgio encontrava-se mais perto de Bergson do que explicitamente aceitava
ao apresentar o Espírito enquanto actividade (e não “coisa”), no seio do qual não faria
sentido falar de “inteligência” ou de “instinto”, mas de “actividade intelectual” e de
“movimentos instintivos” (SÉRGIO, António. Em torno da teoria bergsoniana sobre
o instinto e sobre as suas relações com a inteligência. Continuação do n.º 434 da
Seara Nova, Seara Nova, n.º 437, p. 74). Ora, conforme tão bem desenvolveu Leonardo
Coimbra, o cerne da filosofia bergsoniana consiste precisamente numa consideração
“anti-cousista” da realidade mental.
29
António Sérgio segue não apenas o modelo cartesiano, mas, de um modo geral, o
pendor especulativo do racionalismo moderno, referenciando autores como Male-
branche, Espinosa e Leibniz.
30
BERGSON, Henri. Mélanges. Paris: Presses Universitaires de France, 1972, pp. 463-464,
652. A fusão que esta expressão convoca entre as dimensões positiva e espiritual da
348 “Uma filosofia para as Alforrecas”: Sérgio crítico de Bergson

científica dos fenómenos vitais. Conforme afirma Henri Gouhier, o bergso-


nismo representa, em primeira instância, o fim da era cartesiana31.
Para além disso, António Sérgio isola a dimensão gnoseológica ou
epistemológica da obra de Bergson, tecendo sobre ela as suas considerações
críticas, quando na realidade não existe uma gnoseologia bergsoniana como
tal. O autor francês considera não ser possível conceber uma teoria do
conhecimento desligada de uma teoria da vida: a teoria do conhecimento
sem a teoria da vida não chega a compreender como foram evolutivamente
constituídas as estruturas gnoseológicas humanas, nem a forma de ultra-
passar os seus limites; a teoria da vida sem a teoria do conhecimento não
opera a necessária crítica do modo como a inteligência lê a realidade, ficando
presa aos seus esquemas estáticos e cristalizados32. Essencialmente a partir
de L’évolution créatrice (1907) não é possível conceber a inteligência fora dos
quadros positivos evolutivos, uma vez que o que interessa ao pensador é
precisamente a génese desta faculdade integrada na sua teoria da vida: a
matéria surgiu como um imenso órgão ao dispor dos vertebrados mais com-
plexos que, para dela desfrutarem, foram dotados com a inteligência. Para
Bergson, o intelecto é a própria vida que se olha de fora, exteriorizando-se
de forma a colocar os seres vivos em pleno uso da materialidade.
Assim sendo, quer esta ausência de contextualização da teoria do conheci-
mento numa teoria da vida, quer a proximidade de António Sérgio ao paradigma
filosófico cartesiano provocam por vezes no leitor alguma apreensão, como se
uma violência hermenêutica fizesse estalar o texto bergsoniano, dificultando
qualquer frutífera hipótese de cooperação entre as duas perspectivas.
Por seu lado, o modo como Bergson caracterizou a inteligência,
insistindo na sua insuficiência e parco alcance gnoseológico, permitiu
que se instalassem em diversos meios as críticas contra o seu pretenso
“anti-intelectualismo”. E é curioso o modo como em 1934, no mesmo ano
em que Sérgio se debatia nas páginas da Seara Nova com as suas “Cartas
despretenciosas”, Bergson escreve numa carta a H. Gouhier:

realidade – roçando quase os limites do paradoxo ou até mesmo do oximoro –, tem


como principal objectivo a importação da positividade científica para o campo da
metafísica e a consequente certificação universal da última como uma ciência rigorosa,
ao lado de saberes como a matemática, a física ou a biologia. Veja-se o nosso estudo
Natureza criadora: o projeto bio-filosófico de Henri Bergson. Lisboa: Centro de Filosofia
da Universidade de Lisboa, 2012.
31
GOUHIER, Henri. Introduction. In: BERGSON, Henri. Œuvres. Édition du Centenaire.
Textes annotés par André Robinet. Paris: Presses Universitaires de France, 1959, p. XIV.
32
BERGSON, Henri. L’Évolution créatrice, p. IX.
Magda Costa Carvalho 349

“[…] foi por um erro que me classificaram entre os detractores da ciência e


da inteligência; mas talvez eu seja um pouco responsável por este erro, por-
que insisti sempre no domínio da intuição, conhecimento do espírito pelo
espírito, que me parecia ter sido negligenciada pelos filósofos, enquanto
que me alarguei menos sobre o que era admitido por toda a gente acerca
do conhecimento da matéria, sobre a ciência propriamente dita, sobre
a inteligência. Desde a Évolution créatrice, contudo, expus extensamente
que a inteligência, dirigida para a matéria, podia, neste domínio, atingir o
absoluto; fui, então, tão longe neste ponto no sentido intelectualista como
«todo o mundo», mais longe mesmo; coloquei a ciência mais alto do que
o fizeram, ou farão algum dia, a maior parte dos cientistas”33.

Neste ponto da obra bergsoniana, teríamos, então, que colmatar a letra


com o espírito do texto, de modo a compreendermos as reais intenções do
seu autor34. Não terá sido por acaso que, essencialmente a partir do final
dos anos 20, autores como o racionalista Brunschvicg invertem o sentido
das suas críticas ao anti-intelectualismo, exaltando desta feita a concepção
bergsoniana enquanto denúncia de uma leitura falsa da inteligência35.
Aliás, um dos filões da exegese bergsoniana tem sido a insistência na tese
de que considerar Bergson como anti-intelectualista será uma ilegítima
consideração do seu pensamento36. O próprio Bergson explicitou numa outra
carta que a sua opção semântica pelo conceito de inteligência foi fruto de
uma escolha consciente que visava englobar apenas as faculdades discursivas

33
Idem, Correspondances, p. 1470.
34
É Delfim Santos que, numa das páginas do seu Diário Íntimo, inédito – que tivemos o
privilégio de conhecer pela amabilidade dos seus herdeiros, Prof. Filipe Delfim Santos
e Dr.ª Manuela Pinto dos Santos –, afirma que Bergson teria evitado muitos inimigos
se tivesse feito a distinção entre a “inteligência espiritual” e a “inteligência material”.
35
Sobre as alterações na recepção de Bergson em França, veja-se AZOUVI, François. La
gloire de Bergson. Essai sur le magistère philosophique. Paris: Gallimard, 2007, pp. 249-250.
36
Remetemos neste ponto para os argumentos de Léon Husson no estudo L’intellectualisme
de Bergson. Genèse et développement de la notion bergsonienne d’intuition, de 1947, que
considerava que Bergson tinha optado por circunscrever o sentido do conceito de
inteligência à aptidão para decompor e recompor a materialidade, dissociando-a da
reflexão do espírito sobre si mesmo, como forma de solucionar os desvios advindos
à filosofia pela inclinação natural do pensamento para utilizar os procedimentos da
acção como norma da actividade reflexiva. No entender deste autor, através da clara
separação entre agir e reflectir, por um lado, e da introdução operativa da intuição,
por outro, Bergson conseguira defender a ideia de uma inteligibilidade do real e, con-
sequentemente, a confiança de que o espírito humano se encontra apto a captar essa
inteligibilidade. Nesse sentido, Husson concluía pelo “intelectualismo” bergsoniano.
350 “Uma filosofia para as Alforrecas”: Sérgio crítico de Bergson

do espírito originariamente orientadas para pensar a matéria37. Tratou-se,


portanto, de um sacrifício conceptual em nome da clarividência do seu
projecto especulativo, facto que não nos parece dever ser negligenciado.
Desta feita, talvez toda a celeuma em torno da epistemologia berg-
soniana de “virtude hipnótica”, para a qual alertava António Sérgio, mais
não fosse do que um conjunto de ruídos ou interferências de comunicação,
cuja solução passaria pela sintonização adequada entre comprimentos de
onda que, afinal, não se encontravam tão distantes.
3.2. A perspectiva metafísica da crítica sergiana: “uma filosofia para as
Alforrecas”
A contestação de António Sérgio das concepções propriamente metafí-
sicas do pensamento bergsoniano constituem uma pequena parte das suas
análises já que, como vimos, o autor está sobretudo interessado na crítica
aos processos mentais da inteligência.
Contudo, nalguns momentos o pensador português expõe importan-
tes objecções e dúvidas acerca de questões metafísicas que nos ajudam a
contextualizar a sua posição geral perante o pensamento bergsoniano.
Terminaremos com elas a nossa reflexão.
É num pequeno excerto do diálogo “Em torno da «ilusão revolucio-
nária» de Antero” que Sérgio recorre à sua típica retórica provocadora
para desferir golpes críticos contra o pensamento bergsoniano. Pela voz do
arrebatado e impetuoso Reinaldo, apresenta a sua mais curiosa – e, quanto
a nós, cómica – apreciação crítica de Bergson:

“Mas que é a psicologia do Sr. Bergson, senão a psicologia das Alforrecas?


Que é a liberdade do Sr. Bergson, senão a liberdade das Alforrecas? Que é
a filosofia do Sr. Bergson, senão uma filosofia para as Alforrecas, e que a
todos os apresenta como Alforrecas?”38

O que teria, então, movido o pensador português para tão arrojada, e


aparentemente despropositada, imagem?
O fragmento citado surge no contexto de um protesto contra a concep-
ção bergsoniana do fundo último da vida e do próprio homem. Para Sérgio,
a imagem do élan vital resumia a realidade à variação e ao fluxo permanente,
faltando-lhe estrutura estável e organização vertebral. Nesse seguimento,
a ordem psíquica saldar-se-ia na inconsistência e na falta de identidade
interna, no inconsistente e no fugidio. Nas suas palavras, o ideal de homem

BERGSON, Henri. Correspondances, p. 906.


37

SÉRGIO, António. Em torno da «ilusão revolucionária» de Antero, p. 168.


38
Magda Costa Carvalho 351

supostamente apresentado por Bergson seria limitado aos protótipos da


menina histérica, do cavalheiro instável, do salta-pocinhas, numa só palavra, do
invertebrado. Sérgio visa, então, salvaguardar “o que é vertebrado e viril”39,
levando a sua argumentação ao absurdo:

“Por muito variável que seja a gaivota, é sempre gaivota: não se muda em
pombo. É vê-los de aqui, – as gaivotas e os pombos. As gaivotas do rio são
as gaivotas do rio, e os pombos da praça são os pombos da praça. Voejam
as gaivotas em torno dos barcos; os pombos, da estátua de D. José. Repara
como às vezes se abeiram os bandos, e como, até, eles se tocam; mas não
se misturam; e nunca uma gaivota se transformou em pombo, e jamais
um pombo se tornou gaivota…”40

Encontramo-nos no coração da fina ironia sergiana, no cerne de uma


argumentação com fins dialécticos que coroa a consideração da filosofia de
Bergson enquanto pensamento exclusivo do devir. A alforreca enquanto
animal de aparência gelatinosa seria, então, a imagem máxima da falta de
consistência, do que é falho em esqueleto e fisionomia “de carne e osso”,
da radical variabilidade.
Esta crítica é, aliás, recorrente, não apenas na exegese contemporânea
dos textos do pensador francês, mas desde as suas primeiras publicações.
A imagem do élan enquanto esforço íntimo de vida que perpassa todos os
fenómenos naturais, princípio de mudança que se transmite evolutivamente
ao nível germinal dos indivíduos, foi amiúde conotado com o puro devir,
originando leituras des-substancialistas do pensamento bergsoniano.
De tal forma que Bergson se viu obrigado a esclarecer os seus leitores,
clarificando no opúsculo “Introduction à la Métaphysique” (1903) que a
consideração da realidade enquanto mobilidade – significando que não
existem coisas feitas, mas estados que mudam –, não exclui a substância.
“Afirmamos, pelo contrário, a persistência dos existentes”, insistia Berg-
son, não compreendendo como poderia o seu pensamento ser comparado
a doutrinas como as de Heraclito41. Bergson identifica a realidade com um
princípio de mobilidade: na sua perspectiva, não existem coisas feitas, mas
apenas coisas que se fazem, estados em permanente mudança. A realidade
é mudança e a mudança não é mais do que a substância mesma das coisas

39
Na segunda edição do diálogo, publicada nos Ensaios, Sérgio substitui o adjectivo
“viril” por “moral”. Julgamos que o autor ter-se-á dado conta do exagero da primeira
versão, porém não desenvolve a que se refere com essa menção à moralidade.
40
SÉRGIO, António. Em torno da «ilusão revolucionária» de Antero, p. 169.
41
BERGSON, Henri. Introduction à la métaphysique. In: ______. La pensée et le mouvant,
p. 211.
352 “Uma filosofia para as Alforrecas”: Sérgio crítico de Bergson

ou duração42. Todavia, a mudança não implica ausência de identidade,


conforme Sérgio fazia crer com a analogia das gaivotas. Para além disso,
poderíamos ripostar que até mesmo as pobres alforrecas, malgrado serem
constituídas por cerca de 98% de água, têm alguma consistência e a sua
identidade permanece.
Assim sendo, quando Sérgio reclama a co-presença de variação e per-
manência na explicação da vida geral do espírito, assim como na constituição
própria do homem, não estará mais perto de Bergson do que à primeira
vista quer dar a entender?43
Concluímos, então, a nossa análise reiterando a pertinência – e até
mesmo por vezes a impertinência – da hermenêutica sergiana. Abordar
António Sérgio enquanto crítico de Henri Bergson constitui para o leitor
um exercício estimulante, quer pelo acentuar de determinados aspectos
menos privilegiados na obra do filósofo francês, quer por nos obrigar a
regressar aos textos e a repensar as questões num debate vivo que sempre
deve constituir o autêntico exercício do pensamento filosófico.
Por esse motivo, arriscamos dizer que Sérgio terá sido discípulo de
Bergson, no sentido conferido à expressão por Étienne Gilson. Numa
homenagem póstuma ao filósofo de L’évolution créatrice, Gilson afirmava:
“Ao perguntarem-se onde estão hoje os vossos discípulos, alguns come-
tem o erro de procurarem filósofos que repitam o que vós dissestes. No
entanto, os vossos verdadeiros discípulos esforçam-se antes por agir como
vós”44. A nosso ver, o inconformismo e o permanente questionamento da
realidade, numa procura incessante pela forma mais adequada de a dizer,
permanecem como atitudes constantes nos dois autores.

42
Para Bergson, a substancialidade das coisas é a sua própria “duração”, ou seja, tudo
subsiste nessa realidade fundamental que é simultaneamente “o fundo do nosso
ser” e “a substância mesma das coisas com as quais estamos em comunicação”. Cf.
L’Évolution créatrice, p. 39. A duração é por diversas vezes apresentada por Bergson
como “o estofo da realidade”, ou seja, não nos encontramos aqui perante uma filosofia
que supunha um substrato imutável da realidade, oposto à sua dimensão material
ou sensível. Pelo contrário, o fundamento da realidade, o que a suporta e envolve
intimamente (o seu “estofo”), consiste precisamente naquilo que a nossa percepção
interior capta, ou seja, a duração substancial das coisas. A substância é movimento
e mudança e estes, por sua vez, assumem um carácter substancial.
43
Sérgio conhecia bem o texto da “Introduction à la métaphysique”, de que cita excertos
nas suas “Cartas despretenciosas”, o que vem sublinhar a nossa interpretação destas
considerações como puro artifício de retórica.
44
GILSON, Étienne. Hommage public a Henri Bergson. Panthéon, le jeudi 11 mai 1967,
Paris: Typographie de Firmin-Didot et Cie, 1967, p. 4.
Inspirações para um ensaio:
O Considerações sobre o
problema da cultura
JOÃO PRÍNCIPE
Universidade de Évora

Há na formosura e na música certos lineamentos ou debuxo da razão cujo ofício e louvor é pôr
em sua conta todas as coisas; e como a formosura e a música constam de ordem e proporção,
por esta sombra do racional deleitam mais ao homem, pois nelas sente oculto parentesco e lhe
sabem à sua origem; assim que tudo que deleita é por benefício da razão.
Manuel Bernardes

0. Interesse, problemática e método

“Intervêm ainda na invenção condições gerais respeitantes à produção de novidade… em


primeiro lugar repertórios de representações, de operadores, de soluções adquiridas”1.

Uma narrativa histórica deve ser interessante (Paul Veyne). Assim


também na História das Ideias, da Cultura e na História filosófica da Filo-
sofia. Sérgio será tanto mais interessante quanto mais capazes formos de
lhe dar grandeza, isto é, de o “medir” diversamente, de o comparar com
“padrões” vários. A analogia inspiradora de investigações novas, onde fer-
ramentas conceptuais se forjam em efectividade, é fundamental. O avanço
da investigação implica detectar dificuldades, hipóteses inconscientes
(Poincaré), obstáculos epistemológicos (Bachelard) e usar da reflexividade,
da auto-análise vigilante dos saberes (Bourdieu). Fernando Gil nota que
“a problematização de uma dificuldade dá-lhe forma, estabilizando-a,
integrando-a num quadro conceptual e operatório”2.
Quem foram os interlocutores, em vida, de Sérgio? Obviamente todos
os que ele visou, na sua acção pedagógica, cívico-política. Na interacção
intelectual directa, eles são os colegas de jornada, os “discípulos” que o
frequentam, e aqueles com quem debate, raramente estando aí envolvidos

1
GIL, Fernando. Mimésis e negação. Lisboa: INCM, 1984, p. 266. Estas breves reflexões
iniciais resultam da discussão havida no Colóquio e muito devem à pertinência das
questões levantadas pelo Professor Leonel Ribeiro dos Santos.
2
Idem, p. 246.
354 INSPIRAÇÕES PARA UM ENSAIO: O CONSIDERAÇÕES SOBRE O PROBLEMA DA CULTURA

apenas problemas da esfera da razão pura. Vestígios disso nos restam para
os estudos feitos – os textos impressos e alguma correspondência. Aqui,
o publicista-escritor escreve em situação, usa a argumentação, retórica e
tópica. Os seus intermezzi filosóficos, sugerem um pensador a(anti)-siste-
mático, ensaísta por excelência (Sílvio Lima) que acaba desiludindo alguns
leitores atentos (José Marinho) e cria dificuldades a discípulos brilhantes
que tentarão reconstruir o seu pensamento (Magalhães-Vilhena; Magalhães
Godinho). No seu melhor, atendo-nos ao impresso, Sérgio será um honesto
seguidor de Montaigne e, decerto, um grande animador de ideias. Não lhe
havendo cabido em sorte um discípulo-Platão, ele é também um Sócrates,
cuja voz se perde para a posteridade. Merecidamente para alguns (Carrilho).
Aliás, porque de novo mestre dispomos (Eduardo Lourenço).
A eficácia do “mestre da polémica”, ou do mestre reconhecido do
racionalismo crítico, detectar-se-á porventura na paixão, ligada ao anedo-
tário, dos intérpretes. Sérgio interpela-nos hoje no encontro de uma nossa
auto-estima lúcida. Somos herdeiros da ferida colectiva em revisitação de
cinza quente.
Esquematizo, no simplismo de manifesto, características e limita-
ções da literatura existente, notando a proliferação recente e louvável,
sob a pressão dos curricula: abundante análise dos textos impressos e das
polémicas a partir de pontos de vista extrínsecos à filiação filosófica de
Sérgio, dominando a preocupação com o contexto nacional. A “retórica”,
que não cumpre função filosófica, ora é salientada, ora esquecida por
irrelevante; mas não tem sido analisada à luz da teoria da argumentação.
Igualmente, pouco interesse tem merecido o enquadramento numa
análise sociológica do campo intelectual português. Falta detalhar os
diferentes períodos da actividade intelectual de Sérgio. A reflexão meto-
dológica rareia, até porque há homogeneidades entre os que, movidos
de boa vontade, apesar da impossibilidade de facto de internacionalizar
os resultados da pesquisa, persistem. Em suma, falta projecto colectivo
interdisciplinar que forneça uma visão de conjunto e uma boa biografia
(intelectual).
A determinação de influências de pensadores, frequentemente não
citados nos textos impressos, e a reconstrução de muitos dos argumentos
filosóficos apresentados por Sérgio (com excessiva brevidade e alguma
redundância), não têm sido acompanhadas da análise atenta das obras lidas
e trabalhadas por Sérgio, e que se encontram na sua biblioteca.
Creio que a seguinte hipótese, devidamente meditada, pode criar novas
problemáticas e sugestões de trabalho. Sinteticamente: Em Sérgio, o leitor
João Príncipe 355

é mais rico que o publicista. Esta hipótese é imanente; Sérgio afirmou:


“Tenho um pensamento de recreação interna, que se vaza para dentro do
meu próprio espírito e nele fica, só se exteriorizando quando me dão um
golpe – que, na mor parte dos casos (ou em muitos deles), não tem nada
de polémico”3.
Exemplos de problemáticas/temáticas onde creio que esta hipótese
pode fazer avançar os estudos sergianos e não só: Inscrição do seu pensa-
mento pedagógico num quadro internacional (anos 1910); Sérgio leitor de
Antero de Quental e de Oliveira Martins, pensamento estético sergiano,
crítica ao anti-intelectualismo bergsonista (anos 1930); evolução do seu
platonismo ideal e sua interacção com implicações filosóficas da Física
Moderna; Sérgio assiste ao declínio de uma das escolas que marca a sua
formação – o neokantismo francês – como reage ele e qual é pois a actu-
alização do seu pensamento?
Em seguida exemplificarei brevemente um possivel caminho novo4.

1. Um campo intelectual a determinar


Em 1935, G. Le Gentil, na sua obra La littérature portugaise, ao considerar
‘Le mouvement nationaliste (1890-1934)’, descreve o campo intelectual
português do princípio do século XX. Considerando o campo da crítica
portuguesa, ele afirma:

La critique objective s’était déjà imposée, au temps d’Eça de Queirós, avec


Moniz Barreto. On ne saurait affirmer que, depuis, elle a rompu toutes ses
attaches avec les partis de gauche (Sampaio Bruno) ou de droite (António
Sardinha). Il est possible, d’autre part, qu’elle subisse l’influence des
essayistes espagnols, Ganivet, Unamuno, Ortega y Gasset, Eugenio d’Ors.
Mais elle tend vers une sorte d’équilibre. On a vu collaborer à Lusitânia
(1925-1927), excellente revue de culture, des écrivains partis de camps
opposés. Maintenant, si l’on excepte Teixeira Gomes, brillant prosateur
impressioniste, c’est la spécialisation qui semble prédominer: histoire de
l’art (António Arroyo, José de Figueiredo, Reynaldo dos Santos); histoire
littéraire (Luis de Almeida Braga, João de Barros, Câmara Reis, Castelo
Branco Chaves, Hernâni Cidade, J. de Magalhães Lima, A. Pimenta, J.

3
RÉGIO, José; SÉRGIO, António. Correspondência (1933-1958). Carta de António Sérgio
a José Régio, de 21.09.1936. Apresentação e notas de António Ventura, Portalegre:
Câmara Municipal de Portalegre/Centro de Estudos José Régio, 1994.
4
Este caminho surge mais amplamente tratado no meu recente livro Quatro Novos
Estudos sobre António Sérgio. Com um posfácio de Hermínio Martins. Casal de Cambra:
Caleidoscópio, 2012.
356 INSPIRAÇÕES PARA UM ENSAIO: O CONSIDERAÇÕES SOBRE O PROBLEMA DA CULTURA

Providência Costa, Ricardo Jorge, J. M. Rodrigues, M. Rodrigues Lapa,


Santana Dionísio, Agostinho da Silva, Vitorino Nemésio, etc…); philosophie
(Joaquim de Carvalho, Raul Proença). On se ferait une idée assez complète
des tendances actuelles en étudiant l’oeuvre de Agostinho de Campos,
le meilleur guide en matière d’éducation, de goût, de style, de Fidelino
Figueiredo, l’historien le plus qualifié de la littérature… enfin d’António
Sérgio, logicien et constructeur, orienté vers la pédagogie sociale et dont
les Essais (1920-1934) ont inauguré, contre le vague de la pensée et le flou
de l’expression, une vigoureuse réaction intellectualiste5.

Le Gentil valoriza António Sérgio enquanto ensaísta e nota a sua


posição particular, a qual não corresponde a uma simples especialização.
O meu propósito, no que segue, será o de ilustrar o cosmopolitismo
do ideário sergiano, estabelecendo uma relação com o espírito inicial da
Revue de Métaphysique et de Morale, precisando assim o que Le Gentil queria
significar ao falar da “vigorosa reacção intelectualista” sergiana6.
António Sérgio parte para Paris em 1926. Em fins de 1928, Joaquim
de Carvalho convida-o para escrever a conferência inaugural da “Semana
da Cultura”, a realizar entre 20 e 25 de Maio de 1929. Esta conferência,
Considerações sobre o problema da cultura, é escrita no meio de imensos outros
afazeres ligados à sobrevivência material, à organização da oposição no
exílio, etc. Apesar de António Sérgio se desculpar perante os destinatários
directos da conferência devido ao carácter desordenado e não original das
considerações, o certo é que o texto abrirá os Ensaios III7.

5
LE GENTIL, G. La littérature portugaise. Paris: Collection Armand Colin, 1935, cap.
XVI, “Le mouvement nationaliste (1890-1934)”, pp. 176-177. Uso a noção de campo
intelectual de modo informal; inspiro-me, por exemplo, em BOURDIEU, Pierre.
Homo academicus. Paris: Éditions Minuit, 1984; mas noto que a possibilidade de sua
estruturação, no caso concreto dos intelectuais portugueses do início do Estado
Novo, digamos da sua “vectorialização”, em torno, por exemplo, de noções de poder
e de capital intelectual, é-me desconhecida. Um estudo recente, nesta linha, é o de
DESVIGNES, Ana Isabel Sardinha. António Sardinha (1887-1925): Um intelectual no século.
Lisboa: ICS, 2006.
6
Ver SOULIÉ, Stéphan. Les philosophes en République, l’aventure intellectuelle de la Revue de
Métaphysique et de Morale et de la Société française de philosophie (1891-1914). Rennes:
Presses universitaires de Rennes, 2009 (coll. Histoire). Também DUCLERT, Vincent.
La pensée de Spinoza et la naissance de l’intellectuel démocratique dans la France
du tournant du siècle. Archives juives, n.° 36, 2003, pp. 20-42.
7
SÉRGIO, António. Considerações sobre o problema da cultura. In: ______. Ensaios, t. III,
1.ª ed. de 1932 (Porto: Renascença Portuguesa), 2.ª ed. de 1937 (Lisboa: Seara Nova).
João Príncipe 357

2. Inspirações contemporâneas directas


Quando Sérgio chega a Paris em 1926 é já um pensador maduro, adepto
de um racionalismo neokantiano, intelectualista e não dogmático. Ele vai
mergulhar directamente num meio onde a participação dos intelectuais na
vida pública, na política e no poder, é assinalável. A questão religiosa – a
tensão entre laicismo e igreja católica, o caso Dreyfus (anti-semitismo), as
questões morais levantadas pela Grande Guerra, estavam bem presentes.
O debate e as polémicas frequentes transbordavam largamente para além
do campo das questões mais puras, internas às disciplinas e saberes8.
Em 1927, Julien Benda publica, na Nouvelle Revue Française, o seu panfleto
La trahison des clercs, obra que adquire rapidamente uma visibilidade imensa na
França. Benda, ao se interrogar sobre qual deve ser o estatuto do intelectual
e ao defender a tese de que “les hommes dont la fonction est de défendre
les valeurs éternelles et désintéressées, comme la justice et la raison, ont
trahi cette fonction au profit d’intérêts pratiques”, visa directamente os
intelectuais pertencentes à Action française. Como nos diz Michel Winock:

La trahison des clercs consiste non pas à s’engager dans une action publique…
mais à subordonner l’intelligence à des partis pris terrestres. Selon Benda,
les clercs de jadis se détournaient de la politique par l’attachement qu’ils
avaient à une activité désintéressée (Vinci, Malebranche, Goethe)…, ou
alors ils prêchaient sous les noms d’humanité ou de justice, en faveur d’un
principe abstrait, supérieur et directement opposé aux passions politiques
(Érasme, Kant, Renan…)… Julien Benda illustrait ainsi à sa façon…la
théorie des deux pouvoirs, le pouvoir temporel et le pouvoir spirituel, qui
était dans la pensée de Saint-Simon, d’Auguste Comte, et de son contem-
porain Alain. Il faut dans toute société, en face des puissants, un pouvoir
spirituel, intellectuel, honoré selon une autre hiérarchie, qui rappelle les
principes éternels sur lesquels est fondée cette société9.

Um clerc, mantendo-se atento à vida da cidade, deve-se consagrar


essencialmente à sua vocação primeira, à reflexão, ao conhecimento
desinteressado, ao amor do belo, ao que o distingue de um faccioso domi-
nado pelas paixões partidárias. No Considerações sobre o problema da cul-
tura, António Sérgio alude a esta obra de Benda, sem citar o seu nome, ao
referir os obstáculos que encontra na sociedade do seu tempo ao avanço
da espiritualidade:

Ver WINOCK, Michel. Le siècle des intelectuels. Paris: Seuil, 1997.


8

BENDA, Julien. La trahison des clercs. 2.e édition. Paris: Grasset, 1946, cit. do “avant-
9

propos”. WINOCK, Michel, op. cit., pp. 196-197 e 201.


358 INSPIRAÇÕES PARA UM ENSAIO: O CONSIDERAÇÕES SOBRE O PROBLEMA DA CULTURA

O quarto [obstáculo] é aquilo que um filósofo e escritor françês denunciou


há pouco como “traição dos clérigos”, isto é, o facto de uma parte dos
escritores europeus… haverem desertado ignominiosamente do reduto
do ideal e dos valores da cultura, dedicando-se à faina de torcer o espírito
para o pôr ao serviço dos interesses de classe, de partido, de patriotismo
e de conservação social, fazendo-se pioneiros da mentalidade bárbara, e
sacrificando a Verdade aos oportunismos da Acção10.

O primeiro autor contemporâneo explicitamente referido por António


Sérgio no Considerações sobre o problema da cultura é o britânico Clive Bell
(1881-1964), autor do livro recentemente publicado Civilization11.
Civilization não é livro facilmente resumível. Para que haja civilização,
no sentido espiritual, deve existir uma elite com tempo para se dedicar
desinteressadamente à Cultura. Essa elite “desocupada”, que deve ser
mantida pela sociedade e ser suficientemente numerosa, deve ter capa-
cidade de apreciar as criações nos vários campos da Arte e da Ciência.
Ela deve possuir um conjunto determinado de características, para que a
civilização, a sociedade global, possua o senso dos valores e entronize a
Razão. Os membros da elite devem ter espírito cosmopolita, baseado no
individualismo tolerante, boas maneiras e humor, uma atitude objectiva
e anti-simplista que pressupõe a ideia do Homem Universal. Eis algumas
passagens de Bell, sublinhadas por António Sérgio e anotadas a lápis pelo
seu punho [em itl]:

The essential characteristic of a highly civilized society is not that is


creative, but that is appreciative [isto é capaz de criar ideias críticas (p. 71)].
[Ser civilizado é ser capaz de criar com alto e intenso espírito crítico (p. 71)] [O
bem supremo é a cultura; a política é um meio para a cultura; sacrificar bens
culturais (como a clareza das ideias, a objectividade científica) à propaganda de
qualquer política, é praticar um absurdo e fazer acto de selvajaria (p. 91)… Pode
dizer-se que um homem é tanto mais culto quanto mais intensamente aprecia
o valor supremo da liberdade (p. 80)] He who possesses a sense of values
cannot be a Philistine; he will value art and thought, and knowledge for
their own sake, not for their utility. When I say for their own sake, I mean,
of course, as direct means to good states of mind which alone are good
as ends12… [Um homem é civilizado na medida em que é capaz de procurar

10
SÉRGIO, António. Considerações sobre o problema da cultura. In: ______. Ensaios, t. III.
Lisboa: Sá da Costa, 1972, § 24, p. 41.
11
BELL, Clive. Civilization. London: Chatto and Windus, 1928.
12
Bell e o Bloomsbury Group a que pertencia, e entre os quais se contavam vários pin-
tores, escritores, literatos, e J. M. Keynes, foram muito influenciados pela leitura do
João Príncipe 359

bons estados de espírito por meios puramente espirituais, ou antes, pelos meios
mais directos para o prazer espiritual] (p. 91) It is the mark of a barbarian – a
philistine – that, having no sense of values, failing to discriminate between
ends and means and between direct means and remote, he wants to know
what is the use of art and speculation and pure science… (p. 92) [Assim,
por exemplo, a ordem social, para o homem culto, é um meio e não um fim; a
ordem social é desejável na medida em que concorre para a liberdade de espírito
(p. 92) meios: a ordem, a instrução, o Estado (p. 94)] The specialist is never
completely civilized13 (p. 97) He [who possesses a sense of values] aims
at complete self-development and complete self-expression: and these
are to be achieved only by those who have learnt to think and feel and
discriminate, to let the intellect play freely round every subject…. Know-
ledge in addition is needed; for without knowledge the intellect remains
the slave of prejudice and superstition, while the emotions sicken on a
monotonous and cannibalistic diet (p. 98)… A tendency toward cosmo-
politanism, based on individualism, a movement of liberation from the
herd-instinct, is the unfailing accompaniment of an advance of civility…
[amor da verdade – individualismo – cosmopolitismo – anti-simplismo] But a
civilized man sympathizes with other civilized men no matter where they
were born or to what race they belong (p. 104)14.

António Sérgio sublinha, na sua leitura, o valor do espírito critico e do


individualismo. Já no Educação e Filosofia discordava da existência de uma
“psique social independente dos indivíduos e superior a eles”, isto é, do
que considera a concepção hegeliana do Estado como origem suprema da lei
moral. Ora, o Cristianismo havia introduzido, com a separação entre o que
é de César e o que é de Deus, a ideia do “valor incomparável da consciência
humana”, ideia que o Iluminismo ampliaria15.

3. Espinosa e Fichte no centro de Considerações sobre o problema


da cultura
O carácter solto das Considerações esconde uma estrutura complexa.
A um dado nível de organização, a sistematicidade encontra-se nas três

Principia Ethica, de G. E. MOORE, em particular do cap. VI, “O Ideal”; ver em particular


o seu §113; há edição portuguesa da Gulbenkian, tradução de Maria M. R. Santos e de
Isabel p. dos Santos (1999).
13
Ver o que António Sérgio disse a este propósito em texto de 1918: SÉRGIO, António.
Da opinião pública e da competência em democracia. In: ______. Ensaios, t. I. Lisboa:
Sá da Costa, 1971, p. 234 e ss.
14
BELL, Clive, op. cit., cap. IV, “The sense of values”.
15
SÉRGIO, António. Educação e Filosofia. In: ______. Ensaios, t. I, pp. 144-145.
360 INSPIRAÇÕES PARA UM ENSAIO: O CONSIDERAÇÕES SOBRE O PROBLEMA DA CULTURA

grandes questões sobre o problema da cultura que António Sérgio formula:


1.ª – O que se entende por cultura, ou melhor o que é ser-se culto? 2.ª – Quais
são os obstáculos actuais à cultura? e 3.ª – Como é que se pode promover
a cultura? Mas, para além destas, há como que dois planos que se vão cru-
zando. No primeiro está a actualidade, os livros de Bell e de Benda, a análise
histórico-sociológica, o enunciado das virtudes e atitudes do indivíduo culto.
Estas virtudes encontram o seu fundamento num segundo plano, que é o
daquela Filosofia, onde as noções essenciais de interioridade, de imanência,
de entusiasmo e de Amor, são meditadas. Neste plano encontramos a
genealogia filosófica de Sérgio: Platão, Espinosa, Kant e Fichte.
No início de Considerações sobre o problema da cultura, afirma-se que o
ponto fundamental para nos orientarmos relativamente ao problema da
cultura é o reconhecimento de que “a realidade para nós é o nosso espírito”;
e os únicos fins e os únicos bens são os do espírito, “isto é, os bons estados
de consciência”. Já no ensaio Explicações a um catedrático de Direito, António
Sérgio parte da irredutibilidade da Consciência unificadora que formula um
dever-ser, o qual é simultaneamente prático e teórico, e da existência de
um Eu Absoluto identificado à Razão. A Razão (total) – o “Eu Absoluto que
se eleva acima do Eu empírico” – é a actividade ordenadora dos factos da
consciência que incluem o representativo (razão especulativa), os impulsos,
os sentimentos e o proceder, sendo essa mesma Razão que orienta a acção16.
Espinosa e Fichte são os filósofos implicitamente convocados desde
o início do ensaio. Nas Notas sobre Antero, publicadas em 1909, António
Sérgio refere Fichte muito brevemente. A Espinosa é dedicada uma das
Notas. Eis um excerto:

Tudo o que existe existe em Deus. Um modo da extensão e a ideia desse


modo são a mesma coisa expressa de duas maneiras. Sem dúvida não é o
nosso pensamento que é idêntico ao Ser, mas o Pensamento absoluto. Ora,
a dialéctica permite-nos subir dos sentidos à razão, da razão à intuição – do
primeiro ao segundo e ao terceiro género de conhecimento, – e atingir
assim a ideia do Pensamento universal, infinito, absoluto. A compreensão
das coisas aproxima-nos da compreensão de Deus, e podemos fazer que
todas as ideias sejam referidas à sua ideia… A passagem do pensamento
ao ser reduz-se à passagem de um pensamento inferior a um pensamento

16
Publicado em 1925, na Seara Nova; incluido depois em SÉRGIO, António. Ensaios, t. VII.
Lisboa: Sá da Costa, 1974, pp. 145-166. Outros ensaios anteriores de António Sérgio
importantes para a noção sergiana de cultura são: Ciência e Educação (A Águia, 1917),
publicado em Ensaios, tomo I; Divagações pedagógicas (1923) e O clássico na educação
(1926), publicados em Ensaios, tomo II.
João Príncipe 361

superior, mas imanente. A eterna realidade é idêntica ao pensamento


eterno, e achá-la-emos, não fora ou acima do intelecto, mas no mais
profundo e no mais íntimo do nosso acto de intelecção17.

A necessidade da ascensão aos níveis superiores do pensamento, onde


a inspiração da alegoria da caverna platónica está implícita, a natureza
imanente das ideias e o primado do Todo, e ainda a ideia da extensão como
objecto da inteligência que salienta o carácter de unidade e de interioridade
do verdadeiro pensamento, constituirão alicerces constantes do pensamento
sergiano.
Em Considerações sobre o problema da cultura, António Sérgio fornece
vários argumentos em favor da tese de que “a realidade para nós é o nosso
espírito”. Recorrendo à psicologia experimental, mostra o carácter sub-
jectivo da sensação: o estímulo não é condição necessária à sensação, caso
da alucinação; a presença de estímulo não é suficiente, caso da anestesia
térmica devido a lesão na espinal medula. António Sérgio conclui que a
característica última que fica do mundo externo é o ser espacial, isto é,
extenso. Inspirando-se de Espinosa, lido por Léon Brunschvicg (Spinoza, de
1894), o nosso autor abrevia uma suposta demonstração de que o espaço
deve ser concebido como criação do pensamento: o distintivo do pensa-
mento será o colocar o todo antes das partes e o infinito como anterior
ao finito; a ideia do espaço como um todo, independente das suas partes,
equivale a supor o espaço concepção do espírito. A conclusão espinosista
é de que o “espacial subsiste lado a lado do mental, sendo-lhe no entanto
inteiramente homogéneo, sendo susceptivel da mesma intelectualidade,
da mesma interioridade: a unidade e a indivisibilidade do pensamento tem
por corolário a unidade e a indivisibilidade da extensão”18.

17
SÉRGIO, António. Notas sobre os sonetos e as tendencias geraes da philosophia de Anthero de
Quental. Lisboa: Livraria Ferreira, 1909 (há reedição pela INCM), Nota XXXV (dedicada
a Espinosa).
18
BRUNSCHVICG, Léon. Spinoza et ses contemporains. 5.e édition. Paris: PUF, 1971 (1.ère
édition: 1923), p. 291. Cito Brunschvicg: “Si l’on considère l’objet de la pensée, qui est
l’univers, l’étendue apparaît comme un attribut de la substance, parce que l’étendue
est à la fois une et infinie. Il est vrai que cette conception de l’étendue nous est très
difficile, parce qu’il appartient à l’entendement seul de se la représenter sous cette
double catégorie d’unité et d’infinité [Eth. I, 15 Sch; I, 52. Cf. Lettre XII (29) à L. Meyer;
II, 42]. Or c’est l’imagination qui s’attache d’abord à l’étendue; naturellement elle ne
la saisit que par parties, et ces parties, elle les pose comme son objet immédiat; elle les
abstrait donc de ce qui est leur origine et leur raison. L’imagination conçoit l’étendue
comme composée de parties qu’elle peut à son gré ajouter les unes aux autres, et
comme il est impossible d’assigner une limite à l’addition mutuelle de ces parties,
362 INSPIRAÇÕES PARA UM ENSAIO: O CONSIDERAÇÕES SOBRE O PROBLEMA DA CULTURA

António Sérgio afirmará, na sequência: “É-nos necessário cogitar do


Espírito, não como de uma cousa defrontando as cousas, mas sim como
de um acto criador da extensão [do espaço]. Este acto mental criador da
extensão [do espaço] é o que gera o binário do eu e do não-eu; e estes dois
correlativos do eu e do não-eu são pois criaturas do nosso pensar [da nossa
actividade pensante]”19.
O carácter libertador deste ideário era óbvio para António Sérgio, tal
como o valor de Fichte neste movimento da filosofia ocidental de tomada
de consciência da espontaneidade do Eu e do significado da interioridade:

O mal do Europeu, se não estou em erro, é que a mente idealista e o pensar


reflexivo – a pura interioridade do racional – não logrou libertar-se da
sua escravidão à imagem sensível, às crenças mitológicas tradicionais
[espectros], à religiosidade grosseira da gente comum, ao rude instinto,
materializador… Homens houve em que a mentalidade europeia se revelou
de maneira mais intensiva, mais característica, mais radical. Por exemplo:
um Sócrates, um Descartes, um Espinosa, um Fichte… A revolução de Kant
foi um novo impulso para uma filosofia da consciência e da reflexão, –
revolução que culminou, poder-se-á dizer, na primeira fase da doutrina
de Fichte. Até hoje, porém, o idealismo racional do verdadeiro Europeu
não se inseriu ainda no viver social, não entrou nas almas, não modelou
a escola, não logrou transformar-nos à sua própria imagem20.

4. O espírito da Revue de Métaphysique et de Morale


O Espinosa de António Sérgio inspira-se bastante de suas leituras dos
franceses Victor Delbos (1862-1916) e Léon Brunschvicg (1869-1944). Estes
e Xavier Léon (1868-1935) interessaram-se muito por Fichte. A Revue de
Métaphysique et de Morale é fundada em 1893 por jovens que, nascidos cerca

elle en conclue que l’étendue est infinie. Ainsi se substitue à la conception intellec-
tuelle et vraie de l’infini une conception purement imaginaire. De cette confusion
naissent les absurdités où se débat la pensée vulgaire et dont elle ne sort qu’au prix
d’absurdités plus grandes encore… Le nombre étant un instrument pour la mesure
du fini, vouloir prolonger ce qui mesure au-delà de toute mesure, concevoir le nombre
comme infini, c’est proprement, dit Spinoza, délirer avec l’imagination… L’étendue
apparaît toujours à l’imagination finie, divisible et multiple; pour l’intelligence,
elle est infinie, indivisible, unique”. Ibidem, cap. III, “Dieu”, § 7, pp. 41-42. Neste
raciocínio de Espinosa-Brunschvicg-Sérgio, considera-se absurdo que a união de um
número infinito de agregados, cada um deles sem extensão, seja uma extensão; este
raciocínio é nitidamente pré-cálculo infinitesimal.
19
SÉRGIO, António, Considerações sobre o problema da cultura, § 9, p. 31.
20
Ibidem, §§ 29-30, p. 44; §39, p. 50.
João Príncipe 363

de 1870, iniciavam suas carreiras em Paris: L. Brunschvicg, X. Léon e Élie


Halévy (1870-1937), antigos alunos de Alphonse Darlu (1849-1921) no Liceu
Condorcet. O propósito expresso ao criar a revista é o de defender a tradição
filosófica contra o positivismo. Os criadores da revista, embora próximos
de Renouvier, Lachelier e de Boutroux, reclamaram-se preferencialmente
de Platão, Descartes, Espinosa, Leibniz, Kant e Fichte, procurando aper-
feiçoar o pensamento desses mestres clássicos. A Revue de Métaphysique et
de Morale tem, desde o início, grande abertura editorial: Poincaré, Bergson,
Durkheim, nela publicam. Mais do que por uma doutrina unificada, ela
caracteriza-se por um “espírito”. Mas a clivagem entre o intelectualismo
dos seus fundadores e o bergsonismo era bastante clara21.
Embora Xavier Léon falasse de “idealismo crítico” ou de “espiritualismo
racionalista” , Stéphan Soulié considera que o conceito que melhor traduz
o espírito da Revue de Métaphysique et de Morale é o de “intelectualismo”:

Le mot “intellectualisme” est peut-être celui qui réunit le mieux la majorité


des fondateurs de la Revue de Métaphysique et de Morale dans une commune
posture… Dans la controverse avec Bergson et son libre disciple Édouard
Le Roy, ou encore avec Maurice Blondel, le philosophe de l’action, c’est
d’abord le primat de l’intelligence, de la conscience claire qui est en jeu.
Rationaliser, c’est faire entrer toujours plus de clarté et d’intelligence
dans la connaissance réflexive de l’esprit ainsi que dans l’action et ne
jamais perdre de vue l’exigeante quête de la “vérité”… Cet intellectualisme
est d’abord un rationalisme inquiet devant le pouvoir de séduction des
fulgurances de l’intuition et horrifié par l’idée “pragmatiste” que la vérité
puisse être, en quelque sorte, subordonnée à l’action. Mais c’est également
un rationalisme de la raison en acte, vivante et progressive, ennemi de
toute scolastique desséchante, méfiant devant les architectures rigides,
les systèmes figés22.

António Sérgio subscreveria tais palavras e no Considerações sobre o


problema da cultura insiste no valor da posição intelectualista.
Para os fundadores da Revue de Métaphysique et de Morale ao se cultivar
a filosofia mais pura, é-se necessariamente conduzido à cidadania; aquela
permite fundamentar o empenho em causas públicas. Vincent Duclert

21
A oposição a Bergson foi notada por D. Parodi, destacado colaborador da Revue de
Métaphysique et de Morale, em PARODI, Dominique. La philosophie contemporaine en
France. Paris: Alcan, 1919, que António Sérgio leu. Ver também SOULIÉ, Stéphan, op.
cit., p. 13.
22
SOULIÉ, Stéphan, op. cit., p. 14.
364 INSPIRAÇÕES PARA UM ENSAIO: O CONSIDERAÇÕES SOBRE O PROBLEMA DA CULTURA

nota que eles se inspiraram em Espinosa para construir o seu ideal do


intelectual democrata:

[Spinoza] est le modèle des jeunes gens qui ont fondé la revue… Le con-
tenu de la revue et ses orientations révèlent la formation spinoziste de
ses jeunes créateurs et leur volonté de poursuivre l’approfondissement
de sa philosophie vers la définition d’une morale, synonyme de pouvoir
intellectuel sur l’ordre politique et social… À lire le futur Alain (Émile
Chartier) qui ne cessera de rendre hommage à Spinoza… on comprend le
rôle que le philosophe joue auprès des jeunes gens de la revue. Il est celui
qui unit en lui la philosophie la plus exigeante et la conscience politique
la plus forte23.

A filosofia deve pensar criticamente a ciência e fundar uma moral na


qual se pensam as condições de desenvolvimento da democracia. Delbos
e Brunschvicg são dos primeiros a reflectir sobre Espinosa nas páginas da
Revue de Métaphysique et de Morale. Fichte, que é especialmente estudado
por Xavier Léon, é visto como um dos “philosophes relais assurant le lien
avec Spinoza”24.

5. O lugar do filósofo: Espinosa e Antero


A influência de Antero e o ideal espinosiano do homem livre estão na
origem dos ideais democráticos de António Sérgio. Alain, no seu Spinoza,
disse, “Toute idée claire que nous formons diminue notre esclavage et
augmente notre liberté”, e António Sérgio escreveu a propósito de Espinosa:
“O conhecimento claro, que consiste na consciência imediata e intuitiva
da unidade de todas as coisas com a substância, conduz… necessariamente
à liberdade do espírito”25.

23
DUCLERT, Vincent, op. cit., pp. 28 e 30; ver também p. 33 e ss.
24
Ibidem, p. 28. Uma das primeiras vezes que António Sérgio cita Brunschvicg, em 1918,
fá-lo num óbvio contexto de intervenção cívica; o francês afirma: “A pátria é uma
ideia, e cumpre que a cada hora ela seja criada de novo pela vontade colectiva dos
cidadãos. Ela só verdadeiramente subsiste quando eles são verdadeiros patriotas, isto
é, quando eles renunciam a perpetuar os erros e os abusos do passado donde tiram
vantagens pessoais, quando conformam o seu proceder com o ideal, que a razão lhes
propõe, de justiça universal e de integral liberdade” – Revista Pela Grei, dirigida por
António Sérgio, p. 106, sem outra referência que o autor.
25
SÉRGIO, António. Entrada “Espinosa” da Grande Enciclopédia Portuguesa e Brasileira.
ALAIN. Spinoza. Paris: Gallimard, 1996 (1.ère édition de 1900), p. 95; SÉRGIO, António,
Considerações sobre o problema da cultura, p. 35.
João Príncipe 365

O ideal do homem livre que António Sérgio partilhava pode ser recons-
truído a partir de comentadores de Espinosa. No livro de Paul-Louis Cou-
choud sobre Espinosa, Sérgio sublinhou criteriosamente:

Dans les Passions de l’âme de Descartes… le type que reprendra Spinoza est
déjà fixé. C’est “l’homme généreux”, sa marque est d’avoir une grande
passion… sans mélange, qui emplit seule la capacité de son cœur et à
laquelle toutes les autres ploient et obéissent (p. 235). La grande passion,
pour Descartes, ne s’oppose pas à la raison. Elle est tout intellectuelle…
A mesure que s’accroît la netteté de l’esprit, la passion grandit (p. 236).
“Tirer de la joie de tout” est le mot qui termine le traité des Passions.
Tant que l’esprit reste limpide… toutes les passions s’ennoblissent…
L’homme généreux de Descartes devient l’homme “libre” de Spinoza (p.
237). L’homme libre… ne fait pas la différence entre le futur, le présent,
le passé, mais entre le réel et l’imaginaire (Eth. IV, 62 et sc.: a). Pour lui,
une chose réelle passée, une chose réelle à venir, ont autant d’existence
qu’une chose présente (p. 240)26.

A comunhão da razão com o desejo de viver e as suas implicações


para a vida comunitária são também evidenciadas por Couchoud. António
Sérgio sublinhou:

La raison, c’est-à-dire la loi d’unité dans la vie de chaque homme et


principe d’union entre tous les hommes ( p. 241). L’élément fondamental
de la passion: le désir de vivre, se confond avec la raison. Il est à la fois
un principe d’unité dans la vie de chaque homme, d’union entre tous.
Vouloir vivre n’est pas une idée confuse, mais une idée concrète adé-
quate (Eth. IV, th. 23 e th. 25), l’essence même de l’âme individuelle. Et
les désirs humains se trouvent d’accord de si juste façon que suivre son
désir propre, c’est faire le bien des autres hommes. Plus chacun désire ce
qui lui est utile, plus les hommes sont réciproquement utiles les uns aux
autres; c’est la doctrine que Spinoza veut établir contre Hobbes. Elle est
seulement esquissée dans l’Éthique; elle sera développée dans le Traité de
Politique (p. 243). La fraternité humaine… n’a rien de mystérieux; c’est une
façon positive, intelligente, pour chacun d’entendre son intérêt propre.
De là suit la théorie essentielle du quatrième livre, l’accord de la vertu,
c’est-à-dire du désir avec la raison (p. 244)27.

26
COUCHOUD, Paul-Louis. Benoit de Spinoza, Ouvrage couronné par l’Académie française.
Paris: Félix Alcan (1924, 2.ème édition revue, 1.ère éd. de 1902); P.-L. Couchoud (1879-
1959), ENS, agrégé de philosophie.
27
Ibidem.
366 INSPIRAÇÕES PARA UM ENSAIO: O CONSIDERAÇÕES SOBRE O PROBLEMA DA CULTURA

A Razão que é comum a todos os homens, tendo cada um a sua per-


sonalidade, a sua essência irredutível, se a ela se souberem elevar pelo
amor à verdade, permitirá a real fraternidade. Espinosa escreveu: “Só a
verdade é capaz de unir profundamente os sentimentos diversos e as almas
diversas”. E Alain afirmou:

Il y a donc une nature humaine réellement commune à tous les hommes,


et qui est la Raison même. Et c’est pourquoi il n’y a rien au monde qui
soit aussi utile à un homme raisonnable qu’un homme raisonnable…
Les hommes ignorants, même lorsqu’ils sont unis les uns aux autres par
la crainte, sont toujours divisés par la convoitise; cela vient de ce qu’ils
sont portés de tout leur désir vers les choses matérielles que nul ne peut
posséder sans en priver les autres. L’homme raisonnable, au contraire…
ne désire rien autre que comprendre, et le souverain bien pour lui, c’est de
connaître Dieu. Seule parmi tous les biens, la vérité peut être toute à tous28.

Brunschvicg nota como Espinosa decidiu escrever o seu Tratado de


Teologia e de Política para apoiar a acção política de Jean de Witt, mostrando
assim a conformidade da sua acção cívica com a da sua filosofia da liberdade:

Spinoza, d’autre part, n’avait pas voulu que sa science et sa philosophie


demeurassent inutiles pour la cause de la liberté politique… Fort de l’appui
du grand pensionnaire [Jean de Witt], au lendemain de l’emprisonnement
et de la mort d’Adriaan Koerbagh, il publia le Traité de théologie et de poli-
tique. Ce n’est pas seulement une revendication des droits de la pensée
et de la critique… c’est aussi l’effort le plus profond pour assurer la paix
religieuse entre les hommes, en la fondant sur une conception toute
spirituelle de Dieu. Le sanctuaire du vrai Dieu, ce ne sont, dit Spinoza, ni
les pages altérées des livres d’autrefois, ni les chênes des forêts, ni les
entrailles des victimes; c’est ce qu’il y a de plus noble dans la nature, l’esprit de
l’homme qui a conçu l’idée de Dieu, c’est là qu’est le temple où la vérité se révèle
éternellement (Theol. Pol., XII; I)29.

O socialista libertário Antero de Quental termina o seu ciclo “A Ideia”


com aqueles mesmos versos que Sérgio citou também em Considerações
sobre o problema da cultura:
O Paraíso e o templo da Verdade,
– ó mundos, astros, sóis, constelações! –
nenhum de vós o tem na imensidade…

28
ALAIN, op. cit., p. 96.
29
BRUNSCHVICG, Léon, op. cit., p. 145.
João Príncipe 367

A Ideia, o sumo Bem, o Verbo, a Essência,


só se revela aos homens e às nações
no céu incorruptível da Consciência!

A ligação deste soneto às reflexões sergianas sobre política é demons-


trável. Em Considerações sobre o problema da cultura, o ideal democrático não
é explicitamente mencionado, o que se deve provavelmente ao contexto
político de então. Os diálogos de doutrina política, não publicáveis durante
a ditadura, escritos cerca de 1933, mostram como António Sérgio fundava
na filosofia as suas teses políticas:
O ideal democrático, o sistema das ideias: esse é eterno, porque deriva da
estrutura da consciência humana. A razão exige-o como um fim; a experiência
depois selecciona os meios, aperfeiçoa os orgãos (p. 7).
O verdadeiro religioso não pode senão ser democrata. Os corolários do
cristianismo estão necessariamente na ala esquerda (p. 19).
Para nós, os idealistas, o essencial é a dignidade da pessoa humana, incon-
cebível sem a liberdade (p. 41).
Quem despreza o idealismo dos bons “filósofos” – chega facilmente e com
perfeita lógica às mais horríveis das monstruosidades… e a Democracia,
no aspecto moral, é a vontade de resistir às monstruosidades do mando
[O poder corrompe; o espírito é incompatível com o menor poder] (p. 57).
Para nós, como te disse, a política é um instrumento da cultura, o esta-
dista é um obreiro da moral; e a nossa moral, por seu turno, vem de uma
revelação da consciência:
A Ideia, o sumo Bem, o Verbo, a Essência,
só se revela aos homens e às nações
no céu incorruptível da Consciência!
Escreveu o nosso Precursor em um soneto. Dessa revelação da consciência é
que procedem as teses da democracia, e os conceitos de pessoa e de cidadão,
os quais se opõem aos conceitos de classe, de grémio, de Corporação…
Noto, porém, que as tendências realistas do teu espírito te tornam difícil
de compreender a dedução filosófica e idealista, que leva da análise da
consciência até à política da democracia (p. 76)30.

A influência de Antero no pensamento político e filosófico do jovem


Sérgio foi decisiva: “Sem embargo de ser democrata (e sobretudo democrata-
social), [António Sérgio] discordou da concepção que tinham da democra-
cia os tribunos republicanos do tempo da propaganda (1906-1910); cedo

30
SÉRGIO, António. Democracia. Lisboa: Sá da Costa, 1974 (col. Clássicos). As citações
são excertos das falas do Libertário, sendo o Estadista seu interlocutor.
368 INSPIRAÇÕES PARA UM ENSAIO: O CONSIDERAÇÕES SOBRE O PROBLEMA DA CULTURA

adoptara uma orientação contrária ao puro liberalismo económico, incutida


pela leitura de um dos seus predilectos entre os autores portugueses, Antero
de Quental”. No panfleto de 1918, “Da opinião pública e da competência
em Democracia”, António Sérgio começa por citar Antero e nota que a
tendência democrática contemporânea, entre outras fontes, resulta do
desenvolvimento espiritual da humanidade e do progresso da ideia de
dignidade humana. António Sérgio afirma que é dever dos intelectuais
ajudar a constituir a opinião pública, que necessita de elites organizadas,
sem cuja fiscalização é impossível haver democracia31.
Que Espinosa está no fundamento dos conceitos sergianos de democra-
cia atesta-o o espírito geral dos seus escritos. Uma prova concreta resulta
de comparar o seu texto Democracia, de cerca de 1934, com declarações suas
sobre o pensar de Espinosa. Aí afirmou:

Ser experimental, com efeito, e essencialmente criadora nos seus métodos,


é o carácter distintivo da concepção democrática, idealista e crítica… Se
a lei é imperfeita – e nasce toda a obra com imperfeições, só as perdendo
por correcções sucessivas, ditadas pela experiência… O verdadeiro
pensamento democrático é um pensamento não dogmático, e a maneira
experimental de proceder é a única maneira não dogmática… a política
experimental, que é uma maneira essencialmente crítica de fazer as
coisas.

Portanto, o desenvolvimento prático da democracia comporta a atitude


crítica, experimental, ou seja, científica. Ora, para António Sérgio, que
sempre valorizou o fundamento metafísico da acção do pensar, a imanência
do Deus de Espinosa correspondia a esse fundamento que justifica aquela
atitude, como se vê na passagem seguinte, que tomada em si é algo críptica:

do cogito salta Descartes para o Deus transcendente, – não construindo,


por isso, uma metafísica do labor científico, adaptada à mentalidade de
quem faz ciência… Somente em Espinosa é que vamos ver – com o Deus

31
Entrada “Sérgio” da Grande Enciclopédia Portuguesa e Brasileira. “Da opinião pública…”
foi publicado em Janeiro de 1918 na revista fundada por António Sérgio, Pela Grei (Da
opinião pública e da competência em Democracia. Pela Grei, Revista para o Ressurgi-
mento Nacional. Pela Formação e Intervenção de uma Opinião Pública Consciente. Lisboa,
Oficina do Anuário Comercial, n.º 1, 1.º ano, 1918, pp. 46-53), sendo integrado no
tomo I dos Ensaios (1920); António Sérgio afirma aí que “quem faz a opinião pública
são os intelectuais e os homens de elite de cada classe”, p. 232 da edição da Sá da
Costa.
João Príncipe 369

imanente da sua Ética – uma metafisica adequada a um experimentalismo


radical32.

Para Sérgio, havia um lugar na cidade para o poeta-filósofo, um lugar


que se conquista, mesmo, ou sobretudo, fora da Universidade.

Conclusão
Sérgio bebe de diversas tradições, tal como antes o fizeram Camões,
Herculano, Antero, para citar alguns daqueles que, nascidos em solo pátrio,
muito o inspiraram. Ele não pode ser lido atentamente sem se atender à
sua vasta cultura, sem se considerar as inspirações do seu ideário filosófico,
manifestas nas suas leituras, as quais importa reconstruir. Estas remetem
para os grandes mestres e para seus “comentadores”; a leitura destes,
penso em particular nos franceses, está, tal como em Sérgio, condicionada
pela sua acção, pelo seu empenho político. O Espinosa e o Fichte, tal como
o Platão de Sérgio, são certamente mediados pelas leituras dos fundadores
da Revue de Métaphysique et de Morale.
A história filosófica da filosofia e a história da cultura não parecem
ter ainda ocupado o lugar a partir do qual a historicidade das leituras, do
discurso, e acção dos homens-filósofos sobre seus antepassados, surge
claramente iluminada.

SÉRGIO, António, Democracia, pp. 94, 95, 98. A passagem sobre Espinosa encontra-se
32

no texto “O Reino cadaveroso ou o problema da cultura em Portugal”, conferência lida


em Coimbra, em 1926, integrada no tomo II dos Ensaios, p. 43 da edição da Sá da Costa.
370 Inspirações para um ensaio: O Considerações sobre o problema da cultura
Sérgio e Einstein: Aspectos de
uma empatia intelectual*

JOÃO MARIA DE FREITAS BRANCO


Centro Interdisciplinar de Ciência, Tecnologia e Sociedade da
Universidade de Lisboa

António Sérgio de Sousa, de seu nome completo, e Albert Einstein


não só foram contemporâneos como também pertenceram ambos a uma

* O trabalho de investigação científica que serviu de base à redacção deste ensaio foi
realizado com o apoio da FCT-Fundação para a Ciência e a Tecnologia. O autor expressa
aqui, publicamente, o seu agradecimento por esse importante apoio. O presente ensaio,
concluído em Março de 2010, é o resultado de um estudo pioneiro iniciado em 2009.
Daí resulta que algumas referências feitas a um inédito de Vasco de Magalhães-Vilhena
perdessem actualidade, já que a partir de Maio de 2013 aquilo que à data da redacção
deste ensaio era uma fonte inacessível, um escrito inédito, passou a ser texto publicado
(MAGALHÃES-VILHENA, Vasco de. António Sérgio. O idealismo crítico: Génese e estrutura. Raízes
gnoseológicas e sociais. Estudo de história social das ideias. Edição, prefácio e notas de Hernâni
Resende. Lisboa: Edições Colibri, 2013). Contudo, o texto agora revelado não contém
novidade no que concerne ao essencial da visão interpretativa de Magalhães-Vilhena e,
também por isso, em nada me força a rever as conclusões da investigação realizada. Estas
não perderam actualidade. Assim sendo, optei por não efectuar nenhuma alteração – nem
mesmo na nota onde se refere, e se agradece, a generosa colaboração prestada por um
amigo entretanto desaparecido, o Eduardo Chitas, que nos deixou no dia 18 de Março de
2011. Ao leitor, solicito agora que considere a data da redacção do ensaio (2009/2010) e
não a data da edição. Desejo ainda prestar um esclarecimento adicional. Ao escrever o
presente ensaio tinha há muito conhecimento da existência de um longo texto inédito
e inconcluso, redigido por Vasco de Magalhães-Vilhena e destinado à preparação de um
seu novo livro dedicado ao pensamento filosófico de António Sérgio, obra que seria um
significativo desenvolvimento do pequeno volume publicado em 1964, com a chancela
da Seara Nova. Tentei várias vezes, a partir de 1993 (ano da morte de Magalhães-Vilhena),
obter autorização para consultar esse material, depositado no espólio entretanto entregue
pela família de Magalhães-Vilhena ao Partido Comunista Português. Por motivos vários,
nem sempre entendíveis ou respeitáveis, mas estranhos à minha vontade, nunca foi
possível realizar a desejada consulta directa do texto. No entanto, por especial gentileza
dos professores Hernâni Resende e Eduardo Chitas, as duas pessoas que, muito mais tarde,
já na altura em que realizava a investigação para este meu ensaio, estavam a ultimar o
espinhoso trabalho de dar o acabamento possível à amálgama de textos (manuscritos e
dactilografados) existentes no espólio, foi-me possível não só obter alguma informação
útil para a minha investigação como também a autorização para revelar, pela primeira
vez de forma pública, o título do livro em preparação.
372 Sérgio e Einstein: Aspectos de uma empatia intelectual

mesma geração e quando o nosso filósofo-ensaísta nasceu, em Damão, no


ano de 1883, apenas quatro anos depois do nascimento de Einstein – que
já habitava o planeta desde a manhã de sexta-feira, 14 de Março de 1879 –,
quem possuísse bola de cristal para ler o destino desse ser recém-chegado
ao mundo seria capaz de prever, com mágica exactidão, que a figura e a obra
do criador da Teoria da Relatividade, uma das mais magníficas expressões
da arquitectura de pensamento, iria atrair fortemente a atenção do futuro
filósofo de lusa nacionalidade. Nem mesmo o obstáculo da distância geo-
gráfica entre a Índia portuguesa, ou a Lisboa capital de império colonial, e
a Ulm, cidadezinha de uma Suábia então recentemente integrada no Reich
alemão, podia – até mesmo nesse tempo pré-Internet, de um mundo ainda
longe de estar globalizado – impedir a familiaridade intelectual justifica-
tiva deste nosso estudo. Desde logo porque como genuíno neokantiano,
António Sérgio sempre encarou a filosofia como sendo algo umbilicalmente
associado à ciência. Na sua óptica neokantiana, afim da de um Natorp ou
de um Ernst Cassirer, mas também associada ao pensador francês Léon
Brunschvicg – autor caído no esquecimento mas que muito influiu no
conteúdo e na forma do ensaísmo sergiano1 –, a filosofia apresenta-se como
sendo essencialmente um espaço de reflexão sobre a ciência, obedecendo,
até por isso, às mesmas exigências de rigor, de racionalidade extreme, de
travejamento lógico convocadas pelo espírito científico que subjaz à acção
de quem trabalha no domínio da física, como Einstein, ou no de qualquer
outra das chamadas ciências duras.
Logo nisto António Sérgio se singularizava numa paisagem nacio-
nal afectada de neblinas sebásticas, não só, nem preponderantemente
matinais, em que de modo persistente a filosofia (o trabalho filosófico)
foi sendo entendida como romance de ideias. Daí que sempre ele tenha
criticado a localização do ensino da filosofia ou da educação para o filosofar
(para assim obedecermos a forma mais kantiana) em espaços académicos
como o que acolhe este nosso Colóquio. As denominadas Faculdades de
Letras. A Filosofia, por definição, pode estar, com plena legitimidade, em
qualquer faculdade, seja ela de letras ou de ciências. Em minha opinião,

Brunschvicg (1869-1944) exerceu particular influência na filosofia francesa do


1

final do século XIX e até à Segunda Grande Guerra, nomeadamente através da sua
colaboração na notabilizada Revue de Métaphysique et de Morale e da sua actividade
docente na Sorbonne – entre 1909 e 1939, ano em que foi interrompida em virtude da
guerra. Se relermos Brunschvicg em paralelo com alguns ensaios de António Sérgio, a
proximidade entre os dois autores torna-se evidente. Ambos terão sido “vítimas” das
modas filosóficas que se foram instalando ao longo do século XX e que não geravam
ventos muito favoráveis ao neokantismo.
João Maria de Freitas Branco 373

e talvez incorrendo em alguma dessintonia com a visão sergiana, numa


universidade desenvolvida ou, se se preferir adoptar linguagem ao gosto do
nosso pensador, na universidade ideal todas as faculdades deviam albergar
a disciplina de Filosofia. Mas para a formação específica dos profissionais
da Filosofia, a ter que haver uma escolha, ela deveria recair na Faculdade
de Ciências. É na companhia das ciências, numa permanente proximidade
com elas, que deve estar o ensino da Filosofia, a preparação para o trabalho
filosófico. Sérgio sempre insistiu neste ponto. Uma tecla percutida ao longo
de toda uma vida com perseverança recorrente que até pode parecer pecar
por excesso. Mas creio que só a considerará verdadeiramente excessiva
quem desconheça a ambiência pátria com a qual o filósofo-ensaísta estava
confrontado e que tanto o agredia e desgastava. Só a clara percepção dessa
realidade nacional intelectualmente debilitada, despida ou privada do
hábito do elevado filosofar sistemático, do autêntico pensar filosófico,
deficitária de uma tradição de alta cultura, só essa percepção nos pode
levar a compreender a causa profunda de ser o sergismo uma filosofia de
combate. Algo que, aproveite-se para o dizer, não se pode, nem deve, separar
da forma ensaística do seu discurso filosófico, do figurino do seu filosofar.
Sem mágica bola de cristal, mas com a confortável perspectiva
histórica de quem, no tempo, observa da frente para trás, do presente
para o passado realizado, estamos em condições de poder afirmar com
inequívoca segurança que António Sérgio não só investiu, generosa-
mente, tempo e inteligência no cuidado estudo do pensamento de Albert
Einstein, como também desejou conhecê-lo pessoalmente. Estar em
directo contacto com o arquitecto da Relatividade. Vontade essa que no
caso vertente adquire significância particular, transbordando o espaço
da vulgar atracção pelas celebridades. Sabe quem teve a felicidade de
poder privar com Sérgio ter sido ele pessoa pouco dada a essa comum
inclinação; era, pelo contrário, muito selectivo no convívio social,
evitando quem não lhe despertava interesse, fosse qual fosse a impor-
tância social da personagem. Atitude desde cedo exibida. Recorde -se,
a título de exemplo, o facto de já na sua adolescência se ter recusado
a ser apresentado à família real. Recusa, note -se bem, de quem era
filho de um oficial da armada de alta patente, conselheiro e ajudante-
de-campo honorário do rei, o Vice-Almirante António Sérgio de Sousa.
Mas em relação à pessoa desse Albert passou-se o contrário, porque os
seus “deuses” eram desse tipo: terrenos, falíveis, imperfeitos, nada
omniscientes nem omnipotentes, mas admiravelmente criativos na
sua humana imperfeição, na sua humana grandeza. Disso mesmo era
374 Sérgio e Einstein: Aspectos de uma empatia intelectual

Einstein paradigmático exemplo. Por essa razão, mas não só, parece-
me existirem fortes motivos para acreditar que o nosso filósofo tenha
expressado a alguns amigos a vontade de conhecer o celebrado físico; e
em primeiro lugar àquele que era simultaneamente seu dedicado amigo
e não menos afectuoso amigo de Einstein: refiro-me a Paul Langevin, de
quem António Sérgio tinha em casa, na Travessa do Moinho de Vento,
uma fotografia autografada, afectuosa e respeitosamente colocada sobre
o tampo da sua secretária. O ilustre físico francês teve, como é sabido,
papel proeminente na apresentação científica, defesa e ampla divulgação
da Teoria da Relatividade, nomeadamente no nosso país, quando em
finais do ano de 1929 aqui realizou um conjunto de conferências nas
universidades de Lisboa, Porto e Coimbra, inteiramente dedicadas à
teoria einsteiniana e em que, para além da óbvia vertente científica (as
questões de física), não deixou de dar particular relevo às suas implica-
ções filosóficas. No plano das quatro conferências proferidas em Lisboa,
na politécnica, como então se dizia referindo a Faculdade de Ciências
da Universidade de Lisboa, um dos temas indicados era: Valor filosófico
da Teoria da Relatividade. Temática que por certo várias vezes marcou
presença nas conversas pessoais do sábio francês com Sérgio, muito
embora este nos surpreenda com um comento aposto numa das Cartas
de problemática sobre a sensibilidade filosófica do cientista seu amigo
e amigo de Einstein; podemos aí ler o seguinte: “O meu grande amigo
Paulo Langevin foi um mestre estupendo de ciência física, mas não lhe
senti interesse filosófico profundo”2.
Estas conferências, embora não tendo sido o principal motivo da
deslocação do físico francês a Portugal3, tiveram bom eco na imprensa
da época (em O Século e Comércio do Porto) e constituíram um marco no
demorado processo de integração da Relatividade no nosso meio académico
e cultural. Como afirma Augusto Fitas no seu importante estudo “A Teoria
da Relatividade em Portugal (1910-1940)”: “Esta visita e o início da che-
gada de alguns físicos, bolseiros da Junta de Educação Nacional em países
europeus, constituirão o estímulo para que o tema Relatividade comece,
lenta e esporadicamente, a ser, não só incluído no ensino da Física, como

2
SÉRGIO, António. Cartas de problemática dirigidas a um grupo de jovens amigos, alunas e
alunos da Faculdade de Ciências. Carta n.º 2. Lisboa: Editorial Inquérito, 1952-1955, p. 6.
Citarei esta obra sempre a partir da sua primeira edição.
3
Langevin deslocou-se a Portugal na qualidade de representante oficial do Collège
de France para participar nas cerimónias do III Jubileu da Academia de Ciências de
Lisboa, visita que contou com o apoio do Instituto Francês de Portugal.
João Maria de Freitas Branco 375

também objecto de conferências universitárias, já que, tanto quanto se


saiba, na época, nunca foi alvo de qualquer tentativa de investigação por
parte dos físicos”4.
António Sérgio não pôde presenciar nenhuma das palestras de Lange-
vin. Estava então impedido de entrar no seu próprio país. Tinha-se exilado
em Paris três anos antes. Porém, isso não o impediu de se manter informado
sobre a forma como decorreu a visita e, posteriormente, sobre os efeitos
intelectuais dela. Para além do “relatório” que o amigo Paul Langevin se
terá generosamente apressado a fazer-lhe chegar, nesse que foi o período
de mais intenso convívio pessoal entre ambos, há que supor que, incansável
escritor epistolar como era, Sérgio tenha recebido informação também
através da correspondência mantida com alguns amigos ou conhecidos
que, vivendo em solo pátrio, puderam participar nas sessões académicas
realizadas nas principais cidades do país. Além disso, nessa altura já estava
criado o triângulo relacional Sérgio-Langevin-António da Silveira. Este
último tinha chegado a Paris pouco tempo antes, solicitando o apoio de
Sérgio5, que por seu turno o apresentou e recomendou a Langevin com o
objectivo de obtenção de um posto de trabalho como investigador científico
no Collège de France.
Importa talvez dizer desde já que nas acesas controvérsias em torno
da Relatividade, bem como perante os duros ataques, incluindo os de
natureza extra-científica, desferidos contra a pessoa do autor da teoria,
António Sérgio sempre esteve na barricada dos defensores; não na dos
críticos e menos ainda na dos acanhados, odiosos e bárbaros inimigos de
inspiração anti-semita (fossem eles cientistas, académicos, gente culti-
vada, ou meros esbirros partidarizados). Findo o seu primeiro exílio, em
meados dos anos 30 do século XX, não deixará ele de se integrar, directa e
indirectamente, no movimento cultural que por esse então, no acanhado
meio cultural lusitano, fez da Relatividade bandeira contra a mentalidade
anti-modernidade/modernização (tanto material como espiritual), contra

4
FITAS, Augusto. A Teoria da Relatividade em Portugal (1910-1940). In: FIOLHAIS,
Carlos (coord.). Einstein entre nós. Coimbra: Imprensa da Universidade de Coimbra,
2005, p. 28.
5
Muito embora não o conhecesse pessoalmente. Só nessa altura começou a germinar
uma amizade que se manteria até o fim da vida do filósofo e teve relevantes reflexos
na prosa sergiana sobre física. Em particular sobre temas relacionados com a mecâ-
nica quântica. Silveira actuou como conselheiro científico, sugerindo, a pedido do
próprio Sérgio, exemplos concretos, como elementos justificativos e corroborantes
da argumentação filosófica.
376 Sérgio e Einstein: Aspectos de uma empatia intelectual

o salazarento horror ao progresso. Acção essa que teve nas páginas da Seara
Nova, de O Diabo, de o Sol Nascente alguma da sua melhor expressão pública6.
Não por acaso, quando em 1937 se reacende a polémica da Relatividade
nas páginas da Seara Nova com a intervenção do Almirante Gago Coutinho
(adversário da teoria e que já em 1925, no Brasil, ouvira, com desaprovação,
Einstein discursar sobre o tema) – polémica que tinha tido os seus primeiros
episódios precisamente no seguimento das palestras de Langevin (em
1930) –, alguém pertencente ao núcleo pró-Einstein, insurgindo-se “contra
o acolhimento dado pela Seara” aos textos do Almirante, logo declarou
“[ser] preciso escrever uma carta ao Sérgio”7.
Regressemos ao desejo de conhecimento pessoal.
Na verdade, bem podia tê-lo conhecido alguns anos antes, em 11 de
Março de 1925, quando o já célebre físico fez escala em Lisboa a caminho
da América do Sul. Acontece que por cá ninguém soube nem se apercebeu
da presença do ilustre visitante. Algo que diz bastante sobre o estado de
saúde cultural do país. E não se tivesse dado o caso de o viajante ter lançado
nas páginas do seu diário de viagem as vivências lisboetas, provavelmente
nada saberíamos ainda hoje sobre essa curta permanência do autor da Teoria
da Relatividade na nossa capital, onde pôde circular entre o Castelo e os
Jerónimos, onde se extasiou com o claustro, sem ser notado por ninguém.
Pouco tempo depois da indiferença lisboeta, o Brasil recebia-o de modo
bem diferente: os jornais do Rio noticiavam a visita “do maior génio que a
humanidade produziu depois de Newton”.
Outra ocasião em que Sérgio podia ter estado na companhia de Einstein e
que teria constituído para si momento particularmente marcante, foi quando
este visitou a capital francesa no ano de 1922, aí proferindo conferências que
ficaram célebres também em consequência do espaço institucional que as
acolheu e, principalmente, pela singular qualidade das plateias reunidas.
Para mais, o seu amigo Langevin foi um dos principais promotores. Foi ele,
coadjuvado pelo astrónomo Charles Nordmann (do Observatório de Paris),
quem acompanhou Einstein desde a sua chegada à fronteira, protagoni-
zando rocambolescos episódios tendentes a evitar incómodos ao ilustre,
mas polémico, convidado germânico, uma vez que, para além do assédio de

6
Estes periódicos de índole cultural albergaram também o discurso anti-Relatividade,
abrindo assim espaço para a polémica que, nas suas melhores concretizações, foi
controvérsia bem informada e fundamentada.
7
Ver SILVEIRA, António da. Recordando António Sérgio. In: AA.VV. Homenagem a
António Sérgio. Lisboa: Academia das Ciências de Lisboa - Instituto de Altos Estudos,
1976, p. 24.
João Maria de Freitas Branco 377

jornalistas e fotógrafos, se temiam manifestações de repúdio logo à chegada


a Paris, organizadas pelos nacionalistas franceses8. Considerando esta grande
oportunidade desperdiçada, quase chegamos a lamentar que a ida de Sérgio
para Paris, como exilado político, não tivesse ocorrido uns anos mais cedo.
É fácil supor ter ele próprio expressado esse lamento ao escutar da boca de
testemunhas directas os racontos das lendárias conferências de 1922. Mas
esse exílio só se concretizou em consequência das mudanças políticas de
orientação anti-republicana operadas pelo golpe de Estado militar de 28
de Maio de 1926, instaurador da ditadura. Algum tempo antes de ter sido
esmagada a revolta “reviralhista”, iniciada no Porto a 3 de Fevereiro de 1927,
Sérgio fora avisado de que iria ser detido, resolvendo então abandonar o país
(em finais de 1926). Permanecerá sete anos em Paris, até o ano de 1933. Aí
manteve contacto com outros cientistas da área da física, bem como com
pessoas do mundo da ciência em geral, incluindo pessoas que embora não
vivendo na cidade luz por aí passavam. Cumpre destacar o nome do psicólogo
suíço Eduard Claparède, nome grande da psicologia experimental e fundador
do Instituto J.J.Rousseau de Genève, em cuja Escola de Educação Sérgio se
inscreveu em 1915, tendo sido nessa época que se desenvolveu a relação de
amizade com Claparède. Mas entre as sumidades, sabe-se ter havido também
um encontro com Émile Borel; e um comentário publicado sobre a forma
como Louis de Broglie se exprimia na sua cátedra sugere observação directa9,
sendo de qualquer modo improvável não ter havido, em outras circunstâncias,
contacto pessoal através de Langevin que, recorde-se, tinha integrado, em
1924, o júri da tese de doutoramento do Louis de Broglie e era um dos seus
mentores no meio académico10.
Não se olvide, por ser relevante para o nosso contexto temático, o
indisfarçável gosto com que Sérgio dizia:

“Tenho sempre vivido em comunicação com cientistas, com os quais eu


me entendo muito melhor que com líteras”11.

8
Leia-se a este propósito, e entre outras obras, a extensa biografia da autoria de CLARK,
Ronald W. Einstein – the life and times. London: Hodder and Stoughton, 1979, p. 276 e ss.
9
É num artigo datado de 1937 que se pode ler o seguinte comentário depreciativo: “Luiz
de Broglie […] exprime-se com embaraço na sua cátedra” – SÉRGIO, António. Notazinha
ao artigo de Abel Salazar. Seara Nova, Lisboa, n.º 515, 26 de Junho de 1937, p. 210.
10
Foi inclusivamente o próprio Langevin quem ficou incumbido da tarefa de redigir o
parecer final do júri da tese de doutoramento.
11
SÉRGIO, António. Ensaios, t. II. Lisboa: Sá da Costa, 1972, p. 235 – página em que
cita os nomes de Langevin e Claparède como membros do seu círculo de amigos.
Doravante, todas as citações e referências aos Ensaios reportam-se à edição crítica
orientada por Castelo Branco Chaves, Vitorino Magalhães Godinho, Rui Grácio e Joel
378 Sérgio e Einstein: Aspectos de uma empatia intelectual

Esta frase confessional é só por si demonstrativa do quanto o nosso


filósofo-ensaísta gostaria de ter privado com Einstein. Este período de
exílio parisiense parecia ser o mais propício a que se tivesse materializado
algum tipo de contacto directo. Tanto mais que talvez não seja totalmente
descabido dar como verosímil a hipótese de Lagevin, o amigo comum, ter
feito uma qualquer referência ao nosso ensaísta em algum contacto tido
com Einstein. É provável que disso nunca venhamos a ter confirmação,
seja porque na realidade nunca aconteceu, sendo por isso hipótese falsa,
seja porque se perdeu eventual fonte confirmadora de tal hipótese. Uma
coisa é certa: não há conhecimento de nenhum escrito de Einstein, nem de
nenhum dito que lhe tenha sido atribuído que sequer sugira ter o célebre
físico obtido a mais pequena notícia da existência desse português seu
admirador. E quanto a um hipotético encontro, a verdade é que no já
referido artigo de 1937, em que Sérgio tece algumas considerações sobre a
capacidade ou a incapacidade revelada por alguns grandes cientistas quando
são chamados a comunicar conteúdos científicos da sua especialidade, é
afirmado que até essa altura nunca teve oportunidade de ouvir Einstein
nem de com ele falar, pelo que se abstém de comentar os seus eventuais
dotes de comunicador. É também neste contexto que refere ter conversado
com Émile Borel em apenas uma ocasião12.
Será que a clara vontade de conhecer Einstein se veio a concretizar
mais tarde?
A acreditar no que Agostinho da Silva me transmitiu, dir-se-ia que
sim. O encontro teria acabado por se efectivar durante uma outra estada
de Sérgio no estrangeiro. Mas, admitindo a realidade da ocorrência, esse
alegado contacto pessoal terá sido, com toda a probabilidade, de natureza
bastante semelhante ao que teve com Émile Borel no tempo do exílio em
Paris e de que nos deixou notícia; ou seja, um encontro em que o diálogo não
extravasou os limites do circunstancial, da mera troca de palavras de corte-
sia, mesmo que tradutoras de sinceros e profundos sentires. Tivesse havido
diálogo mais prolongado incidindo em temática científica ou filosófica, e
não teríamos deixado de ter citação dele em uma qualquer prosa sergiana de
pública índole. É certo que nas conversas com amigos e conhecidos, Sérgio
gostava de evocar Einstein, fazendo-o com frequência. E nessa evocação
coloquial havia familiaridade, afecto, como se longamente tivesse privado

Serrão e organizada por Idalina Sá da Costa e Augusto Abelaira. Lisboa: Livraria Sá da


Costa Editora, 8 tomos, 1971-1974. Indica-se, para além do título geral, o tomo (em
numeração romana), seguido do respectivo número de página.
12
Cf. Idem, Notazinha ao artigo de Abel Salazar, pp. 208-211.
João Maria de Freitas Branco 379

com o cientista. Compreende-se. É o sentimento de proximidade, ou até de


intimidade, gerado por uma profunda admiração pela grandeza do espírito
científico, pela monumentalidade da força criativa, pela generosa honesti-
dade intelectual, pela autenticidade da inteligência extrema, pela bondade
elevada e aristocracia de sentimentos, pela sinceridade do humanismo
com que se apresentava no mundo exercendo a cidadania, enfim, para tudo
resumir em poucas palavras, pela admirável riqueza/beleza interior que
Albert Einstein exibiu ao longo de toda uma vida. Exactamente aquilo que o
filósofo-ensaísta, admirador de Antero, mais prezava na pessoa humana, no
outro, no tu, e que no seu próprio eu cultivava. Isto, porém, não pressupõe
ter havido, de facto, conhecimento pessoal. Se tivesse havido esse contacto,
mesmo que em uma única ocasião, e tivesse ele tido significativa expressão
de conteúdo, quase impossível seria não o ter Sérgio manifestado no espaço
da convivência interpessoal de modo a ficar na memória dos que com ele
privaram. Porém, também de tal não há notícia.
Agostinho da Silva, amigo de Sérgio e membro do seu círculo de intimi-
dade intelectual, é respeitável fonte, não existindo, em princípio, razão para
dela duvidarmos. Para mais, guardo remota memória de leitura de escrito
sergiano contendo, en passant, breve referência a um encontro pontual
com Einstein. Memória essa não sustentada por nenhuma das minhas
fichas de leitura, nem pelas consultas feitas tendo em vista a redacção
deste estudo que, muito embora tendo origem na conferência proferida em
Novembro de 2009 (no âmbito do Colóquio), não a reproduz, uma vez que
essa comunicação oral foi improvisada – como tenho por hábito fazer. Sinto
agora o dever intelectual de confessar que ao prosseguir a investigação, na
caminhada da oralidade para a escrita, se me acenderam as dúvidas agora
formuladas em relação à veracidade do testemunho de Agostinho da Silva e
até à própria pessoal memória de investigador que reforçava a informação
proveniente de fonte fidedigna mas falível, porque humana, e, por isso,
neste caso, talvez contaminada de equívoco eventualmente (e involunta-
riamente) causador de engano, de falsa certeza. Ao cabo de contas, é este
o destino de quem faz filosofia: caminhar para a dúvida, libertando-se de
supostas certezas. E isso mesmo faço, sem deixar de me penitenciar pelo
facto de ter sido momentaneamente seduzido por infundada “certeza”.
Neste contexto, talvez importe recordar que este meu trabalho se
reveste de pioneirismo, uma vez que constitui o primeiro esforço focalizado
tendo em vista conhecimento dos contornos precisos da relação de António
Sérgio, assim como do seu idealismo epistemológico, com Einstein e o
pensamento deste sobre ciência. Por opção metodológica, mas também
380 Sérgio e Einstein: Aspectos de uma empatia intelectual

por razões a que não são alheias as limitações de espaço inerentes a um


estudo como o agora presente, não cuidarei da vertente político-ideológica,
onde a convergência de ideias entre os dois autores não deixa de se fazer
notar, desde a incondicional defesa da Liberdade e do apego ao espírito
democrático, até o posicionamento face aos conflitos bélicos de inaudita
dimensão que lhes foram contemporâneos, passando pelo ideal de trans-
formação social ligado ao socialismo e pelo posicionamento de ambos em
relação aos políticos e ao poder.
Sobre muitos aspectos da vida de António Sérgio, em particular no que
se refere aos períodos em que esteve afastado da pátria, e nomeadamente
sobre o relacionamento pessoal, que aqui muito importa, com figuras do
mundo científico, esbarramos com um enorme deficit de informação. Forte
razão justificativa, talvez, de não ter havido ainda ninguém a aventurar-
se na feitura de uma biografia de referência, colmatando lacuna que o
andar do tempo vai tornando cada vez mais incómoda, para já não dizer
inaceitável.
Sem pretender desvalorizar em absoluto um hipotético encontro
entre Sérgio e Einstein – tanto mais que o estar face a face com figura da
grandeza de um Einstein, alguém a que, sem quaisquer reticências, se
aplica o adjectivo génio, é coisa que nunca pode ser destituída de significado
para o vivenciador do acontecimento –, sem pretender desvalorizá-lo,
tendo a crer que, mesmo que tivesse ocorrido, não haveria aí especial
relevância cultural, nem epistemológica ou filosófica, em geral, nem
mesmo biográfica, pelo que a atenção se deve centrar em outros aspectos.
Importante seria, por exemplo, conseguirmos perceber qual foi a efectiva
relação pessoal e intelectual do autor dos Ensaios com cientistas próximos
do autor da Relatividade nos anos de mais acesa polémica, de contestação
da física einsteiniana, de esforço de afirmação da mundividência relati-
vista, determinando, do mesmo passo, de que forma e em que medida
essa relação influiu na estruturação do sergismo. Por exemplo, no caso
da relação com Paul Langevin, é inequívoco ter existido uma forte relação
de amizade. Sérgio incluía o ilustre francês no grupo dos seus melhores
amigos. Mas como se processava o intercâmbio de ideias? Qual o conteúdo
científico-filosófico das conversas mantidas ao longo de anos? Em que
medida essa proximidade com um grande homem de ciência influiu na
formação intelectual, no pensamento ou na acção do nosso ensaísta? Que
outras pessoas pertencentes ao círculo do cientista estiveram em contacto
com o amigo português? Ou que outros profissionais das ciências duras se
cruzaram com ele nos meios parisienses que frequentou?
João Maria de Freitas Branco 381

O esforço de buscar resposta para estas e outras interrogativas esbarra


com uma dificuldade: a ausência de fontes ou a inacessibilidade das even-
tualmente existentes. Obstáculo maior é o desconhecimento que se vai
perpetuando de grande parte da vastíssima correspondência. Não existe
nenhuma carta de Paul Langevin para o seu amigo português que tenha
chegado ao nosso conhecimento. Nem epístola inversa. Porém, Sérgio
era um compulsivo redactor de cartas. Não creio ser excessivo dizê-lo.
Chegava a escrever cerca de duas dezenas de missivas em um só dia. Ele
próprio disso nos dá conta, precisamente em algumas cartas. Por exemplo,
quando diz a João de Barros que a carta que lhe escreve já foi antecedida
de 16 outras (!) endereçadas a outras tantas pessoas; ou quando em outra
missiva, datada de 1933, e endereçada a Ferreira de Macedo, confessa com
visível determinação: “Terei de escrever hoje, pelo menos, umas quinze
cartas”. Pelo menos… Daí que Jacinto Batista não tenha pecado por excesso
quando referiu a existência de “milhares de escritos pequenos ou grandes
(e alguns são verdadeiros ensaios)”13 que, tendo sobrevivido ao desbaste
do tempo, por aí se encontram, esquecidos e dispersos “por incontáveis
arquivos particulares”14.
Um efectivo esclarecimento das dúvidas antes enunciadas sobre o
relacionamento com personalidades do mundo científico e o que aí possa
ter havido de significativo relativamente ao influir einsteiniano, é coisa
que passa pelo conhecimento desse imenso acervo de prosa epistolar.
Outra eventual fonte de informação é o também ainda inédito (e ao que
parece inacessível) texto de Vasco de Magalhães-Vilhena15. Isto admitindo-
se ter havido entre o filósofo-ensaísta e esse dedicado investigador do seu
pensamento (que, aliás, também com ele manteve relação de amizade, não
obstante a grande diferença de idades e as divergências de teor político-
filosófico) algumas conversas pessoais esclarecedoras. A verdade é que
António Sérgio era pouco dado a cavaqueiras desse tipo, centradas no
relato de episódios pitorescos passados na estranja. Inclusive, no diálogo
directo com outros, falava pouco dos próprios lugares distantes onde tinha
vivido. Agostinho da Silva queixava-se de nunca lhe ter ouvido dizer nada
de significativo sobre o Brasil, confessando não entender esse silêncio do
amigo. Algo que sem dúvida o chocava. Não alimento, por isso, grande

13
BAPTISTA, Jacinto. António Sérgio enciclopedista. Lisboa: Edições Colibri, 1997, p. 18.
O quase inédito epistolar que adiante referirei disto é claro exemplo.
14
Disso mesmo sou eu próprio exemplo, com um arquivo pessoal de que faz parte o
manuscrito da importante carta-ensaio, que adiante comentarei.
15
Ver nota inicial.
382 Sérgio e Einstein: Aspectos de uma empatia intelectual

esperança de encontrar no inédito de Magalhães-Vilhena alguma revelação


que concorra para o cabal esclarecimento das nossas dúvidas presentes. As
informações que até hoje pude recolher junto das pouquíssimas pessoas
que conhecem o texto nada sugerem em contrário16.
Portanto, tendo em consideração os obstáculos actuais e sem pretender
menosprezar a vertente biográfica, parece-me que neste nosso contexto
temático importa mais pôr em evidência o Sérgio leitor e estudioso da obra
do grande físico.
A biblioteca de António Sérgio, se bem que não tenha sobrevivido
incólume às agressões do tempo, dá-nos ainda hoje uma imagem clara da
dimensão do investimento de leitura feito pelo seu proprietário-utilizador,
tendo em vista o cuidado estudo da física relativista e suas consequências,
a vários níveis. Um estudo que se incrementou não só através dos textos
assinados por Einstein e seus directos colaboradores, como também com
recurso aos melhores comentadores, analistas e divulgadores (no mais nobre

16
Ao Eduardo Chitas [ver nota inicial], que neste momento tem entre mãos o espinhoso
trabalho de revisão integral do texto inédito de Vasco de Magalhães-Vilhena (já em
versão informatizada), desejo aqui agradecer toda a informação que me facultou,
correspondendo generosamente às minhas solicitações. Quero também agradecer
ao Hernâni Resende, responsável pela edição, o ter-me autorizado a divulgar aqui,
em primeiríssima mão, o título da obra inédita que se encontra em fase final de
preparação e revisão do texto, mas ainda sem editor. Aqui fica a referência biblio-
gráfica possível: V. de Magalhães-Vilhena: António Sérgio. O idealismo crítico: génese e
estrutura – Raízes gnoseológicas e sociais. Estudo de história social das ideias. Edição, prefácio
e notas de Hernâni Resende. Projecto realizado com o apoio da Fundação Internacional
Racionalista, Cátedra da Razão. De acordo com o que me foi transmitido por Eduardo
Chitas, o texto completo, com as novas notas e o prefácio, tem cerca de 500 páginas.
Se tivermos presente que a obra base, editada pela Seara Nova em 1964, sob diferente
título (António Sérgio. O idealismo crítico e a crise da ideologia burguesa), tinha menos de
duzentas páginas impressas, fica-se com uma ideia da ampliação que o autor deu a
este seu estudo. Isto confirma o que Magalhães-Vilhena pessoalmente me transmitiu
em 1983/84: que, depois de 1964, tinha continuado a investigar e a escrever sobre a
obra do Sérgio com o objectivo de publicar um estudo de muito maior fôlego, pois
considerava ser esse o seu mais importante contributo como investigador filosófico.
Mas por razões de saúde tinha resolvido «pôr um ponto final na sua actividade
intelectual», deixando assim inconcluso esse livro. Se bem interpreto as palavras
que então me foram ditas, a importância maior atribuída a este seu trabalho derivava
do facto de considerar ter sido ele o primeiro a chamar a atenção para a verdadeira
grandeza de António Sérgio enquanto pensador filosófico. Tinha, portanto, esse valor
acrescido: o da revelação. [Eduardo Chitas morreu no dia 18 de Março de 2011; pelas
razões apresentadas na nota inicial, optei por não fazer nenhuma alteração ao texto
da presente nota, redigida em 2009, que testemunha a factualidade de um generoso
gesto.]
João Maria de Freitas Branco 383

sentido do termo) da Teoria da Relatividade. Ao folhearmos esses volumes


já enrugados pelo tempo, observando o tipo de sublinhados, as chamadas
de atenção, as anotações na margem das páginas, as por vezes longas
notas de reflexão em torno de uma ou outra ideia, sente-se a intensidade
do uso, os sinais de revisitação, o afã da genuína leitura crítico-analítica.
Amealham-se os acenos ainda pairantes da densidade do trabalho inte-
lectual que ali se gerou. É o caso de clássicos como L´évolution des idées en
physique, de Einstein e Léopold Infeld. E cito o título da autorizada tradução
francesa feita por Maurice Solovine a partir do inglês (aliás, também ela
revestida de dimensão clássica) porque foi essa a edição utilizada por
Sérgio, nomeadamente quando citou partes da obra em escritos de sua
lavra. Os textos de Einstein foram por ele lidos quase sempre nas edições
francesas e inglesas, ou então em eventuais traduções portuguesas feitas
a partir do francês ou do inglês. Nesse exemplar constante da biblioteca
pessoal, é ainda visível o tipo enérgico de anotação do leitor empenhado
no autêntico estudo, em que se pressente o esforço do estudioso, assim
como as marcas da revisitação do texto (valor do reler). Para além dos
sublinhados impetuosos, feitos sem auxílio de régua, aí encontramos, logo
nas páginas de abertura, algumas anotações dignas de registo e onde parece
haver a intenção de fixar uma forma de redacção que pudesse depois ser,
com alguma facilidade, transposta para um escrito público; o que comunica
a este tipo de anotação uma certa dimensão de rascunho. Numa dessas
notas, em que se apresentam duas hipóteses de redacção, duas formas de
iniciar a frase (exemplificando o que acabo de afirmar), lê-se o seguinte
sobre a ideia de matéria e que é bem sugestivo do que Sérgio aí achou ser
boa água para o seu moinho:

“Aventuro-me a / Creio que poderei considerar como resultado da evo-


lução da Física o destronamento da ideia de Substância ou de Matéria em
proveito das ideias de Actividade e de Forma, ou, se preferido, de Energia
e de Estrutura”17.

No que toca a obras sobre Einstein e a Relatividade, como também


sobre mecânica quântica, encontramos na Biblioteca numerosos títulos,
mas que são apenas uma parte do vasto conjunto de obras constitutivas do
acervo original, pelo que muito se enganam aqueles que tomarem o agora
existente pelo todo.

Anotação manuscrita nas páginas iniciais do exemplar de L’évolution des idées en


17

physique, existente na Biblioteca António Sérgio, n.º 5432.


384 Sérgio e Einstein: Aspectos de uma empatia intelectual

Nessa vertente da bibliografia encontram-se obras de carácter muito


diverso, contemplando abordagens de vários níveis de profundidade, desde
o da melhor divulgação até o da erudição académica, tanto filosófica como
científica. Disso são exemplo títulos como o Albert Einstein do Leopold Infeld
ou La relativité de Paul Couderc (ambos incluídos na prestigiada “Que sais-
je?”, da editora Presses Universitaires de France, sendo o segundo “couronné
par l’Académie des Sciences”), os numerosos escritos de Louis de Broglie,
ou ainda The nature of physical reality, de H. Margenau (um dos livros com
maior densidade de anotações à margem) e o Essay in physics do Viscount
Samuel (Herbert Samuel). Em todos estes livros é muito interessante
verificar como a anotação é fortemente comandada pelo sergismo, isto é,
pelo idealismo crítico do anotador. Podia não ser assim: o que um leitor
sublinha não tem que ser forçosamente aquilo com que concorda. Pode
ser, e é muitas vezes, um assinalar de tese alheia, discordante da visão de
quem lê e anota. Mas no caso vertente, com frequência, ele sublinha, anota,
destaca o que lhe parece corroborar, confirmar, demonstrar ou até provar
no plano da ciência feita a justeza da sua filosofia. Da sua Weltanschauung.
Por exemplo, no texto de Infeld sublinha entusiasticamente a seguinte
frase: “Os grãos de energia luminosa, os fotões, substituem os corpúsculos
de Newton. Segundo Einstein, a luz é formada por uma chuva de fotões
e o fotão é o quantum elementar de energia”18 – (As palavras “energia” e
“corpúsculos” são contempladas com duplo sublinhado). A isto adiciona
o motivado leitor a seguinte nota, escrita no topo da página: “Na teoria
de Einstein, os corpúsculos de Newton deixam de ser corpúsculos, de ser
coisas”19. Nesta mesma página, destaca, com riscos verticais colocados
na margem do texto, a passagem: “[…] achar uma determinada fórmula:
a da relação da energia das radiações com o comprimento de onda e a
temperatura. Isto foi, na verdade, feito de uma forma extraordinária”. No
exemplar da obra de Couderc, deparamos com extensas notas redigidas
na própria página de rosto e nas que se seguem, mas estas anotações são
já quase ilegíveis20.

18
Página 140 do exemplar existente na Biblioteca António Sérgio.
19
Citado a partir da nota manuscrita no exemplar antes referido.
20
Numa pátria em que a cultura é quase invariavelmente a última das preocupações
governamentais, estas valiosas anotações manuscritas (muitas vezes escritas a lápis)
estão em vias de se tornarem completamente ilegíveis. Por escassez de recursos,
nenhuma medida absolutamente eficaz pôde ser tomada no sentido de as preservar,
não obstante os pedidos de ajuda formalizados pelos responsáveis pela Biblioteca
António Sérgio.
João Maria de Freitas Branco 385

O Essay in physics, exemplar também generosamente anotado, inclui no


fim uma importante carta de Einstein para o autor, e aí o dedicado leitor
sublinha logo no primeiro parágrafo originalmente escrito em inglês: “Your
book […] is for me a new illustration of the fact that the philosophic outlook
has – under present circumstances – a strong influence on the views in
physics”21. A carta passa depois a ser redigida em alemão, mas o nosso leitor
segue a tradução inglesa de F. H. Heinemann onde, mais adiante (p. 137) e
de modo bem significativo, sublinha a seguinte afirmativa: “[…] intellectual
construction, which proceeds completely free and arbitrary”. É este, no
dizer de Einstein, o único caminho das vivências, dos dados da consciência,
para a “realidade” (“Von den Erlebnissen zu der ‘Realität’ gibt es aber nur
den Weg der intellektuellen Konstruktion (bewusst oder unbewusst), die –
rein logisch betrachtet – völlig frei und willkürlich verfährt”). Nenhuma
anotação é colocada no texto original (em alemão), mas sim e só no da
tradução; até mesmo quando esta é menos fiel, como não deixa de ser o
caso da passagem agora citada, em que o “rein logisch” é ignorado pelo
tradutor, tratando-se, no entanto, de elemento muito importante para a
consideração de uma possível clivagem entre o pensamento do autor da
carta e o do leitor anotador. Este apego à versão inglesa em detrimento do
original, face a uma publicação bilingue, é bem revelador da familiaridade
e do desconhecimento linguístico.
No Essay de Samuel, a anotação de António Sérgio é reveladora de
anuência relativamente à ideia de determinação dos fenómenos físicos
apresentada pelo autor com recurso a uma citação de Bertrand Russell.
Sérgio parece aqui inclinar-se mais para o lado da concepção de Einstein em
detrimento da interpretação da Escola de Copenhaga. O Viscount Samuel faz
notar que a aceitação de que certos fenómenos não possam ser determinados
(determined) “in the sense of ascertained or measured” não implica que esses
fenómenos não sejam determinados “in the sense of caused, in accordance
with the laws of nature”22. No topo das páginas 26 e 27, em que também
figura uma citação de Planck em defesa do princípio da causalidade estrita
(the principle of strict causality), Sérgio redige a seguinte nota: “Creio que
na física os fenómenos são determinados, embora nem sempre possam ser
quantitativamente previsíveis por nós. Na esfera do humano, creio que são
determinados, mas imprevisíveis, por desconhecimento prévio de todas as

21
P. 135 do exemplar existente na Biblioteca António Sérgio (n.º 410). Oxford: Basil
Blackwell, 1951.
22
P. 26 do exemplar existente na Biblioteca António Sérgio (n.º 410).
386 Sérgio e Einstein: Aspectos de uma empatia intelectual

circunstâncias que importam”23. Posição, esta, que manterá até o fim da


vida intelectual activa (1960) e que claramente o afasta de Niels Bohr e o
aproxima de Einstein.
Na derradeira prosa pública sobre a mecânica quântica, contrariando
a ideia de causalité sans déterminisme que Louis de Broglie associa à física
quântica, Sérgio afirma: “Não direi ‘causalidade sem determinismo’ […]
direi ‘causalidade sim; determinismo, sim; mas nem sempre com perfeita
previsibilidade por nós’”24. No dizer de Bertrand Russell (citado por Samuel
na p. 27), “the Principle of Indeterminacy has to do with measurement, not
with causation”. O comentário crítico ao texto de Louis de Broglie (citado no
ensaio) remete para uma importante nota em que a influência de Einstein
me parece notória e em que Sérgio reafirma o seu apego à hipótese de um
determinismo a que chama “determinismo de direito”. E, estabelecendo
correspondência com a microfísica, diz haver duas concepções possíveis:
“a) a da existência de um determinismo de direito unida à de parâmetros
que não são mensuráveis; b) a de que aquilo a que se refere a função de
onda é um algo colectivo, e não individual, o que impossibilita prever qual
dos elementos do colectivo se manifestará ao observador pela intervenção
do aparelho”25.
Regressaremos a estes conteúdos.
No meu pessoal entendimento, e nisto insisto desde há muito26, toda
a obra de António Sérgio gravita em torno de uma intuição filosófica,
como Bergson gostaria de dizer. Há uma convicção de natureza filosófica
que serve de ponto de apoio ao sergismo no seu todo. Nos Ensaios, sejam
eles dedicados à temática literária, a um qualquer episódio ou assunto da
História de Portugal, a questões de pedagogia, sociologia, política, arte, a
um determinado autor (poeta, romancista, historiador, político, etc.), a um
tema geral de cultura ou à própria noção de cultura, como acontece com
o magnífico Considerações sobre o problema da cultura, inserido no tomo III,
a argumentação tece-se quase invariavelmente a partir de uma essencial
fundamentação filosófica. Quero com isto afirmar também que António
Sérgio é essencialmente um filósofo, e um filósofo de corpo inteiro – coisa

23
Citado a partir da nota manuscrita nas pp. 26 e 27 do exemplar existente na Biblioteca
António Sérgio (n.º 410). Ed.cit. Os sublinhados são do próprio Sérgio.
24
Nota manuscrita no topo das pp. 26 e 27 do Essay in physics existente na Biblioteca
António Sérgio (n.º 410).
25
SÉRGIO, António. Ensaios, t. II, p. 261 (anotação F anexa ao ensaio Notas de esclareci-
mento, reportando-se à p. 251).
26
BRANCO, J. M. de Freitas. Forschungsprojekt über das philosophische Gedankengut António
Sérgio. Berlin: Humboldt Universität, 1986. (Brochura dactilografada)
João Maria de Freitas Branco 387

ainda não completamente percepcionada pelos seus conterrâneos, incluindo


os poucos que se têm dedicado ao estudo do seu ensaísmo.
O sergismo é, na sua essência, uma forma de idealismo epistemológico
crítico-racional. Consiste ele na declaração do primado do entendimento
sobre a coisa, da consciência sobre a materialidade, do sujeito cognoscente
sobre o objecto. Dito de outro modo, trata-se de uma filosofia que decreta
a superioridade da actividade ordenadora do espírito sobre a matéria, ou
sobre a coisa. Todo o discurso sérgico se estrutura, se arquitecta a partir
desta base.
Ora, o que acontece é que Sérgio vê em Einstein uma confirmação, uma
espécie de prova científico-intelectual da sua própria filosofia, isto é, do
idealismo epistemológico, do idealismo crítico constitutivo do racionalismo
sergiano.
Mas existirá de facto, no essencial, essa identidade de pontos de vista?
Essa perfeita convergência? Na opinião do próprio Sérgio a resposta a estas
interrogativas é clara e inequivocamente afirmativa: sim, existe!
Referindo-se à posição assumida por Einstein relativamente à constru-
ção do conhecimento científico, Sérgio diz: “Esta posição é exactamente a
minha”27. E na versão deste mesmo ensaio dada à estampa, em que escreve
depois de extensa citação de Out of my later years: “Isto afirma o Einstein, e
harmoniza-se com o que eu disse há uns dez lustros já”28.
Para que possamos esmiuçar esta tão francamente declarada harmonia
de ideação, esta consonância de pensares, pretendo chamar à colação
um escrito filosófico importante, mas desconhecido dos filósofos por
efeito das circunstâncias em que foi trazido à luz do dia. Trata-se de uma
carta-ensaio escrita por Sérgio no ano de 1957 e que se pode considerar um
semi-inédito. Mas antes disso, importa assimilar aquilo que constitui os
primeiros patamares dessa tal consonância de pensares.
Num plano muito geral, a familiaridade intelectual com o autor da
Relatividade desponta em torno da comum inclinação para o esforço de
problematização filosófica centrada na ciência. Se António Sérgio é um
filósofo que elabora na esfera de influência, ou sob a égide de algumas
grandes referências do racionalismo  – Platão, Descartes, Espinosa,
Kant –, Einstein, por seu turno, é um físico que faz filosofia, por vontade

27
SÉRGIO, António. Notas de esclarecimento. Com forçados lances de olhos sobre o moi
haissable e alegações enjoativas pro domo mea. Portucale. Revista de Cultura. Porto,
1950 (reeditado em Ensaios, t. II, p. 49).
28
Idem, Ensaios, t. II, p. 241. O texto antigo que é referido data de 1909 e intitula-se
Notas sobre Antero de Quental.
388 Sérgio e Einstein: Aspectos de uma empatia intelectual

própria e tendo também como referência, em particular, esse mesmo


Espinosa e também, embora com maior distanciamento crítico, o mesmo
Kant. Resta saber se a partir de determinado nível de desenvolvimento
do trabalho científico, quando alcançados os patamares mais elevados
da criatividade científica, o fazer filosofia não devém uma necessidade
incontornável. Os casos de Galileu, Newton, Buffon, Darwin, Planck,
Einstein, Heisenberg, para apenas citar alguns dos exemplos maiores,
parecem sugerir uma resposta. Seja como for, no respeitante ao físico
de Ulm o peso filosófico do seu pensamento sempre lhe tem conferido
justa e indiscutida presença nos principais dicionários de filósofos, como
acontece com o prestigiado Dictionnaire des philosophes, dirigido por Denis
Huisman, que lhe dedica sete longas páginas, espaço muitíssimo maior do
que o concedido ao nosso filósofo-ensaísta, a quem é destinado apenas um
curto parágrafo29. Mas para além deste factor de proximidade, de ordem
geral, existe à partida um essencial ponto de dupla convergência entre
o luso filósofo e o físico alemão: o racionalismo e a inteligibilidade do
real. Isto é, por um lado, a afirmação do primado da Razão, o postulado
da universal racionalidade do Real (dever-ser racional), e por outro, o
postulado da universal inteligibilidade do real (dever-ser inteligível,
coerência lógica).
Veja-se como Sérgio nos elucida sobre o que é a Razão:

“[…] a razão pode ser definida […] como o instinto da inteligibilidade, da


ordenação e da harmonia. […] a Razão é o instinto, a fé, o pré-conceito,
da penetrabilidade das coisas pela lucidez mental”30.

E logo no primeiro tomo dos Ensaios encontramos a seguinte afirmação:


“[…] a inteligibilidade do universo não é uma conclusão da ciência, mas
a pressuposição que a faz nascer; […]”31.

Einstein dizia que a única coisa ininteligível no universo era o facto


de ele ser inteligível.
Para ambos, o racionalismo apresenta-se também como sendo uma
atitude, uma forma de estar na vida: “O racionalismo não é um sistema,

29
Cf. HUISMAN, Denis (dir.). Dictionnaire des philosophes, vol. I. Paris: PUF, 1993, p. 908
e ss.
30
SÉRGIO, António. Romantismo e equilíbrio. Seara Nova, Lisboa, n.º 459, 5 de Dezembro
de 1935, p. 46.
31
Idem. Educação e Filosofia. In: ______. Ensaios. Tomo I. Lisboa: Sá da Costa, 1971,
p. 139.
João Maria de Freitas Branco 389

mas um método”, escreve Sérgio32; “vejo a Razão manifestar-se na vida”,


diz Einstein33.
O primado da razão é repetidamente afirmado pelo filósofo-ensaísta.
A forma como este racionalista extreme concebe a ciência e o acto de
explicar que lhe é inerente sintoniza, também ela, no essencial, e indepen-
dentemente da especificidade da terminologia utilizada – de cunho bem
pessoal e em que a presença da influência platonista é notória –, com a
concepção do físico “creator of worlds”. Retenham-se, a título de exemplo,
as seguintes passagens, começando por uma já citada:

“[…] a Razão pode ser definida […] como o instinto da inteligibilidade, da


ordenação e da harmonia. […] a Razão é o instinto, a fé, o pré-conceito,
da penetrabilidade das coisas pela lucidez mental”34.

“[Racionalismo é] a doutrina que sustenta a irredutibilidade da razão


à percepção sensível […] afirma a existência no nosso espírito de uma
actividade ordenadora, superior à percepção sensível. Opõe-se a sensualismo
e a empirismo, e é muito afim de idealismo, metafísico ou epistemológico
(doutrina idealista: a que busca a razão de ser do processo cósmico na reali-
zação do racional, da consciência, do espírito; no sentido epistemológico, a
afirmação de que a realidade do mundo externo é a sua perceptibilidade)”35.

“Explicar […] não é subsumir sob uma fórmula geral, mas urdir o tecido
de relações entendíveis que ligam cada aspecto da realidade estudada ao
todo relacional a que se encontra unida”36.

“A ciência é a relacionação inteligível dos factos, por meio de criação de


Formas que a actividade-do-Mundo, pela experimentação, confirma”37.

“Ciência [é a arte] da criação das sinfonias da relacionação entendível”38.

32
Idem. Carta-prefácio a DIAS, Carlos Malheiro. O Desejado. Lisboa: Livrarias Aillaud e
Bertrand, 1924, p. X.
33
EINSTEIN, Albert. Comment je vois le monde. Paris: Flammarion, 1989, p. 10.
34
SÉRGIO, António, Romantismo e equilíbrio, p. 46.
35
Idem. Tréplica a Carlos Malheiro Dias sobre a questão de O Desejado. Lisboa: Ed. Seara
Nova, 1925, p. 56.
36
Idem. Explicação e subsunção sob fórmulas gerais. Aqui e Além, Revista de Divulgação
Cultural, Lisboa, n.º 3, Dezembro de 1945, pp. 18-22.
37
Idem. Nota sumária sobre as minhas “heresias” epistemológicas. Lusíada, Revista
Ilustrada de Cultura – Arte – Literatura – História – Crítica, Porto, vol. 1, n.º 1, Primavera
de 1952, p. 19.
38
Ibidem, p. 19.
390 Sérgio e Einstein: Aspectos de uma empatia intelectual

Estabelecendo uma aproximação (logo ela de sabor einsteiniano) entre


ciência e arte, o filósofo-ensaísta apresenta-nos esta última definição que
por certo teria deliciado o físico violinista, caso este a pudesse ter lido.
E nas Cartas de problemática volta a clarificar a sua noção de ciência,
insistindo desta feita no papel que cabe à experimentação no processo
de construção do conhecimento científico, procurando assim mostrar a
importância que ele próprio atribui à experiência, contraditando assim o
opinar dos que o supõem anti-experimentacionista:

“Não poderemos, pois, definir a ciência como sendo a inteligível unificação


dos fenómenos por meio da livre criação de Formas que a Actividade-do-
Mundo posteriormente confirma, através dos resultados da experimentação
rigorosa? Como vedes, sou experimentacionista… mas não empirista”39.

Resta saber se, e até que ponto, o seu modo de ser experimentacionista
(o sergiano concebimento da experimentação) converge com a noção eins-
teiniana. Mas para já interessa perceber que no quadro deste racionalismo
epistemológico a realidade física materialmente presente (anteposta) ao
sujeito cognoscente é sempre entendida como actividade. Sérgio desenvolve
aquilo a que poderemos chamar teoria dos sinais, em que os sentires são
concebidos como sinais da Actividade-Físis que a consciência acolhe.
O Mundo é Actividade-Mundo40.
Sendo o mundo físico um tipo de actividade, esses sinais são o único
dado, formando o primeiro nível, o nível inferior, do processo da vida inte-
lectual. Fazendo uso de exemplo estimado pelo filósofo-ensaísta41, pode-se
perguntar: o electrão é uma coisa? É coisa carregada negativamente? A
resposta sergiana pode enunciar-se assim: a noção de coisa-electrão (ou
de electrão-coisa) é absurda. O electrão não é, nem pode ser uma coisa com
carga eléctrica negativa; é sim uma actividade eléctrica negativa. E assim
sendo, que sentido pode ter falar-se de contacto sensorial directo com
o electrão? Nenhum. Essa ideia de contacto sensorial não passa de uma
pura fantasia. Não há contacto sensorial com o objecto, no sentido que os
físicos dão ao termo – objecto físico. Se do micro saltarmos para o macro
(da microfísica para a macrofísica) e indagarmos se a Lua, Marte ou o Sol
são coisas (coisa-planeta, coisa-estrela), somos levados pelo pensamento
racional à mesma conclusão de absurdo. A sensibilidade apenas fornece

39
Idem, Cartas de problemática, n.º 3, pp. 7-8.
40
Recordem-se as anotações que já aqui dei a conhecer sobre a passagem da noção
newtoniana de corpúsculo para a noção einsteiniana de fotão.
41
Exemplo dado no texto semi-inédito já antes evocado e que adiante referirei.
João Maria de Freitas Branco 391

sinais e não a actividade-físis Lua ou Sol, não havendo por isso possibilidade
de contacto sensorial directo com o fenómeno. Com o objecto. Daí que, no
plano da ciência não haja coisas, mas sim Formas insensíveis. Por exemplo: o
frio é um sinal dado pela sensibilidade; mas a temperatura (nível científico)
é uma Forma insensível, não-sensorial. Dá-se uma des-coisificação, uma
des-sensorialização. Nisso consiste o processo do conhecimento. Reacção
ao sensível, desprendimento com respeito aos sinais.
É neste contexto de problematização que desejo aproveitar a circuns-
tância para revelar à comunidade filosófica o já referido texto epistolar que
tem permanecido na penumbra, ignorado pelos profissionais da filosofia.
Chamo-lhe carta semi-inédita. Carta-ensaio – (penso ser esta a mais apro-
priada designação) escrita em Sintra, no dia 16 ou 17 de Agosto de 1957,42 no
seguimento de uma longa conversa pessoal com o musicólogo João de Freitas
Branco, pessoa que Sérgio considerava ser seu sobrinho por afinidade, pelo
facto de ter casado com a filha do seu amigo fraterno Pedro Nascimento.
Por iniciativa do destinatário, essa carta foi publicada em 1984 num volume
de homenagem a Jacinto do Prado Coelho, ostentando o título de Afecto às
Letras, obra colectiva editada pela Imprensa Nacional-Casa da Moeda e não
muito amplamente distribuída no mercado livreiro. Estas circunstâncias
ditaram o desconhecimento que antes referi. Em boa verdade, nem a obra
nem o autor do “capítulo”, ou parte do livro, em que a epístola inédita
foi então integralmente citada sugeriam relevância filosófica. Só o título
do contributo de João de Freitas Branco para a justíssima homenagem ao
insigne literato nos conduzia à filosofia sergiana: “Dados para um possível
ensaio sobre António Sérgio e as artes”.
Com o já confessado propósito de transportar para o círculo filosófico
a carta de 17 de Agosto de 1957 – missiva que insisto em classificar como
semi-inédita por ser de facto desconhecida dos investigadores filosóficos ou,
pelo menos, até este presente totalmente ignorada43 –, com esse propósito

42
A carta não está datada. O carimbo do correio é de 17 de Agosto.
43
Só Vasco de Magalhães-Vilhena conhecia o texto, em virtude de J. de Freitas Branco
lhe ter fornecido fotocópia da carta-ensaio já vários anos depois da morte de António
Sérgio (em Janeiro de 1969). Porém, por atenção ao ofertante, nunca a quis utilizar
em escrito seu ou em outro tipo de intervenção pública, deixando ao proprietário do
manuscrito inédito a iniciativa da publicação. Tenho agora conhecimento, já depois
de concluída a redacção do presente estudo, e por informação que Eduardo Chitas
gentilmente me fez chegar, de que Magalhães-Vilhena deixou indicação para que,
caso se procedesse a uma edição póstuma do seu segundo livro sobre o idealismo
crítico sergiano (versão revista e muito aumentada do volume editado em 1964), a
carta-ensaio fosse publicada em anexo. A edição preparada por Hernâni Resende com
392 Sérgio e Einstein: Aspectos de uma empatia intelectual

em mente, dela aqui faço extensa citação. Mas para que o seu conteúdo
seja totalmente inteligível, talvez se torne útil, se não mesmo necessário,
dar a conhecer as cogitações originadoras desta prosa epistolar ensaística.
António Sérgio decidiu, sem prévio anúncio, dar resposta escrita a um
conjunto de dúvidas que o “sobrinho” lhe tinha colocado no decorrer de
uma das habituais, e informais, conversas sobre temas elevados que eram do
interesse de ambos. Neste caso, o diálogo teve lugar em Sintra, onde Freitas
Branco então residia44 e onde Sérgio gozava umas férias, e incidiu sobre impli-
cações da mecânica quântica na esfera das artes, de aí brotando interrogações
“relacionáveis com a percepção, a inteligência, a teorização, a axiologia, a
criação e a interpretação de ordem estética, nos domínios das diferentes
artes”. Isto mesmo dá a conhecer João de Freitas Branco45 na apresentação
que fez em 1984, quando tomou a iniciativa de publicar a carta, acrescentando
o seguinte: “Submeti a Sérgio as minhas principais dúvidas sobre o que tudo
isso podia ser, se a experiência humana tivesse limites muito diversos dos
que efectivamente tem, nos troços do sensível. Cogitações desencadeadas
pelo conhecimento dos abalos da mecânica clássica resultantes da extensão
do experimentalmente verificável a velocidades muito superiores às máximas
até então disponíveis, e a valores de outras dimensões físicas, muito abaixo
do que se supusera fronteira ínfima da sensibilidade”46.
A resposta do interlocutor chegou em menos de 48 horas, e boa parte
do seu conteúdo é de grande relevância para a problematização que aqui
nos ocupa. Leia-se então:

“Meu querido ‘sobrinho’. Parece-me que não podemos distinguir entre


contactos sensoriais directos e indirectos, e que a existência de uma sensi-
bilidade microfísica não modificaria em nada o problema da partícula. Essa

o apoio da Fundação Internacional Racionalista, e que agora aguarda o interesse de


uma casa editora, respeita a vontade expressa pelo autor.
44
Mais precisamente no Casal de S. José, que fazia parte da grande quinta da Baronesa
de Bougard, em Ranholas, onde, com grande probabilidade, teve lugar a referida
conversa (como várias outras do género), no meio de bonita paisagem bucólica. Há,
aliás, fotografias inéditas de Sérgio neste local nesse preciso ano de 1957.
45
Talvez não seja desimportante lembrar que o musicólogo João de Freitas Branco (meu
Pai) era Licenciado em matemáticas, tendo sido também professor de matemática.
O seu grande interesse pela revolução científica despoletada pela Relatividade
einsteiniana e pela mecânica quântica situava-se para lá da mera curiosidade geral
do homem de cultura.
46
BRANCO, J. de Freitas. Dados para um possível ensaio sobre António Sérgio e as artes.
In: MOURÃO-FERREIRA, David et al. (orgs.). Afecto às Letras. Homenagem da literatura
portuguesa contemporânea a Jacinto do Prado Coelho. Lisboa: INCM, Lisboa, 1984, p. 284.
João Maria de Freitas Branco 393

sensibilidade microfísica apenas nos daria sinais (como a sensibilidade que


temos) a partir dos quais criaríamos construtos: construtos percepcionais
(coisas) ao nível percepcional, e construtos formais (ideias, Formas) ao
nível formal ou científico. Ao nível científico não há coisas: só há Formas,
como sejam a dimensão espacial, a massa, a temperatura, o potencial, a
função-de-onda, a carga eléctrica, a frequência, o campo, a entropia, o
exponencial, o vector, a √ -1, o spin, etc., etc.
[…]
A ideia de contacto sensorial é uma fantasia, uma construção da nossa
inventiva. Para a nossa consciência, só há directa a sensação, o sinal.
A partir de aí, criamos construtos percepcionais e construtos formais.
Com liberdade absoluta. E com que critério de selecção? Com o critério
da coerência, da sustentação recíproca dos construtos. Às vezes aparece
um sinal novo que nos obriga a remodelar a geringonça de Formas em
sustentação recíproca que havíamos armado. Dado só há a sensação, o sinal;
tudo mais é criado por nós, a partir dos sinais. Qualquer modificação na
nossa sensibilidade não nos faria sair de aqui. As partículas continuariam
a ser construtos, invenções do nosso intelecto para explicar os sinais que
essa nova sensibilidade nos fornecesse”47.

Como se pode ver, António Sérgio define três níveis (hierarquizados)


constitutivos da vida intelectual: o nível sensorial, que é o dos sinais, o dos
simples sentires; o nível percepcional, o dos perceptos; o nível formal ou cien-
tífico, que é o das formas científicas48. Momento último de des-coisificação.
Contrariando a visão tradicional de uma caminhada do concreto para
o abstracto, assim como a própria oposição concreto/abstracto, insiste-se
aqui na ideia de construto (construtos percepcionais e formais). Sérgio opõe-se
desta forma à existência de um processo de abstracção na criação cientí-
fica e repudia o uso do termo “abstracto”, substituindo-o por “formal”.
Partindo do postulado do dever-ser-uno, a Unidade estabelece-se pela
deduzibilidade. É essa a função dos constructos formais inventados pelo
intelecto. Eles unificam (unem) o que se apresenta desunido no patamar do
empírico. Nas Cartas de problemática, dá-se como exemplo dessa função da
Forma, função unificante e teórica, a ideia de onda avançada por Huygens
(acto de invenção), que, não podendo ser dada em nenhuma experiência,
representa uma clivagem com os estudos da luz feitos pelos antigos filósofos

47
SÉRGIO, António. Carta para João de Freitas Branco. Sintra [17 de Agosto de 1957]. Citado
a partir do manuscrito.
48
Ver também Idem, Nota sumária sobre as minhas “heresias” epistemológicas e Idem,
Cartas de problemática, n.º 3.
394 Sérgio e Einstein: Aspectos de uma empatia intelectual

gregos. O constructo de Huygens representa um salto qualitativo na esfera


da cognição; é o momento unificador, o passo científico por excelência.
Momento, esse, que não resulta de um processo de abstracção, mas sim
de construção de Unidade.

“Ao contrário daquilo que se tem admitido, supondo que a característica


feição do intelecto não é de modo algum a faculdade de abstrair, mas
muito ao contrário a de criar constructos […] que permitem a concretização
progressiva, a suplementação, a síntese”49.

Concretização é tornar concreto o que antes não o era. Portanto, para


o autor das Cartas de problemática, o autenticamente concreto é a Unidade.
O objecto concreto é o resultado da unificação dos sentires (dados na
experiência elementar). É fruto da síntese operada pelo intelecto – síntese
das qualidades sentidas.
De toda esta concepção do processo cognitivo, retira-se uma tese absolu-
tamente central: a da absoluta incompatibilidade do idealismo advogado com
o empirismo, seja qual for a sua aparência. Digamos que, na óptica sergiana,
eles se excluem mutuamente. António Sérgio opõe-se energicamente a todo
o ideário ou atitude de espírito que reduza a iniciativa do intelecto, que limite
a liberdade da mente, conferindo-lhe papel de passiva receptividade; que
amorteça o poder criativo da inteligência e/ou secundarize a livre actividade
ordenadora do espírito. Daí que para ele qualquer forma de empirismo, aliás,
como também todo o materialismo, representa forçosamente um decaimento
filosófico e intelectual. Toda a filosofia empirista e toda a filosofia materialista
é, de alguma maneira, expressão de menoridade filosófica. Há aí, em tais
sistemas, uma inferioridade essencial, de raiz, que deriva da limitação de
liberdade – no plano da criatividade intelectual, da espontânea e emancipada
criatividade do espírito.
Há aqui uma primordial relação que até hoje me parece não ter sido
percebida ou, pelo menos, cabalmente entendida. Refiro-me à relação entre
o juízo sergiano sobre o materialismo, o empirismo, o sensualismo e o tota-
litarismo político-social. Há, a meu ver, uma atitude que se manifesta a dois
níveis: o teórico e o prático, do agir singular e colectivo dos seres humanos
espacio-temporalmente situados no interior de uma estrutura societal. Se
preferido, digamos que se dá um salto do terreno da epistemologia para
o espaço da filosofia social e política, o do viver concreto de um ser emi-
nentemente social. Para António Sérgio, o materialismo ou o empirismo,
nas suas várias formas de expressão, resvalam sempre, tendencialmente,

49
Idem, Cartas de problemática, n.º 3, p. 7.
João Maria de Freitas Branco 395

para o dogmatismo, favorecendo desse modo a concretização de práticas


sociais totalitárias. Esta relação desatendida é reforçado fundamento de
um juízo crítico acutilante que atribui a essas correntes de pensamento um
rótulo de filosofias de série B, de pensamento filosófico de segunda qualidade.
Em virtude da sua própria natureza (por determinação essencial), essas
filosofias resvalam, necessariamente, para a promoção da passividade
receptiva, para o acto de instituir a mente passiva (receptáculo de dados
independentes, ou “exteriores”) em detrimento da concepção da mente
activa – ideação da criatividade livre. Representam também, consequente-
mente, uma valorização da exterioridade. O instituir do primado do objecto
sobre o sujeito, do material sobre o espiritual, do desordenado e caótico
sobre a ordenação que a racionalidade promove mas que também exige
como condição da sua própria operacionalidade.
Perante o que ficou dito, sabendo-se da precoce influência de Ernst
Mach no pensamento do autor da Teoria da Relatividade, elo tão persisten-
temente evocado e apregoado por gente de variegados quadrantes, somos
assaltados por uma perturbadora mas não menos pertinente dúvida: não
terá havido grave equívoco sergiano ao sentir familiaridade com um cientista
contaminado de empiriocriticismo? E se lhe adicionarmos o influxo do
empirismo de David Hume – pensador que o próprio Einstein confessava
ter provocado em si tão grande impressão, através da leitura do Tratado da
natureza humana, que até talvez não tivesse chegado a edificar a sua teoria na
ausência dos elementos inspiradores por ele legados –, então o hipotético
equívoco parece adquirir maior verosimilhança. Mas estou em crer que o
engano se localiza em outra latitude.
É inegável que estes autores marcaram forte presença na formação inte-
lectual de Albert Einstein, logo a partir dos tempos da Olympische Akademie (a
Academia Olímpica), essa paródia geradora de um esplêndido espaço de alta
cultura em que, na boa e enriquecedora companhia de Maurice Solovine e de
Conrad Habicht, se levava a cabo a leitura colectiva assim como a viva discussão
de alguns grandes textos, com particular incidência em obras galvanizadoras
do diálogo ou da intersecção da ciência com a filosofia, ou vice-versa. Livros
com conteúdo “weltanschaulich”, como lhes chamava o Einstein.
A admiração por Mach – que Einstein conheceu pessoalmente em 1911,
em Viena, num único encontro já próximo do fim da vida do físico-filósofo –
está centrada no valor científico da crítica aos conceitos newtonianos de
espaço absoluto e tempo absoluto, bem como na concomitante argumenta-
ção sobre a inércia, partindo de uma profunda e muito pertinente reflexão
sobre a célebre experiência mental descrita por Newton no terceiro livro
396 Sérgio e Einstein: Aspectos de uma empatia intelectual

dos Principia. A experiência do balde. Isso levá-lo-á a falar de um “princípio


de Mach”, que procura associar à Teoria da Relatividade. Einstein nunca
deixou de considerar “brilhante”50 a análise dos fundamentos da mecânica
desenvolvida por Mach em Die Mechanik in ihrer Entwicklung. Por outro
lado, há a enérgica cruzada contra a validade de conceitos totalmente
divorciados do observável, do empiricamente vivenciado, situando-se
para além de qualquer descrição possível de fenómenos experimentados
pelo sujeito cognoscente. Conceitos como o de éter ou de espaço absoluto
são, no dizer do próprio Mach, “coisa puramente pensada, que não pode
ser registada experimentalmente”. Uma argumentação que não deixa
de retomar os esforços de Hume no século XVIII e que não podia deixar
de agradar a quem, como o físico de Ulm, se preocupava com profunda
sinceridade intelectual com o “existir realmente na natureza”51. Daí que ele
próprio tenha escrito: “Essa linha de raciocínio exerceu grande influência
nos meus esforços, especialmente Mach e, mais ainda, Hume, cujo Tratado
da natureza humana estudei com avidez e admiração pouco antes de descobrir
a teoria da relatividade”52.
O equívoco ou erro que, a meu ver, tem subsistido na mente de muitos é
o de não diferenciar o efeito da leitura einsteiniana do Mach físico da leitura
do Mach filósofo. O que influi no pensamento de Einstein é aquele e não
este. Objecto de permanente admiração é o cientista estudioso da mecânica
e crítico de Newton. Não a gnosiologia de Mach. É pelo trabalho no domínio
da mecânica que Einstein elege o autor de Die Mechanik in ihrer Entwicklung
como um dos quatro físicos que mais admira, ao lado de Newton, Lorentz
e Planck. A filosofia não merece a mesma aprovação. A alegada influência
da filosofia de Ernst Mach é puro mito perpetuado por alguns opinadores de
serviço. Desde cedo, a admiração pela sua Mechanik coabita, sem alteração
significativa, com a desconsideração pela sua filosofia.
Como afirmou em Paris, em 1922, perante ilustríssima assembleia de
filósofos (com Henri Bergson na plateia), e respondendo a uma pergunta de
Émile Meyerson num francês apoiado na muleta do amigo Langevin: “Autant
Mach fut un bon méchanicien, autant il fut un déplorable philosophe”53.

50
Cf. Carta a Mach de 25 de Junho de 1913. In: MACH, Ernst. Die Mechanik in ihrer
Entwicklung. Berlin: Akademie-Verlag, 1988.
51
Cf. EINSTEIN, Albert. The collected papers of Albert Einstein, vol. 3. Translated by Anna Beck
Don Howard, Consultant. New Jersey: Princeton University Press, 1993, p. 421.
52
Citado por Walter Isaacson em Einstein. A sua vida e universo. Lisboa: Casa das Letras,
2008, p. 84.
53
Citado por Abraham Pais em Subtle is the Lord. Trad. port. Subtil é o Senhor. Lisboa:
Gradiva, 1993, p. 348.
João Maria de Freitas Branco 397

Também o reputado físico e biógrafo norte-americano Abraham Pais


desvaloriza a influência filosófica de Mach em favor da admiração eins-
teiniana pela sua mecânica, que esteve na base de uma estima intelectual
que o tempo nunca apagou nem desgastou.

“No seu esboço autobiográfico, Einstein mencionou que o raciocínio


crítico exigido para a descoberta da relatividade restrita foi incrementado
decisivamente pela leitura dos escritos filosóficos de Mach54. Eu arriscaria
que, neste ponto, Einstein, mais uma vez, tinha em mente a mecânica de
Mach”55.

Abraham Pais escreve este comentário, com intenção de sublinhado


pessoal, fazendo valer toda a sua autoridade de destacado biógrafo do
cientista-filósofo e de quem com ele intensamente privou durante os últimos
nove anos de vida, no período do pós-guerra. Mas, para além de tudo isso,
há um outro sinal bem visível de uma consideração não alterada: quando
Mach morreu, Einstein interrompeu todo o seu labor para se dedicar à
redacção de um importante artigo sobre o cientista que acabava de desa-
parecer e em que logo nas primeiras linhas afirma a sua grande influência
no pensamento científico do seu tempo e na investigação da natureza
(“der auf die erkenntnistheoretische Orientierung der Naturforscher
unserer Zeit von grösstem Einfluss war”). Artigo datado de 14 de Março
de 1916 e publicado na Physikalische Zeitschrift, e que agora aparece incluído
nas melhores edições de Die Mechanik…56. Opção editorial que simboliza a
forte ligação intelectual estabelecida entre os dois homens de ciência e a
consideração do mais novo pelo mais velho.
Embora estando a anos-luz do empiriocriticismo de Ernst Mach, que
faz coincidir a representação sensível com o mundo exterior, António
Sérgio, para além da óbvia e necessária anuência à denegação dos absolutos
newtonianos, não deixa de ser sensível à reacção de desconforto e de opo-
sição crítica à conceptualização etérea, que escapa à experimentação por
pairar em um algures para lá de tudo o que é passível de ser observado. Daí
o empenho em declarar-se “experimentacionista”. Além disso, também
se perfilou contra a filosofia da fórmula geral abstracta, à maneira de um

54
Relativamente ao esboço autobiográfico aqui mencionado por Pais, veja-se SCHILPP,
Paul Arthur (ed.). Albert Einstein: philosopher-scientist. New York: Tudor, 1949, p. 21.
55
PAIS, Abraham, Subtil é o Senhor, p. 348, nota 24.
56
Veja-se a esplêndida edição da Akademie-Verlag, que inclui as quatro cartas de Einstein
para Mach e o referido artigo de 1916: MACH, Ernst, Die Mechanik in ihrer Entwicklung,
ed. cit. Textos de Einstein nas páginas 679 e ss.
398 Sérgio e Einstein: Aspectos de uma empatia intelectual

Hegel, e contra o concebimento das Formas como “universais” – “Espécie


de perceptos reduzidos a esqueleto”. Opõe-se à ideia de explicação entendida
como sendo o subsumir sob uma forma geral, de noções abstractas, “defeito
de todas as metafísicas por combinação de conceitos”57.
A esse defeito vai Sérgio antepor a sua concepção do gesto científico
dilucidativo, do esforço racional concretizador do explicar e que é a do
urdimento do “tecido de relações entendíveis”. É the intelligible thread de
que Darwin falava – expressão que Sérgio muito estimava e amiúde citava.
Concepção que o filósofo-ensaísta reencontra nos escritos de Einstein, em
clara dessintonia com a visão de Mach, como fez notar I. B. Cohen, segundo
o qual a crença no valor da invenção de critérios científicos, bem como na
construção teorética operada a partir deles, entendidos como propriedades
criativas da mente humana, é convicção einsteiniana típica, mas precisamente
“oposta à de Mach, porque este supunha que as leis da ciência eram apenas
um processo económico de descrever uma grande colecção de factos”58.
Ao ler o que o autor da Relatividade diz ser a ciência e o hipostasiar
científico, Sérgio revê-se. Frui o conforto do reencontro com a essência do
seu pensar. É a expressão do esforço racional congregador (unificador),
bem como da liberdade criativa do intelecto.
Assim se chega a essa noção chave do sergismo que é a de Uno-Uni-
ficante. Algo que considera estar em perfeita sintonia com o pensamento
do físico de Ulm e, claríssimo está, com o idealismo de Platão. Então, como
diria Antero, na óptica do autor de Ensaios, Einstein pertence, indiscutivel-
mente, à sua irmandade e não à dos empirismos, nem à dos materialismos,
pois também ele coloca na base de todo o afã científico isso que na pessoal
terminologia criativa sérgica se designa por Uno-Unificante. Uma convicção
onde ambos, Sérgio e Einstein, vão encontrar a dimensão de religiosidade. Ou
seja, a convicção que serve de base a todo o trabalho científico, à pesquisa
científica, é em tudo semelhante ao sentimento religioso. É esse sentimento
encrostado na alma do autêntico homem de ciência segundo o qual há uma
Razão que se manifesta no real. Postulado da universal racionalidade do
real a que antes se aludiu.
O fundamento último da ciência é o princípio da consciência, isso a que
o ensaísta chama “a unidade legal do múltiplo”. A consciência é actividade
unificante. É isso que torna possível a ciência.

SÉRGIO, António, Explicação e subsunção sob fórmulas gerais, op. cit., p. 18.
57

I. B. Cohen em Scientific American, Julho de 1955, p. 69. Citado em PAIS, Abraham,


58

Subtil é o Senhor, p. 348.


João Maria de Freitas Branco 399

Amealhemos então algumas citações de prosa einsteiniana em que


Sérgio completamente se revê, sendo por isso mesmo instituidoras de
irmandade anteriana.

“[as hipóteses científicas são] criações livres do intelecto”.

“[Os princípios fundamentais que sustentam um sistema de física teórica]


são criações livres do intelecto humano”59.

“Ciência é esse centenário esforço para congregar através de um pen-


samento sistemático os fenómenos perceptíveis deste mundo numa
associação tão perfeita quanto possível”60.

Adicione-se ainda a seguinte passagem de Mein Weltbild citada pelo


próprio Sérgio em francês:

“Il est certain qu’à la base de tout travai scientifique un peu plus délicat on
trouve une conviction, analogue au sentiment réligieux, que le monde est
fondé sur la raison et peut être compris […] un sentiment profond d’une
raison supérieure, qui se manifeste dans le monde… ”.

Depois de fazer esta citação, Sérgio conclui:

“Einstein […] tem crença de que o Uno Unificante existe e de que o Mundo
se amolda à unificação pelo Uno”61.

No ensaio intitulado Notas de esclarecimento (1950), volta a convocar


Einstein como advogado do seu ideário: “La science […] est une création
de l’esprit humain au moyen d’idées et de concepts librement inventés”62.
Que há convergência de ideias, que há fundamentais concepções
comuns sobre o trabalho científico entre os dois autores que aqui prendem
a nossa atenção, parece coisa inequívoca em face do agora citado. Mas o
perscrutar tem que ir mais além. É nosso dever indagar até onde vai essa
harmonia. Será que o ideário sergiano, o seu idealismo gnosiológico coincide

59
EINSTEIN, Albert. Mein Weltbild (1934) – Conferência no âmbito das Herbert Spenser
Lectures, 10 de Junho de 1933. In: ______. Como vejo a ciência, a religião e o mundo.
Lisboa: Relógio d’Água, 2005, pp. 95 e 97. Doravante, Como vejo a ciência…, seguido
de indicação do número de página.
60
EINSTEIN, Albert. Ciência e Religião, Parte II (1939/1941). In: ______. Como vejo a
ciência…, p. 274.
61
SÉRGIO, António. Explicação para os que entendem a linguagem que eu falo. Vértice,
Revista de Cultura e Arte. Coimbra, n.os 36 a 39, fasc. 8, Junho de 1946, pp. 214-232.
62
Citado em Idem, Ensaios, t. II, p. 240.
400 Sérgio e Einstein: Aspectos de uma empatia intelectual

plenamente com o einsteiniano modo de conceber o processo cognitivo


em que a ciência se estrutura?
Se tivesse podido ler a prosa ensaística do seu admirador português,
Einstein teria certamente acolhido com agrado a expressão Uno-Unificante,
tanto na vertente do conteúdo significante como na da forma do dizer. Como
escreveu o físico Silvan S. Schweber em livro recentemente vertido para
o nosso idioma, “a busca da ‘unidade’ foi uma constante em toda a obra
de Einstein, como se tivesse adoptado o dito de Heraclito, ‘O que é sábio
é uno’, como princípio orientador”; e a isto acrescenta a citação de uma
passagem da conhecida carta endereçada por Albert ao seu amigo Marcel
Grossmann no ano de 1900, ainda no seu tempo de estudante, em que o
futuro gigante da física afirma ser “uma sensação gloriosa reconhecer a
unidade de um complexo de fenómenos que parecem orientar as percepções
dos sentidos como coisas bastante distintas”63.
Com o objectivo de prosseguir a nossa indagação sobre a amplitude da
convergência de pensamento, detenhamo-nos agora em outra passagem
de um dos mais notabilizados textos do físico, texto esse em que o nosso
ensaísta claramente se revê.
O que passo a transcrever é, certamente, não por acaso, uma das mais
longas citações feitas por Sérgio de um texto de Einstein64. Aparece ela,
em língua francesa, no ensaio Notas de esclarecimento (incluído no tomo II
de Ensaios) e trata-se de uma passagem da obra Evolução das ideias em física:

“La science n’est pas une collection de lois, un catalogue de faits non reliés
entre eux. Elle est une création de l’esprit humain au moyen d’idées et de
concepts librement inventés”65.

Se até aqui o texto podia perfeitamente ter sido escrito pelo nosso
filósofo-ensaísta, já o mesmo não acontece com o período seguinte desta
mesmíssima prosa. Mas esse não é citado. É omitido. O acto de citação
prossegue com um salto no texto (devidamente indicado pela colocação

63
EINSTEIN, Albert. Carta a Marcel Grossmann, citada por Silvan S. Schweber em
Einstein & Oppenheimer. O significado do génio. Lisboa: Bizâncio, 2010, pp. 302-303. Ver
também HOLTON, Gerald. Einstein and the goal of science. In: ______. Einstein, history,
and other passions. Massachusetts: Addison-Wesley, 1996.
64
Se considerarmos que a ela se seguem imediatamente duas outras, em inglês,
extraídas de Out of my later years, é este o escrito de Sérgio em que encontramos o
mais abundante recurso à citação de textos de Einstein. Todas estas citações são
invulgarmente extensas.
65
Cf. SÉRGIO, António. Ensaios, t. II, p. 240. Os sublinhados são de António Sérgio
(passagem já antes aqui parcialmente citada).
João Maria de Freitas Branco 401

de reticências)66. Ora acontece que, nessa passagem desconsiderada pelo


citador, é dito, de modo claro, que as “construções mentais” têm que
estabelecer um elo, uma ligação com o mundo das impressões sensíveis.
Afirmação de capital relevância gnosiológica que o autor não se cansou de
reiterar nas suas incursões no terreno da filosofia da ciência. Se revisi-
tarmos a importante carta endereçada ao honorável Viscount Samuel (e a
que regresso também com o intuito de a tornar menos desconhecida neste
nosso meio lusitano), aí encontramos o mesmo sublinhado evidenciador
desta relação gnosiológica e epistemologicamente essencial.
Também aqui se justifica citação extensa.

“[the concept ‘table’,] like all other concept, is of a speculative-constructive


kind. Otherwise one cannot do justice to those concepts which in physics
claim to describe reality, and one is in danger of being misled by the illusion
that the ‘real’ of our daily experience ‘exists really’, and that certain con-
cepts of physics are ‘mere ideas’ separated from the ‘real’ by an unbridgeable
gulf [‘blosse Ideen’, die von dem Realen durch einen unüberbrockbaren
Abgrund getrennt sind]. In fact, however, positing the ‘real’”.

Recorrendo à terminologia utilizada em outra prosa do mesmo autor


(texto anterior ao agora citado), há esforço intelectual permanente no
sentido de denunciar a metafísica entendida como forma de “palavreado
oco” – colocando-se ao lado de Hume e outros – e de, ao mesmo tempo,
delatar o absoluto banimento da metafísica através daquilo que apelida de
“medo da metafísica” (um medo criado por Hume) – caminho que suspeita,
e teme poder ser, em parte (“nas entrelinhas”), o de Bertrand Russell. É a
crítica a Hume permanecendo com Hume. A posição de Einstein torna-se
porventura mais clara nesse escrito de intenção crítica, datado de 1944, e
motivado pela leitura de Meaning and truth, de Russell. Refiro-me ao texto
“Observações sobre a teoria do conhecimento de Bertrand Russell”67, onde
se lê a partir da reprodução da crítica de David Hume à conceptualização
não deduzida da experiência:

66
Ibidem: “Les concepts des nombres purs 2, 3, 4… […] sont des créations de l’eprit pensant […]
la physique a commencé réellement par l’invention de la masse, de la force et d’un système
d’inértie. Tous ces concepts sont des inventions libres”. O que acima foi citado voltou a ser
prosa que bem podia ter saído da pena sergiana. Abreviei a citação. Os sublinhados
continuam a ser de António Sérgio.
67
Incluído em SCHILPP, Paul Arthur (org.). The library of living philosophers, vol. V, 1944,
e também em Mein Leben (EINSTEIN, Albert. Autobiographical Notes. Edição de Paul
Arthur Schilpp. Chicago: Open Court, 1949).
402 Sérgio e Einstein: Aspectos de uma empatia intelectual

“[…] um pensamento só adquire conteúdo material através da sua relação


com essa matéria sensorial [a matéria-prima sensível]. Esta última propo-
sição parece-me absolutamente verdadeira, mas considero falsa a norma
de pensamento que nela se baseia. […] § A fim de que o pensamento não
degenere em ‘metafísica’ […] é necessário apenas que existam suficien-
tes proposições do sistema conceptual ligadas com suficiente firmeza a
experiências sensoriais […]. [Mas Hume criou também um grave perigo]
já que a sua crítica deu azo a um fatídico ‘medo da metafísica’ que acabou
por se converter numa doença da filosofia empirista [que é] a contrapartida
daquele primevo filosofar nas nuvens, que acreditava poder negligenciar
e dispensar os dados dos sentidos”68.

A carta endereçada a Herbert Samuel encerra-se com dura crítica ao


idealismo físico dos entusiásticos adeptos da interpretação de Copenhaga.
Com a satisfação de ver Samuel do seu lado, Einstein concluiu, reafirmando
a sua convicção capital:

“The possibility of a theory which is able to give a complete descrip-


tion of reality, the laws of which establish relations between the things
themselves [zwischen den Dingen selbst] and not merely between their
probabilities”69.

Reafirmação do seu realismo. Zwischen den Dingen selbst, note-se bem.


Portanto, como se pode verificar, o que Sérgio deixa desatendido
na citação feita em Notas de esclarecimento (um dos seus mais relevantes
ensaios de conteúdo puramente filosófico) não é questão menor. É sim
aspecto central no concebimento do processo de construção da ciência – do
conhecimento objectivo. E em particular de um momento crucial em todo
esse processo: o da experimentação.
Aqui, neste importantíssimo passo reflexivo, o discurso de Einstein já não
sintoniza com o idealismo epistemológico sergiano. Surpreendente é o facto de
o filósofo não se aperceber dessa essencial diferença. A hipótese de a omissão
ser ditada por intencional propósito de mascarar ou de construir a ilusão de
uma convergência de pensamento como forma vaidosa de atribuir a si próprio,
às suas ideias e concepções, pomposa importância, pondo a funcionar o velho
mecanismo do efeito de autoridade, é algo que redundaria em acto de pura
desonestidade intelectual. Coisa que só pode inquietar os que, por completo,
desconheçam quem foi António Sérgio, o homem e o autor filósofo. Para os

EINSTEIN, Albert. Como vejo a ciência…, p. 167. Ver também nota anterior.
68

Idem. Carta a Herbert Samuel, 11 de Outubro de 1950. In: SAMUEL, Herbert Louis.
69

Essay in physics. Oxford: Basil Blackwell, 1951, pp. 139 e 145.


João Maria de Freitas Branco 403

que não estejam afectados dessa ignorância, ou encalhados em erróneo juízo


de carácter (bem ou mal intencionado, pouco importa), essa hipótese está
descartada ab initio. António Sérgio foi sempre, em todos os momentos da sua
riquíssima intervenção intelectiva e cívica, modelar exemplo de honestidade. De
verticalidade ética. Por isso mesmo, por ter sido magnífico caso de honestidade
intelectual, a justificação para a referida omissão não pode achar-se aí, em
um vulgar e reles decaimento ético. A fraqueza aqui, se a há, é de outro teor.
Se muito não erro, afigura-se-me haver incompreensão ditada pelo
entusiasmo acendido por uma leitura de reencontro com o seu íntimo pensar.
Nessas Notas de esclarecimento – repare-se como o próprio título do ensaio é
significativo, como ele nos fala neste contexto de inquirição –, a preocupação
do autor está toda ela centrada na vertente em que há de facto convergência
ideativa. Estamos num contexto de esforço de esclarecimento do próprio pen-
samento de quem escreve. Um esclarecer que é auto-esclarecimento. Ou seja,
a preocupação não está centrada na epistemologia einsteiniana, senão que
no idealismo epistemológico do ensaísta. A citação, longa, de um excerto do
livro Evolução das ideias em física é comandada por essa vontade preocupada de
dilucidação do seu próprio ideário. Afã, aliás, bem típico de Sérgio em virtude
de desgastante e permanente confronto com uma ambiência intelectual
adversa, em que repetidamente via serem-lhe atribuídas, serem ilegitima-
mente coladas concepções, ideias, opiniões que de modo algum reconhecia
como suas, sendo até, por vezes, antípodas do seu ver. Quem desconheça
esta nefasta característica do meio que o circundou terá tendência a achar que
existe exagero ou até uma certa forma de obstinação na atitude do nosso bom
Sérgio. O seu singular talento de prosador de ideias – no plano da literatura
mundial – confere ainda mais força e veemência ao esforço de elucidação
do pensamento próprio. Coisa que produz estranheza e a tal sensação de
exagero, de preocupação incontinente, junto de quem observa a partir de
outra geografia cultural. Amiúde disto me apercebi nos meus esforços para
dar a conhecer fora de portas, a colegas alemães, ingleses ou franceses, a
obra sergiana. Não têm o hábito de lidar com o fenómeno da leitura distraída
e romanceada do ensaísmo filosófico – para descanso de suas almas. Não foi
essa, porém, a sorte deste pensador nascido na distante Índia, mas quase
obsessivamente mergulhado na realidade pátria que directamente o afectava
e que sistematicamente tentou transformar no sentido da criação de novos
e elevados hábitos, mais consentâneos com a alta cultura do espírito.
Talvez importe fazer notar que a omissão em que nos temos centrado
tem a dimensão de exemplo paradigmático. Não se trata de mera ocorrência
episódica. Se assim fosse, talvez não se justificasse determo-nos nela tão
404 Sérgio e Einstein: Aspectos de uma empatia intelectual

longamente. O referido salto na citação é expressão de uma continuada e


basilar “omissão” no plano da elaboração teorética. É isso que justifica, e
até nos obriga à convocação da melhor vigilância.
Se o que acaba de ser dito nos faz perceber as razões da supressão ou
as causas de uma notória indiferença em relação a uma ideia deixada de
lado no acto da citação de escrito alheio, a verdade é que não apaga um
defeito exegético muito relevante, se não mesmo fundamental. Por isso
mesmo, nele entendo ser necessário centrar a atenção indagativa com o
propósito de o pôr em evidência, como se diria em linguagem matemática
tão do agrado do nosso filósofo.
Em minha modesta opinião, e se muito não me engano, António Sérgio
nunca chegou a compreender verdadeiramente o que Einstein enten-
dia por exterioridade e experimentação. E, em consequência, qual a função
epistemológica destas noções. Ora, é precisamente em torno destas duas
noções basilares que se desenvolve, a meu ver, essencial divórcio entre a
epistemologia sergiana e a einsteiniana. Ponto de clivagem entre o idealismo
físico e o materialismo físico. O que em nada belisca os entendimentos, as
familiaridades não menos essenciais que aqui fomos observando.
Nesta área de problematização, importa talvez trazer à presença uma
outra ideação convergente e muito atractiva. A da proximidade da ciência
com a arte. Ou, dito de outro modo, o entendimento de que, na esfera do
espírito (do funcionamento da mente humana), o processo de realização do
trabalho criativo em ciência não diverge do gesto criativo do artista, antes
converge, na medida em que trata, no essencial, de um mesmo tipo de afã
espiritual, ou de elaboração mental. Esta outra importante visão comum
materializa-se também ela em declarações onde se pressente com alguma
clareza a possibilidade de o dito por um ter podido também ser dito pelo
outro. É o que se sente quando o filósofo-ensaísta confessa sempre ter olhado
as criações da ciência (as teorias científicas) como sendo uma obra de arte:

“Vi sempre na Ciência uma obra de arte”70.

Numa observação feita em 1923, e que nos chega pela mão de Archibald
Henderson, o físico-filósofo afirma a sua convicção de que “after a certain
high level of technical skill is achieved, science and art tend to coalesce in
esthetics, plasticity and form. The greatest scientists are artists as well”71.

70
SÉRGIO, António. Resposta a um inquérito. Ler – Jornal de Letras, Artes e Ciências,
Lisboa, n.º 18, Setembro de 1953.
71
Cf. CALAPRICE, Alice (org.). The new quotable Einstein. Princeton, New Jersey: Princeton
University Press, 2005, p. 230.
João Maria de Freitas Branco 405

Esse Albert que assim pensava tinha por hábito olhar para os entes
humanos tomados de um qualquer fanatismo, olhar para os espíritos
sectários, ou seja, para as pessoas com formatação mental não-científica
ou anti-científica, como sendo criaturas incapazes de escutar a música
das esferas. Profunda e subtil observação, esta, de quem, sendo físico, e
grandíssimo, nunca deixou de ser também músico violinista, possuidor
de uma fina sensibilidade artística que não permitiu que ficasse de fora,
posta entre parêntesis, no acto de fazer ciência – acção tão eminentemente
criativa quanto a do artista músico, pintor, romancista ou poeta.
O sectarismo, o dogmatismo, o fanatismo ideológico são, digo agora
eu crendo-me em sintonia com ambos os autores em estudo, formas de
deficiência intelectual – mais inata, em certos casos, mais adquirida, em
outros. E a esses deficientes intelectuais sempre estará vedada a possibilidade
de fazer Ciência e Filosofia de valia. Mesmo na ausência de todo e qualquer
constrangimento externo. Só os que sabem «viver numa alvorada eterna»
conseguem caminhar de modo consequente em tais acidentados terrenos72.
Tudo isto é reforçado pela observação cuidada do modo como Einstein
fez ciência, e da melhor cepa. Um modo de proceder que delicia todo o
sergiano, a começar, obviamente, pelo próprio António Sérgio. É que no
seu labor científico, o físico-violinista não definia como ponto de partida
nenhum dado experimental concreto. O ponto de partida não era de natureza
empírica. Como poderia o idealista Sérgio não prezar essa desafectação ao
sensorial, bem como, consequentemente, à platónica intuição sensível?
Einstein teve a preocupação de reiterar essa negação de um processo
de construção teórica baseado em dados experimentais, nomeadamente
ao afirmar, referindo-se à construção da Teoria da Relatividade geral, que
nenhum conjunto de factores empíricos pode conduzir directamente às
equações complexas que a integram.
As suas experiências mentais tornaram-se famosas. E em resposta
à inquirição de Max Wertheimer, psicólogo interessado em conhecer o
modus operandi da sua mente singular, afirmou que raramente pensava
com palavras na fase inicial do processo. Primeiro surgia o pensar com ou
em imagens e, só depois, num segundo momento, o pensar com palavras.
“Os pensamentos – dizia – surgem-me e só depois é que talvez tente
exprimi-los por palavras”73. Esse pensar imagético, esse fantasiar de

72
Pena não terem estes dois autores desenvolvido uma reflexão mais sistematizada
sobre as similitudes entre ciência e arte, assim como sobre a estética da ciência e a
função do belo na edificação do conhecimento científico.
73
Relatado por WERTHEIMER, Max. Productive thinking. New York: Harper, 1959, p. 214.
406 Sérgio e Einstein: Aspectos de uma empatia intelectual

experiências, pensar sem palavras – algo que não podemos separar do forte
poder imaginativo/inventivo que também o caracterizava –, parece guardar
extraordinária proximidade com a arquitectura mental do artista plástico,
ou até do músico, no relativo ao pensar sem recurso à palavra. Há paridade
com o modus operandi da mente do criador de arte. Do meu pessoal ponto
de vista, a relevância desta forma de pensar não pode deixar de ser trazida
à colação no momento de se analisar a profunda controvérsia mantida com
o Bohr, o Heisenberg e todos os simpatizantes da chamada interpretação
de Copenhaga. Einstein resiste ao abandono de uma Anschauung clássica.
Einstein considerava também existir uma essencial razão comum
justificativa da vontade humana de levar a cabo actividades artísticas
ou científicas, justificativa do desejo de estar com a arte e com a ciência.
Discursando em homenagem a Max Planck, em 1918, disse:

“[…] eu acredito, como Schopenhauer, que uma das mais fortes razões
que levam os homens a dedicarem-se às artes e à ciência é a ânsia de fugir
da vida de todos os dias, com a sua pungente crueza e a sua insipidez
inevitável”74.

Como afirma Walter Isaacson, “costumava partir de postulados que


abstraía da sua compreensão do mundo físico, tais como a equivalência
entre gravidade e aceleração. Essa equivalência não foi uma coisa na qual
ele pensou pelo facto de estudar dados empíricos. A sua maior força como
teórico era ter uma capacidade mais aguda do que outros cientistas para
criar aquilo que chamava de ‘postulados e princípios gerais que funcionam
como ponto de partida’”75.

“[…] enquanto não se descobrirem os princípios que servem de base para


o processo dedutivo, o facto empírico individual não possui qualquer valor
para o teórico”76.

Mantendo bem presente o que acaba de ser dito sobre o entendimento


da proximidade entre ciência e arte (incluindo a dimensão estética da ciência)
e a forma einsteiniana de fazer ciência, proponho que regressemos agora

74
EINSTEIN, Albert. Discurso de celebração do 60.º aniversário de Planck. In: ______.
Como vejo a ciência…, p. 25.
75
ISAACSON, Walter. Einstein, p. 292. É claro que, neste contexto, a expressão “ponto
de partida” não pretende referir o início do conhecimento humano em geral, mas
sim o do processo de construção de teorias científicas.
76
EINSTEIN, Albert. Princípios de física teórica. Discurso inaugural perante a Academia
Prussiana de Ciências (1914). In: ______. Como vejo a ciência…, p. 19.
João Maria de Freitas Branco 407

à consideração de duas noções chave no pensamento epistemológico dos


dois autores em apreço. Refiro-me à noção de exterioridade e à noção de
experimentação.
Como antes já se viu, António Sérgio sempre esteve convencido da
existência de concordância entre o seu próprio ideário e o do célebre e por si
tão admirado físico alemão. Uma comum concepção gnosiológica e episte-
mológica. Mas será isso verdade? Estará a epistemologia einsteiniana em tão
perfeita harmonia com o idealismo epistemológico sergiano? Quando, por
exemplo, ambos põem em evidência e enaltecem o papel da experimentação
será que estão a falar do mesmo? Ou, talvez melhor, a pensar o mesmo?
Para se entender a conceptualização sérgica da exterioridade e da experi-
mentação (experiência científica), é indispensável começar por perceber em
que consiste o idealismo; qual o gesto intelectual que o institui. Dito de outro
modo, trata-se de determinar qual a ideia que preside a toda a genuína filosofia
idealista. E para tal temos que ir ao encontro de Fichte. Modelo paradigmático.
António Sérgio respeita fielmente a fundamentação fichteana. A pri-
meira pedra do sergismo, essa que o faz ser uma pura filosofia idealista, é
legado de Platão, é certo, mas também, e não em menor medida, de Fichte77,
pois que, na Idade Moderna, é de facto nele que encontramos o mais perfeito
paradigma da démarche inauguradora do idealismo. Aquilo a que tenho por
hábito chamar o procedimento instaurador do idealismo.
Eis o que Fichte nos diz na sua Wissenschaftslehre:

“Nós temos que procurar o princípio absoluto-primeiro, pura e sim-


plesmente incondicionado, de todo o saber humano” (“Wir haben den
absolut-ersten, schlechthin unbedingten Grundsatz alles menschlichen Wissens
aufzusuchen”)78.

Esse absolut-ersten Grundsatz é expressão da Tathandlung – a acção


absoluta inauguradora.
O ser é posto pelo Eu-activo que é fundamento de si próprio. O Eu-
activo, em contraste ou em oposição ao não-eu, ao nicht-ich, é espontanei-
dade absoluta. Sendo pura negação, o nicht-ich é desprovido de autonomia
ontológica, ou seja, em si mesmo não possui realidade; “é simplesmente

77
Se bem que essa influência tenha sido muitas vezes omitida ou, pelo menos, meno-
rizada pelos seus leitores e até por investigadores do seu pensamento até os dias de
hoje. Deficiência a que talvez o próprio não seja totalmente alheio, pois nem sempre
referiu o nome de Fichte em momentos textuais em que enumerou os nomes dos
pensadores que nele mais influíram.
78
FICHTE, Johann Gottlieb. Wissenschaftslehre, I, §1. In: ______. Werke, vol. I. Edição
de I. H. Fichte, Berlin: Gruyter, 1971, p. 91.
408 Sérgio e Einstein: Aspectos de uma empatia intelectual

posto pelo Eu” (“ist schlechthin durch das Ich gesetzt”). É assim instituído o
primado do Ser posto pelo Eu-activo, antecedendo a matéria e a própria
relação sujeito-objecto. Através deste procedimento, a realidade material
aparece destituída de fundamento próprio. O seu fundamento vem de
fora; provém da esfera do Eu. Por outro lado, a questão fundamental do
unificar ou da unificação, superando a estrutural incapacidade da sensi-
bilidade para anular, para se libertar, da Mannigfaltigkeit, da diversidade.
Portanto, e tal como já antes se observou no modo como Sérgio concebe
os constructos percepcionais e formais, é ao intelecto, é à Razão que cabe
a função de unificar, libertando-nos do múltiplo, da diversidade caótica a
que o sensorial (a experiência sensível) condena. Daí que, para Sérgio, em
absoluta concordância com Fichte, que lhe serve de fonte de inspiração, seja
inimaginável e inadmissível a hipótese de a unidade do Real poder consistir
na sua materialidade. Isso não passa de uma espécie de aberração filosófica.
Experimente-se agora o sabor indisfarçavelmente fichteano do discurso
sérgico em torno da ideia central de Uno-Unificante:

“[Quem for como eu] percebe com clareza extrema a necessidade da


existência de um Uno-Unificante, isto é, de certa Origem das origens das
nossas hipóteses científicas (‘criações livres do intelecto’, segundo o dizer
de um Einstein). Da necessidade, digo, de um acto absoluto de pensamento
efectivo; de uma actividade originária de pronunciar juízos, de pôr um Eu
(transcendente ao objecto, transcendente às classes, transcendente à
época, transcendente à imagem), sem o qual a noção do ajuizar exacto, e a
distinção do verdadeiro e do não verdadeiro – e ainda o intuito de investigar
da verdade – não assumem realmente sentido algum”79.

O acto absoluto de pensamento efectivo é a Tathandlung fichteana. Só isso


confere sentido ao empreendimento cognitivo a que chamamos ciência.
Este procedimento instaurador do idealismo vai determinar e condicio-
nar a concepção sergiana de exterioridade, assim como de experimentação.
Por alguns opositores dogmáticos terem tentado colar ao seu ideário
o rótulo de solipsismo80, repetidamente – e, a meu ver, exageradamente –,
Sérgio afirmou não duvidar da existência do mundo exterior de que faz parte

79
SÉRGIO, António. Explicações para os que entendem a linguagem que eu falo. Vértice,
n.os 301 a 303, Outubro-Dezembro de 1968, p. 864.
80
A desatenção, o deficit de cultura filosófica, o modo preconceitual como Sérgio chegou
a ser lido, levou a que houvesse quem dele pretendesse fazer um Berkeley lusitano,
sem entender ser ele exactamente o oposto. Aliás, como o próprio teve o cuidado de
afirmar: “Eu e o Berkeley, como vós percebeis, estamos em pólos absolutamente
opostos” (SÉRGIO, António, Cartas de problemática, n.º 2, p. 2). É a distância filosófica
João Maria de Freitas Branco 409

o nosso próprio corpo. Mas ao fazê-lo, denunciou uma confusão que lhe está
associada e que consiste na tendência para associar, como se fossem termos
sinónimos, “independente” e “exterior”. Entendendo sempre a consciência
como actividade psíquica (ou mental) e não como substância (substância-alma),
Sérgio afirma não fazer sentido supor que um objecto existente fora de nós
(por exemplo, uma mesa ou um copo) se considere exterior à consciência,
porque “a relação de exterioridade não se aplica ao inextenso”81. A mente
não é um objecto ocupando um qualquer lugar no espaço.
Há, portanto, uma adjectivação inadequada que redunda num nonsense.
Ou, como diz o crítico, numa “trapalhada”. A mesa ou o copo são corpos
independentes da actividade mental, mas não exteriores a ela – exteriores
à consciência. São, isso sim, exteriores ao nosso corpo. Assim sendo, os
estímulos provenientes da actividade-físis (Mundo físico) suscitam na
actividade psíquica os sinais-sensações. Mas a intuição sensível jamais é
a própria actividade-físis. É sim e apenas um sinal dessa actividade: “O
elemento sentir não é o real: é um simples sinal da realidade física”82. Esses
estímulos da sensação são por isso independentes da psique, mas não
exteriores. A sensação não se pode identificar com o estímulo.

“Sensação é um algo, estímulo é outro; a sensação é da consciência; o


estímulo, da Físis, que é exterior ou interior ao nosso próprio corpo, mas
não exterior à nossa actividade mental”83.

É de lamentar ter Sérgio descorado o facto, hoje em dia tão acen-


tuado pelas neurociências, de a actividade psíquica ocorrer na base da
actividade-físis cérebro e corpo (totalidade da nossa estrutura corpó-
rea), não sendo esta, portanto, elemento activo e interveniente apenas
no processo da cognição sensitiva, da apreensão sensorial do mundo
material. Esse descorar pode fazer supor, erroneamente, que no nível
superior do pensar, em que se dá a construção teórica, a actividade-físis
deixa de marcar presença.
Há que não perder de vista este modo de entender o sinal-sensação e
a associada reflexão sobre a ideia de exterioridade, ao entrarmos agora na
análise crítica da noção sergiana de experimentação.

que separa o idealismo empirista do idealismo anti-empirista. Onde Sérgio se enganava


era no “vós percebeis”… Nem todos perceberam.
81
SÉRGIO, António, Cartas de problemática, n.º 2, p. 4.
82
Idem, Ensaios, t. II, p. 246. Ou ainda, na p. 233 do mesmo ensaio: “A sensação não
passa de um sinal do Mundo”.
83
Ibidem.
410 Sérgio e Einstein: Aspectos de uma empatia intelectual

O autor das Cartas de problemática sempre insistiu (como já antes se


teve oportunidade de verificar) em declarar-se “experimentacionista”.

“Não se me afigura que seja coisa possível o ser-se mais experimentalista


do que eu próprio sou”84.

Ou seja, em seu entender, não há ciência completa na ausência de


confirmação prática das conclusões teóricas “através dos resultados da
experimentação rigorosa”. Impõe-se, por isso, um regresso à Actividade-
Físis, à Actividade-do-Mundo, como também lhe chama. A livre criação de
Formas (processo unitivo) não basta. Então, dizer que “todo o conhecimento
da realidade começa e termina na experiência” parece ser declarativa com
inequívoco perfil sergiano. Tanto assim é que, no ensaio intitulado Notas de
esclarecimento (1950), deparamos, mais do que uma vez, com frase em tudo
semelhante mas não colocada entre aspas85. É, no entanto, frase saída da
pena do físico de Ulm e pronunciada em conferência realizada no âmbito
das Herbert Spencer Lectures, a 10 de Junho de 1933. Uma afirmativa que, ao
contrário do que possa parecer, em nada contraria o antes afirmado sobre
o modo einsteiniano de fazer ciência, uma vez que “o começo” não é aqui
o mesmo (este antecede o início do trabalho científico propriamente dito).
Esta enfática declarativa é ladeada por duas outras que a corroboram: “O
puro pensamento lógico não nos pode dar nenhum conhecimento do mundo
empírico. […] As proposições a que chegamos através de meios puramente
lógicos são inteiramente vazias no que diz respeito à realidade”86.
A valoração da experiência parece ser indiscutível elemento comum.
Mas como é que um e outro a concebem? O recurso a um mesmo termo
não garante que haja absoluta convergência de ideias. Que entende Sérgio
por experiência científica?
Se, como bom neokantiano, Sérgio não admite haver experiência à revelia
do objecto, pois que o estímulo é condição da sensação (do sinal-sensação,
como lhe chama), se assim é, a verdade é que a experimentação pressupõe a
unidade de que antes amplamente se falou. Ora, como sabemos, essa unidade
ou unificação só se dá, só se concretiza plenamente ao nível dos constructos
formais. Não há experiência sem juízos, sem encadeamento de ideias, sem
construção ideativa. Assim sendo, a experiência científica é posta na esfera

84
Idem, Notas de esclarecimento, p. 210.
85
Ibidem: “Penso, no que toca à física, que tudo começa pelo experimentador minucioso
e que tudo acaba pelo experimentador minucioso. Experimentalismo constante desde
ponta a ponta”. Ver também p. 233.
86
EINSTEIN, Albert, Mein Weltbild, p. 94.
João Maria de Freitas Branco 411

exclusiva da actividade psíquica, ou, talvez melhor, é concebida como se o


que é independente da psique perdesse influência, deixasse de pesar. Logo
na primeira carta de problemática é-nos dito, no contexto de uma referência
muito elogiativa a Wilhelm Wundt e de valorização da atitude de fidelidade
“a um experimentalismo extreme”, que “para os homens que realmente
pensam, a experiência é uma só, e toda ela psíquica”87.
É de notar a forte e directa influência do fundador da psicologia
experimental88.
Portanto, uma vez concluído o procedimento instaurador do idea-
lismo, o objecto anteposto, o Gegenstand, a intentio objectiva encontra o seu
fundamento fora de si, no Eu-activo, no pensar. O Gegenstand, o “objecto
exterior” (denominação defeituosa, em seu parecer, mas que por força da
tradição nem por isso deixa de utilizar frequentes vezes) é algo mediato,
e não algo imediato; assim também a prática, em que a experimentação se
inscreve, é estrutura de ideias. A experiência, sendo única, comporta, no
entanto, diferentes aspectos. O primeiro é, no dizer sergiano de wundtiana
inspiração, o aspecto perscrutativo. Só a este corresponde uma intentio
objectiva, um “mundo exterior”, no uso de uma terminologia filosófica
clássica ou tradicional, aqui recusada em favor da Actividade-do-Mundo
ou Actividade-Físis.
Conclui então António Sérgio ser óbvio o seguinte:

“[…] ao passo que o aspecto presentativo da experiência é algo imediato


como a mesma experiência, o “objecto exterior” é pelo contrário mediato: é
um quê postulado (ou suposto, ou inferido) a partir do aspecto presentativo
da experiência”89.

E em outro momento de escrita ensaística sobre a experimentação,


afirma algo porventura ainda mais revelador do perfil idealista da sua
concepção:

“As hipóteses científicas, essencialmente, são hipóteses de trabalho, instru-


mentos de investigação. […] A rigor, a própria verificação é provisória, e
põe à prova a nova ideia e também as outras a que está ligada; reduz-se à
coerência de um sistema de ideias; e pode, por esse facto, ser mais tarde
modificada por observações mais completas, suscitadoras de ideias novas.

87
SÉRGIO, António, Cartas de problemática, n.º 1, p. 2.
88
Tenha-se em consideração, neste contexto, um escrito de juventude pouco conhecido:
SÉRGIO, António. Da natureza da afecção. Ensaios de psicologia e pedagogia. Separata
da Revista Americana, Rio de Janeiro, ano IV, n.º 9, 1913.
89
SÉRGIO, António, Cartas de problemática, n.º 1, p. 2.
412 Sérgio e Einstein: Aspectos de uma empatia intelectual

[…] A prova da hipótese […] é o grau de clareza com que nos faz ver as
coisas, a unidade inteligível que introduz nos factos, nos testemunhos
variados, nas percepções havidas. É essa a prova, e essa só”90.

E na página seguinte deste mesmo ensaio, deixa claro o que entende


por objectividade:

“Toda objectividade é uma questão de direito, e funda-se numa coerência


intelectual intrínseca”91.

Muito significativo é também o que Sérgio escreve na carta semi-


inédita que antes extensamente transcrevi, comentando, e que útil será
ter presente. Também nela é clara a insistência no critério da coerência, a
redução da verificação (da prova) a um processo de sustentação recíproca
de ideias no âmbito da actividade da psique92.
A comparação, o confronto da hipótese, ou da teoria, com a actividade-
físis, que a experiência (prática experimental científica) promove, redunda
então numa comparação de constructos, num verificar se uma dada estrutura
de ideias se coaduna, se encaixa, em uma outra estrutura de ideias gerada
por diferente conjunto de estímulos da sensação. A verificação consiste na
coerência das ideias. Não há, nem pode haver, à luz deste idealismo episte-
mológico, encaixe de uma ideia com um facto (fenómeno natural, realidade
externa/independente). Esta conclusiva edifica-se a partir de fundamental
interrogativa, assim enunciada a propósito de Berkeley:

“Como saber que um sentir é imagem, que ele é representação de uma


coisa incógnita, que nós não podemos sentir como tal?”

90
Idem, Ensaios, t. IV. Lisboa: Sá da Costa, 1972, p. 207 (ensaio intitulado “Repercussões
duma hipótese: Ceuta, as navegações e a génese de Portugal”, que reúne três textos
redigidos em diferentes alturas; dois deles inicialmente publicados na Lusitânia, em
1925, e o terceiro, agora aqui citado, escrito em Paris muito mais tarde, em 1932. São
bom exemplo de como a filosofia está no cerne, na base, de todo o seu ensaísmo. As
ideias estruturantes do seu idealismo epistemológico estão sempre, ou quase sempre,
activamente presentes. Mesmo quando o título nada indicia nesse sentido).
91
Ibidem, p. 208.
92
Independentemente do seu carácter semi-inédito, este escrito epistolar tem também
particular relevância por datar dos últimos anos de vida intelectual activa (1957).
Recorde-se que em virtude de doença psíquica, Sérgio deixa de ter uma vida intelec-
tual activa a partir do final desses anos 50 do século passado. Veja-se, a propósito, o
rascunho manuscrito de uma carta de Luísa Sérgio, dirigida a um casal de amigos não
identificados, que se encontra no espólio de Sérgio e que data muito provavelmente
do final do ano de 1959, antecedendo a morte da sua autora em Fevereiro de 1960.
Parcialmente citado por Jacinto Baptista em António Sérgio enciclopedista, pp. 36-37.
João Maria de Freitas Branco 413

E prossegue dizendo:

“A frase de uma coisa imagem de uma outra, ou representativa dessa


outra, somente assumirá significado efectivo se nos for possível a operação
mental de nos apresentarmos a nós mesmos as duas coisas, a fim de as
podermos comparar entre si. Ora, como nos apresentaremos essa matéria
abstracta, para por aí a compararmos com um nosso sentir? A operação
mental é aí impossível”93.

Vasco de Magalhães-Vilhena, no seu pertinente e certeiro comentário


a esta passagem (que também cita no seu estudo pioneiro de 1964), declara
que no idealismo sergiano “a marca da realidade de um mundo objectivo,
o critério da realidade objectiva é a coerência de um sistema de relações
inteligíveis, e esta apenas; pois todo além-do-pensamento é necessaria-
mente ignoto”94.
Neste idealismo epistemológico e crítico, a experimentação (operação
manual) “inclui sempre o sentir” (nela é sinal o sentir), mas “a sensação
é […] criação da psique, e não uma reprodução da Actividade-mundo”95.

“Sem relações inteligíveis que a nossa mente cria […] não alcançamos
um Mundo, mas tão-só sentires, e não passa o existente de uma colecção
de sentires”96.

Desloquemo-nos agora para junto de Einstein.


É certo não nos ter ele deixado nenhuma obra exaustiva, de reflexão
filosófica sistemática, claramente reveladora dos contornos precisos do
seu pensamento epistemológico. A isso não estava obrigado. Foi físico e
não filósofo de profissão, o que de qualquer modo, como sabemos, não
retira à sua obra dimensão filosófica de monta. Mesmo assim, na ausência
dessa sistematização, já antes amealhámos suficientes evidências, ou, no
mínimo, indícios fortes, de ser a concepção einsteiniana de experimentação
incompatível com este sérgico concebimento idealista. À luz daquela,
há uma relação, para a qual o célebre cientista repetidamente chama a
atenção, entre o sistema de relações inteligíveis e o “mundo exterior”.
Entre a coerência e a actividade-físis (sendo que esta não é a sua pessoal

93
SÉRGIO, António. Notas a Jorge Berkeley. Três diálogos entre Hilas e Filonous em oposição
aos cépticos e ateus. Coimbra: Atlântida, 1948, p. 174. Sérgio traduziu, prefaciou e anotou
esta obra de Berkeley.
94
MAGALHÃES-VILHENA, Vasco de. António Sérgio – o idealismo crítico e a crise da ideologia
burguesa. Lisboa: Seara Nova, 1964, p. 58.
95
SÉRGIO, António, Ensaios, t. II, p. 217.
96
Idem, Prefácio a Três diálogos…, p. XXXIII.
414 Sérgio e Einstein: Aspectos de uma empatia intelectual

terminologia). Daí brota o seu apego a expressões como “existir realmente


na natureza”, utilizada, por exemplo, na referência à incomodidade das
descontinuidades presentes na teoria de Planck. Em vivo contraste com
Niels Bohr (com o último Bohr, o pós-modelo de visualização imagética do
átomo, a atomic theory de 1913), e ainda mais com Werner Heisenberg, para
ele a física é a descoberta do como a natureza é, na sua realidade objectiva,
independente do sujeito cognoscente, do pensamento, da actividade mental.
A tese, tão intimamente associada ao cubismo de Metzinger – ou, talvez
melhor, à descrição e teorização estética que o artista faz do cubismo97 –, e
tão cara aos cientistas subscritores da interpretação de Copenhaga, a tese
segundo a qual a forma como se olha determina o que é o observado (“how
you look at it, that is what it is”)98, era algo insuportável para a sensibilidade
científica de Albert Einstein. Qualquer coisa de incompatível com a sua
Weltanschauung. Ora, é a partir desta essencial incompatibilidade que se
solidifica a sua divergência com o idealismo.
Com o andar dos anos, o modo acima descrito de encarar o empre-
endimento científico não esmorece, senão que, pelo contrário, se viu
revitalizado. A célebre controvérsia com Niels Bohr e restantes intérpretes
de Copenhaga reforçou essa posição. Facto que decisivamente contribuiu
para um certo isolamento, dado que a sua posição deixou de estar de acordo
com o pensamento científico em voga. Utilizando linguagem artística,
Einstein deixava de ser um cientista avant-garde. Como diz Walter Isaacson
em obra cientificamente muito actualizada, “durante a sua maturidade,
Einstein acreditou com mais firmeza na existência de uma ‘realidade’
objectiva, quer esta pudesse ser observada ou não. A crença num mundo
externo independente da pessoa que o observa, repetia ele muitas vezes,
era a base de toda a ciência”99.
Esta concepção, a que é inerente o referido apegamento à relação
(fundamental) com a exterioridade, aparece-nos, porventura até melhor
explícita, em outros contextos de problematização. É o que acontece, por
exemplo, na conversa sobre religião tida no Verão de 1930 com o místico,
poeta e também músico indiano Rabindranath Tagore. Nessa ocasião
Einstein disse o seguinte:

97
Cf. GLEIZES, Albert; METZINGER, Jean. Du cubisme. Paris: Éditions Présence, 1980,
p. 68 e ss. (entre outras). (1.a ed.: Paris: Figuière, 1912)
98
Bohr tinha em sua sala, na habitação que lhe foi cedida nos anos 30 pela Fundação
Carlsberg, o quadro La femme au cheval, da autoria de Jean Metzinger (pintura que
data do início dos anos 1910).
99
ISAACSON, Walter. Einstein, p. 279.
João Maria de Freitas Branco 415

“There are two different conceptions about the nature of the universe:
(1) the world as a unity depending of humanity; (2) the world as a reality
independent of the human factor. […] I cannot prove scientifically that
truth must be conceived as a truth that is valid independent of humanity,
but I firmly believe it. […] If there is a reality independent of man, there
is also a truth relative to this reality”100.

Tenho sempre a tentação de ver na atitude de Einstein alguma simi-


litude com a dos músicos compositores e pintores do século vinte que se
recusaram a enveredar totalmente pelo vanguardismo da atonalidade (no
caso da música) ou pelo do completo abstraccionismo (no caso da pintura).
Casos como os de Igor Stravinsky, Benjamin Britten, Paul Hindemith,
Pablo Picasso, Fernand Léger, este principalmente na fase pós-cubista,
de afirmação do seu carácter pessoal em obras inspiradas na mecânica.
No seu excelente estudo comparativo da força criativa manifestada em
Einstein e Picasso, Arthur I. Miller diz, referindo-se a essas duas figuras
maiores da cultura dos anos Novecentos, que “each of them lost touch with
the advances they created”101. Há verdade nesta interessante conclusão;
mas será toda a verdade? Não será ela exemplo das sempre perigosas
meias-verdades?
Vimos antes a importância da visão imagética na elaboração mental do
criador da Relatividade; no entanto, não creio que ele tivesse permanecido
refém de uma visualização associada aos modelos da realidade macrofísica,
de uma visualização formatada com base na realidade que nos é familiar,
consentânea com os fenómenos constitutivos da vida quotidiana (do meso-
cosmo) e do macrocosmo. Não me parece que Einstein possa ser acusado de
uma tal ingenuidade. A sua incomodidade é para com uma ordem subjectiva,
imposta ao real pelo sujeito observador, que, por exemplo, através da pro-
clamação de um indeterminismo essencial ou da instituição da primazia do
observador sobre o real observado, tende a substituir a ordem pelo caos, o
racional pelo irracional, a realidade objectiva por uma realidade subjectiva.
Representações como o diagrama de Feynman, em que o muão anti-neutrino
interage com um electrão através da troca de uma partícula Zº – um tipo
de representação que corrobora a ideia de Platão (tão adorada por Sérgio)

100
Conversa com Rabindranath Tagore, publicada no New York Times Magazine, 10 de
Agosto de 1930. Sublinhado meu.
101
MILLER, Arthur I. Einstein, Picasso: Space, time, and the beauty that causes havoc. New
York: Basic Books, 2001, p. 262. Isto porque, na opinião de Miller, “in their own ways
Einstein and Picasso were intent on extending classical figurative science and art”.
Ibidem, p. 259.
416 Sérgio e Einstein: Aspectos de uma empatia intelectual

de ser a matemática a chave para a visualização da natureza –, não ferem,


nem são incompatíveis com a Anschauung einsteiniana, ao contrário do
que Arthur I. Miller declara, ao considerar que Einstein está aprisionado a
uma ciência figurativa, uma visual imagery clássica, isto é, “a visual imagery
abstracted from phenomena and objects we have experienced in the daily
world”102. Não creio, repito, que esta acusação de ingenuidade seja justa.
E também não é nessa vertente que Einstein é menos platónico. É sim no
distanciar-se do idealismo – do procedimento instaurador do idealismo. Se
muito não me engano, erra quem, após os avanços da mecânica quântica,
olhar para a atitude einsteiniana como sendo expressão de puro arcaísmo.
A inclinação que confessei, a de ver semelhança entre a evolução do
conhecimento científico e o que se foi passando no domínio das artes, con-
tém perigos não de pequena grandeza. Ciência e arte não são uma e a mesma
coisa. O que numa, por exemplo, se entende por progresso, não é o mesmo
que se apresenta na outra. O modelo atómico concebido como réplica do
sistema Solar é um arcaísmo científico, não podendo ser tolerado no seio da
actual mecânica quântica; no entanto, em arte, seria crime cultural rejeitar
a possibilidade de um criador virar costas à mudança instituída por uma
vanguarda artística. Como se poderia considerar esteticamente ilegítimo
o acto criativo de um Rachmaninov com partituras novecentistas como as
Variações Corelli e os seus dois últimos concertos para piano e orquestra (n.º
3 e n.º 4), ou o gesto criativo de um Richard Strauss ao compor uma obra
orquestral como Metamorphosen em 1945, em pleno século da atonalidade?
Como se poderia admitir que as referidas obras musicais, aqui nomeadas a
título de exemplo, fossem tratadas do mesmo modo que a ciência hodierna
trata as antigas representações teóricas do átomo (incluindo a antes referida
teoria atómica de Niels Bohr)?
Há por isso que ter as maiores precauções no estabelecer de analogias
ou de similitudes entre o domínio da ciência e o das artes. Eddington nem
sempre teve essa prudência, sendo exemplo dos que se deixaram e deixam
levar por entusiasmos românticos causadores de desfigurações do empre-
endimento científico que acabam por cometer o assassinato intelectual da
objectividade e violentar a Razão científica. Contra isso se erguia o Albert,
dedicado físico-filósofo de Ulm.
Albert Einstein não era tão sergiano quanto Sérgio supunha. No con-
fronto intelectual entre o idealismo físico e o materialismo físico, con-
fronto entre duas Weltanschauungen (duas concepções do mundo), Einstein
inclina-se para o lado desta última em detrimento daquela. O procedimento

Ibidem, p. 259.
102
João Maria de Freitas Branco 417

instaurador do idealismo era-lhe alheio. Embora não sistematizada, nem


afirmada nestes termos, a ideia de que a unidade do real se fundamenta na
sua materialidade (mundo exterior) parece estar longe de ser coisa ausente
no quadro do seu pensamento. Uma potencial conclusão que arrepiaria
o nosso bom Sérgio até às entranhas, pois que, em sua óptica, uma tal
ideia só pode conduzir directamente às filosofias menores e vetustas. Ao
decaimento filosófico. O fundamento desta convicção parece-me já ter
aqui ficado esclarecido.
A objectividade, no conceber sergiano, é fundada na consciência, na
actividade da psique; a objectividade, no conceber einsteiniano, é, pelo
contrário, fundada no “mundo exterior”, na realidade material. Em António
Sérgio, a ordem é posta pelo sujeito cognitivo. Enquanto, em Einstein, a
ordem é pertença da própria realidade objectiva, independentemente da
acção intencional do sujeito cognoscente – é essencial característica da
Natureza.
Estranho que António Sérgio não tenha dado maior atenção à histórica
controvérsia Einstein-Bohr em torno da mecânica quântica, com Einstein a
opor-se à interpretação de Copenhaga, representativa do idealismo físico.
Por que não escreveu ele um ensaio de análise crítica dessa apaixonante
controvérsia tão central no pensamento científico do século XX? É claro que
há textos como as Cartas de problemática, assim como vários outros em que,
a partir da década de 30 do último século, a mecânica quântica é objecto de
séria atenção crítica. A questão do indeterminismo despertou-lhe particular
interesse, como aqui se viu nomeadamente através da citação de anotações
inéditas manuscritas em exemplares pessoais das obras que versam o tema
da física quântica. A questão é que a controvérsia Einstein-Bohr representa
o confronto de duas interpretações incompatíveis uma com a outra, para
não dizer opostas, em que uma advoga um indeterminismo essencial,
afirmando-se completa, e a outra defende a possibilidade de descrição
causal dos fenómenos físicos, insistindo na ideia de uma realidade física
(material) objectiva, independente do sujeito observador. É a exuberância
desta diferença que parece obrigar, impelir o crítico, ou todo aquele que
sobre ela opina com alguma profundidade e fundamento, a tomar partido, a
assumir clara posição em favor de uma ou de outra. Como sabemos, Einstein
perfila-se na primeira linha de combate intelectual em defesa desta segunda
interpretação. Mas Sérgio, algo surpreendentemente (para mais atendendo
à sua personalidade de lutador, de intrépido pelejador e opugnador ide-
ológico), embora assumindo posição favorável ao determinismo, não se
declara partidário de nenhuma das duas interpretações. Quer estar com
418 Sérgio e Einstein: Aspectos de uma empatia intelectual

todos os grandes cientistas, fazendo passar imagem de familiaridade, de


harmonia, de convergência do seu idealismo epistemológico e crítico com
as grandes correntes do pensamento científico contemporâneo. Procura
não se distanciar de nenhuma das autoridades científicas em presença.
Pressente-se o cuidado de não se colocar em oposição frontal a persona-
lidades da ciência, evitando que alguém possa vir a terreiro evocar uma
figura maior da ciência como estando em contradição com o seu ideário.
Não deixo de ver nisto o sintoma de alguma fraqueza a que, se não me
engano, não será estranha o nacional e pitoresco ambiente de confronto
com os líteras, gente despojada de cultura científica. Uma acareação que
ao longo da vida o atormentou e muito desgastou – se bem que, diga-se em
abono da verdade, tenha acabado por desempenhar papel determinante no
original desenho do perfil interventivo do filósofo, nomeadamente no que
diz respeito à forma ensaio, ao estilo ensaístico do seu filosofar.
Seja como for, se tivesse prestado maior atenção à controvérsia (às
diferenças), ou, para sermos talvez mais justos, se tivesse podido conhecer
melhor os seus meandros – dado que muita informação não estava disponível
nos anos 1950, e antes de 1960, quando, por razões de saúde, cessa a sua vida
intelectual activa, talvez António Sérgio se tivesse apercebido de que Einstein
não estava tão concordante com o seu idealismo quanto ele próprio supôs.
Mas, como pudemos observar, uma desarmonia capital coabita com
harmonias não menos essenciais, sendo que uma destas se traduz, em meu
entender, em um muito fecundo contributo para a reflexão profunda sobre
o velho problema (ou talvez dilema) da relação entre a ciência e a religião.
Entre a Razão e a Fé.
Se trouxermos à memória a antes referida tese, sergiana e einstei-
niana, da associação da religiosidade com a ciência, isto é, de que existe,
na base de todo o afã do homem de ciência, uma convicção pertencente
à família do sentimento religioso, convicção essa traduzida pela ideia de
Uno-Unificante – na pessoal terminologia sérgica –, se recordarmos esta
tese, e se a ela adicionarmos o agnosticismo clara e inequivocamente
assumido por ambos, vemos estruturar-se um muito atraente caminho de
reflexão consequente sobre o efectivo contributo da ciência para o futuro
das religiões.
Enquanto admirador de Albert Einstein e de António Sérgio, enquanto
estudioso do pensamento de ambos, encontro riquíssimo material de
pensamento para que os seres humanos possam superar um infantilismo
intelectual de graves consequências teóricas e também práticas. O que se
traduz na vetusta crença em um Deus pessoal, omnipotente, omnisciente
João Maria de Freitas Branco 419

e interferente. A minha dupla convicção de que 1) a religião estribada na


crença em uma divindade pessoal é incompatível com a ciência – sendo o
discurso conciliador pura expressão de ignorância, de cobardia intelectual
ou, no pior dos casos, de desonestidade intelectual; e de que 2) as religiões
só terão futuro intelectualmente próspero se lograrem afastar-se da espiri-
tualidade crente, libertando-se da ideia de um ente demiúrgico, parece-me
ter saudáveis raízes no pensamento dos autores que aqui foram objecto de
estudo comparativo, se bem que nenhum deles tenha enunciado a minha
tese pessoal, nem desenvolvido até às últimas consequências algumas das
ideias que nos legaram.
Sei quanto isto horroriza muitíssimas almas (uma gorda maioria
de humanos); sei quantas angústias causa, quanta indignação semeia.
Sei também, por o sentir na pele, os custos e perigos que comporta, em
particular quando se fala dentro das fronteiras de uma Nação ajesuitada.
Mas num tempo pós-Darwin, posterior à descoberta da molécula do DNA e
depois dos mais recentes legados cognitivos no domínio das neurociências,
alargando em muito o conhecimento do cérebro, após tudo isto (e mais ainda
desse património da Razão científica que por agora prescindo de evocar),
não ter coragem de denunciar o arcaísmo da crença é, em última instância,
um decaimento mental que nos conduz directamente ao terreno da falta
de honestidade intelectual. Conclusão que é directo efeito da ciência que
hoje temos.
É mais amigo da religião quem, como eu, abertamente o declara,
do que quem persiste no enaltecimento de um pensar cadaveroso, ou de
quem se acobarda, refugiando-se no silêncio ou na sombra da ambiguidade
discursiva. Mas com isto não estou a admitir que a questão seja simples.
Muito pelo contrário. E não o é, em particular para quem, dentro das ins-
tituições religiosas, tem na mão a vara do mando. Para além de que, como
todos sabemos, nunca é simples o processo de abandono de uma crença
profunda, associada a uma longuíssima tradição de pensamento. A relação
intelectual sincera e afectuosamente profunda que mantive com um líder
jesuíta, o meu saudoso Mestre padre Manuel Antunes, está no âmago desse
ser amigo da religião, ou, como prefiro dizer, amigo da religiosidade. Estatuto
que, por estranho que soe, provém directamente da essencial condição
de amigo da Razão. Mas falando como Nietzsche, tudo isto só se tornará
absolutamente claro para o homem do futuro.
Porém, não me impede isso de afirmar que há em Einstein e António
Sérgio uma religiosidade ateísta. Com generosa inteligência, ambos souberam
compreender que a superação da crença, da fé tradicional, não pode ser
420 Sérgio e Einstein: Aspectos de uma empatia intelectual

trazida pelo pseudo-ateísmo da crença na não existência de deus ou de


deuses demiurgos. O progresso intelectual superador da crença denega, do
mesmo passo, as religiões existentes e o ateísmo sectário, porque ambos
laboram no mesmo erro. Ambos estrebucham no pântano em que o intelecto
se mantém refém da crença. Há que edificar uma religiosidade de novo tipo:
a religiosidade ateia ou agnóstica (termos para mim sinónimos). Tal como
se impõe denunciar o ateísmo sectário e dogmático, contaminado pela
crença negativa – esse que classifico de pseudo-ateísmo ainda dominante –,
construindo o ateísmo religioso. Se muito não erro, terá sido algo parecido
com este meu entendimento o que levou Einstein a afirmar:

“Science without religion is lame, religion without science is blind”103.

Frase originalmente escrita em inglês e incansavelmente citada por


crentes de forma descontextualizada, ignorando, convenientemente, os
parágrafos seguintes do texto, em que de modo inequívoco o autor declara
ser para si inaceitável a ideia de existência de um deus pessoal, à maneira
das três grandes religiões em actividade. Coisa a que não hesita chamar
infantilidade espiritual, elemento pertencente ao “período juvenil da evo-
lução espiritual da humanidade”. A associação do sentimento religioso
(da religiosidade) ao trabalho científico e até mesmo, acrescento eu, à
atitude científica em si mesma, é, na minha óptica, um dos mais fecundos
pontos de convergência entre o idealismo crítico-epistemológico sergiano
e a epistemologia realista ou tendencialmente materialista de Einstein.
Causando espanto e até incontida indignação em trincheiras suposta-
mente antípodas, Sérgio afirmou acreditar ser a atitude religiosa inconci-
liável com a dogmática, acantonando-se assim ao lado da autêntica atitude
científica – crítico-racional, denegadora, por definição, do dogmatismo.
Em esforço dilucidatório perante crentes religiosos e ateus, acrescentava,
não sem sentido de humor poético: “A atitude dogmática leva sempre ao
mal – à intolerância, à violência, à tirania, ao ódio. Por isso, na humildade
da problemática há o seu quê de divino”104.

“Mas balbucio tudo isto (como é meu costume) muitíssimo humilde


e problematicamente, com perfeita consciência da complexidade das
coisas. […] Racionalismo radical, – ou misticismo racionalista, se assim

103
EINSTEIN, Albert. Science and Religion, Address at the Conference on Science,
Philosophy, and Religion, New York, 1940. Trad. port.: EINSTEIN, Albert. Como vejo
a ciência…, p. 276.
104
SÉRGIO, António, Cartas de problemática, n.o 8, p. 8.
João Maria de Freitas Branco 421

preferirem. Em mim (pode dizer-se) há um racionalismo radical que tem


seu quê de místico, de vida unitiva, de moral fraterna”105.

Mas tudo isto é temática tão vasta quanto fascinante, merecendo por
isso ser objecto de estudo exclusivo que por enquanto se adia, mas não
sem deixar um lamento: pena que António Sérgio não nos tenha legado
ensaio inteiramente dedicado a esta problemática, e que também Albert
Einstein, embora com maior grau de generosidade, se tenha quedado pela
produção de curtos, se bem que muito relevantes e preclaros textos de
reflexão crítica sobre o tema.
Posicionando-me no terreno da irmandade de pensamento em que
eu próprio me inscrevo (por estar para lá das implicâncias filosóficas que
me apartam de Sérgio mais do que de Einstein), concluo com uma frase do
pai da Relatividade que é verbo soando como acorde perfeito final numa
partitura; forma de representação simbólica de uma convergência de
pensares, inspirada na musical harmonia amada pelo físico tangedor, pelo
filósofo melómano e pelo escriba filosófico de serviço com umbilical cordão
ligado à arte dos sons. Eis esse acorde final em que nos reconhecemos e
nos irmanamos:

O que há de mais belo na nossa vida é o sentimento do mistério106.

Idem, Ensaios, t. II, p. 262.


105

Embora, como disse, a frase seja de Einstein, propositadamente omito as aspas,


106

pois que tanto Sérgio como eu próprio dela desejaríamos ter sido autores se para tal
tivéssemos tido inspiração, engenho e arte. Será o banimento das aspas um disfarce
do puro ciúme intelectual? O sentimento do mistério, acrescentava Einstein, “é a emoção
fundamental que gera a verdadeira arte e a verdadeira ciência”. EINSTEIN, Albert.
Ideas and opinions. New York: Crown Publishers, 1954, p. 9.
422 Sérgio e Einstein: Aspectos de uma empatia intelectual

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