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Celestin Freinet

A EDUCAÇÃO PELO
TRABALHO
VOLUME II

Questões

EDITORIAL PRESENÇA '


A EDUCAÇÃO PELO TRABALHO
QUESTÕES:

1. CARTA A UMA PROFESSORA, pelos rapazes da Escola


de Barbiana

2. O BUDISMO ZEN, por Alan W. Watts


3. UMA EXPERIÊNCIA NA AMERICA LATINA, por Sal­
vador Allende

4. A PSIQUIATRIA EM QUESTÃO, por R. D. Laing

5. AS UTILIZAÇÕES DA CULTURA, por Rlchard Hoggart

6. PARA UMA ESCOLA DO POVO, por Célestin Freinet

7. A EDUCAÇÃO PELO TRABALHO I, por Célestin Freinet

8. A EDUCAÇÃO PELO TRABALHO II, por Célestin Freinet


CELESTIN FREINET

A EDUCAÇÃO
PELO TRABALHO
2.° VOLUME

Colecção questões • EDITORIAL PRESENÇA


Título original
L'EDUCATION DU TRAVAIL
Copyright by Editions Delachaux et Niestié
Tradução de antónio pescada
Capa de F. C.

Reservados todos os direitos para a língua portuguesa à


EDITORIAL PRESENÇA, LDA. — Av. João XXI, 56-1.°
LISBOA
27. O TRABALHO-JOGO

DO ENTUSIASMO INFANTIL PERANTE AS


FOGUEIRAS DO SAO JOÃO A UMA EXPLICAÇÃO
RACIONAL DA ORIGEM, DO SENTIDO E DO
ALCANCE DO JOGO, NAS SUAS RELAÇÕES EM
ESPECIAL COM O TRABALHO. O QUE É
O TRABALHO-JOGO

O sol, no dia mais longo do ano, desapareceu finalmente


atrás das montanhas e mal se distingue já a claridade mor­
tiça que o segue.
A sombra desceu sobre o vale. É a hora impaciente-
ment,e esperada pelas crianças. Durante toda a semana elas
pensaram na sua fogueira: amontoaram diante das granjas
os feixes de ramos de castanheiro e de pinheiro que lhe
são destinados. E os pequenos pastores regressavam à tarde
com um molho de ramos secos entre os quais se encon­
travam alguns ramos verdes de «tuy» ou de zimbro, que
fazem crepitar uma chama como um estralejar de fogo de
artifício.
— Antigamente, explica Mathieu aos seus amigos senhor
e senhora Long que se lhe vieram juntar ao canto do para­
peito, a fogueira de S. João estava por assim dizer embu­
tida no ritual católico... Agora já não há aí nem padre
nem confraria: vai-se muito simplesmente acender a fogueira

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sem outro rito além dos gritos de alegria das crianças. Mas
ainda no princípio do século este costume era muito mais
impressionante.
À noite, o padre saía em sobrepeliz da capela de Saint-
-Pancrace, seguido pelo sacristão, último sobrevivente da
Confraria dos Penitentes e vestido com um longo hábito
branco muito semelhante a uma grotesca camisa de mulher.
Ambos seguravam velas acesas e avançavam entoando cân­
ticos. Um menino de coro trazia a cruz e um outro a cal-
deirinha da água benta.
O abade dava solenemente a volta à fogueira abençoando
os ramos; depois, ele e o seu sacristão acendiam simulta­
neamente a fogueira... A princípio era um fumo espesso
que filtrava através dos ramos. Olhem, como agora. Apenas
faltou o prelúdio, o que de resto não impede nem a emoção
nem a alegria dos assistentes.
... O fogo atingiu agora todo o monte de ramos. As cha­
mas que fazem ruborescer as fachadas torturadas das velhas
casas, acentuam a profundidade da escuridão para além do
círculo de luz. E agora diante das quintas, lá ao longe sobre
as colinas, outros fogos lançam a sua claridade vacilante,
dilatam-se e extinguem-se como a participação viva num pen­
samento comum a que todos os espectadores são, nesta noite,
sensíveis.
Salta-se agora a fogueira; depois o grupo da juventude
dançante estende-se pelas ruas da aldeia, saltando à volta
das fogueiras secundárias acesas diante das portas...
O barulho extingue-se lentamente. A sombra atinge de
novo os bancos de pedra onde alguns aldeãos se demoram.
— Sei tudo o que se diz, arrisca Mathieu, sobre a extraor­
dinária sobrevivência destes costumes e sobre a paixão dos
homens em geral, e das crianças em particular, pelo fogo.
— Símbolo da dilatação dos dias e da lenta reconquista
da noite...
— Não, não é por ser um símbolo que a fogueira do
S. João é acolhida com tanta alegria.
— Inconscientemente talvez!
— Nem sempre se devem procurar explicações mágicas
ou religiosas para manifestações que são em si mesmas

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muito naturais. Pelo contrário, é a crescente raridade da lenha
que reduz a este ritual mínimo a prática de actos que se
encontram entre os mais carregados de poder dinâmico.
Essas qualidades que nós tão dificilmente conseguimos
precisar e realizar nos trabalhos que oferecemos ou impomos
às crianças, dois elementos as possuem naturalmente, e é esse
o motivo por que eles estão carregados duma tal atracção:
a água e o fogo.
Coloque uma criança à beira dum rio ou dum canal.
Todas as solicitações exteriores são supérfluas. Já não existe
jogo; já não existe mais do que a irresistível atracção por
essa coisa viva: a água!
Ela é clara e transparente e nela nos podemos mirar,
a menos que nos ofusque com o reflexo da luz forte do sol.
Ela murmura suavemente; e sobretudo é tão dócil, tão mane-
jável, tão obediente, sem deixar no entanto de ser activa
e instável. Ao seu contacto, temos a impressão de sermos
por momentos complementares senhores dessa força capri­
chosa cujo domínio exalta em nós o sentimento de poder:
tomamo-la na mão que ela acaricia com a sua frescura para
se escapar por entre os dedos nervosamente apertados; esparri­
nha se lhe batemos; conduzimo-la mais facilmente do que
ao mais submisso dos cães, mas ela escapa-se-nos tão furti­
vamente como um peixe inquieto; lançamos algumas pedras
através do seu curso, e ei-la que vem na nossa direcção,
se espalha ou se retrai à nossa vontade entre as rugas
da areia; cavamos um buraco e ela invade-o; faz vibrar à
sua passagem os arbustos e as folhas amarelecidas. Dir-se-ia
doce e amigável quando vem morrer sobre os seixos lisos
da margem, mas nem por isso é menos soberbamente amea­
çadora quando espuma entre as pedras antes de turbilhonar
nos grandes fundos — esses fundos que trazem no entanto
em si a vida dos peixes, e também das cobras.
Sentimos todas estas múltiplas possibilidades: a água é
o nosso objecto e estamos tanto mais orgulhosos por a domi­
nar quanto a sentimos cheia dum poder que nos ultrapassa.
E depois, ela nunca nos deixa elanguescer. Nada de esta-
tismo; nenhuma passividade; toda ela é vida, movimento e
acção. Com ela o momento seguinte nunca se parece ao

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que agora passa. É como uma luta constante, onde as peque­
nas vitórias não são poupadas, mas onde nunca estão domi­
nados os obstáculos que incessantemente exigem engenhosi-
dade, cálculo, astúcia, ciência e esforços.
O trabalho com a areia, que tanto encanta também as
crianças, não é por assim dizer mais do que um sucedâneo
da actividade apaixonante suscitada pela água. -A areia tem,
reduzidas, atenuadas, a maioria das vantagens da água, sem
ter os seus perigos e inconvenientes. Também ela é movediça
e instável, flexível e misteriosa. Obedece à mão que a domina,
recobre os sulcos, ou ergue-se em montanha, invade como
uma multidão viva o buraco que acabamos de abrir, dis­
persa-se, voa e cintila. Com a areia todas as tendências essen­
ciais da criança são satisfeitas: sentimento de poder em pri­
meiro lugar, impaciência na espera dum resultado que se que­
reria ver seguir imediatamente à acção; vida e dinamismo,
e também mistério. Quando a criança cobre a sua perna de
areia quente, é como um terno envolvimento que a acaricia;
mas se mergulha o braço até ao ombro na massa movediça,
isso provoca uma espécie de arrepio como se um animal
insinuante lhe apertasse o corpo.
Admirem-se. depois disso, se a criança prefere trabalhar
na água ou na areia a entregar-se a áridas tarefas passivas,
sem vigor e sem vida, sem profundidade nem mistério, que
ela raramente pode dominar, perante as quais se sente fraca
e perturbada, por pouco que se verifiquem esses fracassos
maiores ou menores de que nós adultos medimos mal todo
o alcance subconsciente. Porque o indivíduo não pode viver
com o sentimento de impotência; ele nunca se acomoda com
a derrota. É-lhe necessário vencer e triunfar. Recorde-se bem
disto porque teremos que voltar muitas vezes a estas consi­
derações tão essenciais à eficácia da obra educativa.
— Bem pobre seria uma aprendizagem da vida que
tivesse apenas como objectivo a satisfação e a exaltação desse
sentimento de poder, que estou longe de negar, mas que
vejo muito mal colocado no centro das nossas preocupações
escolares. Não é a vida tecida de pequenos fracassos e de
retumbantes derrotas? E não deveremos nós, pelo contrário,
como você mesmo o disse, habituar as crianças a medirem-se

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lealmente com os acontecimentos que condicionam e domi­
nam a sua vida, iniciá-las na ponderação perante a superiori­
dade das forças que nos conduzem?
— Não gosto muito de falar daquilo que poderia ser.
Prefiro considerar aquilo que é e depois, colocando-me
sempre perante as realidades, avançar sem ilusões mas sem
apriorismos.
Tanto mais que não é absolutamente certo que você
tenha razão. Somos facilmente severos e pessimistas ao falar
dos outros. Mas examine-se atentamente a si mesmo e veja
se aceita melhor que as outras pessoas a derrota ou a impo­
tência, e se não multiplica os esforços —quase sempre
inconscientes, admito-o— para contrabalançar um fracasso
com uma vitória. Está nisso, pode crer, toda a história dessa
extraordinária complicação da personalidade humana que se
defende, com as armas que possui ou que fabrica, contra a
opressão e dominação adversas e que só tem algum sossego
depois de encontrar ao menos um exutório para o seu exi­
gente sentimento de poder. Como a água que tem sempre
tendência para correr, que nunca é tão infeliz como quando
está definitivamente aprisionada na inacção dum charco onde
estagna e se decompõe, mas que depressa recupera limpidez,
sabor e intrepidez logo que possa voltar a partir vitoriosa
entre as ramagens e as pedras.
Também nós temos uma exigente preocupação que agita
e motiva a maioria, e talvez a totalidade dos actos da nossa
vida: subir, vencer, transpor os obstáculos, dominar os ele­
mentos, ou, na falta disso, triunfar deles pela astúcia ou a
ciência, contornando-os e evitando-os, para seguir em frente,
apesar de tudo. Aquele que, por velhice ou por desânimo
e enfraquecimento prematuros, não pode já continuar o seu
caminho, que se reconhece provisória ou definitivamente ven­
cido, esse estagna como a água no charco sem saída.
Mas isto afasta-nos aparentemente do nosso tema.
Eu desejava no entanto insistir neste aspecto demasiado
negligenciado da nossa natureza, e nos ensinamentos originais
que daí tiraremos com um exame mais eficaz do nosso com­
portamento ordinário.

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Falei-lhe da atracção da água e da areia. O que lhe
disse sobre o assunto permitir-lhe-á medir agora as razões
desta atracção do fogo, e verá então se o meu raciocínio
apresenta uma lógica sólida.
O fogo é, como a água, ou mais ainda do que ela, esse
animal misterioso que nos proporciona excessivas emoções,
e que no entanto dominamos — o que é essencial —; que
obedece à nossa mão e à nossa vontade. Em presença desse
deus, o fogo, nós somos um deus mais poderoso ainda, o que
nos vale gozos supremos.
A criança traz na algibeira dois bocados de silex encon­
trados na colina. Friccionando-os um contra o outro produz
faíscas que deslumbram por um momento e perfuram como
uma estrela fugidia a escuridão do quarto. A criança produz
o fogo!... Magia do poder!
A criança descobriu algumas brasas, enterradas na cinza,
ao pé duma moita: com o seu sopro vivificante, reanima-as;
chega-lhes algumas ervas secas que se torcem, fumegam...
e, bruscamente, uma chama explode, cresce e espalha-se.
Triunfo uma vez mais da engenhosidade e do poder! Ou então
risca um fósforo e produz-se o efeito mais maravilhoso para
uma criança: do nada, pelo seu gesto, pela sua habilidade,
como que por um toque de varinha mágica, nasce uma
chama. De um nada fez ela surgir uma luz quente, que
acaricia, dirige, reforça, que pode igualmente deixar extin­
guir-se, uma luz que no entanto queima, se não se tiver
cuidado, e que pode, se a deixamos crescer imprudentemente,
tomar-se perigosa e má até ao desastre.
Que se poderia verdadeiramente encontrar na natureza
que satisfizesse mais rapidamente e mais completamente essa
necessidade de poder, essa avidez de emoções, e esse desejo
inato de ver surgir imediatamente o fruto da sua força e
do seu trabalho, de sentir exaltar-se em si essa embriaguez de
criação, essa centelha maravilhosa que é o fermento fecundo
do ser.
Naturalmente, existem riscos. Também os há à beira
da água. O risco é uma consideração nascida do egoísmo
social. Mas não é nunca o risco que impede a criança
normal de agir. Não prefere a água o desconhecido do tur­

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bilhão ou o esboroamento da cascata à imobilidade mortal
do charco? Também assim o homem, e sobretudo a criança,
prossegue incansavelmente a sua corrida para a vida, para
a actividade; são-lhe necessários a criação, o triunfo, a domi­
nação. O risco não faz mais do que excitar essa necessidade.
O sofrimento! A morte!... Estas realidades podem ter uma
importância maior vistas do exterior, com as normas de apre­
ciação da nossa pobre concepção de civilizado vencido e
ajuizado, que não sabe já erguer-se ao esplendor do seu
devir cósmico. Diz você muito bem que a criança não teme
o sofrimento. O que ela receia principalmente, é a limitação,
é a sua impotência perante a vida, é a sua inferioridade.
Para triunfar, para subir, para ir para a frente, não hesitará
perante nada.
Recordo-me duma espécie de loucura que nos havia
atingido, certo Outono, quando ainda eu andava na escola.
Roubávamos fósforos, e, depois da aula, na cumplicidade do
crepúsculo, íamos para a colina que domina os prados e
acendíamos tufos de serpilho, de alfazema e de giesta que
o Verão secara. Agrupávamo-nos solenemente à volta do
mago que ia atear o fósforo. Víamos a chama frágil alcançar
bruscamente o interior do tufo que logo explodia numa laba­
reda fumegante. Então, com raminhos de serpilho seco levá­
vamos a chama a outros tufos. Dir-se-ia que éramos diabos
manuseando o fogo do inferno.
Seria aquilo um jogo? Esquisito jogo. E demasiado
importante, demasiado sério, demasiado trágico. Em breve
tínhamos que nos eclipsar às imprecações do proprietário
alarmado, e regressar, como malfeitores, dando a volta aos
jardins para evitar a rua perigosa arriscando-nos a acusações,
punições, mergulhando na mentira... Nada disso nos impedia
de recomeçar na tarde seguinte porque experimentávamos
uma indizível exaltação em possuir, em manejar, em coman­
dar o fogo...
Temos aqui, parece-me, reduzidas à dimensão das ten­
dências vitais da natureza humana, teorias que têm vestido de
mística a atracção exercida sobre os espíritos pelo doce e
subtil poder da água e do fogo.

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Confrontemos agora esses jogos de água e fogo com
aquilo que lhe disse dos trabalhos que me proporcionavam,
na minha infância, uma satisfação tão total, e compreen­
deremos o profundo parentesco entre essas actividades. Falta
à primeira categoria esse sentido da utilidade social, que
não nos poderia ser indiferente. Mas isso não é por culpa
das crianças; é que existem perigos evidentes no seu comércio.
Então, pais e educadores preferem, para sua segurança, inter­
ditar qualquer experiência com esses elementos insinuantes
e traidores; procuram assustar antecipadamente as crian­
ças para as afastar, e numerosas práticas mágicas, e uma
larga porção da nossa velha literatura e dos nossos contos
empenharam-se — com sucesso — em dar à água e ao fogo
uma figura diabólica, em animar de monstros e sereias o
fundo fascinante das ondas e de demónios e duendes as
chamas rutilantes.
Nada disso impede que, se quisermos dar prazer às
crianças, baste deixá-las acender, alimentar e atiçar uma
fogueira de mato, ou queimar um monte de ervas secas.
O ofício de pastor. Uma boa parte do encanto da própria
profissão de pastor vem-lhe da autorização tácita que se
tem de fazer fogo. E não se privam dele!
Recordo-me com o mesmo sentimento de satisfação total
da emoção que sentia quando a minha mãe me mandava,
muito criança ainda, «buscar a água» e acompanhar a
corrente barrenta ao longo da regueira que a levava penosa­
mente até à horta. Era preciso tapar, aqui e acolá, buracos
negros onde a água se sumia com tanto vigor que até aspirava
a minha mão com a sua respiração vibrante, como um
animal que me tivesse atraído para me devorar. Depois a
corrente atravessava os caminhos pelas condutas obstruídas
por trapos e caixas, visitava as hortas fechadas e misteriosas.
Eu espreitava-a à saída como o caçador espreita uma presa
adivinhada: um leve ruído imperceptível, um nada de humi­
dade que precede a corrente rumorejante. Quando a água
corria finalmente para a nossa horta, que alegria! E que
prazer era regar desde que me deixassem patinhar de pés
descalços nas poças, porque se é preciso evitar a água por
prudência doméstica, então é rompido todo o encanto.

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E a pesca! Que diversões!... Seria um nunca mais
acabar...
Se nos recusamos a considerar a pesca como um tra­
balho, mesmo quando dela se faz profissão, é exactamente
porque ela continua impregnada dessa participação ideal do
indivíduo no complexo devir ambiente, porque ela é uma
actividade que responde sem reserva a todas as necessi­
dades poderosas do homem, tais como as reconhecemos nos
jogos com a água, a areia e o fogo: actividade permanente,
sem fadiga nem esforços exagerados, satisfação, quando
mais não fosse pela esperança do sucesso, da nossa necessi­
dade de domínio e de poder, grande amplitude de sensações,
desde a calma sonolenta até à fuga brusca e brutal do fio
sob as raízes dos salgueiros; resultados imediatamente sen­
síveis e mensuráveis, alegria da vitória sobre a presa que
se agita, pelo saco que se enche, pelo regresso triunfal. Satis­
fações incomparáveis, ainda que passemos frio, que a fome
nos torture, que o turbilhão da corrente nos ameace ou
simplesmente, que metamos desajeitadamente as pernas na
água gelada ao tentar agarrar uma truta que se soltava no
momento decisivo. Nenhum trabalho é tão sério como a
pesca, e no entanto talvez nenhuma actividade seja um jogo
tão completo e tão absorvente.
— Nem por isso é menos verdade que, apesar da areia,
da água, do fogo, da pesca e de outras actividades entusias-
mantes que se lhes oferecem, as crianças das nossas aldeias
brincam com tanto afinco como em qualquer outro lado.
— Porque a sociedade, mesmo aqui, não está feita
para a criança. O adulto, essencialmente egoísta, pouco se
preocupa em servi-la. São precisas algumas almas de elite,
muito raras!... Quando somos pequenos, é justamente aquilo
que quereríamos fazer que nos proíbem. E proíbem-no, a
maior parte das vezes, não porque houvesse nisso algum
perigo físico ou moral para nós, mas porque isso incomoda
o adulto que prefere ser ele a actuar, que se enerva com
as nossas perguntas, que se irrita com a nossa alegria. Actual-
mente mais ainda do que dantes, pois que se supõe que a
Escola assegura só por si a preparação para a vida, satisfaz

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a curiosidade e a necessidade de poder. Há aqui simples­
mente um mal entendido.
Esse mal entendido não faz mais que confirmar aquilo
que eu lhe disse. Não é porque os adultos se recusam cada
vez mais ao seu papel normal de educação das gerações
ascendentes que se modificam as necessidades naturais e
vitais das crianças. Porque nós não sabemos, ou não quere­
mos, ou não podemos oferecer a essas crianças, ou pelo menos
permitir-lhes, as actividades que lhes seriam essenciais, não
concluamos daí hipocritamente que não existem actividades
essenciais.
É verdade que, perante essa impotência ou essa inércia
dos adultos, a criança teve que adaptar a sua actividade para
responder apesar de tudo aos apelos imperativos da sua natu­
reza. Como uma torrente que, ao encontrar uma barragem,
reflui por momentos, em desordem, sobre si mesma, pro­
curando depois, à direita e à esquerda, uma saída parcial ou
total, se necessário subterrânea, onde pode acontecer que
se não reconheça já a torrente impetuosa. Deveremos ter
em conta esses recalcamentos, essas camuflagens, esses des­
vios, a fim de não confundir, como vulgarmente se faz,
aparências e realidades, para reencontrar na origem o verda­
deiro sabor da fonte.
Antes de ir mais além, gostaria, tanto por mim como
por si, e com o risco de me repetir, de apreciar os elementos
essenciais sobre os quais não pode, ao que me parece, haver
contestação.
Há certas actividades que são específicas da criança,
tal como a corrida atrás do rato é específica do gato pequeno.
Elas são a satisfação normal das nossas necessidades naturais
mais poderosas: inteligência, união profunda com a natureza,
adaptação às possibilidades físicas ou mentais, sentimento de
poder, de criação e de domínio, eficácia técnica imediata­
mente sensível, utilidade familiar e social manifesta, grande
amplitude de sensações, incluindo esforço, fadigas e sofri­
mentos. Não se trata aqui duma vulgar alegria, dum prazer
superficial, mas dum processo funcional: a satisfação dessas
necessidades proporciona por si mesma o mais salutar dos
prazeres, um bem-estar, um sentimento de plenitude, do

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mesmo modo que a satisfação normal das outras nossas
necessidades funcionais. E essa satisfação basta-se a si mesma.
É esse o motivo por que tais actividades são ao mesmo
tempo jogos, dos quais têm as características gerais, que
destronam e substituem o jogo.
Se conseguíssemos portanto —o que seria o ideal —
realizar assim, permanentemente, a satisfação normal dessas
necessidades funcionais...
— ...A criança deixaria de brincar... o que seria muito
simplesmente uma monstruosidade!
— Não questionemos com palavras e designações, mas
procuremos antes apurar-lhes o conteúdo. Estamos aqui na
origem dessa separação arbitrária, e partidária, entre trabalho
e jogo... Eu sei que é geralmente admitido que trabalho
— quer dizer constrangimento, pena e sofrimento— supõe
o repouso da sua antítese, o jogo, tal como o sofrimento
supõe o clarão obstinado dum bem-estar cujo regresso espe­
ramos, tal como a fadiga supõe o período de repouso que
se lhe seguirá. Mas se há sofrimentos que nos são mais pre­
ciosos do que a alegria, fadigas que nós procuramos mais
do que o repouso; e se o trabalho nos basta porque traz
em si os elementos do jogo, onde estará a monstruosidade?
Se queremos consolidar poderosamente a natureza
humana, precisamos de tentar, a esta profundidade, realizar
uma actividade ideal a que chamaríamos trabalho-jogo para
mostrar bem que ela é os dois ao mesmo tempo, respondendo
às múltiplas exigências que normalmente nos fazem suportar
um e procurar o outro. Isto não é certamente impossível,
pois que se realiza espontaneamente em certos meios, em
certas circunstâncias. Compete-nos a nós generalizá-lo e
estender o seu benefício ao nosso esforço escolar.
Estas considerações, e as provas que delas lhe dou,
têm muito mais importância do que você poderia pensar.
Persuadimo-nos de tal modo que há oposição radical e defi­
nitiva entre trabalho e jogo, e de que o trabalho, cuja tirania
comum se conhece, não é para as crianças, que não pedimos
a estas qualquer actividade social, deixando-as cada vez mais
no domínio do jogo que lhes seria próprio. É incontestável
que tal concepção tem tendência para se generalizar; que
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cada vez menos se sujeitam as crianças a trabalhar, que
se concede ao jogo uma atenção e uma importância cres­
centes. E a escola, neste domínio, não se limitou a seguir
o movimento; ela contribuiu para o justificar ao aceitar sem
reacção essa separação. Os vossos psicólogos e os vossos
pedagogos têm aplicado o seu engenho, nestes últimos anos,
em demonstrar o poder particular do instinto lúdico, à custa
duma concepção do trabalho cujo calor íntimo eles nunca
sentiram. O jogo veio vergonhosamente em auxílio do tra­
balho, e não se hesitou por vezes em apelar para práticas
que excitam apetites menores... Quando nos metemos por
um mau caminho, é muito difícil defendermo-nos dos perigos
que ele comporta...
— De qualquer modo, há jogo e jogo!...
— Veremos: o declive de um para o outro é muito
escorregadio, e as fronteiras difíceis de traçar. É muito
preferível precavermo-nos de início...
Há entre as nossas concepções de trabalho e de jogo
uma espécie de questão de precedência. Se se admite, o
que eu julgo ter demonstrado, que é o trabalho que é a
função essencial, natural, que corresponde sem encenação,
sem substituição, primitivamente por assim dizer, às necessi­
dades específicas das crianças, então o jogo aparecerá apenas
como uma actividade subsidiária, menor, que não merece
ser assim elevada ao primeiro plano do processo educativo.
Se, pelo contrário, se pensar que é o jogo que é essen­
cial; se se admitir que o trabalho não é uma actividade
natural da criança, então certamente dar-se-á ao jogo uma
nova importância, até ao ponto de fazer dele o centro da vida.
Para mim, não há qualquer dúvida possível. E se
chegarmos enfim a entrever a verdade, relegaremos o jogo
para o seu verdadeiro lugar —lugar de que já lhe falei
há pouco —; exaltaremos o trabalho, restabeleceremos a
filiação normal que o quer no cimo das nossas preocupações,
no próprio centro do nosso destino.
O desconhecimento dessa filiação, a separação actual-
mente consumada entre jogo e trabalho, têm um alcance
humano cuja trágica importância não sabemos já medir.
Esse desconhecimento, essa separação, estão na origem da

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degradação catastrófica do trabalho humano, e nós sofremos
o espectáculo e as consequências disso. Se o trabalho não
é mais do que sofrimento, se ele nos não é substancial, se
o novo deus, tão falaciosamente prometedor, é o jogo, então
é normal que se acabe por fugir ao trabalho, ou pelo menos,
se a ele somos constrangidos, por aceitá-lo passivamente
como um mal necessário, e apenas porque ele permite a
satisfação de certas necessidades, o favor de novos gozos.
Já lhe indiquei o meu ponto de vista de camponês sobre
esse assunto: no dia em que o trabalhador da terra não
gostar do seu trabalho e o efectuar apenas pelas satisfações
acessórias que ele lhe proporciona, nesse dia a própria terra
se nos tornará madrasta.
Dizem-vos, hoje mais do que nunca: «Façam amar o
trabalho!»...
E para fazer amar o trabalho, vocês começariam por
desconsiderá-lo destronando-o, fazendo crer que se pode,
pelo jogo, chegar aos mesmos resultados... Vocês ensinariam
o trabalho... para os outros!... Temos diante dos olhos o
resultado dessa concepção hipócrita.
A criança terá tempo mais tarde de se sujeitar às necessi­
dades da vida!...
— Não se trata disso, ou pelo menos isso não é mais do
que uma justificação menor de práticas sobre as quais você
próprio tem inconscientemente algumas dúvidas. Se o tra­
balho não é talvez mais do que constrangimento, por mais
que vocês façam não conseguirão fazer amá-lo. Você sabe
a ineficácia quase total das palavras com as crianças pequenas.
É imoral fazer-lhes discursos sobre a nobreza e a dignidade
do trabalho, no próprio momento em que se substitui esse
trabalho por processos edulcorados para atenuar o rigor da
obrigação a que vocês estão reduzidos. Mas as crianças não
são idiotas... Elas não gostarão do trabalho!
Recoloquemos ousadamente o trabalho no centro da
actividade e do devir humanos. Isso é possível, como já lho
mostrei, se nos orientarmos, ainda que sem obter um êxito
de 100 %, para o trabalho-jogo recolocado no seu quadro
familiar e social, que será em si mesmo, simultaneamente,
aprendizagem e cultura.

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Eu sei... Nós esbarramos aqui com o egoísmo conser­
vador dos homens que procuram sempre as linhas de menor
resistência porque estão prematuramente gastos e envelhe­
cidos e porque lhes incomoda o ascendente vigor explosivo
da juventude. Teremos que substituir as suas palavras menti­
rosas pelo dinamismo das realidades profundas que reencon­
traremos na nossa lealdade e no nosso bom senso. Alcança­
remos assim as verdadeiras raízes que alimentarão eficaz­
mente todo o nosso ensino.
— Admiro a solidez da sua argumentação, senhor Ma­
thieu. Eu compreenderia a precedência do trabalho; eu admi­
tiria que o jogo não devesse ser mais do que uma função
acessória e correctiva. Mas domina-me esta objecção: como
acontece então que todas as crianças, em todos os tempos
e lugares, brinquem com tanto afinco?
— Porque, por toda a parte e sempre, as crianças são
consideradas como intrusas num mundo que não é feito
para elas, que não está portanto à sua medida, e que se
não move ao seu ritmo. Elas são como gatos —e estes
existem — que crescem em apartamentos isolados do mundo
onde nunca vêem nem ratos, nem pássaros, nem borboletas,
nem insectos. Eles têm no entanto energias para gastar,
músculos que têm necessidade de funcionar, garras que que­
rem brincar, porque tudo isso está na sua natureza, como
o comer e o dormir. Produz-se então uma adaptação parti­
cular a esse meio neutro e artificial. Eles gastarão a sua
actividade brincando com rolhas, mordiscando o couro dos
sapatos, perseguindo um bocado de lã que voa e desliza
como uma coisa viva. Procuramos o objectivo desse exercício-
-jogo: falta aí o objectivo natural do esforço motivado pelo
rato que se espreita, que sai finalmente, que se agarra enter­
rando as garras na sua carne quente. Mas na falta desse
objectivo, o gato nem por isso deixa de sentir uma poderosa
satisfação em fazer funcionar os seus músculos e as suas
garras, em esboçar os gestos instintivos que estão inscritos
na contextura da sua constituição de gato.
O mesmo acontece com a criança: se a vida à sua
volta, se as exigências sociais, a incúria e o egoísmo dos
adultos, não lhe permitem entregar-se plenamente a esse

20
trabalho-jogo que lhe é essencial, nem por isso ela deixa
de ter que despender uma actividade exigente e imperativa,
que pode ser comprimida por um instante —e veremos
o que daí decorre— mas que deve explodir, como a água
que reflui antes de encontrar uma saída possível para a sua
torrente reprimida.
É porque o adulto, que perdeu a sua necessidade de acti­
vidade. não sabe já considerá-la no seu valor, que ele des­
conhece tão totalmente os motivos por assim dizer orgânicos
de jogos cuja génese e explicação em vão procura. Porque
os seus músculos envelhecidos perderam a flexibilidade,
porque as suas reacções se tomaram fracas e lentas, ele
pergunta-se ingenuamente qual poderá ser a força que leva
assim a criança a brincar obstinadamente em vez de des­
cansar. Mas se nos condenassem a permanecer imóveis e
deitados durante toda uma semana, não aspiraríamos nós,
com todo o nosso ser. a levantar-nos a todo o custo para
ir caminhar, não importa para onde, qualquer que fosse
o objectivo, e mesmo sem objectivo, desde que se caminhasse?
A criança tem necessidade de gastar a sua actividade. mesmo
sem objectivo. É preciso que ela a gaste.
E, tal como o jovem gato se orienta naturalmente para
os gestos que se lhe tornaram específicos por uma lenta
adaptação racial, pela hereditariedade, a criança tem ten­
dência para executar espontaneamente os movimentos e os
gestos que correspondem ao funcionamento normal dos seus
músculos, tal como decorre da sua compleição natural.
Na escolha desses gestos, a criança é directamente influen­
ciada pelo espectáculo da actividade adulta...
— Essa é em suma a teoria relativamente recente que
pretende que os jogos das crianças se inscrevam no quadro
dum desenvolvimento que reproduziria, nas suas etapas,
a lenta evolução da humanidade ao longo dos séculos.
— Aí temos grandes palavras e teorias bastante pre-
tenciosas para justificar uma coisa tão simples!
Essa criança que não pode trabalhar tal como sente neces­
sidade de o fazer, e que no entanto tem de gastar a sua
actividade, é necessário, praticamente, que ela faça alguma
coisa; não vai entregar-se a gestos anárquicos como o fazem

21
certos anormais que não conseguem equilibrar a sua activi­
dade... Também não se lhe deve pedir que invente total­
mente as normas do seu trabalho, quando o próprio adulto
não é capaz de sair da rotina, e curvar-se ao esforço de
adaptação exigido por certas novidades. A criança não tem
portanto escolha. De resto ela não pensa muito em escolher:
ela tem no corpo, no funcionamento dos seus músculos,
nos traços misteriosos do seu subconsciente, como que uma
matriz instintiva das actividades que se lhe imporão. Ao exa­
minar esse funcionamento dos músculos, a finalidade subcons­
ciente do seu desencadeamento, as necessidades habituais e
naturais dos filhos do homem, chegaríamos a uma com­
preensão muito mais segura e mais fecunda da actividade
lúcida do que pelas sábias teorias, escoradas por frágeis
hipóteses. Já não se trata aqui de hipóteses, mas de realidades.
— E seria então sem dúvida porque tocamos ao mesmo
tempo o universal destino humano e as longínquas reper­
cussões duma hereditariedade inscrita nas reacções naturais
dos indivíduos, que os mesmos jogos se encontram, com
apenas algumas variantes, em todas as partes do mundo, que
eles desafiam o tempo e sobrevivem, para além dos séculos,
em formas misteriosas idênticas.
— Estou finalmente satisfeito comigo pois que você me
compreendeu...
Sim, é esse o motivo por que uma criança que não
pode entregar-se a um trabalho-jogo, que não pode nem
construir a sério, nem ceifar um trigo verdadeiro, nem guar­
dar um rebanho vivo, nem seguir a água rumorejante ou
deslumbrar-se no domínio mágico do fogo, aí está o motivo
por que essa criança, por toda a parte e sempre, procura
instintivamente, e encontra, actividades que, na origem,
possuem os elementos essenciais desses trabalhos específicos,
mas que são como que uma maravilhosa contrafacção,
adaptada à suas necessidades, ao seu espírito, ao seu ritmo
de vida. E a imitação é tão bem feita, e tão total por
vezes, que nós próprios não reconhecemos já a imagem da
nossa própria actividade e chamamos a esse espantoso
sucesso: uma brincadeira!

22
Mas temos aí, ao mesmo tempo, a explicação simples da
seriedade com que as crianças brincam. Nós dizemos: essas
brincadeiras não têm objectivo. Mas elas têm o mesmo
objectivo que o trabalho, embora subconsciente. O gatinho
que brinca com uma folha ruidosa faz os gestos necessários
com tanta seriedade e aplicação como se essa folha fosse
um autêntico rato. Também a criança, que vive tão instin­
tivamente, executa os seus gestos com a mesma seriedade
que atribuiria a um trabalho que respondesse às suas necessi­
dades; só que ela não tem consciência desse parentesco.
A ilusão é completa, e só nós estaríamos em condições de
lhe isolar os elementos. Trata-se duma espécie de segunda
vida que prossegue no domínio da imaginação e do sonho,
mas da qual assinalámos as relações possíveis com a activi-
dade consciente e a utilização social.
Vejamos com efeito as crianças brincar: vemos que elas
estão totalmente entregues ao seu trabalho, num mundo à
parte, onde finalmente vivem segundo as suas necessidades
próprias e ao seu ritmo... Intervenham os adultos, e o
encanto será quebrado.
Não lhe parece que desobstruímos um tanto a questão?
Resta-nos provar o nosso raciocínio e ver, aplicando-o aos
diferentes jogos que conhecemos, se a conjunção trabalho-
-jogo é justificada, e se podemos tirar daí, naquilo que nos
diz respeito, algum ensinamento.

23
28. OS JOGOS-TRABALHO

OS JOGOS-TRABALHOS RESPONDEM
ÀS GRANDES NECESSIDADES ORGÂNICAS,
FUNCIONAIS, SOCIAIS E VITAIS DAS
CRIANÇAS. EIS ALGUNS QUE SATISFAZEM
A NECESSIDADE GERAL E INATA
DE CONSERVAR A VIDA

— Ah, não, senhor Mathieu, não vamos parar assim no


meio duma explicação que nos apaixona... E está, um tempo
tão suave; há uma tal calma à nossa volta...
— A noite vem avançando, sabe. Mas está bem. Amanhã
farei uma sesta um pouco mais prolongada. O perigo é
que me venham chamar para alguma visita às aldeias vizi­
nhas e que eu tenha que partir montado no meu burro cujo
balancear aumenta ainda mais o sono. Mas espero acordar
muito antes de cair... E o meu burro não é um automóvel.
Tem a sua inteligência. Não precisa da minha solicitude
para me conduzir. Assim, continuemos a procurar juntos,
se assim o quer.
Temos portanto que ver se a nossa concepção do tra­
balho-jogo é um quadro no qual poderíamos fazer entrar,
sem escamoteamento intelectual, os jogos das nossas crianças.
Antes de mais, quais são esses jogos?
Não pretendo entregar-me aqui a um inquérito completo.
Dou-lhe apenas a minha opinião segundo as minhas recorda­
ções principalmente, mas também segundo as minhas obser­
vações.
Seria aliás necessário perguntarmo-nos previamente quais
são essas necessidades essenciais que a criança deve satis­
fazer. Se sabemos que o gatinho está destinado a apanhar
ratos, saberemos de antemão quais os jogos que, na falta
da sua ocupação específica, lhe são particulares. E não nos
enganamos. Vejamos se poderíamos ter o mesmo sucesso no
respeitante às crianças. Em minha opinião, as crianças são

24
levadas aos seus trabalhos-jogos pelas mesmas necessidades
e as mesmas tendências que justificam o trabalho adulto. Falo
não do trabalho forçado mas do trabalho humano tal
como nós camponeses o praticamos ainda.
Poderíamos reduzir todas essas necessidades à única
necessidade central que, naturalmente, deitou múltiplos
ramos, cada vez mais numerosos e diferenciados, cada vez
menos reconhecíveis à medida que se afastam do tronco e
que se complicam, em consequência daquilo a que chamamos
civilização, as relações entre indivíduos primeiro, as relações
entre grupos depois. Trata-se da necessidade universal de
conservar a vida, de a tornar tão poderosa quanto possível,
de a transmitir para a continuar.
Conservar a vida implica por um lado a necessidade
de se alimentar. Donde os gestos do trepador, do colhedor,
do caçador, do pescador, e também do criador de gado: corri­
das, saltos, luta, uso da pedra, do pau, da massa, das lianas e
das cordas; os gestos do indivíduo que deve defender-se con­
tra os animais: instinto do abrigo, naquilo que ele tem por
vezes também de mágico, procura das grutas, dos esconde­
rijos, construções vedadas e fechadas, pontes; enfim a luta
contra os indivíduos que nos vêm arrebatar a comida, ou
quando temos que atacá-los para lha arrebatar.
A necessidade de tornar a vida tão poderosa quanto
possível leva à integração no grupo social que se aglomera,
se solidifica, para lutar, defender-se, atacar, perpetuar-se
colectivamente, e reagir também colectivamente contra as
ameaças permanentes, e muitas vezes misteriosas, dos ele­
mentos.
A necessidade enfim de transmitir a vida e de a con­
tinuar está na origem do instinto poderoso da maternidade,
do instinto mais difuso da paternidade, da vida e da evolução
da família.
Aí temos a trama sobre a qual a criança, repelida pelo
adulto, é constrangida a apoiar instintivamente o seu próprio
mundo, que responderá melhor que o dos homens às suas
possibilidades e às suas necessidades. E se você se espanta
porque no século do automóvel e do avião, a criança se
obstina em brincar tão demoradamente às escondidas, eu

25
responderei que se a criança é particularmente atraída pelas
máquinas, como de resto por qualquer novidade, no entanto
não realizou em si a filiação da ciência moderna nas suas
necessidades funcionais. Ela regressa necessariamente, empiri­
camente, às formas de actividade que estão na sua natureza,
que estão inscritas nos seus músculos, no seu instinto, no
seu comportamento e no seu pensamento. A natureza humana
é como um solo que só se fertiliza muito lentamente-, os
regos nivelam-se todos os anos sob o efeito dos elementos
e só a longo prazo dão aos campos o seu aspecto e a sua
personalidade. A novidade, se bem que influencie imediata­
mente, à superfície, a vida dos indivíduos, é muito mais
lenta a penetrar-lhes na própria natureza. O passado revive
obstinadamente em nós, mau grado os progressos. Não nos
espantemos pelo facto dele reviver tão poderosamente na
criança.
Conhecendo essa trama, ser-nos-á possível distinguir
agora quais são os jogos que, pela sua forma, pela sua
profundidade, pela sua subconsciente inspiração não são
efectivamente mais do que reminiscências mais ou menos
atrasadas dum trabalho do qual têm todas as características,
e a que nós chamaremos por consequência jogo-trabalho.
Esse jogo-trabalho satisfaz as necessidades primordiais
dos indivíduos; ele liberta e canaliza a energia fisiológica e
o potencial físico que procuram naturalmente um emprego;
ele tem um objectivo subconsciente: assegurar a vida mais
completa possível, defender e perpetuar essa vida; ele oferece
enfim uma extraordinária amplitude de sensações. A sua
característica, com efeito, não é de modo nenhum a alegria,
mas o esforço e o trabalho, que são acompanhados de
fadiga, de receios, de medo, de surpresa, de descoberta e
duma preciosa experiência. Pela sua própria origem, ele per­
manece quase sempre colectivo; traduz sobretudo essa exas­
peração congénita da necessidade de poder de que já falámos.
Num mundo que não está concebido nem preparado em
função da juventude, o jogo-trabalho é o elemento consti­
tutivo da organização empírica do mundo infantil, organi­
zação na qual a invenção tem apenas um lugar reduzido,
achando a criança muito mais cómodo, tal como de resto o

26
adulto, utilizar da melhor maneira moldes decerto imper­
feitos, mas pelo menos comprovados e cujo uso responde
às necessidades profundas do momento.
E veremos mais tarde, quando falarmos das possibili­
dades de evolução dos jogos, como é delicado atingir essa
perfeição de adaptação do jogo-trabalho, justamente porque
se considera apenas a noção de jogo, sem pensar que ela
está tão intimamente ligada à noção de trabalho. Mau grado
toda a vossa engenhosidade, a criança regressa, logo que o
possa, aos seus jogos favoritos, tão simples, aparentemente
tão ultrapassados e cuja espantosa superioridade vocês em
vão procuram. Como os aldeãos que, transplantados para a
cidade, podem disfrutar ali das distrações mais modernas e
aparentemente mais aperfeiçoadas, e que, regressando à
aldeia, retomados pela atmosfera, não encontram nada de
mais atraente do que um pacífico jogo de bolas, uma farân­
dola, ou o antigo jogo das prendas durante os serões de
inverno.
— Acho a sua observação muito pertinente! Muitas vezes
tenho feito a mim próprio a pergunta: como é possível que,
numa época em que as lojas regurgitam de brinquedos, qual
deles o mais engenhoso, e aparentemente, segundo nós, tão
interessantes para os nossos filhos, vejamos as crianças des­
prezarem essas novidade, desde que estejam livres, para se
entregarem a esses mesmos jogos que nos apaixonaram no
tempo em que não grassava ainda esta super-abundância
comercial? Por que é que todos os educadores que se ocupam
da infância nos asilos, nas diversas associações e nas escolas,
fracassam tão totalmente na sua preocupação de renovação
do jogos, impotentes como são para destronar o atractivo
soberano dos jogos tradicionais?
Quais seriam então, em seu entender, os jogos essen­
ciais que poderiam merecer esse nome, talvez justo, em
todo o caso sugestivo, de jogo-trabalho?
— Não temos mais que retomar a nossa lista de gestos
necessários, ancestralmente, para a satisfação das grandes
necessidades que condicionam a conservação da vida, o seu
desenvolvimento com o máximo de poder e a sua perpe­
tuação. Apesar duma lenta e necessária evolução que mascara

27
por vezes o sentido inicial dos jogos, verá que reencontra­
remos sempre o nosso fio de Ariane.

29. OS JOGOS QUE SATISFAZEM A NECESSIDADE


GERAL E INATA DE CONQUISTAR A VIDA

— Esses jogos correspondem aos gestos do trepador,


do colhedor, do caçador, do pescador, do criador de gado,
em busca do alimento necessário à vida.

1. A corrida; o salto, com as suas variantes, como o


salto ao eixo; a luta, sob todas as suas formas; os diversos
usos da pedra e do pau, que deram, segundo os países:

o jogo da malha;
o jogo de bolas, com a sua redução ao jogo de berlindes;
o chinquilho;
os diversos jogos de bolas e de pelotas;
o críquete e outros jogos, que se praticam com o auxílio
de «sticks».

O uso das lianas e das cordas, para agarrar, dominar,


conduzir a presa ou os inimigos, só acidentalmente pode
ser praticado tal qual, em consequência da dificuldade para
a criança de conseguir os elos necessários. A criança, cuja
imaginação é tão poderosa, substituiu esses elos efectivos pela
cadeia humana, ou pela figuração mágica da corda e da
cadeia: linha de separação traçada no solo, círculo, ou por
vezes simples gesto da criança dando ela própria a volta à
sua vítima simulando o enrolar da corda.
Os jogos desta categoria são múltiplos e apresentam,
segundo os meios, espantosas variantes. Apresento-lhe algu­
mas delas sem pretender esgotar a sua lista, longe disso. Não
é esse de resto o meu papel. Se eu pudesse desobstruir um
pouco o terreno, os investigadores, os coleccionadores pode­

28
riam depois entregar-se com mais segurança e método às
suas investigações especializadas. Trata-se principalmente de
um quadro que outros guarnecerão se o puderem.

d) Há antes de mais, nesta categoria, a abundante


série dos jogos de esconder ou «de agarrar», que são talvez
os mais essenciais na actividade espontânea das crianças:

— Jogo de agarrar simples (sobretudo nos muito peque­


ninos). Logo que o perseguido é agarrado, o jogo inverte-se
e o perseguido torna-se perseguidor, e assim sucessivamente.
— Jogo de esconder simples: aquele que é agarrado fica
fora do jogo.
— Jogo de agarrar no qual aquele que é apanhado é
morto: gesto de enterrar uma faca, gritos do moribundo,
gesto por vezes de deitar e de enterrar.
— Jogo de agarrar no qual aquele que é apanhado é
amarrado: ora efectivamente, ainda que a corda seja apenas
um cordel inconsistente, ou na falta disso ficticiamente,
sendo a realidade substituída pelo gesto imaginado com o
mesmo sucesso.
— Jogo de agarrar no qual aquele que é apanhado é
enclausurado: o perseguidor faz de cada vez o gesto de
fechar à chave: trr..., trr...
— Jogo de agarrar no qual os perseguidores vão for­
mando a cadeia: os perseguidos juntam-se a esta cadeia à
medida que são apanhados. Um dos jogos a que brincávamos
de preferência à noitinha chamava-se precisamente «Polícias e
ladrões»!1 Aqueles que eram agarrados pelo perseguidor
iam colocar-se em cadeia a partir duma porta ou dum arco.
Se alguém tocava no último da cadeia, todos os prisioneiros
libertos tentavam escapar-se.

1 Jogo denominado no original francês por «clavi»,


expressão latina que originou a palavra «chave». N. T.

29
b) Na maioria dos jogos intervém com efeito a noção
de prisioneiros e de libertação, que mergulha certamente
as suas raízes, ancestralmente, nas tentativas de libertação
dos vencidos. As variantes são ainda múltiplas:
— Quando o perseguidor toca no perseguido este está
simplesmente fora do jogo;
ou deve imobilizar-se;
ou juntar-se ao grupo de prisioneiros que. em grupo ou
em cadeia, esperam a libertação.
— Mas os perseguidos protegem-se muitas vezes a si
próprios com um gesto que tem toda a aparência dum gesto
mágico, e que marca a chegada ao abrigo, à gruta, ao lugar
seguro.
São os diversos jogos «de tocar». Basta que o perse­
guido toque num poste, ou numa porta por exemplo, para
que esteja salvo; ou por vezes basta que faça um sinal
convencionado, por exemplo levantar os dedos e gritar, ou
que pronuncie simplesmente a palavra convencionada, oue
o toma como que invulnerável, «tabu», como hoje se diz
nos livros.
O que nós brincámos a esses jogos de tocar nas nossas
pequenas ruelas inclinadas da aldeia! Que correria louca!
Que gastos de astúcia e de energia para escapar ao per­
seguidor! E que alegria a da libertação quando conseguíamos
tocar na famosa porta! Jogo tão simples, e que no entanto
nos apaixonava durante dias e anos, sempre o mesmo, e nos
mesmos lugares!...

c) Os jogos de agarrar à noite, sendo a noite produzida


artificialmente com a venda colocada nos olhos do persegui­
dor. São os jogos da cabra-cega.

d) O saltar à corda, se bem que não pareça, poderia


ligar-se a este tipo de jogo. A corda é aqui uma espécie
de obstáculo a atravessar, de prova de força e de habilidade
para atingir a libertação.

30
2. Vêm em seguida os jogos nos quais não se trata
já da luta ou da perseguição do homem, mas onde são
animais figurados a serem perseguidos, encerrados, amarra­
dos ou libertos.

a) Há jogos simples em que o jogador se coloca ver­


dadeiramente na pele do animal até ao ponto de imitá-lo
no andar, nos costumes e nos gritos:
— Jogos tão sugestivos das crianças pequenas que tão
facilmente se identificam com o gato ou com o cão, para
caminharem de gatas debaixo da mesa, mordiscar ou arra­
nhar, comer directamente no prato, até a entrar por vezes na
casota. Mas devemos ver nisso antes uma simples imitação
do que o embrião de uma organização no seu sentido for­
mativo.
— Nós temos dois jogos em particular que entram nesta
categoria:
Lebre-Lebre: são lebres que, ao cair da noite, vêm
comer o trigo do proprietário. Uma linha riscada no chão
marca o limite do campo. O proprietário grita às lebres que
estão na sua propriedade:
— Lebre-lebre, vais-te embora do meu campo?
— Nhé-nhé-nhé! respondem as lebres...
— Se tu não foges vou-te matar!
E o proprietário persegue as lebres no seu campo, mas
a pé-coxinho. Se toca no chão com o outro pé, são as lebres
que, batendo com os bonés, o fazem voltar para casa.
Às lebres tocadas são levadas como prisioneiras.
— Aos ninhos: Ah, que belo jogo! Os pássaros, com
ervas, feno ou musgo, fazem ninhos verdadeiros, que escon­
dem nos buracos dos muros ou entre os ramos. A águia
persegue-os para se apoderar dos seus pequenos. De cada
vez que a águia se aproxima do ninho, a mãe agita-se febril­
mente; quando o seu ninho é descoberto e apanhado, ela
lança gritos lamentosos, semelhantes, ao ponto de se con­
fundirem com eles, aos gritos da infeliz mãe-pássaro.

31
b) Na maioria dos jogos em que se trata de animais
perseguidos, os actos e os gestos de animais têm sido substi­
tuídos por práticas ou fórmulas simbólicas convencionadas.
Por vezes não resta mais do que o nome do jogo para
recordar a sua origem e o seu verdadeiro sentido.
A imitação integral dos animais não é, com efeito,
sempre possível. As crianças não podem, como os animais,
no quadro forçosamente limitado do jogo, fugir para os
montes, subir às árvores ou voar. Intervêm então as con­
venções, algumas das quais não deixam de ter uma certa
correspondência com os totens dos selvagens, talvez com
a única diferença de que se não deveria procurar nesses
símbolos a mínima reminiscência de prática religiosa. Trata-se
de gestos e de fórmulas mágicas, usadas para substituir reali­
dades inacessíveis.
— Ao gato empoleirado: desde que o gato esteja em
cima dum pedaço de madeira ou duma pedra, que figuram
a árvore ou a rocha, está a salvo do perseguidor.
— Os diversos jogos de pé-coxinho, etc.
Devemos acrescentar a estes jogos aqueles, numerosos,
que simbolizam a dominação, pelo homem, dos animais que
lhe eram familiares:
— Os jogos em que há crianças cavaleiros. Os jogadores
saltam uns sobre os outros, dando por vezes verdadeiros
pontapés e socos na sua montada, que respinga para os
deitar abaixo:
— o urso
— o jogo do alho
— o eixo
— luta de galos, etc.
— Estes jogos estão muitas vezes associados ao lança­
mento duma bola, que pode recordar certos exercícios das
antigas caçadas a cavalo:
— Jogo de bola às cavalitas, etc.
Vê como se agrupam maravilhosamente, com a sua
natural explicação, os diversos jogos que podemos conhecer,
como os filhos duma mesma família. Qualquer um pode, a
partir daqui, fazer entrar neste quadro os jogos reconhecidos

32
como sendo desta família. Não é também de espantar que
esses jogos, quer eles sejam praticados na França ou na China,
tirem dessa origem comum, mau grado as variantes decorren­
tes da diversidade dos meios e dos costumes, um certo ar
de parentesco, de universalidade, que muito tem impressio­
nado os investigadores.

30. E AGORA ALGUNS JOGOS

QUE CORRESPONDEM A NECESSIDADE


PARA O INDIVÍDUO DE CONSERVAR A
VIDA E DE A TORNAR O MAIS
PODEROSA POSSÍVEL

— Vimos já o que diz respeito à conquista da vida.


É agora necessário conservar essa vida e torná-la o mais
poderosa possível.
Pela corrida, a força, a astúcia, a habilidade, o homem
pode conquistar o seu alimento. Trata-se então de defender
essas conquistas, sendo bem entendido que a nossa classifi­
cação permanece um tanto arbitrária, porque os jogos-tra­
balhos que visam conquistar podem igualmente convir para
a defesa ou para o aumento de poder dos indivíduos.
É preciso ver aqui a trama geral que anima as profundezas
do jogo e não os quadros mais ou menos cómodos que
somos obrigados a prever para as nossas explicações.

1. O abrigo

Para comer, para repousar, para passar a noite, e pre­


servar-se do frio, o homem procura naturalmente o abrigo,
seja este uma gruta, uma cubata ou uma casa.
3
33
Daí nos vem a atracção misteriosa pelas rochas e pelas
grutas e também o instinto tão marcado em cada um de nós
pela construção, que é de certo modo o equivalente ao
instinto do pássaro para a construção do seu ninho.
Construir uma cabana com três pedras e algumas tábuas,
edificar cubatas de ramos, ou melhor uma verdadeira cabana
com grossos muros de pedra, e palha ou tábuas sobre o tecto,
uma cabana que seja como uma casa, com uma porta ou
uma barreira para fechar, é uma das ocupações mais atraen­
tes para as crianças. O escutismo soube explorar essa
necessidade, que se encontra aliás igualmente poderosa nos
adultos, pois que o homem é essencialmente um construtor.
Dir-se-á: não se trata aí dum jogo mas dum trabalho.
Compreender-se-á por isso melhor o alcance das nossas desig­
nações de trabalho-jogo e de jogo-trabalho, e as relações
de natureza que existem efectivamente entre trabalho e jogo.
De resto, sem contar todos os jogos escutistas que
exploram essa necessidade de abrigo, temos bastantes jogos
que se lhe relacionam:
— Os diversos jogos de construção, que poderiam ser
mais educativos se se compreendesse o sentido íntimo do
interesse que eles podem e devem despertar nas crianças.
— Certos jogos de escondidas: a criança escondida na
erva, sob ramos ou sob tábuas, sente um pouco esse gozo
que nos dá o sentirmo-nos ao abrigo numa gruta ou numa
cabana.
— Os jogos em que a casa é figurada por uma linha
traçada no chão, representando muros e porta, como um
plano rudimentar. Diz-se: Trr...! Trr...! e a porta fecha-se
à chave.
Esse instinto da necessidade de segurança num abrigo
reencontrar-se-á de resto muitas vezes, sob diversas formas,
em todos os jogos inspirados por pai, mãe e família.

2. A luta de ataque e de defesa


Não basta obter alimento e abrigar-se depois de haver
alimentado o corpo. É preciso defender-se contra os outros
indivíduos que nos querem roubar o alimento e o abrigo, ou

34
então, inversamente, atacá-los para lhos roubar, a fim de
aumentar o poder próprio.
Dir-se-ia que as crianças muito pequenas não têm cons­
ciência da inevitabilidade dessa luta, como se conservassem
uma longínqua e obscura recordação das suas passividades
nos choques de que elas não eram frequentemente mais do que
vítimas. Daí resulta que os jogos de que vamos falar são pra­
ticados quase exclusivamente a partir dos oito ou dez anos.
Uma outra característica desses jogos, é que raramente
são individuais. Na origem, eram grupos, famílias, clãs, que
se defrontavam. Nos jogos que constituem a sua figuração, são
partidos que entram em luta ou pelo menos em competição.
O carácter já socializado desses jogos explica que eles só
sejam praticados a partir duma certa idade, para apaixona­
rem, para além da infância, a adolescência e por vezes
mesmo ainda a idade madura.
A pequena guerra é a expressão natural dessa neces­
sidade.
Inútil é dizer até que ponto esse jogo, tristemente funda­
mentado nos hábitos ancestrais, sempre foi, e ai de nós!,
continua a sê-lo mais do que nunca, actual e se encon­
trou por vezes, por esse motivo, mais influenciado do que
outros pela evolução das condições de luta contemporâneas.
Não chamo pequena guerra à fanfarronada do pequeno
burguês a quem ofereceram uniforme e panóplia, ou, nos
nossos dias, metralhadoras e tanques. Aí trata-se já duma
perversão perigosa do instinto de defesa dos indivíduos, e
onde dominam a soberba, a falsa coragem, as palavras de
ódio, o penacho, escondendo mal, sob palavras e atitudes,
o medo dos verdadeiros perigos e das condições impiedosas
da luta.
A guerra à qual jogam espontaneamente e com uma
espécie de raiva todas as crianças, é uma verdadeira paródia
de lutas reais no decorrer das quais se defrontaram, e se
defrontam, tribos, províncias, regiões e povos.
Há a parada que precede o exercício preliminar, com
formaturas, marcha, obediência pontual ao comando do chefe.

35
Mas vem em seguida a verdadeira luta com:
Armas: varas, mocas, flechas, laços, espingarda de
madeira, pedras, ou os seus símbolos: batatas, tomates,
torrões, bolas de neve.
A defesa: em fortins, em velhas casas, a dissimulação
atrás dos montículos, dos montes de feno, dos bosquezinhos,
por vezes mesmo em trincheiras autênticas; a camuflagem,
tão apreciada pelos índios, com ervas e ramos.
O ataque: dissimulando-se com máscaras, com disfarces,
pinturas no rosto — ou o ataque com a ajuda da água e
até do fogo.
Há mortos simulados, que devem permanecer estendidos,
por vezes feridos verdadeiros, prisioneiros envergonhados que
são conduzidos.
Conhece talvez essa história das Guerras dos Botões, de
Louis Pergaud, que tive oportunidade de ler. Assiste-se a
verdadeiras cenas épicas de guerra miniatura. Os vencedores
cortam os botões do vestuário dos vencidos que são cons­
trangidos a regressar à aldeia de cabeça baixa, segurando
lamentavelmente os calções, e reduzidos a enfrentar a troça
das pessoas e as reprimendas merecidas dos pais, mas tam­
bém bem decididos a efectuar uma próxima e estrondosa
vingança.
Aliás, essa pequena guerra pratica-se hoje mais nas
cidades onde as crianças vagueiam, desocupadas, nos terre­
nos vagos, do que nas nossas aldeias, onde elas têm oportu­
nidade de se entregar a outras actividades que são para elas
jogos-trabalhos apaixonantes.
— O que acaba de dizer desperta em mim, diz o senhor
Long, recordações divertidas.
Vivi uma parte da minha infância em Toulon, e o
jogo que preferia era com efeito a pequena guerra.
Nós tínhamos a vantagem, no bairro em que eu habi­
tava, de poder dispor nas proximidades dum verdadeiro
campo de manobras onde nos treinávamos seriamente.
Aí tínhamos cavado trincheiras, organizado verdadeiros for­
tins e muitas outras armadilhas.

36
Tínhamo-nos dividido em grupos com chefes. Cada qual
tinha o seu lugar, correspondente às suas capacidades: quem
corria depressa era colocado no grupo encarregado de cercar
e perseguir o inimigo quando este estava em debandada.
Aqueles que eram, hábeis no lançamento de pedras tinham
igualmente a sua tarefa bem definida.
Por isso o nosso quartel conquistava frequentemente a
vitória...
Essas guerras tinha na maior parte das vezes a sua
origem em diferendos que sobrevinham à recreação entre
rapazes que não moravam no mesmo bairro. As batalhas
tinham lugar num pequeno bosque a que chamávamos
Forte-Napoleão.
Nesse bosque, estávamos verdadeiramente em casa; era
o nosso reino. O próprio guarda, que era um homem idoso,
não podia impedir-nos de fazermos ali aquilo que queríamos.
Esse bosque, conhecíamo-lo nós! Cada árvore nos era
familiar, porque tínhamos subido a todas elas. O mesmo
acontecia com as moitas mais cerradas através das quais
tínhamos arranjado passagens ocultas.
Batíamo-nos à pedrada, ao soco, com tudo quanto nos
caía nas mãos. E a luta prosseguia muitas vezes até à soleira
da porta daqueles que batiam em retirada.
Mas o mais terrível de tudo era ser feito prisioneiro.
Éramos mais selvagens do que os heróis de Pergaud.
Entregávamo-nos aos tratamentos clássicos, inatos nos fortes
que querem dominar, diminuir, ridicularizar, ferir ou des­
truir os seus semelhantes infelizes. Peigunto-me mesmo se
foram as crianças que, neste domínio, copiaram os adultos,
ou se não terão sido os adultos que muito simplesmente
continuaram na guerra as suas proezas de crianças.
Não, não é agradável ser feito prisioneiro. Começávamos
por aplicar uma boa sova ao vencido, e confiscávamos-lhe,
naturalmente, tudo quanto tinha nas algibeiras: berlindes,
botões, canetas, rebuçados. Depois amarrávamo-lo a uma
árvore, e ele ali ficava até que algum do seu grupo viesse
libertá-lo; mas era preciso, para isso, que nós tivéssemos
partido, ou que tivéssemos sido repelidos por um contra-
-ataque. Muitas vezes também, borrávamos a cara do prisio­

37
neiro com lama, e outras vezes mesmo com coisas mais sujas.
Acontecia também cavarmos um buraco no qual o enterráva­
mos até à cintura, depois amontoávamos a terra à volta e
deixávamo-lo ali.
Imagine em que estado voltávamos a casa, e as legítimas
reacções de nossos pais... O que não nos impedia de recome­
çarmos na primeira ocasião.
— Com efeito, senhor Long, basta ouvi-lo contar essa
recordação para adivinhar a paixão que você punha nesse...
Na verdade, como chamaríamos a essa actividade? Um jogo?
Mas então dever-se-ia também chamar jogo ao trágico desen­
rolar das guerras que nem sempre são mais cruéis. Suponho
efectivamente que havia na vossa guerra mais emoções e
rilhar de dentes do que prazer. Mas você encontrava nela,
em contrapartida... encontrava nela, c’os diabos, todas as
determinantes e os excitantes daquilo a que chamámos
trabalho-jogo. O seu exemplo é uma perfeita demonstração
da nossa teoria.
Essas lutas, é certo, como todos os jogos de equipa ou
de campos em geral, só se praticam com esse método, essa
disciplina, essa implacável tenacidade, entre crianças duma
certa idade, geralmente acima dos dez-doze anos. Os ado­
lescentes, em contrapartida, entregam-se-lhe com prazer. Elas
degeneram por vezes, de bairro para bairro, de aldeia para
aldeia, em lutas sérias, que satisfazem e alimentam ao mesmo
tempo os ódios tradicionais.
No inverno, as bolas de neve são armas de eleição que
dão a oportunidade de batalhas repetidas, mas em geral
mais anódinas.

3. Os simulacros de luta e de defesa

A própria violência da guerra miniatura é um elemento


com o qual as formas polidas das nossas civilizações se
acomodam mal. É preciso ter também em conta o facto de
que falta a certos indivíduos o espírito para enfrentarem

38
assim o risco e o sofrimento. Donde um certo número de
jogos que satisfazem essa necessidade de luta, tendo no
entanto formas menos rudes e mais atenuadas:
— O jogo da barra, que era outrora jogado pelos rapazes
crescidos ou pelos jovens, e que foi um tanto destronado
pelo desporto;
— A parada, com uniforme, espingardas, marcha caden­
ciada, que dá a ilusão da guerra miniatura;
— Os soldados de chumbo, que o jogador, qual um
deus da guerra, comanda, manobra, faz derrotar ou triunfar,
morrer ou abandonar a luta, à sua vontade, e sem nenhum
risco;
— Os jogos de damas, de xadrez, etc., ainda mais pací­
ficos pois que os combatentes são apenas representados por
peões que fazemos deslocar.
— O jogo do chinquilho.
— Certos jogos da bola, em que o jogador tocado é
considerado como morto.

4. Um jogo moderno

A maioria dos jogos de ataque e de luta de que aca­


bamos de falar têm a sua origem e a sua forma na profun­
didade dos tempos. A formidável transformação mecânica
do mundo parece não os haver afectado.
Existe pelo contrário um jogo muito comum que é uma
constante adaptação aos modos de vida contemporâneos:
quero falar do jogo dos polícias e ladrões, que não é muitas
vezes mais do que uma variante do jogo ordinário de perse­
guição e de escondidas com amordaçamento, simulacro de
espancamento, evasão e fuga. Ele adapta-se maravilhosamente
a todas as tendências, pois que pode comportar apenas um
polícia (com os mais pequenos), para se elevar até à orga­
nização autêntica duma pequena guerra, com campos, dis­
ciplina, espírito de equipa, etc.

39
5. O desporto moderno

Numerosos jogos de equipa modernos não são mais do


que variantes da pequena guerra e são destinados a satis­
fazer as mesmas tendências da infância e da juventude:
— futebol.
— rugby, etc.
O escutismo explorou exageradamente, em meu entender,
esse instinto de camuflagem, de perseguição, de aproximação,
de ataque, porque apenas viu o interesse suscitado por
essas actividades, sem sequer suspeitar da temível filiação
que nós tentamos estabalecer.

31. E FINALMENTE OS JOGOS

QUE RESPONDEM À NECESSIDADE TÃO


MISTERIOSAMENTE IMPERIOSA DE TRANSMITIR
A VIDA PARA ASSEGURAR A PERPETUIDADE
DA ESPÉCIE

— Passámos em revista rápida jogos decorrentes da


necessidade de conservar a vida e de a tomar o mais rica
e poderosa possível. Resta-nos ver aqueles que são baseados
na necessidade igualmente poderosa de transmitir a vida
para assegurar a perpetuidade da espécie.
Poquê essa necessidade? Nada sabemos disso. Ela faz
parte dos mistérios impenetráveis duma natureza que evolui,
não apenas no quadro acanhado do indivíduo, mas também
no vasto edifício da própria criação, no ciclo dinâmico dum
devir de que nós somos apenas um elemento infinitesimal,
grão de areia sobre o imenso areal. É uma necessidade que
se nos impõe como a necessidade de respirar e de comer,
e cuja insatisfação, se não provoca a morte imediata do

40
indivíduo, pode ter consequências mais graves ainda pois
que contribuiria para o desaparecimento da espécie.
Assim não falaremos estritamente do instinto de repro­
dução a fim de evitar qualquer mal entendido, mas de instinto
de transmissão da vida para assegurar a continuação da
espécie. Esta concepção lata engloba então, tal como para
os pássaros, não só o amor ou o acto de reprodução entre
indivíduos de sexos diferentes, mas também preparação do
ninho, incubação, cuidados dispensados aos filhos, educação,
quer dizer, iniciação aos comportamentos específicos pelos
quais eles satisfarão por sua vez o apelo da natureza e da
espécie, até que possam voar e encontrar sozinhos o seu
alimento, e satisfazer as suas necessidades vitais.
E vai ver que este esquema é com efeito susceptível de
permitir a determinação e a classificação de todos os jogos-
-trabalhos que com ele se relacionam.

1. A constituição do grupo pai-mãe deu o jogo tão


universalmente familiar às crianças de pai-mãe. A mãe fica
em casa e prepara o jantar; o pai vai trabalhar para os
campos ou guardar o gado, ou levar os cavalos ou conduzir
o camião. Este jogo pode jogar-se sem filhos, mas com­
porta-os na maior parte dos casos, e participa então na
seguinte série:

2. O nascimento, os cuidados e a educação dos filhos,


domínio mais especial das meninas, deu nascimento a todos
os jogos centrados nas bonecas.

d) Não será impossível mencionar qualquer jogo que


seja a transposição do mistério do nascimento, tal como o
concebe intuitivamente a criança; mas não o tenho de
momento na memória.
b) Os cuidados da primeira infância, o bébé no berço,
o biberão, os passeios, depois a vida de família: jantarinho,
trabalhos domésticos, festividades, têm um lugar prepon­
derante nesta categoria de jogos.

41
c) Os casamentos, que se celebram em geral com
grande aparato: coroa, grande cauda e cortejo.
d) As doenças das bonecas.
e) Os funerais acompanhados de cânticos, padres, flores;
desespero e lágrimas, cruzes e flores sobre os túmulos.
f) Finalmente jogos imitados da escola, com professor
ou professora, lições para recitar, punições e mesmo pancadas.

Há aqui um domínio imenso no quadro do qual gera­


ções e gerações de meninas, e também de rapazes, têm brin­
cado, brincam e brincarão durante tardes inteiras, sem nunca
se cansarem. E a prova de que eles recebem esse interesse
persistente do instinto de perpetuação da espécie, é que
esses jogos de bonecas não são de modo nenhum função
da própria boneca. Não é, como por vezes se tem julgado,
o objectivo que permite jogar, mas apenas a realização em
pensamentos, em actos, em palavras, dum invencível impulso
subconsciente. Diria ainda mais: a moda que tem tendência
para oferecer às crianças bonecas cada vez mais belas, cada
vez mais aperfeiçoadas, corre o risco de dar ao objecto a pri­
mazia sobre as necessidades instintivas, que são as anima­
doras soberanas do jogo. Resulta daí um desequilíbrio, um
desvio, que tornam o jogo mais convencional, menos pro­
fundo, menos sugestivo, menos directamente animado pelas
forças misteriosas que levam o indivíduo a satisfazer as
exigências da vida.
É esse o motivo por que, se eu tivesse que dar um
conselho aos fabricantes de bonecas, lhes diria: Sim, ponham
à venda belas bonecas que abrem e fecham os olhos, que
dizem papá-mamã, que viram a cabeça, que se inclinam e
que andam; enfeitem-nas de ricos adornos pensando que
têm que satisfazer a necessidade de beleza das crianças que
se extasiam diante das vossas montras, e também o orgulho
de pais para quem a riqueza e a estirpe se medem pela
opulência das bonecas que oferecem aos seus filhos. Mas
digam para vós mesmos que essas bonecas não são feitas para
o jogo corrente: elas ficam ajuizadamente deitadas no berço
ou na caixa como múmias delicadas que sofreriam ao serem
arrastadas e manipuladas. Elas são de certo modo o manjar

42
de luxo, antinatural e irracional. Mas deveis pensar também
nas verdadeiras bonecas de jogo que não devem ser ridículas
reduções para pobres dessas bonecas majestosas, mas objectos
que respondam plenamente aos fins de utilização que são
a sua razão de ser. Ora a criança nada tem a fazer de
certos aperfeiçoamentos técnicos e dos vossos adornos.
O bebé está nú e é a pequena mamã que o veste. O pen­
samento, a expressão, a própria palavra não devem ser
fixados artificialmente por vós num som ou numa atitude.
É a criança que, criadora e mágica, mãe que dá a vida,
animará de espiritualidade o esboço material.
Quando a mamã disser às suas amigas:
— Vejam o meu filho! Como é belo com os seus
grandes olhos negros!
Ou, noutras circunstâncias:
— Ele está hoje um pouco pálido, minha senhora;
digeriu mal, o meu querido bebé!
Mais vale, para o sucesso do jogo, que a visitante não
tenha o espectáculo duma figura rutilante com pobres olhos
azuis, mortos e entorpecidos.
Referindo-nos assim às razões profundas que suscitam
esse jogo da boneca, não achamos já de modo algum
paradoxal que a criança brinque muito melhor com uma velha
boneca desbotada, que já serviu a gerações de crianças, de
cabeça partida, de nariz gasto ou roído, de tez deslavada
e neutra, do que com as mais luxuosas bonecas comerciais.
De resto, simples intuição, ou observação justificada,
uma certa moda parece ter compreendido o alcance dessa
necessidade. Vendem-se agora bonecas excessivamente sim­
ples, de matéria plástica, ou de trapos cheios, sem articula­
ções, ou o que é melhor ainda, maleáveis.
Aquilo que o comércio actual poderia em contrapartida
oferecer eficazmente às crianças, são os acessórios dos jogos
de bonecas: colecções de pequenos retalhos de belos tecidos
de cores variadas e cintilantes, com os quais podem a seu
gosto vestir, despir, tornar a vestir, mudar a boneca... como
uma verdadeira mamã — berço, caminha, objectos domés­
ticos, etc.

43
Os rapazes, em geral, não gostam de brincar às bonecas.
É normal, pois que o trabalho a que este jogo corresponde
não está nem na sua natureza nem no seu papel habitual.
Em vez de nos espantarmos com isso, deveremos comover-nos
e preocupar-nos pelo contrário com os raros casos de rapazes
que, ou doentes, ou diminuídos, ou acidentalmente abstraídos
da virilidade ambiente, arranjam uma alma de rapariga que
é já a manifestação dum complexo cujas consequências não
poderiam ser subestimadas.
Em contrapartida, os rapazes prestam-se em geral mais
facilmente ao jogo de papá-mamã, no qual eles figuram quer
como o pai que vai trabalhar, alimenta e dirige a casa, quer
como o filho já crescido que regressa da escola e faz arreliar
a mãe. Este jogo pode de resto jogar-se em todas as ocasiões,
porque exige um número reduzido de atributos, substituindo
as próprias crianças as bonecas de certos jogos.
Estes jogos estão frequentemente ligados ao jantarinho,
porque a criança não compreende a família sem a cena do
jantar, tão apreciada como o próprio jogo da boneca, do
qual é por assim dizer um complemento. Também o mate­
rial indispensável é nulo ou quase. Não se julgue que a
criança não sabe brincar aos pais e mães ou aos jantarinhos
se não possuir uma bela cozinha miniatura, redução perfeita
da verdadeira cozinha das nossas casas, e um serviço de mesa
onde nada falta, com toalhas e guardanapos.
Reconheçamos que nas pobres habitações operárias das
cidades, é por vezes difícil figurar tudo isso quando apenas
se dispõe, em tudo e para tudo, de velhos jornais ou de folhas
sujas de cadernos escolares, o que carece verdadeiramente de
poesia. No campo isso é muito mais simples: as pedras são
tachos, bocadinhos de madeira são colheres e garfos com os
quais se come ruidosamente um caldo imaginário; as folhas
são os pratos e os guardanapos... E os assentos não faltam!
Supõe-se por vezes que o interesse das crianças pelo
jogo é função da perfeição do material que se põe à sua
disposição. Pelo contrário: a perfeição do material impõe
uma limitação arbitrária à imaginação da criança. Esta apenas
tem necessidade de espaço, da natureza se possível, com as
suas riquezas gratuitas e generosas, e sobretudo do «deixem-

44
-me em paz» longe dos adultos, onde ela pode criar à sua
vontade, e viver num mundo à sua medida cuja necessidade
funcional os mais velhos esqueceram já.
É com efeito um pouco por irrisão que damos a essas
preocupações a designação de lúdicas, quer dizer, segundo nós
actividades supérfluas, que são um luxo inútil, destinadas a
guarnecer e a ocupar os ócios da infância. Não nos viria
à ideia qualificar de jogo o trabalho obsidiante da mãe que
trata do seu bébé ou se ocupa do seu lar. E no entanto são
exactamente os mesmos motivos que determinam as activi­
dades lúdicas das crianças, as mesmas preocupações, os
mesmos cuidados, os mesmos prazeres, e também a mesma
seriedade. Só que as coisas se passam em dois meios dife­
rentes, um dos quais apenas nos parece pueril; e é tudo.
E se a criança cria assim o seu mundo à parte, com atri­
butos que ela imagina e que ama, é muito simplesmente por­
que, como já lhe disse, a isso é constrangida. Ela aspira natu­
ralmente a ter um bébé seu, que cuida e amima como o exige
a vida e como ela o tem visto fazer a seus pais, ou antes,
julgo eu também, tal como ela traz em si no subconsciente; ela
quereria ter o seu quarto, a sua casa, o seu lar, que orga­
nizaria à sua vontade, com um forno que ela própria acen­
deria, uma mesa que ela serviria.
Esse desejo não é na verdade tão disparatado como isso;
trazê-mo-lo em nós durante toda a vida, sem por vezes
podermos satisfazê-lo. Se não fossemos tão estranhamente
egoístas saberíamos fazer um esforço para permitir à criança
a realização do seu mundo, onde ela viveria, aliás sem corte
radical com a nossa vida, mas apenas numa melhor, mais
geral e mais tranquilizadora harmonia.
Veja agora o verdadeiro alcance do meu raciocínio e o
motivo por que julgo ter razão para chamar a tais jogos
jogos-trabalhos, para marcar bem os seus fundamentos e as
suas relações com a actividade adulta a que chamamos tra­
balho.
E isto é tão verdade que, se numa família compreensiva,
a criança vê ser-lhe confiada — com algumas limitações indis­
pensáveis — a responsabilidade por um bébé de carne e osso,
por uma casa, por um talher a colocar, por um forno a

45
acender, ela deixa de brincar às bonecas e às casinhas na
medida justamente em que esse trabalho corresponde às suas
necessidades.
O jogo-trabalho não seria pois mais do que um paliativo
instintivo para a impotência em que a criança se encontra
de satisfazer uma necessidade imperiosa. Na falta do verda­
deiro trabalho, do trabalho-jogo, a criança organiza um jogo-
-trabalho, que tem todas as características daquele, tendo no
entanto a menos essa espiritualidade superior que vem do
sentimento da utilidade social do trabalho, a qual eleva o
indivíduo à dignidade da sua eminente condição.
Será necessário ter em grande conta estas consi­
derações quando se organizar enfim verdadeiramente a vida
da escola: necessidade de trabalho-jogo da criança, e, na falta
deste, mas apenas na falta, jogo-trabalho com atributos ima­
ginados ou imitados das realizações adultas.
Sei que se deu um passo sério nesse sentido, particular­
mente nos jardins de infância, mas você compreende, pelas
minhas explicações, por que motivo considero errónea e
nociva essa preocupação demasiado exclusiva com um jogo
que não é mais do que um aspecto subsidiário da activi­
dade infantil. Não insisto mais neste ponto, pelo menos de
momento.
— Tem falado muito das raparigas... E então os ra­
pazes?
— Ê muito simples: basta-nos imaginar qual tem sido
o papel ancestral do homem na organização familiar para
apreender quais são as necessidades que o rapaz terá de
contentar com o seu jogo-trabalho, sempre na falta da acti­
vidade verdadeira dum trabalho-jogo.
O rapaz constrói, caça, pesca, eventualmente cava e
semeia, fornece a casa de aquecimento e de iluminação. Vimos
sob outras rubricas os jogos que se relacionam com estas
actividades.
Mas há uma outra ocupação, decerto profundamente
enraizada no lento processo da evolução humana, e que não
deixa por certo de ter relações estreitas com o instinto fami­
liar.

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3. Criação e domação, cuidados com os animais que
é preciso fazer nascer, domesticar, treinar, guiar e sujeitar.
O rapaz apaixona-se tanto por essa actividade como a
rapariga pela sua boneca. E vamos ver o paralelismo
impressionante destas duas actividades.
Na falta de verdadeira criação, o rapaz organizar-se-á
com os acessórios à sua disposição que serão animados e
personificados pela sua fértil imaginação. E, tal como a
rapariga relativamente à materialidade da sua boneca, ele não
é exigente: uma vassoura transforma-se numa montada ideal;
alguns ramos que se arrastam, que se domam, que se alinham,
que se recolhem na cavalariça, constituem elementos bastan­
tes para esses jogos, em ligação aliás com os diversos jogos
domésticos das raparigas.
A indústria oferece actualmente às crianças verdadeiros
estábulos e uma engenhosa variedade de veículos de todas
as espécies. Mas acontece com esses objectos o mesmo que
com as bonecas: os que merecem mais afeição passado o
momento de devota admiração no acto de compra, não são
os mais aperfeiçoados, aqueles que se assemelham ao ori­
ginal, até no som, e que limitam o uso subjectivo que a
criança deles deseja fazer. E é esse o motivo por que as
pessoas se têm por vezes espantado com essa ternura obs­
tinada de certas crianças pelo velho urso desbotado, de
focinho coçado e descolorido, cujo ventre perfurado deixa
adivinhar o algodão de que é cheio, ou esse cão de borracha
que já foi tão esticado e arrastado que nem sequer tem já
forma viva.
A criança é capaz de passar longas horas na companhia
desses animais imaginários que ela faz agir, trabalhar, gritar,
que ela domina e dirige à sua vontade, tal como o adulto no
meio dos seus animais verdadeiros. Com a mesma seriedade.
Porque se trata dum jogo-trabalho, que é a imagem espanto­
samente fiel do trabalho-jogo que a criança deseja e que o
adulto não a deixa praticar.
E do mesmo modo que a rapariguinha sente atenuar-se
ou por vezes desaparecer totalmente o seu desejo de brincar
às bonecas se tem a possibilidade de se ocupar efectivamente
dum bébé vivo, também essa necessidade de jogo com os

47
animais-brinquedos desaparece totalmente se o rapazito pode
ocupar-se de animais vivos. O amor do rapaz pelos animais
é o equivalente ao amor da rapariga pelos bébés, e tem a
mesma origem subconsciente. Donde a paixão das crianças
pelos gatos, os cães, os cordeiros, os cabritos, os pássaros, ou
mesmo por animais mais pequenos: caracóis, cigarras, besoiros.
— Trata-se com efeito de verdadeiras paixões. Quando
tinha quatro anos, a nossa filha tinha instalado uma verda­
deira criação de caracóis: cuidava-os, mimava-os, impedia-os
de lutarem, pretendia reconhecer os pequeninos bem como os
pais e mães. A filiação que você indica é certa: esses jogos
não são mais do que variantes dos jogos de bonecas, e, remon­
tando um pouco mais, manifestações da preocupação instin­
tiva da família.
...Tenho um aluno, o pequeno José, que só vive com os
animais. É tão infeliz em sua casa que encontra talvez na com­
panhia deles a afectuosa solicitude que lhe falta... Aquilo
que eu posso fazer na aula, as lições que dou. as belas lei­
turas. os livros escolhidos, tudo isso desliza sobre ele. deses­
peradamente. O seu amor pelos animais domina tudo. Chega
por vezes até à soleira da porta da escola com o gato nos
braços, e ali, manda-o embora com um inexprimível gesto
de profundo pesar. Se ouve o seu cão ladrar na praça. fica
preocupado e inquieto como se se tratasse dum chamamento
da sua mãe. As suas algibeiras, de acordo com as estacões,
andam cheias de caracóis, de cigarras, de borboletas ou de
lagartas. Certo dia recitava uma lição, quando os besoiros lhe
caíram das algibeiras. Imagine que acontecimento? Ao diabo
a lição, e procuremos recuperar os nossos animais!... Vi-o
ainda soprar amorosamente o seu bafo quente no bico de um
pobre pardal morto de frio, esperando realizar um milagre...
— São essas possibilidades de emoção que fazem com que
existam tão poucos animais-brinquedos no campo. Esses são
brinquedos para crianças da cidade, privados de autênticos
animais vivos.
Quando a criança se ocupa dos seus animais ou
insectos, fá-lo com tanta seriedade como o seu pai ou
o seu avô ao tratar da vaca ou do cavalo. Estamos portanto

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em presença, nos casos mais favoráveis, dum trabalho-jogo,
e, na falta deste, dum jogo-trabalho.
Não acha que uma tal compreensão, ao mesmo tempo
intuitiva e lógica da natureza e da evolução dos jogos, bem
como das suas relações com o trabalho e actividade humana,
deva influenciar profundamente as reacções familiares e as
concepções pedagógicas, exclusivamente baseadas até ao pre­
sente numa falsa ideia do trabalho, do jogo, do prazer e do
esforço?
De resto, porei já ponto final nesta categoria de jogos.
Devo agora notar um aspecto ainda mais evoluído e mais
acentuado desse jogo-trabalho, no limite do trabalho-jogo.

4. O jogo da vida

Lembro-me de que, em certos domingos, eu partia para


o casal Forêt, onde ia guardar sozinho, durante todo o dia,
as vacas, o burro e a cabra. O campo, nesses dias, parecia-me
mais vazio, mais selvagem, mais deserto do que nos outros
dias e o meu isolamento oprimia-me.
Eu não tinha quase nada que fazer... Gostaria de me
entregar a qualquer actividade útil. Mas qual?... Tinha
construído, num outono, um verdadeiro forno onde con­
segui assar maçãs. Reparava um bocado de caminho;
cortava as moitas debaixo duma árvore. Mas certos traba­
lhos carecem verdadeiramente de poesia, e a criança precisa
de amplitude; ela tem necessidade de que, para além da
matéria finita que manipula, o seu espírito, a sua imaginação
possam expandir-se intensamente, para atingir uma riqueza
de que só o sonho se pode aproximar.
Por vezes, uma amiga que guardava bastante longe dali,
vinha ter comigo quando os animais fartos dormiam à som­
bra das cerejeiras. Então, brincávamos... à vida!
Eu era o pai, e ela a mãe. Eu construía uma casinha
com uma porta bastante grande para que as nossas mãos
pudessem lá penetrar. Isso bastava para nos dar a ilusão de
que estávamos na nossa habitação. Eu procurava um bocado
de madeira bifurcado, do qual fazia um arado, e lavrava

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os campos. Por vezes aprisionava pequenos grilos pretos que
eram os meus bois... pouco dóceis, mas enfim! Terminado
o trabalho, regressava a casa. Era a tarde, e depois a noite,
e depois a manhã. E as horas passavam numa actividade na
qual só faltava, para ser verdadeiramente a vida, ser trans­
posta para uma maior escala, com um ritmo menos rápido,
e também com uma outra amplitude de sensações.
Jogo? Digamos: jogo-trabalho em toda a sua acepção,
jogo-trabalho correspondendo às virtualidades familiares e
sociais tais como resultam da lenta impregnação subcons­
ciente, passada e presente, que faz da criança um ser social
por excelência, mas que tem necessidade, para desabrochar e
se realizar, de um clima de que nem mesmo nós temos já
ideia, e que teremos portanto que redescobrir, compreender
e realizar se quisermos abordar com lógica e eficácia a
grande obra educadora.

32. JOGO-TRABALHO E INSTINTO

O JOGO-TRABALHO NÃO SERIA, EM


SUMA, MAIS DO QUE UMA MANIFESTAÇÃO
DESSE MESMO INSTINTO TÃO BEM ADAPTADO
A FINALIDADES QUE NÓS IGNORAMOS E
QUE GUIA O PÁSSARO NA CONSTRUÇÃO
DO SEU NINHO?

— É bastante curioso notar, continua Mathieu, que nem


os deuses nem o diabo, nem as religiões, pelo menos nas suas
concepções evoluídas da era actual, influenciaram de forma
acentuada os jogos-trabalhos das nossas crianças, o que con­
firmaria a nossa teoria da transmissão quase sem alteração,
duma geração para outra, das práticas lúdicas fundamentais.
Em vez de correr o risco de romper o encanto duma adaptação

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que tem apesar de tudo as suas vantagens, limitam-se a méto­
dos. a fórmulas, que deram as suas provas e cujo tradicio-
nalismo espanta os comentadores.
É bastante supérfluo perguntarmo-nos se as crianças
estão certas ou erradas, pois não modificaremos em nada
uma tão completa unanimidade de factos e de gestos, que
se perpetuam estranhamente desde há séculos. É de crer que
eles não são mais do que a tradução à luz do dia de im­
pregnações subconscientes de uma potência e de um alcance
incríveis, que o homem recalca incessantemente, esperando
dominá-las pelas lentas conquistas do progresso, e que renas­
cem em cada geração, como que para agarrar o indivíduo
às suas origens distantes. Esta tradição subconsciente pode­
ria, em suma, e quase sem reserva, ser identificada com o
instinto dos animais.
A abelha não modificou provavelmente a sua técnica,
tão perfeita desde há séculos e séculos; o pássaro não precisa
de aprender como se constrói um ninho, que é um resul­
tado maravilhoso. Os vossos sábios opinam bem que na
origem houve aquisição, mas são ainda impotentes para
penetrar no mistério da sua fixação na vida instintiva dos
animais.
A criança, tal como o pássaro, entrega-se com confiança
e segurança ao poder absoluto do seu instinto. Se todas as
experiências religiosas relativamente recentes passaram sobre
a vida profunda da criança sem a marcarem suficientemente
ao ponto de a impregnarem e de lhe modificarem a exterio­
rização. os jogos são, em contrapartida, muitas vezes acom­
panhados de práticas e de fórmulas mágicas que recordam
inteiramente as primeiras idades da humanidade, e que se
transmitem, ainda nos nossos dias, na sua forma imutável,
através dos países e das gerações: apelos, palavras aparen­
temente desprovidas de sentido que protegem de perigos,
como se tornassem sagrados aqueles que as proferem, conti­
nuam perfeitamente homogéneas na sua inspiração mágica.
Haveria todo um estudo a fazer sobre o jogo-trabalho
compreendido como manifestação subconsciente de um ins­
tinto imperioso que parece ter-se transmitido, e se transmite
ainda, com os seus métodos de actividade, as suas práticas

51
encantatórias e a sua concepção do mundo, como quem
dissesse a sua filosofia.
Dir-me-á que, enquanto se espera que sejam feitos tais
estudos, eu não faço mais do que aventurar uma teoria expli­
cativa mas que em nada provei! Quem pode gabar-se de apre­
sentar, neste domínio, uma certeza? Trata-se apenas de saber
se a minha teoria oferece, pelo menos em parte, o segredo que
nos permitirá compreender melhor os jogos das crianças e
comportarmo-nos com menos riscos de erros na obra de
educação que nos interessa.
O que lhe disse das relações desses jogos-trabalhos com
os trabalhos-jogos, a origem instintiva que atribuo à perma­
nência das formas lúdicas, a tentativa que fiz de classificar
os jogos mais correntes no quadro que tracei, não darão um
valor particular à noção de jogo-trabalho que eu quereria
ainda precisar tanto para mim como para si, note bem?
Assim pois, o jogo-trabalho seria como que uma espécie
de actividade instintiva que teria por função assegurar à
criança o exercício do seu dinamismo vital, segundo formas
que melhor correspondem às suas necessidades específicas.
Se, acidentalmente, essas necessidades podem ser satisfeitas
no meio familiar e social adulto, o instinto, por momentos
ultrapassado, acomoda-se. Senão, procura realizar, fora desse
meio, a atmosfera, os gestos, o esforço, exigidos por um
extraordinário potencial de vida.
Podemos pois, baseando-nos em certas características do
instinto, formular os traços essenciais do jogo-trabalho ao
qual muito teremos que nos referir.
— O jogo-trabalho é como que inato, no sentido de
que não precisa de ser ensinado dogmaticamente. A criança
pratica-o por assim dizer espontaneamente, e as próprias fór­
mulas mágicas, os hábitos rituais que o acompanham trans-
mitem-se misteriosamente em todos os países, imutáveis no
espaço e no tempo, para além das fronteiras e das gerações.
— Esse instinto é quase totalmente impermeável à edu­
cação, quer esta seja metódica ou empírica, e também ao
raciocínio, à observação e à experiência.

52
— Ele tem também por si a sua imutabilidade no espaço.
Do mesmo modo que qualquer pássaro constrói um ninho
em qualquer ponto da terra em que se encontre, a criança
joga por toda a parte a esses jogos-trabalhos instintivos,
segundo uma inspiração geral comum que parece corres­
ponder às necessidades primordiais da espécie.
Há aí, de facto, uma certa adaptação ao meio. O pássaro
modifica insensivelmente a estrutura, a forma, o modo de
suspensão do seu ninho, segundo os materiais de que dispõe,
os elementos que tem de enfrentar, as possibilidades de
realização do instinto. Os jogos-trabalhos das crianças adap-
tam-se do mesmo modo a certas necessidades exteriores, sem
que no entanto seja modificada a estrutura do fundo comum
universal dos jogos.
— A experiência tem provado também que o pássaro
pode utilizar acidentalmente a contribuição dos homens para
a realização do seu instinto. Do mesmo modo, a criança
adoptará, para a sua actividade instintiva, o trabalho adulto,
na medida em que este responde às exigências de atmosfera,
de ritmo, de método, de espiritualidade, do seu jogo-trabalho.
Quanta mais unidade houver entre o meio adulto e essas
exigências do instinto, melhor a criança realiza as experiên­
cias que lhe são essenciais. O instinto está então totalmente
ao serviço da personalidade no quadro da vida contempo­
rânea. Não haverá corte, oposição, mas lenta ascensão dessa
vitalidade subconsciente para as zonas mais evoluídas da
humanidde.
No caso contrário, a criança abandonará radicalmente
um meio adulto cujo domínio sofrerá mais ou menos passi­
vamente, para realizar apesar de tudo aquilo que lhe comanda
o instinto chegando até, se necessário, à desobediência
e à mentira. Não se tratará então de ascensão harmo­
niosa, mas antes de grave dualismo, de hostilidade contra
o meio, de desordem individual e social. O jogo instintivo
aparecerá como o único refúgio contra a anarquia, o único
elemento organizador duma vida que se defende ferozmente
para atingir as experiências formativas indispensáveis.

53
Verá que conseguiremos dar uma nova nobreza a esse
Jogo-Trabalho instintivo e que compreenderemos enfim a
necessidade de nos colocarmos na sua escola e ao seu serviço.
A sabedoria humana tinha já assinalado que «quem
brinca bem trabalha bem», porque neste domínio, do jogo-
-trabalho, não há nenhuma oposição de princípio, como se
vê, entre jogo e trabalho. Só que, no uso, essa prática do
jogo foi de tal modo pervertida que evoluiu por vezes para
formas eminentemente perigosas, individual e socialmente.
Psicólogos e pedagogos não souberam ter em conta essa
degenerescência; não puderam reencontrar, remontando às
fontes, essa profunda dignidade do jogo-trabalho; a tal
ponto que o adulto se irrita quando vê a criança brincar
em vez de trabalhar.
Irritar-se de nada serve, a não ser para cavar ainda
mais o fosso entre actividades instintivas e exigências sociais.
Precisamos de modificar as nossas reacções, de acordo com
as indicações que lhe dei sobre as relações certas entre
jogo e trabalho, e ver claramente que:
1. Se a criança se refugia no jogo-trabalho, é porque
nós não soubemos oferecer-lhe, ou tornar-lhe desejável e
possível, um trabalho funcional à sua medida, respondendo
ao seu instinto; porque nós não soubemos, ou não pudemos
reservar-lhe a atmosfera, o ritmo, o quadro que são neces­
sários para o desencadeamento de actividades correspon­
dentes às exigências orgânicas do trabalho-jogo. Se medimos
então o alcance dessa deficiência adulta, quer ela seja fami­
liar ou escolar, aprenderemos a aceitar-lhe também a respon­
sabilidade, em vez de a fazer pesar exclusivamente sobre os
ombros das crianças espantadas. Esforçar-nos-emos por me­
lhorar as relações adulto-criança — meio adulto, meio infantil
— e se o não conseguirmos totalmente, o que não é anormal,
habituar-nos-emos pelo menos a não acusar as crianças de
fracassos que são, pelo menos em parte, imputáveis a nós.
2. E admitimos assim que a criança deve entregar-se
a um jogo-trabalho para remediar as insuficiências ou os
erros do meio social, que isso é uma necessidade, que se
trata do seu equilíbrio psíquico e da sua saúde moral.

54
— Reconheço que nunca teria atribuído a esse género
de jogo uma importância formativa tão decisiva, e sobretudo
que o não teria despojado como você o fez de todo o seu
conteúdo de puerilidade para o fazer participar na essencial
dignidade do trabalho. Você tem razão, nós estamos dema­
siado inclinados, temos demasiada tendência para opôr jogo
a trabalho; essa necessidade de jogo da criança aparece-nos
como uma tara, como um sinal deplorável da sua impotência
perante a vida, como uma diversão às obrigações que esta
exige. Assim, não vendo já o proveito que as nossas crianças
podem retirar do jogo, salvo o exercício que ele lhes propor­
ciona, fazemos-lhes uma guerra surda, incomodamo-los,
escamoteamo-los se possível. As crianças passam adiante e
obstinam-se, e essa incompreensível obstinação irrita-nos...
— E como você não podia vencer nessa luta frontal, pro­
curou transigir, o que não é, em princípio, uma má política.
Vocês esforçaram-se por inventar, para uso dos vossos alunos,
jogos «inteligentes», instrutivos, menos mecânicos e monóto­
nos do que esses eternos jogos de escondidas ou de polícias e
ladrões. Vocês disseram que se as crianças brincam sempre
aos mesmos jogos, é porque lhes não ensinaram outros:
«Olhem para eles, dizem vocês, entregues a si próprios; não
têm outro recurso além de se avaliarem por um processo fun­
damentalmente ilógico, que desafia toda a compreensão mate­
mática, e se agitarem durante horas, sem objectivo inteligente».
Se tivessem observado as crianças com menos precon­
ceitos, teriam sido certamente impressionados pela maneira
total e exclusiva com que elas se entregam a essas activi-
dades. É como se elas não fossem já do nosso mundo. Pode a
chuva cair, ou a campainha da escola tocar, ou a mãe chamar
em vão para comer a sopa que arrefece... É preciso terminar
a partida, antes de a abandonar, não sem uma profunda
mágoa temperada pela esperança de um próximo recomeço.
E pobres sábios, que pretenderam encontrar melhor! Eles ima­
ginam jogos metodicamente classificados por categorias, dos
quais enchem livros destinados aos professores, ou aos moni­
tores que ensinam as crianças a jogar. E quando estas
compreenderam perfeitamente as regras do novo jogo, e se
livram da autoridade que o impõe, reúnem-se clandestina­

55
mente, desencadeiam uma magia, e entregam-se sem reserva
a um desses jogos-trabalhos que continuam a ser para eles
o alimento ideal.
Ê como se um homem de ciência quisesse mostrar a um
pássaro como se constrói um ninho racional!...
Aqui temos realidades, factos precisos, uma concepção
mais sã, penso, dessa grave questão do jogo. Verão que tudo
isto não nos será inútil para o uso prático que teremos que
fazer das nossas... descobertas.
E estejamos certos do alcance formativo desses jogos.
O instinto parece ter escolhido com um finalismo meticuloso
as actividades favoráveis à evolução da criança. Deveremos
certamente precaver-nos contra os desvios que fazem evoluir
o jogo-trabalho para um jogo de segunda zona que procurarei
caracterizar. Mas não seria desejável que esse perigo, evitável,
atenuasse um tanto as grandes linhas de vida, tão dinâmicas,
que reencontrámos, e nos afastasse das grandes correntes que,
tal como um sangue generoso, levam irremediavelmente o indi­
víduo para o desabrochamento, a defesa e a perpetuidade
da vida.
...Mas temos mais um serão prolongado até muito tarde.
A luz da tarde extinguiu-se por completo, mas as noites são
tão curtas que em breve veremos aclarar o levante. É preciso
que reflictamos um pouco sobre o nosso destino, senão não
serviria para nada ser um homem. Eu não tenho de resto
a pretensão de emitir ideias duma utilidade decisiva para
os outros. É principalmente para mim que procuro clarifi­
cá-las, ordená-las, ligá-las uma à outra, alinhá-las ao longo
de caminhos que se me tornam, cada dia, um pouco mais
familiares, e onde tenho a possibilidade de poder, em conse­
quência, mover-me mais à vontade, com menos riscos de me
perder... Pensar direito, sabem, é uma conquista!...
— E uma conquista rara, é verdade. Felizes dos homens
de bom senso que sabem encontrar alguns desses caminhos
de luz, a quem se juntarão um dia aqueles que erram por
arbitrários atalhos, sem rumo e sem objectivo...
Não perdi o meu tempo na sua companhia, asseguro-lhe.
E tenho uma certa pressa de conhecer o desenvolvimento,
por assim dizer pedagógico, do seu pensamento.

56
— Deixe-o amadurecer e ordenar-se. Já fizemos esta
noite um esforço suficiente. Não há pressa.
Até um destes dias!...

As fogueiras estavam definitivamente apagadas. Na praça,


o disco sombrio das cinzas ainda quentes exalava um cheiro
de pedra queimada e de carvão extinto. Ao longe, só os
últimos risos dos jovens atrasados animavam o silêncio apa­
ziguador dessa noite de Junho.

33. A DISTRACÇÃO NÃO É DE MODO ALGUM UMA


NECESSIDADE

PELO CONTRÁRIO, NÃO É MAIS DO QUE


UMA DEPLORÁVEL REACÇÃO A UM
CONSTRANGIMENTO ANORMAL. EIS OS
JOGOS DE DESCONTRACÇÃO FÍSICA E
PSÍQUICA. COMO RECONHECÊ-LOS
E CLASSIFICÁ-LOS?

Os trigos amareleciam e o ano escolar aproximava-se do


seu termo. As crianças, uma após outra, segundo a sua idade
e os serviços que delas se esperava, desertavam da escola.
Os dias arrastavam-se pela aldeia sonolenta que só desper­
tava à tardinha quando canalisava toda a actividade cansada
dos campos.
Acabava-se de ceifar os últimos talhões de prado e, de
tempos a tempos, junto à soleira das portas, soava o ruído
abafado do amolador das gadanhas.
Mathieu acabava de jantar e, enquanto fumava o seu
cachimbo, ia sentar-se tranquilamente à sombra da tília, punha

57
no chão a sua pequena bigorna de afiar, desmontava a sua
gadanha e examinava com os dedos inteligentes os defeitos
maiores do fio da ferramenta. Não se deve ser apressado
nesta tarefa! Felizmente, ela é como que uma paragem no
meio do dia quente, e o homem saboreia-a.
O senhor Long vem sentar-se no banco de pedra da
casa. Ele sabe que Mathieu anda muito ocupado, por isso
não insiste em receber a sequência das suas reflexões, que
no entanto espera com alguma impaciência.
— Ah! Os dias são agora longos, e a terra é uma
amante exigente. Há portanto momentos no ano em que ela
nos monopoliza, nos domina, nos esgota, em que já não
somos nós, mas uma engrenagem, um elemento duma fecun­
didade que sentimos misteriosamente imperiosa.
Nesses momentos, participamos de resto de um ritmo
do qual não poderíamos queixar-nos. Se o homem sente a
necessidade de voltar frequentemente os olhos para o seu ser,
para as suas reacções, os seus sentimentos e o seu devir, não
é contudo aconselhável que esse regresso sobre si mesmo
se torne como que uma mania e nos separe do dever que
também temos de nos integrar na natureza, de viver nela, nos
seus seres, no seu movimento, e também no trágico destino
da sociedade que nos acolhe. Há momentos em que somos
por assim dizer projectados para o exterior, como a árvore
que expande as suas flores e frutifica, oferecendo genero­
samente aos homens o produto da sua seiva. É assim, e eu
lamento os intelectuais que julgam ter como função obser­
var-se incessantemente, sem terem em conta o esplendor das
riquezas que os rodeiam.
— Que quer? Há também homens que têm necessidade
duma longa concentração para frutificarem e que só o podem
conseguir se estiverem precisamente afastados do mundo e
da sua agitação...
— Para se persuadirem a si mesmos, e fazer crer aos
outros que há assim alguma coisa fora da vida, que seria
como que a secreção preciosa e especial do seu cérebro. Um
pouco de bom senso vale por vezes muito mais do que a sua
presunção...

58
— Você não é brando para com aqueles que fazem
profissão do pensar...
— E que não conseguem muitas vezes mais do que
enredar os problemas, complicar aquilo que é simples, porque
não vêem já as relações naturais que levam a essa simplici­
dade. Se vocês, educadores, reencontrarem um dia o segredo
dessa simplicidade, estarão no limiar da porta mística que
vos abrirá os pensamentos e os corações.
— Mas você tem razão. Não são os sábios, nem os
pensadores, e ainda menos os literatos que nos ajudarão
nessa delicada procura das verdades simples e luminosas.
— Eles fazem como esses jogadores que, nos serões de
família, têm que adivinhar um objecto em questão, e que
o procuram em vão nos quatro cantos da sala, quando ele
estava ali, mesmo junto deles, tão perto que nem ocorreu
a ideia olhar para lá.
— Porque é preciso procurar perto, mas também longe.
— Só que a luz que nos guiará soberanamente está certa­
mente aí, ao nosso alcance...
— O homem, senhor Mathieu, é uma mistura esquisita
e a verdade é muito difícil de reconhecer. Eu, por exemplo,
tenho seguido perfeitamente o fio do seu raciocínio respei­
tante a trabalho-jogo e jogo-trabalho, mas faço ainda a mim
mesmo numerosas perguntas, sem dúvida porque não vejo
as coisas com a mesma simplicidade e a mesma segurança
que você, e atribuo, desse modo, demasiada importância a
considerações que são provavelmente apenas acessórias, e
que me impedem de ver o essencial em todo o seu poder.
Reconheço que é uma espécie de doença que nos vem do
facto de terem desejado acumular em nós demasiadas coisas.
— Que não constituem mais do que um montão informe
e amorfo porque se esqueceram de erguer ao mesmo tempo os
muros em que esses materiais se teriam vindo colocar harmo­
niosamente para servir à construção, que é o seu objectivo.
— Você trouxe perfeitamente à luz os elementos comuns
ao trabalho-jogo e ao jogo-trabalho. Mas que faz da distrac-
ção que é, no entanto, uma das razões de ser do jogo?

59
— Não foi de modo nenhum um esquecimento, como verá.
Distrair, é afastar para o lado para dispersar a atenção,
arrancá-la a uma ocupação, ou a um pensamento que a assedia.
Também aqui se tem jogado com as palavras e com
falsas deduções. Disse-se: a criança tem necessidade de brin­
car, o que não é totalmente exacto, pois que, em certas
condições quase ideais, essa necessidade atenua-se conside­
ravelmente até desaparecer diante do interesse próprio do
trabalho. O jogo é uma distracção, o que é falso, pois que
o jogo, tal como o trabalho normal e funcional, é pelo
contrário o processo natural de um mecanismo do qual é
como que a secreção... A criança tem necessidade de dis­
tracção... o que é igualmente falso.
É como se se pretendesse que, para funcionar bem, um
motor tem necessidade de parar de tempos a tempos para
rodar em sentido inverso. O motor precisa de parar de vez
em quando porque aquece e gasta-se, pelo facto de que é
apenas uma máquina imperfeita. A criança tal como o motor,
tem necessidade de dormir para repousar, mas não de se
entregar a um trabalho diferente. Se lhe oferecerem uma
actividade à sua medida, pondo em funcionamento os seus
diversos músculos, satisfazendo harmoniosamente as suas
múltiplas necessidades, ela não sente de modo algum a
necessidade de se «distrair», de se retirar desse trabalho para
se entregar a outras ocupações. A criança cansar-se-á normal­
mente, sentirá a necessidade natural de repouso e de sono,
após o que estará em condições de retomar a mesma ocupação.
— Você não tem então em consideração a monotonia
duma tarefa sempre semelhante e esse imperioso desejo de
mudança que agita a infância?
— ...E que não é mais do que o resultado duma desordem
que nós criamos e alimentamos...
Falei-lhe dum trabalho por assim dizer ideal, pondo em
funcionamento todo o ser. Sei que esse ideal raramente será
atingido. Nem por isso é menos urgente assinalar-lhe as
características para que nós tentemos aproximar-nos dele
sempre mais, e também para que não tomemos como
taras congénitas estados de facto, reacções que são apenas
um correctivo instintivo e empírico aos nossos erros, às

60
nossas insuficiências à nossa impotência perante verdadeiros
problemas humanos.
Diz-se que o trabalho é concentração, e que essa concen­
tração, que tem tendência para sobrecarregar certas partes
do nosso organismo, certas funções do nosso ser, precisa
de ser contrabalançada periodicamente por uma descontrac-
ção. E cita-se naturalmente a história do arco que perde a
sua elasticidade se estiver constantemente esticado.
É que essa tensão é já em si mesma uma perversão
contra natura, uma anomalia contra a qual luta, com os
seus próprios meios, o ser inteiro. Tal como é uma anomalia
a tensão do coração que provoca rapidamente sufocação e
dor, esses sinais patentes de erro, esse disco vermelho que,
bruscamente, se ilumina para gritar: perigo! É natural que
se o vosso trabalho exige essa concentração anormal, todo
o vosso ser reaja com um necessidade de descontracção.
Mas que ensinam os fisiólogos e os desportistas? Que
é preciso medir atentamente os nossos esforços para os man­
ter na norma, a fim de que os órgãos possam funcionar por
muito tempo sem fadiga irregular, até à fadiga normal que
suscita o repouso e o sono.
— No entanto a concentração é um dos grandes princí­
pios, e entre os mais eficazes, da nossa nova educação...
— Isso depende do verdadeiro sentido que se dá a essa
palavra. Se ela significa esforço normal, orientado natural­
mente para um objectivo que está na linha da nossa vida,
não faz mais do que exprimir um processo óptimo da nossa
actividade!
Quando ceifo, naturalmente, os meus gestos, os meus
pensamentos, toda a minha vida estão concentrados na reali­
zação deste objectivo: ceifar. O que não significa que, de
passagem, eu não tenha pena do grilo que foge grilando
à frente da minha gadanha, que não apanhe com solicitude
a pêra recentemente caída da árvore, que dormia ali, ao
fresco, entre a erva alta, e que guardo para o meu filho
mais pequeno; ou que não interrompa mesmo o meu trabalho
para olhar o sol, escrutar as nuvens do horizonte, ou conver­
sar um momento com um passante.

61
Ah! Se exigissem de mim que não pensasse, durante
horas, a não ser no estreito e regular movimento da minha
gadanha, estaria constrangido a uma concentração, que supo­
ria uma tensão exigindo uma descontracção próxima. Em
contrapartida posso ceifar durante todo o dia, sem que esse
trabalho me pareça sequer monótono, com a condição de
que, naturalmente, a minha gadanha corte bem.
Mas acontece-me por vezes esquecer esse ritmo e essa
harmonia. É a hora do jantar... A minha mulher espera
com o seu prato de batatas ainda mornas. Mas eu obstino-me
em terminar aquele talhão. Há então uma concentração deplo­
rável. Já não vejo mais do que um objectivo acanhado: ter­
minar o talhão. Durante alguns instantes, nada mais existe
à minha volta, nem o grilo ferido, nem o fruto atingido pela
gadanha, nem as nuvens que se amontoam atrás da montanha,
nem o passante que no entanto aventurou uma palavra amá­
vel. Mas também o meu espírito se fatiga, os meus nervos
ficam tensos, o meu coração agita-se e eu lanço um uf! de
alívio quando a tarefa chega ao fim. Tenho então necessi­
dade não apenas de repouso, mas também de descontracção
para afastar essa obsessão, para pensar noutra coisa.
Há igualmente, não o ignoro, as necessidades fisioló­
gicas da distracção. Há trabalhos que põem em funciona­
mento, quase harmoniosamente, todos os nossos músculos.
Os nossos trabalhos dos campos estão em geral entre esses,
e é esse o motivo por que eles são tão adequados à
nossa satisfação total, sem monotonia, porque a monotonia
não é em suma mais do que uma fadiga anormal dos mús­
culos, que suscita uma necessidade premente de fazer fun­
cionar, como contrapartida, as outras partes do organismo.
Quando espalhamos a palha, nas noites de inverno,
para economizar o feno dos animais, estamos ali sentados
na nossa grande cozinha. Só os nossos dedos se fatigam.
Os nossos músculos de adultos não têm já as exigências
imperiosas dos dos jovens e assim conformamo-nos bem.
Mas eu lembro-me de que espalhar a palha estava entre as
ocupações de que eu menos gostava quando era jovem, e que
sempre me parecia nunca mais ter fim, porque as minhas
pernas se impacientavam, o meu peito cansava-se de ficar

62
direito e rígido, e até os braços se me tomavam pesados
e desajeitados. Depois disso tinha necessidade, não de repouso
— só as mãos estavam cansadas — mas de distracção, quer
dizer, duma actividade que proporcionasse aos outros mús­
culos do meu corpo o exercício e a fadiga normal que não
é mais do que o seu funcionamento natural. Esse exercício,
nas melhores conjunturas, pode ser dado por um trabalho-
-jogo ou um jogo-trabalho. Na falta destes, a criança «des­
contrai-se» com jogos de qualidade secundária dos quais lhe
vou falar à minha maneira.
Trata-se realmente, nesse caso, de descontracção, de
distracção, tanto mais violentas quanto mais intensa tiver
sido a tensão voluntária ou imposta. Em nenhum lado se
observa melhor isto do que na escola. Só de observar as
reacções das crianças que vos escapam, eu poderia adivinhar
a qualidade do trabalho que vocês exigem delas. Se vocês
souberam interessá-las, se elas puderam, nem que fosse ape­
nas intermitentemente, entregar-se a tarefas que as apaixonam,
com a ilusão pelo menos duma relativa liberdade, vemo-las
abandonarem a aula como que com pena, parar discutindo
junto à fonte como se se trtasse de continuar ali uma activi­
dade intempestivamente interrompida. Depois das boas ses­
sões, cuja calmante influência vocês próprios por certo sen­
tem— desenho, canto, gravura, experimentação — a porta
abre-se como que para uma oficina familiar onde cada um
quereria terminar a tarefa em curso. Acontece-vos mesmo
fazerdes uma suave violência àqueles que se obstinam em
continuar o seu trabalho. Por isso, admirai-os: eles estão
calmos e satisfeitos; vão-se agora tranquilamente, como adul­
tos conscientes e orgulhosos das suas possibilidades. Vocês
fizeram, nesses dias, uma boa obra.
Mas devo dizer que isso não acontece muitas vezes, e
você bem se apercebe disso.
Se as nossas galinhas estiverem num galinheiro espa­
çoso e confortável, tendo à volta um espaço bastante grande
e não muito deserdado onde possam esgaravatar com pro­
veito, segundo a sua natureza e as suas necessidades, vê-las-
-emos do mesmo modo saírem lentamente, como que com
pesar, quando lhes abrirmos a porta. Mas se, como frequen­

63
temente acontece, elas estão fechadas num reduto estreito,
onde nem sempre têm um lugar para se empoleirarem, onde
não podem nem esgaravatar nem debicar, então estão ali,
na penumbra, constrangidas, obsecadas pela sua clausura,
atentas a todos os ruídos exteriores que deixem supor a
aproximação da libertação. Mal tocamos na porta para a
entreabrir, ouvimo-las atropelar-se, lutar... É ver qual
passará primeiro. Uma vez fora, ficam como loucas,
esgaravatando aqui e ali, empurrando as vizinhas, num estado
de enervamento que só a pouco e pouco acalmará quando as
patas tiverem esgaravatado e os bicos debicado o suficiente.
Seria cruel insistir nas analogias demasiado impressio­
nantes com as vossas aulas. Também as vossas crianças ali
estão, sobre o seu poleiro donde lhes é proibido descer sem
permissão; elas sentem, mau grado seu, uma irresistível neces­
sidade de ar, de sol, de movimento. E devem sujeitar-se a
estudos que nunca compreendem totalmente. Então... Você
recorde-se. Faz-se como as galinhas: está-se ali a escutar os
ruídos exteriores que ajudam a esperar que a hora se apro­
xime. Está-se atento à direcção do sol que nos é igual­
mente reveladora. O professor fala... Aquilo que nos inte­
ressa, não é o que ele diz, mas a sua entoação, a fadiga
que ele sente, o avanço da sua lição, coisas pelas quais
medimos intuitivamente a proximidade da libertação.
Nesses dias, quando a porta se abre, é uma corrida para
o exterior, a corrida de uma multidão que grita, gesticula,
luta e sente a necessidade de se descontrair de uma tensão
demasiado longa com jogos que lhe tragam a necessária
compensação. É o que explica que as crianças sejam sempre
mais ruidosas nos pátios de recreio do que nas ruas ou nos
campos, que os seus jogos sejam sempre mais nervosos, o seu
humor mais desabrido e mais altercador nos dias de aula
do que nos dias feriados. Poderia deduzir-se destas obser­
vações uma espécie de lei:
Quanto mais a actividade normal da criança é pertur­
bada, contrariada, orientada para uma falsa e artificial
contracção, tanto mais anormais, brutais, violentos são os
jogos de desconcentração, e mais facilmente degeneram em
disputas e batalhas.

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Seria interessante, acho eu, procurar quais são os jogos,
quais são as actividades espontâneas a que se entregam de
preferência as crianças que estiveram limitadas, na escola,
na igreja, na família, na sociedade, a trabalhos, a atitudes
que são contrárias às suas necessidades naturais, físicas,
fisiológicas, psíquicas, e necessitam por esse motivo duma
tensão anormal que exige uma descontracção libertadora
de compensação.
Não encontraríamos aí jogos-trabalhos, mas toda uma
categoria de jogos diferentes nas suas formas, na sua técnica,
no seu ritmo, na sua atmosfera, e a que poderemos chamar
de descontracção compensadora.
Atribuiremos antes de mais um lugar à parte aos jogos
de descontracção compensadora fisiológica: empurrões, bata­
lhas em geral anárquicas, troças entre camaradas e adultos,
farsas mais ou menos inteligentes, pedras atiradas contra
janelas ou candeeiros, torturas aos animais, etc. Estes jogos
são, como observará, quase todos anormalmente perversos;
são por assim dizer a exaltação de tudo quanto há de pior
na criança. E isso porque a desordem foi implantada na vida
dos indivíduos, porque estes foram cruelmente comprimidos,
e porque a descontracção compensadora vai necessariamente
também além das normas. Estamos inteiramente nos antí­
podas dos jogos-trabalhos que exigem, como vimos, uma
certa calma, e pelo menos um embrião de disciplina. É neces­
sário um período de fortes vibrações antes que se estabeleça
o equilíbrio elementar que é assim por vezes definitivamente
comprometido.
Compreende o perigo dessa tensão e da descontracção
que se lhe segue, portanto o perigo que representa, na escola
e na família, ignorar, como demasiadas vezes se faz, as
necessidades mais imperiosas das crianças, querermos os
nossos filhos bem comportados e imóveis como nós, apren­
dizes de velhos cujos músculos estão antecipadamente
fatigados; constrangê-los a esforços intelectuais que são
também, pela sua natureza abstraída da vida, uma grave
anomalia, pelo menos no sentido em que são concebidos.
Diz-se: é preciso habituá-los e prepará-los para as duras
exigências da vida. Como se se julgasse que, mantendo o
5
65
arco tenso por mais tempo, se conservaria a sua curvatura
sem o auxílio da corda! Das duas uma: ou o arco se distende
vigorosamente, e tanto mais violentamente quanto mais tenso
esteve; ou pelo contrário, deixa de reagir, e é a inércia da
morte. E os escoliastas felicitam-se por essa passividade, que
consideram como uma cómoda conquista.
Felizmente que a natureza tem suficientes molas miste­
riosas para reagir, directa ou indirectamente, ainda que a
repercussão não se faça sem prejuízo. Isso seria demasiado
simples se os erros não se pagassem de algum modo, e
se se pudesse impunemente tomar um assassínio por uma
libertação.
A natureza reage, mas não forçosamente à maneira do
arco. Os indivíduos não são vulgares paus que nós vergamos
e que se distendem apenas num sentido. Tentamos curvá-los
para um lado; eles cedem e obedecem e, bruscamente, tentam
escapar-se-nos numa outra direcção. Julgamos tê-los habi­
tuado à compressão metódica a que os submetemos; eles
parecem com efeito não reagir já, e nós consideramos essa
passividade passageira como uma razoável docilidade. Depois,
subitamente, no momento em que julgamos ter conseguido,
forças insuspeitadas vêm derrubar a nossa frágil construção.
E se apenas o corpo sofresse nessa tensão anormal,
seria apenas meio mal. O exercício, se necessário violento,
viria contrabalançar e contrabater os nossos erros. Mas ó
nosso corpo não é uma máquina mecânica cujo mecanismo
não tivesse para nós segredos. Uma tensão exagerada,
ainda que exclusivamente fisiológica, a imobilidade imposta,
a obrigação violenta (e pode haver violência sem que existam
pancadas ou mesmo punições) contrariando as necessidades
funcionais dos indivíduos, traduzem-se por uma fadiga anor­
mal dos centros nervosos, por um desequilíbrio psíquico, por
toda uma evolução subconsciente, que organiza por assim
dizer clandestinamente a resistência vital aos atentados contra
essa harmonia natural que é como um poderoso jorro. Não
há apenas impaciência localizada num membro ou numa
série de músculos, curvatura que se traduz por um sofri­
mento revelador. A curvatura é também por assim dizer
moral; essa impaciência, essa febrilidade, atingem rapida­

66
mente todo o processo mental por uma evolução secreta
e misteriosa.
Não procurarei dizer-lhe o que é essa evolução. Limito
o meu estudo às causas de que ela decorre quase de certeza,
ainda que ignore como.
Vimos que a reacção natural à curvatura física se traduz
por jogos violentos, por gritos, desordem, desequilíbrio. Qual
será a reacção à tensão mental, nervosa e física? Observo
apenas de passagem que ela pode estar na origem de com­
plexos mentais geradores de manias, de fobias, de ódios e
de paixões inexplicados, e que são independentes de uma des-
contracção especial canalizada pelos jogos, e a que eu cha­
maria descontracção compensadora psíquica. Essa descon-
tracção é tanto mais aguda, tanto mais profunda também,
quanto a tensão e a opressão tiverem sido mais anormalmente
prolongadas.
O indivíduo esteve comprimido, dominado; sofreu no
seu sentimento de poder, de cujo alcance já falei; sente-se
humilhado pela posição de inferioridade a que o reduziram.
É preciso que ele volte à superfície, que triunfe novamente,
que afirme a sua força, boa ou má, que se vingue da opressão
que sofreu oprimindo os outros, se necessário.
O ser humano, porque é vivo, não consente nunca na
sua derrota, nunca a aceita totalmente. O feijão que enterra­
mos na terra na primavera desenvolve o seu germe novo
ainda que uma grande pedra o impeça de chegar à luz.
O germe, que quer a luz, rastejará pálido e amarelo, o
tempo que for necessário, sob o obstáculo, para aparecer
apesar de tudo ao sol e cumprir o seu destino... A árvore
que procuramos inclinar reergue lentamente o seu tronco ao
longo dos anos, apenas deformado na base pela nossa obsti­
nação; ainda que a privemos brutalmente do seu ramo prin­
cipal, nem por isso ela se deterá no desenvolvimento da sua
folhagem na direcção do céu: remeterá o seu vigor contra­
riado e refluído para os ramos secundários que tomarão,
para nosso espanto, o lugar e o poder do caule principal,
realizando assim no máximo que as circunstâncias o permitem
a ordem imperiosa da natureza.

67
A criança procede do mesmo modo, porque é um
ser vivo. Ela parece vergar-se sob a nossa autoridade en­
quanto continua o seu caminho subterrâneo, como o germe
de feijão sob a pedra, à procura da falha menos resistente
que lhe permitirá crescer, subir e frutificar; ou então encarre­
gará, sem que nós o saibamos, certas tendências do seu ser,
alguns ramos da sua vida, de substituir o esforço principal
que nós contrariámos. Não impediremos que a vida se rea­
lize: haverá apenas a princípio um grande desperdício de
energia, tentativas inúteis e perigosas na sombra da subcons-
ciência, e sobretudo as direcções secundárias que se carregam
assim dum potencial que lhes não estava destinado, serão
melhores ou piores, mais ou menos favoráveis à harmonia
da floresta; suscitaremos deformações monstruosas que. fica­
rão como a acusação viva dos nossos erros.
A reacção corrente, primária por assim dizer, e a menos
perigosa em suma, apesar das aparências, a qualquer tensão
exagerada, é a descontracção compensadora física. Mas ela
nem sempre é possível. E mesmo quando o é, corre o risco
de não canalizar a totalidade da reacção psíquica que é o
seu equivalente íntimo.
Vemos então dominar actividades menores, que visam
a exaltação dos sentimentos novos que nós suscitámos, a
satisfação de tendências que são a lenta e subterrânea evo­
lução do germe sob a pedra: a astúcia, a habilidade, a
mentira, as faculdades manobristas, o orgulho, todos os meios
acessórios para realizar o poder que o indivíduo não pôde
atingir pelos meios normais, são utilizados.
O homem que, na vida, tem o seu futuro assegurado,
quer por um emprego estável, quer pela riqueza de um domí­
nio que é uma inabalável garantia, entrega-se com muito mais
calma e segurança à sua obra. Nem sequer se preocupa com
o ganho que, sabe-o ele, será a consequência natural dos
seus esforços. Mas o operário que está constrangido a contar
com a doença, o desemprego e a velhice, que tem sempre
diante de si a obsessão da miséria e da fome; os camponeses
que apenas possuem campos magros e granjas anémicas,
estão como que hipnotizados pela necessidade de ganhar
dinheiro. Eles já não têm tempo para se demorarem no

68
encanto arrebatador do trabalho; é preciso trabalhar depressa,
produzir o mais possível para defender o seu lugar ao sol,
único objectivo que conta, ainda que seja necessário, para
o conseguir, usar de meios tortuosos e mais ou menos
honestos.
O jogo-trabalho aparenta-se com a actividade serena do
homem economicamente liberto; o jogo de descontracção
compensadora psíquica trará em si as mesmas taras que
marcam toda a actividade do operário e do camponês domi­
nados pela lei de ferro duma sociedade madrasta.
Será nesta observação que basearemos a nossa distinção
entre jogo-trabalho e jogo de descontracção psíquica.
Se, num jogo ou num trabalho, o interesse se dirige
espontaneamente para a actividade necessária porque ela satis­
faz algumas das necessidades do indivíduo, para o próprio
objectivo, ou para o ganho que é a consequência tão lógica
dessa actividade, que não é preciso preocuparmo-nos com ele
de outro modo, estamos em presença de um jogo-trabalho, ou
de um trabalho-jogo.
Se, pelo contrário, o acento cai constantemente sobre
o próprio ganho, sobre o objectivo imediato mal integrado
no indivíduo, e que se torna a única razão de ser do tra­
balho, sendo a actividade exigida pela procura desse objectivo
apenas o preço, mais ou menos elevado, do objectivo a
alcançar, estamos em presença quer dum trabalho arbitra­
riamente imposto pelo exterior, quer do seu oposto em
reacção de descontracção compensadora psíquica...
Os primeiros não têm de modo algum necessidade de
estímulos exteriores, nem da isca de um benefício qualquer,
devendo o objectivo ser a consequência natural da actividade,
tal como a flor e o fruto são a consequência inelutável e o
resultado de um longo e profundo trabalho que agita a planta.
A segunda categoria de actividades, quer se trate de traba­
lho ou de jogo, está pelo contrário condicionada pelo ganho.
O homem e o aluno da escola esquivar-se-iam à sua tarefa,
o jogador abandonaria um jogo em «que não está inte­
ressado», segundo a expressão consagrada dos próprios joga­
dores.

69
As crianças jogam às escondidas. Naturalmente, pro­
curam não ser agarradas; não é no entanto o seu êxito mais
ou menos completo que será para das a essência do jogo,
mas o jogo-trabalho em si mesmo, a actividade dispensada,
a emoção sentida. Assim, uma criança que é agarrada não
dirá nunca como o jogador de que vamos falar: «Se eu
soubesse que perdia nunca teria jogado». Não se vê as crianças
considerarem aqui escrupulosamente o número de vezes que
ganharem. O vencido não sofre qualquer humilhação porque
o jogo em si mesmo enche-o de satisfação.
É como no trabalho-jogo.
Eu tinha-me aplicado, em miúdo, a arrancar uma
minúscula leira de batatas. Aquilo era para mim um tra­
balho, sem dúvida! No entanto eu entregava-me a ele com
paixão, mas o meu objectivo, por mais paradoxal que isso
pareça, não era de modo algum esse sentimento de riqueza
perante o espectáculo das grandes batatas espalhadas no chão,
e da amplitude do saco que as levava à tardinha, mas o
próprio trabalho. Por isso que desilusão, e que pena também,
quando uma manhã, estando eu ausente, o meu pai e o
meu irmão meteram na cabeça substituir-me, e, em menos
de nada, terminarem a tarefa. Quando cheguei, o saco
estava atado; as batatas estavam no saco, e eu chorava
porque não me tinham deixado concluir a minha bela obra...
E no jogo de futebol, se bem que a publicidade e o
profissionalismo tenham falseado um tanto o seu verdadeiro
sentido que nos fez classificá-lo entre os jogos-trabalhos, não
é o interesse monopolizado integralmente pela actividade do
próprio jogo, sendo o resultado, a vitória, e mais ainda o
ganho, simplesmente subsidiários?
Aí temos pois delimitado com segurança o domínio do
jogo de descontracção psíquica. Vamos tentar preencher esse
quadro. Será de resto na prática que julgaremos do seu valor.

70
34. JOGOS - TRABALHOS SIMBOLIZADOS E JOGOS
DE GANHAR

COMO DISTINGUI-LOS E IDENTIFICÁ-LOS


A FIM DE MARCAR AS ETAPAS QUE
LEVAM DO JOGO-TRABALHO AO JOGO-HAXIXE.
REPERCUSSÕES PEDAGÓGICAS E SOCIAIS

— Classificaremos antes de mais, entre esses jogos de


descontracção psíquica, toda a categoria daquilo a que cha­
maremos os jogos de ganhar.
O que são esses jogos?
Para os classificar com segurança, pensemos sempre
no nosso critério do interesse primordial da parada e do
ganho.
Poderíamos distinguir:

a) Os jogos de ganhar simples, primitivos por assim


dizer, nos quais a actividade propriamente dita é quase
nula, onde nem mesmo intervêm a habilidade nem a astúcia,
e em que a sorte ou o azar disputam os resultados.
— Fecham-se as duas mãos e faz-se adivinhar em qual
delas se esconde a parada (quer se trate dum berlinde, dum
botão ou dum rebuçado). Se adivinhamos, esta pertence-nos.
— A caras ou bicas.
— Jogos de cartas que não são mais do que jogos de
azar, sem técnica nem habilidade: a pedida, a bisca, etc.
— Diversos jogos de dados que, combinados com certos
atributos, participam então de outras categorias.
b) Os jogos de ganhar, nos quais a astúcia, a habili­
dade, a destreza, a técnica, a intuição psicológica, e mesmo
o logro, podem ajudar o acaso e torná-lo favorável:
— Malha.
— Jogo da rolha.

71
— E sobretudo a quase generalidade dos jogos de cartas,
cuja lista não pára de aumentar, à medida que são aban­
donados certos jogos que «passam de moda».
Em todos esses jogos, a parada varia segundo a idade,
a posição e as possibilidades dos jogadores. Para o pequeno
aldeão que eu era e que tinha recolhido no dia de ano
novo catorze ou quinze soldos que tilintavam no meu bolso,
uma parada de um soldo valia mais emoção do que uma
parada de mil francos para quem pode sacrificar milhões.
Pudéramos mesmo dizer que tudo é bom como parada
para quem sente a necessidade de se entregar a essa mania.
Quando nós éramos pequenos, os autênticos berlindes
eram raros e caros. No Outono jogávamos aos «girottes»,
que são as galhas que se encontram sobre as folhas do
carvalho. Jogávamos à malha, à bisca, ao truque. Decerto
admirávamos e invejávamos um tanto os mais crescidos,
que tinham saquinhos cheios de lindos berlindes lisos e colo­
ridos, e que tilintavam claramente. Mas não éramos
exigentes.
Chegava mesmo um período do ano em que jogávamos
aos pregos velhos. Sabe que ao passar junto da forja,
encontramos no chão, entre excrementos de cavalo e pedaços
de casco, cabeças de pregos velhos arrancados das ferra­
duras mudadas aos animais. Era preciso que o prego tivesse
cabeça para conservar o seu valor. E um prego novo não
valia nada!...
Os punhados desses pregos sujos e enferrujados enchiam
e rasgavam as nossas algibeiras. Era essa a nossa parada:
a adivinhar nas mãos, à bisca, mas sobretudo às malhas.
Quando jogávamos aos pregos, nada mais contava, nem tra­
balho nem lição, e, quando a sineta tocava, partilhávamos
apressadamente o monte. Pensávamos nisso na aula du­
rante as lições, contávamos em segredo os pregos nas
algibeiras, satisfeitos e triunfantes se nos sentíamos ricos,
ou, pelo contrário, inquietos e tristes se tínhamos perdido.
À saída, mal passada a porta, retomávamos o jogo apenas
interrompido.

72
E os botões? As partidas que nós fizemos! Sobretudo
aí a parada era muito mais variada e tinha já um certo
valor intrínseco.
É incrível o que as crianças podem descobrir de botões
nas velhas roupas dos sótãos, e também por vezes, deve
dizer-se, às escondidas, nas roupas boas! Havia os pequenos
botões de vidro das camisas, que apenas valiam um.
Os botões maiores, de corozo 1 valiam dois ou quatro
segundo a grossura e o número de buracos; os bonitos
botões de sapato valiam quatro. E enfim a verdadeira riqueza
consistia na posse de «botões de sete», esses brilhantes botões
de cobre dos capotes dos soldados, dos uniformes dos mari­
nheiros, dos polícias ou dos carteiros. Políamo-los na areia
para os fazermos brilhar depois esfregando-os demorada­
mente nas nossas velhas calças de veludo. E chegavam
verdadeiramente a brilhar como espelhos sobre os quais se
destacavam a âncora ou a granada.
Quando passávamos amorosamente a mão pelo saquinho
que continha a nossa variedade de botões, e ouvíamos o
tilintar metálico de alguns «botões de sete», inchávamos
de orgulho. Mantínhamos a nossa contabilidade, avaliávamos
incessantemente os nossos ganhos e perdas, como avarentos,
espalhando os nossos haveres sobre as lajes: 2 e 1, 3, e 5,
e 7... e 7!
Jogávamos tal como com as cabeças de pregos: a adi­
vinhar, e sobretudo às malhas e às cartas. Depois fazíamos
apaixonantes trocas: 7 botões de 1 por um botão de 7... 2 de
3 e um de 1 por aquele belo botão de polícia!...
Quando ganhávamos, transbordávamos de vaidade,
como se tivéssemos alcançado uma grande vitória. Mas
quando perdíamos, quando éramos «depenados», como dizía­
mos então, e não tínhamos já na algibeira mais que dois
ou três maus botões, que miséria moral, que sofrimento, que
desejo louco de recuperar a parada, a todo o custo, para
manter a mesma quantidade inicial.

1 Espécie de marfim vegetal da América do Sul (N. do T.).

73
Então, por vezes, reduzidos a esse triste extremo, cor­
távamos um dos últimos botões «inúteis» da nossa blusa
ou das nossas calças; ou então, às escondidas, fazíamos
saltar um botão dos fatos dos nossos pais... E ai dos estra­
nhos que não se acautelassem!... O carteiro fazia já como
hoje: quando fazia calor colocava a bengala e o casaco
sobre o parapeito à entrada da aldeia...; aquele casaco
sobre o qual se alinhavam grandes botões dourados, alguns
dos quais pelo menos eram perfeitamente inúteis. Porque
enfim, dois ou três botões chegam muito bem para abotoar
um casaco; e esses pequenos botões das mangas não servem
absolutamente para nada... Quando regressava, o carteiro
encontrava muitas vezes o casaco aliviado dos botões
supérfluos...
Mais ainda do que os berlindes, este jogo monopoli­
zava-nos ao ponto de nos fazer negligenciar todos os nossos
deveres escolares, ao mesmo tempo que nos levava a mentir,
a trafulhar e a roubar.
Logo que crescemos o suficiente para possuirmos
alguns soldos pessoais e dispor deles sem a inquirição avara
dos nossos pais, seguíamos o exemplo dos mais velhos e
jogávamos a dinheiro: por vezes às malhas, mas sobretudo
às caras ou bicas, à rolha e ao alvo (com bolas). Apos­
tava-se «um ou dois». Colocava-se a parada sobre uma
bola e atirávamos de uma distância tanto maior quanto
mais importante era a parada.
Esse jogo ao alvo era especialmente praticado pelos
adultos e pelos jovens. Nós jogávamos sobretudo à rolha
nos dias de chuva, sob o telheiro daquela cavalariça, ali.
Vejo ainda os jogadores contando o seu activo e atirando,
como que com pesar, o seu lanço, a alegria dos vencedores,
o ar abatido dos azarentos. Quantas cóleras e disputas!...
No Outono, tínhamos uma parada pelo menos original:
as nozes.
Isso passava-se no momento da colheita quando, a
seguir aos dias de chuva, os colmos e os caminhos estavam
juncados de nozes frescas e húmidas. Enchíamos os bolsos
delas, e jogávamos «aos castelinhos»: três nozes em baixo,
em triângulo, e uma quarta em cima, formando castelo

74
Atirávamos com uma noz grande. Todos os castelos que
caíam eram ganhos. Mas aí, pelo menos, enquanto jogávamos,
íamos comendo os belos miolos frescos, o que era uma
compensação apreciável para quem perdia.
Só mais tarde jogámos aos verdadeiros jogos de cartas:
jogos nos quais o bolo perde um tanto o seu valor em
benefício da técnica, da intuição e da habilidade do jogador.
c) Porque há naturalmente uma certa sobreposição
entre as diversas categorias de jogos. Alguns jogos-trabalhos
degeneram por momentos em jogos de ganhar, e, inversa­
mente, jogos de ganhar podem ser considerados por vezes
como jogos-trabalhos.
Tomemos por exemplo os jogos de berlindes ou de
bolas, que são jogos-trabalhos pelos quais o indivíduo
aumenta a agilidade e a destreza que lhe são necessárias
na sua luta activa pela vida. E são excelentes jogos que se
bastam a si mesmos pela satisfação que proporcionam de
necessidades funcionais dos indivíduos. Pode-se com efeito
jogar durante horas e dias aos berlindes e às bolas sem que
haja qualquer bolo. Tem-se prazer em medir a sua própria
força, em aperfeiçoar a sua destreza, em comparar a pre­
cisão de gestos, o autodomínio, a calma, com as de outros
parceiros pacíficos.
Mas acontece que, por necessidade doentia de excitante,
se perverte essa sã actividade com o elemento do ganho.
Então é rompido o encanto: há uma deslocação do interesse,
como já assinalámos; já se não joga pela satisfação do
jogo, mas é o engodo do ganho que domina; é em função
desse ganho cobiçado que são medidas e gastas as forças.
Basta efectivamente ver os jogadores de berlindes ou
de bolas para compreender, sem ser grande psicólogo, se
a partida é «interessada» ou não. Se os jogadores são apli­
cados, sérios, mas calmos, sociáveis e tolerantes, como no
trabalho: jogo-trabalho. Se há gritos, disputas encarniçadas,
cóleras, ameaças de desistência, trafulhice ou tentativa de
trafulhice: jogo de ganhar.
O mesmo pode ser apresentado para os jogos de cartas,
mas não podemos, sem explicação prévia, compreender estes
jogos entre os jogos-trabalhos.

75
d) Com efeito, os jogos de cartas não são propria­
mente jogos-trabalhos; eles são a representação, por meio
de símbolos, de actividades funcionais, ancestrais. É esse o
motivo por que lhes chamarei jogos-trabalhos simbolizados.
Vou explicar-me.
Nos jogos de cartas, tal como nos jogos que já exami­
námos, há luta, quer contra elementos, quer contra a natu­
reza, contra animais ou contra outros homens. Constituem-se
clãs que se defrontam. Só que as armas são apenas figu­
radas. São atributos que na origem participavam talvez prin­
cipalmente da magia, e com os quais se organizam com­
petições que exigem técnica, paciência, astúcia, dissimulação
e estratégia. E esses jogos simbólicos têm a vantagem de se
poderem praticar em lugares onde o jogo-trabalho corres­
pondente seria impossível.
Estamos no serão; não vamos, só para passar o tempo,
entregar-nos a uma batalha em regra entre dois campos
mais ou menos armados, esconder-nos, ou realizar uma
dissimulação para subitamente reatacar. O jogo de cartas
oferece-se como uma representação simbólica dessa luta:
sem ruído, sem deslocação, ao canto duma mesa, entre­
gamo-nos à única luta possível que corresponde às nossas
tendências naturais. Eu compararia esses jogadores aos
famosos estrategos de café que, com as suas bandeirinhas
movendo-se sobre um mapa das operações, dão a ilusão
completa de que participam na guerra: manobram exércitos,
operam emboscadas, surpresas, atacam nos pontos conside­
rados frágeis, defendem-se à direita e à esquerda utilizando
judiciosamente as suas reservas. É uma guerra simbólica,
inteiramente no tom dos nossos jogos simbolizados.
Basta de resto, para disso nos convencermos, considerar
a identidade dos termos usados nos dois casos: «Ataca!...
Atenção a espadas!... Não estás bastante sólido: joga à
defensiva!... Não deves jogar sozinho: utiliza o teu par­
ceiro!...».
Símbolos igualmente de jogos-trabalhos são outros jogos
tais como as damas, o gamão, e especialmente o xadrez,
em todos os aspectos comparáveis às manobras dos estra­
tegas de gabinete.

76
Como símbolos, esses jogos só intelectual e psiquica­
mente satisfazem as necessidades primordiais que nos
animam. O corpo, os músculos, não jogam. A própria
atmosfera, tão natural nos jogos-trabalhos, torna-se aqui
inteiramente artificial, tal como são artificiais as relações
entre jogadores, e a técnica imaginada. Por isso mesmo,
esses jogos simbolizados trazem em si, concebe-se, peri­
gosos germes de desequilíbrio; eles têm tendência para
hipertrofiar essa actividade exterior à vida, que constrói e
soluciona simbolicamente problemas que não têm dados
normais; eles acentuam, não já um comportamento orgânico
harmonioso, mas qualidades de espírito especiais, que podem
ser excelentes em si, mas cuja perversão intelectual corre o
risco de se tornar profundamente lamentável.
Basta analisar os caprichos dos estrategas de gabinete
para darmos conta dos perigos possíveis desses jogos-traba­
lhos simbolizados; eles adquirem o deplorável hábito, que
se torna como que uma mania inumana, de subestimar os
obstáculos verdadeiros, de desdenhar os sofrimentos ou
mesmo o extermínio dos combatentes, de se moverem em
pensamento num quadro fictício, anormal até ao ridículo.
Em todo o caso, no que me diz respeito, se comparo
a fadiga sã, a satisfação permanente de si próprio e a har­
monia que nos valia os nossos jogos-trabalhos, à fadiga
cerebral, ao enervamento, à desorientação suscitados por
jogos-trabalhos simbolizados; se me recordo de que, depois
de apaixonantes sessões de jogos de damas eu não podia
fechar os olhos sem ver dançar à minha frente a obcecante
confusão das pedras pretas e brancas, compreender-se-á que
classifique à parte, entre os verdadeiros jogos-trabalhos e
os jogos de ganhar, esses jogos simbolizados, e mais espe­
cialmente os jogos de cartas que o crescente sedentarismo
tanto tem generalizado.
Esses jogos, que deslizam tão facilmente para os jogos
de ganhar, e para o automatismo amolecedor, servir-nos-ão
de transição para uma última categoria de jogos a que
chamaremos: jogo-haxixe.
Mas antes, preciso de voltar ainda um momento à dife­
renciação essencial que vejo entre, por um lado, trabalho-

77
-jogo e jogo-trabalho, e por outro, jogos de descontracção
compensadora.
Todos os choques recessivos são de temer. Nem o nosso
corpo nem o nosso espírito estão preparados para uma
tensão que não esteja na norma do seu funcionamento.
Não é puxando exageradamente por um motor que o faze­
mos render o seu máximo. Essa tensão não pode deixar
de ser excepcional e passageira porque ela apresenta dema­
siados riscos para o equilíbrio e a vitalidade do mecanismo.
Ê unindo perfeitamente os pistões, melhorando a qualidade
do combustível, regulando cientificamente a mistura óptima
dos gases, que damos ao motor essa suavidade no funciona­
mento, essa potência sem fadiga nem estrago, que são como
que a imagem da maravilhosa máquina humana.
Só fingem acreditar que é necessário excitar artificial­
mente o motor humano, aqueles que não estão em condições
de lhe assegurar os elementos lógicos dum funcionamento
equilibrado.
Quando um traficante de automóveis quer «enfiar» uma
velha carripana a um principiante inexperiente, submete a
sua máquina à prova de uma dura subida; puxa pelo motor
a fundo, mas ele é o único a ter consciência do aqueci­
mento exagerado, a distinguir as pancadas brutais do pistão
chocando com os cilindros, a impressionar-se com as pan­
cadas vacilantes dos órgãos de transmissão. A máquina subiu
bem... O cliente declara-se satisfeito... A sua satisfação não
durará muito tempo: a doença virá rapidamente, primeiro
benigna, mas em breve incurável.
A excitação do nosso século produz a mesma ilusão
no observador que não sabe espreitar as vias misteriosas
da natureza humana. Porque jogos simbolizados ou jogos
de ganhar suscitam uma aplicação exclusiva, uma obstinação
desabitual, uma espécie de euforia passageira, atribuiu-se-lhes
uma superioridade usurpada sobre os trabalhos-jogos ou os
jogos-trabalhos. É bom que se volte a pôr todas as coisas
nos seus devidos lugares.

78
— Os jogos-trabalhos supõem em geral uma actividade
natural que proporciona uma fadiga sadia. Eles são desse
modo exercícios tónicos, que preparam para a actividade
social no meio ambiente. São portanto fundamentalmente
tranquilizantes e predispõem para o equilíbrio e a harmonia.
Os jogos-trabalhos simbolizados são pelo contrário
jogos sedentários, que ocasionam uma fadiga nervosa não
compensada por uma actividade física. De onde resulta dese­
quilíbrio orgânico e tendência para a desadaptação relati­
vamente ao meio ambiente.
Nos jogos de ganhar, a noção de actividade funcional
é aniquilada em proveito do resultado a obter que se torna
o único motor activo. Esses jogos são então acompanhados
de nervosidade, de mau humor e de oposição permanente
ao meio ambiente.
— Os jogos-trabalhos suscitam apenas, como vimos, sen­
timentos favoráveis à vida social. A criança que jogou bem
esses jogos está melhor disposta a sujeitar-se à necessidade
dos esforços que se lhe pedem. E o provérbio parece ser
exacto, aplicado a esta categoria de jogos: «quem sabe
brincar sabe trabalhar».
Raramente se vê as crianças mentirem ou trafulharem
durante esses jogos; as disputas são excepção; as vitórias
por assim dizer psíquicas não sucitam nos mais fortes e
nos mais hábeis essa suficiência que se manifesta tão inso­
lentemente e tão cruelmente em outros jogos.
Os jogos-trabalhos estão sob o signo permanente da
harmonia individual e social.
Jogos-trabalhos simbolizados e jogos de ganhar estão
pelo contrário sob o signo da oposição atenuada, violenta
ou brutal entre indivíduos e entre campos.
O objectivo, a razão de ser, é triunfar; não se olha
de muito perto aos meios: mentiras, trafulhices, roubos,
mais ou menos caracterizados, provocam disputas e batalhas,
tanto mais frequentes e tanto mais violentas quanto mais
importantes forem as paradas em disputa.
Inútil é insistir novamente nas consequências indivi­
duais, familiares e sociais de tais práticas que exasperam
todos os maus sentimentos: o orgulho, a vaidade, a inveja,

79
em especial. Se ganharam, os melhores armam-se em impor­
tantes: desprezam, humilham, mortificam aqueles a quem
despojaram. O seu sentimento de poder é assim a tal ponto
exaltado que são facilmente arrogantes para com os pais e
educadores. Se perderam, uma espécie de desânimo lhes
invade todo o ser; julgam-se exageradamente infelizes, como
se todo o mundo se coligasse contra eles. Tentam uma
suprema possibilidade: sacrificam o último soldo ou então
arrancam o último botão... Depois é a catástrofe...
Tem-se falado muitas vezes da miséria dos grandes
jogadores que se suicidam por vezes depois de haverem per­
dido. Também eu posso dizer, segundo as minhas recor­
dações, que os desesperos que me vieram de perder ao
jogo — quer as perdas fossem de dinheiro, de «girottes»,
de botões ou até de pregos — foram de uma intensidade que
se aparenta com os grandes sofrimentos morais e físicos a
que a vida no entanto não me poupou. Há uma acumu­
lação de infortúnios: inveja da sorte ou da riqueza dos
outros, desprezo e ódio exasperados pela soberba injuriosa
dos vencedores, enorme sentimento de inferioridade que para-
liza a personalidade como se desorganizasse até à morte uma
vida que é sempre afirmação de poder; todos os estados de
alma que não podem encontrar, pela sua natureza, qualquer
tábua de salvação que permitisse ao jogador voltar a subir
a encosta sobre a qual não faz mais que escorregar irreme­
diavelmente.
Que quer você que dê, social ou escolarmente, a
criança que está agitada e deprimida por sentimentos duma
violência desorganizadora tão extrema? Ela tem dificuldade
em libertar-se, embora o tente com os recursos que lhe
restam, bons ou maus. É o enervamento, o desequilíbrio, a
impotência perante o esforço. Acho que se poderia apa­
rentar essas crises íntimas suscitadas pelo jogo aos abalos
profundos que, tal como a puberdade, transformam o indiví­
duo, perturbam o seu comportamento, operam uma espécie de
revolução cujas repercussões sempre se medem mal.
E isso talvez não seja ainda o mais grave!
Se o trabalho-jogo é para as crianças a actividade
ideal, o jogo-trabalho, que é por assim dizer um substituto

80
daquele, nem por isso deixa de ser como que a expressão
natural da necessidade que o indivíduo tem de viver o mais
intensamente possível no quadro da família e da sociedade,
reproduzindo os gestos ancestrais que asseguram a vida e
a sua perpetuação.
Se a criança é repelida por certos trabalhos que os
progressos têm imposto aos adultos, refugia-se em jogos-
-trabalhos que são como que uma reacção de defesa contra
os atentados sociais à natureza funcional do trabalho dos
homens, uma reacção contra os erros e os desvios de que
nós somos culpados e que tendem para destruir a harmonia
e a dignidade da função trabalho.
O adulto, que tanto desaprendeu o verdadeiro trabalho,
não tem mais que olhar para as crianças entregues a um
dos nossos trabalhos-jogos, ou, na falta destes, entregarem-se
sem reserva, com uma escrupulosa consciência, aos seus
jogos-trabalhos, para terem uma ideia do lugar que ocupava
na origem, na vida do homem, essa função trabalho da
qual a nossa sociedade, diferenciada até ao extremo, apenas
conhece muitas vezes as dificuldades que são como que um
estigma de maldição.
Trabalhos-jogos e jogos-trabalhos restabelecem o cir­
cuito. É por isso que aqueles que, sobretudo nas aldeias,
foram impregnados por eles na sua juventude, trazem por
muito tempo em si. mau grado as vicissitudes ulteriores,
esse sentimento exaustivo da inelutável dignidade do tra­
balho, da necessidade funcional que lhe reserva um lugar
privilegiado no processo de crescimento e de fixação no
seio da sociedade viva. É como uma filiação que se con­
serva, que nos une misticamente, não só aos nossos con­
temporâneos, mas também às gerações passadas e futuras.
Esse amor pelo trabalho permanece, em definitivo, o único
elo verdadeiro entre os homens, pois que todas as grandes
coisas se fazem pela conjunção activa daqueles que, para
além da crosta ilusória e efémera dos gozos artificiais, se
reencontram numa mesma sede cândida do trabalho sobe­
rano.
6 81
E mal das crianças que nunca conheceram a satis-
tação profunda dos trabalhos-jogos, e para quem os jogos-
-trabalhos foram ultrapassados demasiado depressa pela
desumanidade daquilo a que poderíamos chamar trabalho-
-lucro, pela perversão debilitante dos jogos de descontracção
compensadora que vão inexoravelmente a par desse trabalho-
-lucro; ou mesmo pela embriaguez dos jogos-haxixe de cuja
maleficência nos resta falar! Elas são como abelhas às quais
restasse apenas o esforço de irem buscar a um recipiente
cheio de açúcar mascavado os elementos com os quais
encheriam, bem ou mal, os favos da sua colmeia; e um
esforço destacado do instinto que lhe dava um sentido e
uma finalidade, iluminada pela satisfação orgânica de voar
no ar húmido da manhã, de mergulhar no seio perfumado
das flores, de participar humilde, mas superiormente, no
grande devir da colmeia.
Impõe-se desde muito cedo aos indivíduos um tra­
balho incompreendido e incompreensível, desintegrado de
tudo quanto liga tão poderosamente o homem ao solo, ao
ar, aos pássaros, à família, à pátria; são arrancados ao seu
instinto, à luz que os guia e os eleva. E julga-se compensar
o esplendor vivificante dessa centelha tão diabolicamente
dissimulada com actividades que fazem esquecer a desu­
manidade do esforço, que divertem e distraem, como se esse
balancear de um extremo para outro pudesse alguma vez
reconstruir a harmonia vencida: como se o homem fosse
feito para se entregar a uma tarefa obcecante e maldita por
um lado—jogar, distrair-se e gozar por outro lado para
contrabalançar a aridez mortal do trabalho!
E quanto mais custoso é o trabalho, mais excitante
deve ser a compensação lúdica que tenta restabelecer o equi­
líbrio.
Quando não há no indivíduo, no seio da sociedade
na qual ele participa, uma unidade vital centrada no trabalho
em função das necessidades naturais e essenciais de cada
um de nós; quando não há harmonia entre as exigências do
corpo e do espírito, de todo o ser, e as actividades que
correspondem a essas exigências, então há uma tensão anor­

82
mal seguida de descontracções que são a reacção indispen­
sável do organismo que quer viver, tal como a dor e a febre
são os sinais tangíveis de um corpo que se defende contra
os ataques da doença. Se essas reacções páram, é ainda mais
grave: é porque o corpo está vencido, é porque o indivíduo
abandona a luta e vai, quer para a morte total, quer para a
aceitação passiva da sua perda; e é então o envelhecimento,
a destruição de toda a dignidade, a morte moral, mais
terrível e mais desumana por vezes do que a morte física.
Mas antes de chegar a esse extremo catastrófico, o indi­
víduo defende-se, primeiro por vias normais, depois por
vias subterrâneas. Estas suscitam perturbações, comporta­
mentos misteriosamente anormais, cuja causa raramente rela­
cionamos com a sua verdadeira origem que é a ruptura do
equilíbrio, a aniquilação do sentido da vida e das activi-
dades que este comporta, a conjunção com uma natureza
que se mantém implacável para quem ignora as suas leis.
Já lho disse: quanto mais ameaçador é o ataque contra
esse equilíbrio vital, maior amplitude tem a reacção de
defesa. Poder-se-ia enunciar verdadeiras leis que regulam
o regime desse equilíbrio em relação às forças opostas que
procuram obstinadamente as suas linhas de estabilidade:

1. Quanto mais trabalho vivo e funcional houver, tra­


balho-jogo ou, na falta deste, jogo-trabalho, menos se faz
sentir a necessidade de jogos de distracção ou de descon­
tracção compensadora. Nas condições óptimas, estas duas
últimas categorias de jogos devem ser totalmente ignoradas
ou abandonadas.
2. O trabalho não funcional, portanto imposto, quer
por uma autoridade brutal, quer pela ambiência social, ou
mesmo por um processo aparentemente não autoritário,
provoca a necessidade de descontracção compensadora pelos
jogos simbolizados ou pelos jogos de ganhar.
3. Quanto mais o trabalho custa, mais se afasta das
grandes linhas naturais da vida, mais exigente se torna
a necessidade de descontracção compensadora.

83
4. Dito de outro modo: a paixão pelo jogo está na
razão directa da opressão do trabalho, e na razão inversa
do interesse funcional deste.
5. Quanto mais nos afastamos do trabalho mais nos
aproximamos do jogo sob as suas diversas formas.
6. Quanto mais nos aproximamos das grandes linhas
da vida centradas no trabalho funcional, interessante, com­
preendido e desejado, mais o indivíduo satisfeito se afasta
das actividades de descontracção compensadora.

Estas leis, como vê, trazem em si toda a sua moralidade.


Elas são de uma simplicidade luminosa que nos vai tornar
fácil a crítica dos diversos sistemas pedagógicos e o esta­
belecimento das actividades mais favoráveis ao desenvol­
vimento harmonioso das nossas crianças.
Mas isto não é tudo.
Pode haver uma tal exasperação nesse desequilíbrio que
a própria descontracção já não chegue para compensar os
estragos de uma criminosa incompreensão. A um determinado
grau de desumanidade, o trabalho torna-se um fardo, quer
físico, quer moral, insuportável. A menos que seja a ausência
de trabalho que, procurada por vezes como um objectivo
benéfico, chegue ao mesmo decepcionante resultado. Nesse
momento, o indivíduo desequilibrado não mais reencontra
o sentido íntimo da vida, como o animal que sofre ao
ponto de se debater para um lado e para o outro, enlou­
quecido, chocando de frente cqm obstáculos insuperáveis,
urrando lamentavelmente para cair abatido, antes de tentar
um novo assalto cego e desesperado. Então é já demasiado
tarde: o jogo de descontracção compensadora já não basta.
O indivíduo tem necessidade de se evadir, de esquecer
totalmente a sua penosa condição, de adormecer a todo
o custo o seu sofrimento físico e moral, de reduzir artifi­
cialmente essa sensação mortal dum irredutível desequilíbrio.
É aquilo a que eu chamarei a solução-haxixe, que faz
esquecer momentaneamente um mundo dominado pela mal­
dição de um esforço inumano, uma solução que mascara esse
desequilíbrio e produz, numa atmosfera artificial, um gozo

84
físico ou sensual que faz dela a suprema compensação, sem
a qual não poderia ser continuado por mais tempo um
esforço anormal que gasta até as últimas razões de viver.
Às soluções haxixe, imaginadas por uma época que
perdeu quase totalmente esse tão necessário sentimento do
trabalho funcional, são aliás incrivelmente engenhosas e
variadas. Seremos forçados a examiná-las em pormenor para
apreciar no seu valor, humanamente, dignamente, os diversos
meios de informação, de instrução, de distracção, de gozo
e de passatempo que são oferecidos pelo progresso, anarqui-
camente, a indivíduos enlouquecidos por terem perdido a sua
ligação fundamental com as actividades humanas essenciais.
Vemos então a queda progressiva e acelerada.
— A criança incompreendida e maltratada num mundo
em que ela não tem lugar, entrega-se espontaneamente a
actividades que dependem do instinto e que, como tais,
respondem em geral às necessidades do indivíduo, da socie­
dade e da espécie.
— Se a constrangerem, directa ou indirectamente, a acti­
vidades que não estão à sua medida, e que se não produzem
no sentido das suas virtualidades imperiosas, se ela sofre
em todo o seu ser de necessidades essenciais insatisfeitas e
da ruptura mais ou menos brutal de um equilíbrio que é ine­
rente à sua vida, a criança fica então reduzida a procurar nos
jogos uma descontracção compensadora cujo perigo está em
relação directa com a desumanidade da opressão.
— Se esta, tornando-se enfim exageradamente nociva,
desintegra as forças vitais do indivíduo, só resta à criança
um recurso: evadir-se de um mundo injusto e procurar noutro
lado, noutros prazeres, numa outra atmosfera, as compen­
sações sem as quais a vida já não teria sentido.
Veja como nos arriscamos a afastar-nos, sem por vezes
o suspeitarmos, das fontes da vida e da harmonia, como
nos arriscamos a tomar por lógicas e desejáveis práticas que
são apenas males menores, num mundo que perdeu todos
os seus impulsos, e como é necessário reencontrar as nossas
grandes, as nossas essenciais linhas de vida.

85
Mas o sol desce... Demorei-me exageradamente a afiar
a minha gadanha. Agora tenho que ir ceifar a Para... E de
resto já o aborreci bastante por esta tarde...
— Aborrecer? Mas não!... Pelo contrário, sinto, ao con­
tacto com o seu pensamento, desenhar-se lentamente, penosos
e difusos primeiro, agrestes depois decerto, mas luminosa­
mente promissores, os caminhos que nos vão permitir subir
novamente a encosta.
— Com efeito, antes de agir é preciso compreender, ou
pelo menos sentir a lógica e a verdade da nossa orientação.
Não basta caminhar. É preciso caminhar para um objectivo,
e pelos caminhos que a ele conduzem!
Dentro de alguns dias tenho de começar a ceifa; depois
a colheita da alfazema não nos deixará nem mais um ins­
tante. E quando for preciso debulhar, e estivermos ocupados
mesmo de noite, ficar-me-á sempre certamente um momento
para reflectir, mas não o bastante para pôr as minhas ideias
em ordem, precisando-as como o faço, tanto para mim
como para vós. Quando consigo ligar assim no meu espírito
ideias que se tinham reunido por vezes ao acaso das refle­
xões, das conversas ou de leituras passageiras, sinto-me
mais seguro de mim, mais capaz de ir para a frente sem
fadiga anormal, como a dona de casa que se acha aliviada
por ter posto ordem na sua casa, como o camponês que se
felicita por haver reerguido os muros dos seus campos,
arrancando as silvas que pouco a pouco invadiam as cultu­
ras, podando as árvores que todos os anos estendiam a sua
sombra estéril... Poderá agora lavrar de uma ponta à outra
do seu terreno, em longos regos profundos.
Aproveitemos estes últimos dias de calma. Esta noite,
se assim o quiser, terminaremos a triste aventura do haxixe.

86
35. O JOGO-HAXIXE

E EIS FINALMENTE O JOGO-HAXIXE,


PARENTE PRÓXIMO DESSAS OUTRAS
DROGAS QUE SÃO, EM CERTAS CONDI­
ÇÕES, O ÁLCOOL, O TABACO, O LIVRO,
O CINEMA OU A RÁDIO

— Ver claro, meditava o senhor Long, reencontrar a


simplicidade original das grandes linhas invadidas pela
complexidade artificial da vida moderna, é talvez o único
recurso que nos resta para nos salvarmos.
A sua mulher, mais instintiva, mais sensível, e para
quem a cultura havia deslizado sobre o seu comportamento
mais do que nele se havia integrado, estava ainda mais per­
suadida disso.
— O senhor Mathieu tem inteira razão — precisa ela.
Nós somos como esses jardineiros inconsequentes que acumu­
lam sobre a sua leira de terra, sem discernimento, todas as
árvores cuja folhagem, cuja estatura, ornamentos e frutos
lhes parecem ser dons dos deuses... ou da civilização. Só
que, nessa acumulação inconsiderada, nem o ar nem o sol
circulam já, e as próprias raízes se contrariam. A natureza
tão prometedora torna-se assim estéril.
Nós, mais do que quaisquer outros, temos necessidade
de podar, de escolher, de cortar, de atingir os princípios
de vida e de fertilidade, se quisermos um dia recolher os
frutos do nosso esforço.
— Mas, também, somos tão pouco ajudados nisso! Ao
longo dos séculos, aparecem, aqui e acolá, algumas indivi­
dualidades cujo cérebro poderoso, impermeável, dir-se-ia, à
complexidade do erro, faz surgir, como relâmpagos, alguns
pensamentos irradiantes e fecundos. Mas ao longo desses
caminhos entreabertos, investigadores improvisados vêm plan­
tar as árvores por vezes admiráveis da sua ciência. E cada

87
um deles cultiva tão bem a sua especialidade que o caminho,
um belo dia, fica obscurecido, submerso sob a riqueza que
o margina, e corre o risco de desaparecer sob um amontoado
de opulência se não aparecer algum intrépido pioneiro que,
com o seu machado iconoclasta, venha reencontrar e desim­
pedir a via real...
— E não é necessário ser «sábio» para tentar e conse­
guir essa descoberta. Há mesmo, dir-se-ia, uma espécie de
antinomia entre esse espírito de análise obstinada e a grande
intuição penetrante daqueles que vêem...
— Como este Mathieu!...
— Não digo que ele não remexa um tanto, por vezes,
algumas verdades que adivinha mais do que concebe, e que
maldiga assim de esforços e de realizações...
— Que resultaram no impasse em que nos encontra­
mos... Com o seu bom senso, é ele que nos educa. Com­
preendemos finalmente ao seu contacto que certos conceitos
que considerávamos essenciais não são no fundo mais do
que acessórios, e que perdemos o nosso tempo a ornamentar
com o lustro de uma falsa riqueza colunas das quais nem
sequer fomos capazes de verificar o aprumo. Como espantar­
mo-nos depois que o nosso mundo esteja um tanto lasso?
— Mathieu é certamente hábil em despojar do seu falso
brilho os métodos antigos e novos, os processos e as técnicas
que favorecem e servem as nossas fraquezas... Será trabalho
nosso fazer beneficiar as nossas técnicas escolares dos seus
ensinamentos.
— E é essa a tarefa mais delicada!...
— E que continua a ser o escolho. Partimos com algumas
belas teorias, depois as dificuldades acumulam-se a tal ponto
que um dia, desiludidos, retomamos humildemente o cami­
nho comum, ainda que ele conduza ao impasse e ao preci­
pício...
— Essa seria a pior das derrotas... Vamos antes ter com
o nosso filósofo...

Esplendor das noites de Junho nas aldeias tranquilas...


Os últimos animais regressam. As pessoas, engolida a sopa,

88
respiram por momentos à entrada das portas. Os melros
regressam ao cimo do rochedo e seguimo-los pelo rasto dos
seus gritos inquietos... Uma coruja ulula... Morcegos vol­
teiam entre as casas e, ao longe, uma raposa atira para
o céu profundo o seu latido prolongado, martelado de angús­
tia e de temor.
Mathieu vem sentar-se sobre o parapeito de pedra, à
esquina da escola, cachimbo aceso, cuspinhando por momen­
tos como que para dissimular um certo embaraço.
— Haxixe! senhor Mathieu — graceja o senhor Long que
se lhe vem juntar, na companhia da sua mulher.
— Não, simplesmente tabaco... Mas tem razão: é de
qualquer modo haxixe. Um velho hábito, mau, reconheço,
que me ficou da outra guerra. Porque, para suportar a lama
e o frio, o infernal concerto dos bombardeamentos, era neces­
sário embebedarmo-nos de algum modo, evadirmo-nos artifi­
cialmente da alucinante realidade, reencontrar na vida quoti­
diana algum prazer, ainda que aviltante, a fim de suportar
e durar.
Isto é mesmo uma exacta ilustração daquilo que vos
expliquei esta tarde. Recordo-me em particular da nossa
estadia num sector excepcionalmente penoso. Para ir à pri­
meira linha, tínhamos que nadar nas passagens transformadas
em profundos canais de lama viscosa e fria; e esperávamos
depois pacientemente, diante das ameias, que o vento fizesse
retesar as nossas roupas ensopadas. Acrescente-se a isso os
bombardeamentos incessantes, os foguetes, as metralhadoras,
as ameaças de golpes de mão... Era de uma desumanidade
total.
Para aguentar — pois era preciso aguentar ou morrer,
e morrer é sempre a última solução encarada — aspirávamos
a evadir-nos, pelo menos em pensamento, daquele inferno.
Mas dormir, e mesmo sonhar, era perigoso. Só tínhamos um
meio lícito para atenuar os nossos sofrimentos físicos e morais
— ou antes, existiam dois: a aguardente e o tabaco.
Quando, depois do jantar frio e indigesto, eu bebia o meu
meio quartilho de uma mistura que fedia a éter e queimava
as goelas, e acendia um cachimbo saboroso, ria-me então

89
da lama e das explosões. Saía do abrigo: era como que uma
nova atmosfera, uma atmosfera de sonho. O sol, geralmente
tão pálido, tinha adquirido brilho; os ruídos da guerra pare­
ciam-me familiares e inofensivos. E até aquele assobiar do
obus, aquele despedaçar, não era um pouco para rir, como
os petardos de festa?
O haxixe tinha feito o seu trabalho, transformando,
metamorfoseando, idealizando a realidade que nos rodeava
e que se tornava assim mais humanamente suportável.
O doente reclama um calmante, qualquer que ele seja,
morfina ou ópio, para atenuar por um momento a sua dor.
As crianças que temem a tempestade fecham obstinadamente
os olhos, ou escondem a cabeça sob os cobertores, e tapam
os ouvidos para atenuar os efeitos da ameaça. São soluções,
mas soluções momentâneas que não alteram absolutamente
nada os dados do problema angustiante que nos é levan­
tado pela natureza ou pelos acontecimentos, mas apenas
enfraquecem a sensação dolorosa e obcecante que deles temos.
Também vocês sentem decerto que, sob o efeito desse
haxixe, todo o mecanismo de acção e de reacção de que nós
somos sede é radicalmente falseado. Dado que já não senti­
mos com a mesma acuidade, já não vemos os efeitos da sua
exacta realidade; produz-se necessariamente uma ruptura,
uma desadaptação nos actos consequentes. A explosão do
obus, que já não é sentida em toda a sua horrível ameaça,
já não desencadeia o reflexo normal do deitar no fundo
da trincheira; o zumbido das balas já não está tão estrei­
tamente ligado à noção precisa do perigo... E deixamo-nos
matar mais facilmente!
A solução haxixe é sempre, em todos os casos, uma
solução de impotência, de cobardia e de abdicação perante
as exigências da vida heróica. Ela põe-nos à mercê daqueles
que, especulando com a nossa fraqueza, saberão vendar-nos
os olhos para nos arrastar vergonhosamente, e cegamente,
para os actos, ou para a passividade, que servem os seus
interesses. Não é impunemente que se volta as costas a um
destino de homem, esse destino que nos prescreve que enfren­
temos sempre, para a dominar, a realidade tal como ela se

90
apresenta, por mais terrível que seja; que conservemos o
máximo de vigor nesse cérebro, nessa inteligência, nessa
razão que são a nossa suprema nobreza; que salvaguardemos
a todo o custo a nossa invencível vontade de vida.
— Não é inteiramente nesses termos que explicamos às
nossas crianças a decadência física e moral que provocam
não só o abuso, mas o simples uso do tabaco e do álcool.
No entanto, você sabe bem que no fundo nós somos da sua
opinião. Só os alcoólicos incorrigíveis e os fumadores dema­
siado apaixonados poderiam considerar como anódinas as
consequências dos seus vícios em relação às vantagens da
excitação que eles lhes proporcionam e que se lhes tornaram
uma necessidade orgânica.
— Sim, você denuncia, prescreve essa variedade de haxixe
enquanto usa, mesmo na sua escola, variedades ainda mais
subtis e mais perigosas, mas que vocês apresentam hipocri­
tamente como remédios eficazes para as fraquezas do vosso
ensino.
— Por exemplo!... A sua extrema severidade intriga-me,
porque na verdade, se ainda erro nesse sentido é intei­
ramente a meu pesar.
— Não vos apresentarei teorias, para ir imediatamente
aos factos cujo grave alcance vocês apreciarão.
Disse-lhes há pouco que tínhamos nas trincheiras dois
processos lícitos, oficiais por assim dizer, de evasão: a aguar­
dente e o tabaco. Estas duas vieram-me espontaneamente ao
espírito porque são formas correntes de haxixe, condenadas
pela moral habitual — salvo em tempo de guerra, bem enten­
dido— cujos efeitos nocivos são complacentemente medidos
e descritos em todos os livros, e que todos nós mais ou menos
experimentámos. E depois eis que o meu raciocínio me atira
para outras práticas que destilam esse mesmo suporífero do
espírito, essa possibilidade de transferência efectiva para uma
atmosfera mais aceitável, mas que não é mais do que uma
miragem passageira e enganadora.
Que fazer no nosso buraco insuportável quando se tinha
dissipado a nebulosa sonolência proporcionada pelo álcool
e pelo tabaco? Dar voltas à cabeça para tentar compreender

91
o incompreensível? Tentar reflectir sobre o nosso destino no
contacto com homens que a experiência convenceu da inuti­
lidade de pensar?... Jogávamos às cartas. Acendíamos uma
vela colocada sobre uma gamela; estendíamos um cobertor;
alguém apresentava um baralho engordurado, e vamos a isto:
manilha ou banco!... Totalmente absorvidos pela luta arti­
ficial da partida, ou pelo engodo do ganho que vinha acen­
tuar a paixão, éramos transportados para um outro mundo
em que dominava o jogo e a sorte. E, tal como depois da
injecção da droga, esquecíamos tudo: o frio que nos entor­
pecia, o fumo que nos atacava a garganta, e que nós evitá­
vamos deitando-nos no chão, o rugir do canhão acima de
nós, a morte ameaçadora, o ferimento, tudo, até a noção
opressiva daquela guerra sem fim. E era com pesar que
interrompíamos o nosso jogo de cartas, que dobrávamos
o cobertor, quebrando assim o encanto que esvaziava por
uns momentos o nosso espírito das obcecantes realidades.
E não eram só as cartas... Alguns nunca jogavam, mas
usavam um outro haxixe que vocês certamente não reconhe­
cerão como tal: a leitura!...
— Não vai por certo comparar!... Uma ocupação que,
pelo menos, enriquece e educa o espírito!
— Ah, sim, trata-se disso!... Acha que alguém nas trin­
cheiras procurava, nas páginas de um livro, um raciocínio
reconfortante ou um pensamento fecundo?... Salvo alguns
raríssimos espécimes de filósofos obstinados que de resto
nunca encontrei entre os «peludos»1 da fileira, a massa dos
infelizes soldados liam do mesmo modo que bebiam, fuma­
vam ou jogavam às cartas, para adormecer por momentos
o espírito e tentar viver, ainda que apenas pelo sonho e
a ilusão.
É o que explica de resto que esses homens lessem fosse
o que fosse, contanto que uma intriga absorvente os empol­
gasse, e, mantendo-os habilmente na expectativa, os arras­
tasse, à custa das aventuras mais rocambolescas, para um i

1 Designação dada aos combatentes da grande guerra


— N. T.

92
mundo onde se mergulha como num sonho que faz passar
o tempo e permite esquecer. E é essa a única virtude que
se pede ao livro. As raras linhas em que o autor procura
atingir, despertar o interesse do espírito, são consideradas
como supérfluas e geralmente saltadas. O valor dos autores
é apenas função da mestria com que sabem atenuar o espec-
táculo inumano da nossa vida para nos passear entre outras
vidas das quais participamos em pensamento. Aquilo que
se pede ao bom romance, tal como à boa aguardente, como
ao cachimbo cuidado, é que adormeça cuidadosamente o espí­
rito e nos abra outros horizontes...
— Que podem ser belos!...
— Belos ou feios, o essencial é que sejam outros, e menos
bárbaros!... Haxixe!... Haxixe!...
E o haxixe das canções!...
Toda a nossa civilização está hoje com efeito colocada
sob o signo desesperante do haxixe... Mas eu disse que queria
citar-vos principalmente factos; deles tirareis comigo as con­
clusões que se impõem.
Dizia eu: o haxixe das canções!...
No nosso buraco sombrio como um sepulcro, um fol­
gazão começava a cantar, maquinalmente, não importava
que canção, contanto que fosse carregada desse poder miste­
rioso que leva o espírito do infeliz para outras esferas mais
promissoras, que exprimisse sentimentos familiares que evo­
cam imagens sugestivas e fazem surgir a miragem.
Outros «peludos» entoam a mesma canção, e a sua
participação activa fá-los penetrar mais totalmente ainda na
esfera da ilusão. Até aqueles que ficam calados nem por
isso deixam de ser deliciosamente transportados, também,
para longe da sua insuportável condição. Eles não procuram
na canção nem o sentimento delicado que é em si mesmo
elevação, nem a sensação de arte e de emoção que é um
enobrecimento. Essas são preocupações de luxo para quem
conservou pelo menos o elementar sentimento da dignidade
de homem. De momento, os «peludos» apenas precisam de
haxixe, aquele ou qualquer outro, desde que proporcione
o alívio e a evasão que se espera.

93
E a prova de que tudo isso se trata apenas de haxixe,
é que, à parte a deplorável sedução do hábito, só se recorre
a ele quando se sente necessidade disso, tal como o doente
reclama o ópio quando não pode adormecer. Quando se
vem para a rectaguarda, ou de licença, com a possibilidade
de gozar do sol e dos campos e de um mínimo de humanidade,
afasta-se a aguardente, o tabaco, só se joga às cartas à noite,
e modifica-se um tanto o repertório das canções.
É de crer que o mundo, para muitas pessoas, não tem
muito mais atractivos naturais do que os bombardeamentos
e a lama das trincheiras para os «peludos», pois que os vejo
permanentemente à procura do haxixe.
O operário abandona o seu trabalho extenuante: pare­
ce-lhe nunca mais passar a porta da oficina para acender
o cigarro. O café em frente atrai-o: um copo sacode o sangue
e faz recuar o desânimo!... O casebre é sujo e tão pouco
acolhedor; há tanto barulho e tantos gritos!... O nosso
homem volta para o café para fazer a sua maquinal partida
de bisca, durante a qual esquece tudo: a fadiga do corpo, a
miséria do lar, e a sua própria degradação. Sai dali espan­
tado e desequilibrado, como um sonâmbulo atirado sem tran­
sição, por um despertar brusco, do sonho para a realidade
à qual dificilmente ajusta as reacções do seu corpo, dos seus
pensamentos e sentimentos. Se não pode voltar a sair depois
do jantar, que fazer? Agarra um jornal, ou um livro, não
para procurar aí documentação e enriquecimento, mas para
se evadir, para esquecer, para «passar o tempo», como na
bisca... E por consequência só aprecia livros e jornais que
fazem correr os minutos e as horas. Esgota-se já bastante
durante o dia para vir esgotar-se ainda mais a reflectir! E
os editores têm consciência dessa exigência, que naturalmente
não iriam desiludir!...
Se tem um rádio, o homem roda o botão para tomar
uma emissão de haxixe, como há tantas — porque é preciso
que a rádio, serviço público, corresponda às necessidades de
evasão dos auditores!... As emissões que fazem reflectir são
afastadas impiedosamente como «enfadonhas». E, de facto,

94
isso nem sempre é culpa dos auditores. Nunca é mesmo por
sua culpa: eles são apenas vítimas!...
E depois, sempre que se pode, vai-se ao cinema... Este
é o haxixe moderno, aperfeiçoado, que, sob a aparência de
progresso, produz sobre a inteligência e sobre os sentidos
um autêntico feitiço. Lá fora, é o céu estrelado, imensa­
mente silencioso e calmo. E nós penetramos numa sala magi-
camente iluminada com uma luz de sonho, ora fascinante
no seu deslumbramento, ora peneirada e difusa como um
promissor crepúsculo de primavera. Sentamo-nos conforta­
velmente e assistimos passivamente, como estranhos, ao desen­
rolar fantasmagórico de imagens que dão a ilusão perfeita
da realidade. E que realidade! Não naturalmente essa monó­
tona realidade quotidiana que nos obceca e sobre a qual
ninguém nos ajuda a reflectir humanamente. Não! São situa­
ções divertidas e inverosímeis por vezes, em meios que con­
trastam com aqueles em que vivemos, com costumes que
nos parecem originais, paixões excessivas que nos agitam e
excitam, contrastes que fazem explodir um riso epidémico.
Quando a sessão termina e as luzes se reacendem brus­
camente, recaímos lamentavelmente no mundo das penas, dos
cuidados e da fealdade, que, durante duas horas, tínhamos
esquecido tão totalmente.
O cinema é, como já lhes disse, o jogo haxixe por
excelência.
Alguma vez tentaram recordar-se dos vossos sonhos,
rever, ao despertar, essas imagens espantosas que ora galo­
pam em nós ora se deixam pelo contrário arrastar, sob todos
os seus aspectos, como que para nos torturar? Estamos ali,
em nossa casa, e ao mesmo tempo a cem léguas dali; os
muros da sala em que nos encontramos abatem-se; as casas
fundem-se umas nas outras, conservando ao mesmo tempo
os seus caracteres diferentes miraculosamente sobrepostos;
abrem-se precipícios, medonhos, mas nós triunfamos deles
com um salto gigantesco; ou então planamos, como águias,
sobre as planícies, para cairmos, com emoção, no meio dos
malmequeres. Temos aí, encavalitados e sobrepostos, aspec­
tos tristes e alegres, medonhos e sublimes, assassínios e cria­

95
ções, amor e ódio. Mas por mais que reflictamos. não
conseguimos fixar nenhuma relação entre essas imagens e
esses pensamentos. Somos transportados para uma outra
esfera que tem as suas leis, a sua lógica, o seu ritmo, o seu
esplendor, sem qualquer medida comum com as leis que
dominam a nossa própria vida. Por isso o espectáculo ou a
recordação dos nossos sonhos nos são de momento de uma
completa inutilidade para a direcção do nosso devir.
Julgo que a grande atracção do cinema vem exacta-
mente do facto de ele ter sido copiado sobre o processo
estonteante do sonho, e de tal como este, nos trazer pelo
menos o esquecimento total. Mas esse esquecimento não
nos serve de modo nenhum. Melhor: ele contribui para nos
desequilibrar e para suscitar a confusão mental. A imagem
visual, embelezada, fortemente iluminada, sonorizada, possui
um tal poder de sugestão que nos perguntamos depois por
vezes se é a vida que tem razão ou se o cinema. Tentar-se-á
copiar determinado actor, reproduzir determinadas atitudes
que nos perturbaram, pensar e falar, agir enfim como deter­
minadas personagens. E depois espantar-nos-emos por pen­
sarmos falsamente, por agirmos desrazoavelmente, por falhar­
mos nos nossos actos, por falharmos o nosso destino, porque
teremos tomado inconsideradamente o sonho pela reali­
dade... Está a ver, é o autêntico, o terrível haxixe!
— No entanto, não vai condenar sem remissão os livros
que conservam e transmitem os mais comoventes tesouros de
cultura da humanidade, o cinema que, depois das suas hesi­
tações iniciais, está em vias de se tornar um meio artístico
de expressão de uma amplitude, de uma profundidade intui­
tiva, de um poder nunca igualados!
— Tal como há jogos-trabalhos que degeneram em
simples jogos de descontracção, depois em jogos haxixe, a
leitura, a rádio, o cinema, estão efectivamente carregados
de virtualidades favoráveis. Mas quando vejo o uso prático
que deles fazem a maioria dos homens, não vejo verdadei­
ramente mais do que haxixe, e pergunto-me se a humani­
dade conseguirá algum dia dominar a essência dessas técni­
cas, ou se pelo contrário arrastará como uma grilheta dan-

96
tesca a hipoteca de um sonho de formas falaciosamente
múltiplas, que os mortais cultivam amorosamente porque
ele continua a sua miragem subsconsciente e veste de um luxo
que a ilumina uma realidade cujo sentido se tem menos­
prezado e ignorado.
— Basta por vezes, você mesmo o disse, alguns homens
que vêem claro...
— Mas se os outros não querem compreender nem
admitir o seu ensinamento!...
Só a criança poderia ser ajudada a apreender melhor
aquilo que nos resta de vida inteligente. Mas vocês também
lhe não poupam o haxixe...
— Como? Nós?... Esquece então que a nossa escola foi
criada sob o signo da consciência e da razão...
— Mas o estandarte não basta... Haxixe, digo-lhe eu...
Haxixe, as vossas lições inteiramente verbais que correm
como palavras adormecedoras... Enquanto vocês falam, a
criança retoma o seu sonho, e anima à sua maneira palavras
que já não têm de modo algum para ela o sentido que
vocês lhes atribuem. Como poderiam vocês compreender-se?
A leitura? Há os alunos que, mau grado os vossos
esforços, nunca lêem a não ser alguns manuais que são
o seu breviário, que são constrangidos a resmonear. Esses
pelo menos, por mais paradoxal que pareça, ainda se
poderão salvar porque não conheceram a perversão exci­
tante e prometedora de uma certa leitura. Mas aqueles que
sentiram prematuramente tudo quanto o livro haxixe pode
satisfazer de curiosidade doentia, de necessidade de excita­
ção e de evasão, esses estão perdidos. Doravante o livro não
será para eles mais do que um meio cómodo de conseguir
algumas das sensações de que a vida os privou. Devo­
rarão, tal como os «peludos», todos os livros que lhes
caírem nas mãos, sem escolha nem discernimento, desde
que a narrativa lhes proporcione a única coisa que dela espe­
ram: o milagre do haxixe!... Não se trata de reflexão, pois
que eles procuram pelo contrário o livro para não mais
pensarem nem reflectirem. Saltarão desdenhosamente por
cima de todas as páginas que lhes trariam alguma riqueza

97
sensata; adquirirão o deplorável hábito de ler superficial­
mente, vendo apenas nas palavras as imagens, verdadeiras
ou falsas, que nelas supõem, totalmente aturdidos como
estão por essa atmosfera fictícia em que assim se encontram
mergulhados.
Eu sei que os professores louvam em geral as crianças
que lêem muito e que adquiriram desse modo, no trato com
os livros, um certo verniz que está perfeitamente no tom
dos hábitos escolares. Se eles olhassem mais de perto, pre­
feririam como eu, a esses falsos eruditos, as personalidades
intuitivas e naturais que ainda não sentiram o gosto tenta­
dor do haxixe, e que têm o privilégio — que não podem
eles conservá-lo? — de preferir à droga que os arranca à
realidade essa mesma realidade que ainda os não desiludiu.
A frescura primaveril do prado esmaltado de narcisos parece-
-lhes divinamente superior às mais hábeis descrições que dele
possam ter feito os poetas; os seus animais falam uma lin­
guagem que eles por certo não seriam capazes de exprimir
mas que tem para eles uma outra poesia sensível que não
têm as fábulas mais ou menos morais que vocês lhes ofe­
recem como obras primas. E mesmo as aventuras! Que
necessidade têm eles dos vossos livros quando podem ima­
giná-las e vivê-las com uma outra intensidade nos seus
trabalhos e jogos?
É porque essas crianças permanecem mais tempo na
realidade, porque não sofreram, na sua tenra idade, essa
transposição enganadora que a cultura vem operar, que elas
são em geral mais sensatas, mais lógicas, mais severamente
reflectidas e, em definitivo, melhor armadas do que os mais
encarniçados leitores para o verdadeiro combate da vida.
Isto não poderia ser uma condenação definitiva do
livro em si mesmo. Há certamente uma maneira de utilizar
o livro como instrumento de elevação e de cultura, sem o
gosto oculto do haxixe de que se deve poder preservar
também a rádio, o cinema e todo o ensino em geral. Mas
é preciso primeiro apreciar no seu justo valor os utensílios
de que nos servimos e não tomar por qualidades os seus
defeitos mais evidentes.

98
Se queremos preservar as nossas crianças do embru­
tecimento do haxixe, é necessário conhecer com precisão
os alimentos que contêm a droga, e os meios de a eliminar.
Isso não se verifica, nem se verificará sem reacção por
parte daqueles que dela se aproveitam ou que dela vivem.
Porque o haxixe é tão insidiosa e diabolicamente ten­
tador, que se têm a seu respeito todas as indulgências.
Não presta ele aos pais e aos educadores o notável serviço
de interessar e de apaixonar as crianças, de excitar- as mais
apáticas, de as recompensar pelos esforços consentidos? Isso
é mais simples do que organizar o trabalho e a vida dos
escolares para que eles possam entregar-se às sãs activi­
dades que a sua natureza exige. Não se diz que as mães
normandas dão aos seus bebés belos copos de aguardente?
Isso fá-los dormir e, durante esse tempo, os pais estão
tranquilos.
E não falo dos numerosos jogos que, mesmo na escola,
têm como única virtude dar o seu contributo de haxixe...
Mas pelo menos as crianças vão de bom grado às aulas
e têm prazer em lá estar. A ração de haxixe, poderia eu
dizer, é o prazer das crianças e a tranquilidade dos pais e
dos educadores.
Mas quê? O nosso objectivo seria efectivamente embru­
tecer as crianças, adormecê-las ou apaixoná-las por práticas
que lhe fazem negligenciar os seus mais elementares deveres
de crianças e de homens? Devemos embalá-las em ilusões
cómodas, sob pretexto de preguiça, de prazer ou de menor
esforço, ou ajudá-las a apreender a realidade, a viverem
a sua vida heroicamente, com as suas alegrias sãs, as suas
actividades sociais, a sua submissão consciente às grandes
leis do mundo; prepará-las eficazmente para preencherem
o seu destino ou para «encostarem» cobardemente? Como
se se pudesse por muito tempo usar de astúcia com a vida,
e não fosse punido, pelo menos com o seu desequilíbrio,
aquele que tentou subtrair-se aos seus essenciais deveres de
homem.

99
36. CONSEQUÊNCIAS PEDAGÓGICAS

COLOCAR A CRIANÇA NO CENTRO DAS


PREOCUPAÇÕES PEDAGÓGICAS, COLOCAR
O TRABALHO-JOGO NO CENTRO DA
ACTIVIDADE INFANTIL, DAR A PRIMAZIA
À ACÇÃO FECUNDA SOBRE O PENSAMENTO
PURAMENTE ESPECULATIVO, TAL É
A REVOLUÇÃO COPERNICIANA QUE
RESTA REALIZAR COM URGÊNCIA
EM EDUCAÇÃO

Mathieu sacudiu o cachimbo que se apagara.


— Temos concluído o nosso exame dos jogos. Também
não era nosso objectivo passar em revista os pormenores
de todos os jogos existentes —há uma tal diversidade e
uma tal infinidade deles! — mas apenas precisar os seus
caracteres distintivos, a sua personalidade por assim dizer,
a fim de que qualquer pessoa possa, sem estudo especial
nem vasta erudição, reconhecê-los e apreciá-los.
Não acha que se os pais, se os educadores, tivessem
das necessidades, da actividade, do devir subconsciente das
suas crianças um conhecimento esclarecido pelos princípios
de bom senso que nós tentamos depreender, fariam, em
todos os aspectos, uma melhor obra?
Não devemos por certo ter ilusões exageradas sobre a
ressonância que encontrarão à nossa volta as nossas ten­
tativas de clarificação. Porque temos que contar com a
obstinação de homens que foram deformados mau grado eles
próprios e a quem é quase impossível restituir esse sentido do
humano equilibrado e da lógica do nosso destino. Mas ainda
que não tivéssemos mais do que a satisfação pessoal de
ver com justeza, de ser iluminados, de distinguir o erro,
estaríamos já recompensados dos nossos esforços. O essencial
é reencontrar a chama e mantê-la, alimentá-la, activá-la.

100
Os passantes deter-se-ão pouco a pouco, primeiro intrigados,
depois espantados por ela aquecer e vivificar, e o círculo
irá aumentando.
Devemos agora passar à conclusão prática de todas
as considerações a que nos temos entregado.
Uma espécie de grande lei dominará o nosso ensaio
construtivo: A preocupação educativa essencial deve ser
realizar na família se possível, pelo menos na escola e à
volta da escola, um mundo que esteja verdadeiramente à
medida da criança, evoluindo ao seu ritmo, respondendo
às suas necessidades, e no qual ela poderá entregar-se aos
trabalhos-jogos que são susceptíveis de corresponder às
aspirações naturais e funcionais do seu ser.
Se as condições que nos são impostas não nos permitem,
de momento, a realização suficientemente avançada dessa
atmosfera e dessa organização favoráveis aos trabalhos-
-jogos, devemos suprir essa deficiência pelo jogo-trabalho
que é um substituto e um derivativo daqueles.
E se, por ignorância ou impossibilidade técnica, não
conseguirmos ainda o restabelecimento integral desejável;
se, por falta de havermos podido alcançar os cumes donde
o espectáculo é de uma irradiante beleza, ficarmos agarrados
à encosta, onde já se sente, é certo, passar o ar livre da
imensidão, livrar-nos-emos pelo menos dos precipícios que
continuam ali, aos nossos pés, escancarados, e cuja própria
profundidade é duma obcecante atracção. Tentaremos não
mais nos deixarmos arrastar para as actividades arbitra­
riamente impostas que suscitam e necessitam desses jogos
de descontracção compensadora que são como que a ante­
câmara dos jogos de ganhar e dos jogos-haxixe.
Aí temos aquilo a que eu poderia chamar o meu pro­
grama pedagógico. Ele é por certo bastante diferente das
concepções actualmente correntes, cuja novidade é ilusória.
Uns vão afirmando: o jogo é natural nas crianças; ele
atrai-as, interessa-as, apaixona-as; devemos satisfazer essa
necessidade tão poderosa, tão dinâmica; mais ainda: devemos
canalizar esse apetite de jogos para fins educativos.

101
Compreendem agora até que ponto semelhante raciocínio
é superficial, sem qualquer fundamento verdadeiro, portanto
sem linha de acção susceptível de o animar virilmente.
Essa pedagogia do jogo é bem um erro à imagem da
nossa civilização actualmente dominada pelo haxixe: pelo
trabalho em cadeia por um lado, e, por outro lado, para
compensar, pelo gozo passivo, a procura do prazer, qualquer
que seja o seu valor moral ou vital; de uma civilização que
parece ter consumado o divórcio entre os gestos ancestrais
do indivíduo—para assegurar a sua alimentação, o seu
abrigo, e a perpetuação da espécie — e a máquina artificial
e sem alma, montada é certo por uma técnica engenhosa,
mas socialmente cega e desequilibrada.
Porque enfim, basear toda uma pedagogia no jogo, é
admitir implicitamente que o trabalho é impotente para
assegurar a educação das jovens gerações. Dir-se-á: é um
facto, e de nada serve discutir, que as crianças já não
querem trabalhar. O jogo aparece como o mais eficaz dos
estimulantes, e o menos nocivo, para as conduzir ao
objectivo...
Mas qual objectivo?
Quando a criança muito pequena não quer comer a
sopa, podemos não insistir e deixá-la muito simplesmente
sem alimentação. Mas, na prática, como se receia que essa
ausência de alimento seja fatal à sua saúde ou ao seu cres­
cimento, oferece-se-lhe qualquer mimo mais aliciante. Ou
então força-se, ou tenta-se forçá-la —e nem sempre se
consegue— ralhando, batendo, ameaçando com o papão.
Mas há um outro processo mais humano, mais hábil, que
permite evitar ao mesmo tempo a guloseima e as reacções
normais da brutal autoridade: diverte-se a criança; conta-se-
-lhe uma história que a faz aceitar o prato de sopa.
É uma solução que, reconheço-o, apresenta efectiva-
mente grandes vantagens. Será ela a solução ideal? Não o
creio. Porque, ao proceder assim, apenas esquecemos uma
coisa. Não pusemos a pergunta: «Porque é que esta criança
é tão rabujenta para comer a sopa»? Ou não tem fome e
não sente necessidade de comer. Ou então tem fome mas

102
a sopa não lhe agrada, o que pode ser efeito de um simples
capricho, se a criança foi mal educada, mas também, na
maior parte das vezes, de uma repugnância instintiva, como
a do animal pelas plantas ou produtos que lhe não são
específicos.
Nos dois casos, obrigar a criança a comer, ainda que
pela maneira mais suave, pelas histórias ou pelo jogo, não
pode ser mais do que um mal menor que nos tranquiliza
por um instante, poupa o nosso amor próprio e salvaguarda
a nossa autoridade. Seria muito mais lógico, e muito mais
salutar, perguntarmo-nos antes de mais por que motivo a
criança não tem apetite, o que é anormal — e o que será
preciso fazer para que reapareça essa necessidade natural
de alimentação que não é mais do que uma manifestação
normal da vida.
Mas restabelecer o apetite não é ainda mais do que um
aspecto da questão, que de resto não se pode solucionar
separadamente, independentemente da preocupação essencial
que é oferecer à criança, para satisfazer esse apetite, os
pratos simples que, pelo seu odor, pelo seu sabor, o seu
conteúdo nutritivo, respondam às necessidades normais da
nossa espécie. Porque é um grave erro supor que possamos
e devamos comer impunemente de tudo.
No Outono, quando crescem os cogumelos nos bosques,
o serviço dos pastores não é brincadeira, de tal modo cabras
e ovelhas são gulosas por eles. Mas experimente apanhar
um cesto de cogumelos, não importa quais, ao acaso, e
apresentá-los à sua cabra. Ela cheira-os mas recusa-se abso­
lutamente a comê-los. Se ela tivesse muita fome!... Nem
mesmo assim!... Ela morreria de inanição mais facilmente
do que tocaria num alimento que sente ser nocivo para o
seu organismo. Deixe a sua cabra à vontade: ela vai para os
bosques; com o seu nariz ávido, desenterra os cogumelos,
cheira-os e come aqueles que o seu instinto considera bons
para a sua natureza.
Assim procederia a criança se, pela nossa autoridade
intempestiva, o nosso exemplo, as nossas ameaças, as nossas
promessas, as nossas recompensas, e também pelo jogo, não

103
perturbássemos e não desequilibrássemos o seu instinto, que
já não sabe defender-se a não ser anarquicamente, com uma
segurança muito relativa que nos deixa, neste ponto, em
manifesta inferioridade em relação à maioria das espécies
animais.
— É que a criança não é um selvagem isolado; ela
tem já, e terá muito mais amanhã, obrigações para as quais
devemos prepará-la. Prescrevem-nos por isso que lhes demos,
que lhes imponhamos se necessário, um certo alimento.
Fazemo-lo o melhor que podemos, com o mínimo possível
de estragos. E o jogo é em definitivo o último recurso, e
o mais humano, que nos surgiu para atingirmos o nosso
objectivo.
— O problema assim estaria já muito melhor posto.
Se vocês têm consciência dessa nocividade, é bom, é humano
que procurem os meios mais aptos para atenuar os efeitos
das vossas intervenções. E eu acharia normal que recor­
ressem aos jogos de descontracção compensadora, como acho
normal que o adulto sinta a necessidade de esquecer, no
jogo de segunda zona, a humilhação de um trabalho fora da
natureza. Fazer alguma coisa sabendo que é mau, ou medío­
cre, lamentando a obrigação que no-lo impõe, é apenas meio
perigoso. O verdadeiro perigo começa quando se finge
ignorar o que há de anormal na actividade imposta, quando
a consideramos em breve como regular, e os meios empre­
gados para a fazer aceitar assumem o aspecto de métodos
universais baseados na própria natureza dos indivíduos.
Se os pedagogos apregoassem os jogos educativos como
um mal menor perante situações que eles lamentam, mas
pelas quais não são responsáveis, estaríamos perfeitamente
de acordo, e eu reconheceria como lícito o emprego de
jogos educativos, quer se tratasse de jogos de descontracção,
ou mesmo, acidentalmente, de jogos de ganhar. Teria a
certeza de que eles remediariam os vícios dessas práticas
por uma concepção lógica do seu ensino essencial.
Não pretendo que os nossos trabalho-jogos possam
satisfazer soberanamente em todas as situações. Será necessá­
rio que encontremos uma solução adequada para a obriga­

104
ção anormal, e o jogo é certamente preferível então à auto­
ridade brutal e à punição.
O que eu censuro a certos educadores modernos, é o
terem generalizado com demasiada pressa as virtudes de um
excitante cómodo, agradável, aparentemente eficaz, e não
mais terem examinado, pensado, construído a não ser pelo
jogo, atribuindo assim a um processo acessório, as virtudes
maiores das actividades funcionais. Eles tomam o suce­
dâneo pelo produto natural e felicitam-se por isso.
A criança não queria realizar a tarefa que a sociedade,
por intermédio da escola, acha lícito e desejável impôr-lhe.
Vocês recorreram a uma droga que transforma passagei­
ramente a pena em prazer, que compensa a tensão com um
gozo; e, sem lágrimas, sem rilhar de dentes, a criança ter­
minou a sua tarefa. E vocês não se dão conta de que proce­
deram simplesmente como o operário obsidiado pelo seu
ofício, e a quem um copo de vinho regenera, a quem dois
copos de vinho talvez façam cantar.
Nós pedimos apenas —se o copo de álcool se tomou
necessário pelo erro inumano da sociedade— que não nos
elogiem as virtudes do álcool, que se lhe reconheça pelo
contrário os perigos, para que possamos pelo menos remediar
a situação logo que passe a crise provocada pela lamentável
arrancada. Ver as coisas como elas são, não tomar o
acessório pelo essencial e agir de acordo, é essa a regra de
conduta da qual só tereis que vos louvar.
— Isso é exacto. Mas então tudo teria que ser recon­
siderado em educação, a começar por essa mania de ins­
trução que nos tiraniza.
— E porque não reconsiderar tudo se o julgarmos lógico
e necessário?
Você está persuadido de que só o trabalho é criador
de riqueza, de poder material e também moral, criador de
equilíbrio individual e social, em suma, que ele é o elemento
preponderante na nossa procura obstinada desse estado tão
complexo a que chamamos felicidade. Duvida-se por vezes
disso actualmente, porque a nossa civilização fez do trabalho

105
uma maldição, cujo produto de resto vai muitas vezes para
o poder económico e para a astúcia.
Nem por isso é menos certo que, por pouco que sobre
isso se reflicta, não se poderia hoje ignorar este supremo
recurso: a eminente dignidade e fecundidade do trabalho.
Ora, acaso fazem vocês trabalhar as crianças? Quero
dizer: ocupam-nas em tarefas criadoras de poder e de vida
que respondam às suas aspirações pessoais e às necessidades
da sociedade de que elas são membros? Absolutamente
nada, ou pelo menos pouco!
Vocês entendem que, antes de se entregar a tais tarefas,
a criança deve «aprender». Aprender o quê? Aprender a
trabalhar? Não!... Aprender para poder trabalhar? Não!...
Aprender para poder trabalhar mais tarde com uma mais
completa eficácia, o que não seria uma fórmula tão funda­
mentalmente má se não corressem o risco, segundo o vosso
processo educativo anormal, de lhe ensinar tantas coisas
que, quando finalmente ela tiver que enfrentar uma tarefa,
tenha muito simplesmente desaprendido o trabalho, esque­
cido até o sentido íntimo da sua verdadeira significação
social.
Tem-se definido aliás bastante empiricamente e muito
arbitrariamente aquilo que a criança deve conhecer ao sair
da escola, pelos catorze anos. E apenas se tem esquecido
uma coisa: preocupar-se com aquilo que ela deveria saber
fazer.
Monta-se com grande luxo de matéria prima as peças
combinadas cujo conjunto deve constituir o motor. Intro-
duz-se um pouco de gasolina, mas nada funciona se não
jorrar regularmente, e com uma potência bastante, a centelha
que animará a máquina. É essa chispa da vida instintiva,
esse influxo misterioso do nosso devir que vocês deixam
atenuar ou mesmo extinguir-se. E espantam-se por vezes
por que a vossa máquina falhe ou se estrague prematu­
ramente.
Tudo isso porque se esqueceu, ignorou, subestimou o
poder criador e formativo do trabalho bem compreendido,
a eminente fecundidade das forças que ele desperta, alimenta

106
e estimula. Falo de trabalho, e não de vulgar ocupação
ou tarefa.
Vocês repetem à criança: «Faz o teu trabalho!» ou
«Serás punido se não tiveres terminado o teu trabalho!»
Ora, o que é esse trabalho? Uma página de cópia, opera­
ções, uma análise... Que relação pode isso ter com essa
actividade funcional desejada, que é em si mesma exaltação
do ser, expressão íntima da nossa conquista do poder? Você
poderia provar-me que há uma relação, que de resto con­
sidero frágil e ilusória. O que há de certo é que a criança
se não apercebe dessa relação, não a sente. Essa relação é
inexistente para ela. Falem unicamente de tarefas, deveres,
mas não prostituam esse belo nome de trabalho com o risco
de o oferecer, desprovido da sua riqueza e do seu esplendor
humano, aos negreiros contemporâneos.
A Escola parece hipnotizada pela preocupação de
ensinar. É certo que, desde a iniciação mágica de outrora, tem
sido esse o seu principal papel. «Aprender para dominar a
vida», dizem os nossos moralistas. Mas aprender é apenas
um aspecto da técnica da vida. Se o néctar recolhido pela
abelha permanecesse néctar, delicioso na sua essência, mas
corruptível e inútil para o destino da abelha, em que é
que ele seria precioso? Torna-se precioso a partir do
momento em que o insecto dele se apropria, o torna seu,
retira dele como que uma secreção adventícia que participa
do seu ser. E já não é néctar então: é mel!
É preciso aprender, decerto. Tal como a abelha tem
necessidade de sugar o pólen. Porque está na nossa natu­
reza apreender o mundo em que estamos integrados, tentar
submetê-lo e dominá-lo. Mas essa apreensão não seria mais
que uma riqueza latente se não déssemos à criança a possi­
bilidade de se apropriar do conhecimento presente, e da
experiência ancestral que é como que o saldo do conhe­
cimento passado, de os tornar seus até fazê-los participar
do seu instinto, a partir do qual adquirirão então a solidez per­
manente e a eficácia íntima ao serviço da construção humana.
— Passar tudo pelo «estame» do nosso entendimento,
pois que é sempre necessário regressar a Montaigne, como

107
se nunca houvesse nada de novo sob o sol em matéria de
educação.
— Devemos no entanto ter em conta, desde Montaigne,
certas experiências, mais ou menos felizes, cujo exame crí­
tico nos reconduz de resto à soberania do bom senso.
E Montaigne não carecia dele.
Tivemos em especial a experiência de uma tentativa de
cultura baseada na função inteligência, como se nós trou­
xéssemos em nós uma faculdade nobre entre todas, não dis­
cordo, que se bastasse a si mesma independentemente do
processo normal da máquina humana. O homem tem sem­
pre pressa de baptizar as concepções fugidias que tem
necessidade de fixar, ainda que por um instante, numa
forma simplificada, por assim dizer material, transcrição
demasiado comum da imagem complexa entrevista pelos
investigadores num clarão de luz. E a palavra fica, por
mais imperfeita que seja, petrificando por sua vez o pensa­
mento, isolando um estádio infinitesimal do eterno desen­
rolar da criação.
Diz-se: inteligência. Mas o que é a inteligência? Não é
nem uma riqueza acumulada, nem a expressão escolástica
dessa riqueza. É uma virtualidade de acção, uma intensi­
dade de vida, um poder de reacção que se não pode medir
por nenhuma das nossas concepções grosseiramente humanas,
e que ainda menos podemos incluir em palavras demasiado
fechadas, demasiado impermeáveis ao dinamismo e ao ideal.
Eu não diria que é preciso passar tudo pelo «estame
do nosso entendimento». Vimos já onde nos pode levar
essa pretensão... É preciso passar tudo pela experiência da
vida. Só que essa experiência não pode ser continuada por
palavras, ainda que elas fossem compostas pelo génio subtil
de um Montaigne, mas pela acção. Essa acção que é a
essência do nosso ser, o móbil do nosso destino, é aquilo
a que nós chamamos trabalho.
O trabalho é a prova pela qual se torna mel o néctar
ainda impuro do conhecimento; é o esforço de assimilação
da experiência ao processo vital em toda a sua comple­
xidade, e não apenas material, moral, social, mas também

108
intelectual. É o segundo acto da peça cujo primeiro acto
foi montado pela escola; é como que o acabamento de uma
subtil construção.
Até hoje, vocês têm-se aplicado nas vossas aulas a
acumular os materiais —demasiado exclusivamente inte­
lectuais e verbais— e a catalogá-los, a distingui-los, a pre­
cisá-los, a melhorar a sua contextura e a sua apresentação.
Essa não é aliás uma tarefa inútil, porque a limpeza e o
valor dos materiais são, também, determinantes para o
equilíbrio do edifício. Só que, esquecendo que a utilidade
desses materiais só existe em função do edifício a elevar,
vocês têm-se limitado a preparar pedras, areia e cal, a ofe­
recê-las, a impô-las ao arquitecto e ao pedreiro que eram
assim ultrapassados. O amontoamento heteróclito dificultava
os acessos, tornando difícil a circulação vital e o próprio
trabalho de construção, dando aos operários essa sensação
deplorável de impotência perante a desordem, forçando-os
até a descer dos andaimes, a abandonar a construção essen­
cial para tentar desimpedir os acessos.
Pessoas bem intencionadas, sentindo vagamente tudo
quanto têm de irracional essa acumulação e essa desordem,
ofereceram-se para as liquidar. Mas o que contava para eles,
não eram ainda a beleza e harmonia do edifício, mas a
simples colocação dos materiais, a redução do atravanca-
mento. Preconizaram e impuseram construções rápidas e
apressadas, capazes de abrigar e de absorver bem ou mal
a matéria prima acumulada. Inventaram andaimes engenho­
sos, armações audaciosas que permitiram erguer rapidamente
a construção, acabá-la, a fim de que ela desse a ilusão pelo
menos de perfeição. Mas aqueles que depois têm que a
habitar sofrem essa pressa, os defeitos que ela acarreta,
as inevitáveis imperfeições que resultam da desordem: repar­
tição defeituosa das salas, fragilidade das paredes, fraqueza
do tecto que vibra ao menor vento, que a tempestade
sacode, que a chuva atravessa já — escadas penosas, serviços
de água e de detritos que funcionam mal, caves e pátios
ainda atulhados por materiais não utilizados e deteriorados.

109
Em resumo, a todos os escalões, desordem, desequilíbrio,
perigo, fadiga, perda de poder.
É esta a imagem da frágil construção que nós preparamos
para os nossos filhos. Toda a técnica tem que ser reorde­
nada. Primeiro, menos materiais, menos riquezas no local
das obras. O essencial é que possamos, quando temos necessi­
dade disso, pegar num veículo, carro de mão ou automóvel,
para ir, sem perda de tempo nem fadiga inútil, abastecer-nos
ao depósito mais próximo. Construção menos pretenciosa
também, que levantaremos ao nosso ritmo, tão alta quanto
o pudermos, apelando o menos possível para brilhos e ouro­
péis, devendo a beleza ser como que o coroamento de um
esforço inteligentemente equilibrado; mas construção sólida,
confortável, à prova dos elementos, que poderemos even­
tualmente compartilhar com os nossos amigos e os nossos
próximos; e construção que nós próprios teremos erguido,
cuja contextura conheceremos em pormenor, cujas fraquezas
sentiremos, que fará como que parte integrante do nosso ser.
Como eu lhe dizia, é toda uma nova técnica da vida
a elaborar. E o que faz a dificuldade do nosso projecto,
é que nós não nos limitamos, como o pretendem certos
críticos parciais, a virar as costas à instrução, a subestimar
a aquisição, como se o mundo não tivesse caminhado — em
boa ou má direcção — desde o tempo em que as pessoas
se podiam acomodar com uma ignorância que não excluia
nem o bom senso, nem o equilíbrio, nem a humanidade.
A nossa reforma educativa não deve ser uma regressão, uma
reacção, mas um progresso, uma adaptação às realidades,
por mais decepcionantes que elas sejam por vezes, da socie­
dade actual.
A criança tem necessidade de conhecer, de saber; ela
interroga incessantemente sobre a ordenação e os mistérios
da natureza, e também sobre as espantosas maravilhas da
máquina e da ciência. Esse desejo faz parte da sua perma­
nente sede de poder e de conquista. A criança procura o
conhecimento como a abelha procura o néctar; mas os
materiais desse conhecimento, como já lhe disse, não devem
permanecer néctar; eles devem entrar automaticamente ao

110
serviço da construção íntima que os transformará em mel.
Não serão prematuramente fixados num estatismo que é
velhice, decadência e morte; não serão o monte de tijolos
que se acumulam em desordem no pátio mas entrarão ime­
diatamente no circuito dinâmico da vida individual e social.
A vossa escola tem sido demasiado exclusivamente o
entreposto onde se recebem as mercadorias, onde se cata­
logam, se classificam mais ou menos logicamente. Mas os
depósitos, como sabe, podem estar cheios a abarrotar e o
mundo pode entretanto morrer de definhamento se não
existir entre esses depósitos e as empresas para as quais
foram criados, essa torrente de vida, esse apelo construtivo
que permitem a uns e outros desempenhar um papel eficaz.
Prepararemos tecnicamente uma escola onde se cons­
trua, onde se edifique, não apenas pelo estudo, mas pelo
trabalho único criador, e na sua falta, por certos jogos que
são os seus substitutos mais próximos. É essa doravante a
tarefa essencial da pedagogia: criar a atmosfera de trabalho
e, ao memo tempo, prever e aperfeiçoar as técnicas que
tornam esse trabalho acessível às crianças, produtivo e for­
mativo. A criança terá então necessidade de materiais, de
conhecimentos. Poremos à sua disposição os entrepostos
logicamente ordenados onde ela os poderá ir buscar, no
próprio momento em que deles sentir necessidade. E verá
então que ela empurrará a roda do seu carrinho de mão,
com uma alegria e um entusiasmo que nela não reconhecerá
fora do jogo, um entusiasmo e uma alegria que ultra­
passam em intensidade e em virtualidades de vida os susci­
tados pelos jogos. E verá que ela carregará o seu veículo,
que levará cargas espantosas, crispando os músculos até
ao limite para atingir o fim!
Vocês, porque inverteram perigosamente o problema,
estão reduzidos a dizer hoje: as crianças não têm memória!
Do mesmo modo que diriam: não têm algibeiras para meter
os berlindes! Mas a memória não é esse registo de recepção
imaginado, para sua comodidade dedutiva, por uma psicolo­
gia simplista. Nós nem sequer sabemos o que é a memória,
mas o que entrevemos é que ela está misteriosamente mistu­

111
rada a todo o nosso ser e que, quando um gesto, um pensa­
mento, um conhecimento, chamados, aspirados pelo nosso
organismo na sua marcha natural e harmoniosa que é tra­
balho, entram assim, sem dificuldade, carregados de todo o
seu dinamismo, no circuito da actividade funcional, tornam-se
como que peças indispensáveis da máquina; são engendrados,
presos a todo o processo da vida; a sua falta cria um vazio
que tem tendência para se encher com o regresso ao entre­
posto cujo caminho desde já conhecemos.
É esse o motivo por que não é exagerado afirmar que
as coisas de que melhor guardamos a recordação, são aque­
las que serviram para um trabalho interessante e vital; elas
são incorporadas ao organismo por esse trabalho que é o
seu motor...
— E nós abandonaríamos então todos os exercícios da
memória?
— Ou antes, esses exercícios seriam concebidos sob
uma nova forma: a verdadeira memória é a faculdade de
apreender os elementos do conhecimento que nos são
necessários, e no próprio momento em que eles nos são
necessários. Só há verdadeira memória em função do tra­
balho, e o trabalho é ainda o meio mais eficaz para dar
à memória toda a precisão e amplitude de que ela é sus­
ceptível.
Examine lealmente as suas recordações e verá se aquelas
que predominam não são as que estão ligadas a qualquer tra­
balho-jogo apaixonante ou a um jogo-trabalho; e porque
é que basta por vezes recolocarmo-nos na atmosfera do
trabalho, esboçar os gestos que ele requer, repor em marcha
o mecanismo para que imediatamente reapareçam, em todo
o seu vigor e nitidez, e mesmo a uma muito longa distância,
as imagens e os pensamentos que num determinado momento
sé tinham integrado na nossa actividade.
— E você preconizaria então que se edificasse uma
pedagogia à glória do trabalho, inteiramente dominada e
animada pela dignidade, o poder, a eficácia funcional e vital
do trabalho ou dos seus substitutos directos?

112
— Ver claramente, para adaptar cada vez melhor o
nosso esforço educativo às necessidades individuais e sociais,
tal deve ser o nosso principal cuidado. Não prego uma
austeridade nem uma rigidez formais perante uma vida que
sei complexa e exigente. Não digo: «ou isto ou nada!».
Cada qual faz o que pode e «quem faz o que pode faz o
que deve», comprazia-se em repetir a minha velha mãe.
O perigo não está em consentir em certas soluções a que
somos constrangidos pelo meio, pela tradição, pelos acon­
tecimentos, se se tem a consciência do seu valor relativo
e do erro de que elas por vezes participam.
O perigo individual e social, é perder a noção exacta
da relatividade dos valores, é tomar por essencial aquilo
que é simplesmente acessório, por primordial aquilo que é
secundário, substituir pela forma ou pela imagem da vida
o poder dinâmico do devir humano.
— Portanto duvido ainda e receio que você seja dema­
siado intolerante, e que, no seu desejo de sistematizar,
carregue a função trabalho de virtudes que ela nem sempre
tem, na terrível realidade quotidiana. E pergunto-me se não
foram melhor inspirados os grandes pedagogos como Decroly
e Maria Montessori, que atribuíram maior importância ao
jogo como meio educativo, pelo menos para os anormais e
os atrasados.
— Sim, eles aproximaram-se da verdadeira solução.
É certo que, quanto mais a criança se encontra, pela sua
natureza, pelas suas possibilidades congénitas de apreensão
e de reacção, desadaptada em relação ao meio ambiente,
mais o seu comportamento nos parece anormal e defeituoso.
Propor-lhe, permitir-lhe e facilitar-lhe actividades que satis­
fazem as suas necessidades é, sem qualquer dúvida, con­
tribuir para a sua readaptação, para o melhoramento das
faculdades que só se agudizam verdadeiramente pelo uso e
pelo exercício. Chegar, nesses casos, ao jogo-trabalho, é já
um incontestável sucesso. Mas se descobríssemos, para esses
anormais, um trabalho autêntico, um trabalho-jogo ao seu
ritmo e à sua medida, veria se o resultado não seria ainda
melhor!
• 113
Sob certos pontos de vista, o escutismo, ao que parece,
aproximou-se melhor da verdadeira solução, pois que soube
reencontrar a filiação ancestral de certas actividades essen­
ciais. Mas a teoria de Baden-Powell 1 nem por isso deixa
de participar num erro que as minhas demonstrações vos
mostrarão imediatamente.
O pai do escutismo, e os seus discípulos, tomam tam­
bém o acessório por essencial, os substitutos por elementos
determinantes. Eles partem do princípio de que jogar faz
parte da natureza da criança. Viram bem que os jogos
preferidos são aqueles que respondem às necessidades da
luta que os nossos antepassados travaram contra a natureza,
contra os elementos, contra os animais, contra os outros
homens. Mas faltou-lhes a intuição de que essa imitação
instintiva poderia não ser ainda mais do que um recurso,
o único meio que resta às crianças para tentarem realizar,
na sociedade madrasta que as oprime, um embrião, ainda
que ilusório, de vida à sua dimensão. Eles não compreen­
deram que é por incapacidade de adaptação que as crianças
recorrem a uma tradição atrasada em vários milénios e que
não é mais, bem vistas as coisas, do que uma vitória ele­
mentar largamente ultrapassada. Bebendo assim nas práticas
dos selvagens e dos primitivos, os mestres do escutismo não
fazem mais do que acomodar-se com as lacunas da lenta
evolução humana. Em vez de ajudarem as crianças a
adaptar-se, a pensarem o presente, eles têm tendência para
as fazer regressar a um passado distante pelo regresso a
práticas que estariam desde há muito ultrapassadas se a
educação tivesse, em alguns momentos, desempenhado o seu
papel de impregnação profunda e metódica das jovens gera­
ções pelas conquistas das gerações que declinam.
Dito de outro modo, Baden-Powell apela exclusivamente
para o jogo-trabalho de cujo poder dinâmico forma­
tivo, mas também de cuja natureza de substituto, de

1 Baden-Powel: fundador do escutismo (1857-1941).


(N. do T.).

114
correctivo de uma desadaptação orgânica, já falámos. O jogo-
-trabalho contribui para corrigir o mal, o que é certamente
apreciável; mas não atinge a origem desse mal. Ele confor­
ma-se em suma com uma separação, com um mal entendido.
E isso é sempre um erro de consequências incalculáveis.
E a prova de que assim é, é que o escutismo não
consegue desenvolver-se no campo, onde a criança tem o
privilégio incontestável de poder entregar-se a trabalhos-
-jogos cuja utilidade social aprecia: ajuda nos campos, tra­
balhos nos bosques, construções, criação, caça, pesca. Quanto
ao resto, os seus jogos-trabalhos tradicionais bastam-lhe. E é
esse o motivo por que as actividades escutistas aparecem
nos nossos meios como aquilo que são: engenhosas infan­
tilidades.
Em contrapartida, para as crianças das cidades, que
só raramente têm a possibilidade de se entregarem a traba­
lhos-jogos, e que, muitas vezes mesmo, perderam parcial­
mente o vestígio instintivo dos jogos-trabalhos mais forma­
tivos, para deslizarem cada vez mais para os jogos de
segunda e de terceira zona, para essas, o escutismo traz-lhes
efectivamente alguma coisa: jogos-trabalhos organizados que
se elevam por vezes à dignidade de trabalhos-jogos apaixo-
nantes.
Essa tara congénita do escutismo sentem-na confusa­
mente as classes trabalhadoras, com o que lhes resta de
intinto do seu destino, quando acusam o escutismo de ser
apenas um grande jogo para os filhos de burgueses, a quem
traz, para além do sedentarismo e do conforto amolecedor,
saúde, virilidade, audácia, mas sem nunca se assemelhar ao
que deveria ser uma formação de trabalhador.
Porque, e foi isso que Baden-Powell não viu suficiente­
mente, o objectivo da educação não é apenas dar saúde,
músculos, entusiasmo, decisão, nem mesmo audácia e von­
tade. Esses são elementos da vida; mas não são o todo da
vida. São os utensílios, que é efectivamente desejável tornar
o mais flexíveis e o mais aperfeiçoados possível. Mas é
necessário que o indivíduo tenha consciência da necessidade

115
da sua utilização favorável para fins ao mesmo tempo indi­
viduais e sociais. É pelo trabalho que se acede a esse fim.
Dar o gosto pelo jogo, pela aventura, excitar e cultivar
a curiosidade, a aptidão para o raciocínio lógico e para a
observação, o sentido moral, tudo isso são virtualidades, e
que permanecem virtualidades se se não conseguir fazer
sentir aos indivíduos o sentido orgânico do trabalho. Digo
bem: o sentido orgânico para distinguir esse estado de facto
daquilo que não é mais do que explicação, justificação filo­
sófica e moral da noção humana de trabalho.
Se, pelo vosso exemplo, pela vossa organização escolar,
pelo vosso comportamento, vocês derem às vossas crianças
o sentimento de que aquilo que conta na sua formação é
a satisfação da sua necessidade de brincar, elas persua­
dir-se-ão inconscientemente de que é essa a sua natureza
e o seu destino; e quando vocês exigirem delas um esforço, a
noção de trabalho, talvez raciocinada, talvez intelectualmente
compreendida e aceite, virá enxertar-se sobre os seus seres,
mas ficará como uma estranha que se acolhe se necessário,
e exactamente o tempo indispensável, mas que nunca é da
casa, que não participa nessa integração no ser e na vida
que é um dos elementos da nossa força. É como um sentido
cujas possibilidades tivéssemos deixado atrofiar.
Tereis talvez jovens belos, sólidos, ágeis, decididos, inte­
ligentes, que não carecerão de boa vontade nem de louváveis
sentimentos, mas para, quem o trabalho continua uma obri­
gação não essencial, uma «acção» e não uma «função»,
um acessório e não o motor de toda a vida.
Se pelo contrário, desde muito cedo, a criança puder
entregar-se a trabalhos-jogos, se toda a sua educação, toda
a sua formação —familiar, escolar, social— toda a sua
vida, forem centradas nessa necessidade, na necessidade desse
trabalho-jogo; se retirar daí as mais delicadas e mais alegres
das suas satisfações, o jogo conservará então para ela o seu
valor acidental de substituto ou de descontracção, mas será
a função trabalho que iluminará a vida, lhe dará harmonia
e equilíbrio, suscitará uma concepção nova das relações
sociais, uma filosofia e uma moral que já não serão intelec­

116
tualmente abstraídas da condição humana, mas aparecerão
como a subtil emanação de uma ordem nova baseada na
dignidade e no esplendor do trabalho.
Tem-se dito, por vezes, que tinha sido realizada uma
revolução coperniciana em educação no dia em que se com­
preendeu que a pedagogia devia ser centrada na criança e
não no adulto; que o aluno não devia ser já, no processo
formativo, um elemento passivo entre as mãos do educador
ou da sociedade, mas o objecto essencial a cujo desenvol­
vimento devem ser subordinados programas, métodos, técni­
cas, organização e material. Mas essa revolução está apenas
encetada, anunciada, enquanto não passar para o domínio
da prática. E isso é um outro assunto.
A Escola está ainda longe de ser feita para a criança.
É mais uma questão de precedência e de prestígio do que
de compreensão. O adulto, presunçoso, gosta muito de coman­
dar e de ser considerado. Diz-se por vezes numa expressão
sábia, que a criança é egocêntrica. Mas os adultos são-no
talvez mais ainda do que as crianças. Aparentemente, em
palavras, eles manifestam ideias generosas que supõem um
certo desprendimento do seu natural egoísmo e a projecção
sobre outrem da sua constante solicitude. Praticamente, e salvo
felizes excepções que honram a nossa espécie, o comporta­
mento do comum dos homens continua terrivelmente ego­
cêntrico, e é esse o motivo por que os homens continuam
surdos ao apelo dos novos educadores.
— Isso é exacto! E nós próprios teríamos o nosso mea
culpa a fazer.
Mas é que também esse apelo para colocar a criança
no centro das preocupações escolares manteve-se inteiramente
verbal e teórico. Na administração espera-se que, não sei
por que intuição genial, nós, modestos educadores, realizemos
aquilo que os nossos mestres nem sequer conseguiram ainda
definir e precisar.
Tem-se invocado alternadamente a autoridade, a von­
tade, a imaginação, o interesse... — eis agora a vez do jogo.
Talvez se tenha esquecido apenas uma possibilidade, o tra­
balho, ignorado ou subestimado, apenas uma necessidade:

117
a de trabalhar. Tinha-se tentado todos os meios possíveis,
salvo a satisfação profunda de uma actividade que responda
às nossas necessidades primordiais.
— É assim: quem tem má vontade em fazer um trabalho
procura antecipadamente justificar-se por uma hábil verbor­
reia, ou por alguns gestos que por vezes nos subjugam. Isso
é muito conhecido! À falta da experiência prática que teria
feito passar para os gestos, para o devir, para o processo
de vida das crianças, a compreensão sincrética dos próprios
objectos do vosso ensino, vocês oferecem-lhes discursos que
mascaram a indigência dos vossos recursos reais, explicações
teóricas que nunca atingem o ser íntimo, mas afectam apenas
uma forma superficial de inteligência, como uma crosta que
se deposita na superfície dum corpo, do qual modifica a
forma, o aspecto e as cores, sem no entanto lhe afectar
profundamente nem a natureza nem a constituição.
Deveremos ir muito mais longe e realizar praticamente
na escola, e mais tarde na família e na sociedade, as con­
dições materiais e técnicas que permitirão os trabalhos-jogos
essenciais.
Elevar o trabalho ao lugar de honra que lhe reconhe­
cemos na educação, será esse o complemento da nossa
grande revolução pedagógica. E é, ao mesmo tempo que a
reorganização técnica a empreender, toda uma reputação a
refazer.
A ideia de trabalho traz ainda em demasia, no povo,
a marca da servidão e da degradação sociais, recordações
subconscientes de uma época muito próxima — e ainda não
terminada — em que só os míseros trabalhavam, sendo a ele­
vação na escala social considerada principalmente como uma
libertação individual das cadeias do trabalho. O homem
suporta essas cadeias como uma cruz da qual se desembaraça
logo que pode. E não será uma operação cómoda inverter
tudo isso e substituir esse opróbio pela esplêndida dignidade
de uma actividade social que exalta aquilo que o indivíduo
traz de melhor em si, que o eleva, o educa, o forma, o
idealiza.

118
No entanto, desenha-se uma reacção encorajante nos
diversos meios. O estado de coisas cuja desordem nós denun­
ciamos demonstrou já por de mais a sua impotência; está-se
à procura de novas vias. Talvez tenha chegado o momento
para a Escola de escolher a sua e nela se embrenhar viril­
mente.
Em vez de continuarem a dirigir os vossos esforços para
as explicações verbais em que nunca sois avaros, para os
livros que vos subjugam, para os meios demasiado aperfei­
çoados da acumulação, deveis meter-vos seriamente ao tra­
balho para a realização na escola de um meio, de uma técnica,
de um método, baseados numa organização prática muito
avançada e que permitirão à criança não já apenas estudar,
mas trabalhar efectivamente segundo as suas grandes linhas
de interesse.
Antes de irmos mais longe, revejamos pois um pouco
as vantagens da inovação recomendada:
— Pomos a criança em condições de satisfazer activa-
mente as grandes necessidades de vida, de defesa e de repro­
dução que estão na base das nossas preocupações, desde as
mais primitivamente subconscientes até às mais evoluídas.
— Resulta daí um estado de bem-estar que é a exal­
tação da nossa necessidade imanente de viver, de subir, e
de nos prolongarmos no tempo. Não falarei aqui de gozo
nem mesmo de prazer, porque essas são considerações dema­
siado grosseiras, demasiado materiais, para exprimir uma
sensação que não é localizada nem banalizada, mas que
atinge a zona superior do nosso ser e só pode comparar-se
a essa impressão que temos, por momentos, de participar
numa ordem superior cujo poder sobre-humano nos ilumina.
— Essa exaltação, quando a atingirmos por vias natu­
rais e permanentes, traz equilíbrio profundo, harmonia, força
e confiança na vida, ascensão corajosa do indivíduo para
os cumes.
— Ela inclui — secundando e completando a actividade
física ou manual — o exercício, a cultura, segundo normas
naturais, das faculdades superiores do homem que aparecem
então como elementos preciosos do seu poder: a instrução,

119
o conhecimento, a inteligência, a memória, a lógica, a razão,
a espiritualidade, sem contar todas as virtudes sociais que
as vossas lições verbais nunca atingem, e que só se desen­
volvem pelo exercício prático no seio da comunidade traba­
lhadora.
— Ela pressupõe uma atenção de uma qualidade especial,
que resulta não já de um esforço anormal e esgotante de
concentração, mas da própria harmonia de um mecanismo
bem ordenado que é animado por um motor vigoroso.
— A própria vontade assumirá o seu novo aspecto:
deixaremos de a conceber como não sei que força quase
independente do nosso ser e que levaríamos para diante sob
a impulsão aleatória de um simples conceito. Ela será um
elemento da nossa vida reordenada, o pulsar permanente e
fecundo da nossa acção, tão útil, tão permanente e tão sim­
ples como o incansável pulsar do nosso coração.
— Esta nova concepção do verdadeiro trabalho no
centro da nossa educação e da nossa vida é essencialmente
moral, tal como nos parece moral o normal funcionamento
das peças tão bem ajustadas do nosso corpo. A harmonia
e o equilíbrio individuais ao serviço da harmonia e do equi­
líbrio sociais não serão o proprio objectivo da concepção
mais elevada do bem moral?
— Ela é enfim, em si mesma, participação activa no
devir da natureza. Restabelece as ligações misteriosas que
o erro havia cortado; impregna os homens do sentido novo
dessa filosofia que não tem sido até hoje mais do que um
jogo de palavras e que deve passar, graças à nossa iniciativa,
para a prática activa da nossa vida.
Tudo isto dito antes de chegarmos às nossas tenta­
tivas de construção prática, para idealizar ainda mais a
nossa concepção nova do trabalho, para mostrar, ultrapas­
sando propositadamente o quadro estrito da escola, o que
ela traz em si de humanismo, de potencialidade de cultura
harmoniosa e fecunda. O trabalho, assim compreendido,
regenerado na sua origem, desde a escola, não poderia com
efeito tornar-se como que o elemento activo de um novo
humanismo, que seria susceptível de atingir e de animar não

120
só a elite, mas todo o corpo social, ao qual traria novas
razões para lutar, para viver e para crer?
— A ideia, senhor Mathieu, é com efeito exaltante, mas
você mesmo nos ensinou a desconfiar da promessa das cons­
truções teóricas. Tudo depende, em definitivo, das possibi­
lidades de realização. E asseguro-lhe que, com a minha
curta experiência, ou talvez por causa dessa experiência,
me é difícil entrever a realização da obra que você assim
esboçou.
— Não me detive a meio caminho, e pensei muitas vezes
nessa nova e decisiva etapa. Eis-nos agora como que prontos
para a obra. Deixe-me reflectir ainda sobre o nosso assunto
e dentro de alguns dias acabarei de vos explicar o meu
projecto.
Mas os ponteiros devem ter andado... Felizmente pode­
rei, amanhã, fazer uma boa sesta para recuperar desta noite
que será singularmente encurtada. Que querem? Começa
para nós o período mais duro, e temos como que um
secreto remorso em perder nem que seja alguns minutos
quando há tanto que fazer. Dormir longamente e descansar
diante do lume, é normal no Inverno, quando a natureza
dorme ela própria na sua nudez fria... Mas no Verão, o
trabalho é que manda... Pois é! Sempre o trabalho!

121
37. O TRABALHO

NÃO É UMA COISA QUE SE EXPLICA


E QUE SE COMPREENDE,
MAS UMA REALIDADE QUE SE INSCREVE
NA VIDA DOS HOMENS.
DEVEMOS INSCREVÊ-LO NELA PELA
ACÇÃO EFICIENTE DA NOSSA EDUCAÇÃO.

Mathieu voltou alguns dias depois, ao cair da noite,


quando o senhor e a senhora Long terminavam a sua refei­
ção. Trazia, suavemente colocadas sobre uma cama de folhas
verdes num cestinho de vime, quatro belas pêras de S. João,
os primeiros frutos saborosos depois das cerejas.
— Tomai-as, e que elas possam ser para vós como que
uma oferenda espiritual...
— Elas têm efectivamente um ar delicioso...
— Não é na vulgar satisfação do gosto que eu penso
ao vo-las oferecer. E isso talvez vos espante. Vocês, pessoas
demasiado civilizadas que têm o hábito de descobrir os
frutos num cesto ou num prato, estão frustrados de uma parte
das alegrias mais secretas que eles nos proporcionam. É como
um pássaro que vos apresentam numa gaiola, já domesticado
e resignado, enquanto nós gozamos do saltitar e do canto
límpido dos pássaros livres entre a folhagem.
Quando, no meio de um campo de trigo, vemos crescer
e amadurecer as primeiras pêras; ou quando descobrimos,
enquanto ceifamos, um fruto já ratado pelas abelhas e ves­
pas, é toda a riqueza desse princípio de Verão que se nos
impõe num perfume subtil, num sabor incomparável. Será
isso recordação, ou sensação autêntica? Tem para nós um
gosto de trigo maduro, de árvores em flor, de frondescências
em parto... Para vós, uma pêra simplesmente alimenta e
satisfaz o corpo. Em nós ela vivifica também a alma; é como
uma exaltante comunhão,

122
— Compreendo agora a que ponto nós somos infelizes
por havermos perdido, em consequência de uma civilização
pretenciosa e falsa, as possibilidades de esplêndida fruição
que vos vale essa participação intima na criação. Pudessem
os nossos filhos não ser privados dela! Mas é esse precisa­
mente o ponto delicado: instruir-se, subir, diferenciar-se,
enfrentar o complexo e o múltiplo, sem por isso perder o
pé, sem se afastar das sensações instintivas que continuam
a ser o substracto da nossa vida, o húmus que fecunda todas
as coisas.
E vejo o que seria o nosso dever: nunca separar a
cultura da natureza e das suas leis; não arrancar a criança
à sua condição; deixar as plantas crescerem e frutificarem
no terreno em que estão poderosamente enraizadas; evitar
cultivá-las preciosamente em estufa quente para as fazer pro­
duzir anormalmente fora de tempo flores e frutos monstruosos,
que as desequilibram e as esgotam, e também porque quando
se colocou uma planta na estufa, nada é mais delicado do
que habituá-la novamente à vida em terreno livre.
O que não quer dizer, bem o compreendo, que se não
deva melhorar o terreno, levar o fertilizante e oferecer gene­
rosamente a água e o sol de que a planta precisa para rea­
lizar o destino que traz nas suas fibras.
— Alegro-me por minha vez de o ouvir falar com tanta
lógica. Se todos aqueles que foram tocados pela cultura
quisessem fazer esse mesmo esforço de readaptação, reexa­
minar lealmente os problemas, procurar um correctivo para
os erros, pensando humildemente que a ciência, mau grado
as suas conquistas maravilhosas, pode muito bem, por vezes,
passar ao lado das soluções desejáveis e ir demasiado
depressa, e demasiado longe, sem tomar em conta a limitação
das nossas possibilidades correntes; se os homens fossem
menos orgulhosos das suas riquezas, por vezes tão ilusórias,
que caminho não teríamos nós percorrido já!
Os nossos pais diziam muitas vezes que é o orgulho que
perde o mundo. Precisamos de nos reimpregnar de humil­
dade, de confessar as nossas fraquezas, não pretender sempre
olhar de cima, desses cumes que só alguns espíritos excep­

123
cionalmente poderosos atingem, e onde tantos outros, sem
envergadura, que pretenderam segui-los, se estiolam e se
asfixiam. A borboleta voa de preferência nos prados onde
sabe encontrar as flores carregadas de gotas de néctar que
são a sua vida, onde as suas cores brilhantes e variadas se
fundem entre o ouro e a púrpura dos botões desabrochados,
onde as suas larvas encontrarão o seu alimento específico.
Não julguemos sempre que o nosso destino está noutro
lugar, ou mais alto, e saibamos enriquecer-nos de todos os
esplendores que aí estão, simples e eficazes.
Mas tudo isso são apenas palavras, sei-o e sinto-o tam­
bém. Não é vossa culpa se vos desenraizaram, desadaptaram,
vos arrancaram ao vosso destino, e se, sacudidos pelas vagas
hostis, não conseguis já reencontrar o porto. No entanto, no
dia em que vocês, educadores, tiverem compreendido, poderão
trabalhar para que as gerações futuras ignorem esses mesmos
perigos, para evitar que elas sejam cortadas das suas raízes,
a fim de que a vida de amanhã seja mais harmoniosa, mais
poderosa e mais fecunda. E isso não o conseguirão vocês
com explicações nem demonstrações, mas pelo vosso exemplo
vivo e pela vossa acção.
Se nós sabemos, com uma precisão bastante, aquilo que
a criança deseja, aquilo de que ela tem necessidade para
seguir as suas linhas de vida, só nos resta encontrar essa
conjunção delicada entre a riqueza demasiado heteróclita
das gerações passadas e presentes, e a intrépida e instrutiva
coragem dos seres jovens que partem à conquista do seu
futuro. Esse traço de união, é o trabalho!
Organizemos o trabalho para que, desde muito cedo,
a criança se familiarize com as suas obrigações, mas sinta
também as suas incomparáveis satisfações; para que ela centre
gradualmente a sua vida nessa necessidade funcional; para que
a sua natureza a incorpore, a tal ponto que, mau grado as
solicitações, as perversões, os prazeres ilusórios que a civili­
zação lhe oferecerá, ela regresse sempre, depois dos seus
erros, à única actividade substancial e salvadora: o trabalho.
Oh! Não se trata de escrever hinos em honra do tra­
balho produtor de verdadeiras riquezas, nem de exaltar poe­

124
ticamente os gestos que ele supõe, e ainda menos de explicar
filosoficamente a sua integração no destino do mundo. Acaso
se explica a fome, a necessidade de fazer funcionar os mús­
culos, o desejo de conhecer, de nos aperfeiçoarmos para
aumentarmos o nosso poder? Acaso se explica o amor?
Dirá talvez que sim, que alguns sábios se empenharam nisso,
não sem sucesso... É possível, mas não é ainda aí que eu
quero chegar. Será que uma explicação científica, filosófica
ou moral é susceptível de acalmar a nossa fome, de satisfazer
a nossa necessidade de acção — trabalho ou jogo — de esti­
mular ou de moderar o amor? Não: essas são realidades
inelutáveis, consequências das funções normais do nosso ser.
Iludimo-nos quando pensamos que as podemos atingir do
exterior. Não é quando a água está passivamente presa a
montante de uma barragem que a podemos dirigir para qual­
quer destino; é quando ela desce, impetuosa, ou corre can­
tando sob as folhagens, que se pode canalizar as suas vir­
tudes e a sua força.
É em plena marcha, é no próprio exercício das funções
naturais que nos é possível influir sobre o ritmo, sobre o
equilíbrio, sobre o poder das forças postas em movimento
pelas tendências vitais dos indivíduos.
O trabalho não é uma coisa que se explique e se com­
preenda; é uma necessidade que se inscreve no corpo, uma
função que procura satisfazer-se, músculos que funcionam,
relações de íntima concordância que se estabelecem, tra-
jectos que despertam e se reforçam.
É comendo, e não filosofando, que alimentamos o corpo;
é fazendo exercício que fortificamos os músculos e não
decompondo cientificamente os movimentos; é trabalhando
que se exalta a função trabalho até adquirir todo o seu
sentido e todo o seu valor humano.
Sabe-o bem a gente do povo: aquele que foi habituado
desde cedo a trabalhar permanecerá trabalhador; aquele que,
pelo contrário, não aprendeu a procurar o trabalho e satis­
fazer-se com ele, orientar-se-á para outras vias perigosas:
substitutos, compensações e explicações.

125
— Mas você não tem em conta a surda resistência da
rotina e da tradição, as preocupações maiores dos pais, as
necessidades económicas, culturais e políticas do Estado?
— Não é absolutamente indispensável demorarmo-nos
exageradamente com a opinião daqueles a quem o movi­
mento apavora. Mais vale depositar uma confiança pelo
menos elementar nas forças de mudança e de progresso.
Ora, sob este aspecto, trata-se mais de uma obra de adaptação
do que de uma tarefa de vanguarda que temos que empreen­
der, e esta é uma consideração que ninguém gosta de examinar.
A ideia de uma educação inteiramente centrada no tra­
balho, chega presentemente à sua hora. Ou antes, ela deveria
ser desde há muito tempo uma realidade se a Escola tivesse
desempenhado plenamente o seu papel, porque chega uma
altura em que a persistência de práticas escolares que não
correspondem já à técnica da vida ambiente se toma como
que um travão à evolução que agita o mundo, uma traição
às verdadeiras necessidades da humanidade.
Enquanto a religião aparecia como o eixo e o motor,
a ordenadora da sociedade, a educação foi principalmente
iniciação mágica e ritual. Isso era normal. Os filósofos ten­
taram depois destronar a religião em proveito da razão no
comportamento individual e social. Essa razão supunha o
conhecimento, e o conhecimento supunha a instrução. A
Escola foi então o templo da instrução, fundamento da
ciência e da razão. O que era ainda normal, pelo menos
nesse momento.
Falsas esperanças, falsa instrução, negação da razão
discursiva, vieram deitar abaixo o frágil edifício. A uma
velocidade vertiginosa, a ciência perturbava e transformava
o mundo, cujos mais emocionantes segredos ela estava, ao
que parecia, prestes a descobrir. E a Escola esfalfou-se a
seguir essa corrida do conhecimento para a ciência, partici­
pando nos mesmos erros, para soçobrar com ela, pelo menos
sob essa forma anárquica e inumana, no maior cataclismo
de todos os tempos, negação dos esforços mais generosos.
De repente, o mundo, subitamente desiludido, parece
querer finalmente beber nas únicas fontes vivas donde lhe

126
virá a salvação. E o trabalho surge como a mais essencial
dessas forças vivas. Exaltam-no; recomendam-no; organizam-
-no. Enquanto se desmoronam tantos valores artificiais que
haviam tomado o aspecto de pilares da sociedade, o homem
parece reencontrar a instintiva necessidade de esgaravatar
na terra para dela fazer surgir flores e frutos, essa eterna
riqueza renovada por cada primavera; e também a necessi­
dade ancestral de entalhar a madeira, de forjar o ferro, de
tratar os animais à sua volta, de se embriagar de caça, de
pesca e de aventuras. Não é possível que esse safanão não
tenha futuro e que se tenha perdido a dura lição da desordem
generalizada, do desequilíbrio profundo, que se não corri­
girão a partir de cima, por leis e regulamentos, mas a partir
dos próprios elementos, nos quais é preciso reencontrar ao
mesmo tempo as bases sólidas e as razões audaciosas para
viver e lutar.
Se a escola fosse a única a persistir num erro à imagem
de uma época e de concepções espirituais e sociais condenadas
pela experiência, não faria mais do que acentuar a desa­
daptação, como se se obstinasse em ensinar uma língua
imperfeita e morta de que ninguém veria a utilidade. A
Escola deve, pelo menos, adaptar-se à sua época e responder
aos apelos difusos de um mundo que se procura.
E isso é urgente.
É preciso evitar que seja desiludida essa esperança ins­
tintiva que se deposita no trabalho como único elemento da
nossa ressurreição; é preciso fixar-lhe imediatamente as velei­
dades a fim de que os homens mortificados não se limitem
a ver nesse regresso a actividades há pouco menosprezadas
como que um paliativo provisório, como um desses remé­
dios de velhota aos quais se recorre quando fracassaram
todos os médicos, mas de que se troça em seguida, depois
de passado o perigo.
É preciso que se compreenda que essa educação baseada
no trabalho não é uma educação menor, para tempo de
crise, à medida das humildes possibilidades que nos restam
num mundo enlouquecido Compete-nos a nós sabermos mos­
trar, menos teórica do que praticamente, a superioridade da

127
formação pelo trabalho sobre todas as concepções antiqua­
das, intelectualistas e formais, que já mostraram suficiente­
mente a sua impotência. E uma superioridade em todos os
domínios: para o equilíbrio dos indivíduos, para a sua saúde
moral e física, para a sua preparação efectiva para a vida,
a sua reacção heróica perante os acontecimentos, do mesmo
modo que para a sua formação intelectual, o desenvolvi­
mento máximo mas harmonioso de todas as faculdades que
fazem a dignidade do homem e a sólida vitalidade da socie­
dade; para uma cultura de verdade e de humanidade.
Tudo isto pode-o a educação pelo trabalho muito melhor
do que qualquer outra educação intelectualista. Basta dar a
essa palavra trabalho toda a larga e fecunda acepção que
ela adquiriu ao longo dos séculos, e, desembaraçando-a do
falso materialismo que ela sofreu como uma maldição,
erguê-la até à íntima compreensão da construção social.
— Acha realmente que se uma tal educação pelo trabalho
fosse a esse ponto fecunda, que se ela fosse humanamente
realizável, não se teria tornado desde há muito realidade, sob
o impulso e a direcção dos numerosos pedagogos que têm
presidido à lenta adaptação da escola?
— Seria lamentável que esse escrúpulo vos impedisse de
avançar. É como se os nossos contemporâneos não tivessem
nem inventado nem aperfeiçoado a bicicleta sob pretexto
de que Leonardo de Vinci, esse génio universal, não tivesse
tido essa ideia. Há em qualquer progresso, em qualquer
realização, materiais ou intelectuais, o resultado de uma con­
junção de circunstâncias que os faz surgir num dado momento,
tal como as sementes germinam na primavera, não só porque
encontram calor e humidade, mas porque se encontram
banhadas em toda uma atmosfera cujas determinantes per­
mitem a explosão da vida.
Era preciso, para que chegássemos à ideia, ou antes à
realização dessa educação pelo trabalho, que a escola ultra­
passasse o quadro estrito em que a haviam confinado as
classes dirigentes que a tinham posto ao seu serviço; que
o trabalho servil conquistasse previamente os seus títulos de
nobreza e as suas prerrogativas sociais e políticas; e sem

128
dúvida também que se passasse pela experiência decepcio­
nante de sistemas aparentemente mais ecléticos e que se
supunha serem mais eficientes porque se dirigiam directamente
às faculdades superiores do indivíduo. Como esses jovens
que partem para a cidade onde tudo é luz, pompas e facili­
dades, mas que de lá regressam um dia, doentes, desiludidos,
vencidos pela vida da qual apenas tinham considerado antes
os ouropéis enganadores.
Aquilo que outros séculos, outras gerações não tinham
podido iniciar, podemos nós, e devemos, realizá-lo, porque
as conjunturas são hoje favoráveis a essa realização e porque
seria falhar na nossa tarefa se não nos aplicarmos. Os grandes
acontecimentos sociais dar-nos-ão, esperemos, a audiência e
o acolhimento que serão garantias do nosso sucesso.
Bastará de resto, para o conseguir, que algumas perso­
nalidades vejam com clareza e distingam os caminhos sus-
ceptíveis de mobilizar as boas-vontades latentes. O tempo
fará o resto. Devemos, como sabe, contar também com ele.

9
129
38. EDUCAÇÃO PELO TRABALHO

A EDUCAÇÃO PELO TRABALHO É MAIS


DO QUE UMA VULGAR EDUCAÇÃO PELO
TRABALHO MANUAL, MAIS DO QUE UMA
PRÉ-APRENDIZAGEM PREMATURA; ELA
É, ASSENTE NA TRADIÇÃO, MAS PRUDENTEMENTE
IMPREGNADA PELA CIÊNCIA E A MECÂNICA
CONTEMPORÂNEAS, O PONTO DE PARTIDA
DE UMA CULTURA CUJO CENTRO SERÁ
O TRABALHO

Mathieu ainda não estava satisfeito com as suas expli­


cações.
— Eu digo: educação pelo trabalho. Que se não entenda
imediatamente: educação pelo trabalho manual, como se o
trabalho devesse designar exclusivamente a actividade manual.
Ela é na verdade isso, na origem, mas sem que essa activi­
dade seja alguma vez arbitrariamente separada de uma alta
espiritualidade que a ilumina, isolada do processo vital de
que ela é um elemento, do mesmo modo que do processo
social que a condiciona.
Esta ideia de educação pelo trabalho também não signi­
fica que, na escola nova que julgo necessária à sociedade
actual, nos limitaremos a jardinar, a tratar dos animais e
das plantas, a carpinteirar, a fazer trabalhos de pedreiro e de
ferreiro. Essa é a concepção menosprezante do trabalho que
deixa a uns o encargo árido do esforço muscular e da habili­
dade manual, como a uma máquina à qual se pede apenas
que assegure, com um mínimo de solicitude, os gestos social­
mente indispensáveis — para reservar a outros as tarefas
nobres onde o pensamento é preponderante.
O trabalho é um todo: pode haver tanto bom senso,
inteligência, útil e filosófica especulação no cérebro do homem
que constrói um muro como no do sábio que investiga no

130
seu laboratório. Só que cada um exerce as suas funções
segundo as suas tendências e as suas possibilidades, e, num
Estado bem organizado, elas teriam todas a sua eminente
nobreza.
Trata-se justamente de atingir essa integração do traba­
lho, de evitar o mecanismo embrutecedor, de exaltar a espi­
ritualidade que guia e idealiza o gesto, de restaurar o valor
geral tanto como o alcance individual e social desse gesto,
de restabelecer a interdependência das diversas funções, a
identidade fundamental das suas motivações e dos seus
objectivos, a fim de que não mais haja esse arbitrário fosso,
que a civilização actual levou até ao extremo, entre a activi­
dade física por um lado, o pensamento e a afectividade do
indivíduo por outro.
Devemos fazer com que se reencontrem e se completem
a espiritualidade do trabalho e a materialização por assim
dizer do esforço cerebral, a fim de aceder a um novo pro­
cesso de pensamento jamais isolado das suas considerações
humanas, nunca levado até essa especulação intelectualista
que corre o risco de se tornar um jogo perigoso e desequi­
librado.
O trabalho tal como é preciso organizá-lo na escola não
deve ser um assistente mais ou menos eficaz da aquisição,
da formação intelectual e da cultura. Ele toma-se um ele­
mento da própria actividade educativa, integrado nessa
actividade, e a sua influência não poderia ser limitada a
qualquer arbitrária forma material.
Há trabalho sempre que a actividade — física ou inte­
lectual— que esse trabalho supõe, responda a uma necessi­
dade natural do indivíduo e proporcione por esse facto uma
satisfação que é em si mesma uma razão de ser. No caso
contrário, não há trabalho mas ocupação, tarefa que se exe­
cuta apenas porque se é obrigado a isso — não sendo de
modo nenhum comparáveis.
Demoro-me um pouco nesta distinção. É que se passa
com a palavra trabalho o mesmo que se passa com tantos
vocábulos cujo sentido a vida tanto perverteu, e aos quais

131
temos que restituir previamente a sua verdadeira significação
se nos quisermos entender.
Eu sei que, se desembaracei o caminho, se descobri o
caminho por onde devemos embrenhar-nos, nem por isso
abordei ainda a parte mais delicada que é, tendo em conta
tudo quanto foi dito, definir agora a natureza e a forma do
trabalho que oferecemos às nossas crianças nas diferentes
idades, e os meios práticos, técnicos, de fazer passar o nosso
projecto para a realidade construtiva.
Segundo o nosso raciocínio, o nosso trabalho escolar
deverá ser necessariamente, em todos os casos, um trabalho
-jogo, quer dizer que deve:
— Ser à medida da criança pelos gestos que exige, pelo
esforço que supõe, pela fadiga que provoca, pelo ritmo a que
se executa.
— Fazer funcionar normal e harmoniosamente os diver­
sos músculos bem como os sentidos e a inteligência, a fim
de produzir uma fadiga normal que não é nunca esfalfamento
mas apenas satisfação apaziguante de uma necessidade.
— Responder às tendências essenciais do indivíduo:
necessidade de subir, de se enriquecer material, intelectual
e moralmente, de aumentar incessantemente o seu poder
para triunfar na luta pela vida, necessidade de se alimentar
e de se preservar contra as intempéries; necessidade de se
defender também contra os elementos, contra os animais,
contra os outros homens; necessidade de se agrupar (família,
clã, pátria) para assegurar a perpetuação da espécie.
A utilidade social do trabalho, que certos pedagogos
por vezes têm apresentado como uma necessidade exagera­
damente formal, está incluída nas características que acabo
de recordar. Ela não é absoluta e directamente indispensável.
A criança é muito menos utilitarista do que se julga: a sua
predilecção pelos jogos-trabalhos desinteressados bem o mos­
tra. Não se deve cometer o erro de procurar inconsiderada­
mente a relação social do trabalho e de apresentar essa rela­
ção como uma condição indispensável, pelo menos no pri­
meiro grau. Essa relação pode ser virtual e não imediata; o
trabalhador pode, sem por vezes o parecer, preparar os filhos

132
para desempenharem amanhã a sua tarefa social, como a
empresa que constrói por elevado custo locais cuidados e
espaçosos, instala neles as máquinas-ferramentas indispensá­
veis, para começar por vezes vários anos depois a verdadeira
produção organizada. Admitamos pois que o trabalho que
oferecemos do mesmo modo às nossas crianças possa ter
muitas vezes esse carácter de aumento do potencial para uma
produção social ulterior, a longo prazo; que ele seja, em
toda a acepção da palavra, a preparação integral, individual,
inteligente, ao mesmo tempo física e psíquica, e não apenas
técnica, para a produção de amanhã.
Precisemos portanto, para evitar qualquer mal enten­
dido sobre este ponto, que se um trabalho é exaltante para
a criança, se ele satisfaz as suas necessidades essenciais, é
um trabalho-jogo desejável, ainda que não dê de imediato
um produto directamente útil à sociedade.
E isso far-nos-á compreender essa outra característica
do nosso trabalho-jogo escolar:
— Ele não é de modo algum, no grau primário, uma
aprendizagem técnica imediata. Essa aprendizagem será obra
da educação dos adolescentes que se aproximam do período
da produção. Pode ser uma aprendizagem, e tanto melhor
se o é. Mas quero dizer que, contrariamente ao que vocês
talvez supusessem, essa consideração não entra em linha de
conta com a escolha dos nossos trabalhos-jogos. Trata-se
apenas de preparar a criança para o seu papel de homem,
que só pode ser um papel de trabalhador activo; de inscrever
a necessidade e a nobreza do trabalho na sua carne, nos
seus músculos, nos seus hábitos, nos seus pensamentos, para
que ela fique para sempre impregnada e marcada por ele.
— E enfim, outro desvio a evitar: a nossa educação
pelo trabalho não deve ser concebida «a priori» com um
objectivo de autarquia da escola. A nossa preocupação domi­
nante não poderia ser, a esse grau, fazer produzir por crian­
ças o máximo daquilo que lhes é necessário, diminuir os
custos de funcionamento da escola, dar prematuramente um
objectivo que seja em demasia directamente utilitário à
actividade infantil. Isso seria em muitos casos fazer com que

133
essa actividade perdesse o seu carácter indispensável de
trabalho-jogo.
Se esse trabalho-jogo pode produzir objectos úteis, se
pode ajudar materialmente a escola e o meio ambiente, tanto
melhor. Mas insisto neste ponto: essa não deve ser uma
condição indispensável susceptível de nos influenciar na nossa
organização educativa.
A educação pelos adultos da geração ascendente exige
e exigirá sempre sacrifícios generosos. Não leva o pássaro
durante muito tempo, e até à saciedade, o alimento à sua
ninhada? Não seria o homem capaz de fazer os mesmos
sacrifícios para assegurar o desenvolvimento máximo da
sua progenitura?
— Atenção! — objectou o senhor Long. Receio que
você corra então o risco de inovar um jogo-trabalho que
será quase de certeza um progresso sobre as técnicas exis­
tentes, mas que nem por isso deixará de funcionar em seco,
para brincar, segundo métodos simples talvez, mas um tanto
caducos, e que se arriscam por vezes a tornar-se num enfa­
donho e decepcionante anacronismo.
— Não cometerei o erro do escutismo. Já lhe expliquei
que se a criança se entrega, nos seus jogos-trabalhos, a
actividades tão directamente influenciadas por gestos ances­
trais, isso não é apenas por gosto, mas por uma espécie de
inaptidão congénita para se adaptar ao progresso. O ins­
tinto anda sempre atrasado, talvez vários milénios, sobre
o progresso técnico. E é sem dúvida necessário que assim
seja. Gestos novos, hábitos diferentes, demoram várias gera­
ções para se inscreverem no subconsciente dos indivíduos.
Pela sua inteligência, pelo seu esforço criador, pelas suas
tendências sociais, o homem, superior nesse aspecto aos
animais, sai do seu instinto, vai mais além — por bem ou
por mal — modificando-o lentamente. E esse é sem dúvida
o único progresso verdadeiro: essa impregnação, quase infi­
nitesimal. mas indelével e transmissível, através das gerações,
do subconsciente e do instinto pela inteligência criadora.
Entregue a si mesma, a criança, tal como o animal,
como de resto a massa dos homens, não tenhamos ilusões,

134
fica confinada nos gestos e processos instintivos. Devemos
respeitar e utilizar esse instinto que é como que a figura
original da raça, mas tentar inscrever nele lentamente, minu­
ciosamente, obstinadamente, a marca, que nós quereríamos
generosa, da nossa geração.
Seria um erro limitar o nosso trabalho-jogo a essa
actividade instintiva, como o fez o escutismo. É uma prova
de sucesso momentâneo, mas é também uma estagnação,
uma abdicação perante o esforço que é a nobreza do nosso
destino de homens e que nos faz dar o nosso contributo,
o maior possível, de experiência consciente e razoável para
a humanização desse instinto onde se inscrevem misteriosa­
mente as verdadeiras conquistas humanas.
Quando portanto a criança, entregue a si mesma, se
dedica a actividades que aparecem como uma recordação
tenebrosa das velhas eras, isso não é por predilecção, mas
por impotência para encontrar, no presente, o equivalente
funcional dessas actividades. A criança afeiçoa do mesmo
modo, e já veremos porquê, o trabalho-jogo ou o jogo-tra-
balho que são enriquecidos pelas recentes conquistas dos
homens. Só que, para isso, é preciso um esforço novo de
adaptação inteligente. É perante esse esforço, cujo sucesso
é aleatório, que as crianças recuam; é na realização eficiente
desse esforço que nós devemos ajudá-las.
Nas suas Unhas gerais, mau grado os erros nascidos
de choques suscitados por um desequiUbrio orgânico talvez
evitável, o esforço criador do homem sempre visou aumentar
o seu poder individual e social, para tornar mais eficaz a
sua luta contra os elementos, para aumentar o seu potencial
de vida, para dar mais segurança à transmissão e à perpe­
tuação da espécie.
Examinemos com efeito os diversos produtos da nossa
civilização e veremos até que ponto essa civilização pode
ser exaltante para adultos, e ainda mais para crianças;
demasiado exaltante mesmo, pois pôde fazer crer por
momentos que o homem detinha enfim os segredos da
criação e da vida e que estava a ponto de se igualar aos
deuses. O homem desloca-se cada vez mais depressa; con­

135
quista a terra, as águas, o céu; domina o espaço e escruta
o tempo; mergulha nas entranhas do globo e esquadrinha
o universo com olhos artificiais de uma acuidade inimaginável;
constrói abrigos de um conforto que os nossos antepassados
nem sequer poderiam suspeitar; produz alimentação a um
ritmo incrível; destila prazeres, mas tantas dores também!
As crianças são extraordinariamente sensíveis à exas­
peração desse poder humano, e é isso que explica em espe­
cial a sua paixão pela mecânica moderna: basta carregar
num botão para dar vida a um motor que pulsa e vibra,
e centuplica a nossa força. Acciona-se um manipulo e cria-
-se movimento, gestos, actos, como se tivéssemos ao nosso
serviço milhares de braços dóceis. É toda a história da
atracção fascinante da bicicleta, do comboio, do automóvel,
do avião, do motor, e, em geral, de toda a conquista técnica
contemporânea.
Só que essas conquistas ainda não estão inscritas no
instinto. Abandonada a si mesma, a criança não pode nem
produzi-las nem utilizá-las e vê-se obrigada a recorrer às
aquisições seguras, adaptadas às suas possibilidades, e é isso
que explica a simultaneidade por vezes desconcertante de acti-
vidades exageradamente evoluídas e de manifestações tradi­
cionais de um espírito fielmente conservador.
Nós que ultrapassamos o instinto, sem subestimarmos
o seu alcance vital, não podemos negligenciar as possibili­
dades educativas incluídas no potencial de acção e de criação
dessa conjunção delicada do presente e do passado, ambos
igualmente fecundos, de uma adaptação metódica do devir à
realidade complexa. E nessa adaptação temos, como aliás
em qualquer adaptação, graves perigos a evitar.
Esses perigos tocam aqui a própria progressão do nosso
raciocínio, a nossa apreciação do mundo exterior, e, em
definitivo, a própria contextura do nosso pensamento. E é
isso que é grave.
Para quem tem o privilégio de ter um automóvel, o
encantamento tem o seu quê de magia. Desce-se à garagem,
talvez mesmo de elevador; liga-se o contacto; um ronco
misterioso responde à nossa pressão. Um outro gesto breve

136
e lá vamos, a uma velocidade infernal, para outras paisagens,
para outras visões do mundo, outros gestos, outros destinos.
Não se assemelha isso por completo aos contos de fadas
de outrora, e não retiramos daí o mesmo encantamento,
acentuado ainda pelo facto de que o sonho e a imaginação
se tornaram realidade? Mas esse maravilhoso do qual parti­
cipamos corre também o risco de falsear a concepção das
relações naturais e sociais, como a crença no poder sobre­
natural das fadas desequilibrava o comportamento das gera­
ções que nos precederam. Chegamos a persuadir-nos de que
certas forças misteriosas, que bastará tornar favoráveis,
podem suprir a necessidade do esforço individual; que o
acaso, ou a sorte, trabalham para nós; que basta esperá-los,
desejá-los pelo sonho, solicitá-los pelas práticas mágicas.
A noite é escura. Rodamos o interruptor e, lentamente,
instantaneamente, sem fogo, sem fósforos, uma luz mara­
vilhosa, mais cintilante do que aquela que colora as mon­
tanhas à tarde, enche a sala. Carregamos num outro botão,
e é então uma claridade difusa de crepúsculo.
Vamos ao cinema e vemos viver na tela — imagem ou
realidade? — pessoas e paisagens que talvez tenhamos conhe­
cido e que são aqui animadas como que sob o efeito da
varinha mágica.
Existem, nas conquistas da ciência moderna, os elemen­
tos de um maravilhoso que o génio dos narradores ainda não
soube explorar. Porque as crianças vêem aí na origem apenas
o maravilhoso: o seu estado de espírito perante essas novas
realidades é de certo modo o mesmo que o dos nossos
bisavós perante quem se evocava o esplendor dos castelos
encantados, a metamorfose súbita da Gata Borralheira ou
os poderes sobrenaturais de todos esses seres estranhos de
que eles povoavam a natureza para explicar de maneira
sensível os sonhos dos humanos.
O jogo aliás apoderou-se acidentalmente dessa nova
feitiçaria: a criança que outrora brincava apenas ao cavalo,
à carroça, anima agora um automóvel imaginário. Carrega
num botão, fecha a porta, trepida ruidosamente e estraleja

137
para partir lentamente arrastando os pés. para acelerar em
seguida com estridentes sons de trompa.
Ou então brincam ao comboio: Agarram-se pelas batas
em fila. A criança da frente é a locomotiva que faz tchch!
tchch! O chefe da estação apita e o comboio põe-se em
movimento!
Devemos ter em conta essa lenta evolução. Os traba­
lhos originais e simples, que são como que o balbuciar da
ciência, e revelam de repente, por esse motivo, todos os seus
segredos, são decerto particularmente educativos. Se a criança
fabricou ou viu fabricar a cal com a qual vai fazer a sua
argamassa; se foi ela própria recolher e transportar a areia
da ribeira, a construção da casa já não terá para ela nada
de misterioso. Será o resultado normal da engenhosidade e
da actividade do artesão.
Mas limitar-se sistematicamente a esses trabalhos sim­
ples, porque se receia a complicação científica do trabalho
moderno, tão raramente ao alcance da análise infantil, seria
agir como esses educadores demasiado prudentes que, para
evitar aos seus alunos o espectáculo por vezes imoral e
decepcionante da vida corrente, os sequestram em refúgios
onde os problemas sociais são reduzidos, e aparentemente
despojados de qualquer nocividade. Os alunos assim habi­
tuados são como esses bébés delicadamente calafetados numa
atmosfera de estufa, longe do ar vivificante da natureza.
As suas reacções organizam-se ao ritmo e à medida desse
meio artificial, e eles serão depois impotentes para se adapta­
rem às rudes exigências do meio natural. Uma vez mais,
produz-se um perigoso desnível: a criança lançada um dia
para a vida, deve então fazer por si mesma, sem preparação
e sem guia, uma urgente e por vezes penosa aprendizagem
para a qual os nossos esforços a não haviam preparado.
Quer queiramos quer não, a criança vive, age, e reage
num meio que é o do século XX. A Escola, a Educação,
devem prepará-la para viver o mais intensamente, o mais
poderosamente, o mais inteligentemente possível, e com um
mínimo de riscos e de danos nesse meio real.

138
Não basta escamotear, ou contornar a dificuldade.
O trabalho-jogo e o jogo-trabalho devem participar hoje da
técnica mecanizada contemporânea. Com uma grande pru­
dência no entanto. Não devemos limitar-nos a oferecer à
criança, como uma chave mágica, um material aperfeiçoado
que lhe evitaria as experiências intermediárias, decuplicaria
de repente os seus poderes de realização mas obscureceria
talvez irremediavelmente a sua concepção lógica e humana
do trabalho.
Porque se ela pensa, sem prosseguir na reflexão, que basta
carregar num botão para que um motor corte a madeira
que nós penávamos a serrar à mão, nos leve sem fadiga
à cidade vizinha, ou substitua vantajosamente num tractor
o lento poder dos bois, haverá ainda aí um desnível; os
trabalhos simples, não mecanizados, serão considerados por
ela como menores, como secundários, como menos nobres.
A criança não compreenderá sem auxílio que, para produzir
esse motor, para extrair a gasolina, para obter a corrente
eléctrica que o anima, foi necessário que homens, no pre­
sente e no passado, se entregassem a esses trabalhos primá­
rios, penosos, sujos; que foram necessárias mãos hábeis e
sensíveis para montar e afinar as peças essenciais.
As máquinas actuais são um pouco como essas esplên­
didas «toilettes» de rainhas, tão perfeitas, tão deslumbrantes,
que dificilmente se concebe que possam ser obra da apli­
cação obstinada e inteligente de humildes mãos humanas.
Mau grado nosso, somos fascinados por essa perfeição, e
ficamos impotentes para imaginar o processo do trabalho
humano que a realizou. Só por um anormal esforço inte­
lectual conseguimos evocar os longos serões de operárias
mal pagas que, tarde na noite, coseram fio a fio as peças
da obra prima; as privações, os sofrimentos e as lágrimas
que são como que o húmus sobre o qual desabrochou essa
flor. Como pedir a crianças que façam esse mesmo esforço
de abstracção e que vejam, atrás do objecto acabado que
elas admiram, o longo penar dos homens de que ele
resultou?

139
E não se julgue que basta, para remediar a situação,
cultivar intelectualmente, escolasticamente, esse sentimento
de íntima dependência, essa relação inexorável entre o tra­
balho primitivo e a perfeição da máquina contemporânea;
não se pense que podem bastar para isso esses belos trechos
de literatura ou esses versos comoventes como eu sei que
os há, para cantar o «sofrimento dos homens». Tudo isso
é simples «verniz», expediente artificial para tentar levar
à compreensão afectiva aquilo que se não pode sentir porque
não se viveu. É como uma espécie de polidez superficial
que humanizará aparentemente o nosso comportamento sus­
citando os gestos civilizados que se impõem. Não resultará
daí que sintamos a verdadeira vida da máquina, que partici­
pemos do seu destino, ou antes que ela participe do nosso
próprio destino.
Mas se nós próprios concebemos alguma peça dessa
bela «toilette»; se fomos actores no drama permanente que
foram o seu nascimento e a sua realização, então, esse ves­
tido é como um filho que conhecemos intimamente porque
vivemos e sofremos com ele, porque realizámos espontanea­
mente, em comunhão total, os seus desejos, as suas alegrias
e os seus sofrimentos.
Assim se passa com o nosso automóvel: bem podemos
ler descrições comoventes sobre a monotonia do trabalho
em cadeia que o produziu, sobre a desumana nocividade
das siderurgias onde se depuram e se combinam os metais
que lhe asseguram a solidez e a leveza, sobre os perigos das
emanações tóxicas das tintas que lhe dão o brilho. Essas des­
crições são literatura, que talvez nos toque ou nos emocione
no momento da leitura, mas que não pode de modo algum
impressionar, de uma forma decisiva e activa, o nosso com­
portamento. A silhueta do operário ao sair, esgotado e sujo,
de uma fábrica sem alma afecta-nos também dolorosamente,
mas a imagem esvai-se rapidamente perante as exigências
e as vantagens da nossa vida pessoal.
As coisas modificar-se-ão um pouco se nós próprios
tivermos trabalhado em cadeia, se tivermos penado e sofrido
com os operários, unidade entre outras unidades; se tivermos

140
ao menos desmontado para o voltar a montar depois da
limpeza o motor com o qual nos familiarizámos assim,
pelas mãos e pelo trabalho; se tivermos sofrido, nem que
seja por um só dia, a aderência tenaz e as emanações dolo­
rosas da tinta; se tivermos suado a desmontar e a montar
pneus, então o automóvel terá para nós uma espécie de
sentido social: quando o utilizarmos teremos como que uma
compreensão material e sintética da soma de inteligência e
de trabalho de que ele é fruto.
Nessas condições, mas só nessas condições, o uso dessa
máquina aperfeiçoada deixa de ser uma misteriosa magia.
A máquina torna-se o fruto normal do trabalho humano;
ela é então, por si mesma, uma poesia, uma oferenda e
um ensinamento.
Vemos assim em que condições nos será possível intro­
duzir, para fins educativos, a máquina aperfeiçoada no ciclo
dos nossos trabalhos-jogos e dos nossos jogos-trabalhos.
Será preciso que tenhamos participado ejectivamente, com
o nosso trabalho, no seu nascimento, na sua realização, na
sua afinação; que compreendamos — mas não, desconfie­
mos, a compreensão não basta porque, sobretudo com
as crianças, ela é sempre imperfeita e parcial — é preciso
que sintamos como e porquê essa máquina que decuplica a
nossa força não possui no entanto nada de misterioso, que
realizemos os seus mecanismos, que estejamos familiarizados
com as relações mecânicas entre as diferentes peças. Então
realiza-se em nós, sob os nossos dedos, no processo do
trabalho único produtor de vida e de progresso, o perfil
dessa lenta conquista do homem sobre a natureza. Partici­
pamos intimamente nessa exaltação de poder; os seus ele­
mentos integram-se na nossa personalidade, animam-na, moti­
vam o seu comportamento e os seus pensamentos até sus­
citar uma nova filosofia baseada no trabalho; eles penetram
pouco a pouco no nosso subconsciente, marcam-no até modi­
ficarem lentamente, mas definitivamente, os actos essenciais
do instinto.
Nesse momento, a vossa educação terá verdadeiramente
um domínio poderoso sobre os indivíduos e sobre o paciente

141
progresso das gerações. E vós tereis cumprido a vossa missão
histórica, que ultrapassa o modesto destino do indivíduo
para atingir e influenciar essa incessante ascensão do homem
para a luz e para a perfeição.
— Você praticaria então aquilo a que nós chamamos
o politecnismo na Escola. Ele tem certamente a vantagem
de iniciar as crianças na complexidade crescente da nossa
vida social, de as preparar para escolherem com alguma
seriedade e depois para exercerem com gosto a profissão
preferida. Mas tem também o inconveniente — que é um
grave perigo que você não teve em consideração — de dis­
persar a atenção da criança solicitada por múltiplas técnicas,
todas apaixonantes de resto, e que correm o risco de se
lhe oferecer como outros tantos pequenos caminhos, para­
lelos ou não, mascarando a simplicidade e o esplendor
dessa estrada luminosa cuja necessidade vital você tão poeti­
camente me mostrou.
— Seria com efeito assim se nos limitássemos a
jogos de descontracção que se apresentam sem ordem
inferior, com o seu conteúdo de actividades compensadoras
passageiras. A criança faz mover um comboio sobre os
carris; depois vai jogar um jogo de construção porque
está cansada do caminho de ferro, e irá esgaravatar na terra
quando sentir a necessidade de sair para o ar livre. É sem
dúvida assim, segundo o tenho lido, e visto, no sistema
em moda de Maria Montessori. A criança escolhe a sua
actividade, é um facto, mas não seria necessário fazê-la
sentir a utilidade dessa actividade, fazê-la adquirir subcons­
cientemente a noção de trabalho que a teria motivado e
ordenado, em vez de a deixar à mercê da fantasia e da
ilusão?
Se nos deslocamos a um grande armazém sem saber­
mos firmemente de antemão aquilo que temos de comprar,
somos solicitados a cada passo pela diversidade e a riqueza
das secções, pelo desejo ou a cobiça suscitada por deter­
minado tecido cintilante. E apercebemo-nos à saída de que
nos esquecemos do principal, que nos faltou o tempo e

142
o dinheiro para a única compra que nos era essencial
porque fomos monopolizados pelo secundário e acessório.
Mas se a nossa vida, permanente ou passageiramente, é
dominada por um trabalho integrado nela, se vamos ao
armazém com o fito bem determinado de trazer de lá uma
peça que nos é indispensável, dirigimo-nos directamente,
talvez mesmo inconscientemente, à secção desejada, e faze­
mos antes de mais a compra prevista. Se o trabalho açam­
barca profundamente o nosso espírito, nem mesmo veremos
as outras secções, entre as quais passaremos imperturbáveis.
Compreende a diferença!
Não, não basta instalar na escola ferramentas ou máqui­
nas mais ou menos complicadas, abrir oficinas, adquirir e
cultivar campos e jardins, e depois deixar que essas múl­
tiplas solicitações se ofereçam sem ordem maior, sem razão
íntima, ao interesse e ao desejo de trabalho das crianças.
Isso seria cultivar essa fantasia de cuja nocividade já falá­
mos, favorecer a distracção e a desordem. Tristes condições
para uma iniciação ao trabalho!
Não faltam evidentemente pontos delicados no pro-
jecto que eu gostaria de ver realizar. Mas se sentirmos
fortemente o fim a atingir, se tivermos a noção precisa das
grandes necessidades individuais e sociais a satisfazer, triun­
faremos progressivamente de todas as dificuldades.
Se o camponês não sentisse viver a natureza à sua
volta; se não tivesse sentido, por tradição e por experiência,
a inelutável necessidade da ordem que regula a sucessão
dos trabalhos, se escolhesse assim, ao acaso, pela manhã,
entre as múltiplas actividades que se lhe oferecem, lavraria
e semearia quando isso lhe agradasse, e iria à caça quando
as plantas sequiosas reclamassem a rega. Note que o homem
estaria incessantemente embaraçado na sua escolha, porque
seria solicitado tão diversamente, e com uma igual insistência,
sem ter à sua disposição uma regra superior de conduta
ou de acção, uma compreensão instintiva e racional da
urgência e da precedência destes ou daqueles trabalhos, no
quadro da sua sujeição às necessidades mais elevadas e mais
imperativas.

143
Mas aí está a natureza que nos comanda, que limita
e ordena a nossa fantasia. É hoje que é necessário semear
um determinado talhão e não na próxima semana, porque
o sol já aí não chegará... Se não armamos imediatamente
o feijão, será tarde demais; se não enxofro as minhas vinhas
esta manhã, talvez amanhã o mal seja já irremediável; e
se não ceifo no momento próprio, poderia lamentá-lo esta
noite se uma tempestade vier deitar ao chão as espigas
demasiado maduras.
O próprio mecânico, na sua oficina, não pode obedecer
à sua fantasia. Há uma ordem ainda mais imperativa na
desmontagem e remontagem de uma máquina. Em tudo a
nossa livre escolha está consideravelmente limitada pela ordem
natural e social, a única fecunda, com a qual devemos
conformar-nos porque só ela é criadora de poder e de vida.
Está a ver: é pelo processo do trabalho autêntico que nos
elevaremos a essa concepção funcional da actividade humana
sob o seu duplo aspecto de obrigação interior e de fecun­
didade.
Alguns porão à frente a palavra liberdade. Notará que
é esta talvez a primeira vez desde que discutimos que essa
palavra se me apresenta. É que a liberdade não é de modo
algum uma entidade que possa existir assim fora da vida
e do trabalho, tal como essa outra entidade psicológica de
que já falámos: a memória. A liberdade é sempre relativa.
Só espíritos pervertidos por uma educação demasiado for­
mal a puderam elevar à categoria de uma necessidade indi­
vidual e social.
O que conta, em todas as circunstâncias, não é a liber­
dade em si mesma, mas a possibilidade maior ou menor
que temos de satisfazer as nossas necessidades essenciais, de
aumentar o nosso poder, de nos elevarmos, de triunfar na
luta contra a natureza, contra os elementos, contra os
inimigos. Para o conseguir, somos capazes de aceitar os
mais pesados sacrifícios em matéria de liberdade. O que
nos pesa, o que nos aniquila, é que se contrarie a satis­
fação dessas necessidades, que nos impeçam de subir, que
nos obriguem a uma vida e a tarefas que são a negação

144
mesma das nossas aspirações dinâmicas. Ser livre, é cami­
nhar magnificamente sobre o caminho da vida, ainda que
esse caminho seja rigorosamente delimitado, enquadrado por
múltiplas obrigações, tornado penoso e laborioso pelos
obstáculos a vencer. A privação de liberdade, é a impossi­
bilidade em que caímos de caminhar assim para a luz, cons­
ciente ou não, cuja atracção sentimos; é o extravio em
atalhos sem objectivo onde os nossos inimigos nos dominam
incessantemente, despojando os nossos esforços de todo o
seu sentido humano.
Não insisto de resto mais, isto é dito apenas para precisar
ainda a necessidade de uma ordem interior, por assim dizer
categórica, imperativa, nos trabalhos-jogos e nos jogos-tra­
balhos a que vamos entregar-nos. É pouco, mas é muito.
Que digo eu? É tudo. Sem essa ordem, sem essa motivação
essencial incluida no devir individual e social, não teremos
feito mais do que oferecer aos nossos alunos ocupações que
talvez depois tenhamos que lhes impôr, e que, falhando
no seu objectivo, exigirão jogos de descontracção compen­
sadora e de evasão. Uma vez mais teremos retirado o encanto
à magnífica construção...
— O segredo da história, é que você apelará ainda, para
coroar o seu edifício, para a compreensão, para o génio
inventivo, para a simplicidade e para a humanidade dos
educadores... É sempre assim... Os inventores imaginam o
pormenor das suas ferramentas; prevêem o desenvolvimento
do seu método; preparam um modo de o usar detalhado
com figuras explicativas. Mas, coisa extraordinária, que vem
sem dúvida do facto de que nem sempre é cómodo explicar
luminosamente aquilo que no entanto se sente e se com­
preende na perfeição, esses modos de usar não se bastam
nunca a si mesmos. É sempre necessário alguém para os
explicar e comentar. Estamos muitas vezes reduzidos a
esse papel. Só muito imperfeitamente o desempenhamos,
devo reconhecer, porque, se somos capazes de compreender
os textos que nos submetem, somos por vezes menos peritos
em distinguir-lhes a ideia profunda, a única que importa.
É essa habilidade, esse pequeno nada, que basta para ani­

10
145
mar a máquina, mas como ela é por vezes delicada para se
exprimir por palavras... Basta ver alguns minutos para
compreender... Nós não somos senão em parte respon­
sáveis pelos fracassos.
Receio muito que aconteça o mesmo com o seu projecto.
Você vê certamente, sente o que seria preciso fazer para
animar a máquina; estaria em condições de discernir e
corrigir os erros. Mas e os outros?... Veja como tem sido
laborioso fazer-me compreender a mim próprio, ao longo de
demoradas e pacientes discussões, o verdadeiro sentido das
inovações sugeridas. E não estou certo de ter chegado defini­
tivamente a essa simplicidade de concepção que faz a sua
lógica e a sua força! Que acontecerá quando o professor
ficar reduzido a um modo de utilização que lerá, aplicará, com
um espírito prevenido, com uma concepção da vida, do
esforço escolar, do seu ritmo, da memória, da inteligência,
que estão no oposto daquilo que você ensina. Eles pro­
curarão uma vez mais adaptar o seu material, o seu método,
as suas concepções, aos objectivos escolásticos de que con­
tinuam inteiramente impregnados e que são para eles como
que uma segunda natureza. E será o fracasso... Talvez não
total, porque basta por vezes que nasçam clarões aqui e ali
para que seja para sempre demarcado o caminho sobre
o qual nós avançamos tão dificilmente. Mas você terá injustos
dissabores; até os seus fiéis duvidarão por vezes das virtudes
da ideia; eles hesitarão, perguntando-se se você os não terá
transviado, fosse apenas porque teria pedido demasiado
àqueles de quem espera a renovação em profundidade da
nossa educação.
— Como o compreendo tão bem! É esse o motivo
por que eu queria oferecer um conjunto —material e
técnico— tão perfeito que se baste a si mesmo, sem modo
de utilização, pela simples virtude das solicitações imperativas
que faria às necessidades primordiais e às tendências naturais
de todas as crianças. Há utensílios que são apenas acessórios,
e dos quais se não vê, à primeira, o lugar lógico no pro­
cesso vital. Então são necessárias explicações, de resto
impotentes, como você bem o mostrou. É como essas poções,

146
ou esses licores diante dos quais hesitamos, perplexos: serão
eles bons para a nossa saúde como nos afirmam? Mas quem
no-lo prova? E que quantidade ingerir? A que horas do dia?
Há outros que, em contrapartida, sem justificação
prévia, se adaptam imediatamente ao nosso corpo, pelo
efeito de uma atracção espontânea que se basta a si mesma.
É como uma fonte cristalina que encontramos na montanha
e cuja excelência adivinhamos antecipadamente. Podemos
saciar-nos nela sem hesitar, impondo-se a nossa necessidade
satisfeita como único e verdadeiro guia.
Quereria reencontrar essa fonte clara, simples e no
entanto eminentemente vivificante, de que toda a gente se
pode servir espontaneamente a seu gosto, segundo as suas
tendências adaptando-a à sua própria natureza e às suas
possibilidades.
Creio ter atingido um elemento pelo menos dessa exce­
lência, dessa pureza, dessa limpidez, na minha concepção
trabalho-jogo.
Se conseguir chegar a permitir às crianças o uso desse
trabalho, os educadores terão muito menos a desenvolver,
a animar, a explicar. Eles estão hoje como que na origem
de tudo, pois que só eles detêm os segredos que ainda não
soubemos pedir à accão inteligente. A vossa tarefa é
actualmente tão profundamente ingrata e desagradável por­
que vocês estão metidos numa máquina que funciona
estranhamente mal, com avarias incessantes que vos obrigam
a lubrificar exageradamente, a meter gasolina em excesso e
em pura perda, a excitar a ignição à custa da resistência
da bateria, e por vezes mesmo a descer da máquina para
a empurrar até ao cimo da encosta. Não têm por certo
motivos para se felicitarem por uma pilotagem tão defeituosa.
Se a vossa máquina funcionasse com segurança, subisse
furiosamente as encostas «devorando o obstáculo», indo
impetuosamente para a frente, que alívio não seria o vosso!
Naturalmente, haveria riscos em sentido inverso: excessos
de velocidade, acidentes devidos à inexperiência, erros de
direcção a corrigir. Vocês resolvê-los-iam facilmente, pro­

147
curando apenas não desarranjar a máquina, não lhe afectar
a potência e decisão.
Será isso uma utopia?
Por que milagres, em consequência de que erros inces­
santemente renovados, por que atentado à natureza humana,
se reduziu ao papel de velhos pregos sem vigor e sem
vida seres tão jovens, tão novos, que segregam a vida e
a acção, e o esforço generoso com um domínio com que
sempre nos maravilhamos? Esse erro, por mais antigo que
ele seja, por mais ancorado que pareça estar nos nossos
hábitos, podemos ainda corrigi-lo.
E corrigi-lo-emos pelo trabalho!

39. A FRATERNIDADE DO TRABALHO

A VERDADEIRA FRATERNIDADE, É A
FRATERNIDADE DO TRABALHO; O MAIS
SÓLIDO DOS TRAÇOS DE UNIÃO ENTRE
OS MEMBROS DE UMA FAMÍLIA, DE
UM GRUPO, DE UMA ALDEIA, DE UMA
PÁTRIA, É AINDA O TRABALHO

— É que já não medimos, recomeçou Mathieu depois


de uma curta pausa, de que força eminente nos privámos no
dia em que voltámos radicalmente as costas ao trabalho-jogo,
para nos orientarmos para a tarefa obrigatória, que nos
subjuga, à qual nos esquivamos sempre que possível, por
más acções tão necessárias, e que exige em contrapartida,
para a manutenção do mínimo de equilíbrio indispensável
à vida social, actividades de descontracção compensadora,
que ocupam, na civilização actual, o lugar outrora reservado
à concentração e à cultura.

148
Procure o ideal que resta aos homens do nosso século,
quais as razões e quais os meios práticos que eles têm
para se unirem, para colaborarem, para realizarem para si
e para outrem bem-estar e felicidade. Encontrará ainda no seu
caminho algumas entidades religiosas, filosóficas e sociais
que escondem o seu vazio essencial de decadência sob pala­
vras sábias com as quais se tenta uma última vez ressuscitar
pelo menos a forma da ideia perdida. Aliás em vão; porque
inteligência, razão, caridade, fraternidade, bondade, justiça,
generosidade, só são verdadeiramente totais e efectivas no
e pelo trabalho. Sim, haveria que esboçar toda uma demons­
tração para provar que só o homem que pôde conservar
o sentido do trabalho-jogo é verdadeiramente inteligente,
razoável, caridoso, fraterno, bom, justo e generoso; que só
ele se eleva aos gozos superiores que são um desabrochar
do que há de melhor em nós; que só ele vive em comunhão
activa com a natureza para realizar do melhor modo o
seu destino de homem. Indico apenas essas realidades, que
outros poderão controlar se o quiserem pelo exame honesto
dos factos. Insistirei apenas em algumas das virtudes maiores
do trabalho-jogo.
A maior, a mais essencial talvez para vida dos indi­
víduos e para a permanência social, é que o trabalho-jogo
é o único elo efectivo e eficaz entre os homens. E isso com­
preende-se: pois que ele é satisfação normal das necessidades
primordiais do indivíduo, e é, por isso mesmo, o elemento
mais poderoso do seu comportamento.
— Você está nesse ponto em completo desacordo com
numerosos psicólogos contemporâneos que atribuem antes
esse papel de motor humano ao instinto de reprodução,
do qual o amor é apenas a transposição para o plano do
intelecto e do sentimento.
— O amor satisfaz com efeito, directa ou indirecta-
mente, uma das necessidades imperiosas do indivíduo.
Tem-se exaltado a sua importância à medida que se des­
viavam e se deformavam as outras necessidades. Supor nesse
instinto de reprodução uma supremacia vital tão inconside­

149
radamente generalizada, é esquecer que o homem deve
existir, durar, crescer, antes de se reproduzir. E que, sé
essa necessidade de se reproduzir nasce, cresce lentamente,
para adquirir um paroxismo, e em seguida decair com a
potência da vida, a necessidade de «ser», de se elevar, de
crescer, de realizar o seu destino, é uma necessidade per­
manente, desde o nascimento até à morte, e que condiciona
verdadeiramente o comportamento do qual a necessidade
de reprodução é apenas um acidente.
Mesmo quando a necessidade de se reproduzir ainda
não surgiu na fisiologia do homem, mesmo quando ela
desapareceu em consequência de acidente, de doença, ou
naturalmente, como consequência do enfraquecimento pro­
vocado pela velhice, a necessidade de «ser» não deixa
de se manifestar nem um instante.
O trabalho aparece então como o único meio de
expressão e de exaltação dessa necessidade de «ser» e, con­
sequentemente, como o único elo comum entre os membros
da sociedade.
Por expressão não entendo de modo nenhum essa facul­
dade relativamente moderna de exteriorizar pela língua e
por escrito os pensamentos que nos agitam. Porque nós
somos muito mais que pensamento. O pensamento é apenas
um elemento da nossa personalidade, como uma secreção
do nosso ser em devir no seio da sociedade de que participa.
São relativamente raros os indivíduos que têm alguma
aptidão para isolar esse pensamento, para o exprimir sob
essa forma independente e que não deixa de ter algum
perigo também, como vimos, porque se pode em seguida
jogar com esse pensamento separado do destino humano,
como as crianças jogam aos ganizes 1.

1 Aos ganizes, ou ao janco, às pedrinhas: jogo infantil


que consiste em lançar ao ar cinco seixos que depois se apa­
nham nas costas da mão. A referência a este jogo deve-se

150
A impotência para exprimir o próprio pensamento não
significa de resto que se não tem pensamento, nem mesmo
que se tem um pensamento de qualidade inferior. Trata-se
apenas de dois planos diferentes da nossa actividade sensível.
Pela linguagem damos uma ideia de certos aspectos do nosso
ser. É só no trabalho que todo o ser se exprime e se realiza
eficazmente.
Por exaltação não entendo também essa euforia passa­
geira produzida por um excitante artificial, nem mesmo por
esse excitante não permanente que é o amor, mas a possi­
bilidade que nós temos, pelo trabalho, de subir sempre, de
nos tornarmos maiores, mais abertos, mais livres, mais com­
preensivos, de realizar cada vez mais o nosso destino pro­
fundo.
Único elo eficaz entre os membros da sociedade! Deve­
ríamos insistir hoje mais do que nunca nessa virtude essen­
cial do trabalho.
Recordamo-nos por vezes, acidentalmente, de determi­
nado comparsa de jogo ou divertimento:, nunca esquecemos
os indivíduos —crianças ou homens— com os quais nos
entregámos a um trabalho-jogo, porque então, durante esse
trabalho, fizemos, em comunhão, os mesmos gestos fun­
cionais e por vezes rituais; participámos nas mesmas emo­
ções, nas mesmas alegrias; funcionámos verdadeiramente
juntos e, tal como a peça da máquina traz a marca do seu
longo funcionamento, assim se inscreve para sempre, no
nosso ser subconsciente, a marca da nossa comum acti­
vidade.
A verdadeira fraternidade é a fraternidade do trabalho.
E não sei mesmo em que medida uma boa parte dos sen­
timentos familiares não nascerão exclusivamente da iden­
tidade de gestos, das atitudes, dos estados de alma, das
«funções» exigidas pelo trabalho em comum. O instinto de

ao facto de em França ser comum as crianças praticarem-no


com os ossos dos carneiros, pelo que se chama «Jouer aux
osselets», quer dizer, «jogar aos ossinhos». (N. do T).

151
perpetuação da espécie quer que os pais eduquem os seus
filhos até à idade em que estes se tornaram semelhantes a
eles, estando portanto em condições de satisfazer as suas
próprias necessidades. Para o homem, essa idade é a puber­
dade. Nesse momento a criança torna-se homem. Todos
os elos que então subsistem e que prolongam a asso­
ciação familiar vêm justamente da colaboração no trabalho.
E podemos adiantar que, tanto como o amor filial, é o
trabalho que cria o laço essencial entre os membros de uma
família. E a família é tanto mais unida, tanto mais sólida,
quanto mais a vida dos seus membros for dominada por
um trabalho que lhe traz essa satisfação íntima e essa har­
monia que são o seu encanto.
Qual é igualmente o sentimento que une os habitantes
de uma mesma aldeia, senão o trabalho que exige de todos
gestos e actos similares, nos mesmos períodos, gestos e actos
que imprimem o seu ritmo e o seu sentido ao comporta­
mento de indivíduos que estão ligados por essa colaboração
tanto espiritual como material. De que é que se fala efecti-
vamente, à soleira das portas, à tarde, ou à sombra das
tílias, ao domingo, a não ser de trabalho? Como é que se
entra em comunicação simpática com um camponês —como
aliás com qualquer outro trabalhador— senão falando-lhe
do seu trabalho? E qual é a corda essencial que procuram
fazer vibrar todos aqueles que se lhe dirigem — quer sejam
padres, professores, caixeiros viajantes ou politiqueiros —
senão o interesse do trabalho?
O trabalho une não só os camponeses, mas todos os
trabalhadores; e une-os tanto mais quanto mais esse trabalho
apresentar as características de um trabalho-jogo funcional.
A tarefa exclusivamente material e mecânica do servente
na fábrica ou no estaleiro — e que não é um trabalho —
não é mais do que um frágil traço de união acidental.
Os serventes que se encontram não têm grande coisa a dizer
da sua profissão porque não viveram nem sentiram o seu
trabalho, porque este não afectou o seu pensamento, não se
elevou até à majestade de um elemento do ser. Veja em con­
trapartida aqueles que se entregam a um trabalho do qual

152
tiram um mínimo de interesse e que é já. pelo menos em
certa medida, uma actividade funcional. Não se sente ime­
diatamente. entre pessoas da mesma profissão, como que
uma fraternidade ao mesmo tempo física e intelectual, uma
identidade de gestos, de hábitos, de preocupações, de ideias
e de reflexões, nascidas das necessidades permanentes desse
trabalho? Poder-se-ia mesmo dizer que indivíduos, e grupos
humanos, se compreendem tanto melhor quanto mais pró­
ximas forem as suas técnicas de trabalho e as suas preo­
cupações profissionais; que eles são tanto mais estranhos uns
aos outros quanto mais dissemelhantes forem os seus tra­
balhos. Existe assim, através do país, uma espécie de fra­
ternidade, de comunidade de planície, de montanha e de
vale, de vinhedos e pomares, e a interpenetração actual
das populações ainda não reduziu totalmente essa conjunção.
Desde que não haja trabalho-jogo funcional, já não há
possibilidade de atingir essa comunhão que o trabalho rea­
liza. A vida é então uma vida sem nervos, sem reacção
harmoniosa, como que desprovida das suas raízes. E, efecti-
vamente, aqueles que têm a infelicidade de não conhecer
o gosto profundo do trabalho são em toda a parte como
que lamentáveis desenraizados.
Tudo isso foi completamente esquecido pelos pedagogos.
Eles deram ao acessório prioridade sobre o essencial, e
lamentam-se agora, e espantam-se por já não encontrarem
entre os seus alunos nem expressão vigorosa e pessoal, nem
exaltação fecunda de todas as virtualidades que a infância
traz em si, nem qualquer desses sentimentos no entanto
naturais que unem os indivíduos no seio de uma comunidade
de trabalho. Os educadores tomaram por pensamentos vitais
palavras que são logros; subestimaram os gestos construtivos
sobre os quais quiseram enxertar outros gestos incompreen­
didos... Fracasso por toda a parte!... Então tentaram a
embriaguez do jogo, o embrutecimento do haxixe.
E vocês próprios o notaram, não duvido disso: quando
vocês conseguem interessar os vossos alunos com um tra­
balho que os apaixona, imediatamente se instaura uma
ordem natural na vossa aula. Basta-vos zelar por que cada

153
um possa ter o seu papel sem incomodar nem o seu vizinho
nem o conjunto do grupo de trabalho.
As disputas mais ásperas erguem-se sempre na aldeia
aos domingos ou dias de festa, ou, nos outros dias, entre
pessoas que não trabalham. Nos campos, surgem discussões
veementes devido à água de rega que no verão determinado
sujeito retém para além da sua hora, ou porque ovelhas
pisaram ou comeram os trigos. Mas trata-se, por assim
dizer, de incidentes técnicos, que uma melhor organização
económica teria evitado.
Em geral, um povo no trabalho é essencialmente pací­
fico. E talvez seja porque os camponeses se contam entre
as raras pessoas humanas que têm ainda a satisfação de se
entregarem a trabalhos-jogos funcionais, que o campo é
considerado em toda a parte como uma das bases prin­
cipais da estabilidade social. Os protestos, os mal-enten­
didos, as greves e lutas diversas sobrevêm principalmente
nas empresas onde o trabalho deixou de ser trabalho
para se tornar quase exclusivamente tarefa obsidiante.
Porque então a tarefa é desordem pelas mesmas razões
que fazem do trabalho um elemento de equilíbrio e de
harmonia.

154
40. A CRIANÇA QUER TRABALHAR TAL COMO
QUER ALIMENTAR-SE

E, PARA O CONSEGUIR, NÃO SE POUPA


A ESFORÇOS. EXPERIMENTAÇÃO, CRIAÇÃO,
DOCUMENTAÇÃO, SÃO ACTIVIDADES QUE
LHE SÃO NATURAIS, DESDE QUE, EM VEZ
DE NOS COLOCARMOS PRETENSIOSAMENTE
COMO UM OBSTÁCULO AO MECANISMO,
LHE DEMOS PELO CONTRÁRIO ALIMENTO
E LUBRIFICANTE

O senhor Long não estava convencido.


— Ninguém ignora — disse — que as crianças adoram
serrar, cortar, pregar, aplainar, jardinar, e que são acomo-
datícias e calmas quando podem entregar-se a actividades
familiares. A Escola não teria deixado de explorar tendên­
cias tão benéficas se ela não se tivesse julgado comprome­
tida numa tarefa mais nobre: arrancar justamente os seus
alunos ao domínio fácil dessas ocupações primitivas para
os elevar gradualmente à vida do espírito que é a nossa
permanente nobreza.
— Como se nós não devêssemos estar todos dominados
por essa tão humana preocupação! Resta saber qual é o
caminho mais seguro para aí chegar: o vosso que, desde­
nhando dos degraus que aí conduzem, considera prematu­
ramente o espírito como uma entidade que se pode cultivar
separadamente, que podemos animar, desenvolver, exaltar
por meios especificamente intelectuais — ou o meu, que
espera pacientemente que se liberte da actividade natural
um pensamento original e fecundo.
Vocês estão ainda nesse ponto, fascinados por esse temí­
vel erro filosófico e escolástico, nascido aliás da tradição
religiosa, que separa arbitrariamente o corpo impuro e as
suas funções terra a terra, de uma alma que seria inteligência,
leveza e pureza. Foi em nome dessa inteligência formal,

155
abstraída do processo vital, que se perpetrou essa separação
de tão graves consequências entre o trabalho e o pensa­
mento; que se procedeu a essa distinção de graus em nome
da qual se atira o trabalhador para o domínio fechado da
pena e do sofrimento, numa condição onde ele corre o risco
de nunca mais encontrar nem fundamento humano, nem
dignidade, nem esperança de se elevar alguma vez até à
realização dos desígnios imperiosos da natureza.
Eu, pelo contrário, creio que há lenta ascensão dos
indivíduos da ocupação material até à crescente majestade
do pensamento inteligente e lógico. É o trabalho que destila
o pensamento, o qual age, por reacção, sobre as condições
de trabalho. Seria curioso estudar o progresso humano em
função justamente dessa interdependência mal conhecida.
Esse estudo revelaria a que ponto as puras especulações
intelectuais e morais, se por vezes satisfizeram espíritos
anormalmente torturados de pensamento, também perpetra­
ram erros que o simples bom senso dos trabalhadores feliz­
mente contrariou ou corrigiu em parte.
O homem que adquiriu um pouco de ciência é tão
presunçoso! Como a criança que, tendo aprendido a segurar
uma vara nas suas mãos, a agita na direcção da maçã que se
baloiça no alto ramo, ou ameaça com ela o pássaro que
passa.
Já se viu sábios, persuadidos da sua realeza inte­
lectual, imaginarem alimentar o nosso corpo com compri­
midos sintéticos que, suprimindo as funções vis do nosso
ser, deveriam exaltar as suas virtudes superiores. Julga­
vam, no plano escolástico, que poderiam tão impunemente
cortar as raízes que alimentam misteriosamente tudo quanto
há de grande em nós, que ganhariam em considerar o pro­
cesso vital a partir de um grau arbitrário para além do qual
nascem espontaneamente os pensamentos subtis que se vão
enriquecendo e aperfeiçoando, numa espécie de domínio
artificial e superior, longe das nossas preocupações terra a
terra, subjectivas e materiais. Essa pretensão produziu os
monstros que hoje nos devoram.

156
Nós. tentaremos restabelecer o circuito integral Não
apelaremos para as pílulas sintéticas com as quais os «inte­
lectuais» pretendem trazer-nos os alimentos directamente
úteis à nossa vida espiritual esses alimentos que cheiram
a artificial, a combinação química incompleta e que. desse
modo, são indigestos, inassimiláveis e nocivos ao nosso
organismo. Eu sei que certos indivíduos a eles se habituam,
se lhes adaptam, e têm por sua vez a ilusão de produzir,
pelo simples esforço do seu cérebro, um pensamento impes­
soal e abstracto. Mas também aqui a excepção não faz mais
que confirmar a regra.
Retomaremos paciente e obstinadamente a via natural
que leva das indispensáveis funções de base até à diferen­
ciação cerebral e social, por um trabalho lento, muitas vezes
subterrâneo, do qual se não descobre à primeira os efeitos
imediatos nem o alcance superior, mas que nem por isso
deixa de destilar a essência ideal de que a cultura formal
não consegue mais que sucedâneos.
Foi porque tinham ignorado a inelutabilidade desse
trajecto vital que os «intelectuais» acreditaram na necessi­
dade de impor a partir de cima aquilo que já não podia
subir da base. Segundo eles, o indivíduo estaria condenado
a girar no círculo maldito das suas actividades físicas se
não fosse chamado por uma força superior — graça, fé,
inteligência ou razão — a elevar-se acima da humana condi­
ção. Mas essa força, trazemo-la nós em nós mesmos, inde-
fectível e vivaz: é a força que transforma o alimento grosseiro
em influxo nervoso e em elemento de vida, que anima o
esforço físico, que o motiva e o idealiza para o elevar à
dignidade de instrumento de espiritualidade. Basta não impe­
dir essa ascese natural, facilitando pelo contrário o funcio­
namento normal de um mecanismo ao qual devemos fazer
dar tudo o que traz em si de espantosas virtualidades.
É uma revolução a operar, uma corrente a restabelecer
num leito desde há muito tempo abandonado, e obstruído
pelos aluviões e troncos vivazes que já ganham raiz. Não
me iludo sobre as dificuldades da tarefa.
Nós somos como um corpo desorganizado que tivesse
perdido até o sentido do seu equilíbrio vital, que ingerisse

157
passivamente, sem saber retirar das suas ingestões os prin­
cípios dinâmicos que mantêm e exaltam a vida; um corpo
enfermo para o qual as funções essenciais — cuja satisfação
deveria proporcionar um natural bem-estar — se tomaram
penosos esforços que gastam as últimas energias do ser.
Precisamos de reencontrar o instinto, reeducar as diversas
peças do organismo, reabrir os trajectos obstruídos ou entu­
lhados, restabelecer esse circuito que, por um funcionamento
suave e sem desgaste, conduz das funções primárias até às
emanações ideais que são o esplendor construtivo da nossa
personalidade. Deixará de haver então funções materiais e vis
por um lado, funções nobres e superiores por outro, mas
uma única função que leva à exaltação máxima do nosso
ser. É a essa função que nós chamaremos trabalho,
— Começo também a apreender a simplicidade e a
necessidade desse circuito vital. Mas, como você muito bem
disse, é todo um organismo a reeducar. Teremos que con­
trariar hábitos centenários, lutar contra a tirania intelectua-
lista de certas castas que julgam ter progredido porque estão
muito simplesmente afastadas da inumana condição do traba­
lhador; restabelecer uma unidade que tem os seus inimigos
ferozes e determinados — porque devemos contar sempre
com aqueles que beneficiam da desordem e do erro e sabem
em geral defender encarniçadamente as suas iníquas prerro­
gativas. Acusar-nos-ão mais ainda de voltarmos a um gros­
seiro materialismo, a um manualismo servil, e de negligen­
ciarmos os eminentes direitos do espírito, as exigências
sagradas da alma.
— Compete-nos a nós desarmar os nossos inimigos
sabendo conduzir de frente, na nossa organização escolar,
a cultura fisiológica e física, a cultura artística e moral, a
cultura intelectual. Ou antes, fundiremos todas essas disci­
plinas, arbitrariamente distinguidas pela escolástica, num
bloco unificado e animado pelo trabalho ao serviço do ser
que quer subir, crescer e engrandecer-se.
Não somos de resto os primeiros, felizmente, a aven­
turar-nos nessa via. A nova orientação desenha-se labo­
riosamente, se bem que demasiado empiricamente, mau grado
as suas atitudes científicas. Faz-se um pouco como o homem

158
que caminha às apalpadelas na noite, num local ainda des-
conhecido e que se introduz com apreensão por todas as aber­
turas que se lhe apresentam, e que lhe dão passagem sem
demasiada dificuldade. Se avista ao longe um débil clarão,
avança então mais resolutamente e, seguindo as suas apalpa­
delas, as suas brumosas experiências, tenta traçar um plano do
edifício. Ao chegar a madrugada, ele dá-se então conta dos
erros que cometia, apesar de haver perscrutado todas as salas e
de ter raciocinado hábil e logicamente sobre as suas deduções.
Foi assim que nos embrenhámos sucessivamente no
corredor da observação, depois no quarto da expressão, no
da experimentação, do interesse, da liberdade, do jogo, do
trabalho manual. E, de cada vez, porque se entrevia o pequeno
clarão, julgava-se ter descoberto o segredo de todo o apar­
tamento. Construía-se sobre um conhecimento fragmentado,
um sistema a que se chamava método e do qual se esperava
maravilhas. Ficávamos naturalmente desiludidos na prática
porque não tínhamos sabido esperar a claridade natural que
ilumina o todo, o elemento motor dos nossos actos, a razão
essencial dos nossos esforços e dos nossos desejos.
Julgo ter contribuído um pouco para iluminar o edifí­
cio. Poderemos então avançar com uma mais calma confiança,
restituindo ao trabalho todo o seu valor eminentemente
educativo.
Era forçoso que eu insistisse no sentido lato e profundo
que devemos dar ao trabalho, nessa função única e diversa
que leva ao desabrochamento do nosso ser. Ele não é
forçosamente trabalho manual, se bem que o seja na origem,
como as operações materiais da alimentação estão na origem
do subtil alimento do nosso ser pensante. Ele produz activi­
dades diferenciadas como o nosso sistema digestivo produz
os elementos da nossa actividade superior. Devemos ao mesmo
tempo procurar a realização minuciosa das operações pri­
márias indispensáveis, e permitir, estimular, as actividades
mais evoluídas que são a sua harmoniosa emanação.
Só que, tal como o corpo, o alimento que dermos será
adaptado à região, ao clima, à estação, à idade das crianças.
Na evolução dessa função trabalho, não esqueceremos tam­
bém que existem condições preponderantes de natureza fisio-

159
lógica, de compleição individual, de hábitos, contraídos ou
transmitidos, de deficiências que são efeito quer de erros
prévios, quer da hereditariedade que transmite o erro das
gerações.
No domínio da alimentação fisiológica, há indivíduos
para quem comer é uma função dominante, que açambarca
demasiado exclusivamente as forças vitais, que dificilmente
se elevam então à nobreza do ideal e do sublime.
O mesmo acontece, no plano educativo, com as crianças
que tiverem necessidade de se demorarem longamente em
determinada actividade manual, em determinado trabalho
simples, como se o sentido desse trabalho tivesse necessidade
de impregnar longamente os gestos do organismo, como se
aquilo a que chamamos pensamento — e não se deve abusar
dessa abstracção — fosse lento em desprender-se da função
trabalho. O que talvez seja lamentável, mas pelo que não
temos que nos desculpar: se o pensamento se desprende tão
penosamente de uma actividade física natural, seria bastante
quimérico querer fazer nascer, pretender desenvolver e refor­
çar esse pensamento por meio de processos artificiais e anti-
naturais, como se o raciocínio, a memória, a inteligência,
fossem, pela sua simples virtude específica, realizar algum
extraordinário milagre.
É de resto com essa mesma massa de crianças lentas
a subir para a luz que fracassa tão lamentavelmente todo
o vosso esforço escolar; são aqueles a quem vocês desespe­
ram de dar um clarão de pensamento, que parecem fechados
às vossas explicações, para quem a função intelectual tal
como vocês a entendem parece totalmente estranha. Só uma
actividade é capaz de as atingir e de vencer a sua inércia:
o trabalho prático. Vocês quiseram saltar por cima e aí
temos seres a quem a escola não dá mais do que decepção
e desequilíbrio. Felizmente, eles exercem fora da escola as
suas aptidões físicas e manuais, medem e desenvolvem o seu
bom senso e a sua curiosidade partindo desse trabalho que
vocês consideravam indigno deles, e elevam-se assim por
vezes, mau grado vosso, a uma originalidade que os espanta.
Vocês dizem: As nossas crianças passarão o seu tempo
a pregar, a aplainar, a serrar e a ajustar, e não tentarão

160
sequer elevar-se acima dessa ocupação material se não os
empenharmos no esforço intelectual que seria o coroamento.
É como se se pretendesse que a massa meio digerida que
sai do estômago não pudesse tomar-se princípio de vida
sem uma excitação exterior que estimulasse a assimilação.
Decerto essa digestão, essa assimilação, são lentas nos orga­
nismos avariados. Elas nem por isso deixam de ser uma fase
natural, inelutável, da função nutritiva.
A criança tem tendência para subir naturalmente do
trabalho primitivo para a actividade diferenciada, a fim de
chegar até ao conhecimento intelectual, à cultura filosófica
e à concepção moral da vida. Ela fará essa ascensão tanto
mais cedo, com tanto maior domínio, quanto melhor cons­
tituída for; deter-se-á talvez mesmo no caminho se as suas
faculdades não lhe permitem ir mais longe. Mas uma parte
do trajecto pelo menos terá sido feita, algumas aptidões terão
sido desenvolvidas. E a Escola terá deixado, mesmo entre os
anormais e os diminuídos, o seu rasto eminente.
Quanto aos outros, não nos preocupemos, desde que
nós —ou a sociedade— os não detenhamos inconsiderada­
mente na sua laboriosa ascensão. O homem é de tal modo
feito — o que é ao mesmo tempo a sua fraqueza e a sua
grandeza — que não sabe acomodar-se à facilidade, ou
que só se acomoda a ela quando já abdicou tragicamente
perante a vida. O homem procura sempre a dificuldade; é
da sua natureza ultrapassar-se incessantemente, conhecer o
porquê das coisas, levantar problemas e procurar-lhes as
soluções. Esta tendência é natural e só uma pedagogia de
morte pôde aniquilar assim todas as possibilidades inatas
na criança.
O petiz salta desajeitadamente por cima de um fio de
água; depois tenta saltar um regueiro. Isso ainda não lhe
basta: procura um obstáculo mais difícil, e assim suces­
sivamente, até que esbarre com bastante violência para se
convencer de que deve deter aí a sua experiência por hoje.
O que será de resto um adiamento: amanhã tentará outras
possibilidades.
E perguntamo-nos por vezes porque é que ele com­
plica assim a vida, porque nós, por nosso lado, estamos no
11
161
patamar, ou no período descendente, em que nos abandona
lentamente essa necessidade de conquista, porque julgamos
haver subido bastante, em vão parece-nos, e porque nos
sentamos burguesmente à beira da estrada, julgando loucos
e presunçosos aqueles que, depois de nós, recomeçam a
eterna ascensão.
Aqui temos uma tranquilizante certeza: salvo impossi­
bilidade orgânica, a criança não se demorará nunca na
simplicidade primária de um trabalho. A diferenciação e a
complexidade crescente que ela aborda exige a utilização
de todas as suas faculdades: há cada vez mais relações a
considerar, mais leis a descobrir pela experimentação, mais
propriedades a conhecer, mais teorias a encarar. A activi­
dade não escasseia, e apaixona. Como se quer ir cada vez
mais depressa, cada vez mais alto, sente-se o desejo de
tomar para isso os atalhos mais ou menos grosseiramente
traçados e desimpedidos por aqueles que nos precederam:
ficamos felizes por nos apoiarmos, para essa marcha em
frente, nos processos de trabalho, nas habilidades, nas técni­
cas, e também nos modos de pensar e de solucionar as difi­
culdades, que nos foram transmitidos pela experiência e o
esforço das gerações precedentes.
A criança tem mesmo tendência, já o disse, para se
embrenhar demasiado docilmente nesses atalhos novos: ela
prefere espontaneamente à modesta faca, a máquina que
perfura, corta, verruma, mete um parafuso com uma segu­
rança muito maior e com menos esforços humanos; à pedra
bruta o tijolo luzente de arestas geométricas que permite
activar a tarefa sem erro. Ela usará, logo que possa, a bici­
cleta que a ajuda a conquistar o espaço. É uma tendência
natural. Basta evitar o perigo que já assinalei: que, no seu
desejo inato de ir cada vez mais depressa, cada vez mais
alto, cada vez mais longe, a criança se limite a utilizar os
materiais, os utensílios e as máquinas realizadas pelo homem,
como se se tratasse de realidades naturais, ao mesmo título
que a água, o fogo ou o vento; que ela se esqueça de
considerar o trabalho e os sacrifícios que eles representam,
e que falseie assim, na origem, a sua concepção do mundo
e a sua noção da actividade social.

162
Depois de todas estas considerações, o problema está
assim posto: a criança quer trabalhar. Basta tomar-lhe
possível o trabalho-jogo a que ela aspira. Para isso poremos
à sua disposição os campos e os jardins, a criação, as ofici­
nas. as ferramentas e as máquinas essenciais, e também os
manuais que a ajudarão a superar as dificuldades. É menos,
como se vê, um problema de método intelectual que temos
que resolver do que um problema técnico preciso, e que não
sofre a verborreia a que vocês estão habituados.
— Li algures que a experiência havia sido tentada,
especialmente por Fourrier. Não fez grande ruído na época
e não creio que tenha influenciado um mínimo a pedagogia
do seu tempo.
— Porque o próprio Fourrier pensava mais na activi­
dade manual do que na complexidade dinâmica do trabalho
social; e também porque ele não tinha ainda passado pela
dolorosa experiência que nós sofremos e que nos leva a
reconsiderar todos os problemas do trabalho nas suas rela­
ções com o devir humano. Eu já o disse de resto: o que
há cem anos parecia uma audaciosa fantasia pode muito
bem impor-se hoje como uma necessidade. O passado não
nos compromete; o presente pelo contrário comanda-nos em
função do futuro imediato que exigirá dos nossos alunos
reacções e integração.
Porque, para mim, essa educação pelo trabalho ultra­
passa, em muito, a simples concepção utilitária do esforço
dos homens. Ela é simultaneamente motor, estimulante e
objectivo para a grande e múltipla empresa da vida. Não
é apenas um meio de nos preparar para produzir a riqueza
social; tem também um aspecto individual que aliás não
podia ser separado, e que nós distinguimos por necessidade
explicativa.
Pelo trabalho-jogo, a criança, e também o homem, visa,
conscientemente ou não, conhecer, experimentar, depois
criar, para controlar a natureza e dominar o seu destino.
Conhecer, experimentar, criar: toda a actividade inte­
lectual e moral — e social — poderia ser incluída nestas
três funções.

163
Conhecer, não só aquilo que está à nossa volta, aquilo
que cai sob os nossos sentidos, mas também, e desde muito
cedo, aquilo que está longe no passado, ou longe no espaço.
O desejo de o conseguir é tão forte que, na impotência rela­
tiva em que nos encontramos, em crianças, para atingir esse
conhecimento, pomos em jogo a imaginação, e afeiçoamo-nos
às soluções imaginárias que dão uma explicação apaziguante
dos factos que a experiência directa ainda não pode explicar.
Não há praticamente limite para essa necessidade de
conhecer. Satisfazê-la será abordar sucessivamente — sem
que seja necessário classificar arbitrariamente cada esforço
sob uma denominação escolástica — a história, a geografia,
as ciências, as matemáticas, a mecânica, a filosofia e a moral.
Mas cuidado: nessa passagem da actividade manual
para a actividade cerebral, ou melhor na utilização escolar
que faremos dessa tendência, corremos o risco de descar-
rilar uma vez mais, e de saltar prematuramente para um
ensino dessas disciplinas artificialmente isolado da função
trabalho, que reconhecemos como determinante de qualquer
actividade subsequente. Devemos compreender isto: é apa­
rentemente para nós uma questão de cambiantes, mas para as
crianças, esses cambiantes têm uma importância primordial.
O essencial não é já, com efeito, ensinar às crianças
os elementos da história, da geografia, das ciências ou das
matemáticas, mas satisfazer a sua necessidade de conhecer
para o enriquecimento da sua natureza, para uma maior
eficiência dos seus esforços na sua luta permanente pela
exaltação vitoriosa do seu poder. Há aqui uma questão de
método essencial. O primeiro deu já as suas provas: ele
desvia a criança do estudo, abafa o seu desejo de conhecer,
aniquila a sua sã curiosidade da qual excita pelo contrário
o aspecto mórbido e perverso que no-lo faz ter, com alguma
razão, numa tão grande suspeita. Se persistimos em querer
«ensinar» essas disciplinas, ficaremos reduzidos a recorrer
à opressão, pelo menos sob uma das suas múltiplas formas
(punições, recompensas, vantagens, jogos) como quando
queremos empanturrar uma criança sem apetite... Come­
çamos por lho retirar.

164
Será preciso, por mais que isso custe ao nosso amor
próprio de cientistas, que penetremos na importância secun­
dária dessas ciências. O essencial, para as nossas crianças,
é a saúde física, intelectual e psíquica, a permanência das
suas necessidades poderosas que são como que o influxo
vital do seu ser, do seu desejo de se enriquecerem e de
subirem.
É como o obus lançado pelo canhão. Podemos acentuar
a exagerada carga que aumentará o seu poder de deflagração,
ou a precisão de tiro para atingir o alvo. Considerações cuja
importância se não poderia naturalmente negar. E no entanto
essas preocupações serão vãs sem a força inicial com que
é estudada e dirigida essa força propulsiva. O engenheiro
saberá — isso é elementar — medir o peso e a potência do
obus em função da força propulsiva à qual tudo está subor­
dinado. Que importa se o obus é menos poderoso? O essen­
cial, o indispensável, não será que ele tenha o impulso, a
força para chegar ao alvo, e realizar aí a parte de função
— tão desumana! — que lhe é atribuída, e não ficar
pelo caminho para fulminar atrás das nossas linhas, ou para
explodir sobre as próprias cabeças dos nossos soldados?
Peço desculpa por escolher, para fazer compreender as
relações entre funções tão eminentemente construtivas, um
exemplo de cega destruição. Mas, neste domínio ao menos,
os problemas são postos com uma implacável brutalidade;
o fracasso é imediatamente visível e condenado; o sucesso
pelo contrário grita a sua eficiência. Já não basta aí, como
em educação, filosofar para mascarar os erros de cálculo,
nem acusar o obus, que nada pode, ou o canhão cego.
O que conta em primeiro lugar, como vê, é a força
propulsiva, essa tendência do ser para a potência, para a
criação e para a acção. Deveremos exaltá-la ao máximo, não
negligenciar nada para aumentar a sua eficácia e a sua
permanência, porque, sem ela, nada será alguma vez mais
que degenerescência, que é morte lenta e fracasso fatal
perante o destino.
Dir-me-á que a escola não é um laboratório artificial
e que vocês não têm a mesma latitude que o químico para
dosear acções e reacções. O que é exacto, mas não vos

165
autoriza no entanto a que vos iludais incessantemente, e a
iludir pais e governantes que vos delegam os seus poderes,
prontos a lavar depois as mãos perante o espectáculo da vossa
impotência. Não se diz que não haja nada a tentar de mais
eficaz nem que o mundo esteja tão definitivamente fechado
ao bom senso e à luz ou muito simplesmente a uma com­
preensão lógica dos verdadeiros interesses sociais.
Eu sei que há homens para quem só o fim parece
contar, mas um fim que é deles, que, a coberto de consi­
derações ideológicas, serve sobretudo os seus apetites ávidos
ou as suas especulações interessadas. E o indivíduo, que
sente a fragilidade ou o perigo dessa orientação, recusa
deixar-se conduzir. Então, os homens que detêm o poder
apelam para todas as potências ao seu serviço — Igreja,
imprensa, escola, cinema — para reforçar exageradamente o
cano do canhão: poder da regra, da tradição, da disciplina,
do dever, atenuação progressiva ou brutal das possibilidades
de reacção dos indivíduos.
Tanto e tão bem que um belo dia a fricção nas estrias
é tão forte que aniquila a força propulsiva. O obus fica
então imobilizado num cano mal regulado. A força explo­
siva, por momentos dominada, tenta noutras direcções um
poder que tem necessidade de se libertar: o canhão é
violentamente torcido, ou rebenta mesmo, matando aqueles
que tinham julgado dominar brutalmente uma força que ape­
nas têm possibilidade de dirigir prudentemente.
Os educadores têm agido como construtores e serventes
imprudentes. Eles calcularam tão mal o amontoado das suas
regras que as suas vítimas já não conseguiram, na escola,
fazer explodir, em qualquer direcção útil, esses poderes dinâ­
micos que traziam em si. Mas não era só isso. Havia tam­
bém alguns canhões torcidos e algumas explosões perigosas,
das quais o educador se precavia, bem ou mal, com sanções
vigorosas. Era a hostilidade aberta, a luta permanente entre
a criança que tinha necessidade de agir, de criar, de reali­
zar, e o adulto que não sabia fazer melhor do que impôr
os seus métodos e a sua disciplina. Nas circunstâncias mais
favoráveis, essa oposição directa e violenta tranformava-se
num desvio de poder que criava uma certa ilusão. A criança

166
encontrava no jogo, na crueldade, nas farsas, ou nas fugas
à escola, um derivativo momentâneo do seu poder recalcado.
O que apesar de tudo era apenas um mal menor, ou por
vezes pior!
Os educadores inquietaram-se finalmente com a gravi­
dade do perigo e deram conta de que era mais hábil, mais
eficaz, mais repousante, alargar o canhão, afrouxar a opres­
são, diminuir a oposição, não deter por completo esse
impulso propulsivo, ou desviá-lo para outras direcções
acessórias: o jogo, o trabalho manual, a imaginação. O que
era certamente um progresso, um passo para essa nova
compreensão que nós recomendamos.
Nem sempre nos pertencerá regular como nós o quere­
ríamos esse conjunto de limitações que mais ou menos se
opõem à força propulsiva. Procuraremos pelo menos que
ela nunca seja recalcada ao ponto de chocar brutalmente
contra a autoridade que a dirige ou a canaliza.
E vigiaremos também a carga do nosso aluno. Ela é
função da força propulsiva, do vigor vital, das possibilidades
dinâmicas do aluno e do meio. Bastará vigiar esse ímpeto
propulsivo que será como que um manómetro maravilhoso
regulando a pressão educativa. Se o impulso desce, há erro
a corrigir urgentemente. Esse erro pode ser consequência,
como disse, de uma excessiva rigidez da autoridade; pode
vir também de uma carga exageradamente acumulada, de um
saber que não é transformado pelo indivíduo em força viva
acrescendo ao potencial natural, mas que antes contraria
esse potencial, como um peso morto que lhe diminui a
potência.
São todas estas questões que é absolutamente necessário
reconsiderar a fim de interessar os adultos —pais, educa­
dores, legisladores— por realizações educativas que não
visem já registar passivamente noções mortas, mas exaltar
a vida, motivar o esforço, animar e reforçar esse impulso
que é o eixo central da verdadeira formação humana.
Não que nós devamos, mais uma vez o preciso, negli­
genciar os conhecimentos; eles são necessários, e o indivíduo
procura-os espontaneamente. Basta não carregar excessiva­

167
mente a nossa formação, colocá-los ao serviço de persona­
lidades que querem caminhar, criar, e vencer.
Como organizaremos esse conhecimento?
Vimos que ele não traz qualquer virtude em si mesmo,
mas que é desejável apenas pelo uso judicioso e vivo que
dele se pode fazer. Dever-se-á portanto procurar menos a
apresentação e a acumulação desses conhecimentos do que
o processo da sua assimilação e da sua integração.
Se conhecêssemos exactamente — cientificamente —
aquilo que a criança deseja, aquilo que ela pode digerir e
assimilar no momento considerado, nas circunstâncias par­
ticulares que condicionam a sua vida pessoal, então podería­
mos permitir-nos apresentar-lhe em livros, explicado, deta­
lhado ou concentrado, o alimento ideal que ela procura
ou espera. Mas quem pode pretender, no estado actual da
ciência psicológica e pedagógica, realizar semelhante habi­
lidade? Temos a nossa ideia sobre o valor relativo dos
conhecimentos, mas não varia esse valor de acordo com a
idade do indivíduo considerado, com aquilo a que os peda­
gogos chamam o seu nível mental e a que eu chamarei
antes o seu grau de diferenciação vital, e também com as
suas preocupações do momento, o seu humor, e a subtil
influência do meio? Não se passa o mesmo com os adultos? '
Determinado facto, determinado conhecimento, determinada
actividade que apaixona um indivíduo deixa o seu vizinho
totalmente indiferente e como que fechado à sua solicitação.
É preciso nada menos que a moda para criar nos homens
interesses e necessidades comuns — de qualidade infelizmente
duvidosa muitas vezes.
Não devemos de resto espantar-nos, nem lamentar-nos
com uma tal diversidade nos temperamentos, nas necessidades
e nas tendências, porque essa variedade e essa diversidade
são ao mesmo tempo condição e consequência do esforço
da civilização humana. A unificação artificial concorre para
suscitar um comportamento gregário, uma atmosfera de for­
migueiro, na qual são satisfeitas as necessidades primárias
à custa das mais nobres tendências que são o fruto de uma
lenta diferenciação. E a exaltação da vida está no sentido
dessa diferenciação. Quem quer que receie a complexidade

168
do devir humano ignora e reprime as tendências que o
incomodam e que ele qualifica de fantasias ou de manias,
hipnotizado como está por uma unificação formal que sim­
plifica aparentemente os problemas sociais e os problemas
escolares, mas à custa da personalidade e das forças vitais
que são o essencial do seu potencial de energia.
— Diferenciação, diversidade, fantasias e originalidade
são com efeito tendências das quais sempre desconfiamos
porque elas estão na maior parte das vezes em oposição às
necessidades sociais da nossa educação, a essa unidade moral
que nós quereríamos consolidar, essa comunhão de gestos
e de pensamentos que é a sua base indispensável, a um
mínimo de regras formais que não podemos suprimir sem
sacrificar perigosamente ao capricho individual, porta aberta
ao egoísmo social.
— Os seus bisavós podiam raciocinar assim, num tempo
em que a organização económica era ainda estranhamente
simples, comparada com a diferenciação estonteante do
mundo contemporâneo. Porque o futuro vos assusta, vocês
quereriam persistir numa atitude que a vida, quer isso vos
agrade ou não, ultrapassou largamente. Seria hoje muito
simplesmente um estúpido anacronismo ensinar as mesmas
noções, dar hábitos idênticos a indivíduos que irão por
caminhos diferentes cuja confusão vos desorienta.
Os vossos alunos deixam a escola sacudindo à porta
a capa de ilusões e de mentiras com que vocês julgaram
protegê-los, e vão para a vida, cada qual com as suas ten­
dências — se vocês as não tiverem irremediavelmente aba­
fado— ou segundo a sua fantasia ou o acaso das condições
sociais. Se fosse possível reuni-los vinte anos depois, ficaria
surpreendido com a diversidade dos caminhos que eles segui­
ram, das tendências, das possibilidades, das ocasiões que
eles aproveitaram para tentarem realizar-se. Então talvez
você se lamentasse por haver seguido esse sonho absurdo de
unificar artificialmente os seus destinos, em vez de os ajudar,
desde a escola, a orientarem-se com um máximo de recursos
e de possibilidades no dédalo das actividades sociais.
Mas como servir essa diversidade, satisfazer essa com­
plexidade, se somos ainda incapazes de desmontar o

169
mecanismo para estudar e compreender o funcionamento de
cada peça bem como o movimento sintético do conjunto?
O indivíduo, felizmente, não é uma peça morta de um
mecanismo: o alimento que se lhe não oferece já preparado,
é ele capaz de o procurar, de o elaborar, de o amassar, de
o preparar até o tomar saboroso e digerível. Aqui temos mais
uma noção que os pedagogos grosseiramente desdenharam
e que será como que um dos segredos do bom funcionamento
da nossa técnica de trabalho.
Como sabe, pratica-se muito perto daqui a criação de
frangos. Há alguma coisa mais bonita —salvo talvez uma
criança— do que esse ser todo músculos, todo sensibilidade
palpitante, todo vida, que saltita nos prados com a mesma
fantasia que uma borboleta agitando-se entre a erva fresca
e as flores húmidas de orvalho?
Poder-se-ia decerto tentar alimentar os frangos exclu­
sivamente no curral, desde que se tivessem condições para
lhes oferecer os múltiplos elementos de que precisam para
se criarem harmoniosamente, em toda a riqueza dos seus
corpos nervosos, para essa sabedoria funcional que transpa­
rece do seu olhar ao mesmo tempo confiante, ingénuo e des­
confiado. Eles precisariam, tal como a têm nos prados, de uma
erva escolhida, que não estivesse sequer murcha, pois que
perde imediatamente o seu sabor e as suas virtudes miste­
riosas, uma erva que de resto muda de gosto, e de qualidades
nutritivas, segundo a hora do dia, segundo a densidade do
nevoeiro que a banhou, e a intensidade dos raios de sol
que a inundaram, segundo a delicadeza das plantas que a
compõem. Trata-se aí de imponderáveis, dirá você, que a
ciência humana nunca chegará a precisar. Porque o sentido
da vida é ele próprio imponderável, como o são os subtis
elementos que o destilam. Mas são entretanto esses impon­
deráveis que decidem dos nossos destinos.
Encha o comedoiro do frango de um feno perfumado,
ou de uma erva murcha cortada em sua intenção. Leve-lhe
deleitáveis beberagens de farelo e de rolão... O frango nem
por isso deixará de definhar. Aparentemente talvez não,
mas a sua plumagem tornar-se-á baça e morta, o seu olhar

170
esmorecido. São sintomas que descuramos nas crianças mas
com os quais qualquer criador sabe inquietar-se a tempo.
Abandone o frango no prado — com a condição de que
esse prado seja rico e benéfico. Ele saberá por si próprio
escolher o alimento que melhor corresponde às suas necessi­
dades instintivas: ele saberá dosear e regular o imponderável.
Ao vê-lo saborear deliciosamente com a ponta do bico
dir-se-ia que se sacrifica simplesmente a uma fantasia que
seria pura desordem orgânica, quando pelo contrário ele
satisfaz as mais essenciais das suas tendências vitais.
Também nós abandonaremos o comedoiro cientifica-
mente construído, a cama nova e a mistura cientificamente
combinada — e tentaremos, ao mesmo tempo humilde e inte­
ligentemente, preparar para a criança esse prado fértil,
húmido e ensolarado, rico de ervas deleitáveis e de flores
cujo único perfume é o mais delicado dos alimentos.
Mas esse alimento nem sempre estará pronto, e como
que passivamente oferecido. O frango cansa-se dos talhões
demasiado abundantes onde cada bocado o satisfaz. Ele
pula —e nós espantamo-nos— para o flanco de um canal
até à margem sombria do ribeiro, para procurar, para
escolher e saborear aquilo que tinha talvez em abundância
no canto abandonado. Também a criança deverá muitas
vezes conquistar o seu alimento, merecê-lo e atingi-lo pela
procura, pelo esforço, pela criação, pelo trabalho.
E esta constatação vai orientar-nos para a concepção
e organização de um material complementar às nossas activi-
dades de base.
A criança que com efeito se entrega ao trabalho-jogo,
tal como o permite a nossa técnica, é constantemente soli­
citada pela sua necessidade de conhecer, pelo seu desejo
de experimentar, de comparar, de controlar, e também pela
sua tendência para reproduzir por sua vez pela criação e
acção. Não se trata aqui, note-se bem, de simples veleidades,
nem dessa mania dos «porquê» aos quais respondemos com
evasivos e definitivos «porque sim»; é um processo mais pro­
fundo que exige mais do que uma explicação verbal, que
necessita de um esforço construtivo que será a originalidade
da nossa realização.

171
É esse o motivo por que concebemos a nossa reforma
em três estádios que separamos apenas para a comodidade
da explicação, mas que, na realidade, deverão interpene­
trar-se e completar-se.
1. A experimentação, sempre que isso seja possível,
experimentação que pode ser tanto observação, comparação,
verificação, como prova, através do material escolar, dos pro­
blemas que o espírito levanta e das leis que ele supõe ou
imagina.
2. A criação que, partindo do real, dos conhecimentos
instintivos ou formais nascidos da experimentação cons­
ciente ou inconsciente, se eleva, com a ajuda da imaginação,
a uma concepção ideal do devir humano ao qual serve.
3. Enfim, completando-as, apoiando-as, estimulando-as,
a documentação, que é como que tomada de consciência
da experiência realizada, no tempo ou no espaço, por outros
homens, outras raças, outras gerações.
Experimentação e criação são actividades apesar de
tudo comuns. Em todos os tempos os homens se lhes entre­
garam, com mais ou menos génio, com mais ou menos
sucesso. Elas não são especificamente escolares. A novidade
que nós adiantaremos, é essa documentação que lhes traz
a ajuda do conhecimento e lhes permite irem cada vez mais
longe, com mais audácia e segurança, que as integra no
processo complexo do progresso humano: documentação pelo
exemplo do meio ambiente, pelo livro, a ficha, a imagem,
o jornal, a correspondência, os intercâmbios inter-escolares,
o gira-discos, a fotografia, o cinema, a rádio.
Vê agora porquê e como nós ultrapassamos o projecto
de Fourrier, trazendo à necessidade tão humana de expe­
rimentação e de criação, esse complemento de documen­
tação que a estimula, a reforça a vitaliza. Essa riqueza de
documentação que nós temos hoje possibilidade de pôr ao
serviço da nossa escola, é ela própria filha do progresso
técnico, e é isso que explica que realizações hoje eficazes
não tenham tido eco no tempo em que lhes faltava o alimento
rico e subtil sem o qual seria difícil realizar essa diferen­
ciação inteligente que é a razão de ser da escola.

172
— Também temos experimentação e documentação,
livros, cinema, e rádio. Reconheço que o sector criação con­
tinua bastante pobre, mas, em suma, estão aí os mesmos
elementos; mas é como se o mecanismo estivesse montado
às avessas. Julgámos que era preciso partir do conhecimento
e da documentação para chegar à experimentação, para lhe
compreender as leis e os ensinamentos, para abordar enfim
o domínio misterioso da criação. Você pretende partir da
experimentação e da criação para chegar ao conhecimento,
que suscita a investigação e o conhecimento... Isso seria
sem dúvida mais lógico. Resta ver se lhe será praticamente
possível fazer funcionar o mecanismo nesse sentido.
— É com efeito essa inversão que é tudo, porque só ela
permite ao sangue novo, nascido do trabalho, dar dinamismo
e vida a disciplinas que, sem ele, não são mais do que
tarefas impostas, e portanto sempre mais ou menos rebar-
bativas.
É porque lhe falta esse influxo que o aluno das nossas
escolas permanece fechado à magia da História, enquanto
que, em condições normais, tudo o encanta e o apaixona
na recordação heroica de um passado do qual sente instin­
tivamente o peso decisivo sobre o seu próprio comporta­
mento. Não é sem lágrimas nem ranger de dentes que ele
se inicia, tão lentamente e tão imperfeitamente, nos rudi­
mentos de leitura, de escrita e de cálculo, enquanto é capaz
de consentir tão grandes esforços, e tão eficazes, quando
sente a necessidade de ler e de escrever, de contar, de medir,
de calcular, levantar problemas pela simples satisfação de
os resolver, são para ele operações tão naturais! E julga
você que é por sistema que acrescentaremos a geografia à
lista das nossas investigações documentárias? À medida que
cresce, que o seu espírito se destaca progressivamente da
casa, da rua, da sua aldeia, da sua província, do seu con­
tinente, da sua esfera, a criança quer conhecer o que se
passa, o que cresce, o que se encontra, o que vive, e como,
cada vez mais longe, cada vez mais alto, sob a mesma
impulsão que leva os sábios a aumentarem incessantemente
a potência dos seus óculos astronómicos, para melhor escru­
tarem o universo.

173
Não falemos das ciências para as quais a minha obser­
vação assume ainda mais valor do que para com as outras dis­
ciplinas. Concebidas como uma tarefa, como uma lição ou
um dever isolados do devir humano, elas não podem deixar
de ser áridas e rebarbativas, enquanto que a criança parti­
cipa tão maravilhosamente na vida da natureza, que cresce,
desabrocha, sofre com as plantas e as flores, não pára de
comparar, de calcular, de experimentar, de praticar espon­
taneamente a mais normal e a mais proveitosa das iniciações.
Do mesmo modo aliás que para a criação artística que se
julgava não ser do domínio da pedagogia: fazia-se desapren­
der as crianças de cantar, de dançar, de desenhar, quando
essas são actividades espontâneas que toda a gente reconhece
como participando directamente da vida infantil.
Pois bem! O mecanismo são vocês que se obstinam em
fazê-lo funcionar às avessas.
Quando o seu despertador não funciona, você abre-o
misteriosamente com um ar entendido para dizer: Espera!
Não preciso de relojoeiro, eu vou arranjar isto!... Mas,
mal tirada a tampa, encontra-se perante uma montagem
sábia de rodas dentadas, de molas, de parafusos e de balan­
ços, cujo papel particular você vagamente adivinha. Dentro
da caixa é uma imobilidade de morte. Com a ponta do cani­
vete, você empurra o balanço... A roda dentada progride,
como que hesitante, com alguns abalos; e o ponteiro dos
segundos põe-se em movimento para se imobilizar assim
que termina a excitação provocada. Parece-lhe haver encon­
trado: quando carrega com insistência sobre determinada
roda, o despertador começa a trabalhar como se houvesse
ressuscitado, mas logo que cessa a pressão, acaba-se a
vida!... Assim, com uma excitação aqui, um empurrão
acolá, a máquina chega não obstante a trabalhar, mas sem
regularidade nem harmonia, sem o impulso continuado que
tomaria inútil a nossa constante intervenção.
Que apareça o artífice entendido, que vai procurar na
sua origem esse ímpeto propulsor indispensável à vida autó­
noma do mecanismo. Ele prende a mola que então se estica
sob a pressão da corda, e tudo se põe em movimento:

174
balanço, roda dentada, ponteiros, e isto ao ritmo diferen­
ciado que é a norma específica do mecanismo.
É essa correcção, essa revivificação que eu quereria
desencadear: vocês eram os amadores que, ignorando as
foiças essenciais de vida, tentavam fazer avançar o meca­
nismo com grande recurso a astúcias, excitações, ou mesmo
encantamentos; mas nada se produzia nesse domínio sem
a presença permanente, sem a intervenção nunca abrandada
do educador. Sem proveito nenhum aliás. A máquina não
fazia mais do que desarranjar-se mais ainda.
Amanhã você será o mago que desencadeia, resgata,
reforça, liberta as potências dinâmicas que vão animar o
mecanismo e, sob a sua direcção discreta, ou antes com a
sua ajuda discreta, cumprir o seu papel com o máximo de
eficácia e de harmonia.
Terá então o sentimento, ou pelo menos a intuição,
da marcha normal do processo humano. Já não se enervará
— para não dizer pior — agindo às avessas para em seguida
se admirar com o pouco sucesso das suas intervenções.
Quando se trata do despertador, não pode acusar o
mecanismo, ou se o faz num acesso de cólera, as pessoas
à sua volta rirão da inconsequência da sua reacção. Nesse
caso, somos constrangidos, de bom ou de mau grado, a
reconhecer a nossa flagrante incompetência e a nossa impo­
tência definitiva. A mesma manobra falsa com crianças
jamais prova, por si mesma, a sua própria falência. É sem­
pre fácil pretextar a falta de inteligência das crianças, a
sua distracção, a sua falta de memória, de gosto, de apli­
cação no trabalho, o feitiço do jogo. Então, e com o ar
mais sério do mundo, os pedagogos investigam esses vícios
infantis que não são mais do que reacções indispensáveis
aos vossos erros; eles propõem remédios que iludem por
momentos para em breve deixarem explodir a sua total
ineficácia. Teria bastado o mágico para libertar, antes que
seja tarde demais, o grande ímpeto propulsor.
— O projecto parece-me ideal. Mas, também eu, segundo
o seu próprio ensinamento, me obstino em reclamar a
única coisa para mim essencial: Como lhe dará você vida?

175
Corno o fará passar para a realidade? Se é preciso construir
tudo, reedificar tudo, ninguém o quererá seguir...
— Mas o relojoeiro abstém-se de destruir tudo no meca­
nismo avariado. Poder-se-ia afirmar que é ele, em defini­
tivo, o reconstrutor. Veja-o trabalhar: dispõe cuidadosamente
sobre a sua bancada as peças preciosas à medida que as
desmonta. Limpa-as, oleia-as levemente, verifica as fricções,
o funcionamento dos parafusos, as resistências, os trajectos
do influxo nervoso.
Nós faremos como ele: conservaremos quase tudo na
escola actual. Simplesmente, limparemos, desbastaremos,
reforçaremos as peças insuficientes, substituiremos aquelas
que estão definitivamente gastas ou antiquadas, remonta­
remos o conjunto sem erro a fim de que o mecanismo possa
então funcionar no sentido para que foi concebido...
O educador deverá então abster-se de se colocar pre-
tenciosamente entre as engrenagens, para fazer crer que ele
próprio cria, que dirige soberanamente a vida e o movi­
mento. A sua função será suficientemente nobre e preciosa
se permitir aos indivíduos que se reconheçam, que se reen­
contrem, que se realizem, cresçam e subam segundo a lei
da sua vida. Que ele se não ocupe, qual deus de pacotilha,
em modelar os espíritos, vergá-los à sua fantasia, para os
conduzir não sabe aonde, porque ninguém pôde ainda
indicar-nos com certeza um outro objectivo para a vida
além desse impulso misterioso que é, para todos os homens,
uma razão bastante para crescer e lutar.

176
41. REALIZAÇÕES

UMA NOVA ORGANIZAÇÃO DA EDUCAÇÃO


SUPÕE ANTES DE MAIS UMA NOVA DISPOSIÇÃO,
UMA OUTRA UTILIZAÇÃO DOS LOCAIS. AQUI
TEMOS PROJECTOS E PLANOS. ELES PODEM
DE RESTO SER REALIZADOS GRADUALMENTE.
O ESSENCIAL ESTÁ EM IMPREGNAR A ESCOLA
DA NOSSA NOVA CONCEPÇÃO DO PROCESSO
EDUCATIVO

— Se não abuso da vossa paciência, desculpa-se


Mathieu, gostaria de terminar esta noite para não deixar em
suspenso a minha explicação, que de resto não terei possi­
bilidade de retomar noutro dia.
— Não pedimos outra coisa, porque estamos um pouco
como a criança que escuta uma história de fadas e que
não queria por nada do mundo ir deitar-se antes de conhe­
cer o desfecho.
— Vocês são muito amáveis, e eu não pretendo tra­
zer-vos uma solução mágica ou miraculosa, nem mesmo
definitiva. Dou o meu parecer, a minha opinião de bom
senso, como que um conselho que aqueles que o julgarem útil
seguirão. E é tudo.
Aventuro-me pois a traçar-vos o esquema da organi­
zação material e pedagógica da escola pelo trabalho.
Não pretendo que numerosas escolas possam em dada
altura iluminar-se com as luzes que eu entrevejo, nem que
um governo ouse, nas suas realizações, inspirar-se nas minhas
próprias críticas e nos meus conselhos construtivos. Mas estou
persuadido de que, pouco a pouco, aqueles que tiverem
sido convencidos pelo valor do meu raciocínio e pela eficácia
das primeiras realizações dele decorrentes, se inspirariam
insensivelmente nelas, adaptando permanentemente o seu
ensino ao meio escolar e social. Os autores e os comentadores
pedagógicos, os redactores de revistas, que constituem a parte
12
177
pensante e dinâmica da massa docente, sentiriam o poder
e a fecundidade das novas linhas de pensamento e de acção
que eu me empenhei em desentulhar. Todos aqueles que
abordam a criança e sentem a necessidade de melhor a
conhecer —quer para a servir melhor, ou para melhor a
dominar — rejeitariam gradualmente o erro estático, centrado
no poder do adulto, e empenhar-se-iam na feérica aventura
humana, cujos traços hoje conhecemos, cuja intensidade adi­
vinhamos, cujos objectivos nos recusamos a precisar, os
quais estão sempre mais além do que o pode imaginar o
pensamento mais arrojado, objectivos que não são aliás
apenas à medida do nosso modesto destino, mas à medida
do destino do mundo, do qual nós somos apenas um ínfimo
elemento.
Eu apenas traria um pouco de luz à noite, um pouco de
ordem ao caos, um pouco mais de humanidade na organi­
zação escolar, filha e imagem da organização social; suge­
riria aos educadores razões para crer e esperar, e para con­
tinuarem a sua missão com uma maior compreensão e uma
mais humana humildade. Prepararia para as próprias crianças,
não digo mais alegria, mas uma porção mais reconfortante
dessa satisfação indefinível de que se enche o ser que cum­
priu a sua tarefa e realizou o seu modesto destino. Talvez
eu contribuísse mesmo um pouco para essa reparação, cuja
necessidade toda a gente sente mas que raramente se sabe
conceber no rigor dos seus fundamentos.
O muro desabou, como se vê... O que constitui perigo.
E faz-se mais ou menos cadeia para reerguer as pedras,
que novamente rolam pela encosta porque faltam os cabou­
queiros que cavariam pacientemente as fundações, e os operá­
rios conscientes que saberiam assegurar a solidez e a linha
harmoniosa da nova construção... Eu fiz, à minha maneira,
a função do cabouqueiro, do geómetra e do pedreiro. Dese­
jemos apenas que técnicos mais peritos do que eu venham
completar e realizar a obra e que façam cadeia todos os
bons operários da reconstrução,
— Por meu lado, empenhar-me-ei nisso, pode estar
certo. É preciso realizar o seu projecto. Tem existido a escola
do adulto para o adulto, na qual a criança apenas contava

178
como elemento receptivo do ensino dogmático e abstracto
do «mestre».
Uma viragem histórica: reconheceu-se a necessidade da
eScola para a criança. Impulso exacto e salutar, mas insufi­
ciente ainda na sua concepção e nas suas materializações.
Reacção demasiado absoluta por vezes contra a escola para
o adulto, ela negligenciou numerosas obrigações reais, efecti-
vas. que pareciam indignas de um ideal demasiado ideal.
Um pedagogo belga de uma genial simplicidade corrigiu
preconizando a escola pela vida, para a vida, pelo trabalho,
o que resume com efeito a minha preocupação essencial, e
que poderia servir de emblema à educação cujo desenrolar
— desculpem-se as repetições— vou precisar.
Começo por aquilo que julgo ser o princípio, e isso
talvez vos surpreenda.
A nossa escola terá forçosamente um aspecto diferente
do que tem hoje. Vocês procedem como um reformador
que, pretendendo reorganizar uma aldeia, se limitasse a
separar os habitantes por idades e atribuísse a cada categoria
um local especial, como se a idade fosse susceptível de
determinar, só por si, o processo de acção. É este, pelo con­
trário, que suscita a constituição dos grupos com vista ao
trabalho social: cultura nas suas diversas especialidades,
artífices, artistas, administradores, etc.
A nossa escola será um pouco como uma aldeia, com
salas comuns onde os alunos poderão reunir-se o maior
número de vezes possível, ou, pelo menos, tendo no centro
uma sala comum transformável irradiando para oficinas
de trabalho, salas de documentação e de experiência.
À volta do local, e constituindo como que uma zona exterior
de actividade, alojamentos para animais domésticos, campos
e pomares, um colmeal, terrenos de desportos e jogos, e se
possível a frescura de um riacho.
Esta organização material — tenho insistido bastante
neste ponto, parece-me— tem uma importância decisiva.
Sem ela, não poderá haver verdadeira e fundamental reor­
ganização escolar. É na medida em que ela corresponder
às nossas necessidades educativas, que o esforço escolar
bem compreendido será mais eficaz.

179
— Vejo no entanto mal, na nossa época de extrema
diversidade na indústria, no comércio, ou mesmo na agri­
cultura, uma irradiação da sua escola em todas essas
direcções.
— Não procuraremos, com efeito, adoptar, desde o
princípio, essa surpreendente diversidade. Mas existem cer­
tas actividades de base que são apaixonantes para todos
os homens, e também para as crianças, úteis em toda a
parte, e que constituirão como que o substracto à volta do
qual virão enxertar-se, segundo os lugares e as circunstân­
cias, as variedades devidas ao progresso mecânico.
Trata-se de definir esse mínimo de base, de preparar
minuciosamente os locais adaptados às nossas necessidades,
os materiais e os utensílios que permitirão às crianças entre­
gar-se aos trabalhos-jogos correspondentes aos seus gostos
e às suas tendências. Essa organização por assim dizer pri­
mária será completada depois, segundo as regiões, as cul­
turas e as indústrias às quais as nossas actividades escolares
deverão incessantemente adaptar-se.
Primeiro, o local.
No meus momentos de lazer, no Inverno, tenho-me
entretido por vezes a esboçar planos da escola tal como
eu a teria sonhado para mim, ou pelo menos para os meus
filhos. Venham pois até minha casa e eu lhos mostrarei.
Mas é preciso que antes me explique ainda um pouco
melhor.
Falei-lhes da sala comum. O que não quer dizer que
os locais, oficinas e material de base, devam ser uniforme­
mente semelhantes em todos os graus. Não é para nós impor
a forma da actividade; a criança consegui-lo-á muito melhor e
nós devemos confiar no seu instinto e nos seus desejos.
Eu sei que, tanto quanto possível, devemos prever o
trabalho em comum, porque isso é muitas vezes uma necessi­
dade nas pequenas aglomerações, onde todos os alunos estão
reunidos numa única aula; e que é de resto excelente que
habituemos as crianças ao trabalho social, que é a norma
na família e cujo prolongamento deve ser a escola.
Só que, mesmo quando brincam, as crianças não cola­
boram indiferentemente. Há aí não tanto uma consideração

180
de idade, de força ou de agilidade, como uma questão de
espírito, de concepção do mundo e da sociedade, de aber­
tura, poder-se-ia dizer.
O indivíduo tem tanto mais necessidade de satisfazer
os seus desejos funcionais quanto mais estes forem primá­
rios e indiferenciados, e portanto exigentes e exclusivos.
O bébé tem fome. Grita. Não se tente qualquer explicação:
ventre esfomeado não tem ouvidos. O bébé quer comer.
Ou então quer dar um passeio... e não daqui a uma
hora... Imediatamente! Todo o seu corpo sente uma impe­
riosa necessidade disso. Tal como o gato que, na atmosfera
confinada da sua cozinha, sente o desejo de ir para as ervas
caçar ao ar livre, e que mia obstinadamente à porta até que
obtenha a sua satisfação.
A criança muito pequena gosta de brincar às escon­
didas, mas não aceita procurar durante muito tempo. É pre­
ciso que a satisfação se siga sem demora à manifestação da
sua necessidade de perseguição.
Uma espécie de teste para as reacções do indivíduo
perante as exigências do instinto poderia ser a fabricação
de um apito de nogueira na Primavera.
A criança muito nova corta o ramo e quereria logo
servir-se do seu apito. Não sabe perder tempo a apri-
morar-lhe o corte ou a imitar esse rapaz mais velhinho que,
pacientemente, trabalha o objecto: ela fere com demasiada
força, age demasiado cedo sobre a casca que se desfaz...
E só tem como supremo recurso ir chorando pedir a um outro
de mais idade a esmola de algum velho apito meio
ressequido.
Se a criança sabe já dominar e disciplinar o seu ins­
tinto um pouco melhor, empreenderá mais claramente as ope­
rações preliminares: procurará duas pedras bem lisas entre
as quais baterá suavemente o futuro apito; molhará com
saliva uma e outra vez passando-o pela boca onde ele deixa
um sabor áspero de madeira verde e de noz fresca. E depois,
acaba por se cansar também: fere com mais força, molha
mais vezes; nunca mais chega ao fim. Apela então para
fórmulas mágicas que têm a virtude de apressar e de asse­
gurar o êxito. O que nem sempre é suficiente.

181
A um grau superior a criança domina calmamente os
seus impulsos e o seu instinto que, no entanto, sente a mesma
necessidade imperiosa de satisfazer. Mas ela é capaz de
esperar determinado dia em que deverá ir guardar os ani­
mais para o campo onde há uma nogueira que tem a repu­
tação de se prestar perfeitamente para a confecção de apitos.
Corta judiciosamente os ramos mais propícios a esse tra­
balho. Ultrapassou gravemente o estádio das fórmulas mági­
cas: ela sabe que basta bater suavemente e demoradamente
o caule entre duas pedras bem polidas molhando incessan­
temente, para que a pele se destaque, lisa e sem defeitos. Ela
aperfeiçoa o conjunto. A técnica e o conhecimento harmo­
nizaram já o instinto. E o pequeno impaciente espanta-se por
que o mais velhinho não esteja mais apressado para ouvir
o primeiro som do apito!
A pesca!... Outro teste...
A criança pequena não gosta da pesca. Ela bem gosta­
ria de puxar o peixe, mas era preciso que este mordesse
imediatamente, sem esperar, de tal modo é exigente e impe­
rioso o instinto de acção, de dominação e de sucesso.
A um nível um pouco mais elevado, a criança já sabe
esperar, mas é preciso entretanto que o peixe morda para
que ela esteja pelo menos excitada na sua espera; senão ela
muda de lugar, ou desespera e vai-se embora, não sem
haver tentado o auxílio de gestos rituais ou de fórmulas
encantatórias que por vezes lhe dão êxito!
Mas só as crianças que se tornaram capazes de dominar
o seu instinto enquanto o satisfazem, sabem esperar pacien­
temente, chamar em seu auxílio perante a realidade decepcio­
nante uma imaginação que colora o real e antecipa as
alegrias futuras.
Deveis ter em conta na escola essas exigências do ins­
tinto, tanto mais imperiosas quanto mais a criança for ainda
movida directamente pelos seus impulsos. Essas exigências
tornam-se menos imediatamente imperiosas à medida que o
indivíduo se diferencia, que as necessidades e satisfações ane­
xas vêm enxertar-se sobre a tendência primária, que aumenta
a experiência pessoal no quadro das necessidades sociais.

182
Até que idade é a criança assim dominada pelas exi­
gências do instinto? Penso que esse período corresponde
perfeitamente à parte da nossa vida da qual apenas guarda­
mos uma vaga e acidental recordação, como se ainda não
tivéssemos nascido totalmente para o verdadeiro mundo.
Ele vai até cerca dos oito anos — idade mental, bem
entendido.
Deveremos dar a maior importância a essa distinção
na preparação do material e das técnicas para essa primeira
etapa do desenvolvimento Material e técnica estarão, natu­
ralmente, na linha do instinto, tal como no-lo revela o jogo-
-trabalho ou o trabalho-jogo, mas devem permitir chegar
quase imediatamente a um resultado tangível que satisfaça
o instinto. É preciso que a criança veja e sinta sem demora
o resultado da sua actividade: isso é para ela como que uma
espécie de necessidade fisiológica.
Por isso, certas actividades que, à primeira vista, apa­
receriam como trabalhos-jogos de base não a atraem, porque
são demasiado lentas a produzir o seu efeito, tais como a
jardinagem e a criação de animais. A criança gostará de
remexer a terra, que muda de consistência e de aspecto sob
o seu esforço; comprazer-se-á a construir um muro, a regar
e ver a água correr e perder-se no mistério da terra.
Peçam-lhe que semeie: ela quereria, tal como nos seus
jogos, ver aparecer os rebentos no dia seguinte e, se lhe
não detiverem o gesto, não tardará em remover a platibanda
para ver o que se passa com as sementes. É mais interes­
sante, para ela, encher o seu canto de jardim de ramos e
plantas que estão já vivas, que justificam e recompensam
imediatamente os seus esforços.
Por razões idênticas, a criação não a apaixona. Natural­
mente, ela gostará de acariciar um cabritinho. Mas não lhe
exijam que o vá guardar todos os dias ou que lhe traga
regularmente ervas ou raminhos. Essas são preocupações de
longo alcance que não são para a sua idade.
Sei que não faltam jogos para esse período que corres­
ponde à idade do jardim de infância e da escola maternal
em que 0 jogo é rei. Mas nem sempre o trabalho-jogo. Ou
quase nunca. Raramente se tem considerado nesse grau a

183
função trabalho. Em contrapartida tem-se exaltado o ape­
tite de jogo, o qual se tem satisfeito, com objectivos educa­
tivos ou mercantis, por vezes sem consideração pelas verda­
deiras tendências infantis. Haveria que fazer uma supressão
consciente entre a incrível produção de jogos infantis, para
restituir vigor e vitalidade às tendências, aos hábitos, às aqui­
sições, que serão as verdadeiras bases do desenvolvimento
ulterior.
Durante o período seguinte, dos 8 aos 13 anos, a criança
começa a dominar as exigências do puro instinto para se
submeter progressivamente às conclusões da experiência, sob
todas as suas formas, e às necessidades sociais que se impõem
cada vez mais com a idade. É a vida consciente que verda­
deiramente começa. Na medida em que nos afastamos do
período instintivo, o objectivo a atingir poderá ser cada vez
mais distante, no tempo e no espaço, o trabalho a efectuar
cada vez mais complicado e diferenciado. Mas o objectivo
nem por isso deve deixar de ter uma proximidade sensível,
uma presença encorajante. E é um erro dar-lhe como esti­
mulante essas considerações demasiado comuns que a não
poderiam impressionar: «Isso ser-te-á útil mais tarde!...
Terás necessidade disso para bem te conduzires na vida...
para ganhares o teu pão e fundares uma família!... Poderás
ganhar dinheiro e arranjar uma boa situação!...»
A criança, se bem que saída do seu quadro demasiado
sugestivo, não vê ainda tão longe. De nada serve dizer:
«Mas é preciso exactamente tentar fazer-lhe sentir a neces­
sidade de outros objectivos além daqueles, demasiado egoís­
tas ainda, que a dominam... É preciso idealizar o seu com­
portamento, socializá-lo!...» É como se se quisesse forçar
o cachorrinho a abrir os olhos antes dos oito ou dez dias
que se seguem ao seu nascimento. Se a natureza previu
assim o seu processo de nascimento, é porque os sentidos
do pequeno ser têm ainda necessidade de protecção contra
a brutalidade ou a crueza das impressões exteriores, e talvez
também porque o novo rebento tem necessidade, para o equi­
líbrio da sua natureza, de olhar ainda durante algum tempo
para o fundo de si mesmo e viver segundo reflexos de
natureza uterina... Como se achássemos exagerado o tempo

184
mais ou menos longo, segundo a espécie e a atmosfera
ambiente, que demora o botão a entreabrir-se, e depois a
desabrochar.
Essa tomada de posse, pela criança, primeiro do seu
ser, e depois do meio imediato que a rodeia, sob a protecção
inicial do instinto, e depois sob a imperiosa exigência das
suas múltiplas necessidades, não será, em definitivo, uma
etapa necessária do seu desenvolvimento, uma condição do
seu equilíbrio e do seu poder, uma espécie de garantia
defensiva contra os erros, interessados ou não, do meio
ambiente?
Não será pois empenhar-se numa pedagogia retardatária,
nem praticar o «imediatismo», respeitar o ritmo desses
períodos de crescimento cujo potencial de vida nos devemos
limitar a enriquecer. Aliás, só se a etapa primária tiver
sido aquilo que deveria ser é que a etapa seguinte aparecerá
no momento desejado, com um máximo de riquezas e de
virtualidades.
Finalmente, por volta dos treze anos, a criança começa
a pensar positivamente no seu destino e no seu devir. É
o período da puberdade. Ela abandona, ou pelo menos passa
por abandonar o ninho para voar com as suas próprias asas.
Isso supõe então toda uma nova orientação da actividade
infantil, uma viragem educativa marcada por uma preocupa­
ção crescente de adaptação à vida social, e simbolizada pelo
gesto ousado do pássaro que se lança do seu ramo para a
aventura da vida.
O trabalho-jogo assume então uma nova forma para
se tornar pré-aprendizagem. Com as nossas técnicas, esse
corte, exageradamente brutal na escola actual, deveria ope­
rar-se gradualmente. O trabalho-jogo teria revelado aos
interessados, aos educadores e aos pais, as tendências sus-
ceptíveis de motivar a orientação; a criança ter-se-ia fami­
liarizado praticamente com as técnicas que terá de enfrentar
sob uma forma por vezes muito pouco diferente. Essa pré-
-aprendizagem poderia pois, e deveria, ser como que o desa­
brochar da nossa escola concebida pelo trabalho, em função
do trabalho.

185
Não abordarei de resto a questão em si mesma, limi­
tando-me a discutir a educação durante a infância, antes
que o pássaro voe, quer dizer antes da puberdade.
Só nos restam portanto dois períodos a considerar:
antes dos 8 anos e dos 8 aos 13-14 anos, idade da puber­
dade, de resto marcada socialmente pelo fim da escolaridade
primária. A passagem de um para outro período não poderia
ser brusca: há diferenciação gradual, lenta saída do instinto,
tomada de consciência sempre crescente das experiências da
vida e das necessidades sociais. Tal como na família a mãe
diligente regula o trabalho de cada um segundo a sua idade
e as suas possibilidades, assim procederemos nós a uma
adaptação constante às necessidades das nossas crianças dos
trabalhos-jogos e dos jogos-trabalhos que organizamos.
Não procedamos arbitrariamente a essa repartição das
tarefas. Limitemo-nos a oferecer possibilidades de actividade
(local, utensílios, materiais e técnicas), a colocar os nossos
alunos numa atmosfera de trabalho, a organizar, desde a
escola, o nosso embrião de sociedade, com as suas regras,
os seus costumes, as suas leis, o seu ritmo, a sua honra, em
íntima ligação aliás com o processo da sociedade actual.
E insisto um pouco neste aspecto: a nossa organização
escolar não deve ser uma caricatura de sociedade «para
brincar», do mesmo modo que o trabalho não deve ser um
trabalho «para brincar», mas uma actividade verdadeira,
fundamentada ao mesmo tempo individual, escolar e social­
mente.
Conjunção excessivamente delicada de realizar, não
tenho ilusões. O sucesso total não é de resto indispensável
à justificação do nosso ensaio. Será na medida em que
conseguirmos essa conjunção que a nossa educação assumirá
o seu sentido, a sua eficácia e o seu poder.
Mas cá estamos em casa. Prometi mostrar-vos os meus
esboços de planos de locais escolares. Apresentar-vos-ei em
seguida um quadro que rabisquei ao acaso das minhas
reflexões e das minhas leituras e que vos dará uma ideia
da maneira prática como concebo essa organização do tra­
balho nas diversas idades da nossa escolaridade primária.
Esperem que vos explique.

186
42. PLANO DE LOCAIS PARA A ESCOLA-TRABALHO

Aqui temos em primeiro lugar uma organização prevista


para as crianças com menos de 8 anos, onde for possível
educá-las separadamente. Nada tenho a dizer de inteira­
mente novo sobre o arejamento, o volume, a iluminação
dos locais pelos quais tanto tem sido feito neste princípio
do século. A novidade é que, para a sala comum, que é
como que a praça pública da nossa aldeia, abrem-se um
certo número de oficinas separadas apenas por uma divi­
sória móvel ou fixa, largamente iluminadas por janelas que
iluminam ao mesmo tempo a sala. Uma cortina pode isolar
os trabalhadores de cada oficina. Indicar-vos-ei dentro de
momentos o destino especial de cada uma dessas oficinas.
Para a frente, um grande painel envidraçado abrindo-se
se possível para um pátio-jardim, com repuxo e peixes, caixa
de areia, e se possível um pequeno riacho. Nas traseiras,
um estábulo moderno com alguns animais: uma cabra, dois
pombos, coelhos ou porquinhos da Índia, segundo as possi­
bilidades e os hábitos locais. Â volta, pequenas hortas
individuais e colectivas.
Para uma escola de duas classes como a vossa, eu
manteria o mesmo princípio para a sala de aula, que seria
ao mesmo tempo sala de trabalho comum, com mesas-cava-
letes podendo deslocar-se e agrupar-se de diversas maneiras,
quadros, equipamento de cinema, gira-discos e rádio. As
oficinas seriam instaladas nos dois lados, como no nosso
projecto anterior.
As duas aulas, situadas lado a lado, seriam separadas
por uma ou duas salas comuns onde seriam conservados os
materiais e utensílios destinados ao conjunto da comunidade
escolar, ou que, demasiado frágeis, demasiado raros ou dema­
siado caros, não podem ser deixados à livre disposição das
crianças: documentação, livros de trabalho, biblioteca de
leitura, utensílios e aparelhos de experimentação, museu,
administração.
Poder-se-ia prever do mesmo modo a escola de várias
classes que seriam sobrepostas por andares — 2, 4, 6, 8

188
classes repartidas por 1, 2, 3, 4, pisos — tendo, na cave ou
no sótão, as instalações complementares de limpeza, de arte,
de exposição, e de reuniões, etc.
Diante das instalações, canteiros e pátio; mais longe,
terrenos de cultura com pavilhões onde seriam tratados os
animais da escola. Na criação, tal como na cultura, haveria
uma parte atribuída a cada classe, ou mesmo, dentro de
cada classe, a equipas organizadas — e um largo domínio
comum que ensinaria também, acima dos interesses lógicos
do grupo, a necessidade de uma concepção social e comuni­
tária do trabalho.
A despesa, como vêem, não seria muito maior do que
para a edificação de uma escola ordinária. Seria por vezes
difícil, é certo, encontrar à volta da construção os terrenos
suficientes para a cultura, os jardins, o centro de criação
de animais. Mas quando uma oficina, ou um armazém, se
tornam demasiado pequenos para o crescente volume dos
negócios e a extraordinária expansão da empresa, não se sabe,
por vezes com grandes despesas, proceder às ampliações
que se impõem e sem as quais não seria possível responder
às verdadeiras necessidades da clientela? No dia em que
se sentir essa necessidade, para a formação das crianças,
de espaço, de ar, de oficinas de trabalho, de um material
rico e variado, não se saberá fazer do mesmo modo os sacri­
fícios exigidos por uma empresa tão essencialmente vital?
Notem também que não é absolutamente indispensável
esperar que o nosso projecto de construção seja realizado
em 100 % para se orientar para esta nova via. Toda uma
série de etapas intermédias são possíveis e sem dúvida
necessárias. Às grandes lojas «taylorizadas»1 do comércio
moderno estão aí como testemunhos do que pode ser uma
organização racionalizada; mas elas não impedem que nas­
çam ainda, e vivam, segundo as circunstâncias, adaptadas
às necessidades de bairros, de ruas, de locais, lojas mais

1 F. Taylor, 1856-1915, conhecido pelo seu sistema de


racionalização do trabalho (N. do T).

189
ou menos acanhadas, com um atraso por vezes de vários
séculos sobre a instalação moderna. Mas até essas lojas, pela
força das coisas, são obrigadas pelo menos a inspirar-se nos
progressos materiais de que os grandes armazéns são o sím­
bolo: aperfeiçoa-se a iluminação; instalam-se prateleiras,
abre-se uma montra, etiqueta-se enquanto se espera ampliar
se possível e «taylorizar».
Assim acontecerá na escola. Basta que o exemplo seja
dado, um exemplo poderoso, eficaz e salutar — e que seja
um êxito de adaptação e de progresso; e que os pais, a socie­
dade, os educadores sintam a necessidade dessa organização
nova da educação. Então, a mais pequena, a mais deser­
dada das escolas adaptará progressivamente locais, material
e métodos.
Não há sala, por mais pequena que ela seja, onde se
não possa instalar oficina, pequena bancada, biblioteca;
poucas escolas são tão pobremente construídas que se não
possa prever um pequeno jardim... Deixem simplesmente
que as crianças se interessem pelos seus assuntos, deixem
que o trabalho escolar se torne coisa sua, e verão se elas
não saberão utilizar o seu engenho para improvisar a ins­
talação indispensável... Tal como nos jogos... Basta-nos
alterar o sentido do mecanismo, restituir o entusiasmo que
realizará, mau grado por vezes a incompreensão dos adultos,
a grande obra pedagógica, humana e social.
Se alguns de vocês compreenderem e quiserem, muda­
reis, pela vossa acção, a fisionomia e a forma da escola.
E esta mudará um dia a face do mundo, ou contribuirá
pelo menos para a sua modificação.

190
43. PRIMEIRA ETAPA EDUCATIVA

TRABALHAR EFICAZMENTE GRAÇAS A


UTENSÍLIOS E A UMA TÉCNICA APROPRIA­
DOS, PARA SE INSTRUIR, SE ENRIQUECER,
SE APERFEIÇOAR, SUBIR E CRESCER

— Eis-me agora — retomou Mathieu depois de uma curta


pausa — no termo da minha demonstração. Abordo agora
o domínio essencialmente prático, que exigiria só por si todo
um livro, e sobretudo uma organização comercial, ou coope­
rativa, para elaborar, sob a direcção e com o apoio perma­
nente dos educadores, e independentemente de quaisquer
considerações lucrativas, para realizar tecnicamente e colocar
verdadeiramente à disposição de todos os educadores, os
novos utensílios de trabalho.
Eu sei que esse trabalho de prospecção, de adaptação,
de criação, estava seriamente iniciado por diversas equipas
pedagógicas sindicais e cooperativas. Só haverá que coor­
denar melhor, demonstrar melhor, impor por assim dizer
esses esforços, e veremos então as transformações! De
momento, limitar-me-ei aqui aos meus conselhos.
No que respeita aos utensílios e ao material, a prepa­
ração e a escolha são excessivamente difíceis, porque os
educadores nunca se preocuparam com eles; e o comércio
não soube oferecer mais do que brinquedos ridículos que
desonram a concepção adulta do trabalho das crianças:
enxada de lata que se torce à primeira tentativa; pá de
madeira, boa apenas para remover inutilmente a areia na
praia, serrote de folha de flandres que não corre o risco
de cortar os dedos do pequeno operário... Alguma vez
viram no mercado um carrinho de mão para crianças,
redução séria do pesado carrinho adulto, uma tesoura que
corte, uma plaina que aplaine, alicates que sejam capazes
de cumprir a sua função? Não: tudo está por fazer no plano
técnico. Mais uma razão para não embarcarmos de ânimo

191
leve e para prevermos atentamente as realizações mais
urgentes, as mais indispensáveis para as diversas idades.
Encontrei num livro de Proudhon uma classificação das
ferramentas segundo a sua ordem de aparecimento, e de uti-
lizção em proporção com as conquistas sociais e técnicas. Dir-
-vos-ei aliás que, em meu entender, Proudhon havia querido
sistematizar demasiado com a sua mania de classificar essas
ferramentas por ordem alfabética. Eu modifiquei um pouco
a lista, que completei, de passagem, com os elementos pri­
mordiais da mecânica. Não aspiro à perfeição, e acho que
não seria mau, pelo contrário, que uma equipa mais compe­
tente fizesse um dia do meu projecto aquilo que eu fiz da
classificação de Proudhon. Mas a minha tentativa terá pelo
menos a vantagem de orientar as investigações ulteriores
e de nos permitir precisar também o plano detalhado das
oficinas que preconizamos.

Classificação das ferramentas do homem

A. A lavanca: trenó
carrinho de mão

B. Gancho: cinzel
agulhas
anzóis
arpões

C. Alicate: tenaz
torno
tesoura
alicate

D. Laços: fios (de diversas matérias)


cordas
nós
correntes
tecelagem
couro

192
E. Martelos: martelo
maço
bigorna

F. Cunhas: de madeira
de ferro

G. Serra: lima

H. Pá: enxada com dentes


enxada lisa
arado
forquilha
grade

I. Plano inclinado

J. Sarilho: roda
roldana

K. Condutas: descobertas
regatos
tubos
sifões

L. Remo e leme: barco


avião

M. Arco: mola

N. Régua

O. Nível

P. Esquadro

Q. Compasso

193
R. Pêndulo e fio de prumo

S. Balanças

T. Círculo, bola, disco

U. Fita métrica

V. Transmissão do movimento: engrenagem


correias
X. Excêntricos

Y. Carril, cabo

Z. Cilindros, pistões, válvulas

Mas não bastará ter estes utensílios na escola. Será


ainda necessário que os alunos sintam a necessidade de se
servirem deles com um objectivo essencialmente prático que
os estimulará. Porque a ferramenta, como de resto o pensa­
mento, só assume todo o seu valor humano quando conce­
bida no seu dinamismo, em função do uso pessoal e social
que dela se faz.
Só teremos, para essa utilização, que pensar nas pro­
fissões de base nas aldeias de outrora:

carpinteiro
abegão
tecelão
ferreiro
fiandeira
costureira
cozinheira
construtor
comerciante
transportador

194
trabalho dos campos

cavar
lavrar
semear
transportar
plantar

Vejo muito bem como reflexo dessas ocupações nas


nossas aulas os trabalhos seguintes:

1. Trabalho dos campos.


2. Criação.
3. Carpintaria.
4. Serralharia: trabalho em ferro, em folha, em alumínio,
electricidade.
5. Fiação, tecelagem.
6. Costura.
7. Cozinha.
8. Construção.
9. Comércio.

Essas oficinas deveriam existir desde a escola maternal


e infantil, onde as veríamos mais apreciadas do que nume­
rosos jogos passatempos mais ou menos formativos que aí
são praticados. Tudo é questão de adaptação, bem enten­
dido, e eu preocupo-me com isso.
Haveria também que considerar a iniciação ao uso
desses utensílios e a direcção das oficinas. Não ignoro como
a massa dos educadores, e sobretudo das educadoras, são
inábeis para se servirem de ferramentas, até das mais simples.
Enquanto não for corrigido esse defeito lamentável, restar-
-nos-ão pelo menos dois recursos: confiar na criança que
hesita muito menos do que nós e é bem sucedida, tentando e
experimentando nos pontos em que nós quereríamos explicar
e demonstrar. E também apelar de vez em quando para um

195
camponês, para uma dona de casa, um artífice, entre os pais
dos alunos, que virão à escola dar curtas lições práticas.
Essas oficinas ir-se-iam certamente diferenciando à
medida que se eleva a idade da criança. Haveria também
certos utensílios, frágeis, raros e caros, ou perigosos de
manejar, que estariam ou fechados ou colocados fora do
alcance directo dos pequenos operários. Não recearemos de
resto excessivamente os acidentes benignos que fazem
«aprender» o ofício: marteladas nos dedos, picadas de agu­
lha, etc. Eles nunca impediram as crianças de retomarem
e de continuarem as suas experiências. Um curto regula­
mento, salientando a responsabilidade civil dos professores
bastaria para arranjar as coisas.
Teríamos atingido o nosso primeiro objectivo se, graças
a um material apropriado no qual muitas vezes tenho reflec-
tido e para cuja realização tenho as minhas ideias — que
julgo inútil precisar aqui — pudéssemos ver um dia nas nossas
aulas rapariguinhas coserem, tecerem, cozinharem, comer­
ciarem; rapazes construírem, serrarem, forjarem, pregarem,
aparafusarem, produzirem, regularem, transmitirem os movi­
mentos por motores, carris, correias, excêntricos; transpor­
tarem, arrastarem, criarem...
A Escola nunca teve em conta essa necessidade de
acção criadora cuja força no entanto ela não ignora. Ela
julgava que era próprio da sua dignidade limitar-se ao
domínio do puro pensamento e contribuiu para produzir
monstros de memória sobrecarregada e enfraquecida, de racio­
cínio subtil e enganador, de imaginação arrebatada, de sensi­
bilidade superexcitada e desordenada, mas que nunca haviam
feito brotar do chão um tufo vivo, que nunca haviam tratado
um animal doméstico, que não sabiam cortar um bocado
de madeira, nem pregar um prego, nem compor, nem apa­
rafusar, nem fiar, coser, cozinhar, construir — tudo activi-
dades instintivamente baseadas no devir dos indivíduos, e
que estão e continuam na base das nossas civilizações.
Já é tempo de corrigir semelhantes erros, de começar
pelo princípio, de oferecer à infância os trabalhos pelos
quais ela sente, sempre, uma total atracção; de esperar
das actividades daí resultantes a adaptação ao meio, a base

196
essencial na vida, o elemento natural de ordem, o influxo
motor primordial, a exaltação desse sentimento de poder
que dá coragem, confiança, audácia, bom humor e alegria
— primeiro escalão indispensável dessa ascensão real do
indivíduo, da luta terra a terra com a matéria, na comple­
xidade do meio humano e social, no sentido da diferenciação
que está no alvorecer do pensamento, pelo esforço de obser­
vação, de experimentação, de comparação, que está no alvo­
recer da ciência.
Vocês diziam de bom grado: instruir-se a fim de poder
trabalhar eficazmente. Nós invertiremos o problema e eu
já lhe disse porquê: trabalhar eficazmente para se instruir,
Se enriquecer, se aperfeiçoar, subir e crescer.

44. DOCUMENTAÇÃO

A SEDE DE CONHECIMENTO EXIGE E SUPÕE


A NECESSIDADE DE SE SATISFAZER NA
FONTE CLARA E PURA DA DOCUMENTAÇÃO

— Tudo isso, aliás, não é verdadeiramente mais do que


uma primeira etapa. E seria preciso não conhecer nada
das crianças para supor que elas vão contentar-se assim
— a menos que sejam profundamente anormais— com uma
actividade exclusivamente manual. Para aperfeiçoar incessan­
temente o seu trabalho, para satisfazer as suas necessidades
assim agudizadas, para ir cada vez mais depressa, mais
alto, mais longe, a criança sente uma poderosa necessidade
de conhecimentos.
Ela quer conhecer à sua volta e longe de si: a natureza,
tal como ela se oferece aos seus olhos, com os seus acidentes
naturais ou a sua ornamentação artificial: planícies, monta­
nhas, vales, fontes, cursos de água, céu, sol, lua, astros,

197
modificações atmosféricas—com a sua capa variável de neve
e de geada, de folhas, de flores e de frutos, com os seus
animais selvagens e domésticos, com a rede cerrada de rea­
lizações humanas que a transformam.
É como um domínio imenso que se abre aos novos
programas escolares. Bastar-vos-á corresponder a esse desejo,
a essa necessidade de conhecer, e pôr à disposição das vossas
classes os meios mais práticos de investigação e de conhe­
cimentos: fichas, com bastantes desenhos, fotografias e textos
explicativos; livros, dicionários, as maravilhas da lupa, do
microscópio, da fotografia e do cinema.
E sem método? perguntareis vós.
Não, em todo o caso, no sentido em que vocês o enten­
dem, de uma via estreita, de uma fileira única, como uma
espécie de melancólica bicha para receber uma porção de
conhecimentos previamente medida, pesada, delimitada, e por
vezes até falsificada. O essencial, para nós, é ir para a
frente, sempre com a mesma sede de conhecer melhor e
de continuar a procurar, sem desfalecimento, sem fadiga
anormal e desagradável. Sabem que isso pode levar muito
longe, muito mais do que a ordenação das vossas lições
demasiado bem preparadas... no papel. Ser-nos-á necessário
em contrapartida uma técnica precisa de investigação que
nos permita encontrar o mais rapidamente possível, e com
um máximo de interesse na apresentação, a informação
pedida, o documento desejado.
A criança tem sede: não é questão de beber por ela,
o que poderia não a satisfazer; nem de lhe recitar uma
teoria sobre a natureza biológica da sede ou sobre a quali­
dade das bebidas susceptíveis de a extinguir; ou de diverti-la,
distraí-la, de a atrair para outra coisa, para lhe fazer
esquecer a sua imperiosa necessidade. Compete ao interessado
extinguir ele próprio a sua sede conforme entender e
puder, porque aí se limita o vosso papel... Vocês não
estão ali para escolher ou preparar a bebida... Finalmente,
a criança desencorajada pela vossa temporização, desorien­
tada pela tirania subterrânea das suas necessidades insatis­
feitas, saciava apressadamente a sua sede em qualquer regato
contaminado, ou pervertia o seu gosto, ou superexcitava

198
perigosamente o seu apetite com qualquer mistura adul­
terada... talvez cientificamente ou mesmo sinteticamente
preparada.
Pensamos que é muito mais inteligente colocarmo-nos
resoluta e unicamente em face do instinto e da necessidade,
mas procurar a água clara e pura, oferecê-la em taças
atraentes, ou trazê-la por canalizações a toda a prova, a fim
de que a criança beba até à saciedade, segundo as suas
necessidades naturais, sem superexcitação nem perversão,
a fim de que continue a reaparecer, com a mesma franca
intensidade, a mesma necessidade de beber na fonte clara
do conhecimento.

45. EXPERIMENTAR

SONDAR, FIXAR, PROVAR, EXPERIMENTAR


É UMA TENDÊNCIA NATURAL QUE ESTA NA
BASE DA INVESTIGAÇÃO CIENTÍFICA.
DEVEMOS CULTIVAR E SATISFAZER
ESSA NECESSIDADE

— A cabra que descobriu um fio de água na montanha


não se atira gulosamente à cova arranjada pelo pastor.
Ainda que esteja com muita sede, cheira previamente,
molha os beiços na água e depois sacode o focinho num
leve espirro; saboreia a sua bebida. Se a sua prospecção
é favorável, então bebe em grande goles, até se saciar.
A menos que outras cabras, que a precederam, tenham
feito antes dela a prova necessária; neste caso, ao vê-las
dessedentar-se sem apreensão, precipita-se para a cova sem
hesitação nem experimentação prévia.
Tal é a natureza da criança. Dir-se-ia que ela desconfia,
aliás com razão, das nossas justificações e das nossas expli­

199
cações verbais, do aspecto talvez enganador daquilo que
ela deseja. Precisa de tocar, partir, amassar, pesar, medir,
saborear, sentir, misturar, cozer... De experimentar. E essa
predisposição indispõe-nos muitas vezes porque distingui­
mos nela como que uma desconfiança instintiva em rela­
ção à nossa ciência. Mas trata-se de uma tendência natural,
que podemos cultivar e desenvolver, mas que também
se perverte facilmente!
Tal como a cabra que foi precedida pelo rebanho e que
se apressa a beber como as suas companheiras, sem outra
preocupação sobre a natureza ou a pureza da bebida, a
criança deixa-se levar facilmente a satisfazer-se dos elemen­
tos que lhe apresentam, desde que eles lhe saciem passa­
geiramente a sede, sem duvidar da sua possível nocividade.
Ela contentar-se-á então em ver em imagens, no cinema,
ou apenas descrito num livro, aquilo que teria sido espon­
taneamente levada a tocar, apalpar, sentir, saborear. Ela
confia agora, sem reservas, na experiência dos outros, e
abdica da sua própria experiência. Deplorável hábito que
cria o espírito de rebanho e aniquila toda a personalidade
original. São esses erros que devemos absolutamente evitar.
Vocês queixam-se muitas vezes, eu sei, de que os
vossos alunos não se interessam pelas ciências, tal como de
resto pela geografia ou pelo cálculo. É preciso que se tenham
cometido erros, que se tenha desenvolvido perigosamente a
imitação gregária, para matar lamentavelmente um desejo
tão natural, para habituar a infância a receber passivamente
o alimento que se lhe oferece, sem que surja imperiosa essa
necessidade de controlar, de escrutar, para melhor conhecer,
de experimentar para melhor aprender!
Ponham à disposição das crianças o material e a técnica
de experimentação. Em vez de vos mostrardes ciosos da
vossa segurança e da vossa autoridade científicas, habituai-os
a duvidar, a desconfiar, e a persuadirem-se, não por garantias
que são para elas como que profissões de fé, mas pela
prova que elas próprias farão, com a ajuda dos sentidos e
dos utensílios que são o prolongamento destes. Vereis então
intensificar-se o seu apetite científico e o seu esforço metó­
dico para melhor entrarem no segredo do mundo.

200
O apetite não será então nem atenuado nem pervertido.
Permanecerá novo e potente. Não mais tereis que lidar com
uma dessas atrelagens que é preciso arrastar penosamente
e que nos enervamos a excitar e a empurrar, mas com
uma parelha fogosa que trota vivamente à vossa frente e
que vos basta guiar imperceptivelmente pela grande planície
da vida.

46. ENTRAR EM RELAÇÃO COM O MEIO AMBIENTE

DA URGÊNCIA DE RESTITUIR O SEU SENTIDO


E O SEU DINAMISMO À NECESSIDADE
NATURAL DE ENTRAR EM RELAÇÃO
COM O MEIO AMBIENTE E DE UTILIZAR
PARA ISSO AS TÉCNICAS INCESSANTEMENTE
APERFEIÇOADAS QUE A CIÊNCIA PÕE
À NOSSA DISPOSIÇÃO

— Na sua primeira infância, a criança não é mais do


que um jovem rebento demasiado preocupado com o seu
frágil crescimento, que tem tudo a beber do solo para for­
tificar o seu caule débil, que tem necessidade de se con­
centrar para fazer face às forças hostis.
Mas por volta dos oito anos, já lançou suficientes
raízes, que a alimentam naturalmente; vive já sobre um
fundo de tradições, de hábitos e de experiências que lhe
permitem ver mais longe e mais largo, aventurar-se para
além do seu horizonte habitual. Não porque esteja menos
preocupada consigo própria. Dei-vos já a minha opinião
sobre aquilo a que os psicólogos têm chamado o egocen­
trismo da criança, o que subentendia que o adulto está
muito menos preocupado com a sua própria personalidade.

201
A experiência mostra-nos que não é nada assim e que,
bem vistas as coisas, o egocentrismo é uma tendência natural
em todas as idades, que a criança compensa e idealiza numa
louca generosidade, enquanto que o adulto desiludido, mui­
tas vezes não sabe mais do que mascará-lo sob aparências
polidas e gestos hipócritas. Não. Haveria toda uma nova
história a escrever sobre este tema! Apenas assinalo, de
passagem, todo o seu alcance.
O que é exacto é que, por volta dos oito anos, a maneira
de a criança se interessar pela sua própria vida muda tanto
de forma como de técnica.
Até então, ela não era por certo indiferente à natureza,
às suas belezas e aos seus caprichos; receava mesmo o isola­
mento e procurava incessantemente a companhia dos adultos
idulgentes ou dos seus camaradas. Mas essas relações com
a natureza, com os adultos ou com os camaradas estavam
apenas em função do seu crescimento pessoal. Ela desfru­
tava sem medida da água, dos prados e das flores; se
interrogava durante dias inteiros sem mesmo se demorar
a esperar uma resposta; falava e contava por necessidade
de exteriorizar dúvidas e sensações, mas não escutava nada
do que outras contavam com a mesma preocupação exclu­
siva de exteriorização. Nada é mais típico, neste aspecto,
do que a conversa de crianças pequenas desempenhando
cada qual o seu papel, por vezes tão totalmente dissemelhante,
e que se não impressionam aliás com essa dissemelhança,
preocupados como estão principalmente com o seu cresci­
mento interior pessoal.
Por volta dos oito anos a criança terminou pouco a
pouco a arrumação interna da sua casa. Dirige-se para as
aberturas e dá-se conta de haver ainda tantas riquezas a
tirar dos seus contactos com o mundo exterior. Diz-se que
ela se socializa. Não se contenta já em conhecer e expe­
rimentar; quer agora reagir sobre o meio.
Essa relação supõe meios de comunicação que são, na
origem, a língua e os sinais; a um grau mais elevado, a
escrita e a leitura permitem alargar essas relações aos
homens afastados no espaço e no tempo; a tipografia e as
técnicas complementares são como que uma sistematização

202
prática e técnica. O cinema, os discos, a rádio permitem-nos
comunicar com os indivíduos afastados, directamente, como
por uma extensão mágica da imagem, do gesto e da palavra,
sem o intermediário de sinais escritos ou impressos.
E, efectivamente, a partir dos 7-8 anos —e só a partir
desta idade— a criança sente a necessidade de ler, de
escrever, de imprimir; de compreender o pensamento fixado
nos livros impressos, de se corresponder com crianças afas­
tadas, de conhecer também aquilo que os homens realizam
noutros lados ou produziram no passado. A Escola tem
penado muito —aliás em vão— para ensinar às crianças
o valor e o sentido desses sinais gráficos. Sempre pelas
mesmas razões: tinha-se negligenciado na criança essa
necessidade de conhecer; tinha-se desencorajado na origem
o seu desejo de utilizar esses múltiplos e diversos meios de
comunicação. Vão lá agora falar das alegrias da viagem
a quem não sente já essa atracção do novo e do desconhe­
cido, a quem receia as mudanças, as fricções e os contactos.
Resta, como supremo recurso, a obrigação. Esquisita solução,
com efeito, para que se opere o encanto!
Reviravolta uma vez mais! Cultivaremos principalmente
esse desejo inato na criança de comunicar com outras
pessoas, sobretudo com outras crianças, de dar a conhecer
à sua volta os seus pensamentos, os seus sentimentos, os
seus sonhos e as suas esperanças. Então, aprender a ler,
a escrever, familiarizar-se com o essencial daquilo a que
nós chamamos a cultura será para ela uma função tão
natural como aprender a andar — o que não é tarefa fácil,
como se sabe, e na qual no entanto todas as crianças triun­
fam de dificuldades que subestimamos, apoderando-se pra-
ticamente de noções tão delicadas para reciocinar e explicar.
Eu sei que, no que respeita à escola primária, a expe­
riência foi realizada a uma grande escala e provou a
eficácia desse processo lógico de aquisição e de formação.
Bastará continuar, colocando no centro das nossas preo­
cupações essa necessidade de relações e de iniciação nas
técnicas que as permitem.

203
47. EXPRESSÃO E COMUNICAÇÃO ARTÍSTICAS

PORQUE É QUE NÃO DEVERÍAMOS


NEGLIGENCIAR OS MEIOS DE EXPRESSÃO
E DE COMUNICAÇÃO ARTÍSTICAS QUE
SÃO, NO MAIS ALTO GRAU, COMUNHÃO
FECUNDA. O PROGRESSO CAMINHA DE
RESTO NO SENTIDO DE UMA EXALTAÇÃO
DAS APTIDÕES INTUITIVAS QUE
DEVEMOS FAZER EVOLUIR EM CRIAÇÕES
ARTÍSTICAS

— A escrita, e a imprensa, que na origem não é mais


que o seu aperfeiçoamento mecânico, são certamente meios
de comunicação, e bastante poderosos, para terem influído
profundamente na evolução secular da nossa civilização.
Mas a escola tem-nos considerado demasiadas vezes, no
passado, como os únicos, os mais expressivos, os mais pre­
cisos, os mais perfeitos, os únicos dignos de ser ensinados
ou recomendados. Inicia-se uma séria reacção que, como
todas as reacções, corre mesmo o risco de desacreditar hoje
um tanto a cultura escrita ou impressa.
A escrita, a imprensa, a leitura, não são na verdade
mais do que processos menores de relações, pois que são
intermediários tangíveis e materiais, portanto dificilmente
manejáveis, carecendo muitas vezes de flexibilidade e de
subtileza, impotentes mesmo por vezes para exprimirem o
imponderável de certos cambiantes que exigem o gesto e a
entoação na palavra e na leitura, a imagem ou o desenho
na escrita ou no impresso.
Processos não apenas menores mas anormais, não natu­
rais, que trazem já em si as taras de uma civilização ciosa
da forma, progressivamente fechada a todo esse imaterial
que é no entanto o único vôo verdadeiramente à medida
do homem.

204
Existem, mais perfeitos, mais subtis, mais gerais, mais
expressivos, os meios de comunicação a que eu chamará
artísticos.
Há momentos em que, por uma evolução ainda mis­
teriosa. o nosso pensamento voa para atingir directamente,
e como que instantaneamente, os seres que nos rodeiam.
É como uma linguagem secreta, que dispensa sinais inter­
mediários convencionais, e que é portanto particularmente
adaptada à personalidade intuitiva e sensível das crianças.
É noção corrente que um gesto, uma expressão de rosto
são susceptíveis, em certas circunstâncias, de dizer mais que
cem discursos. Cultivaremos essa expressão pelo gesto que
está na base da arte plástica e dramática: exprimir senti­
mentos, comunicar uma emoção pelo simples milagre das
atitudes, do movimento, do gesto, não é um dom precioso
a cultivar e a reforçar? Por intermédio do teatro, dos
fantoches, das marionetas, as crianças podem atingir espon­
taneamente uma expressão que é comunicação directa.
instrumento maravilhoso para a exaltação entusiasta da nossa
personalidade.
Ou então agarramos um lápis e exprimimos o inex­
primível. O subconsciente que nos guia a mão vai tocar
directamente o subconsciente daquele que olha e compreende.
Se o pincel e a cor vêm misturar a sua gama íntima ao
mistério sugestivo do desenho, podemos atingir uma lingua­
gem, uma expressão, uma emoção, ainda mais subtis e mais
profundos.
Cultivaremos o desenho, meio de expressão e de comu­
nicação. Alargaremos as suas vantagens e os seus benefícios
por meio de técnicas e artes menores como a policópia,
a gravura ou a reprodução fotográfica.
Não poderíamos enfim negligenciar essa maravilhosa
linguagem artística que são a música e o canto. Tal como
o gesto e o desenho, eles exprimem o inexprimível; são
uma projecção natural e espontânea do nosso ser para o
exterior, uma vibração harmónica, uma espécie de lingua­
gem divina inteiramente comparável a essa comunicação

205
misteriosa que faz com que se compreendam entre si. de uma
maneira aparentemente tão perfeita, os insectos e os pássaros.
A expressão artística sob estas formas diversas e subtis
tem também a particularidade de não supôr necessariamente
nem a iniciação nem a aprendizagem, de ser universal, supra­
nacional, não limitada pelas diferenças de línguas que são
como que a tara tangível da impotência menor dos pro­
cessos técnicos de comunicação que são a escrita e a
imprensa.
Perguntar-vos-eis sem dúvida em que medida no entanto
a iniciação e o exercício podem aumentar a eficácia dos
meios de expressão artística. Devemos permanecer, neste
domínio, bastante circunspectos, e desconfiar do espírito de
sistema, vício permanente da escolástica, que, a pretexto de
codificar, de justificar, de regular a inspiração, se arrisca
a neutralizá-la e destruí-la.
A expressão, a comunicação artística —que se toma
comunhão — é como um impulso subtil do instinto, como
o canto do pássaro, e o zumbido de asas do insecto.
Podemos obstruí-la, aniquilá-la pouco a pouco, ou pelo
contrário permitir-lhe que se realize plenamente. Mas a
educação não poderia suscitá-la nem criá-la, nem portanto
ensiná-la. É como um instrumento maravilhoso que temos
à nossa disposição, que é, antes da intervenção dos adultos,
antes da omnipotência da escola. Podem persuadir-nos de
que ele é inútil, ou perigoso, ou perverso, e desabituar-nos
lentamente dele, ao ponto de que não temos por vezes dele
nem o sentido: ou pelo contrário, apelar para as virtudes
do seu poder e tirar dele o máximo para a formação e
o desabrochamento da personalidade.
A escolástica não tomou nem uma nem a outra dessas
vias. Ignorou muito simplesmente esse instrumento e jul­
gou pretenciosamente poder substituí-lo por outros uten­
sílios mais científicos, mas que estão para a segurança
artística como o robot está para a perfeição do mecanismo
humano. Mal se começa a medir a monstruosidade de uma
tal concepção.
Não tentaremos pois ensinar dogmaticamente às crian­
ças a expressão plástica, a música ou o desenho, porque

206
correríamos o risco, pelo nosso espírito de falso método,
de produzir o efeito contrário. Mas deixaremos que as
crianças se exprimam artisticamente; encorajá-las-emos a
iSso; facilitar-lhes-emos o esforço que saberemos integrar em
todo o processo educativo. Será dinamicamente, sintetica­
mente, por uma espécie de impregnação global e difusa,
que venceremos nos pontos onde fracassaria quase inevita­
velmente a lição metódica.
Semelhantes afirmações, que teriam parecido sacrílegas
há apenas um quarto de século, encontram agora, em muitos
meios, um eco complacente. É que o tempo tem avançado.
A cultura actu,al parece ter tirado do pensamento lógico
tudo quanto ele podia dar; a própria ciência se mede agora
mediante a misteriosa evolução do pensamento e do senti­
mento. E invenções recentes, como o gira-discos e a rádio,
tomam por sua vez as vozes aladas do sonho, acima e para
além da forma demasiado rígida das técnicas de escrita ou de
impressão que estão ligadas à nobreza eminente do progresso
humano. Dir-se-ia que os homens começam a compreender a
impotência relativa dessas técnicas que eles vão diariamente
completando com outros processos mais intuitivos. O desenho,
a fotografia, a gravura a preto e branco e a cores trazem
hoje à austeridade dos jornais e dos livros, um correctivo
que abre uma janela para o mundo do ideal. Sem falar
do cinema, que é como que o balbuciar, bastante desajeitado
ainda, de uma língua que abandonou radicalmente as vias
tradicionais de expressão para se elevar àquilo que bem pode­
ria tornar-se um dia no mais perfeito dos meios de comu­
nicação, na mais profunda das comunhões ao serviço da
construção humana.
Prolonguei-me muito nestas distinções. O que era
necessário para estabelecer uma hierarquia dos valores peda­
gógicos, hierarquia que varia com os anos, e que, por con­
sequência, deve ser periodicamente reconsiderada para ser
readaptada ao ritmo do mundo. Houve tempo em que o
cavalo, a mais nobre conquista jamais feita pelo homem,
era o veículo ideal, rápido e aristocrático. O caminho de
ferro e a bicicleta acabavam de o destronar, antes de serem
por sua vez destronados pelo automóvel, o qual será amanhã

207
destronado pelo avião. Limitarmo-nos, na nossa escola, à con­
cepção tradicional de um primado da educação pelo livro, é
obstinar-nos em montar um veículo anacrónico, e em ignorar
os encantos e as vantagens dos meios mais aperfeiçoados
de comunicação.
Portanto, ao ter em conta todas estas considerações,
reconstruímos o nosso edifício educativo, desde a base que
é trabalho até ao cimo que é cultura, idealização, humanismo.
Eu sei que isso é aparentemente mais complicado do
que organizar a escola com filas de carteiras uniformes,
com tinteiros, canetas e lápis para escrever, livros para ler
e recitar. A Escola que nós queremos será à imagem da
vida, e tal como esta complexa e diversa — o que não quer
dizer forçosamente complicada.
Mas se ela adquire, desse modo, um máximo de efi­
ciência; se é a esse preço que ela cumprirá plenamente o
seu papel de formação harmoniosa e poderosa das jovens
gerações, hesitaremos nós ainda em desarrumar um pouco
as nossas concepções e os nossos hábitos?

48. OFICINAS ESPECIALIZADAS

E, PARA TERMINAR, EIS O NOSSO EDIFÍCIO


EDUCATIVO, O PORMENOR DAS NOSSAS OITO
OFICINAS ESPECIALIZADAS, COM O SEU
MATERIAL, A SUA INSTALAÇÃO, E ONDE
AS CRIANÇAS PODERÃO ENTREGAR-SE AOS
TRABALHOS-JOGOS QUE ESTARÃO NA BASE
DA SUA FORMAÇÃO INDIVIDUAL, SOCIAL,
HUMANISTA

— Mas onde encontrará você, senhor Mathieu, o educa­


dor ideal que esteja em condições de ensinar todas as suas
técnicas, algumas das quais são de uma subtileza que, como
você próprio o reconhece, desafia a aprendizagem?

208
— Por isso verificarão que eu vos tenho falado menos
de ensinar do que de deixar viver, de organizar o trabalho,
de não perturbar a explosão da vida que sobe e desabrocha,
mas pelo contrário reforçar esse impulso, dar-lhe alimento,
meios de realização e de exaltação.
E para isso devemos contar muito menos com a palavra
e a erudição do educador do que com a sua nova aptidão
para criar o meio favorável e para facilitar a utilização
óptima do material que nós colocaremos à disposição da
criança para a ajudar a realizar-se pelo trabalho.
Será em definitivo para estes dois pontos essenciais que
se dirigirá o nosso esforço de renovação:
— O meio —escolar e social— por um lado;
— O material e as técnicas de emprego, por outro.
Aqui temos pois qual seria, em definitivo, a forma
original da nossa nova Escola:
Ela comporta:
—Uma sala comum transformável podendo servir para
demonstrações, reuniões, conferências, exposições, projec-
ções, etc.;
— Oficinas interiores especializadas;
— Oficinas exteriores (cultivo, criação).
Prevejo oito oficinas especializadas:

A. Primeiro quatro oficinas para o trabalho de base


Oficina 1: Trabalho dos campos. Criação de animais.
Oficina 2: Serralharia e carpintaria.
Oficina 3: Fiação, tecelagem, costura, cozinha, trabalhos
domésticos.
Oficina 4: Construções, mecânica, comércio.

Cada uma dessas oficinas estará naturalmente munida


dos utensílios e dos materiais de base indispensáveis a um
trabalho efectivo. A escolha desses utensílios deverá com­
petir aos próprios educadores que compreendam a nova
orientação da actividade escolar. Alguns desses utensílios,
impossíveis de encontrar no mercado, deverão ser fabricados
segundo planos de conformidade com os nossos objectivos.
14
209
O doseamento será delicado porque é difícil, bem o sei,
conciliar perfeição com baixo preço. Mas um núcleo tal
que seja suficiente para cobrir um espaço reduzido, a um
preço acessível, pode ser perfeitamente realizado.
Alguns curtos estágios familiarizariam os educadores
com a nova técnica e a forma original do trabalho. No que
diz respeito ao pormenor das próprias técnicas, os educa­
dores seriam convidados a fazer regularmente apelo aos artí­
fices, aos operários, às donas de casa, que, além do exemplo,
dos conselhos práticos e das directivas que dariam, estabe­
leceriam entre a escola e o meio uma espécie de ligação
orgânica, uma dependência natural, susceptíveis de restituir
ao trabalho social o lugar eminente no próprio centro da
nossa cultura.
Todas as crianças deverão, em princípio, participar
nesses trabalhos de base para adquirirem uma iniciação
mínima. O que não significa que não possam, já neste grau,
manifestar-se preferências, ser valorizadas aptidões, iniciar-se
a diferenciação que se irá acentuando com a idade.
Será necessário um horário, bem como uma certa ordem
para os trabalhos. É uma simples questão de organi­
zação; as crianças compreendem-no e submetem-se-lhe sem­
pre de bom grado. Mas será preciso evitar entretanto que
esse trabalho de oficina sob o impulso de colaboradores oca­
sionais imbuídos de velhas teorias autoritárias, tome o
aspecto de uma nova escolástica. A obrigação só deve existir
como princípio. Na prática —não estamos numa escola
profissional — dever-se-á procurar mais o interesse da
criança pelo trabalho, a actividade funcional que encontra
enfim objectivo e possibilidades de realização, a exaltação
permanente da vida, do que a execução mais ou menos
regular das tarefas previstas. Em especial quando um aluno
estiver ocupado numa função que o absorve, será necessário
tolerar certas infracções, compreender as razões delas,
submeter-lhes, com uma extrema flexibilidade, toda uma
organização escolar.
Novamente falo de gradação, de tacto. Mas tranquili­
zem-se, já não pedimos ao educador, como por demais
o fizeram os métodos anteriores, que resolvam o imponde-

210
rável, mas apenas que não ressuscitem uma falsa autoridade
formal, que não se sacrifiquem a um excessivo amor próprio
que será efectivamente submetido muitas vezes a uma rude
prova.
A nova educação pelo trabalho será o que dela fizerem
o material e a organização. Na medida em que estes esti­
verem melhor adaptados aos trabalhos-jogos que estarão
na origem da nossa actividade escolar, teremos cada vez
menos que intervir de outro modo que não seja para acon­
selhar e ajudar. Por pouco que organizemos a vida coope­
rativa da pequena comunidade, prepararemos, na nossa nova
escola, o estabelecimento dessa ordem espontânea que pre­
side aos jogos-trabalhos em que o adulto não tem qualquer
participação, e que não são no entanto isentos nem de
regra nem de disciplina. Também nós chegaremos à ordem
superior baseada nas simples necessidades do trabalho
funcional.
Teremos em seguida:
B. Quatro oficinas de actividade evoluída, socializada e
intelectualizada
O trabalho permitido pelas oficinas de que acabo de
falar, se está na base natural da actividade infantil, não
constitui no entanto mais do que um escalão primário dessa
função trabalho à qual demos o lugar de honra no nosso
sistema educativo.
Ele será, no princípio da escolaridade, o essencial de uma
vida que deve reencontrar os seus fundamentos, que deverá
construir-se a si própria pelo esforço das mãos ao serviço
de um pensamento que se irá diferenciando. Colocaremos
então à disposição dos jovens trabalhadores as oficinas,
os materiais e as técnicas que permitirão, reforçarão, tor­
narão eficaz essa evolução.
Oficina 5: Prospecção, conhecimentos, documentação, de
acordo com o processo cujo funcionamento vos expliquei.
Encontraremos aí:
— Um ficheiro escolar: o mais abundante e o mais
completo possível, enriquecido e actualizado permanente­

211
mente pelo contributo, a preparação e a classificação de
novos documentos — obra entusiasta das próprias crianças.
Sei que a ideia desse ficheiro já foi realizada. Restaria
prever um repertório simples e prático que fizesse desse
ficheiro o utensílio central e incomparável da documentação
escolar.
— Dicionários e colecções enciclopédicas, realizadas
para as crianças, e donde seriam excluídas as páginas de
explicações, de ideias, de raciocínio que não são para a
sua idade. Uma ilustração abundante e sugestiva seria sobre­
tudo necessária.
De momento quase não existe infelizmente nada que
possa satisfazer-nos. Enquanto se espera a preparação e a
edição desses livros que seriam um rico complemento do
ficheiro escolar, os educadores poderão utilizar algumas das
belas edições existentes, que aborrecerão em muitos casos
as crianças, que poderão distraí-las e arrastá-las para a
superficialidade, mas donde no entanto elas poderão tirar,
com a ajuda do professor, as informações de que têm
necessidade.
— Uma biblioteca de trabalho, com abundantes séries
de livros realizados para o fim especial de documentação
interessante, e contribuindo sob uma forma mais aprofundada,
mais completa, com os documentos que não podem ter lugar
no ficheiro.
Sei que essa empresa foi igualmente iniciada, e o cami­
nho traçado por uma excelente equipa cooperativa. Será
preciso continuar urgentemente a preparação pedagógica e
a edição desses livros serão, juntamente com o ficheiro, a
grande originalidade, e tão preciosa, da nova documentação.
Não teremos entretanto grande coisa a tirar dos livros
actualmente existentes que são, quer manuais escolares de
conteúdo demasiado fragmentado, demasiado limitado, quer
livros recreativos mais ou menos morais e formativos.
Há aqui um domínio a enriquecer com toda a urgência.
A competência actual dos educadores, a perfeição dos meios
técnicos de edição deveriam permitir um rápido e total
sucesso.
— Cartas geográficas, um globo terrestre, etc.

212
— Discos e filmes.
E, ordenando toda essa riqueza, permitindo a sua utili­
zação prática e metódica, possuiremos um

— Índice generalizado que seria cuidadosamente actua-


lizado, e que permitiria às próprias crianças, sob a direcção
de alunos responsáveis por oficinas e particularmente ini­
ciados, encontrar instantaneamente, entre essa riqueza acumu­
lada, os materiais de que terão necessidade para darem
ao seu trabalho um rosto novo, social e cultural.

Oficina 6: Experimentação.
Decerto reconhecem, na determinação das oficinas, o
esquema de evolução a partir da actividade da nossa escola,
da actividade manual de base, até à documentação para a
aquisição dos conhecimentos, à experimentação, à expressão e
às comunicações gráficas, à expressão e às comunicações
artísticas.
Estamos agora na experimentação.
É todo o domínio das ciências físicas e naturais, não
já demonstrativas e livrescas, mas resultado da experiência
obstinada das crianças, com um material de base, directivas
técnicas, um método permitindo às próprias crianças pro­
cederem ao exame, à observação atenta de toda a natureza
que as rodeia, viva ou inanimada, medir, escrutar, experi­
mentar, reconstruir, em definitivo, e recriar a ciência.
A necessidade de uma tal actividade, a sua superio­
ridade sobre o ensino quase exclusivamente livresco de que
nós fomos vítimas, têm, eu sei, a partida ganha, pelo menos
teoricamente, nos diversos meios de ensino. Mas não basta,
neste caso, condenar o passado; é preciso construir o futuro.
Ora tudo está por fazer neste domínio. Aconselha-se aos
educadores: devem fazer as crianças observar, agir, expe­
rimentar. Estes são conselhos gratuitos que não nos valem
mais do que veleidades de acção, tentativas e desilusões.
Precisamos de um material adequado, de directrizes sim­
ples e precisas para que possamos realizar, em todas
as escolas, essa formação científica que era até hoje apa­

213
nágio de alguns educadores particularmente engenhosos e
hábeis, que talvez tenham mostrado o caminho, mas que
não nos ajudaram a segui-los.
Encontraríamos certamente, para realizar esse projecto,
competências suficientes e entusiastas. Pouco mais haveria
a realizar do que uma tarefa de afinação, bem como a
elaboração e a preparação técnica da oficina de trabalho
experimental.

Haveria que prever:


— Material e directrizes precisas para a observação
generalizada da natureza, para as experiências culturais e
os trabalhos nas diversas estações do ano;
— Material e directrizes para a observação, a criação
ou a conservação dos animais e dos insectos;
— Álbuns diversos, alguns dos quais existem nas
livrarias;
— Flora e fauna local e regional (haverá muito a fazer
neste domínio);
— Museu dos produtos e dos minerais locais, regionais
e exóticos;
— Microscópio;
— Material e produtos permitindo as experiências quí­
micas essenciais e elementares;
— Material eléctrico e mecânico, e se possível um
pequeno motor. Este é um ramo que interessa prodigiosa­
mente as crianças e ao qual seria bom prestar a maior
atenção, porque será ele que estabelecerá a ponte entre a
actividade escolar e a pré-aprendizagem industrial contem­
porânea.
Compreende-se toda a importância, na educação mo­
derna, de semelhante oficina, que responde simultaneamente
às necessidades de experimentação das crianças, aos seus
desejos de imitação, e às necessidades sociais do nosso
século da ciência. Essa oficina irá ganhando importância,
enriquecendo-se e diferenciando-se à medida que aumenta a
idade das crianças. Teremos que procurar, creio, que ela

214
não cresça exageradamente à custa doutras actividades igual­
mente formativas e indispensáveis.

Oficina 7: Criação, expressão e comunicação gráficas.


Esta oficina permitiria às crianças exprimirem e fixarem
os seus próprios sentimentos e pensamentos, exteriorizarem-se,
entrarem em relação com as pessoas afastadas: os parentes na
aldeia, outras crianças em numerosas aldeias do país e do
estrangeiro, personalidades e grupos que nos enviariam em
troca as suas mensagens — o que daria lugar a uma corrente
permanente de um interesse, de uma motivação e de uma
virtude estimulante cujo alcance mal podemos imaginar nas
nossas escolas encarquilhadas sobre si mesmas, limitadas às
barreiras artificiais dos livros e da aula.
Será necessário:
— O diverso material de escrita e de leitura;
— Material de poligrafia;
— Material de tipografia escolar, de brochura e de
encadernação;
(Estas técnicas necessitarão do apoio de técnicas com­
plementares que terão por vezes vantagem em ser transporta­
das desta oficina 7 para a Oficina 8: desenho, pintura, gravura
(linóleo, madeira), recorte e colagem, estereotipagem, ilus­
tração sob todas as suas formas).
— Uma biblioteca de leituras.
Assim consideradas no seu sentido e no seu valor de
relações, de comunicações, compreende-se que a escrita e
a leitura, que tinham um lugar tão importante na escola
de outrora, recebam uma nova justificação, uma preciosa
motivação no apoio de técnicas modernas, particularmente
a poligrafia e a tipografia, que são para as crianças um
eterno encanto, uma magia permanente, que exalta todas
as possibilidades de expressão, decuplica o alcance das novas
comunicações que integram totalmente o esforço escolar
no processo complexo da vida contemporânea.
Vi, numa escola, crianças de todas as idades, mesmo
as muito pequeninas, comporem com verdadeiros caracteres
tipográficos os textos vivos que elas tinham redigido espon­

215
taneamente, imprimirem as páginas daquilo a que elas cha­
mavam tão justamente «Livro de vida», com prensas espe­
ciais, simples, práticas, baratas, manejáveis pelas crianças e
que são como que o protótipo desse material de experimen­
tação que temos de criar para a nossa escola. Elas ilus­
travam e coloriam essas páginas que reuniam num verda­
deiro jornal escolar. E esse jornal escolar não era só a mais
sugestiva das produções infantis, mas era um autêntico
jornal que ia pelo correio, atingir noutras escolas de França
e do estrangeiro, milhares de outras crianças que, iniciadas
nas mesmas técnicas, redigiam, imprimiam e expediam do
mesmo modo um jornal que era o reflexo, a alma, o motor,
de toda a sua actividade, escolar, local e social. Não podem
imaginar o interesse que as crianças punham em tais técnicas
de trabalho, e a que ponto as outras tarefas escolares eram
assim desse modo vivificadas.
Esse exemplo foi para mim uma revelação de quanto
pode, para a exaltação da vida infantil, a readaptação da
vossa pedagogia ultrapassada às possibilidades inauditas que
nos oferece a ciência e que o progresso técnico inteligen­
temente orientado torna hoje possível.

Oficina 8: Criação, expressão e comunicação artísticas,


que deverá possuir o material e a documentação técnicos
para:
— O canto e a música, se possível com instrumento
musical: piano (luxo que ainda não podemos pretender),
pequeno orgão, flautas e sobretudo, necessariamente, tele­
fonia, discos e gira-discos.
Restar-nos-á criar, ou pelo menos aperfeiçoar, segundo
as directrizes dos educadores que empreenderam a sua ela­
boração, o verdadeiro disco de ensino, porque teremos
muito pouco que respigar na infinidade das chapas acumu­
ladas pela produção comercial.
— A dança e a rítmica (também com o auxílio de
discos);
— O desenho;
— A pintura;

216
— A gravura;
— A modelagem;
— O teatro, as marionetas, os fantoches.
Pensa que uma escola assim compreendida não per­
mitiria, sob todos os pontos de vista, uma educação muito
mais eficiente, completa, social e humana?

49. A DISCIPLINA

A PREOCUPAÇÃO COM A DISCIPLINA ESTA


NA RAZÃO INVERSA DA PERFEIÇÃO NA
ORGANIZAÇÃO DO TRABALHO, DO INTERESSE
DINÂMICO E ACTIVO DOS ALUNOS

— Efectivamente, senhor Mathieu, ao ouvi-lo falar


ganhamos confiança. Parece que as dificuldades serão facil­
mente superadas e que a vida poderosa triunfará; que esse
seja o funcionamento normal de uma educação humana bem
compreendida, baseada no trabalho e na vida, no esforço
criador, na exaltação de tudo quanto há de melhor em nós,
não oferece qualquer dúvida. Mas outros antes de si, como
já lhe disse, fizeram projectos generosos, e por mais que
você entre no pormenor da organização material, não posso
impedir-me de um persistente e obstinado cepticismo.
O mundo actual voltou muito deliberadamente as costas
a essa concepção da dignidade e das virtudes do trabalho.
Em minha opinião, é correr para graves decepções esperar
dos homens, no esforço educativo, uma correcção oposta
à orientação comum da vida.
— O que era parcialmente exacto, há apenas vinte anos,
há apenas três anos, pode não o ser já depois da trágica
experiência que é como que uma sanção impiedosa dos
nossos erros fundamentais. A pedagogia de amanhã parti­

217
cipará na degenerescência comum se ela se obstinar numa
tradição actualmente ultrapassada senão condenada. Ela só
chegará à função eminente que deveria ser a sua se souber
olhar com olhos intrépidos e novos os problemas que se
apresentam, e tal como eles se apresentam, e se tentar
resolvê-los sem preconceito dogmático, sem falso amor pró­
prio intelectual. Julgo ter mostrado a única via possível: a
da exaltação do trabalho como razão, objectivo e técnica de
toda a actividade humana.
Parece-me chegada a hora de tal orientação. Há olhos
que se abrem. Talvez baste que os ajudemos a verem ainda
melhor, para melhor construírem em seguida.
— Faço votos por isso. Mas uma coisa me detém ainda
um pouco na sua concepção nova da escola.
Você gosta de falar de unidade e de simplicidade. E eu
compreendo que se deva concebê-las na base como a ideia
central que anima e une as forças diversas e múltiplas da
vida contemporânea. Mas não receia que, na prática, os
educadores fiquem desanimados por essa superabundância
de material e de técnicas, por essa demasiada riqueza
que corre o risco de ocasionar um esgotamento de uma nova
forma, ao mesmo tempo manual e intelectual, e perigoso
como todos os esgotamentos?
— Não somos nós que criamos a diversidade, mas a
vida e aquilo a que chamamos o progresso. Não nos com­
pete, senão por um subterfúgio charlatanesco, substituí-la
por uma simplicidade formal que não é mais que uma mentira
e uma ilusão. A escola obstina-se em servir o seu prato
comum, único e obrigatório, sem se preocupar se ele pro­
voca nas crianças que o ingurgitam graves indigestões que
para sempre as façam aborrecer o esforço.
Eu tenho em conta a diversidade; organizo-me na
diversidade.
No tempo em que os artífices, nos burgos, se limita­
vam cada qual a uma única forma da sua especialidade,
o comércio podia sem decair limitar-se a um tranquilo rudi­
mento de organização. Depois — motivada quer pelo produ­
tor quer pelo consumidor — uma diversidade crescente veio
complicar a prática desse comércio. O artífice que não

218
queria submeter-se-lhe. o comerciante que não se lhe sabia
adaptar, morriam de asfixia. A escola é hoje vítima da
mesma cega obstinação. Só que ela parece comprazer-se
no seu marasmo; ela tenta justificá-lo com a sua filosofia,
e acusa de bom grado o progresso pela desadaptação.
Eu prefiro adaptar-me, e faço-o com os meios de que
posso dispor.
Se o director de um grande armazém moderno conhe­
cesse as necessidades exactas, os desejos de todos os seus
possíveis clientes, poderia abastecer as suas prateleiras ape­
nas com os objectos necessários, e a lista destes seria assim
certamente encurtada. Como ele se sabe impotente para
operar semelhante delimitação, e quer apesar de tudo satis­
fazer os compradores, oferece todos os objectos susceptíveis
de interessar os clientes. São os clientes, e não o vendedor,
que procederão eles próprios à escolha dos artigos.
Só há, nesta maneira de proceder, um perigo, mas que
é efectivo: é que certos clientes, incapazes de apreender a
ordem de utilidade relativa desses diversos objectos, façam
compras inconsideradas, ao sabor dos seus impulsos, os quais
são de resto deleitados, falseados e pervertidos pelos bri­
lhantes ouropéis e a cintilante iluminação, pela excitação
das luzes, pela música e os perfumes; que eles se carreguem
febrilmente do acessório, do inútil, e não tenham depois a
força de carácter nem o dinheiro suficiente para adquirir o
essencial.
O cliente —na escola tal como no armazém— só se
salvará, como já tive oportunidade de dizer, se a sua vida
for previamente centrada, motivada, ordenada, equilibrada;
se ele entrar na oficina ou no armazém sabendo com exac-
tidão e decisão aquilo de que precisa; se sentir instintiva­
mente aquilo que serve as suas linhas de crescimento e de
vida.
Vocês terão assim, na origem, sobretudo se elas foram
previamente deformadas por outras escolas, desse género de
crianças que ficarão como que hipnotizadas pelas novas possi­
bilidades, todas tão aliciantes, da vossa escola. Elas irão,
superexcitadas e indecisas, de uma oficina para outra, experi­

219
mentando todas as ferramentas, borboleteando sem nada
fazerem de sério, importunadas por essa riqueza inesperada.
Essa etapa penosa tem que ser vitoriosamente superada.
À medida que a criança for sendo impregnada pelo sentido
e o poder do trabalho, fixar-se-á pouco a pouco, segundo
os seus gostos, a sua compleição e as suas necessidades. Tere­
mos atingido o objectivo que a ciência pedagógica balbu­
ciante nem sequer sabia distinguir nem delimitar.
Mas é preciso que nos organizemos na diversidade. O tra­
balho de direcção num grande armazém é inteiramente dife­
rente na sua natureza das preocupações do artífice na sua
loja tradicional. Vocês trabalhavam até agora na loja. É pre­
ciso organizar o vosso comportamento e o vosso papel no
grande armazém de múltiplas secções e de actividades tão
diversas.
Não entro aqui no pormenor da tarefa de organização
do educador na complexidade técnica da escola moderna.
Ela precisar-se-á, na prática, pelo próprio trabalho vivo,
quando tivermos preparado o edifício, sortido as prateleiras,
iluminado as bancadas, animado todo o mecanismo.
Aqui temos no entanto, como uma reconfortante ante­
cipação, mas que é apenas antecipação, o que poderia ser,
em definitivo, a vida da nossa escola do trabalho, a atmos­
fera que a impregna ou que ela segrega, o comportamento
possível dos educadores.
Antes de mais é preciso perder o hábito de considerar
que todos os vossos alunos devem, no mesmo momento,
entregar-se à mesma ocupação. Essa é uma concepção auto­
ritária e anti-natural, que não era mais do que um expe­
diente, e cuja fraqueza vocês começam a sentir. O trabalho
individual ou por equipas afins estará diariamente na
base da vossa actividade escolar. A vossa classe poderá
reunir-se de manhã, por alguns momentos, mais ou menos
longos segundo as circunstâncias e o meio, tal como
os camponeses da aldeia se detêm à soleira das portas
ou no cruzamento dos caminhos para discutirem a urgên­
cia e a ordem dos trabalhos do dia, ou para precisar,
num pensamento colectivo, as preocupações principais do
momento. Essa espécie de comunhão espiritual e moral

220
poderia encontrar a sua expressão numa página do vosso
livro de vida — jornal escolar que será impresso, difundido e
permutado com os impressos doutras escolas. Poder-se-á
prever igualmente um plano de trabalho geral, planos de
trabalho individuais, diários, semanais ou mensais. Estas são
preocupações novas que a escola tradicional vos evitava, é
certo. Nós empenhar-nos-emos nelas de futuro, porque a orga­
nização do trabalho se toma, depois da instalação material,
a preocupação mais urgente, e também porque a criança
aprecia essa precisão na ordem em geral, que lhe dita,
apoiando-a, a sua ordem pessoal.
...Depois cada um irá ao seu trabalho...
— Segundo a sua fantasia...?
— De modo nenhum! Segundo as necessidades escolares
e comunitárias, previstas por esses planos de trabalho,
segundo as necessidades íntimas, sob a lei soberana da equipa
ou do grupo. E isso tem muito poucas relações com a fantasia.
De modo que se você entrar numa dessas novas aulas
uma hora depois da entrada dos alunos encontrará toda a
gente a trabalhar, tal como nos campos depois do nascer
do sol. Naturalmente, é preciso despojar-vos também dessa
preocupação escolástica de pensar que uma actividade só
poderá ser útil e desejável se se vir, se se puder medir, minuto
a minuto, o seu andamento e os seus progressos. Aqui, cada
um trabalha ao seu ritmo, numa tarefa mais ou menos
delicada segundo as suas possibilidades. O essencial é que
se trabalhe. Não é ao meio dia ou à noite que devemos
considerar apressadamente a obra realizada. É por vezes ao
fim de uma semana que o aspecto das coisas mudou sob
a mão inteligente do operário...
Um grupo de alunos trabalha na serralharia, um outro
prepara uma construção delicada; raparigas estão ocupadas
nos afazeres domésticos e na cozinha, um pequeno comer­
ciante nos seus cálculos, outros imprimem; um pequeno
artista grava sobre linóleo; um outro pinta um painel; sábios
em embrião, metódicos e concentrados, põem ordem na ofi­
cina de documentação e procuram para aqueles que as soli­
citam as peças necessárias; um futuro mecânico monta ele­
mentos, desmonta, experimenta...

221
Tal como na vida bem compreendida, cada um entre­
ga-se inteiramente ao seu trabalho. No dia em que tiverdes
atingido essa ordem na diversidade, tereis definitivamente
ganho a partida. É para o objectivo que vocês devem tender,
ainda que só possam dirigir-se-lhe por laboriosas etapas,
para que um dia a escola desempenhe o seu papel formativo
no equilíbrio e na alegria.
Ém certas horas antecipadamente fixadas, novas reu­
niões na sala comum permitirão ao educador controlar o
adiantamento dos trabalhos pelo exame dos planos de tra­
balho, e aos alunos mostrar, expôr as suas realizações, fazer
com que o conjunto da classe aproveite das suas investiga­
ções particulares. É este o sentido natural do circuito vital,
que parte das necessidades do grupo, expressas, classificadas,
ordenadas, e, pelo trabalho consciencioso dos seus órgãos
especializados, regressa, generosamente enriquecido, para
oferecer ao grupo o produto do seu esforço.
Aqui temos o aspecto geral. Bastar-vos-á depois — uma
vez realizada a instalação material prévia — organizar mais
em pormenor toda a vossa actividade, tendo em conta ao
mesmo tempo as necessidades novas dos alunos e as obri­
gações de programas, de horários, de serviço social, que limi­
tam necessariamente — o que nem sempre é um mal — a
vossa liberdade de acção.
— Dificilmente vejo, asseguro-lhe, o professor perdido
nesse vaivém, e pergunto-me como é que ele chegará alguma
vez a manter um mínimo de disciplina.
— Porque vocês estão habituados a essa desordem está­
tica que é inércia, silêncio, morte, desconhecem totalmente
as virtudes de uma disciplina inteiramente dinâmica, que é
equilíbrio na acção, harmonia no gesto, comunhão no trabalho.
É certo que a noção de ordem e de disciplina também
mudará de sentido e de forma.
Não mais teremos essa ordem silenciosa que domina
a assembleia dos fiéis na igreja, e que um encontrão num
banco, a entrada ruidosa de um recém-chegado ou um simples
espirro, perturbam profundamente. Teremos a ordem da
fábrica em funcionamento. Entramos no grande vestíbulo
e ficamos primeiro como que aturdidos pelo vaivém dos

222
operários, pelo movimento aparentemente anárquico das
máquinas. É no entanto, tudo está tão bem ordenado nesse
conjunto — por vezes demasiado bem ordenado — que
o operário nem sequer tem possibilidade de parar um ins­
tante para enrolar um cigarro ou conversar com um vizinho;
que uma máquina já nem tem o direito de parar sem romper
imediatamente o equilíbrio geral.
Na medida em que tivermos organizado o trabalho
— sem o submetermos no entanto a alguma cadeia mecâ­
nica — teremos resolvido do mesmo lance os problemas
principais da ordem e da disciplina; e não de uma ordem e
de uma disciplina formais e superficiais, que só se mantêm
por um sistema de sanções, previsto como uma camisa de
forças que pesa tanto àquele que a veste como ao professor
que a impõe.
A ordem permanecerá entre nós; mas a disciplina desa­
parecerá, substituída pela organização da vida e do trabalho
em comum, por essa comunhão manual, tanto física como
espiritual, de seres que se entregam a um trabalho-jogo exal­
tante. Não haverá já uma noção de ordem e de disciplina
concebida separadamente da função trabalho, mas ordem e
equilíbrio no trabalho.
Quando os vossos alunos estiverem apaixonados, absor­
vidos pelos seus trabalhos-jogos, quando a vossa escola for
vibrante como uma colmeia numa manhã de Verão,
terão ainda certamente problemas de organização a resolver;
mas só muito excepcionalmente terão que se ocupar de
disciplina; e só terão que se ocupar dela quando, quer por
erro, quer por impossibilidade material, não satisfizerem as
exigências do nosso trabalho-jogo. Como uma avaria de
electricidade suscita imediatamente na fábrica desordem e
burburinho.
Poderia mesmo aventurar esta definição: A preocupação
da disciplina está na razão inversa da perfeição na orga­
nização do trabalho, do interesse dinâmico e activo dos
alunos. Organize o mais minuciosamente possível o trabalho-
-jogo na sua escola: solucionará do mesmo lance a questão
da disciplina. Se forem constrangidos a intervir para repri­
mir ou sancionar, é porque houve erro ou insuficiência na

223
organização, avaria ou pelo menos falha nos mecanismos.
E saberão assim rapidamente o que há a fazer.
O professor já não será então o vigilante cioso e severo
que está ali apenas para comandar, detectar e sancionar os
erros. Ele será promovido à dignidade de um novo papel que
consiste:
— Em completar incessantemente, individual e coope­
rativamente, e também em colaboração com os seus alunos,
a organização material e a vida comunitária da sua escola;
— Em permitir a cada um entregar-se a um trabalho-
-jogo correspondendo ao máximo às suas tendências e às
suas necessidades vitais;
— Em dirigir eventualmente, em ajudar eficazmente,
sem mau humor nem ralhos inúteis, os pequenos trabalha­
dores em dificuldades;
— Em assegurar em definitivo na sua escola o reinado
soberano e harmonioso do trabalho.

— E ainda que, na prática, os educadores se entusias­


massem por uma tal técnica educativa pelo trabalho; que os
pais compreendessem os seus benefícios; que, por consequên­
cia, a autoridade propendesse para a benevolência, a tolerân­
cia, talvez mesmo o encorajamento de uma tal inovação, já
pensou que haveria sem dúvida um obstáculo mais insupe­
rável ainda: a despesa exagerada, o preço de custo ainda
maior da escola, a abundância e a riqueza que as suas técni­
cas supõem?
— A esses receios, responderei duas coisas: Primeiro,
não está dito que o funcionamento de uma escola pelo traba­
lho, no conjunto, precise de uma despesa muito mais elevada
do que a escola actual. Será antes a forma da despesa que
terá que ser reconsiderada.
Experimente juntar todas as despesas que a escola pelo
livro impõe às famílias, ache o total, para uma escolaridade,
de todos os manuais a substituir todos os anos, de dois em
dois anos, ou pelo menos de vez em quando, porque os
livros se estragam, sujam-se, passam de moda; e os métodos

224
actuais supõem um mínimo de uniformidade... Pense no
ilógico e ineficaz acréscimo de despesas que significa a prá­
tica do manual individual: trinta livros semelhantes de gra­
mática. de leitura, de ciências, de geografia, de história, etc.
Como se cada operário levasse para a fábrica toda a série
de ferramentas que lhe podem ser úteis!...
Com esse mesmo dinheiro, acredite-me, é possível adqui­
rir material para as aulas, livros, fichas, ferramentas. E esse
material de base, perfeitamente estudado, poderá servir durante
anos e anos, adaptando-se ao máximo à diversidade das
técnicas: um material de impressão perfeitamente elaborado
pode servir durante dez ou vinte anos; o mesmo ficheiro
enriquece-se e moderniza-se todos os anos, tal como se ferti­
liza e se valoriza todos os anos o campo inteligentemente
cultivado; um museu, um campo de experiências, são como
que construções definitivas que podem durar tanto tempo
como a escola.
Haverá um primeiro investimento de fundos, como para
o casal que se instala na aldeia. Poder-se-á prever o estrita­
mente indispensável, competindo aos interessados aperfeiçoar,
ano após ano, o seu material de trabalho, desenvolver a sua
comparticipação, fabricar eles próprios, nos momentos de
ócio, alguns dos seus utensílios de trabalho.
Bem vistas as coisas, as despesas de instalação e de
funcionamento da Escola pelo trabalho podem não ser mais
elevadas do que as da escola pelo livro.
O que não quer dizer que nos devamos contentar com
a miséria actual e que não tenhamos maiores ambições para
a nossa escola do povo. Se, como estou convencido, e mesmo
com meios muito reduzidos de início, essa escola pelo traba­
lho mostrar a sua evidente superioridade, se ela satisfizer
melhor autoridades e pais por uma melhor adaptação à
sociedade actual, por uma mais directa e mais inteligente
preparação da criança para os seus deveres de trabalhador,
se se sentir que isso rende, saber-se-á então fazer outros
sacrifícios.
A quinta mais pobre hesita longamente na compra de um
melhor cavalo de trabalho, de um arado aperfeiçoado ou de
uma máquina-ferramenta desejada. Vemos o camponês hesitar,
15
225
informar-se, ir ver numa quinta vizinha a nova ferramenta
no trabalho, contar as suas disponibilidades. Mas, no fim
de contas, se ele acha que a despesa feita lhe valerá um
beneficio garantido, ele consente no sacrifício.
E porque é que o comerciante empreende trabalhos tão
importantes para aumentar e aperfeiçoar um armazém que
no entanto funcionava tão bem como estava? É porque
compreendeu, pela experiência dos armazéns modernos, as
vantagens incontestáveis de uma instalação racional. Também
ele estudou demoradamente os planos, hesitou perante as
ofertas que lhe eram feitas, mediu as suas disponibilidades,
para consentir finalmente um sacrifício que, espera-o, não
será vão.
O administrador, os legisladores, os pais, têm essa
mesma prudência interessada que nós não poderíamos
censurar-lhes. Hesitam perante a compra de um livro ou
de uma peça de material escolar se não estiverem seguros de
que são indispensáveis. No dia em que puderam medir-lhes
as vantagens, em que são persuadidos de que o progresso
a que os convidam lhes valerá apreciáveis benefícios, então
eles saberão também consentir nas despesas necessárias.
A miséria actual da escola, a avareza de que ela é
vítima por parte dos pais e do governo, não é no fundo
mais do que uma lamentável mas justa correspondência das
coisas. É que os educadores não souberam tomar «rendíveis»
as despesas solicitadas, porque o pai de família se lembra
com cepticismo de que a escola, em definitivo, não o ajudou
muito a fazer o seu caminho na vida nem a educar os seus
filhos, e pensa por consequência que tem mais que fazer ao
seu dinheiro do que sustentar manias pelo menos inúteis.
E, efectivamente, não está totalmente errado.
No dia em que a nossa escola pelo trabalho tiver pro­
vado a sua necessidade no processo complexo da vida, ela
ocupará, podem estar certos disso, o lugar eminente que
deve ser o seu. Mas essa dignidade adquire-se também, e
vocês devem conquistá-la pela adaptação ao mesmo tempo
ousada e comedida das vossas técnicas às necessidades do
momento.

226
50. A BONDADE E O AMOR

A BONDADE E O AMOR NÃO SE COMANDAM.


REALIZAM-SE; IMPREGNAM A VIDA. A
EXALTAÇÃO NASCIDA DA NOVA ORGANI-
ZAÇÃO DARÁ AOS EDUCADORES FECUNDAS
RAZÕES PARA PROCURAR, PARA TRABA­
LHAR E PARA LUTAR

— E, para terminar, receio que você se oriente mau


grado seu, para a barbárie gregária dessa actividade meca-
nicista que faz do homem um número no ciclo soberano
do trabalho social, um obreiro sem horizontes num formi­
gueiro exigente, e que perca muito em não contar mais com
as virtudes subtis da bondade e do amor.
— Último mal-entendido talvez a dissipar.
Essa acusação que você arrisca, devolvo-lha eu antes
de mais. São vocês que preparam as crianças para as práticas
bárbaras da sujeição mecânica porque as habituam desde
muito cedo a obedecer a uma regra que lhes é exterior, a
recalcar as suas tendências para sofrer a dura lei comum;
a esquecer a alegria do trabalho para se dobrarem ao tédio
das tarefas sem horizonte que exigem, em compensação,
todas as deformações da excitação e do jogo de cujo male­
fício já lhes falei.
Nós ensinaremos às crianças a serem elas próprias, inte­
gradas é certo no processo social, mas dominadas pela
eminente dignidade daquele que sabe compreender, sentir
e dirigir a actividade essencial da sua vida; a erguer-se pelo
trabalho inteligente à majestade de uma cultura que está
exactamente nos antípodas da sujeição contemporânea. Pelo
trabalho regenerado, restituiremos ao indivíduo, no seio da
sociedade, toda a sua virtude humana, primeira etapa para
uma readaptação inelutável do progresso.
E não falo efectivamente nem de bondade nem de
amor. A bondade realiza-se, e o amor, que não é mais do
que sentimento não traduzido pelos actos não passa de uma
hipócrita caricatura do amor. Querem que lhes diga o que
penso da vossa bondade e do vosso amor pelas crianças?

227
São palavras com as quais os vossos mestres mascaram a
sua impotência, e vos levaram a mascarardes a vossa impo­
tência para realizar na vida quotidiana das vossas aulas a
bondade activa, o amor profundo que, só eles, elevam
os seres.
Procede-se assim com as famílias desses infelizes a quem
o trabalho servil não garante nem uma habitação suficiente
nem sequer uma alimentação confortante. Então, nos seus
pardieiros, no meio dos seus filhos que choram, nessa atmos­
fera infelizmente demasiado comum de fealdade, de enerva-
mento, de incompreensão e de brutalidade, dizem-lhes: «Sêde
bons! Amai-vos!»... Como se bondade e amor se orde­
nassem assim. Resta, naturalmente, o amor instintivo e animal
da mãe pelos seus filhos. Não basta exaltá-lo; é preciso
permitir-lhe que se exprima e que se realize, se não quere­
mos correr o risco de o ver atenuar-se monstruosamente,
e mesmo desaparecer apesar das prédicas.
Dêem à família a segurança material, a paz de um lar
que assegure um mínimo de conforto, a harmonia que nasce
da satisfação das necessidades mais elementares, e verão
então, sem a ajuda das palavras, desabrochar essa bondade
e exaltar-se esse amor que são como que a secreção de um
equilíbrio social benéfico.
O mesmo se passa na escola: desconfie dos regimes,
desconfie das organizações ou das autoridades que vos exor­
tam à bondade e ao amor; desconfiai de todos os sistemas
educativos que são aparentemente baseados nesses senti­
mentos generosos. Há aí hipocrisia consciente ou incons­
ciente daqueles que, por frouxidão ou por cálculo, receiam
aventurar-se na realização humana de condições que permi­
tirão o desabrochar da bondade e do amor.
Não preparo uma pedagogia do amor, mas uma peda­
gogia da harmonia individual e social pela virtude soberana
do trabalho. Não vos digo: amai as vossas crianças, sêde
bons com elas e irradiareis uma humanidade que as
impregnará e as elevará. Não porque eu não esteja persua­
dido dessa irradiação benéfica de algumas personalidades
excepcionalmente ricas e fortes. Não é para elas que eu
falo. Mas eu sei que vocês, que todos os educadores devo­

228
tados e bons que se vos assemelham, são no fundo, ou pelo
menos na origem, animados em relação às crianças de senti­
mentos generosos e benevolentes. Só que, porque vos entre­
gam demasiado cedo à anarquia e à impotência de uma escola
nua, sem espaço, sem vida, por vezes sem luz e sem sol,
amarrados por regulamentos anacrónicos, sentem embotar-se
pouco a pouco em vós essa natureza generosa. Bondade,
amor, tomam-se palavras, separadas, por vós também, das
obrigações anormais do trabalho; o tédio toma-vos; a rotina
floresce logo a seguir. Vocês estão perdidos.
Que, pelas virtudes sugestivas do nosso material, pela
perfeição da nossa organização técnica, pela humanização
da nossa vida comum num meio regenerado pelo trabalho,
nós consigamos pelo contrário atingir, ainda que parcial­
mente, essa harmonia, esse equilíbrio, que reprimem as
tendências más e exaltam o que há de melhor no indivíduo;
que a alegria do esforço, a iluminação do conhecimento, a
ascensão do nosso poder marquem vitoriosamente, ainda que
só por clarões, a nossa natureza sensível, e o nosso compor­
tamento Será assim totalmente transformado: a autoridade
brutal, a incompreensão, a rotina e o tédio darão lugar à
ordem natural, à comunhão no esforço, a esse estado de
colaboração afectuosa que é a materialização da bondade
e do amor.
Compreende agora que. longe de atribuir uma impor­
tância exagerada às virtudes ou às possibilidades do edu­
cador, eu espere o essencial da regeneração que se impõe
de uma melhor organização do trabalho vivo no seio da
comunidade escolar, célula da comunidade social? É nessa
organização que deveis empenhar-vos principalmente; é em
restabelecer a dignidade, a realeza do trabalho que deveis
aplicar-vos. Tudo o resto vos será dado por acréscimo.
Todos os progressos, por mais ínfimos que sejam, feitos
no sentido dessa organização do trabalho serão conquistas
efectivas. É ainda a uma mudança frontal que vos convido.
O que deve dominar, nas vossas preocupações educativas,
não é a matéria a ensinar nem o conteúdo dos livros, nem

229
a técnica formal da aprendizagem, nem as indicações teóricas
sobre os vossos deveres e o vosso comportamento, mas a
preparação dos locais adaptados ao novo trabalho, a orga­
nização metódica das nossas oficinas, o aperfeiçoamento, e
se necessário a fabricação das ferramentas indispensáveis,
o estudo, em pormenor, das condições de colaboração, o
funcionamento com o mínimo de fricções, do mecanismo
assim montado. Veremos brilhar o alvorecer de uma nova
cultura que terá reencontrado as suas fundações inelutáveis
na majestade do trabalho.
— Não se trata já apenas para nós de uma espécie de
reeducação profissional, mas de uma verdadeira reeducação
espiritual, de uma nova concepção do sentido do trabalho e
da vida...
— Talvez baste para isso realizar, por mais modesta­
mente que seja, o impulso inicial, confiando nessa imensa
força de vida que ferve na criança à qual vocês vão dar,
ainda que em alguns momentos apenas do dia, um alimento
sobre o qual os vossos alunos se precipitam como as ove­
lhas no campo cheio do verde fresco do novo trigo saboroso.
Elas próprias vos mostrarão o verdadeiro, o seguro caminho
pedagógico. Vocês podem confiar, acreditem-me, nos seus
impulsos afectivos, na segurança ainda soberana do seu
instinto. É a impulsão nova, resultante dessa conjunção de
tendências que vos orientará e vos encorajará na nova via.
Eu sei que o vosso grande inimigo, que é de resto
nosso inimigo comum, é a monotonia da vossa tarefa, a
ingratidão pelos vossos esforços tão devotados.
Vocês são hoje como o camponês que esgravatasse,
estrumasse, talhasse, regasse, e que não visse nunca os seus
campos prosperarem e produzirem. Que razão quereria que
ele tivesse para trabalhar? Então, desencorajamo-nos, tor­
namo-nos pessimistas, nervosos; a tarefa pesa cada vez mais;
nós próprios nos tomamos uns perigosos elementos de dese­
quilíbrio.
Se, pelo contrário, graças às realizações práticas que
eu recomendo, vocês sentirem que o vosso esforço resulta
finalmente, por pouco que seja, serão então como o mecânico

230
que, depois da limpeza, volta a montar o seu motor e,
ansioso, um pouco emocionado, dá agora a sua primeira
volta de manivela. A faísca saltou; «ele falou...» Isso basta.
Essa veleidade de vida, vai ele retomá-la, excitá-la, cana­
lizá-la e em breve triunfará no poder incansável da obra
que recriou.
Assim farão vocês: desde que sintam a vida a fervilhar,
vocês ficarão à espera da explosão que se prepara; serão
por vosso lado tomados pelo dinamismo da vossa tarefa,
como o artífice orgulhoso da sua obra, como o camponês
que sente, ao contemplar a seara promissora, um engrande­
cimento que é só por si uma razão para viver.
Vocês verão que já não pouparão os vossos esforços.
Os pequenos choques, inevitáveis em qualquer comunidade,
parecer-vos-ão aquilo que são: acidentes que denotam uma
fraqueza de organização, ou um erro de orientação, mas
que não comprometem de modo nenhum o andamento vigo­
roso da vossa escola. E vocês próprios forjarão, nessa atmos­
fera de trabalho, uma filosofia nova, mais próxima da natu­
reza, mais humilde, mais compreensiva, mais indulgente,
menos pretensiosa, sem verbalismo inútil, que será como
que a eclosão misteriosa sob o impulso de uma seiva rica
e fecunda.
A simples perspectiva de uma tal exaltação da vossa vida
de educador não vos anima a abandonar, sem mais demora,
métodos que nunca vos trouxeram mais que sucessos ilu­
sórios e vãos, entre muitos fracassos, preocupações, aborre­
cimentos, e desesperança?
Acusam-vos — e existem algumas razões para isso — de
não haverdes sabido impedir a nossa degenerescência. É
preciso reabilitar-vos e mostrar que sabem ainda reencontrar
o caminho da vida.

Mas já falei bastante, não é Verdade?... Não pretendo


ter dito tudo, mas não se deverá deixar a outros um pouco
da alegria da descoberta? Nem por isso ficaria menos satisfeito
se tivesse conseguido, pelos meus raciocínios de bom senso,

231
canalizar os educadores para os métodos de vida, e se um
dia, para além das vicissitudes que têm a sua responsabi­
lidade no trágico da nossa época, as nossas crianças pudessem
preparar-se para melhor realizarem o seu destino numa

ESCOLA PELA VIDA

PARA A VIDA

PELO TRABALHO!

Vallouise (H.-A.), 1942-1943.

232
ÍNDICE

27. O trabalho-jogo--------------------------------------------------- --------- 7


28. Os jogos-trabalhos ------------------------------------------ ------------- 24
29. Os jogos que satisfazem a necessidade geral e inata
de conquistar a vida --------------------------------------------------- 28
30. E agora alguns jogos -------------------------------------------- --------- 33
31. E finalmente os jogos -------------------------------------------------- 40
32. Jogo-trabalho e instinto -------------------------------------- ----------- 50
33. A distracção não é de modo algum uma neces­
sidade — 57
34. Jogos-trabalhos simbolizados e jogos de ganhar ----------------- 71
35. O jogo-haxixe ------------------------------------ ------------------------ 87
36. Consequências pedagógicas ------------------------------------------ -- 100
37. O trabalho --------------------------------------------------------------- -- 112
38. A educação pelo trabalho --------------------------------------------- -- 130
39. A fraternidade do trabalho ------------------------------------------ 148
40. A criança quer trabalhar tal como quer alimentar-se 155
41. Realizações ---------------------------------------------------------------- 177
42. Planos de locais para a escola-trabalho ----------------------------- -- 188
43. Primeira etapa educativa ---------------------------------------------- -- 191
44. Documentação ---------------------------------------------------------- -- 197
45. Experimentar ------------------------------------------------------------ -- 199
46. Entrar em relação com o meio ambiente ------------------------------ 201
47. Expressão e comunicação artísticas --------------------------------- -- 204
48. Oficinas especializadas ----------------------------------------------- -- 208
49. A disciplina ----------------------------------------- ---------------------- 217
50. A bondade e o amor --------------------------------------------------- -- 227
Este livro acabou de se imprimir
em 15 de Abril de 1974
para a
EDITORIAL PRESENÇA, LDA.
na
Tipografia Nunes, Lda.
Rua D. João IV, 590
Porto
O trabalho-jogo. Os jogos-trabalho. Consequências peda­
gógicas. A fraternidade do trabalho. Primeira etapa educa­
tiva. Documentação. Expressão e comunicação artísticas.
Experimenta. Ateliers especializados.

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