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Organização
Amon Pinho
António Pedro Mesquita
Romana Valente Pinho
Lisboa
Centro de Filosofia da Universidade de Lisboa
2015
Amon Pinho • Anita Vilar - António Almodovar • António Braz Teixeira • António Cândido
Organização
Amon Pinho
António Pedro Mesquita
Romana Valente Pinho
Amon Pinho
Romana Valente Pinho
FICHA TÉCNICA
Título
Proença, Cortesão, Sérgio e o Grupo Seara Nova
Organização
Amon Pinho
António Pedro Mesquita
Romana Valente Pinho
Comissão Científica
Fernando Catroga (Universidade de Coimbra)
José Esteves Pereira (Universidade Nova de Lisboa)
Leonel Ribeiro dos Santos (Universidade de Lisboa)
Norberto Cunha (Universidade do Minho)
Pedro Calafate (Universidade de Lisboa)
Pesquisa iconográfica
Amon Pinho e Romana Valente Pinho
Capa
Lou Bertoni. Pintura digital a partir da capa, de autoria de Leal da Câmara,
do primeiro número da revista Seara Nova
Ilustrações
Pinturas digitais de Lou Bertoni a partir da capa, também da autoria de
Leal da Câmara, do segundo número da revista Seara Nova e de fotografias
de Raul Proença, António Sérgio e Jaime Cortesão
Editor
Centro de Filosofia da Universidade de Lisboa (CFUL)
Colecção
ACTA 22
Apoios
Fundação para a Ciência e a Tecnologia (FCT)
Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa (FLUL)
Centro de Filosofia da Universidade de Lisboa (CFUL)
Impressão e acabamento
Clássica – Artes Gráficas
Depósito legal
388340/15
ISBN
978-989-8553-34-8
ÍNDICE
Prefácio................................................................................................................. 9
António Reis
Nota Introdutória.................................................................................................. 11
Amon Pinho
António Pedro Mesquita
Romana Valente Pinho
O civismo político nos homens da Seara Nova: o caso de Jaime Cortesão............ 509
Carlos Leone
1
Cf. LOPES, Fernando Farelo. A Revista Pela Grei (Doutrina e Prática Políticas). Análise
Social, vol. XVIII, n.os 72 a 74, 1982, pp. 759-772.
2
A afirmação foi produzida em entrevista ao Diário de Lisboa, em Dezembro de 1923, e é
desenvolvida no editorial do primeiro número da revista em MEDINA, João. O Pelicano
e a Seara, A Revista Homens Livres. Lisboa: Edições António Ramos, 1978, p. 39 e ss.
Guilherme d’Oliveira Martins 285
3
A 1 de Maio de 1947 profere a célebre Alocução aos Socialistas, na qual surge a tentativa
de criação de um pólo oposicionista demarcado da posição comunista e centrada na
influência trabalhista e social-democrata. O Directório Democrato-Social foi criado
em 1950, por António Sérgio, Jaime Cortesão, Mário de Azevedo Gomes. Acácio Gou-
veia, Armando Adão e Silva, Carlos Sá Cardoso, Raul Rego, Artur Cunha Leal, Nuno
Rodrigues dos Santos foram membros do grupo, tendo a partir de 1956 Mário Soares
feito parte do mesmo em representação da Resistência Republicana e Socialista.
4
Cf. DELGADO, Frederico. Humberto Delgado, Biografia do General Sem Medo. Lisboa:
Esfera dos Livros, 2008. O papel de António Sérgio fica bem evidenciado. Foi uma
causa em que o pensador se empenhou activamente, esperando sucesso. O desfecho
da tentativa terá contribuído para o desalento e a depressão finais do escritor.
5
Leia-se SÉRGIO, António. Explicações para os que entendem a língua que eu falo.
Vértice, n.os 36 a 39, Junho de 1946; idem, Ensaios, tomo VII. Lisboa: Editora Sá da Costa,
1974, pp. 191-194. Leia-se TEIXEIRA, António Braz. António Sérgio Filósofo. In: AA.VV.
António Sérgio – Pensamento e Acção, vol. I. Lisboa: INCM, 2004, pp. 15-30 e, do mesmo
286 ANTÓNIO SÉRGIO, A PRIMEIRA SEARA NOVA E A REPÚBLICA MODERNA
autor, Sobre a Noção de ‘uno unificante’ na filosofia de António Sérgio. In: AA.VV.
Poiética do Mundo, Homenagem a Joaquim Cerqueira Gonçalves. Lisboa: Edições Colibri,
2001, pp. 365-374. Veja-se ainda MESQUITA, António Pedro. Aspectos do ideário
sergiano em ontologia. Prefácio a SÉRGIO, António. Notas sobre Antero de Quental,
Cartas de Problemática e Outros Textos Filosóficos. Lisboa: INCM, 2001; e CARDIA, Mário
Sottomayor. O pensamento filosófico do jovem Sérgio. Cultura – História e Filosofia,
vol. I. Lisboa: INIC, 1982.
6
LEONE, Carlos. O Essencial sobre António Sérgio. Lisboa: INCM, 2008, p. 60.
Guilherme d’Oliveira Martins 287
7
Cf. PEREIRA, José Esteves. António Sérgio Político. A Ideia de Democracia. In: AA.VV.
António Sérgio – Pensamento e Acção, vol. I, p. 87 e ss. O autor salienta, neste texto
fundamental, que para Sérgio a democracia é o regime em que os governos são fisca-
lizados pela opinião pública, através dos seus representantes, visando a liberdade e a
igualdade dos cidadãos, no entanto, as instituições políticas e administrativas devem
ter um valor instrumental, daí que as reformas das instituições devam ir ao económico
e social. Daí a importância da orgânica corporatista ou do cooperativismo, em que o
pedagogo activo se empenha. Para que a opinião pública fosse actuante, haveria que
apostar na educação, a fim de formar uma elite interessada, informada, conhecedora
e empenhada na defesa da grei. Assim, democracia torna-se demopedia, isto é, no
princípio e no fim, acção, e formação para essa acção. O pedagogo activo é, assim,
fundamental, devendo tornar-se dispensável, de modo a que (na linha de Dewey)
sejam os cidadãos os verdadeiros actores da mudança, a partir do impulso educativo.
Espíritos lúcidos e organizadores, criadores pacientes e reflectidos. Relativamente
às questões económicas, leia-se ALMODOVAR, António. António Sérgio Economista?
In: AA.VV. António Sérgio – Pensamento e Acção, vol. I, p. 103 e ss.
288 ANTÓNIO SÉRGIO, A PRIMEIRA SEARA NOVA E A REPÚBLICA MODERNA
um instrumento com intuito moral. Temos de saber lidar com “as duas
políticas nacionais” e com os dois países que coexistem em Portugal – um
conservador e isolacionista e outro moderno e aberto ao exterior8. Uma
vez que estamos perante faces de uma mesma identidade, é indispensável
compreender os dois aspectos e matizá-los, pela acção pedagógica, para
que a perspectiva aberta e cosmopolita possa prevalecer de modo estável…
Como afirma Manuel Ferreira Patrício: “Ainda hoje não é possível enten-
der, compreender e discutir a questão educativa nacional sem conhecer o
pensamento pedagógico de António Sérgio”9. Assim, a persistente tentativa
de levar a República moderna a executar uma política educativa eficaz,
revendo os métodos pedagógicos, articulando ensino e vida económica,
incentivando o sentido crítico do conhecimento da história, organizando
a República escolar, integrando internacionalmente o ensino superior e a
investigação científica, conduz Sérgio numa linha de acção que coloca as
transformações educativas no cerne da reforma nacional. Daí que a leitura
do pensamento pedagógico de António Sérgio seja um exercício fundamental
para a melhor compreensão da sua obra e do seu alcance. Deste modo,
insista-se em que O Problema da Cultura e o Isolamento dos Povos Peninsulares
(1914), o já citado Educação Cívica (1915), Considerações Histórico-Pedagógicas
(1916), Cartas sobre as Educação Profissional (1916), A Função Social dos Estudantes
(1917), O Ensino como Factor de Ressurgimento Nacional (1918) e Sobre Educação
Primária e Infantil (1939) são textos de leitura obrigatória10. Afinal, temos
de voltar a ouvir António Sérgio a pôr-nos de sobreaviso nas Considerações
Histórico-Pedagógicas: “Nós mantenhamos o santo horror ao palavreado
nacional, lembrando-nos do estrangeiro que muito seriamente afirmou
que a causa da decadência dos povos peninsulares – era a retórica”…
8
SÉRGIO, António. As Duas Políticas Nacionais. In: ______. Ensaios, tomo II. 2.ª edição,
Lisboa: Publicações Europa-América, 1957, pp. 85-122.
9
PATRÍCIO, Manuel Ferreira. Prefácio a SÉRGIO, António. Ensaios sobre Educação. Lisboa:
INCM, 2008, p. 11.
10
Cf. ibidem, passim. Vd. tb. SÉRGIO, António. Autobiografia inédita de António Sérgio
[Livre D’Or do Instituto Jean-Jacques Rousseau, Genève, 1915]. Recuperado por Daniel
Hameline e António Nóvoa. Revista Crítica de Ciências Sociais, n.º 29, Fevereiro de 1990.
Guilherme d’Oliveira Martins 289
de poder, esse é o de António Sérgio de Sousa. E se digo sem uma pers-
pectiva imediata do poder, é porque quer no final da Primeira República
quer durante a oposição a Oliveira Salazar, Sérgio manteve-se fiel àquilo
que Julien Benda tratou em La Trahison des Clercs e que o ensaísta traduziu
deste modo: “Está bem, a meu ver, que os intelectuais se interessem pela
vida pública: mas devem fazê-lo todavia para tentarem submeter a acção
política a um pensamento universal e des-subjectivado, a um ideal de
racionalidade o mais pura possível – e não para formularem justificações
sofísticas das paixões de preconceitos de qualquer facção” (como afirmou
em entrevista à Vértice, em Junho de 1956)11. O fundamental estaria, pois,
na procura de um princípio universal, um ideal de racionalidade (ou não
fora ele um idealista) demarcado da lógica oportunista do imediato. Tanto
quando foi Ministro da Instrução Pública com Álvaro de Castro (1923-24),
como quando animou a candidatura do General Delgado, encontramos o
mesmo desejo – realizar um ideal de uma Democracia de cidadãos livres e
unidos por um desígnio de cooperação.
11
Vértice. Coimbra, n.º 153, Junho de 1956, p. 270.
12
Cf. Antologia dos Economistas Portugueses. Lisboa: Biblioteca Nacional, 1924, p. III.
13
Lusitânia. Revista De Estudos Portugueses. Lisboa, fasc. I, vol. II, Setembro de 1924, p.126.
290 ANTÓNIO SÉRGIO, A PRIMEIRA SEARA NOVA E A REPÚBLICA MODERNA
14
Cf. SÉRGIO, António. Ensaios, tomo VIII. Lisboa: Sá da Costa, 1960, pp. 144-145.
15
Idem. Cartas ao Terceiro Homem. In: ______. Democracia. Lisboa: Sá da Costa, 1974,
pp. 149-150.
16
CARVALHO, Joaquim Montezuma de. António Sérgio, a Obra e o Homem. Lisboa: Arcádia,
1979, p. 485. A obra é de um grande interesse, pelo percurso que faz pela produção
multifacetada de António Sérgio, constituindo um bom “vademecum”, sem pretensões
analíticas, sobre o muito que disse o ensaísta.
Guilherme d’Oliveira Martins 291
SÉRGIO, António, Democracia, p. 99. O texto aqui citado, intitulado Democracia, foi
17
publicado em opúsculo, em 1934, pela Seara Nova. Seguimos a 3.ª edição, de 1937.
292 ANTÓNIO SÉRGIO, A PRIMEIRA SEARA NOVA E A REPÚBLICA MODERNA
1
QUEIRÓS, Eça de. Positivismo e idealismo. In: ______. Notas Contemporâneas [Texto
de 1893]. Lisboa: Livros do Brasil, s.d., pp.185-196.
2
Não pretendo aqui revisitar as polémicas que manteve com outros intelectuais e
políticos portugueses – de resto já bem estudadas. Veja-se, entre outros, MACEDO,
Jorge Borges de. Significado e evolução das polémicas de António Sérgio. Revista de
História das Ideias, n.º 5, t. II, Coimbra, 1983, pp. 471-531; FERREIRA, Olga da Cunha.
António Sérgio e os Integralistas. Idem, pp. 427-469; e FRANCO, António Cândido.
António Sérgio e Teixeira de Pascoaes ou o conflito cultural português. In: AA.VV.
António Sérgio: pensamento e acção, vol. I, Lisboa: INCM, 2004, pp. 139-161.
Sérgio Campos Matos 295
apenas como ideologia que visa a autonomia e afirmação de uma nação, mas
como movimento político e social que envolve uma doutrina sobre o Estado e
até uma antropologia (E.Kedourie, K.Minogue, A.Smith)3. Creio ser vantajoso
estabelecer a distinção teórica entre nacionalismo e patriotismo, entendido
este último como amor à pátria, lealdade em relação às suas instituições,
empenho na sua defesa (E.Kedourie). Seguindo estes conceitos, estamos a
falar de tendências modernas, que se afirmam com as revoluções liberais,
embora com raízes muito anteriores. Ficamos assim mais habilitados a
compreender as posições de António Sérgio e dos seareiros a este respeito.
3
KEDOURIE, Elie. Nacionalismo. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 1988;
MINOGUE, Kenneth R. Nationalism. Londres: B.T.Batsford, 1967 e SMITH, Anthony
D. Theories of nationalism. 2.ª ed., Londres: Duckworth, 1983.
4
PROENÇA, Raul. Apresentação da Seara Nova (n.º 1, 15-10-1921). In: ______. Páginas
de Política, vol. II. Lisboa: Seara Nova, 1972, p. 77.
5
CORTESÃO, Jaime. Memórias da Grande Guerra. Lisboa: Livros Horizonte, s.d.
6
REIS, António. Raul Proença, António Sérgio e a Seara Nova. In: AA.VV. Seara Nova.
Razão, Democracia, Europa. Porto: Campo das Letras, 2001, p. 236. Sobre o universalismo
e o nacionalismo no pensamento dos seareiros, veja-se também AMARO, António
296 António Sérgio e os nacionalismos
Rafael. A Seara Nova nos anos vinte e trinta. Viseu: Universidade Católica Portuguesa/
Instituto Universitário de Desenvolvimento e Promoção Social, 1995, pp. 70-82.
7
PROENÇA, Raul. Seara Nova. Seara Nova, n.º 22, Abril de 1923, também reproduzido
em PROENÇA, Raul. Páginas de Política, vol. II. Lisboa: Seara Nova, 1939, pp. 255-260.
8
Vd. Fernando Catroga. Ensaio respublicano. Lisboa: Fundação Francisco M. dos Santos,
2011, pp. 9-35 e A geografia dos afectos pátrios. As reformas político-administrativas (sécs.
XIX-XX). Coimbra: Almedina, 2013 (especialmente a parte IV), e os meus estudos
“Nación”. In: Diccionario político y social del mundo iberoamericano (dir. de Javier Fernán-
dez Sebastián). Madrid: Fundación Carolina-Sociedade Estatal de Commemoraciones
Culturales e Centro de Estudios Políticos y Constitucionales, 2009, pp. 953-966, e “A
linguagem do patriotismo em Portugal: unidade e conflito, da crise do Antigo Regime
à I República”. In: Linguagens e fronteiras do poder (José Murilo de Carvalho et al. ed.).
Rio de Janeiro: FGV Editora, 2011, pp. 36-54.
Sérgio Campos Matos 297
9
Vd. CATROGA, Fernando. As vanguardas culturais, da Geração de 70 à Seara Nova.
In: AA.VV. Seara Nova. Razão, Democracia…, pp. 41-60.
10
A este respeito, o meu estudo A Renascença Portuguesa – consciência histórica e
intervenção cívica (1911-1914), comunicação apresentada no Congresso Pensamento,
Memória e Criação no I Centenário da Renascença Portuguesa (no prelo).
11
SÉRGIO, António. Golpes de malho em ferro frio. A Vida Portuguesa, n.º 16, 2-08-1913,
p. 124. Note-se contudo que o conceito de nacionalização de Cortesão não excluia uma
expressão cosmopolita e ecuménica.
298 António Sérgio e os nacionalismos
E mais adiante:
“Como o moderno, pelejava o patriota da Antiguidade por certos inte-
resses fundamentais: dominava-o, porém, um patriotismo nacionalista,
passional e instintivo, o deus da grei, a voz da ‘raça’; para o cidadão
12
SÉRGIO, António. Educação cívica. Pref. de Vitorino Magalhães Godinho. 3.ª ed., Lisboa:
Ministério da Educação, 1984.
13
SÉRGIO, António. Educação e filosofia. Ensaios, t. I. 3.ª ed., Lisboa: Livraria Sá da
Costa, 1980, p. 160. Sublinhado meu.
Sérgio Campos Matos 299
O legítimo nacionalismo
Durante a I República, o ensaísta situava-se assim numa posição
crítica intermédia entre republicanismo e tradicionalismo (monárquico ou
republicano). Significa isto que rejeitasse todo e qualquer nacionalismo? De
modo algum. No seu entender tinha todo o cabimento o que qualificava de
“legítimo nacionalismo”, que identificava com uma atitude universalista
e cosmopolita:
15
Idem. Prefácio. In: ______. Ensaios, t. I, p. 60.
16
Ibidem, pp. 60-61.
17
Ibidem, p. 64.
Sérgio Campos Matos 301
18
PROENÇA, Raul. Ao povo “A Renascença Portuguesa”. A Vida Portuguesa, n.º 22,
10-2-1914, pp. 11-12 [o texto é de 1911].
19
SÉRGIO, António, Ensaios, t. I, p. 224.
20
SERRÃO, Joel. O lugar da história no pensamento de António Sérgio. Homenagem a
António Sérgio. Lisboa: Academia das Ciências, 1975, p. 47.
21
CUNHA, Norberto Ferreira da. História e método em António Sérgio. In: AA.VV.
António Sérgio: pensamento e acção, vol. I, Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda,
2004, p. 61.
22
SÉRGIO, António. Espectros. In: ______, Ensaios, t. I, p. 184.
302 António Sérgio e os nacionalismos
23
Cit. por SERRÃO, Joel, O lugar da história no pensamento de António Sérgio, pp. 47-48. Cf.
também, a este respeito, de António Sérgio, as relevantes Divagações proemiais ao
jovem leitor sobre a atitude mental que presidirá a este ensaio. In: SÉRGIO, António.
Introdução geográfico-sociológica à História de Portugal. Lisboa: Sá da Costa, 1973 (1941),
p. 13.
24
Vd. o meu estudo “António Sérgio europeísta?” In: MATOS, Sérgio Campos (coord.).
A Construção da Europa, problemas e perspectivas. Lisboa: Colibri, 1996, pp. 143-162.
25
MACEDO, Jorge Borges de. Estrangeirados, um conceito a rever. Sep. de Bracara Augusta,
Braga, 1973.
26
SÉRGIO, António. Para a definição da aspiração comum dos povos luso-descendentes.
In: ______. Ensaios, t. VI. Lisboa: Livraria Sá da Costa, 1980 (1.ª ed., 1946), pp. 172-173.
27
Idem. Breve interpretação da História de Portugal. Lisboa: Sá da Costa, 1974 (1.ª ed.,
1928), p. 146.
Sérgio Campos Matos 303
28
António Sérgio responde ao nosso inquérito. Vértice, vol. II, fasc. VII, Maio de 1946,
p. 161.
29
SÉRGIO, António. O Reino Cadaveroso ou o problema da cultura em Portugal. In:
______. Ensaios, t. II. 2.ª ed. Lisboa: Livraria Sá da Costa, 1977 (1926), em que
retomava, corrigindo-a, a sua crítica ao isolamento histórico e “purificação”, que se
teriam seguido aos descobrimentos e conquistas ultramarinas.
30
Idem. Sobre cultura portuguesa. In: ______. Ensaios, t. VII. Lisboa: Livraria Sá da
Costa, 1974 (1.ª ed., 1954), p. 112.
304 António Sérgio e os nacionalismos
31
BAPTISTA, Jacinto. António Sérgio enciclopedista. Lisboa: Colibri, 1997.
32
[SÉRGIO, António]. Nacionalismo. Grande Enciclopédia Portuguesa e Brasileira, vol.
XVIII, Lisboa/Rio de Janeiro: Ed. Enciclopédia, s.d., pp. 336-337.
Sérgio Campos Matos 305
Um patriotismo prospectivo
Voltamos, pois, ao ponto de partida. Para António Sérgio, nacionalismo
e patriotismo só seriam “legítimos” ou “genuínos” – e estes atributos são
33
Na bibliografia, constam os Ensaios VI do autor, cuja 1.ª edição surgiu em 1946.
34
[SÉRGIO, António]. Patriotismo. Grande Enciclopédia Portuguesa e Brasileira, vol. XX,
p. 634.
306 António Sérgio e os nacionalismos
35
PEREIRA, Miguel Baptista. O neo-iluminismo filosófico de António Sérgio. Revista de
História das Ideias, Coimbra, vol. 5, t. I, 1983, p. 65.
36
Cit. por AMARO, António Rafael, A Seara Nova nos anos vinte e trinta, p. 80.
37
Na sua crítica frontal ao comemorativismo nacionalista dominante, muito próxima
aliás da que Oliveira Martins tecera em 1880 ao centenário de Camões e à Comissão
1.º de Dezembro, Proença chega ao ponto de considerar que Portugal não precisava
de mais comemorações. Cf. PROENÇA, Raul. A semana portuguesa e o nacionalismo
Sérgio Campos Matos 307
antipatriótico. In: ______. Páginas de Política, vol. 2. Lisboa: Seara Nova, 1972 (texto
publicado originalmente na Seara Nova, n.º 1, 15-10-1921). Cf. também a sua crítica à
Cruzada Nun’Álvares, em O manifesto da Cruzada Nun’Álvares. In: PROENÇA, Raul,
Páginas de Política, vol. 2, p. 139 (texto de Dezembro de 1921).
308 António Sérgio e os nacionalismos
A doutrinação económica em António
Sérgio − algumas notas de leitura
ANTÓNIO ALMODOVAR
Universidade do Porto
Introdução
Um dos grandes temas em debate no período em que António Sérgio
se iniciou na doutrinação económica dizia respeito à evolução do capi-
talismo. Esta discussão deu origem a diversas orientações, indo desde
aquelas que defendiam de forma mais ou menos intransigente senão
as virtudes pelo menos o carácter “natural” e inevitável desse sistema,
até às propostas para a sua eventual substituição por um outro modelo
de organização económica e social, passando por diversas tentativas de
delinear reformas pontuais de alguns aspectos vistos como indesejáveis.
De acordo com as designações convencionais, esse debate travava-se
basicamente entre liberais e socialistas, sendo que cada um destes
grandes grupos albergava vários tipos de sensibilidades − e de propostas
concretas − no seu interior.
Ora, é importante não o esquecer, os grandes protagonistas deste
debate, quer do lado liberal quer do socialista, foram por via de regra
oriundos dos países mais desenvolvidos à época. A sua atenção estava
por isso mesmo fundamentalmente centrada na evolução da realidade
económica e social dos seus próprios países e na análise dos fenómenos
decorrentes do desenvolvimento e da modernidade. Quer os sucessos,
quer os insucessos do capitalismo, eram identificados em países como
a Inglaterra ou a França, e não através de exemplos retirados de países
digamos que menos representativos. Podemos por isso dizer que a reflexão
económica e o debate doutrinal se desenvolviam em dois planos que, apesar
de interligados, eram ainda assim bastante diferentes. Num primeiro
plano, tínhamos as análises construídas sobre a evidência fornecida pelos
países mais desenvolvidos. Noutro, tínhamos as análises elaboradas pelos
pensadores dos países menos desenvolvidos, a quem coube a difícil tarefa
de procurar acompanhar a evolução do primeiro debate, e de fazer um
esforço adicional no sentido de dele ir retirando as ilações mais apropriadas
para as suas próprias realidades nacionais − realidades essas que eram
310 A doutrinação económica em António Sérgio − algumas notas de leitura
1
Veja-se COSTA, Fernando Ferreira da. Doutrinadores cooperativistas portugueses. Lisboa:
Horizonte Universitário, 1978.
2
SÉRGIO, António. Ensaios, t. VIII. Lisboa: Guimarães Editores, 1958, p. 191 (itálico no
original).
3
Ibidem, pp. 192 e 194.
António Almodovar 313
“Sem dúvida, o mais eficaz acicate dessa evolução do regime não é pro-
priamente o que possui capitais, o detentor do dinheiro, o que dá o nome
ao sistema, senão que sim a personagem do inovador crematístico; não
Ibidem, p. 198.
4
314 A doutrinação económica em António Sérgio − algumas notas de leitura
5
Ibidem, p. 199.
6
Ibidem, pp. 202-203, itálico no original.
7
Ibidem, p. 238.
António Almodovar 315
Ibidem, p. 256.
9
316 A doutrinação económica em António Sérgio − algumas notas de leitura
Essa ausência, que como se pode ver é explicada pela longa prevalência
de um ambiente mental malsão e muito difícil de erradicar, coloca obvia-
mente problemas de difícil resolução11. Como proceder a uma mudança de
10
Ibidem, p. 229.
11
Recorde-se que António Sérgio já havia referido detalhadamente os esforços análogos −
e igualmente frustrados − desenvolvidos por um conjunto de economistas portugueses
do Setecentos. Ver SÉRGIO, António. Antologia dos economistas portugueses. Século XVII.
António Almodovar 317
“De que maneira prática (através de que gentes) reagir contra o capitalismo
no Portugal do tempo? Antero de Quental esperou sempre a reforma da
acção moral da classe operária: mas quando existiria nesta nossa terra uma
classe operária preparada para ela? Parece que o corolário que tal situação
implicava era pois o de limitar a aspiração socialista a uma tarefa de edu-
cação da nossa gente obreira, desistindo ele de assistir (o Martins, digo
eu) ao espectáculo da realização da sua própria ideia. «Mal dos políticos
ao mesmo tempo apóstolos!», como pronunciou noutro livro (História
de Portugal, I, 2, 1); «mal dos apóstolos ao mesmo tempo políticos!»,
poderia também ter pensado”12.
14
Ainda assim, António Sérgio foi dando um apoio − pontual e selectivo − a algumas
propostas contemporâneas de índole reformista. Veja-se, por exemplo, as referên-
cias ao pensamento económico de Ezequiel de Campos e de Basílio Teles em Sérgio
(SÉRGIO, António. Ensaios, t. II, pp. 116-121). Veja-se igualmente a recensão do livro
Para a Ressurreição de Lázaro, de Ezequiel de Campos, incluída em Idem. Ensaios, t. III.
3.ª edição. Lisboa: Livraria Sá da Costa Editora, pp. 203-214.
15
Sobre as várias modalidades de cooperativismo e respectiva hierarquia no pensamento
deste autor, veja-se SÉRGIO, António (org.). O cooperativismo. Objectivos e modalidades.
Lisboa: Edição do Autor, s.d., pp. VII-XLI.
16
Idem, Ensaios, t. VIII, pp. 255-256.
António Almodovar 319
Notas finais
Para podermos dar por concluída a análise a que nos propusemos neste
ensaio, falta-nos apenas responder à questão que colocámos no início:
tendo presentes as grandes linhas da doutrinação económica prosseguida
por António Sérgio, e tendo igualmente presente a forma como este autor
actuou enquanto intermediário entre o pensamento económico estrangeiro e
a realidade portuguesa, há ou não lugar a que se possa falar de originalidade?
A resposta − que desde já se adianta que é pela afirmativa − merece
ser justificada.
O que pretendemos determinar não é a originalidade deste autor no
plano internacional, mas sim e tão-somente no plano que lhe atribuímos,
de intermediário doutrinal. Se olharmos para as duas grandes teses que
estruturaram essa doutrinação, devemos ter presente que a primeira
delas – as duas políticas económicas – corresponde, no fundo, a uma
glosa da ideia de que o desenvolvimento requer que se invista (capitais,
trabalho) em actividades que permitam um aumento regular do produto
320 A doutrinação económica em António Sérgio − algumas notas de leitura
anual. O capitalismo bem sucedido é isso que faz, sendo esse processo de
investimento regular (e rotineiro) particularmente bem sucedido quando
estimulado pelo surgimento de inovações. Estas ideias estão presentes
nos fisiocratas e nos economistas clássicos, tendo Jean-Baptiste Say sido
um dos autores que se destacaram no elogio do papel desempenhado pelos
empresários inovadores. Ora, o facto é que qualquer destas ideias já tinha
sido previamente difundida entre nós. E outro tanto se pode dizer quanto à
tese relativa ao cooperativismo, cujos doutrinários portugueses anteriores
a António Sérgio são fáceis de identificar.
O que de facto é original, peculiar, na sua obra de doutrinação econó-
mica é a forma como retoma esses temas. Refiro-me concretamente não
a uma questão de estilo pessoal, mas sim à atenção e ao rigor que António
Sérgio procura dar à fundamentação filosófica das doutrinas económicas
que difunde. Essa preocupação é claramente visível nas críticas que dirige
a Oliveira Martins (e aos autores em que este se inspirou) ao longo do texto
que tivemos ocasião de utilizar. Mas essa preocupação também é facilmente
identificável se atentarmos na aparente facilidade com que António Sérgio
conseguiu articular de forma coerente a sua mensagem doutrinal ao longo
de uma extensa obra: a forma como as virtudes e os males do capitalismo
são identificados é coerente com os remédios socialistas que são propostos;
a preocupação pedagógica, a importância da difusão de ideias é coerente
com a importância atribuída às mentalidades e à consequente aposta na
educação das gerações vindouras; a liberdade e o auto-governo são com-
patíveis com a criatividade e a mudança.
A originalidade de António Sérgio reside pois no filtro filosófico que
utilizou para seleccionar as ideias económicas, escolhendo aquelas que
eram susceptíveis de se ajustar e de servir a uma matriz filosófica de base.
Foi esse o seu critério de leitura, e foi assim que entreteceu e transmitiu,
entre nós, um conjunto de ideias retiradas dos economistas clássicos e
socialistas, cuidando de lhes criticar os “desvios naturalistas”. Foi esse
também o critério com que retomou os ideais cooperativistas, cuidando de
lhes especificar um sentido revolucionário preciso através da atribuição de
uma dimensão inequivocamente idealista – voluntária, criativa, pacífica,
e democrática − de ultrapassagem da ordem económica capitalista.
O idealismo de António
Sérgio: Sobre algumas considerações
cartesiano-espinosistas
ROMANA VALENTE PINHO
Universidade Federal de Uberlândia
Centro de Filosofia da Universidade de Lisboa
É a dúvida metódica, camaradas e amigos, a primeira das lições a tomar do Descartes. Ora,
o propagandista, por definição do género, tende a não duvidar de coisa alguma. Não vos
esqueçais de que o labor filosófico, antes de constar de uma discussão de teses; antes de nos
dar uma investigação de problemas, antes de consistir numa apresentação de doutrinas –, é
uma atitude e uma disciplina do espírito. E qual disciplina? – A disciplina crítica. A filosofia é
uma ascese; e não fará obra de divulgação filosófica – mas sim de divulgação antifilosófica –
quem não se empenhe em responder à dúvida por meio de uma exposição explicativa e crítica.
Propaganda é uma coisa; filosofia é outra.
António Sérgio, Cartesianismo Ideal e Cartesianismo Real.
“enxergou a pleno (se não digo asneira) certas ideias que se concluíam das
características fundamentais da sua obra; mas… Mas não lhe convinha,
evidentemente, revelar que as via; e o que nos deu, segundo imagino, foi
uma mistura do cartesianismo ideal com umas tantas crenças tradicionais
e rígidas que se achavam nas bases da teologia católica”2.
1
Cf. SÉRGIO, António. Cartesianismo Ideal e Cartesianismo Real. In: ______. Notas
sobre Antero, Cartas de Problemática e outros textos filosóficos. Lisboa: Imprensa Nacional-
Casa da Moeda, 2001, p. 188.
2
Ibidem, pp. 188-189.
Romana Valente Pinho 323
3
Idem. Notas sobre os Sonetos e as Tendências Gerais da Filosofia, de Antero de Quental.
In: ______. Notas sobre Antero, Cartas de Problemática e outros textos filosóficos, p. 142.
4
Idem. Educação e Filosofia (Princípios de uma Pedagogia Qualitativa de Acção Social
e Racional). In: ______. Ensaios, t. I. 3.ª ed. Edição crítica de Castelo Branco Chaves,
Vitorino Magalhães Godinho, Rui Grácio e Joel Serrão; org. Idalina Sá da Costa e
Augusto Abelaira. Lisboa: Livraria Sá da Costa, 1980, p. 140.
Romana Valente Pinho 325
5
António Sérgio escreve até, possivelmente identificando-se com a figura de Descartes
em alguns aspectos, que “se sou revolucionário, é por ser idealista”. Idem. Prefácio
da Segunda Edição. In: ______, Ensaios, t. I, p. 44).
6
Cf. idem, Notas sobre os Sonetos e As Tendências Gerais da Filosofia, de Antero de Quental,
p. 123.
326 O idealismo de António Sérgio
7
Idem. Autobiografia inédita de António Sérgio [Livre D’Or do Instituto Jean-Jacques
Rousseau, Genève, 1915]. Recuperado por Daniel Hameline e António Nóvoa. Revista
Crítica de Ciências Sociais, n.º 20, Fevereiro de 1990, p. 15: “Je lis alors (19-26 ans) sans
méthode Descartes, Pascal, Leibniz, Berkeley, Kant, Schopenhauer, Comte, Taine,
Stuart Mill, Spencer, Guyau, Fouillée”.
8
Idem. Considerações Sobre o Problema de Cultura. In: ______. Ensaios, t. III. 2.ª ed.
Edição crítica de Castelo Branco Chaves, Vitorino Magalhães Godinho, Rui Grácio e
Joel Serrão; org. Idalina Sá da Costa e Augusto Abelaira, Lisboa: Livraria Sá da Costa,
1980, p. 50.
9
ESPINOSA, Baruch de. Éthique, vol. I, I, def. III, trad. Charles Appuhn, Paris: Éditions
Garnier Frères, s.d, p. 19 (ESPINOSA, Bento de. Ética. Trad. Joaquim de Carvalho,
Romana Valente Pinho 327
Lisboa: Relógio D’Água Editores, 1992, p. 100: “Por substância entendo o que existe
em si e por si mesmo é concebido, isto é, aquilo cujo conceito não carece do conceito
de outra coisa do qual deva ser formado”).
10
Ibidem, I, prop. VIII, p. 27 (trad. portuguesa, p. 111: “Toda a substância é necessaria-
mente infinita”); Ibidem, I, prop. XIII, p. 43 (trad. portuguesa, p. 120: “A substância
absolutamente infinita é indivisível”).
11
Ibidem, I, apêndice, pp. 103, 105 (trad. portuguesa, p. 169: “…pelas demonstrações
em que fiz ver que tudo o que existe provém de certa necessidade eterna e da suma
perfeição da Natureza”); Ibidem, I, prop. XXIX, escólio, p. 81 (trad. portuguesa, p. 151:
“…deve entender-se por Natureza naturante o que existe em si e é concebido por si,
ou por outras palavras, aqueles atributos da substância que exprimem uma essência
eterna e infinita, isto é, Deus, enquanto é considerado como causa livre”).
12
Ibidem, II, prop. I, demonstração, p. 119 (trad. portuguesa, p. 199: “É por isso que o
Pensamento é um dos atributos infinitos de Deus, o qual exprime a essência eterna
e infinita de Deus, isto é, Deus é uma coisa pensante”).
13
Ibidem, II, prop. II, p. 121 (trad. portuguesa, p. 199).
14
SÉRGIO, António, Notas sobre os Sonetos e As Tendências Gerais da Filosofia, de Antero de
Quental, pp. 124-125.
15
Cf. ibidem, p. 125.
328 O idealismo de António Sérgio
como estes, aliás, que permitem a António Sérgio afirmar que, na filosofia
espinosista, “a alma humana é em Deus eternamente”16, ou, em outras
palavras, que o pensamento dos homens é coincidente com o Pensamento
universal e eterno; que toda a realidade, no fim de contas, se encontra
“não fora ou acima do intelecto, mas no mais profundo e no mais íntimo
do nosso acto de intelecção”17.
Se seguirmos uma interpretação que minimiza os argumentos parado-
xais de Espinosa, tal como propõe o autor dos Ensaios, podemos enveredar
por uma linha de pensamento que sustenta que a prática da Razão não
só concede conhecimento e sabedoria, como também salva. Até porque,
partindo dos pressupostos do próprio filósofo holandês, ao pensar-se
inteligentemente, poder-se-á chegar a Deus18. No fundo, o que as teorias
de Espinosa parecem evidenciar é que, além de todas as outras dimensões
que caracterizam a actividade racional, há uma outra que pode igualmente
ser apontada: a dimensão salvífica. Se os homens conseguirem realizar,
por meio do seu pensamento, o Pensamento divino em si mesmo, não
só conhecerão (a) Deus instantaneamente (acederão à plenitude do Ser),
como serão, de igual modo, salvos de um pensamento inferior e de uma
realidade equivocada. Para a visão de Sérgio, esta argumentação configura-se
fundamental na medida em que um dos seus principais objectivos consiste
em formar uma sociedade mais racional, mais consciente e mais livre.
16
Ibidem, p. 125.
17
Ibidem, p. 125.
18
ESPINOSA, Baruch de. Éthique, vol. II, IV, apêndice, cap. IV, trad. Charles Appuhn, Paris:
Éditions Garnier Frères, s.d, p. 147 (trad. portuguesa, p. 431: “É que a beatitude não é
outra coisa que o contentamento do espírito que provém do conhecimento intuitivo
de Deus. Ora, aperfeiçoar a inteligência também não é outra coisa que conhecer a
Deus”).
A percepção em António Sérgio:
do sensível ao inteligível
LUÍS LÓIA
Universidade Católica Portuguesa
SÉRGIO, António. Cartas de Problemática. Lisboa: Ed. Inquérito, 1952-1955, Carta 2, p. 4.
1
SÉRGIO, António. Migalhas de Filosofia. In: ______. Ensaios, t. VII, 1.ª ed., Lisboa: Sá
2
3
Cf. ibidem, p. 187.
4
Ibidem, pp. 209-210: “Um objecto, ao que tenho suposto, é sempre um objecto do
pensamento, criado no pensar e pelo pensar, com o conhecimento e pelo conhecimento;
quando digo ‘objecto’, por conseguinte, não digo uma coisa inteiramente dada, fora e
independente do nosso pensar. Todo o objecto, seja ele qual for, ‘está no pensamento
como ideia’ (…). Repito: um objecto é sempre do pensamento; é sempre, afinal,
um tecido de ideias; é, por isso mesmo, a ‘parcial representação’ de qualquer outro
objecto – de qualquer outro objecto do pensamento. (…) a verdade, portanto, não é o
332 A percepção em António Sérgio: do sensível ao inteligível
acordo da ideia com a coisa (porque não há o absoluto da dita ‘coisa’), é uma harmonia
progressiva de ideias”.
5
SÉRGIO, António. Educação e Filosofia. In: ______. Ensaios, t. I. 1.ª ed. Lisboa: Sá da
Costa, 1971, p. 152.
6
Idem, Migalhas de Filosofia, p. 207. “Para mim, porém, o essencial do conceito não
é imagem: é a relação; o conceito, segundo creio, não precede o acto do juízo, mas
resulta, pelo contrário, da actividade judicatória do nosso espírito; e é esta actividade
judicatória da mente (e não a imagem ou a representação) o que está no ponto de
partida e arranque do operar efectivo do saber científico”.
7
Idem, Cartas de Problemática, Carta 3, p. 3.
Luís Lóia 333
8
Idem, ibidem, p. 6.
9
Cf. idem, Educação e Filosofia, pp. 136-138.
10
Idem, Migalhas de Filosofia, p. 206: “O facto sensível, desde o princípio, é uma espécie
de entroncamento de relações actuantes, que o pensar determina cada vez mais, ligando
ao conjunto cada vez mais ideias. Não é o abstracto, mas sim o concreto, que a mente fabrica
por operações sucessivas” [itálicos do autor].
334 A percepção em António Sérgio: do sensível ao inteligível
12
HUME, David. Tratado da Natureza Humana. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian,
2001, pp. 34-35: “E agora pergunto se será possível essa pessoa, usando a sua ima-
ginação, suprir esta deficiência para alcançar a ideia dessa cambiante que os seus
sentidos jamais lhe transmitiram? Julgo que poucas pessoas serão de opinião que não
é possível, e isto pode servir de prova de que as ideias simples nem sempre derivam
das impressões correspondentes: contudo o caso é tão particular e tão singular que
quase não vale a pena notá-lo e não merece que, só por causa dele, modifiquemos a
nossa máxima geral. Mas, além desta excepção, talvez não seja descabido notar aqui
que o princípio da prioridade das impressões sobre as ideias deve entender-se com
outra limitação, a saber: que assim como as nossas ideias são as imagens das nossas
impressões, assim também podemos formar ideias secundárias que são imagens das
ideias primárias…”.
13
Cf. SÉRGIO, António, Migalhas de Filosofia, pp. 191-192.
14
Cf. ibidem, p. 196.
336 A percepção em António Sérgio: do sensível ao inteligível
Idem, Migalhas de Filosofia, p. 203: “Se procuro entender as coisas, é porque parto
16
1
Nas palavras de Vasco de Magalhães-Vilhena, a crítica sergiana ao anti-intelectualismo
bergsoniano constitui a mais vigorosa e lúcida de quantas existem em qualquer língua.
MAGALHÃES-VILHENA, Vasco. António Sérgio: o idealismo crítico e a crise da ideologia
burguesa. Lisboa: Edições Cosmos, 1975, p. 35.
2
SÉRGIO, António. Em torno da «ilusão revolucionária» de Antero. In: ______.
Ensaios, t. V. Lisboa: Livraria Sá da Costa, 1981, p. 156.
3
Ibidem, p. 145.
4
Ibidem, p. 144.
5
Idem. Cartas despretenciosas a um anti-intelectualista bergsoniano. Carta sexta.
Seara Nova, Revista de Doutrina e Crítica, Lisboa, n.o 381, 22 de Março de 1934, p. 328.
338 “Uma filosofia para as Alforrecas”: Sérgio crítico de Bergson
6
Idem. Cartas despretenciosas a um anti-intelectualista bergsoniano. Carta segunda.
Seara Nova, Revista de Doutrina e Crítica, Lisboa, n.º 381, 15 de Fevereiro de 1934, p. 243.
7
Idem, Em torno da «ilusão revolucionária» de Antero, p. 168.
Magda Costa Carvalho 339
8
O estudo de Sant’Anna Rodrigues representa um importante cruzamento entre deter-
minadas teses da filosofia bergsoniana e estudos provenientes de ciências da vida
como a psicologia. Esta inter-relação era, aliás, um dos principais objectivos que
animou a obra de Bergson, tendo o filósofo investido largamente no estudo positivo
dos fenómenos vitais. Contudo, os principais leitores e comentadores de Bergson em
língua portuguesa deixaram por explorar esta via, centrando-se essencialmente na
dimensão gnoseológica e metafísica do seu pensamento. É ainda curioso ressalvar que
Sant’Anna Rodrigues enviou um exemplar de A Dinâmica do Pensamento a Bergson, que
consta ainda hoje no espólio do filósofo depositado na Bibliothèque Littéraire Jacques
Doucet, em Paris. Bergson respondeu ao autor português numa pequena carta onde
agradece o gesto, cf. BERGSON, Henri. Correspondances. Paris: Presses Universitaires
de France, 2002, p. 892.
9
Veja-se a este propósito o nosso estudo “Delfim Santos e Henri Bergson: proximidade
e divergências”. Philosophica. Revista do Departamento de Filosofia da Faculdade de
Letras da Universidade de Lisboa, Lisboa, n.o 30 (2007), pp. 245-275.
340 “Uma filosofia para as Alforrecas”: Sérgio crítico de Bergson
10
SÉRGIO, António. Prefácio da segunda edição. Ensaios, t. V. Lisboa: Livraria Sá da
Costa, 1981, p. 5.
11
Idem. Em torno da teoria bergsoniana sobre o instinto e sobre as suas relações com
a inteligência. Seara Nova, Lisboa, n.º 434, 11 de Abril de 1935, p. 19.
342 “Uma filosofia para as Alforrecas”: Sérgio crítico de Bergson
13
BERGSON, Henri. Introduction à la métaphysique. In: ______. La pensée et le mouvant.
Paris: Presses Universitaires de France, 2009, p. 213. Sublinhados do autor.
14
Ibidem, p. 212.
344 “Uma filosofia para as Alforrecas”: Sérgio crítico de Bergson
15
Idem. L’évolution créatrice. Édition critique sous la direction de Frédéric Worms, dossier
critique par Arnaud François. Paris: Presses Universitaires de France, 2007, p. 612.
16
António Sérgio tece igualmente uma série de considerações acerca do modo como
Bergson articula uma noção estática de inteligência com uma leitura parca e insufi-
ciente dos procedimentos científicos no que respeita à compreensão da essência da
realidade. Porém, dado o âmbito desta reflexão, não nos deteremos na sua análise.
17
SÉRGIO, António. Cartas despretenciosas a um anti-intelectualista bergsoniano.
Carta Quinta. Seara Nova, Lisboa, n.º 380, 15 de Março de 1934, p. 311.
18
Idem. Cartas despretenciosas a um anti-intelectualista bergsoniano. Carta Terceira.
Seara Nova, Lisboa, n.º 377, 22 de Fevereiro de 1934, p. 261.
19
Idem. Cartas despretenciosas a um anti-intelectualista bergsoniano. Carta Sexta.
Seara Nova, Lisboa, n.º 381, 22 de Março de 1934, p. 332.
Magda Costa Carvalho 345
20
Idem, Em torno da «ilusão revolucionária» de Antero, p. 141.
21
Idem. Em torno da teoria bergsoniana sobre o instinto e sobre as suas relações com
a inteligência. Continuação do n.º 434 da Seara Nova. Seara Nova, Lisboa, n.º 437, 30
de Maio de 1935, p. 74.
22
António Sérgio afirma que é possível inteligir cientificamente o movimento, uma
vez que uma lei ou uma equação são relações entre variáveis e não entre sólidos. Cf.
Em torno da «ilusão revolucionária» de Antero, p. 138.
346 “Uma filosofia para as Alforrecas”: Sérgio crítico de Bergson
23
Idem. Em torno da teoria bergsoniana sobre o instinto e sobre as suas relações com
a inteligência. Seara Nova, Lisboa, n.º 434, 11 de Abril de 1935, p. 24.
24
Idem. Em torno da teoria bergsoniana sobre o instinto e sobre as suas relações com
a inteligência. Continuação do n.º 434, Seara Nova, n.º 437, p. 70.
25
Ibidem, p. 74.
26
BERGSON, Henri. Introduction à la métaphysique. In: ______. La pensée et le mouvant,
p. 213. A intuição é uma forma de conhecimento imediato, sensível e temporalmente
Magda Costa Carvalho 347
situado, é uma visão directa das realidades singulares pela consciência individual.
Para Bergson, o conhecimento intuitivo é um esforço, correspondendo ao instinto
tornado desinteressado, consciente, capaz de reflectir sobre o seu objecto e de o ampliar
indefinidamente. Cf. L’Évolution créatrice, p. 178.
27
Não se pode negligenciar o facto de que a expressão superior da vida psicológica é,
para Bergson, a intuição, que não é imediatez nem espontaneidade, antes fruto de
um trabalho interior árduo e contínuo.
28
Um dos aspectos que não teremos ocasião de desenvolver em termos de proximidade
entre os dois autores prende-se com uma não consideração estática das faculdades
mentais: Sérgio encontrava-se mais perto de Bergson do que explicitamente aceitava
ao apresentar o Espírito enquanto actividade (e não “coisa”), no seio do qual não faria
sentido falar de “inteligência” ou de “instinto”, mas de “actividade intelectual” e de
“movimentos instintivos” (SÉRGIO, António. Em torno da teoria bergsoniana sobre
o instinto e sobre as suas relações com a inteligência. Continuação do n.º 434 da
Seara Nova, Seara Nova, n.º 437, p. 74). Ora, conforme tão bem desenvolveu Leonardo
Coimbra, o cerne da filosofia bergsoniana consiste precisamente numa consideração
“anti-cousista” da realidade mental.
29
António Sérgio segue não apenas o modelo cartesiano, mas, de um modo geral, o
pendor especulativo do racionalismo moderno, referenciando autores como Male-
branche, Espinosa e Leibniz.
30
BERGSON, Henri. Mélanges. Paris: Presses Universitaires de France, 1972, pp. 463-464,
652. A fusão que esta expressão convoca entre as dimensões positiva e espiritual da
348 “Uma filosofia para as Alforrecas”: Sérgio crítico de Bergson
33
Idem, Correspondances, p. 1470.
34
É Delfim Santos que, numa das páginas do seu Diário Íntimo, inédito – que tivemos o
privilégio de conhecer pela amabilidade dos seus herdeiros, Prof. Filipe Delfim Santos
e Dr.ª Manuela Pinto dos Santos –, afirma que Bergson teria evitado muitos inimigos
se tivesse feito a distinção entre a “inteligência espiritual” e a “inteligência material”.
35
Sobre as alterações na recepção de Bergson em França, veja-se AZOUVI, François. La
gloire de Bergson. Essai sur le magistère philosophique. Paris: Gallimard, 2007, pp. 249-250.
36
Remetemos neste ponto para os argumentos de Léon Husson no estudo L’intellectualisme
de Bergson. Genèse et développement de la notion bergsonienne d’intuition, de 1947, que
considerava que Bergson tinha optado por circunscrever o sentido do conceito de
inteligência à aptidão para decompor e recompor a materialidade, dissociando-a da
reflexão do espírito sobre si mesmo, como forma de solucionar os desvios advindos
à filosofia pela inclinação natural do pensamento para utilizar os procedimentos da
acção como norma da actividade reflexiva. No entender deste autor, através da clara
separação entre agir e reflectir, por um lado, e da introdução operativa da intuição,
por outro, Bergson conseguira defender a ideia de uma inteligibilidade do real e, con-
sequentemente, a confiança de que o espírito humano se encontra apto a captar essa
inteligibilidade. Nesse sentido, Husson concluía pelo “intelectualismo” bergsoniano.
350 “Uma filosofia para as Alforrecas”: Sérgio crítico de Bergson
“Por muito variável que seja a gaivota, é sempre gaivota: não se muda em
pombo. É vê-los de aqui, – as gaivotas e os pombos. As gaivotas do rio são
as gaivotas do rio, e os pombos da praça são os pombos da praça. Voejam
as gaivotas em torno dos barcos; os pombos, da estátua de D. José. Repara
como às vezes se abeiram os bandos, e como, até, eles se tocam; mas não
se misturam; e nunca uma gaivota se transformou em pombo, e jamais
um pombo se tornou gaivota…”40
39
Na segunda edição do diálogo, publicada nos Ensaios, Sérgio substitui o adjectivo
“viril” por “moral”. Julgamos que o autor ter-se-á dado conta do exagero da primeira
versão, porém não desenvolve a que se refere com essa menção à moralidade.
40
SÉRGIO, António. Em torno da «ilusão revolucionária» de Antero, p. 169.
41
BERGSON, Henri. Introduction à la métaphysique. In: ______. La pensée et le mouvant,
p. 211.
352 “Uma filosofia para as Alforrecas”: Sérgio crítico de Bergson
42
Para Bergson, a substancialidade das coisas é a sua própria “duração”, ou seja, tudo
subsiste nessa realidade fundamental que é simultaneamente “o fundo do nosso
ser” e “a substância mesma das coisas com as quais estamos em comunicação”. Cf.
L’Évolution créatrice, p. 39. A duração é por diversas vezes apresentada por Bergson
como “o estofo da realidade”, ou seja, não nos encontramos aqui perante uma filosofia
que supunha um substrato imutável da realidade, oposto à sua dimensão material
ou sensível. Pelo contrário, o fundamento da realidade, o que a suporta e envolve
intimamente (o seu “estofo”), consiste precisamente naquilo que a nossa percepção
interior capta, ou seja, a duração substancial das coisas. A substância é movimento
e mudança e estes, por sua vez, assumem um carácter substancial.
43
Sérgio conhecia bem o texto da “Introduction à la métaphysique”, de que cita excertos
nas suas “Cartas despretenciosas”, o que vem sublinhar a nossa interpretação destas
considerações como puro artifício de retórica.
44
GILSON, Étienne. Hommage public a Henri Bergson. Panthéon, le jeudi 11 mai 1967,
Paris: Typographie de Firmin-Didot et Cie, 1967, p. 4.
Inspirações para um ensaio:
O Considerações sobre o
problema da cultura
JOÃO PRÍNCIPE
Universidade de Évora
Há na formosura e na música certos lineamentos ou debuxo da razão cujo ofício e louvor é pôr
em sua conta todas as coisas; e como a formosura e a música constam de ordem e proporção,
por esta sombra do racional deleitam mais ao homem, pois nelas sente oculto parentesco e lhe
sabem à sua origem; assim que tudo que deleita é por benefício da razão.
Manuel Bernardes
1
GIL, Fernando. Mimésis e negação. Lisboa: INCM, 1984, p. 266. Estas breves reflexões
iniciais resultam da discussão havida no Colóquio e muito devem à pertinência das
questões levantadas pelo Professor Leonel Ribeiro dos Santos.
2
Idem, p. 246.
354 INSPIRAÇÕES PARA UM ENSAIO: O CONSIDERAÇÕES SOBRE O PROBLEMA DA CULTURA
apenas problemas da esfera da razão pura. Vestígios disso nos restam para
os estudos feitos – os textos impressos e alguma correspondência. Aqui,
o publicista-escritor escreve em situação, usa a argumentação, retórica e
tópica. Os seus intermezzi filosóficos, sugerem um pensador a(anti)-siste-
mático, ensaísta por excelência (Sílvio Lima) que acaba desiludindo alguns
leitores atentos (José Marinho) e cria dificuldades a discípulos brilhantes
que tentarão reconstruir o seu pensamento (Magalhães-Vilhena; Magalhães
Godinho). No seu melhor, atendo-nos ao impresso, Sérgio será um honesto
seguidor de Montaigne e, decerto, um grande animador de ideias. Não lhe
havendo cabido em sorte um discípulo-Platão, ele é também um Sócrates,
cuja voz se perde para a posteridade. Merecidamente para alguns (Carrilho).
Aliás, porque de novo mestre dispomos (Eduardo Lourenço).
A eficácia do “mestre da polémica”, ou do mestre reconhecido do
racionalismo crítico, detectar-se-á porventura na paixão, ligada ao anedo-
tário, dos intérpretes. Sérgio interpela-nos hoje no encontro de uma nossa
auto-estima lúcida. Somos herdeiros da ferida colectiva em revisitação de
cinza quente.
Esquematizo, no simplismo de manifesto, características e limita-
ções da literatura existente, notando a proliferação recente e louvável,
sob a pressão dos curricula: abundante análise dos textos impressos e das
polémicas a partir de pontos de vista extrínsecos à filiação filosófica de
Sérgio, dominando a preocupação com o contexto nacional. A “retórica”,
que não cumpre função filosófica, ora é salientada, ora esquecida por
irrelevante; mas não tem sido analisada à luz da teoria da argumentação.
Igualmente, pouco interesse tem merecido o enquadramento numa
análise sociológica do campo intelectual português. Falta detalhar os
diferentes períodos da actividade intelectual de Sérgio. A reflexão meto-
dológica rareia, até porque há homogeneidades entre os que, movidos
de boa vontade, apesar da impossibilidade de facto de internacionalizar
os resultados da pesquisa, persistem. Em suma, falta projecto colectivo
interdisciplinar que forneça uma visão de conjunto e uma boa biografia
(intelectual).
A determinação de influências de pensadores, frequentemente não
citados nos textos impressos, e a reconstrução de muitos dos argumentos
filosóficos apresentados por Sérgio (com excessiva brevidade e alguma
redundância), não têm sido acompanhadas da análise atenta das obras lidas
e trabalhadas por Sérgio, e que se encontram na sua biblioteca.
Creio que a seguinte hipótese, devidamente meditada, pode criar novas
problemáticas e sugestões de trabalho. Sinteticamente: Em Sérgio, o leitor
João Príncipe 355
3
RÉGIO, José; SÉRGIO, António. Correspondência (1933-1958). Carta de António Sérgio
a José Régio, de 21.09.1936. Apresentação e notas de António Ventura, Portalegre:
Câmara Municipal de Portalegre/Centro de Estudos José Régio, 1994.
4
Este caminho surge mais amplamente tratado no meu recente livro Quatro Novos
Estudos sobre António Sérgio. Com um posfácio de Hermínio Martins. Casal de Cambra:
Caleidoscópio, 2012.
356 INSPIRAÇÕES PARA UM ENSAIO: O CONSIDERAÇÕES SOBRE O PROBLEMA DA CULTURA
5
LE GENTIL, G. La littérature portugaise. Paris: Collection Armand Colin, 1935, cap.
XVI, “Le mouvement nationaliste (1890-1934)”, pp. 176-177. Uso a noção de campo
intelectual de modo informal; inspiro-me, por exemplo, em BOURDIEU, Pierre.
Homo academicus. Paris: Éditions Minuit, 1984; mas noto que a possibilidade de sua
estruturação, no caso concreto dos intelectuais portugueses do início do Estado
Novo, digamos da sua “vectorialização”, em torno, por exemplo, de noções de poder
e de capital intelectual, é-me desconhecida. Um estudo recente, nesta linha, é o de
DESVIGNES, Ana Isabel Sardinha. António Sardinha (1887-1925): Um intelectual no século.
Lisboa: ICS, 2006.
6
Ver SOULIÉ, Stéphan. Les philosophes en République, l’aventure intellectuelle de la Revue de
Métaphysique et de Morale et de la Société française de philosophie (1891-1914). Rennes:
Presses universitaires de Rennes, 2009 (coll. Histoire). Também DUCLERT, Vincent.
La pensée de Spinoza et la naissance de l’intellectuel démocratique dans la France
du tournant du siècle. Archives juives, n.° 36, 2003, pp. 20-42.
7
SÉRGIO, António. Considerações sobre o problema da cultura. In: ______. Ensaios, t. III,
1.ª ed. de 1932 (Porto: Renascença Portuguesa), 2.ª ed. de 1937 (Lisboa: Seara Nova).
João Príncipe 357
La trahison des clercs consiste non pas à s’engager dans une action publique…
mais à subordonner l’intelligence à des partis pris terrestres. Selon Benda,
les clercs de jadis se détournaient de la politique par l’attachement qu’ils
avaient à une activité désintéressée (Vinci, Malebranche, Goethe)…, ou
alors ils prêchaient sous les noms d’humanité ou de justice, en faveur d’un
principe abstrait, supérieur et directement opposé aux passions politiques
(Érasme, Kant, Renan…)… Julien Benda illustrait ainsi à sa façon…la
théorie des deux pouvoirs, le pouvoir temporel et le pouvoir spirituel, qui
était dans la pensée de Saint-Simon, d’Auguste Comte, et de son contem-
porain Alain. Il faut dans toute société, en face des puissants, un pouvoir
spirituel, intellectuel, honoré selon une autre hiérarchie, qui rappelle les
principes éternels sur lesquels est fondée cette société9.
BENDA, Julien. La trahison des clercs. 2.e édition. Paris: Grasset, 1946, cit. do “avant-
9
10
SÉRGIO, António. Considerações sobre o problema da cultura. In: ______. Ensaios, t. III.
Lisboa: Sá da Costa, 1972, § 24, p. 41.
11
BELL, Clive. Civilization. London: Chatto and Windus, 1928.
12
Bell e o Bloomsbury Group a que pertencia, e entre os quais se contavam vários pin-
tores, escritores, literatos, e J. M. Keynes, foram muito influenciados pela leitura do
João Príncipe 359
bons estados de espírito por meios puramente espirituais, ou antes, pelos meios
mais directos para o prazer espiritual] (p. 91) It is the mark of a barbarian – a
philistine – that, having no sense of values, failing to discriminate between
ends and means and between direct means and remote, he wants to know
what is the use of art and speculation and pure science… (p. 92) [Assim,
por exemplo, a ordem social, para o homem culto, é um meio e não um fim; a
ordem social é desejável na medida em que concorre para a liberdade de espírito
(p. 92) meios: a ordem, a instrução, o Estado (p. 94)] The specialist is never
completely civilized13 (p. 97) He [who possesses a sense of values] aims
at complete self-development and complete self-expression: and these
are to be achieved only by those who have learnt to think and feel and
discriminate, to let the intellect play freely round every subject…. Know-
ledge in addition is needed; for without knowledge the intellect remains
the slave of prejudice and superstition, while the emotions sicken on a
monotonous and cannibalistic diet (p. 98)… A tendency toward cosmo-
politanism, based on individualism, a movement of liberation from the
herd-instinct, is the unfailing accompaniment of an advance of civility…
[amor da verdade – individualismo – cosmopolitismo – anti-simplismo] But a
civilized man sympathizes with other civilized men no matter where they
were born or to what race they belong (p. 104)14.
16
Publicado em 1925, na Seara Nova; incluido depois em SÉRGIO, António. Ensaios, t. VII.
Lisboa: Sá da Costa, 1974, pp. 145-166. Outros ensaios anteriores de António Sérgio
importantes para a noção sergiana de cultura são: Ciência e Educação (A Águia, 1917),
publicado em Ensaios, tomo I; Divagações pedagógicas (1923) e O clássico na educação
(1926), publicados em Ensaios, tomo II.
João Príncipe 361
17
SÉRGIO, António. Notas sobre os sonetos e as tendencias geraes da philosophia de Anthero de
Quental. Lisboa: Livraria Ferreira, 1909 (há reedição pela INCM), Nota XXXV (dedicada
a Espinosa).
18
BRUNSCHVICG, Léon. Spinoza et ses contemporains. 5.e édition. Paris: PUF, 1971 (1.ère
édition: 1923), p. 291. Cito Brunschvicg: “Si l’on considère l’objet de la pensée, qui est
l’univers, l’étendue apparaît comme un attribut de la substance, parce que l’étendue
est à la fois une et infinie. Il est vrai que cette conception de l’étendue nous est très
difficile, parce qu’il appartient à l’entendement seul de se la représenter sous cette
double catégorie d’unité et d’infinité [Eth. I, 15 Sch; I, 52. Cf. Lettre XII (29) à L. Meyer;
II, 42]. Or c’est l’imagination qui s’attache d’abord à l’étendue; naturellement elle ne
la saisit que par parties, et ces parties, elle les pose comme son objet immédiat; elle les
abstrait donc de ce qui est leur origine et leur raison. L’imagination conçoit l’étendue
comme composée de parties qu’elle peut à son gré ajouter les unes aux autres, et
comme il est impossible d’assigner une limite à l’addition mutuelle de ces parties,
362 INSPIRAÇÕES PARA UM ENSAIO: O CONSIDERAÇÕES SOBRE O PROBLEMA DA CULTURA
elle en conclue que l’étendue est infinie. Ainsi se substitue à la conception intellec-
tuelle et vraie de l’infini une conception purement imaginaire. De cette confusion
naissent les absurdités où se débat la pensée vulgaire et dont elle ne sort qu’au prix
d’absurdités plus grandes encore… Le nombre étant un instrument pour la mesure
du fini, vouloir prolonger ce qui mesure au-delà de toute mesure, concevoir le nombre
comme infini, c’est proprement, dit Spinoza, délirer avec l’imagination… L’étendue
apparaît toujours à l’imagination finie, divisible et multiple; pour l’intelligence,
elle est infinie, indivisible, unique”. Ibidem, cap. III, “Dieu”, § 7, pp. 41-42. Neste
raciocínio de Espinosa-Brunschvicg-Sérgio, considera-se absurdo que a união de um
número infinito de agregados, cada um deles sem extensão, seja uma extensão; este
raciocínio é nitidamente pré-cálculo infinitesimal.
19
SÉRGIO, António, Considerações sobre o problema da cultura, § 9, p. 31.
20
Ibidem, §§ 29-30, p. 44; §39, p. 50.
João Príncipe 363
21
A oposição a Bergson foi notada por D. Parodi, destacado colaborador da Revue de
Métaphysique et de Morale, em PARODI, Dominique. La philosophie contemporaine en
France. Paris: Alcan, 1919, que António Sérgio leu. Ver também SOULIÉ, Stéphan, op.
cit., p. 13.
22
SOULIÉ, Stéphan, op. cit., p. 14.
364 INSPIRAÇÕES PARA UM ENSAIO: O CONSIDERAÇÕES SOBRE O PROBLEMA DA CULTURA
[Spinoza] est le modèle des jeunes gens qui ont fondé la revue… Le con-
tenu de la revue et ses orientations révèlent la formation spinoziste de
ses jeunes créateurs et leur volonté de poursuivre l’approfondissement
de sa philosophie vers la définition d’une morale, synonyme de pouvoir
intellectuel sur l’ordre politique et social… À lire le futur Alain (Émile
Chartier) qui ne cessera de rendre hommage à Spinoza… on comprend le
rôle que le philosophe joue auprès des jeunes gens de la revue. Il est celui
qui unit en lui la philosophie la plus exigeante et la conscience politique
la plus forte23.
23
DUCLERT, Vincent, op. cit., pp. 28 e 30; ver também p. 33 e ss.
24
Ibidem, p. 28. Uma das primeiras vezes que António Sérgio cita Brunschvicg, em 1918,
fá-lo num óbvio contexto de intervenção cívica; o francês afirma: “A pátria é uma
ideia, e cumpre que a cada hora ela seja criada de novo pela vontade colectiva dos
cidadãos. Ela só verdadeiramente subsiste quando eles são verdadeiros patriotas, isto
é, quando eles renunciam a perpetuar os erros e os abusos do passado donde tiram
vantagens pessoais, quando conformam o seu proceder com o ideal, que a razão lhes
propõe, de justiça universal e de integral liberdade” – Revista Pela Grei, dirigida por
António Sérgio, p. 106, sem outra referência que o autor.
25
SÉRGIO, António. Entrada “Espinosa” da Grande Enciclopédia Portuguesa e Brasileira.
ALAIN. Spinoza. Paris: Gallimard, 1996 (1.ère édition de 1900), p. 95; SÉRGIO, António,
Considerações sobre o problema da cultura, p. 35.
João Príncipe 365
O ideal do homem livre que António Sérgio partilhava pode ser recons-
truído a partir de comentadores de Espinosa. No livro de Paul-Louis Cou-
choud sobre Espinosa, Sérgio sublinhou criteriosamente:
Dans les Passions de l’âme de Descartes… le type que reprendra Spinoza est
déjà fixé. C’est “l’homme généreux”, sa marque est d’avoir une grande
passion… sans mélange, qui emplit seule la capacité de son cœur et à
laquelle toutes les autres ploient et obéissent (p. 235). La grande passion,
pour Descartes, ne s’oppose pas à la raison. Elle est tout intellectuelle…
A mesure que s’accroît la netteté de l’esprit, la passion grandit (p. 236).
“Tirer de la joie de tout” est le mot qui termine le traité des Passions.
Tant que l’esprit reste limpide… toutes les passions s’ennoblissent…
L’homme généreux de Descartes devient l’homme “libre” de Spinoza (p.
237). L’homme libre… ne fait pas la différence entre le futur, le présent,
le passé, mais entre le réel et l’imaginaire (Eth. IV, 62 et sc.: a). Pour lui,
une chose réelle passée, une chose réelle à venir, ont autant d’existence
qu’une chose présente (p. 240)26.
26
COUCHOUD, Paul-Louis. Benoit de Spinoza, Ouvrage couronné par l’Académie française.
Paris: Félix Alcan (1924, 2.ème édition revue, 1.ère éd. de 1902); P.-L. Couchoud (1879-
1959), ENS, agrégé de philosophie.
27
Ibidem.
366 INSPIRAÇÕES PARA UM ENSAIO: O CONSIDERAÇÕES SOBRE O PROBLEMA DA CULTURA
28
ALAIN, op. cit., p. 96.
29
BRUNSCHVICG, Léon, op. cit., p. 145.
João Príncipe 367
30
SÉRGIO, António. Democracia. Lisboa: Sá da Costa, 1974 (col. Clássicos). As citações
são excertos das falas do Libertário, sendo o Estadista seu interlocutor.
368 INSPIRAÇÕES PARA UM ENSAIO: O CONSIDERAÇÕES SOBRE O PROBLEMA DA CULTURA
31
Entrada “Sérgio” da Grande Enciclopédia Portuguesa e Brasileira. “Da opinião pública…”
foi publicado em Janeiro de 1918 na revista fundada por António Sérgio, Pela Grei (Da
opinião pública e da competência em Democracia. Pela Grei, Revista para o Ressurgi-
mento Nacional. Pela Formação e Intervenção de uma Opinião Pública Consciente. Lisboa,
Oficina do Anuário Comercial, n.º 1, 1.º ano, 1918, pp. 46-53), sendo integrado no
tomo I dos Ensaios (1920); António Sérgio afirma aí que “quem faz a opinião pública
são os intelectuais e os homens de elite de cada classe”, p. 232 da edição da Sá da
Costa.
João Príncipe 369
Conclusão
Sérgio bebe de diversas tradições, tal como antes o fizeram Camões,
Herculano, Antero, para citar alguns daqueles que, nascidos em solo pátrio,
muito o inspiraram. Ele não pode ser lido atentamente sem se atender à
sua vasta cultura, sem se considerar as inspirações do seu ideário filosófico,
manifestas nas suas leituras, as quais importa reconstruir. Estas remetem
para os grandes mestres e para seus “comentadores”; a leitura destes,
penso em particular nos franceses, está, tal como em Sérgio, condicionada
pela sua acção, pelo seu empenho político. O Espinosa e o Fichte, tal como
o Platão de Sérgio, são certamente mediados pelas leituras dos fundadores
da Revue de Métaphysique et de Morale.
A história filosófica da filosofia e a história da cultura não parecem
ter ainda ocupado o lugar a partir do qual a historicidade das leituras, do
discurso, e acção dos homens-filósofos sobre seus antepassados, surge
claramente iluminada.
SÉRGIO, António, Democracia, pp. 94, 95, 98. A passagem sobre Espinosa encontra-se
32
* O trabalho de investigação científica que serviu de base à redacção deste ensaio foi
realizado com o apoio da FCT-Fundação para a Ciência e a Tecnologia. O autor expressa
aqui, publicamente, o seu agradecimento por esse importante apoio. O presente ensaio,
concluído em Março de 2010, é o resultado de um estudo pioneiro iniciado em 2009.
Daí resulta que algumas referências feitas a um inédito de Vasco de Magalhães-Vilhena
perdessem actualidade, já que a partir de Maio de 2013 aquilo que à data da redacção
deste ensaio era uma fonte inacessível, um escrito inédito, passou a ser texto publicado
(MAGALHÃES-VILHENA, Vasco de. António Sérgio. O idealismo crítico: Génese e estrutura. Raízes
gnoseológicas e sociais. Estudo de história social das ideias. Edição, prefácio e notas de Hernâni
Resende. Lisboa: Edições Colibri, 2013). Contudo, o texto agora revelado não contém
novidade no que concerne ao essencial da visão interpretativa de Magalhães-Vilhena e,
também por isso, em nada me força a rever as conclusões da investigação realizada. Estas
não perderam actualidade. Assim sendo, optei por não efectuar nenhuma alteração – nem
mesmo na nota onde se refere, e se agradece, a generosa colaboração prestada por um
amigo entretanto desaparecido, o Eduardo Chitas, que nos deixou no dia 18 de Março de
2011. Ao leitor, solicito agora que considere a data da redacção do ensaio (2009/2010) e
não a data da edição. Desejo ainda prestar um esclarecimento adicional. Ao escrever o
presente ensaio tinha há muito conhecimento da existência de um longo texto inédito
e inconcluso, redigido por Vasco de Magalhães-Vilhena e destinado à preparação de um
seu novo livro dedicado ao pensamento filosófico de António Sérgio, obra que seria um
significativo desenvolvimento do pequeno volume publicado em 1964, com a chancela
da Seara Nova. Tentei várias vezes, a partir de 1993 (ano da morte de Magalhães-Vilhena),
obter autorização para consultar esse material, depositado no espólio entretanto entregue
pela família de Magalhães-Vilhena ao Partido Comunista Português. Por motivos vários,
nem sempre entendíveis ou respeitáveis, mas estranhos à minha vontade, nunca foi
possível realizar a desejada consulta directa do texto. No entanto, por especial gentileza
dos professores Hernâni Resende e Eduardo Chitas, as duas pessoas que, muito mais tarde,
já na altura em que realizava a investigação para este meu ensaio, estavam a ultimar o
espinhoso trabalho de dar o acabamento possível à amálgama de textos (manuscritos e
dactilografados) existentes no espólio, foi-me possível não só obter alguma informação
útil para a minha investigação como também a autorização para revelar, pela primeira
vez de forma pública, o título do livro em preparação.
372 Sérgio e Einstein: Aspectos de uma empatia intelectual
final do século XIX e até à Segunda Grande Guerra, nomeadamente através da sua
colaboração na notabilizada Revue de Métaphysique et de Morale e da sua actividade
docente na Sorbonne – entre 1909 e 1939, ano em que foi interrompida em virtude da
guerra. Se relermos Brunschvicg em paralelo com alguns ensaios de António Sérgio, a
proximidade entre os dois autores torna-se evidente. Ambos terão sido “vítimas” das
modas filosóficas que se foram instalando ao longo do século XX e que não geravam
ventos muito favoráveis ao neokantismo.
João Maria de Freitas Branco 373
Einstein paradigmático exemplo. Por essa razão, mas não só, parece-
me existirem fortes motivos para acreditar que o nosso filósofo tenha
expressado a alguns amigos a vontade de conhecer o celebrado físico; e
em primeiro lugar àquele que era simultaneamente seu dedicado amigo
e não menos afectuoso amigo de Einstein: refiro-me a Paul Langevin, de
quem António Sérgio tinha em casa, na Travessa do Moinho de Vento,
uma fotografia autografada, afectuosa e respeitosamente colocada sobre
o tampo da sua secretária. O ilustre físico francês teve, como é sabido,
papel proeminente na apresentação científica, defesa e ampla divulgação
da Teoria da Relatividade, nomeadamente no nosso país, quando em
finais do ano de 1929 aqui realizou um conjunto de conferências nas
universidades de Lisboa, Porto e Coimbra, inteiramente dedicadas à
teoria einsteiniana e em que, para além da óbvia vertente científica (as
questões de física), não deixou de dar particular relevo às suas implica-
ções filosóficas. No plano das quatro conferências proferidas em Lisboa,
na politécnica, como então se dizia referindo a Faculdade de Ciências
da Universidade de Lisboa, um dos temas indicados era: Valor filosófico
da Teoria da Relatividade. Temática que por certo várias vezes marcou
presença nas conversas pessoais do sábio francês com Sérgio, muito
embora este nos surpreenda com um comento aposto numa das Cartas
de problemática sobre a sensibilidade filosófica do cientista seu amigo
e amigo de Einstein; podemos aí ler o seguinte: “O meu grande amigo
Paulo Langevin foi um mestre estupendo de ciência física, mas não lhe
senti interesse filosófico profundo”2.
Estas conferências, embora não tendo sido o principal motivo da
deslocação do físico francês a Portugal3, tiveram bom eco na imprensa
da época (em O Século e Comércio do Porto) e constituíram um marco no
demorado processo de integração da Relatividade no nosso meio académico
e cultural. Como afirma Augusto Fitas no seu importante estudo “A Teoria
da Relatividade em Portugal (1910-1940)”: “Esta visita e o início da che-
gada de alguns físicos, bolseiros da Junta de Educação Nacional em países
europeus, constituirão o estímulo para que o tema Relatividade comece,
lenta e esporadicamente, a ser, não só incluído no ensino da Física, como
2
SÉRGIO, António. Cartas de problemática dirigidas a um grupo de jovens amigos, alunas e
alunos da Faculdade de Ciências. Carta n.º 2. Lisboa: Editorial Inquérito, 1952-1955, p. 6.
Citarei esta obra sempre a partir da sua primeira edição.
3
Langevin deslocou-se a Portugal na qualidade de representante oficial do Collège
de France para participar nas cerimónias do III Jubileu da Academia de Ciências de
Lisboa, visita que contou com o apoio do Instituto Francês de Portugal.
João Maria de Freitas Branco 375
4
FITAS, Augusto. A Teoria da Relatividade em Portugal (1910-1940). In: FIOLHAIS,
Carlos (coord.). Einstein entre nós. Coimbra: Imprensa da Universidade de Coimbra,
2005, p. 28.
5
Muito embora não o conhecesse pessoalmente. Só nessa altura começou a germinar
uma amizade que se manteria até o fim da vida do filósofo e teve relevantes reflexos
na prosa sergiana sobre física. Em particular sobre temas relacionados com a mecâ-
nica quântica. Silveira actuou como conselheiro científico, sugerindo, a pedido do
próprio Sérgio, exemplos concretos, como elementos justificativos e corroborantes
da argumentação filosófica.
376 Sérgio e Einstein: Aspectos de uma empatia intelectual
o salazarento horror ao progresso. Acção essa que teve nas páginas da Seara
Nova, de O Diabo, de o Sol Nascente alguma da sua melhor expressão pública6.
Não por acaso, quando em 1937 se reacende a polémica da Relatividade
nas páginas da Seara Nova com a intervenção do Almirante Gago Coutinho
(adversário da teoria e que já em 1925, no Brasil, ouvira, com desaprovação,
Einstein discursar sobre o tema) – polémica que tinha tido os seus primeiros
episódios precisamente no seguimento das palestras de Langevin (em
1930) –, alguém pertencente ao núcleo pró-Einstein, insurgindo-se “contra
o acolhimento dado pela Seara” aos textos do Almirante, logo declarou
“[ser] preciso escrever uma carta ao Sérgio”7.
Regressemos ao desejo de conhecimento pessoal.
Na verdade, bem podia tê-lo conhecido alguns anos antes, em 11 de
Março de 1925, quando o já célebre físico fez escala em Lisboa a caminho
da América do Sul. Acontece que por cá ninguém soube nem se apercebeu
da presença do ilustre visitante. Algo que diz bastante sobre o estado de
saúde cultural do país. E não se tivesse dado o caso de o viajante ter lançado
nas páginas do seu diário de viagem as vivências lisboetas, provavelmente
nada saberíamos ainda hoje sobre essa curta permanência do autor da Teoria
da Relatividade na nossa capital, onde pôde circular entre o Castelo e os
Jerónimos, onde se extasiou com o claustro, sem ser notado por ninguém.
Pouco tempo depois da indiferença lisboeta, o Brasil recebia-o de modo
bem diferente: os jornais do Rio noticiavam a visita “do maior génio que a
humanidade produziu depois de Newton”.
Outra ocasião em que Sérgio podia ter estado na companhia de Einstein e
que teria constituído para si momento particularmente marcante, foi quando
este visitou a capital francesa no ano de 1922, aí proferindo conferências que
ficaram célebres também em consequência do espaço institucional que as
acolheu e, principalmente, pela singular qualidade das plateias reunidas.
Para mais, o seu amigo Langevin foi um dos principais promotores. Foi ele,
coadjuvado pelo astrónomo Charles Nordmann (do Observatório de Paris),
quem acompanhou Einstein desde a sua chegada à fronteira, protagoni-
zando rocambolescos episódios tendentes a evitar incómodos ao ilustre,
mas polémico, convidado germânico, uma vez que, para além do assédio de
6
Estes periódicos de índole cultural albergaram também o discurso anti-Relatividade,
abrindo assim espaço para a polémica que, nas suas melhores concretizações, foi
controvérsia bem informada e fundamentada.
7
Ver SILVEIRA, António da. Recordando António Sérgio. In: AA.VV. Homenagem a
António Sérgio. Lisboa: Academia das Ciências de Lisboa - Instituto de Altos Estudos,
1976, p. 24.
João Maria de Freitas Branco 377
8
Leia-se a este propósito, e entre outras obras, a extensa biografia da autoria de CLARK,
Ronald W. Einstein – the life and times. London: Hodder and Stoughton, 1979, p. 276 e ss.
9
É num artigo datado de 1937 que se pode ler o seguinte comentário depreciativo: “Luiz
de Broglie […] exprime-se com embaraço na sua cátedra” – SÉRGIO, António. Notazinha
ao artigo de Abel Salazar. Seara Nova, Lisboa, n.º 515, 26 de Junho de 1937, p. 210.
10
Foi inclusivamente o próprio Langevin quem ficou incumbido da tarefa de redigir o
parecer final do júri da tese de doutoramento.
11
SÉRGIO, António. Ensaios, t. II. Lisboa: Sá da Costa, 1972, p. 235 – página em que
cita os nomes de Langevin e Claparède como membros do seu círculo de amigos.
Doravante, todas as citações e referências aos Ensaios reportam-se à edição crítica
orientada por Castelo Branco Chaves, Vitorino Magalhães Godinho, Rui Grácio e Joel
378 Sérgio e Einstein: Aspectos de uma empatia intelectual
13
BAPTISTA, Jacinto. António Sérgio enciclopedista. Lisboa: Edições Colibri, 1997, p. 18.
O quase inédito epistolar que adiante referirei disto é claro exemplo.
14
Disso mesmo sou eu próprio exemplo, com um arquivo pessoal de que faz parte o
manuscrito da importante carta-ensaio, que adiante comentarei.
15
Ver nota inicial.
382 Sérgio e Einstein: Aspectos de uma empatia intelectual
16
Ao Eduardo Chitas [ver nota inicial], que neste momento tem entre mãos o espinhoso
trabalho de revisão integral do texto inédito de Vasco de Magalhães-Vilhena (já em
versão informatizada), desejo aqui agradecer toda a informação que me facultou,
correspondendo generosamente às minhas solicitações. Quero também agradecer
ao Hernâni Resende, responsável pela edição, o ter-me autorizado a divulgar aqui,
em primeiríssima mão, o título da obra inédita que se encontra em fase final de
preparação e revisão do texto, mas ainda sem editor. Aqui fica a referência biblio-
gráfica possível: V. de Magalhães-Vilhena: António Sérgio. O idealismo crítico: génese e
estrutura – Raízes gnoseológicas e sociais. Estudo de história social das ideias. Edição, prefácio
e notas de Hernâni Resende. Projecto realizado com o apoio da Fundação Internacional
Racionalista, Cátedra da Razão. De acordo com o que me foi transmitido por Eduardo
Chitas, o texto completo, com as novas notas e o prefácio, tem cerca de 500 páginas.
Se tivermos presente que a obra base, editada pela Seara Nova em 1964, sob diferente
título (António Sérgio. O idealismo crítico e a crise da ideologia burguesa), tinha menos de
duzentas páginas impressas, fica-se com uma ideia da ampliação que o autor deu a
este seu estudo. Isto confirma o que Magalhães-Vilhena pessoalmente me transmitiu
em 1983/84: que, depois de 1964, tinha continuado a investigar e a escrever sobre a
obra do Sérgio com o objectivo de publicar um estudo de muito maior fôlego, pois
considerava ser esse o seu mais importante contributo como investigador filosófico.
Mas por razões de saúde tinha resolvido «pôr um ponto final na sua actividade
intelectual», deixando assim inconcluso esse livro. Se bem interpreto as palavras
que então me foram ditas, a importância maior atribuída a este seu trabalho derivava
do facto de considerar ter sido ele o primeiro a chamar a atenção para a verdadeira
grandeza de António Sérgio enquanto pensador filosófico. Tinha, portanto, esse valor
acrescido: o da revelação. [Eduardo Chitas morreu no dia 18 de Março de 2011; pelas
razões apresentadas na nota inicial, optei por não fazer nenhuma alteração ao texto
da presente nota, redigida em 2009, que testemunha a factualidade de um generoso
gesto.]
João Maria de Freitas Branco 383
18
Página 140 do exemplar existente na Biblioteca António Sérgio.
19
Citado a partir da nota manuscrita no exemplar antes referido.
20
Numa pátria em que a cultura é quase invariavelmente a última das preocupações
governamentais, estas valiosas anotações manuscritas (muitas vezes escritas a lápis)
estão em vias de se tornarem completamente ilegíveis. Por escassez de recursos,
nenhuma medida absolutamente eficaz pôde ser tomada no sentido de as preservar,
não obstante os pedidos de ajuda formalizados pelos responsáveis pela Biblioteca
António Sérgio.
João Maria de Freitas Branco 385
21
P. 135 do exemplar existente na Biblioteca António Sérgio (n.º 410). Oxford: Basil
Blackwell, 1951.
22
P. 26 do exemplar existente na Biblioteca António Sérgio (n.º 410).
386 Sérgio e Einstein: Aspectos de uma empatia intelectual
23
Citado a partir da nota manuscrita nas pp. 26 e 27 do exemplar existente na Biblioteca
António Sérgio (n.º 410). Ed.cit. Os sublinhados são do próprio Sérgio.
24
Nota manuscrita no topo das pp. 26 e 27 do Essay in physics existente na Biblioteca
António Sérgio (n.º 410).
25
SÉRGIO, António. Ensaios, t. II, p. 261 (anotação F anexa ao ensaio Notas de esclareci-
mento, reportando-se à p. 251).
26
BRANCO, J. M. de Freitas. Forschungsprojekt über das philosophische Gedankengut António
Sérgio. Berlin: Humboldt Universität, 1986. (Brochura dactilografada)
João Maria de Freitas Branco 387
27
SÉRGIO, António. Notas de esclarecimento. Com forçados lances de olhos sobre o moi
haissable e alegações enjoativas pro domo mea. Portucale. Revista de Cultura. Porto,
1950 (reeditado em Ensaios, t. II, p. 49).
28
Idem, Ensaios, t. II, p. 241. O texto antigo que é referido data de 1909 e intitula-se
Notas sobre Antero de Quental.
388 Sérgio e Einstein: Aspectos de uma empatia intelectual
29
Cf. HUISMAN, Denis (dir.). Dictionnaire des philosophes, vol. I. Paris: PUF, 1993, p. 908
e ss.
30
SÉRGIO, António. Romantismo e equilíbrio. Seara Nova, Lisboa, n.º 459, 5 de Dezembro
de 1935, p. 46.
31
Idem. Educação e Filosofia. In: ______. Ensaios. Tomo I. Lisboa: Sá da Costa, 1971,
p. 139.
João Maria de Freitas Branco 389
“Explicar […] não é subsumir sob uma fórmula geral, mas urdir o tecido
de relações entendíveis que ligam cada aspecto da realidade estudada ao
todo relacional a que se encontra unida”36.
32
Idem. Carta-prefácio a DIAS, Carlos Malheiro. O Desejado. Lisboa: Livrarias Aillaud e
Bertrand, 1924, p. X.
33
EINSTEIN, Albert. Comment je vois le monde. Paris: Flammarion, 1989, p. 10.
34
SÉRGIO, António, Romantismo e equilíbrio, p. 46.
35
Idem. Tréplica a Carlos Malheiro Dias sobre a questão de O Desejado. Lisboa: Ed. Seara
Nova, 1925, p. 56.
36
Idem. Explicação e subsunção sob fórmulas gerais. Aqui e Além, Revista de Divulgação
Cultural, Lisboa, n.º 3, Dezembro de 1945, pp. 18-22.
37
Idem. Nota sumária sobre as minhas “heresias” epistemológicas. Lusíada, Revista
Ilustrada de Cultura – Arte – Literatura – História – Crítica, Porto, vol. 1, n.º 1, Primavera
de 1952, p. 19.
38
Ibidem, p. 19.
390 Sérgio e Einstein: Aspectos de uma empatia intelectual
Resta saber se, e até que ponto, o seu modo de ser experimentacionista
(o sergiano concebimento da experimentação) converge com a noção eins-
teiniana. Mas para já interessa perceber que no quadro deste racionalismo
epistemológico a realidade física materialmente presente (anteposta) ao
sujeito cognoscente é sempre entendida como actividade. Sérgio desenvolve
aquilo a que poderemos chamar teoria dos sinais, em que os sentires são
concebidos como sinais da Actividade-Físis que a consciência acolhe.
O Mundo é Actividade-Mundo40.
Sendo o mundo físico um tipo de actividade, esses sinais são o único
dado, formando o primeiro nível, o nível inferior, do processo da vida inte-
lectual. Fazendo uso de exemplo estimado pelo filósofo-ensaísta41, pode-se
perguntar: o electrão é uma coisa? É coisa carregada negativamente? A
resposta sergiana pode enunciar-se assim: a noção de coisa-electrão (ou
de electrão-coisa) é absurda. O electrão não é, nem pode ser uma coisa com
carga eléctrica negativa; é sim uma actividade eléctrica negativa. E assim
sendo, que sentido pode ter falar-se de contacto sensorial directo com
o electrão? Nenhum. Essa ideia de contacto sensorial não passa de uma
pura fantasia. Não há contacto sensorial com o objecto, no sentido que os
físicos dão ao termo – objecto físico. Se do micro saltarmos para o macro
(da microfísica para a macrofísica) e indagarmos se a Lua, Marte ou o Sol
são coisas (coisa-planeta, coisa-estrela), somos levados pelo pensamento
racional à mesma conclusão de absurdo. A sensibilidade apenas fornece
39
Idem, Cartas de problemática, n.º 3, pp. 7-8.
40
Recordem-se as anotações que já aqui dei a conhecer sobre a passagem da noção
newtoniana de corpúsculo para a noção einsteiniana de fotão.
41
Exemplo dado no texto semi-inédito já antes evocado e que adiante referirei.
João Maria de Freitas Branco 391
sinais e não a actividade-físis Lua ou Sol, não havendo por isso possibilidade
de contacto sensorial directo com o fenómeno. Com o objecto. Daí que, no
plano da ciência não haja coisas, mas sim Formas insensíveis. Por exemplo: o
frio é um sinal dado pela sensibilidade; mas a temperatura (nível científico)
é uma Forma insensível, não-sensorial. Dá-se uma des-coisificação, uma
des-sensorialização. Nisso consiste o processo do conhecimento. Reacção
ao sensível, desprendimento com respeito aos sinais.
É neste contexto de problematização que desejo aproveitar a circuns-
tância para revelar à comunidade filosófica o já referido texto epistolar que
tem permanecido na penumbra, ignorado pelos profissionais da filosofia.
Chamo-lhe carta semi-inédita. Carta-ensaio – (penso ser esta a mais apro-
priada designação) escrita em Sintra, no dia 16 ou 17 de Agosto de 1957,42 no
seguimento de uma longa conversa pessoal com o musicólogo João de Freitas
Branco, pessoa que Sérgio considerava ser seu sobrinho por afinidade, pelo
facto de ter casado com a filha do seu amigo fraterno Pedro Nascimento.
Por iniciativa do destinatário, essa carta foi publicada em 1984 num volume
de homenagem a Jacinto do Prado Coelho, ostentando o título de Afecto às
Letras, obra colectiva editada pela Imprensa Nacional-Casa da Moeda e não
muito amplamente distribuída no mercado livreiro. Estas circunstâncias
ditaram o desconhecimento que antes referi. Em boa verdade, nem a obra
nem o autor do “capítulo”, ou parte do livro, em que a epístola inédita
foi então integralmente citada sugeriam relevância filosófica. Só o título
do contributo de João de Freitas Branco para a justíssima homenagem ao
insigne literato nos conduzia à filosofia sergiana: “Dados para um possível
ensaio sobre António Sérgio e as artes”.
Com o já confessado propósito de transportar para o círculo filosófico
a carta de 17 de Agosto de 1957 – missiva que insisto em classificar como
semi-inédita por ser de facto desconhecida dos investigadores filosóficos ou,
pelo menos, até este presente totalmente ignorada43 –, com esse propósito
42
A carta não está datada. O carimbo do correio é de 17 de Agosto.
43
Só Vasco de Magalhães-Vilhena conhecia o texto, em virtude de J. de Freitas Branco
lhe ter fornecido fotocópia da carta-ensaio já vários anos depois da morte de António
Sérgio (em Janeiro de 1969). Porém, por atenção ao ofertante, nunca a quis utilizar
em escrito seu ou em outro tipo de intervenção pública, deixando ao proprietário do
manuscrito inédito a iniciativa da publicação. Tenho agora conhecimento, já depois
de concluída a redacção do presente estudo, e por informação que Eduardo Chitas
gentilmente me fez chegar, de que Magalhães-Vilhena deixou indicação para que,
caso se procedesse a uma edição póstuma do seu segundo livro sobre o idealismo
crítico sergiano (versão revista e muito aumentada do volume editado em 1964), a
carta-ensaio fosse publicada em anexo. A edição preparada por Hernâni Resende com
392 Sérgio e Einstein: Aspectos de uma empatia intelectual
em mente, dela aqui faço extensa citação. Mas para que o seu conteúdo
seja totalmente inteligível, talvez se torne útil, se não mesmo necessário,
dar a conhecer as cogitações originadoras desta prosa epistolar ensaística.
António Sérgio decidiu, sem prévio anúncio, dar resposta escrita a um
conjunto de dúvidas que o “sobrinho” lhe tinha colocado no decorrer de
uma das habituais, e informais, conversas sobre temas elevados que eram do
interesse de ambos. Neste caso, o diálogo teve lugar em Sintra, onde Freitas
Branco então residia44 e onde Sérgio gozava umas férias, e incidiu sobre impli-
cações da mecânica quântica na esfera das artes, de aí brotando interrogações
“relacionáveis com a percepção, a inteligência, a teorização, a axiologia, a
criação e a interpretação de ordem estética, nos domínios das diferentes
artes”. Isto mesmo dá a conhecer João de Freitas Branco45 na apresentação
que fez em 1984, quando tomou a iniciativa de publicar a carta, acrescentando
o seguinte: “Submeti a Sérgio as minhas principais dúvidas sobre o que tudo
isso podia ser, se a experiência humana tivesse limites muito diversos dos
que efectivamente tem, nos troços do sensível. Cogitações desencadeadas
pelo conhecimento dos abalos da mecânica clássica resultantes da extensão
do experimentalmente verificável a velocidades muito superiores às máximas
até então disponíveis, e a valores de outras dimensões físicas, muito abaixo
do que se supusera fronteira ínfima da sensibilidade”46.
A resposta do interlocutor chegou em menos de 48 horas, e boa parte
do seu conteúdo é de grande relevância para a problematização que aqui
nos ocupa. Leia-se então:
47
SÉRGIO, António. Carta para João de Freitas Branco. Sintra [17 de Agosto de 1957]. Citado
a partir do manuscrito.
48
Ver também Idem, Nota sumária sobre as minhas “heresias” epistemológicas e Idem,
Cartas de problemática, n.º 3.
394 Sérgio e Einstein: Aspectos de uma empatia intelectual
49
Idem, Cartas de problemática, n.º 3, p. 7.
João Maria de Freitas Branco 395
50
Cf. Carta a Mach de 25 de Junho de 1913. In: MACH, Ernst. Die Mechanik in ihrer
Entwicklung. Berlin: Akademie-Verlag, 1988.
51
Cf. EINSTEIN, Albert. The collected papers of Albert Einstein, vol. 3. Translated by Anna Beck
Don Howard, Consultant. New Jersey: Princeton University Press, 1993, p. 421.
52
Citado por Walter Isaacson em Einstein. A sua vida e universo. Lisboa: Casa das Letras,
2008, p. 84.
53
Citado por Abraham Pais em Subtle is the Lord. Trad. port. Subtil é o Senhor. Lisboa:
Gradiva, 1993, p. 348.
João Maria de Freitas Branco 397
54
Relativamente ao esboço autobiográfico aqui mencionado por Pais, veja-se SCHILPP,
Paul Arthur (ed.). Albert Einstein: philosopher-scientist. New York: Tudor, 1949, p. 21.
55
PAIS, Abraham, Subtil é o Senhor, p. 348, nota 24.
56
Veja-se a esplêndida edição da Akademie-Verlag, que inclui as quatro cartas de Einstein
para Mach e o referido artigo de 1916: MACH, Ernst, Die Mechanik in ihrer Entwicklung,
ed. cit. Textos de Einstein nas páginas 679 e ss.
398 Sérgio e Einstein: Aspectos de uma empatia intelectual
SÉRGIO, António, Explicação e subsunção sob fórmulas gerais, op. cit., p. 18.
57
“Il est certain qu’à la base de tout travai scientifique un peu plus délicat on
trouve une conviction, analogue au sentiment réligieux, que le monde est
fondé sur la raison et peut être compris […] un sentiment profond d’une
raison supérieure, qui se manifeste dans le monde… ”.
“Einstein […] tem crença de que o Uno Unificante existe e de que o Mundo
se amolda à unificação pelo Uno”61.
59
EINSTEIN, Albert. Mein Weltbild (1934) – Conferência no âmbito das Herbert Spenser
Lectures, 10 de Junho de 1933. In: ______. Como vejo a ciência, a religião e o mundo.
Lisboa: Relógio d’Água, 2005, pp. 95 e 97. Doravante, Como vejo a ciência…, seguido
de indicação do número de página.
60
EINSTEIN, Albert. Ciência e Religião, Parte II (1939/1941). In: ______. Como vejo a
ciência…, p. 274.
61
SÉRGIO, António. Explicação para os que entendem a linguagem que eu falo. Vértice,
Revista de Cultura e Arte. Coimbra, n.os 36 a 39, fasc. 8, Junho de 1946, pp. 214-232.
62
Citado em Idem, Ensaios, t. II, p. 240.
400 Sérgio e Einstein: Aspectos de uma empatia intelectual
“La science n’est pas une collection de lois, un catalogue de faits non reliés
entre eux. Elle est une création de l’esprit humain au moyen d’idées et de
concepts librement inventés”65.
Se até aqui o texto podia perfeitamente ter sido escrito pelo nosso
filósofo-ensaísta, já o mesmo não acontece com o período seguinte desta
mesmíssima prosa. Mas esse não é citado. É omitido. O acto de citação
prossegue com um salto no texto (devidamente indicado pela colocação
63
EINSTEIN, Albert. Carta a Marcel Grossmann, citada por Silvan S. Schweber em
Einstein & Oppenheimer. O significado do génio. Lisboa: Bizâncio, 2010, pp. 302-303. Ver
também HOLTON, Gerald. Einstein and the goal of science. In: ______. Einstein, history,
and other passions. Massachusetts: Addison-Wesley, 1996.
64
Se considerarmos que a ela se seguem imediatamente duas outras, em inglês,
extraídas de Out of my later years, é este o escrito de Sérgio em que encontramos o
mais abundante recurso à citação de textos de Einstein. Todas estas citações são
invulgarmente extensas.
65
Cf. SÉRGIO, António. Ensaios, t. II, p. 240. Os sublinhados são de António Sérgio
(passagem já antes aqui parcialmente citada).
João Maria de Freitas Branco 401
66
Ibidem: “Les concepts des nombres purs 2, 3, 4… […] sont des créations de l’eprit pensant […]
la physique a commencé réellement par l’invention de la masse, de la force et d’un système
d’inértie. Tous ces concepts sont des inventions libres”. O que acima foi citado voltou a ser
prosa que bem podia ter saído da pena sergiana. Abreviei a citação. Os sublinhados
continuam a ser de António Sérgio.
67
Incluído em SCHILPP, Paul Arthur (org.). The library of living philosophers, vol. V, 1944,
e também em Mein Leben (EINSTEIN, Albert. Autobiographical Notes. Edição de Paul
Arthur Schilpp. Chicago: Open Court, 1949).
402 Sérgio e Einstein: Aspectos de uma empatia intelectual
EINSTEIN, Albert. Como vejo a ciência…, p. 167. Ver também nota anterior.
68
Idem. Carta a Herbert Samuel, 11 de Outubro de 1950. In: SAMUEL, Herbert Louis.
69
Numa observação feita em 1923, e que nos chega pela mão de Archibald
Henderson, o físico-filósofo afirma a sua convicção de que “after a certain
high level of technical skill is achieved, science and art tend to coalesce in
esthetics, plasticity and form. The greatest scientists are artists as well”71.
70
SÉRGIO, António. Resposta a um inquérito. Ler – Jornal de Letras, Artes e Ciências,
Lisboa, n.º 18, Setembro de 1953.
71
Cf. CALAPRICE, Alice (org.). The new quotable Einstein. Princeton, New Jersey: Princeton
University Press, 2005, p. 230.
João Maria de Freitas Branco 405
Esse Albert que assim pensava tinha por hábito olhar para os entes
humanos tomados de um qualquer fanatismo, olhar para os espíritos
sectários, ou seja, para as pessoas com formatação mental não-científica
ou anti-científica, como sendo criaturas incapazes de escutar a música
das esferas. Profunda e subtil observação, esta, de quem, sendo físico, e
grandíssimo, nunca deixou de ser também músico violinista, possuidor
de uma fina sensibilidade artística que não permitiu que ficasse de fora,
posta entre parêntesis, no acto de fazer ciência – acção tão eminentemente
criativa quanto a do artista músico, pintor, romancista ou poeta.
O sectarismo, o dogmatismo, o fanatismo ideológico são, digo agora
eu crendo-me em sintonia com ambos os autores em estudo, formas de
deficiência intelectual – mais inata, em certos casos, mais adquirida, em
outros. E a esses deficientes intelectuais sempre estará vedada a possibilidade
de fazer Ciência e Filosofia de valia. Mesmo na ausência de todo e qualquer
constrangimento externo. Só os que sabem «viver numa alvorada eterna»
conseguem caminhar de modo consequente em tais acidentados terrenos72.
Tudo isto é reforçado pela observação cuidada do modo como Einstein
fez ciência, e da melhor cepa. Um modo de proceder que delicia todo o
sergiano, a começar, obviamente, pelo próprio António Sérgio. É que no
seu labor científico, o físico-violinista não definia como ponto de partida
nenhum dado experimental concreto. O ponto de partida não era de natureza
empírica. Como poderia o idealista Sérgio não prezar essa desafectação ao
sensorial, bem como, consequentemente, à platónica intuição sensível?
Einstein teve a preocupação de reiterar essa negação de um processo
de construção teórica baseado em dados experimentais, nomeadamente
ao afirmar, referindo-se à construção da Teoria da Relatividade geral, que
nenhum conjunto de factores empíricos pode conduzir directamente às
equações complexas que a integram.
As suas experiências mentais tornaram-se famosas. E em resposta
à inquirição de Max Wertheimer, psicólogo interessado em conhecer o
modus operandi da sua mente singular, afirmou que raramente pensava
com palavras na fase inicial do processo. Primeiro surgia o pensar com ou
em imagens e, só depois, num segundo momento, o pensar com palavras.
“Os pensamentos – dizia – surgem-me e só depois é que talvez tente
exprimi-los por palavras”73. Esse pensar imagético, esse fantasiar de
72
Pena não terem estes dois autores desenvolvido uma reflexão mais sistematizada
sobre as similitudes entre ciência e arte, assim como sobre a estética da ciência e a
função do belo na edificação do conhecimento científico.
73
Relatado por WERTHEIMER, Max. Productive thinking. New York: Harper, 1959, p. 214.
406 Sérgio e Einstein: Aspectos de uma empatia intelectual
experiências, pensar sem palavras – algo que não podemos separar do forte
poder imaginativo/inventivo que também o caracterizava –, parece guardar
extraordinária proximidade com a arquitectura mental do artista plástico,
ou até do músico, no relativo ao pensar sem recurso à palavra. Há paridade
com o modus operandi da mente do criador de arte. Do meu pessoal ponto
de vista, a relevância desta forma de pensar não pode deixar de ser trazida
à colação no momento de se analisar a profunda controvérsia mantida com
o Bohr, o Heisenberg e todos os simpatizantes da chamada interpretação
de Copenhaga. Einstein resiste ao abandono de uma Anschauung clássica.
Einstein considerava também existir uma essencial razão comum
justificativa da vontade humana de levar a cabo actividades artísticas
ou científicas, justificativa do desejo de estar com a arte e com a ciência.
Discursando em homenagem a Max Planck, em 1918, disse:
“[…] eu acredito, como Schopenhauer, que uma das mais fortes razões
que levam os homens a dedicarem-se às artes e à ciência é a ânsia de fugir
da vida de todos os dias, com a sua pungente crueza e a sua insipidez
inevitável”74.
74
EINSTEIN, Albert. Discurso de celebração do 60.º aniversário de Planck. In: ______.
Como vejo a ciência…, p. 25.
75
ISAACSON, Walter. Einstein, p. 292. É claro que, neste contexto, a expressão “ponto
de partida” não pretende referir o início do conhecimento humano em geral, mas
sim o do processo de construção de teorias científicas.
76
EINSTEIN, Albert. Princípios de física teórica. Discurso inaugural perante a Academia
Prussiana de Ciências (1914). In: ______. Como vejo a ciência…, p. 19.
João Maria de Freitas Branco 407
77
Se bem que essa influência tenha sido muitas vezes omitida ou, pelo menos, meno-
rizada pelos seus leitores e até por investigadores do seu pensamento até os dias de
hoje. Deficiência a que talvez o próprio não seja totalmente alheio, pois nem sempre
referiu o nome de Fichte em momentos textuais em que enumerou os nomes dos
pensadores que nele mais influíram.
78
FICHTE, Johann Gottlieb. Wissenschaftslehre, I, §1. In: ______. Werke, vol. I. Edição
de I. H. Fichte, Berlin: Gruyter, 1971, p. 91.
408 Sérgio e Einstein: Aspectos de uma empatia intelectual
posto pelo Eu” (“ist schlechthin durch das Ich gesetzt”). É assim instituído o
primado do Ser posto pelo Eu-activo, antecedendo a matéria e a própria
relação sujeito-objecto. Através deste procedimento, a realidade material
aparece destituída de fundamento próprio. O seu fundamento vem de
fora; provém da esfera do Eu. Por outro lado, a questão fundamental do
unificar ou da unificação, superando a estrutural incapacidade da sensi-
bilidade para anular, para se libertar, da Mannigfaltigkeit, da diversidade.
Portanto, e tal como já antes se observou no modo como Sérgio concebe
os constructos percepcionais e formais, é ao intelecto, é à Razão que cabe
a função de unificar, libertando-nos do múltiplo, da diversidade caótica a
que o sensorial (a experiência sensível) condena. Daí que, para Sérgio, em
absoluta concordância com Fichte, que lhe serve de fonte de inspiração, seja
inimaginável e inadmissível a hipótese de a unidade do Real poder consistir
na sua materialidade. Isso não passa de uma espécie de aberração filosófica.
Experimente-se agora o sabor indisfarçavelmente fichteano do discurso
sérgico em torno da ideia central de Uno-Unificante:
79
SÉRGIO, António. Explicações para os que entendem a linguagem que eu falo. Vértice,
n.os 301 a 303, Outubro-Dezembro de 1968, p. 864.
80
A desatenção, o deficit de cultura filosófica, o modo preconceitual como Sérgio chegou
a ser lido, levou a que houvesse quem dele pretendesse fazer um Berkeley lusitano,
sem entender ser ele exactamente o oposto. Aliás, como o próprio teve o cuidado de
afirmar: “Eu e o Berkeley, como vós percebeis, estamos em pólos absolutamente
opostos” (SÉRGIO, António, Cartas de problemática, n.º 2, p. 2). É a distância filosófica
João Maria de Freitas Branco 409
o nosso próprio corpo. Mas ao fazê-lo, denunciou uma confusão que lhe está
associada e que consiste na tendência para associar, como se fossem termos
sinónimos, “independente” e “exterior”. Entendendo sempre a consciência
como actividade psíquica (ou mental) e não como substância (substância-alma),
Sérgio afirma não fazer sentido supor que um objecto existente fora de nós
(por exemplo, uma mesa ou um copo) se considere exterior à consciência,
porque “a relação de exterioridade não se aplica ao inextenso”81. A mente
não é um objecto ocupando um qualquer lugar no espaço.
Há, portanto, uma adjectivação inadequada que redunda num nonsense.
Ou, como diz o crítico, numa “trapalhada”. A mesa ou o copo são corpos
independentes da actividade mental, mas não exteriores a ela – exteriores
à consciência. São, isso sim, exteriores ao nosso corpo. Assim sendo, os
estímulos provenientes da actividade-físis (Mundo físico) suscitam na
actividade psíquica os sinais-sensações. Mas a intuição sensível jamais é
a própria actividade-físis. É sim e apenas um sinal dessa actividade: “O
elemento sentir não é o real: é um simples sinal da realidade física”82. Esses
estímulos da sensação são por isso independentes da psique, mas não
exteriores. A sensação não se pode identificar com o estímulo.
84
Idem, Notas de esclarecimento, p. 210.
85
Ibidem: “Penso, no que toca à física, que tudo começa pelo experimentador minucioso
e que tudo acaba pelo experimentador minucioso. Experimentalismo constante desde
ponta a ponta”. Ver também p. 233.
86
EINSTEIN, Albert, Mein Weltbild, p. 94.
João Maria de Freitas Branco 411
87
SÉRGIO, António, Cartas de problemática, n.º 1, p. 2.
88
Tenha-se em consideração, neste contexto, um escrito de juventude pouco conhecido:
SÉRGIO, António. Da natureza da afecção. Ensaios de psicologia e pedagogia. Separata
da Revista Americana, Rio de Janeiro, ano IV, n.º 9, 1913.
89
SÉRGIO, António, Cartas de problemática, n.º 1, p. 2.
412 Sérgio e Einstein: Aspectos de uma empatia intelectual
[…] A prova da hipótese […] é o grau de clareza com que nos faz ver as
coisas, a unidade inteligível que introduz nos factos, nos testemunhos
variados, nas percepções havidas. É essa a prova, e essa só”90.
90
Idem, Ensaios, t. IV. Lisboa: Sá da Costa, 1972, p. 207 (ensaio intitulado “Repercussões
duma hipótese: Ceuta, as navegações e a génese de Portugal”, que reúne três textos
redigidos em diferentes alturas; dois deles inicialmente publicados na Lusitânia, em
1925, e o terceiro, agora aqui citado, escrito em Paris muito mais tarde, em 1932. São
bom exemplo de como a filosofia está no cerne, na base, de todo o seu ensaísmo. As
ideias estruturantes do seu idealismo epistemológico estão sempre, ou quase sempre,
activamente presentes. Mesmo quando o título nada indicia nesse sentido).
91
Ibidem, p. 208.
92
Independentemente do seu carácter semi-inédito, este escrito epistolar tem também
particular relevância por datar dos últimos anos de vida intelectual activa (1957).
Recorde-se que em virtude de doença psíquica, Sérgio deixa de ter uma vida intelec-
tual activa a partir do final desses anos 50 do século passado. Veja-se, a propósito, o
rascunho manuscrito de uma carta de Luísa Sérgio, dirigida a um casal de amigos não
identificados, que se encontra no espólio de Sérgio e que data muito provavelmente
do final do ano de 1959, antecedendo a morte da sua autora em Fevereiro de 1960.
Parcialmente citado por Jacinto Baptista em António Sérgio enciclopedista, pp. 36-37.
João Maria de Freitas Branco 413
E prossegue dizendo:
“Sem relações inteligíveis que a nossa mente cria […] não alcançamos
um Mundo, mas tão-só sentires, e não passa o existente de uma colecção
de sentires”96.
93
SÉRGIO, António. Notas a Jorge Berkeley. Três diálogos entre Hilas e Filonous em oposição
aos cépticos e ateus. Coimbra: Atlântida, 1948, p. 174. Sérgio traduziu, prefaciou e anotou
esta obra de Berkeley.
94
MAGALHÃES-VILHENA, Vasco de. António Sérgio – o idealismo crítico e a crise da ideologia
burguesa. Lisboa: Seara Nova, 1964, p. 58.
95
SÉRGIO, António, Ensaios, t. II, p. 217.
96
Idem, Prefácio a Três diálogos…, p. XXXIII.
414 Sérgio e Einstein: Aspectos de uma empatia intelectual
97
Cf. GLEIZES, Albert; METZINGER, Jean. Du cubisme. Paris: Éditions Présence, 1980,
p. 68 e ss. (entre outras). (1.a ed.: Paris: Figuière, 1912)
98
Bohr tinha em sua sala, na habitação que lhe foi cedida nos anos 30 pela Fundação
Carlsberg, o quadro La femme au cheval, da autoria de Jean Metzinger (pintura que
data do início dos anos 1910).
99
ISAACSON, Walter. Einstein, p. 279.
João Maria de Freitas Branco 415
“There are two different conceptions about the nature of the universe:
(1) the world as a unity depending of humanity; (2) the world as a reality
independent of the human factor. […] I cannot prove scientifically that
truth must be conceived as a truth that is valid independent of humanity,
but I firmly believe it. […] If there is a reality independent of man, there
is also a truth relative to this reality”100.
100
Conversa com Rabindranath Tagore, publicada no New York Times Magazine, 10 de
Agosto de 1930. Sublinhado meu.
101
MILLER, Arthur I. Einstein, Picasso: Space, time, and the beauty that causes havoc. New
York: Basic Books, 2001, p. 262. Isto porque, na opinião de Miller, “in their own ways
Einstein and Picasso were intent on extending classical figurative science and art”.
Ibidem, p. 259.
416 Sérgio e Einstein: Aspectos de uma empatia intelectual
Ibidem, p. 259.
102
João Maria de Freitas Branco 417
103
EINSTEIN, Albert. Science and Religion, Address at the Conference on Science,
Philosophy, and Religion, New York, 1940. Trad. port.: EINSTEIN, Albert. Como vejo
a ciência…, p. 276.
104
SÉRGIO, António, Cartas de problemática, n.o 8, p. 8.
João Maria de Freitas Branco 421
Mas tudo isto é temática tão vasta quanto fascinante, merecendo por
isso ser objecto de estudo exclusivo que por enquanto se adia, mas não
sem deixar um lamento: pena que António Sérgio não nos tenha legado
ensaio inteiramente dedicado a esta problemática, e que também Albert
Einstein, embora com maior grau de generosidade, se tenha quedado pela
produção de curtos, se bem que muito relevantes e preclaros textos de
reflexão crítica sobre o tema.
Posicionando-me no terreno da irmandade de pensamento em que
eu próprio me inscrevo (por estar para lá das implicâncias filosóficas que
me apartam de Sérgio mais do que de Einstein), concluo com uma frase do
pai da Relatividade que é verbo soando como acorde perfeito final numa
partitura; forma de representação simbólica de uma convergência de
pensares, inspirada na musical harmonia amada pelo físico tangedor, pelo
filósofo melómano e pelo escriba filosófico de serviço com umbilical cordão
ligado à arte dos sons. Eis esse acorde final em que nos reconhecemos e
nos irmanamos:
pois que tanto Sérgio como eu próprio dela desejaríamos ter sido autores se para tal
tivéssemos tido inspiração, engenho e arte. Será o banimento das aspas um disfarce
do puro ciúme intelectual? O sentimento do mistério, acrescentava Einstein, “é a emoção
fundamental que gera a verdadeira arte e a verdadeira ciência”. EINSTEIN, Albert.
Ideas and opinions. New York: Crown Publishers, 1954, p. 9.
422 Sérgio e Einstein: Aspectos de uma empatia intelectual