Você está na página 1de 14

Rev. do Museu de Arqueologia e Etnologia, São Paulo, 4: 153-166, 1994.

A ESCULTURA ATUAL DOS MAKONDES DE MOÇAMBIQUE


COMO UMA VISÃO DE MUNDO*

Theophilos Rifiotis**

RIFIOTIS, T. A escultura atual dos Makondes de Moçambique com o uma visão de mundo. Rev. do Museu
de Arqueologia e Etnologia, São Paulo, 4: 153-166, 1994.

RESUMO: Este artigo discute a noção de “arte tradicional” e de “autenticidade”,


correntes no discurso sobre a arte africana, a partir do estudo da arte escultórica dos Wa-
Makonde do norte de Moçambique.
Diferenciando-se da escultura dominante na África Austral, os Wa-Makonde,
atualmente, esculpem segundo dois tipos básicos, chamados ujamaa e shetani, e utilizam
o ébano como matéria-prima. Procura-se mostrar que esta arte, criada nos anos 50-60, é
uma re-elaboração plástica de experiências coletivas e que ela pode ser considerada como
uma visão de mundo na qual estão atualizados valores ancestrais.

UN1TERMOS: Escultura - Makonde - Moçambique - Autenticidade - Arte tradicio­


nal - Visão de mundo.

A chamada arte negro-africana continua muito os nossos conhecimentos sobre a “arte


representando um enigma. O nosso discurso quer tradicional” e, em certa medida, até contribuímos
sempre tomar o passo sobre a experiência dos para que ela se tomasse uma atividade rendosa.
nossos sentidos, e nós continuamos a distinguir A partir dos anos 50, multiplica-se em escala
o belo da arte e o do objeto útil; ainda perma­ mundial a compra e a venda, em significativas
necemos prisioneiros de uma visão primitiva, quantidades, de imitações de formas tradicionais.
simples desta arte, e estamos longe de podermos Trata-se de um estranho comércio de formas
admirar a diversidade que se abre sob a designa­ vazias. De um lado, as formas mortas, sem sentido
ção “africano”. para aqueles que as produzem, pois estão fora do
Contamos com um sem número de trabalhos seu mundo. E de outro, formas esvaziadas por
científicos sobre a “arte negro-africana” em geral aqueles que as compram: elas servem apenas de
e um número ainda maior de estudos tópicos. receptáculo para experiências, digamos, “exó­
Milhares de exposições foram organizadas nas ticas”. Estas experiências, no plano imaginário,
mais variadas partes do mundo. Avançamos em não seriam vivenciadas como aventuras dos
séculos XV e XVI? Afinal, os ditos “viajantes”
de então e o turista de hoje têm em comum pelo
(*) Trabalho apresentado no VII Congresso Latino-americano
menos a busca de marcas de um mundo “pri­
de estudos afro-asiáticos (M éxico, novembro 1992).
(**) Departamento de Ciências Sociais da Universidade mitivo”.
Federal da Paraíba e Centro de Estudos Africanos da No limite desta situação, passa-se a valorizar
Universidade de São Paulo. uma “arte tradicional”, imaculada, ou seja, ainda

153
RIFIOTIS, T. A escultura atual dos Makondes de Moçambique como uma visão de mundo. Rev. do M useu de A rqueologia e
Etnologia, São Paulo, 4: 153-166, 1994.

não “distorcida” pelo mercado. Inicia-se então um simples realidade, o conceito de natureza, de si
perverso processo; paga-se ainda mais por esta mesmo, da sociedade. O próprio ethos de uma
arte, pois compra-se também uma autenticidade. sociedade, nos seus elementos valorativos, morais
No entanto, a ampliação deste mercado não e estéticos, toma-se intelectualmente aceitável,
conhece lim ites, e é in ev itáv el um a nova racionalmente justificado, porque é levado a
saturação. Então não mais compramos, nem representar um tipo de vida implícito no estado
recomendamos, pois percebemos que tudo era de coisas real que a visão de mundo descreve. A
apenas souvenir ... identificação entre o fato e o valor, na arte, dá-se
A partir da “autenticidade” como critério no seu nível mais fundamental, e é através desta
exclusivo, desqualificam os toda e qualquer identificação, que adquire um sentido abrangente
p ro d u ção , sem procu rarm o s con h ecer-lh e aquilo que de outra forma seria apenas real.
realmente as formas. Continuamos vendo nestes Além das dificuldades teóricas, temos que
objetos apenas sinais da presença de um passado, fazer face atualmente a uma apreciação defor­
de uma sociedade, de um modo de vida. Não nos mada da arte tradicional. Primeiro foram os pre­
permitimos um olhar direto sobre as formas, nem conceitos com relação a, digamos, simplicidade
apreciamos outra coisa para além da simples das formas, e agora, com a grande divulgação e
expressão de uma determinada sociedade. circulação desta arte, estamos numa situação
A visão dominante na antropologia faz da arte transitória, como afirma Cl.Geertz:
uma espécie de mecanismo paralelo à sociedade,
cuja função básica seria a m anutenção e a (...) a maior parte das pessoas, eu estou con­
exaltação dos valores sociais. Nos estudos da “arte vencido, vê a escultura africana como um
negro-africana”, mesmo na abordagem multi- Picasso da floresta e ouve a música javanesa
facetada de W. Fagg (Fagg, 1960), predomina o como um Debussy barulhento. (Geertz, 1986:
ponto de vista histórico-social, ou melhor, a 150)
análise dos aspectos anestéticos da arte. No
entanto, a relevância da abordagem estética na Sabemos que esta aproximação justifica-se
sociologia está fundamentada desde o início do historicamente. Desde os primórdios do século
século com os trabalhos pioneiros de Ch. Lallo.2 XX, os caminhos da “arte moderna” cruzaram
Podemos afirmar que a importância da arte com a “arte negro-africana”, onde os maiores
na vida coletiva não reside no plano funcional, e artistas encontraram “novas soluções” que lhes
que a relação entre a arte e a sociedade realiza-se permitiram superar os limites do “classicismo”.
p len am en te no cam po dos in v estim en to s Estas soluções já eram há muito dominadas por
semióticos. Ela pode ser considerada também “artistas desconhecidos” da África Negra, por
como um convite à reflexão, ao aprofundamento exemplo.
da consciência que o homem tem da sua dimensão Podemos afirmar que vivemos num mundo
existencial. Nesta perspectiva, para Cl.Geertz povoado por antigas questões vagando à espera
(Geertz, 1986), uma teoria da arte seria então ao de respostas. Já estamos praticamente no final do
mesmo tempo uma teoria da cultura, e, tratando século e continuamos prisioneiros da mesma
da arte, estaríamos estudando o universo de uma imagem sobre a “arte negro-africana” : ela é
sensibilidade essencialmente coletiva. simples. O reconhecimento da sua importância e
É exatamente na visão de mundo que estão valor não parece ter modificado um fato básico:
condensados os aspectos cognitivos e existenciais para o nosso olhar ela continua sendo uma
de uma dada cultura. Ela é uma espécie de quadro variante de um bloco homogêneo que chamamos
elaborado a partir das coisas como elas são na prim itivo, com ou sem aspas. É im portante
destacar que esta designação valoriza o caráter
primordial desta arte, mas, ao mesmo tempo, este
(1) Usamos aqui a expressão no duplo sentido que ela tem
adjetivo a desqualifica como arte. Excluídas as
em francês: reminiscência, memória e bibelô, objeto ordi­
nário.
considerações estéticas, ela está condenada a um
(2) Uma avaliação detalhada da contribuição de Ch.Lallo único valor: a tradição.
na sociologia da arte é feita por R.Bastide em A r te t société Uma definição datada dos anos 70 sobre
(Bastide, 1977). a “arte tradicional negro-africana” teria ape­

154
RIFIOTIS, T. A escultura atual dos Makondes de Moçambique como uma visão de mundo. Re v. do M useu de A rqueologia e
E tnologia, São Paulo, 4: 153-166, 1994.

nas im portância histórica não fora reveladora Entendemos que a importância atribuída aos
de um a visão ainda presente entre nós: critérios de autenticidade precisa ser revista e que
devemos considerar mais diretamente os objetos
A arte africana autêntica é aquela produzida em questão. Além do mais, não se trata de um
pelo artista tradicional com um objetivo processo recen te, e m uito m enos de uma
tradicional e em conform idade com as “degradação”, como pode ficar subentendido.
formas tradicionais (Cornet, 1975: 54). Nem sempre estamos em presença de reproduções
de formas vazias do mundo tradicional que atendem
A redundância nos termos evidencia o ponto a uma demanda momentânea, apenas exaurindo
fixo estabelecido pelo especialista, autorizado pelo recursos herdados. A atualização de técnicas e
reconhecimento do seu saber a lançar âncora num formas ancestrais pode ser uma demonstração de
determinado momento histórico. Desde a sua uma capacidade criativa. Esta situação é discutida
autoridade ele desafia e decide: etno-arte ou arte através do estudo de um caso concreto, cuja análise
de aeroporto. retomamos (Rifiotis, 1990) a seguir para mostrar
Num plano geral, poderíamos nos perguntar que uma abordagem que dê ênfase aos elementos
qual a importância ou o sentido dos “atestados” estéticos abre a nossa compreensão da arte para a
de identidade ou de autenticidade para os próprios visão de mundo que ela encerra.
escultores? Mas seria inútil, pois as nossas
dúvidas não são as deles. Não atuamos direta­ A escultura Makonde3
mente sobre estas sociedades, e, em nada, ou em
muito pouco, poderíamos modificar a sua situação O nosso estudo incide sobre a arte escultórica
concreta, quer as chamemos de sociedades “sem dos Wa-Makonde, ou simplesmente Makondes,
escrita”, “sem Estado” ou “sem cinética própria”, especificamente aqueles do Planalto de Mueda
ou desqualifiquemos a sua arte. É sobre os com­ (cf. Mapa), no extremo norte de Moçambique.
pradores, nossos potenciais leitores, que agimos. E sta arte p erm an eceu d esc o n h e c id a dos
Ao contrário do que se pensa em geral, o especialistas até meados da década de 50, quando
fenômeno da expansão do mercado para objetos os escultores passaram a criar novas formas e a
de arte, digamos, tradicionais, não é nem obra comercializá-las. Rapidamente ela adquiriu uma
nem e fe ito do tu rism o dos anos 50. Um notoriedade mundial, sendo chamada de “arte
interessante artigo sobre uma coleção adquirida moderna Makonde”. Para compreendermos este
em fins do século XIX pelo Museo Nazionale complexo fenômeno, partimos de alguns dados
Preistorico e Etnográfico Luigi Pigorini de Roma históricos e etnográficos e, a seguir, procuramos
(Bassani, 1979) fornece novos elementos para a analisar.
discussão da arte “autêntica”. O autor deixa claro Deve-se distinguir desde logo os Makondes
o resultado dos seus estudos sob a ironia do seu oriundos do território moçambicano daqueles da
título: 19th-Century Airport Art. Neste parecer Tanzânia. Embora pertençam a uma mesma etnia
técnico, fica demonstrado que uma parte do acervo e estejam próximos geograficamente, às margens
do referido museu foi esculpida sob encomenda do rio Rovuma,4 há diferenças concretas entre
de viajantes europeus do século XIX. estes dois ramos. A partir de estudos lingüísticos
Esta situação é muito mais comum do que pode (Harries, 1940),5 relativos ao lado moçambicano
parecer à primeira vista; a maior parte dos grandes e sobre os rituais de iniciação masculina em
museus contém uma enorme quantidade de objetos território tanzaniano, pode-se avaliar o grau desta
fabricados com muito humor, exclusivamente para
consumo dos europeus (Kerchahce, 1986:28). Por­
tanto, até mesmo com relação à autenticidade das (3) No Congresso da ALADAA foram apresentados vinte e
peças encontradas nos museus, que dariam a cau­ cinco diapositivos sobre os Makondes e sua arte. Este ma­
ção de procedência e de antiguidade, deve-se ter uma terial fotográfico é parcialmente reproduzido aqui.
(4) O curso do rio Rovuma marca a fronteira norte de
grande reserva. Assim, em meio a atestados de au­
Moçambique com a Tanzânia.
tenticidade, identidade, tradição, ou de souvenir, a (5) De fato, o Rev. L.Harries (Harries, 1940) afirma que
“arte negro-africana” estaria condenada a uma esta separação ocorreu em tempo muito recuado, apesar de
existência em permanente sursis. não poder datá-la.

155
RIFIOTIS, T. A escultura atual dos Makondes de Moçambique com o uma visão de mundo. Rev. do M useu de A rqueologia e
Etnologia, São Paulo, 4: 153-166, 1994.

Moçambique
e o Planalto de Mueda
( Area Makonde)

dissimilitude. No âmbito deste trabalho, cabe moçambicano, do que como projeto político
destaque especial ao fato de que a população específico (Dias, 1962: 92).
Makonde da Tanzânia está mais próxima da Nos anos 60, as agências noticiosas referi­
influência islâmica e que tem diminuído a sua am-se à luta pela libertação de Moçambique fa­
atividade escultórica. zendo menção à importante participação dos
Por outro lado, para explicar o silêncio dos Makondes. Nesta mesma época foi enviada ao
especialistas sobre esta arte e a emergência da planalto de Mueda uma equipe de pesquisado­
“arte moderna Makonde”, lembramos a seguir res, chefiada por Jorge Dias, a qual produziu uma
alguns dados históricos. Até meados da década extensa obra etnográfica intitulada Os Macondes
de 50, co n sid erav a-se que havia tradição de Moçambique,6 uma referência básica para os
escultórica significativa apenas na costa oeste do estudiosos até os dias de hoje.
continente. Os especialistas apontavam para uma Neste mesmo momento histórico, pleno de
pretensa falta de tradição escultórica parti­ transformaçães em todas as partes do mundo e
cularmente na África Austral, o que deve ser particularmente no continente africano, a escultura
imputado ao desconhecimento da região e ao fato Makonde tomava-se mundialmente conhecida.
de a Antropologia, seguindo a rota dos interesses D ar-es-Salaam seria a porta pela qual esta
co lo n ia is, ter reg istra d o a e x istên cia dos escultura conquistaria a sua notoriedade. Porém,
Makondes apenas no início deste século. deve-se ter em conta que são os Makondes de
Os primeiros contatos diretos dos Makondes Moçambique os autores desta arte e não aqueles
com a civilização ocidental tiveram lugar com a da Tanzânia. Além do que já foi dito sobre as
penetração do colonialismo português no Planalto diferenças culturais entre os dois ramos, interessa
de Mueda (cf. Mapa), o que ocorreu muito mais
como uma conseqüência da Primeira Guerra
Mundial em continente africano, com a luta contra (6) Trata-se de quatro volumes publicados, a partir de 1962,
tropas alemãs no extremo norte do território pela Junta de Investigações de Ultramar em Lisboa.

156
RIFIOTIS, T. A escultura atual dos Makondes de Moçambique como uma visão de mundo. Rev. do M useu de Arqueologia e
Etnologia, São Paulo, 4: 153-166, 1994.

ter em conta que nos anos 50 houve um importante Esta narrativa comporta ainda três grandes
deslocamento populacional na região. movimentos destes ancestrais míticos para a
Com relação ao ramo de Moçambique, o pro­ escolha do local onde serão estabelecidas as
cesso colonial com os trabalhos forçados e os a ld eias e fu n d ad a a so cied ad e M akonde.
impostos geraram um clima de descontentamen­ Notamos desde logo que o ancestral fundador
to e revolta que está na base de um processo mi­ somente atinge o seu estado humano quando
gratório bastante intenso em direção ao então realiza a primeira escultura. Há neste mito uma
Tanganica.7 A maioria destes imigrantes encon­ relação de cópula, de geração de um povo, que
trou trabalho nas plantações de sisal e, posterior­ se realiza através da atividade escultórica.
mente, deslocou-se para os arredores da capital Representando-se como frutos de uma árvore
tanzaniana formando pequenas comunidades. Foi esculpida, os Makondes esculpem o próprio
a partir da criação de novos tipos de escultura corpo. Tradicionalmente, eles escarificam o rosto
originados nestas comunidades e do comércio que e o peito, e os homens também limam os dentes.
ali se estabeleceu que a escultura Makonde di- Este tratamento do corpo representa uma escrita
fundiu-se internacionalmente. da cultura sobre a natureza do corpo.
Na perspectiva aqui adotada faz-se necessário Algumas categorias próprias a este universo e
colocar em relevo a importância desta arte no seu sobre as quais elabora-se um pensamento específico,
próprio sistema cultural. Desde as primeiras uma estética, devem ser discutidas para uma melhor
referências escritas, datadas do início deste século, compreensão desta arte. Em primeiro lugar,
os Makondes de Moçambique aparecem ligados lembremos que os movim entos do escultor
à atividade escultórica. No relato mais antigo que reproduzem os gestos do ancestral fundador e são
temos conhecimento, o etnólogo K.Weule faz-lhes uma forma de manejo, de controle das “forças vitais”
menção como um grupo étnico até então não contidas nas árvores, ntela, em língua Makonde.8
registrado pelos “viajantes” e que, segundo os Poderíamos ainda nos referir à coincidência
seus informantes locais, era um “povo da mata” dos campos semânticos daquilo que distinguimos
que “faz de corpo e alma uma unidade com esta com os termos “bom”, “bem”, “belo” e “verda­
mata” (Weule, 1970: 258). deiro”, realizada na língua Makonde através do
O mito de origem dos Makondes revela o radical - ambone. Esta coincidência, presente em
caráter fundamental da relação que os une com a grande parte das línguas “bantas”, foi interpretada
matéria-prima que dá suporte à sua arte: por T. Obenga (Obenga, 1984) como uma autên­
tica concepção estética. Entendemos que ela
O lugar de origem é chamado Mahuta[?], demonstra a existência de uma visão particular
uma aldeia situada na vertente meridional do do domínio chamado “artístico”, e que precisa ser
planalto não muito longe do Rovuma, onde estudada junto aos próprios escultores para revelar
se encontrava antigamente só árvores pouco a sua real dimensão.
espessas, mas densas. De uma dessas árvo­
res de tronco fino saiu um dia um homem A escultura tradicional
que não se lavava nem se barbeava, além do
mais não comia e bebia pouco. Na madeira Conforme já foi assinalado, a singularidade
de uma árvore da savana, este homem talhou da arte Makonde não reside apenas nas formas
uma estátua e levou-a para sua casa e a colo­ tradicionais, mas sobretudo na criação de novas
cou em pé. Durante à noite, ela se animou, formas, que são o nosso objeto de estudo. As
transformando-se numa mulher. Eles dirigi­ significativas diferenças entre estas form as9
ram-se então para as águas do Rovuma e lá
fizeram suas abluções (Weule, 1970: 259).
(8) Ntela (pl. mitela) representa um princípio ambivalente
de controle de forças naturais, podendo ser utilizado pelo
“curador” ou pelo “feiticeiro”. De um modo geral, este termo
(7) Sobre os dados relativos a este período confrontar a é a designação genérica de árvore.
publicação do Centro de Estudos Africanos da Universidade (9) Para os objetivos deste trabalho apenas salientamos
Eduardo M ondlane intitulada N ão Vamos esqu ecer! alguns aspectos desta arte. Estudos específicos ainda estão
(1983). por ser realizados.

157
RIFIOTIS, T. A escultura atual dos Makondes de Moçambique como uma visão de mundo. Rev. do M useu de A rqueologia e
Etnologia, São Paulo, 4: 153-166, 1994.

exigem que lembremos desde logo os grandes identificado o criador das prim eiras peças
traços da escultura tradicional. criadas em D ar-es-Salaam cujo nome seria
Em p rim eiro lugar, o m aterial predomi­ Roberto Yakobo. Antes de avançar-se sobre
nante é uma madeira leve e macia de cor cla­ os problem as de gênese e evolução deste tipo
ra, aSum uam eira brava. D estacam -se sobre­ de escultura é necessário voltarm os para seus
tudo as m áscaras-elm o cham adas m apiko elementos básicos, e o seu significado na cul­
(sing. lip ik o ) p elo seu ele v a d o n ív e l de tura M akonde.
estilização e variedade de m otivos. M apiko Em primeiro lugar, deve-se notar que o termo
é a designação dada tam bém aos d an çari­ “ujamaa” é de origem swahili e não Makonde,
nos que portam estas m áscaras. A im portân­ como seria de se esperar. A tradução corrente deste
cia destas m áscaras rituais está ligada ao termo é “comunidade”, ou melhor o “sentido de
com plexo ritual da iniciação m asculina cha­ comunidade”.10 Devemos assinalar também que
mado likum bi. nos anos sessenta este termo era utilizado como
Além destas m áscaras, eram esculpidas sinônimo de “comunidade socialista africana” por
figuras “naturalistas” que merecem destaque Julius Nyerere, poeta e líder anti-colonialista. Na
por apresentarem um elevado nível técnico, Tanzânia, as “aldeias ujamaa” eram o eixo do
com grande proporcionalidade e movimento. projeto de reorganização social e econômica do
E la s a p re se n ta m c a ra c te rís tic a s fo rm ais mundo rural.
b a s ta n te d ife re n te s d a q u e la s c o n sid e ra s Em termos de sensação, a experiência visual
típicas desta região (M aquet, 1962), ou seja, - senão táctil - com uma escultura ujamaa
os braços e pernas aparecem destacados do desperta um desejo de “coesão”, e evoca o
tronco principal e apresentam m ovimento. O sentimento de “participação num ideário comum”,
tratam ento dos volumes também é diferente, na “força vital” que liga uma com unidade.
pois a continuidade entre os diferentes planos Segundo um escultor entrevistado por E.Grohs
volum étricos é subvertida. (Grohs, 1989: 149), estas esculturas recebem o
A arte M akonde destaca-se desde a sua qualificativo de dimongo (força, vigor, energia)
m anifestação tradicional. A cham ada “arte em Makonde, e elas seriam chamadas “árvores
moderna”, objeto de nossa reflexão, apresenta- da vida”.
se segundo dois tipos básicos chamados: a) Em termos formais, poderíamos dizer que
ujamaa e b) shetani. Cada um deles tem sua ujamaa é uma escultura do “tronco familiar” (Foto
p ró p ria h is tó ria e re p re s e n ta re a lid a d e s A). O escultor parece querer insistir sobre a forma
diferenciadas. Por esta razão, parece mais originária da matéria-prima que dá suporte à sua
adequado dar-lhes um tratamento específico. obra: o tronco de ébano. Trata-se de uma exaltação
Antes, porém, lembramos que estes dois tipos à densidade do ébano.
de escultura, ujamaa e shetani, são realizados Se procurarmos um sentido que unifique
em ébano africano (Dalbergia M elanoxylon), estas duas idéias, força e “tronco fam iliar”,
uma m adeira rara cujas reservas estão sendo estaremos, nos quer parecer, dentro do campo
rapidam ente esgotadas por falta de reposição. de experiências que ficou conhecido como
Esta madeira, como se sabe, tem uma casca “forças vitais”. Sem pretender reabrir a discussão
de cor clara enquanto o seu núcleo é marrom sobre esta noção, diremos apenas que a pertença
escuro, praticam ente negro, e extremamente ao grupo mergulha o Makonde numa espécie de
denso. Trata-se de uma m atéria-prima difícil co rren te v ital, que se p ro lo n g a desde os
de ser trabalhada, exigindo do escultor um ancestrais fundadores até seus netos. Trata-se de
grande domínio técnico. uma comunidade sem fronteiras, que determina
o seu modo de ser.
Ujamaa

As prim eiras peças deste tipo parecem ter (10) As referências ao termo ujamaa na literatura apontam
apenas para uma única origem: o Ki-Swahili. Notamos, em
sido produzidas apenas em meados dos anos todo caso, que encontramos uma referência etim ológica
60. A etnóloga E.Grohs (Grohs, 1989), numa segundo a qual ujamaa teria uma origem anterior no árabe
p esq u isa ju n to aos esc u lto re s, afirm a ter (Comhaire-Sylvain, 1977:140).

158
RIFIOTIS, T. A escultura atual dos Makondes de Moçambique com o uma visão de mundo. Rev. do M useu de Arqueologia e
Etnologia, São Paulo, 4: 153-166, 1994.

Foto A - Ujamaa, Col. Theophilos Rifiotis e Rita Mendonça.


Foto: Theophilos Rifiotis.

159
RIFIOTIS, T. A escultura atual dos Makondes de Moçambique como uma visão de mundo. Rev. do M useu de A rqueologia e
Etnologia, São Paulo, 4: 153-166, 1994.

Mais do que uma possível metafísica, ujamaa É este espaço privilegiado do social que a
é um modo de estar, de ser no mundo. O trabalho escultura ujamaa, mais do que representar ou
do escultor sobre o bloco de madeira é uma expressar, recria como proposta de experiência aos
experiência concreta destes valores: esculpe-se à nossos sentidos e nos convida à reflexão sobre o
volta do tronco figuras “realistas” entrelaçadas e estar juntos no mundo.
com movimento, todas ligadas entre si e soldadas
ao núcleo axial que é o centro do tronco. Shetani
O bserv an d o aten tam en te este tip o de
escultura, percebe-se que há um eixo central em
Este foi o gênero que mais contribuiu para a
tomo do qual ligam-se as figuras esculpidas. Há
notoriedade da escultura Makonde, e o que mais
também, na parte superior deste eixo, via de regra,
polêmica tem gerado quanto à “qualidade” dos
uma cabeça de mulher ou homem idoso, ou ainda
trabalhos e sua “afinidade”, por assim dizer, com
uma figura de traços pouco definidos, divergindo
as tradições Makondes.
do padrão das demais, provavelmente um ances­
No que se refere à origem da estatuária
tral. Quando se trata de uma mulher, ela aparece
shetani, um conhecido comerciante de Dar-es-
com os atributos da “ grande mãe m ítica” ,
Salaam descreveu-a de um modo bastante
geradora e nutridora. Ujamaa é o mito de origem
interessante (Peera, 1970): um escultor oriundo
experimentado numa forma densa e concreta, uma
do Planalto de Muedá, chamado Samaki, teria
síntese dos ideais sociais. Uma forma para a nos­
procurado a sua loja, em 1953, para oferecer-lhe
talgia das origens.
alguns trabalhos; não tendo interessado o
A presença da figura central nas esculturas
comerciante da primeira vez, ele volta algumas
ujamaa, em tomo da qual gravitam todos os seres
semanas depois com peças muito diferentes. Estas
humanos, denota a existência de forças, digamos,
peças não seguiam nenhum padrão local, ao que
centrípetas, desempenhando um papel compará­
o comerciante atribuiu uma falta de técnica, apesar
vel, enquanto síntese de processos mais amplos,
dos resultados serem plásticam ente m uito
às manifestações rituais de iniciação.
interessantes. Samaki chamava estas escultura de
Naturalmente, esta aproximação deve ser
shetani, os “espíritos”.
entendida com múltiplas reservas, sobretudo em
Comparando-se com as peças produzidas até
se tratando de diferentes mom entos sócio-
meados de 1950, as esculturas shetani apresentam
culturais: processos rituais num caso, e esculturas
significativas transformações. P.Roumeguère num
no outro. Porém, no caso das esculturas, é possível
trabalho que, infelizmente, permanece desconhe­
considerar que a posição central - em termos
cido, mesmo entre os estudiosos da escultura
espaciais - ocupada pela figura do ancestral, possa
Makonde, observou três inversões radicais nestas
ser compreendida como uma força de ligação
esculturas (Roumeguère, 1972): inversão de
entre o natural e o social, dando um sentido a
inspiração, inversão estilística e inversão estética.
situação específica do homem no mundo. Além
Shetani é escultura onírica: sonhar à noite o
disto, deve-se ter em conta que o estilo ujamaa
que será esculpido de dia. “Nós esculpimos os
está fundamentalmente ligado à própria noção de
nossos sonhos”, afirmaram os escultores entrevis­
aldeia que é:
tados por Pierre e Jacqueline Roumeguère11 no
início dos anos 60, em Dar-es-Salaam. A relação
“(...) essencial para a explicação dos
entre esculpir e sonhar, foi evocada também por
processos iniciáticos. (...) De fato, a aldeia
Samaki e por muitos outros escultores, entre eles
se define como símbolo por excelência da
o conhecido, Rashidi bin Mohamed. Este último
transform ação do natural em social do
atravessou o Rovuma quando tinha doze anos e
conjunto da sociedade, o mesmo pressuposto
permaneceu durante cerca de vinte anos nas
básico que se coloca ao nível do individual.
plantações de sisal, até que teve uma revelação
A aldeia é por excelência o grupo social e a
em sonho: ele sonhou que escu lp ia belas
so c ie d a d e , sín te se do m undo n atu ral
transformado onde o indivíduo se encontra
em processo de integração social ótima.” (11) C om u nicação oral da an tropóloga Jacq u elin e
(Leite, 1982: 111). Roumeguère-Eberhardt.

160
RIFIOTIS, T. A escultura dos Makondes de Moçambique com o uma visão de mundo. Rev. do Museu de Arqueologia e
Etnologia, São Paulo, 4: 153-166, 1994.

esculturas em madeira (Kom,1974: 12). Ligando Makondes de Moçambique expressariam altera­


o universo onírico ao trabalho plástico, este tipo ções na sua projeção da Imagem do Corpo através
de escultura, realiza uma re-produção do mundo das esculturas shetani, o que pode ser constatado
exterior com predomínio do mundo interior, do por alguns indicadores morfológicos evidentes:
inconsciente, dos fantasm as, no sentido psi-
canalítico. redução: unidade por simetria dual do corpo,
Shetani é a expressão do movimento, da metamorfose, deslocamento: uma pema no lu­
dança: arte coreográfica, como diria RRoumeguère gar da orelha,
(1972: 87). As formas aeradas, penetradas de deformações: estilização aplicada à representa­
múltiplos vazios produzem movimento, e dão ção do corpo.
dinâmica às figuras “impressionistas”. Do rígido
As deformações, deslocamentos e redução,
das formas tradicionais, descritas por J.Maquet,
quando combinados na escultura, podem levar a
supra, passa-se ao fluido, e a massa compacta do
anatomias delirantes, sem simetria nem continui­
bloco de madeira cede lugar ao aéreo: em algumas
dade, o que seria um estilhaçamento da Imagem
peças é praticamente impossível visualizar a
do Corpo (Foto C). Esta desestruturação seria
porção de tronco que estava na origem da
controlada, pela subordinação à matéria trabalha­
escultura. Emerge das inversões de inspiração e
da, às leis plásticas da forma e pela capacidade
de estilo uma nova concepção estética. Sobre o
de manejo dos instrumentos de trabalho. Em
código domando pelo “expressionismo”, cria-se
outros termos, o processo desestruturante é
um outro “impressionista”. A abstração toma o
equilibrado pela produção, re-estruturante, que
passo sobre o “naturalismo”.
expressa e organiza manifestações inconscientes.
Estas três inversões corresponderiam a uma
Trata-se de uma configuração plástica do
transformação formal e substantiva da própria
mundo inconsciente, dominado pelas formas
concepção de escultura feita sobre o tronco de uma
tradicionais dos “espíritos” da mata. Uma expe­
árvore: a escultura se liberta do bloco originário
riência plástica sobre a solidão e o “inconsciente
(Foto B). O volume e a forma cilíndrica tomam-
coletivo”. O escultor rompe com a densidade do
se invisíveis pela criatividade e domínio técnico
ébano, revelando formas primitivas do seu imagi­
do escultor.
nário, dando forma às forças interiores.
E stas escu ltu ras tam bém descrevem o
processo de transform ação que a sociedade
M akonde estaria vivendo naquele momento Palavras finais
histórico. Sob a opressão colonial, a migração em
direção ao trabalho assalariado nas plantações Este breve ensaio limita-se a percorrer um
inglesas de sisal na Tanzânia, a vivência em meio caminho apenas esboçado, através do estudo
urbano, particularm ente em D ar-es-Salaam , da escultura atual dos Makondes. Procuramos
produziram-se mudanças políticas e culturais que mostrar que a questão da “autenticidade” se
agiram como fatores de desestruturação pessoal. sobrepôs à abordagem estética, lim itando a
E sta s n o v as e x p e riê n c ia s so c ia is te ria m nossa compreensão desta arte. Afinal, estamos
repercutido sobre a vivência pessoal, o sentido olhando um objeto de arte, ou uma marca da
pelo corpo e pela mente, produzindo outras nossa própria nostalgia do passado? Até mesmo
estruturações da Imagem do Corpo.12Assim, os nos museus há peças feitas para os, digamos,
“tu r is ta s ” do sécu lo X IX , co n fo rm e nos
referim os anteriorm ente. A questão, ao ser
(12) Imagem do Corpo é uma noção chave na análise da
arte Makonde realizada por P.Roumeguère. Ela seria funda­ tratada com a devida profundidade, mostra-se
mental para o estudo de todos os comportamentos humanos, ainda mais complexa, pois poderíamos discutir
uma das bases essenciais de nossos processos perceptivos. a autenticidade até mesmo dos objetos recolhidos
Nesta abordagem é particularmente relevante o dinamismo no século XVI, talvez desde os prim eiros
da Tmagem do Corpo: o homem constrói incessantemente
contatos com europeus, conforme mostra W.
novos m odelos de si mesmo, os quais se inscrevem num
esquema plástico que seria integrado a um novo grupo de
Fagg com relação aos trabalhos em marfim
sensações, tendo uma importante função na estruturação da recolhidos pelos portugueses naquela época
personalidade. (Grabum, 1976: 86).

161
RIFIOTIS, T. A escultura atual dos Makondes de Moçambique como uma visão de mundo. Rev. do Museu de A rqueologia e
Etnologia, São Paulo, 4: 153-166, 1994.

Foto B - Shetani, Col. Antonio Rosa Gil Clemente. Foto: Isabel


Alexandre.

Em Moçambique, durante um trabalho de contexto total de sua produção, o que envolve,


campo realizado entre os Makondes, em 1984, além do m undo M akonde, co m p o n en tes
constatamos que havia um grande volume de coloniais e urbanos em que este mundo é
esculturas nas aldeias aguardando escoamento reconstruído, bem como o período de luta contra
para a comercialização, enquanto que no âmbito o colonialism o, e pós-independência. Seria
governamental discutia-se a “decadência” desta mais relevante, então, procurar as pistas desta
arte, como um grave problema, por tratar-se de reconstrução, compondo os diferentes elementos,
símbolo de identidade nacional... Do nosso e não, simplesmente, apontar para uma pretensa
ponto de vista, im porta situar esta arte no volta à “autenticidade pré-colonial”, condenando

162
RDFIOTIS, T. A escultura atiml dos Makondes de Moçambique com o uma visão de mundo. Rev. do M useu de A rqueologia e
E tnologia, São Paulo, 4: 153-166, 1994.

Foto C - Shetani, Col. Antonio Rosa Gil Clemente. Foto: Isabel


Alexandre.

esta arte a abandonar a sua expressão criadora relação à produção voltada para o mercado colo­
face aos complexos jogos colocados pela história. nial, na qual o escultor Makonde sempre conse­
Aliás, neste complexo conjunto de fatores macro- guiu imprimir a sua marca.
sociais e culturais, a influência do universo colo­ A arte Makonde integra o contexto histórico
nial não atuou com o sim ples restrição aos concreto com os imperativos culturais herdados
aspectos originais desta arte. A própria criação do passado, ou seja é obra de síntese, e, por esta
do Museu de Nampula (Província de Nampula, mesma razão, diferente. Devemos olhar mais de
Moçambique) nos anos 50, teve, para P.Soares perto estas esculturas, tendo consciência de que
(1989), um papel significativo na valorização da o colonialismo, o cristianismo missionário e o
arte Makonde; o mesmo se poderia afirmar com turismo não destruíram esta arte secular; eles

163
RIFIOTTS, T. A escultura atual dos Makondes de Moçambique com o uma visão de mundo. Re v. do Museu de Arqueologia e
Etnologia, São Paulo, 4: 153-166, 1994.

aparecem gravados sobre uma tradição ancestral. profissionalização do escultor e o seu afastamento
Por outro lado, há que se reconhecer que em todo do trabalho agrícola, e até um possível “desen-
o continente africano estão sempre sendo geradas raizamento cultural”. Porém, uma pergunta se
novas formas de expressão artística. impõe: não foi neste processo que surgiu a “arte
C om o fenôm eno in te rn a c io n a l, a arte moderna Makonde”? Ora, os escultores Makondes
Makonde foi objeto de exposições desde 1965, foram criadores exatamente neste quadro de
quando foi realizada a prim eira em Nairobi. mudanças. Considerando a arte Makonde como
Seguiram-se exposições nos Estados Unidos da ela se apresenta aos nossos sentidos, talvez
América (1968 e 1971), no Japão (com a par­ possamos compreender as eloqüentes palavras
ticipação de Roberto Yakobo, 1969), Alemanha de P. Roumeguère:
e França em 1971. O Museu Etnográfico de
Zurique adquiriu duas peças shetani em 1970. A
“Fenômeno único na história universal da
conhecida Revista African Arts, da Universidade
arte que será chamado pelos historiadores do
de Los Angeles, publicou em 1970 uma série de
futuro - após a noite obscura da época
artigos sobre a escultura Makonde. Mais recen­
colonial, que parecia colocar fim ao grande
temente, tivemos em 1986 uma exposição no
período h istó rico da arte africana: "O
Palazzo Venezia (Roma), e em 1989 a grande
Renascimento da arte africana." (Roumeguère,
exposição “Art Makondé. Tradition et modemité”
1972: 86).
em Paris. No Brasil, tivemos ocasião de realizar
uma mostra em São Paulo (SP), em 1990, com
mais de trinta peças de colecionadores par­ Assim, a designação geral de airport art
ticulares, e várias exposições em João Pessoa aponta neste caso para um falso dilema, pois
(PB) durante o ano de 1992; mais recentemente, id en tifica-se com a busca de um a m atriz
em 1993, no Museu do Homem do Nordeste originária, recusa o exercício concreto da arte e
(Recife - PE). em definitivo, coloca-se numa posição genérica e
Este significativo reconhecimento particu­ abstrata opondo arte e mercado. Assim, excluindo
larmente junto aos meios artísticos, foi, desde o os aspectos estéticos, nos cercamos de pré-
início, bastante limitado entre os antropólogos. conceitos, limitando a nossa capacidade de
Porém, nós nos perguntamos: por que evocar observação, e não conseguimos alcançar os
prioritariamente o boom do comércio de souve- objetos que pretendíamos compreender.
nirs das últimas décadas, se a própria origem E stes objetos são antes de m ais nada
deste povo está ligada a sua arte? Por que esta investim entos sem ióticos, cuja im portância
arte não deveria entrar no mercado? Será que deixa emerge de uma espécie de “impulso” que leva a
de ser arte neste m om ento? E por que os retirar sentido da experiência existencial e dar-
Makondes não deveriam vender a sua produção, lhe uma form a. P o rtanto, não se trata de
uma vez que esta é a realidade que se lhes interpretar a arte como expressão de outras
apresenta? realidades, mas de interpretar compreender esta
Sabemos que desde os anos 60, no início do atividade simbólica como um todo, ou seja como
processo, esta questão estava colocada, e até o “(...) tentativas de fornecer orientação a um
problema das séries, cópias (Stout, 1966), já organismo que não pode viver num mundo que
ocupava os especialistas. Assim, mesmo neste ele é incapaz de compreender” (Geertz, 1978:
caso concreto, a questão da autenticidade, longe 158).
de ser um problema atual sempre esteve presente, O poder simbólico da arte está justamente
pois, mais do que científica ela é uma visão de na sua abrangência e capacidade de ordenar a
mundo que quer impor seus critérios de busca de experiência social c individual: ela revela um
uma originalidade perdida... determinado ordenamento da realidade que nos
É evidente que o aumento da demanda, a convida a uma reflexão. Assim , o escultor
produção em larga escala, o “modismo” da cópia Makonde de hoje atualiza sua técnica e valores
de certas peças, têm im plicações bastante ancestrais numa visão de mundo, criando formas
importantes na produção, como, por exemplo, a que nos interpelam sem cessar.

164
RIFIOTIS, T. A escultura atual dos Makondes de Moçambique com o uma visão de mundo. Rev. do M useu de Arqueologia e
Etnologia, São Paulo, 4\ 153-166, 1994.

RIFIOTIS, T. Current sculptural art o f the Makonde, Mozambique, as a world-view. Revista do Museu de
Arqueologia e Etnologia, São Paulo, 4: 153-166,1994.

ABSTRACT: In this article we discuss the notions of “traditional art” and “authen­
ticity”, terms currentley used in the context of african arts, based on a study of the Wa-
Makonde, Mozambique.
The Wa-Makonde, after departing from the dominant pattern of Southern african sculp­
tures, have create a unique sculptural art. At present, they produce two basic types of
sculpture, shetani and ujamaa, made from african ebony. We attempt to show that the
Wa-Makonde sculptural art, which appeared in the 50’s/60’s, is a plastic re-elaboration of
collective experiences, and that it can be seen as a world-view in which ancestral values
are update.

UNITERMS: Sculpture - Makonde - Mozambique - Authenticity - Traditional art.

Referências bibliográficas

BASSANI, E. HARRIES, L.
(1979) 19th-Century Airport Art. African Arts, 12 (1940) An Outline of Mawiha Grammar. Bantoe-Studies,
(2): 34-5, 90. 14 (2):91-146.
BASTIDE, R. KERCHAHCE, J.
(1977) A rt et société. Payot, Paris. (1986) Scultura africana. Omaggio a André Malraux.
COMHAIRE-SYLVAIN, S. & J. D e Luca Editore/Am oldo Mondadori Editore,
(1977) Le Nouveau dossier Afrique. Situation et Roma.
p e rsp e c tiv e s d ’un contin en t. M arabout KORN, J.
Université, Verviers. (1974) M odem Makonde Art. Hamlyn, London.
CORNET, J. LEITE, F. R.
(1975) African Art and Authencity. African Arts, 9 (1982) A Questão Ancestral. Notas sobre ancestrais e
(l):5 4 -6 0 , 91. instituições ancestrais em sociedades qfri-
DIAS, J. canas: Ioruba, Agni e Senufo. 2 vol. São Pau­
(1962) Os Macondes de Moçambique v ol. I. Junta de lo, mimeo (Tese de Doutoramento).
Investigações do Ultramar, Lisboa. MAQUET, J.
FAGG, W. (1962) Les civilisations noires: Histoire, techniques,
(1960) The Study o f African Art. Ph. Ottenberg (Ed.) arts, sociétés. Horizons de France. Paris.
Cultures and Societies o f Africa. Random NÃO VAMOS ESQUECER!
House, N ew York. (1983) Boletim Informativo da Oficina de História, 1:
GEERTZ, Cl. 61-97. Centro de Estudos Africanos da Univer­
(1986) Savoir local, savoir global. Les lieux du savoir. sidade Eduardo Mondlane, Maputo.
P.U.F., Paris. OBENGA, T.
GEERTZ, Cl. (1984) Caractéristiques de l ’esthétique bantu. Revue du
(1978) A Interpretação das culturas. Zahar, Rio de CIC1BA, 1:61-97.
Janeiro. PEERA, M.
GRABURN, N. H. H. (1970) A propos. (Resposta a M .Shore-Bos). African
(1976) Ethnie and Tourist arts. Cultural Expressions Arts, 3 (3): 68-70.
from the Fourth World. University o f California RIFIOTIS, T.
Press, Berkeley, Los Angeles, London. (1990) Em tom o da escultura Makonde atual. Revista
GROHS, E. do P atrim ônio H istórico e A rtístic o N a ­
(1 989) Art Makondé Contemporain. Art Makondé. cional. N úm ero E sp ecia l (A C riação do
Tradition et Modernité. Association Française In stitu to In tern acion al da L íngua P ortu­
d ’Action Artistique, Paris: 144-57. guesa): 89-93.

165
RIFIOTIS, T. A escultura atual dos Makondes de Moçambique com o uma visão de mundo. Re v. do M useu de A rqueologia e
Etnologia, São Paulo, 4: 153-166, 1994.

ROUMEGUERE, P. M odernité. A ssociation Française d’Action


(1972) Le Dynamisme projectif de l ’image du corps. Artistique: Paris: 112-43.
Lhermite, J.; Roumeguere, P. (Eds.) L ’image du STOUT, A. J.
corps: de la neurologie à la phénoménologie. (1966) M odem Makonde Sculpture. Kibo Art Gallery
Opiran (?), Paris Publications, Nairobi.
SOARES, P. WEULE, K.
(1989) M eio século de transição numa escola de es­ (1970) N ative Life in East Africa. Negro Universities
cultura africana. A rt Makondé, Tradition et Press, Westport. (Ed. orig. 1908).

Recebido para publicação em 20 de novembro de 1994.

166

Você também pode gostar