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Quebrando o Tabu 

se enreda num terreno conflituoso. Mas o faz por


necessidade: há muito que se discutir quando o que está em jogo é a
regulamentação das drogas. O filme de Fernando Grostein Andrade logo
assume algumas dificuldades: narrar uma pequena história de
contradições e interesses com parcialidade – o que é um mérito, pois não
há nada menos cinematográfico que o mito da imparcialidade.
Capitaneado pelo ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, o
documentário visa desmistificar a lógica e a métrica da produção, da
distribuição e do consumo das principais drogas hoje ilícitas (isto é,
imorais), embora seja claramente uma peça de defesa da
regulamentação e legalização especificamente da maconha. Há, claro, a
necessidade de trazer o grande público para dentro do debate, sendo
que a ilegalidade das drogas é a alimentação do tráfico, das milícias (o
que não aparece no filme, mas deveria) e de uma política opressora que
aufere todos seus esforços, suas forças táticas e inteligentes, no
combate a um inimigo que foi por ela mesma criado.
O argumento é o seguinte: drogas sempre foram consumidas pela
espécie humana, em muitos dos registros históricos conhecidos. Além
disso, elas constituíam parte de toda uma simbologia cultural,
preenchiam cultos religiosos que contribuíam na ligação do corpo com o
espírito. Com o início das políticas repressivas, o movimento de combate
às drogas conduzido pelo governo dos Estados Unidos, sob a massiva
propaganda de guerra à época da invasão do Vietnã pelos EUA, logo
ganhou força em outros países. Se a Lei Seca americana já havia
incentivado uma rede inteira de mercados de produção e venda de
bebidas alcoólicas no início do século passado, hoje, a política
criminalizante e estritamente punitiva contra as drogas não corrigiu os
problemas do consumo irresponsável (uma questão bastante discutível)
e potencializou o uso marginal, assim como deu poder ao tráfico para
depois querer tirá-lo sob o pretexto da salvaguarda da moral e da
segurança. Política de contradições e interesses, que também não
aparecem no filme, a guerra as drogas não falha porque é ineficiente,
mas porque cria monstros que ela mesma visa combater.
Neste ponto, o filme Cortina de Fumaça, Você Precisa Ouvir o que Eles
Têm a Dizer (2011), de Rodrigo Mac Niven, assusta muito mais os
discursos opressores. Menos badalado e menos visto, o filme de Mac
Niven aprofunda a questão ao retirar o estigma do usuário doente e levar
a questão para longe das disputas de ego. Cortina parte de
onde Quebrando o Tabu termina: após a regulamentação, resta todo o
processo produtivo pelas cooperativas e as redes de consumo que
plantam e usam as drogas para fins medicinais e recreativos. Grosso
modo, a diferença entre os filmes é que, enquanto Cortina de
Fumaça não chama o usuário de doente, Quebrando o Tabu o faz; o
primeiro reconhece que a política antidrogas é uma política de combate
às classes mais baixas. Ora, se a produção e consumo de drogas
sempre fez parte da espécie, não há mal em seu uso – o que precisa é
um programa educativo pungente, como mostram os dois filmes; aqui, o
filme ancorado pelo ex-presidente vai mais fundo. Mais que apresentar
ex-presidentes arrependidos de suas atuações frente ao
combate, Quebrando o Tabu perde a oportunidade de conectar-se à
disputa ainda mais profunda. O que fica claro é uma carência de um
posicionamento mais crítico, que escape à questão moral e não sucumba
à publicidade dos discursos. Ora, se usuários de drogas não são
criminosos, não são necessariamente doentes, como diz FHC. Se, por
um lado, rever uma opinião equivocada é atitude honrada – e o filme
apropria-se disso como bandeira – a mera exposição culpada daquilo
que poderia ter sido não é sustentação suficiente para a defesa de um
argumento. Há muito mais a fazer do que apresentar casos
internacionais (Holanda, Suíça, Suécia, Portugal), pois há também toda
uma teia de complexas relações materiais e de classes a ser
compreendida e levada à análise.

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