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MARIA NA BÍBLIA

Prof. Dr. Isidoro Mazzarolo *

Introdução

Antes de entrar no estudo, reflexão e compreensão de Maria, com a Mãe de Deus, Nossa Mãe
e Nossa Senhora, vamos tentar direcionar nossas inteligências para o lugar da mulher dentro de
um lar: a mulher, a mãe, a esposa. Quais são as funções da mulher no lar e qual é o seu salário
como cozinheira, lavadeira, pedagoga, babá, etc...? É impensável um lar sem uma mulher, como
reza um provérbio italiano:

Una casa senza donna a zè´un feral senza lume!


(Uma casa sem uma mulher é como um lampião sem lamparina).

Maria é a mãe na e para a Igreja e os cristãos são filhos voltados para a mãe (“Mulher eis aí
o teu filho; filho, eis aí a tua mãe” (Jo 19,22). Podemos questionar algumas formas de cultos,
orações e devoções, mas não podemos dizer que ela não é nossa mãe. Falar de Maria é falar
daquela mulher que possui na igreja no Oriente, no Ocidente, no Norte e no Sul do universo em
torno de mil nomes. Ela a Rainha do Céus e também a mulher de Nazaré que experimentou a
maternidade, a diaconia, as agruras de uma mulher humilde e caluniada, mas que soube vencer.
Maria é a mulher mais falada, mais nomeada, mais pintada, esculpida, estilizada, festejada.
O carnaval de 2017, em São Paulo e Manaus, recebeu de escolas de Samba uma homenagem. Ela
nos aproxima do homem e da mulher na história, pois ela é a jovem, a mãe, a esposa, a serva, a
discípula e a diaconisa. Ela também nos aproxima do divino quando contribui para assumir a
humanidade como mãe, depois de devolver seu Filho ao Pai.
A proposta de trabalhar Maria no Novo Testamento parece simples, mas exige bastante
afinco, pois é debruçar-se com muito carinho nos evangelhos de Lucas e de João, buscando
algumas correlações com Marcos e Mateus. Lucas, especialmente nos dois primeiros capítulos,
teria encontrado inspiração em fontes nas tradições judaicas veterotestamentárias, pois poemas
como o Magníficat e o Benedictus não apresentam qualquer vestígio de tradição grega1. Lucas
trabalha mais sobre a LXX do que com textos hebraicos e aramaicos e os molda de acordo com a
sua finalidade. Ele não depende exclusivamente da tradição semita, pois os heróis, as divindades

* Possui doutorado pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro e pós-doutorado pela École Biblique et
Archéologique de Jerusalém. Atualmente é professor da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul.
Contato: mazzarolo.isidoro@gmail.com e www.mazzarolo.pro.br
1 McHUGH, J. La Mère de Jésus dans le Nouveau Testament, p. 50.

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e as narrativas legendárias são também abundantes na literatura grega. Paulo, escrevendo aos
Gálatas disse que “ao chegar a plenitude dos tempos” Deus enviou o seu Filho, nascido de mulher,
sob a lei, para resgatar os que estavam sob a lei (Gl 4,4). Lucas segue um caminho de investigação
sobre o começo dos tempos, nas profecias messiânicas e vai aproximando Jesus dos grandes
personagens.

1 A anunciação

A anunciação é um fato que acontece no âmbito da revelação, da teofania, no inesperado e


do surpreendente. A revelação não é controlada, não pode ser manipulada e nem programada. É
algo que difere do sonho ou da imaginação2. A revelação é sempre gratuita e sempre destinada aos
outros, como bem nos mostra o livro do Apocalipse: “Revelação de Jesus Cristo, que Deus lhe deu
para mostrar aos seus servos as coisas que em breve devem acontecer e que ele, enviando por
intermédio do seu anjo, notificou ao seu servo João” (Rv 1,1).
Maria recebe uma revelação, através do Anjo3, mas essa revelação não é para ela, mas para
a sua missão, para o cumprimento das promessas antigas e que aconteceria na plenitude dos
tempos (Gl 4,4). Ela foi convidada a colaborar com o plano divino de redenção, um plano que
extrapolava o seu imaginário. O Filho seria grande, mas ela não sabia o que ia restar para ela em
tudo isso. Os verdadeiros interessados nisso tudo eram os filhos de Deus imersos no pecado, desde
Adão (Rm 5,12-15).
O Anjo que lhe faz a saudação se chama Gabriel, que tem origem no adjetivo árabe “gybbor”
significa forte, corajoso, audacioso, valoroso4. Com o sufixo “El” que significa Deus, o nome se
encontra apenas duas vezes ‫יאל‬ ֵ֕ ‫( ַּגב ְִר‬Dn 8,16; 9,21). No NT o Anjo Gabriel aparece somente no
evento do anúncio a Maria (Lc 1,19.26). Nessa narrativa ele aparece como o Anjo do anúncio, o
revelador do nascimento5.
O Anjo se apresenta a Maria e lhe diz: χαῖρε6 (imperativo de χαίρω – alegrar-se), portanto,
alegra-te, rejubila, fortalece-te e acrescenta, κεχαριτωμένη (Lc 1,28), um particípio perfeito
passivo de χαριτόω que significa ter recebido graça, ter sido favorecida, portanto: a que foi
agraciada, a que foi favorecida. Esse verbo χαριτόω aparece somente outra vez no NT, em Ef 1,6,
no hino cristológico, onde o autor diz que Deus “nos agraciou no seu Amado”.
A saudação do Anjo Gabriel dizendo a Maria que ela deve alegrar-se porque foi agraciada,
ou, em palavras veterotestamentárias, encontrou graça aos olhos de Deus,7 não significa apenas

2 MAZZAROLO, I. “As Visões: uma hermenêutica do Livro do Apocalipse cc. 4-8”. Nesse artigo discutimos a etimologia
das visões e revelações a fim de distinguir a visão ou revelação, especialmente no contexto bíblico, da fantasia ou da
projeção pessoal que são possibilidades de manipulação.
3 Abdicamos de tratar as questões apologéticas e as brigas infindas entre judeus e cristãos ou pagãos e cristãos sobre
o nascimento virginal e outros conflitos como os de Orígenes contra Celso e mesmo o dogma da Imaculada Conceição
por estarem fora da nossa perspectiva de pesquisa.
4 GESENIUS, W. gibbor.
5 BAUER, W. Gabriél.
6 McHUGH, J. La Mère de Jésus dans le Nuveau Testament, p. 82-84 reporta uma grande discussão sobre a origem da
expressão chaíre. Um grupo de autores busca ver nessa saudação um semitismo como o sentido próximo de shalôm;
outros, no entanto, argumentam ser uma saudação típica nas correspondências clássicas gregas.
7 A expressão “encontrar graça aos olhos de alguém” era o fato de ser bem recebido, acolhido. No caso das mulheres,
era quando elas encontravam graça por seus maridos e esses as respeitavam. O Deuteronômio usa essa expressão no
lado negativo para justificar a ruptura do matrimônio: “Quando um homem tiver tomado uma mulher e consumado

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um bem querer, uma simpatia, mas um plano de compromisso, uma proposta de aliança e parceria.
Deus realiza sua embaixada no universo através de Maria e é nesse contexto que ela encontrou
graça aos olhos de Deus. Essa graça não depende da beleza, mas especialmente da sua alma diáfana
e singela.
Maria é aquela que, na sabedoria e força do Espírito Santo se torna a compromissada que
soube guardar em silêncio e no segredo do coração todos os paradoxos antropológicos,
sociológicos, políticos e religiosos desde a anunciação até o pé da cruz. Ser agraciada não significa
ser preservada de sofrimentos, calúnias, difamações e contradições. Quando os chefes religiosos
e anciãos do povo lançavam maldições e imprecações sobre o Filho, ela não estava imune dos
mesmos sofrimentos (Mc 2,15-17; 3,22-30).
“Alegra-te” tem a força de uma ordem ou um mandato. A alegria não é sinônimo de ausência
de dificuldades, mas a capacidade de gerenciamento dos conflitos sem perder a serenidade. Os
conflitos fazem parte do dia a dia de cada pessoa. Um dia pode ser mais sereno, outro pode ser
mais perturbado, mas nem a serenidade e nem a perturbação são infinitas. Após a saudação, Maria
permanece reticente e o Anjo não espera a reação de Maria e já vai dizendo que é para ela ficar
alegre, não ter receios ou medos, mas conservar a serenidade e alegria em seu coração. A saudação
do anjo é semelhante àquela de Paulo aos Filipenses num ambiente de muito sofrimento,
perseguição e contradição. Nessas circunstâncias a alegria é o remédio para suplantar a tristeza:

4Alegrai-vos sempre no Senhor; outra vez digo: alegrai-vos! 5Seja a vossa moderação
conhecida de todos os homens. Perto está o Senhor. 6Não andeis ansiosos de coisa alguma;
em tudo, porém, sejam conhecidas, diante de Deus, as vossas petições, pela oração e pela
súplica, com ações de graças. 7E a paz de Deus, que excede todo o entendimento, guardará
o vosso coração e a vossa mente em Cristo Jesus (Fl 4,3-7).

A alegria e o sorriso não podem ser simples expressão de leviandade, de ausência de


raciocínio, desafios ou provações, mas a expressão legítima da capacidade de superação. Paulo
conhecia bem a comunidade de Filipos e foi lá que ele teve a primeira prisão decretada por judeus
baderneiros. Também foi em Filipos, quando viu que a situação estava muito complicada que ele
utilizou seu passaporte de cidadão romano para protestar contra as arbitrariedades locais as
quais ultrapassavam os limites sem consultar quem eram os cidadãos que estavam sendo
aprisionados. Paulo era cidadão romano, mas ele precisava recompor-se emocionalmente. Os
filipenses estavam também em uma situação difícil de perseguição e por isso a alegria é sempre
importante como antídoto do tédio e da tristeza: “Alegrai-vos, repito, alegrai-vos no Senhor” (Fl
4,4).

A saudação do anjo “alegra-te, cheia de graça” não foi suficiente para Maria. Ela não
entendeu o que isso significava e começou a raciocinar a respeito dessas palavras. Precisamos
pensar na mulher chamada Maria a qual diante da visão fica perturbada e confusa. Nada é claro à
primeira vista, mas tudo pode ser esclarecido aos poucos.

o matrimônio, mas este, logo depois, não encontra mais graças aos seus olhos, porque viu nela algo de inconveniente,
ele lhe escreverá então uma ata de repúdio e a entregará, deixando-a sair de sua casa em liberdade” (Dt 24,1; cf. Mt
19,7).

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O Senhor está contigo! É muito importante essa garantia, mas ainda assim não eliminava os
possíveis conflitos e perturbações mentais. Não basta saber que Deus estava com ela, era preciso
ter a força e a coragem de esperar que isso fosse se verificando na história, porque é quando todos
os caminhos se fecham e todas as luzes se apagam, que surge a pergunta como a de Jó: “Onde está
a minha esperança” (Jó 17,15)? Ou o desabafo do Salmista: “As minhas lágrimas têm sido o meu
alimento dia e noite, enquanto me questionam continuamente: O teu Deus, onde está” (Sl 42,3)? A
presença do Senhor é constante, mas muitas vezes, as circunstâncias parecem empalidecer essa
certeza.
Não temas, Maria! O temor e o tremor tomam conta de todos os sentimentos e do coração
de Maria. O Anjo usa um imperativo: Μὴ φοβοῦ é um verbo que indica ter medo de algo ou ter
medo de alguém. Maria não pode sentir medo por que não está sozinha, o Senhor está com ela. Os
sentimentos de desconfiança, de ilusão e incertezas estão presentes nesses casos de aparições,
revelações ou visões. Não é fácil discernir de imediato. É preciso dar tempo ao tempo. Muitas
coisas ou fenômenos experienciados em uma época só são decodificados em outra, por isso as
precipitações são sempre ruins. A persistência e a resistência são virtudes necessárias para não
desanimar ou obstruir os projetos de longo prazo. Diante das dúvidas ou incertezas não devem
ser tomadas decisões radicais, é sempre aconselhável esperar, estudar e discernir.
Encontraste graça junto de Deus! Encontrar graça era o desejo de todo o escravo diante do
seu senhor ou da escrava diante de sua patroa. Um escravo dificilmente mudava sua condição.
Uma exceção à regra foi Onésimo emancipado por Paulo e devolvido como livre ao seu antigo
possuidor, Filemon. A graça de um superior a um súbdito era também muito rara e difícil, pois
libertar e promover, muitas vezes, significava perder uma força de trabalho, um capital investido
na compra ou um lucro com a possível venda. Maria não era escrava, mas tinha encontrado graça
aos olhos de Deus. Ela estava sendo agraciada de modo especial por causa da maternidade de
Jesus, privilegiada por conceber em seu ventre o Lógos, o Filho de Deus.
Conceberás e darás à luz um menino e o chamarás Jesus! Jesus vem do aramaico Yeshou´a que
significa “Deus salva”, porque ele salvará o povo dos seus pecados (Mt 1,21). O nome quase
homônimo é Josué. O anúncio do anjo é do estilo messiânico, quando os profetas anunciam a vinda
do Messias para Israel (Is 12,6; Sf 3,14-15; Zc 9,9), mas qual pode ser a compreensão de Maria?
Maria, a jovem de Nazaré, está muito longe do contexto messiânico e por isso ela pergunta: como
se fará isto? Engravidar sem ser casada?8 O Anjo assegura que ela será mãe, mas ela não entende
nada, pois estava prometida e comprometida com um jovem chamado José. As promessas de
casamento antigas eram estabelecidas muito cedo, quando os comprometidos ainda eram
crianças (Ct 8,8). Quem fazia essas alianças eram os pais de família e buscavam sempre, dentro do
mesmo clã e, algumas exceções aconteciam fora, mas o critério era, via de regra, econômico. Os
pais jamais admitiam que a filha casasse com um rapaz pobre ou de família com pouco prestígio.
Os costumes para escolher padrinhos ou parceiros é muito antigo. Casar com um mais pobre é

8 KLEIN, I. The Code of Maimonides, Book Four, The Book of Women. Essa obra é muito interessante ao fazer uma
investigação muito detalhada em torno do ambiente que envolvia a mulher na sociedade judaica antiga. À mulher
jamais cabia qualquer recusa e sua missão estava voltada para atender os direitos do homem. Sua vida deveria ser
íntegra, correta, obediente e silenciosa. Qualquer dúvida que pairasse em torno de sua conduta, os castigos seriam
muito severos. Ao homem cabia procriar em toda a sua fase da vida com potencialidade e à mulher cabia
corresponder aos desejos do seu possuidor.

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optar pelo sofrimento e pelas incertezas econômicas. Maria estava prometida a José, mas ainda
não casada (Lc 1,27).
Ele será filho do Altíssimo e o Senhor lhe dará o trono de Davi, seu pai (Lc 1,32). Essa profecia
está fundamentada nas promessas e motivações antigas, como garantias da continuidade do povo
da promessa (Jl 2,21-27; Is 7,14; 2Sm 7,12-16)9. Maria, ao gerar Jesus, doa a Israel seu Salvador e
seu Senhor (Lc 2,11) e nesse dia se estabeleceria a salvação para o resto do povo fiel, para o qual,
segundo o desígnio de Deus, deveria ser levada a mensagem de paz e reconciliação até os confins
da terra10. Uma das profecias mais estilizadas é a de Miqueias. O texto pode ter sido retocado no
pós-exílio, mas permanece na tradição como um belo texto messiânico:

2E tu, Belém-Éfrata11, pequena demais entre os clãs de Judá, de ti sairá para mim aquele
que há de reinar em Israel, e cujas origens são desde os tempos antigos, desde os dias da
eternidade. 3Portanto, ele os abandonará até o tempo em que a que está em dores tiver
dado à luz; então, o restante de seus irmãos voltará aos filhos de Israel. 4Ele se manterá
firme e apascentará o povo na força de Yahweh, na majestade do nome do seu Deus; e eles
habitarão seguros, porque, agora, será ele engrandecido até aos confins da terra. 5Este
será a nossa paz (Mq 5,2-5).

A nobreza do filho pode orgulhar a mãe, mas ela ainda era a mulher de Nazaré e sua cabeça
se embotava quando as autoridades de Israel contestavam o Filho:

41Murmuravam, pois, os judeus, porque dissera: Eu sou o pão que desceu do céu. 42E
diziam: Não é este Jesus, o filho de José? Acaso, não lhe conhecemos o pai e a mãe? Como,
pois, agora diz: desci do céu (Jo 6,41-42)?

O anúncio do Anjo foi uma teofania12, uma inspiração, revelação e momento de graça plena,
mas não eliminou os paradoxos da realidade. A realidade não absorve os fenômenos de modo
espontâneo e imediato. A primeira reação é a desconfiança, a dúvida e a rejeição, como aconteceu
com Paulo em Damasco:

18Imediatamente, lhe caíram dos olhos como que umas escamas, e tornou a ver. A seguir,
levantou-se e foi batizado. 19E, depois de ter-se alimentado, sentiu-se fortalecido. Então,
permaneceu em Damasco alguns dias com os discípulos. 20E logo pregava, nas sinagogas,
a Jesus, afirmando que este é o Filho de Deus. 21Ora, todos os que o ouviam estavam
atônitos e diziam: Não é este o que exterminava em Jerusalém os que invocavam o nome
de Jesus e para aqui veio precisamente com o fim de os levar amarrados aos principais
sacerdotes? 22Saulo, porém, mais e mais se fortalecia e confundia os judeus que moravam
em Damasco, demonstrando que Jesus é o Cristo. 23Decorridos muitos dias, os judeus
deliberaram entre si tirar-lhe a vida; 24porém o plano deles chegou ao conhecimento de
Saulo. Dia e noite guardavam também as portas, para o matarem. 25Mas os seus discípulos
tomaram-no de noite e, colocando-o num cesto, desceram-no pela muralha (At 9,18-25).

A experiência de Paulo é semelhante à de Maria: de um lado está a manifestação e


convocação para a missão com uma promessa e do outro está satanás impregnado nas instituições

9 ERNST, J. Das Evangelium nach Lukas, p. 65.


10 McHUGH, J. La Mère de Jésus dans le Noveau Testament, p. 125.
11 Éfrata, “a fecunda”, é colocada aqui em relação com o nascimento do Messias, mas designou, incialmente, um clã
aliado a Caleb (1Cr 2,19.24.50) e instalado na região de Belém (1Sm 17,12; Rt 1,2). Miqueias pensa na antiga dinastia
de Davi (1Sm 17) e os evangelistas vincularão Belém como o lugar do nascimento do Messias (cf. Bíblia de Jerusalém,
nota “e” referente a Mq 5,1).
12 ERNST, J. Das Evangelium nach Lukas, p. 65, acredita na influência dos relatos míticos do helenismo e servem para
diferentes motivações. No quadro dos mitos gregos era comum encontrar narrativas divinas que envolviam a
theogamia.

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conservadoras, detentoras, pretendentes a serem vitalícias no poder cósmico e no conhecimento


das razões divinas. A autocracia das autoridades acaba por obstruir a grande maioria dos projetos
de reformas, de atualização e de hermenêuticas (cf. Mt 5-7).
Como vai acontecer isso, se eu ainda não casei? Maria fica intrigada e compreende que isso
podia leva-la à pena capital. As mulheres pagavam a conta, mesmo sendo inocentes, pois Eva foi a
pecadora original, na tradição bíblica veterotestamentária e com ela, todas as mulheres são
símbolo da porta para o pecado (Gn 3,12; 2Cor 11,3). Paulo, no entanto, bom conhecedor dos
princípios sexistas judaicos, busca no helenismo o princípio racional da estrutura social e coloca
Adão e não Eva como responsável pelo pecado (Rm 5,12-19). Mas toda a tradição semita
moralizadora colocava o acento na culpabilidade da mulher: ela é ciumenta, usurpadora, cortesã,
bailarina, a que leva o homem à perdição (Sir 9,1-9; 25,13-26). Feliz o homem que encontra uma
mulher perfeita (Sir 26,2), mas não é dito o contrário. Por isso, Maria ficou tensa e perturbada
diante do que lhe foi anunciado, mesmo sendo uma visão privilegiada. Se eu for mãe fora do
casamento o risco de morte é iminente. Por isso ela pergunta: como acontecerá isso? A visão e a
profecia eram maravilhosas, mas a realidade é totalmente adversa. Essa era a situação de Maria
no contexto da anunciação.
Maria não podia fugir do seu ambiente, das condições de uma jovem judia e que estava sob
a tutela do pai. Na legislação israelita, a filha não casada está sob a dependência do pai e a esposa
sob a dependência do marido. A mulher chamava o marido de “ba´al” que é a mesma expressão
para designar senhor, proprietário ou dono de alguma coisa, como casa, propriedade ou animal
(Ex 20,17). A família do marido pagava um valor estipulado e acordado entre ambas. Esse
pagamento era chamado de dote (Gn 30,20; 34,12; Ex 22,17; 1Sm 18,25) e a distinção entre
proprietário e marido era feita apenas a partir do objeto possuído, no caso da mulher13. A mulher
servia muito como fonte de renda para a família.
Maria, mesmo jovem e encantada pela visão, assume a posição da jovem com consciência,
maturidade e prudência diante das circunstâncias em que se encontra. Ela está prometida em
casamento a José e agora vem outra proposta que ela não sabe como assimilar, por isso, pergunta
como se fará isso? Quem vai resolver a minha situação?
O Anjo assegura que o filho que dela nasceria seria grande, chamado Filho do Altíssimo e
Deus lhe daria o trono de Davi (Lc 1,32), mas isso soava muito remoto e distante. A menina de
Nazaré pensava na própria situação de dependente e prometida em casamento e isso era muito
diferente de ser mãe do Filho do Altíssimo! Mas o Anjo continua prometendo e diz:

O Espírito te cobrirá com a sua sombra (Lc 1,35)

O Espírito Santo fortalece a pessoa que recebe a missão, mas não limpa o caminho pela
frente, não tira os espinhos e não rompe as muralhas que circundam os corações fechados. O
evangelho de Lucas mostra como agem as pessoas que são investidas pelo Espírito Santo e o
evangelho de João nos apresenta as funções do Espírito Santo.
Lucas mostra como o Espírito Santo age em Isabel, João Batista, Maria, Simeão, Ana e outros
e, de modo análogo no livro dos Atos, nos primeiros cristãos. João, nos seus cinco discursos

13 MAZZAROLO, I. O Apóstolo Paulo, o grego, o judeu e o cristão, p. 95.

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Maria na Bíblia 35

pneumatológicos (Jo 14,16-17; 14,26; 15,25-26; 16,4b-11; 16,12-15) mostra as funções do


Paráclêtos14.
Maria quer uma prova de que não era ilusão: o Anjo assegura que Deus fez maravilhas onde
tudo era desolação e afirma que Isabel, que todos acreditavam ser estéril, estava no sexto mês de
gravidez. Maria busca luz nas suas angústias e este era algo mais concreto como sinal de que não
estava sendo iludida ou que tudo não passasse de ficção. O anjo lhe dá uma prova: todos sabiam
que a sua parente Isabel estava na terceira idade e não tinha tido filhos por ser estéril.
Convencida pelo Anjo de que todas as garantias estavam dadas, ela exclama: Ἰδού, ἡ δούλη
κυρίου (Lc 1,38) – “Eis a serva do Senhor”! O termo doulê pode significar escrava, mas não nesse
contexto. O verbo δουλεύω tem um sentido primário que é escravizar, mas em muitos casos,
quando essa “submissão” é uma opção livre, ele significa servir. A escravidão no contexto cultual,
do serviço a Deus, é uma diaconia de bom gosto15. Desta forma, não podemos traduzir o lexema
δούλη, por escrava, mas devemos traduzir como serva, diaconisa. Aqui Maria conserva toda sua
autonomia, sabedoria e liberdade e é de modo livre que ela assume esse compromisso da sua
resposta positiva tendo consciência do seu sim.
Depois de tantas inquietações, Maria conclui: Se isso é verdade, então aconteça comigo
conforme disseste (Lc 1,38). O verbo γίνομαι significa acontecer, suceder, tornar-se. É a partir de
uma prova mais concreta que Maria responde positivamente e, poderíamos traduzir como, “seja
em mim conforme disseste”!
Maria faz uma profissão de fé, mesmo sem entender todas as consequências que poderiam
advir. Eu creio na tua palavra, acredito no que disseste, seja isso mesmo. Eu estou aqui para o que
der e vier. Essa profissão de fé pode ser encarada como uma ingenuidade, interpretando o desejo
ambicioso ou expressão de um orgulho próprio, mas não é isso, absolutamente. Esse “faça-se” é a
expressão máxima da obediência, da fidelidade e do voto de diaconia ao Espírito Santo. Esse é o
sentido real e profundo do “faça-se conforme disseste”, isto é, não irei opor-me ao projeto.

2 A visita a Isabel

A visita de Maria a Isabel revela toda a antropologia da obra lucana. Lucas, na sua narrativa
privilegia a graça, a misericórdia, a compaixão e o amor. Lucas, espelhado em Paulo, segue as
pegadas de Jesus de modo indelével e mostra a compaixão do pastor pelas ovelhas perdidas, pelas
desmilinguidas e pelas separadas do rebanho. É a pedagogia da inclusão, é a embaixada de Deus
junto aos pagãos, pobres, mulheres e doentes.
Maria tem uma motivação especial ao sair de Nazaré e dirigir-se a Aim Karém. Ela precisa
ter certeza de que a visão não foi uma ilusão. Por outro lado, ela quer conferir se Deus realmente
está com os preteridos das autoridades e da cultura, da forma que o Anjo lhe assegurou.
A visita de Maria à sua prima Isabel se configura num dos quadros mais belos da graça, da
misericórdia e da igreja em direção aos povos distantes. Isabel é a mãe do precursor, mas ela é
menor do que a mãe do Salvador. Nessa visita é a maior que se dirige à casa da menor. Maria é

14 MAZZAROLO, I. Lucas em João, uma nova leitura dos evangelhos, p. 221-57.


15 BAUER, W. douleuô.

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portadora do Espírito Santo a Isabel. Algo semelhante acontece com os meninos: Jesus e João. A
viagem missionária – a diaconia de Maria a Isabel; a embaixada de Jesus a João. Ela é a mãe do
Immanuel – Deus com nós (Is 7,14) e vai visitar Isabel, numa espécie de embaixada da teofania.
Acontece a transformação de Isabel pela saudação de Maria. Isabel reconhece a mãe do seu Senhor
e fica confusa com tamanha graça.
O Espírito Santo se manifesta a Isabel no encontro, no abraço, no beijo de Maria. Nessa
viagem de Nazaré a Aim Karém (aprox. 165 km.), Maria é missionária, é evangelizadora, é
anunciadora da graça, da misericórdia e da compaixão. Essa é a ação missionária de Paulo e dos
seus companheiros. Maria e Paulo já aplicaram no seu método pastoral a Evangelii Gaudim (alegria
do Evangelho), de uma igreja em saída, para fora, para os outros...16
E Maria ouve de Isabel uma exclamação exageradamente surpreendente: ἀνεφώνησεν
κραυγῇ μεγάλη (lit. gritou alto e grande – Lc 1,42), ou seja, para que ouvissem mesmo os que
estavam longe. Isabel fica surpresa e assustada com tamanha graça da parte de Deus através de
Maria. O grito de Isabel mistura júbilo, alegria e profecia (εὐλογημένη σὺ ἐν γυναιξὶν καὶ
εὐλογημένος ὁ καρπὸς τῆς κοιλίας σου – Lc 1,42): bendita és tu entre as mulheres e bendito é o
fruto do teu ventre! O verbo εὐλογέω significa falar bem, elogiar, reconhecer algo de prodigioso
que causa alegria. Isabel faz uma profecia sobre a mãe e outra sobre o fruto do seu ventre.
Isabel ainda acrescenta outra bem-aventurança: μακαρία ἡ πιστεύσασα ὅτι ἔσται τελείωσις
τοῖς λελαλημένοις αὐτῇ παρὰ κυρίου (Lc 1,45): Bem-aventurada a que acreditou porque serão
aperfeiçoadas (cumpridas) as palavras que lhe foram ditas da parte do Senhor! O substantivo
τελείωσις, que é um hápax no NT, significa perfeição, cumprimento ou plenitude. Na profecia de
Isabel, tudo o que o Anjo havia anunciado, como missão a Maria e vindo da parte de Deus,
encontraria em Maria a plenitude, mas essa plenitude viria através do crer. Maria acreditou na
palavra do Anjo e nela a palavra se torna vida.

3 O cântico de Maria

A narrativa lucana nos coloca na sequência dos fatos e nos convida a interpretar os
sentimentos de Maria no horizonte dos dois episódios anteriores: a anunciação e o encontro com
Isabel. O Cântico de Maria, conhecido como o Magnificat pode ser considerado uma memória
histórica dos sinais de Deus como libertador. Na tradição veterotestamentária temos o cântico de
Débora (Jz 5,1ss), de Judite (Jt 16,1-17, de Ana, a mãe de Samuel (1Sam 2,1-10). No NT o cântico
de Maria (Lc 1,46-55) e de Zacarias (Lc 1,68-76)17.
Maria interpreta a história e contextualiza o passado para o seu momento existencial. O
êxodo judaico deve ser visto como uma libertação sociopolítica. Maria, no seu poema de libertação
definitiva proclama a verdadeira libertação, não mais numa configuração meramente
sociopolítica, mas uma libertação interna ou íntima que é conversão do pecado, a partir de Jesus.
O agente principal de toda a libertação é Deus e depois Jesus Cristo. É ele que age, que vê, que faz.
Toda a história humana é um processo dialético de tensão entre a ansiedade pela libertação ou a

16 O documento Evangelii Gaudim busca nos testemunhos primitivos do cristianismo as fontes para a crítica à
estagnação da igreja e do clero nos dias atuais.
17 MAZZAROLO, I. Lucas, a antropologia da Salvação, p. 57-59.

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dor da escravidão. A proposta de Deus é libertadora (Gl 5,1). Jesus assegura: “Conhecereis a
verdade e a verdade vos libertará” (Jo 8,32). Não existe nenhuma tradição bíblica autêntica que
não seja libertadora. A questão fundamental é saber discernir:
Libertar de onde para onde?
Libertar de quê para quê?
Uma libertação de situações externas, obstáculos, conflitos...
Uma libertação interna que desate as correntes do pecado, do mal, da autoescravidão, que
seja a circuncisão do coração e dos ouvidos (Jr 4,4; 6,10).
Maria, depois de ouvir as duas profecias de sua prima Isabel, exclamou com a alma repleta
do Espírito Santo: Μεγαλύνει ἡ ψυχή μου τὸν κύριον (Lc 1,46): A minha alma engrandece, declara
grande o Senhor. O verbo μεγαλύνω expressa a ação de declarar grande, confessar ou promulgar
algo grande, exaltar, após seu encontro com Isabel. Maria tem suas dúvidas diminuídas e suas
certezas aumentadas. Ela rejubila no seu espírito porque reconhece a grandeza do Senhor. Isabel,
que nada sabia da anunciação do Anjo, declarou o que ela precisava ouvir: Deus estava na sua vida,
no seu caminho e missão. Maria poderia dizer como Jeremias: Antes mesmo que saísses do ventre
de tua mãe, eu te conheci, eu te constitui e eu te consagrei para profeta das nações (Jr 1,5). Ou,
como também reconheceu o apóstolo Paulo: “Quando, porém, aquele que me separou desde o seio
materno e me chamou por sua graça, houve por bem revelar em mim o seu Filho para que eu o
evangelizasse entre os gentios” (Gl 1,15). Maria se expressa na ótica profética, sapiencial e
discipular. O Anjo lhe assegurou: “O Senhor está contigo” (Lc 1,28)! Ela, agora, reconhece e
engrandece os feitos do Senhor, antes mesmo dela ter ampla consciência da realidade.
A grandeza de Deus é reconhecida e manifesta na humildade da serva – ταπείνωσιν τῆς
δούλης αὐτοῦ. Nesse caso, Deus olhou para a humilhação de sua serva. A grandeza do Senhor e a
humildade da serva não estabelecem parâmetros excludentes, mas includentes, integrantes da
mesma unidade quântica e espiritual. Maria, como serva faz parte do corpo místico de Cristo por
ser célula integrante do mesmo corpo e da mesma natureza humana e divina. Assim como a cabeça
e os pés formam o corpo, o Senhor e Maria formam uma unidade redentora para a humanidade.
Maria é a serva ou a diaconiza, mas não é a escrava porque ela aceita e assume o projeto de Deus
de modo livre, responsável e consciente. Ela foi convocada a colaborar, mas conservando toda a
sua liberdade.
Se a mãe se humilha e se coloca como serva, muito mais o Filho estabelece a relação da
humildade para ter comunhão com todos os que estão no universo da humilhação. Paulo afirma
que Jesus se humilhou (ἐταπείνωσεν) tornando-se obediente até a morte. Jesus, na sua
humilhação, exerce a diaconia ao projeto do Pai. Assim Maria, na sua diaconia engrandece Aquele
que a consagrou. O nome dele é Santo e a sua misericórdia se prolonga de geração em geração para
os que o respeitam (Lc 1,49-50). A ἔλεος é o sentimento mais profundo do coração terno de Deus.
Já o profeta Oséias clamava ao povo de seu tempo (VIII século a.C.) de que Deus não queria
sacrifícios, mas a misericórdia e a compaixão (Os 6,6; cf. Mt 12,7).
Nessa sua misericórdia, Deus depôs do trono os poderosos e exaltou os humildes (Lc 1,52).
Novamente aparece uma tensão entre os elementos poderoso (δυνάστης) e humilde (ταπεινός). O

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verbo usado por Lucas significa colocar para baixo, tirar de cima e por embaixo ou tirar do
pedestal, destronar. Quem é que está nos tronos?
Essa pedagogia da misericórdia é um cumprimento de todas as promessas e profecias, desde
a vocação de Abraão e extensiva à sua descendência. Maria é da descendência abraâmica, mas uma
descendência que não depende da raça ou do sangue, mas da fé. Paulo, na carta aos Romanos,
passa por Moisés tangencialmente, e se fixa em Abraão, o qual, como pagão e incircunciso foi
convocado por Deus para formar um novo povo (Rm 4,1-25). É na perspectiva da fé que Isabel
proclama Maria bem-aventurada, pois ela acreditou (Lc 1,45).
Lucas nos mostra, no cântico de libertação de Maria, a pedagogia de Deus. Deus não se situa
no limite entre opressores e oprimidos, mas está muito além, muito acima e vê o íntimo do
coração. Nesse quadro do Magnificat está o projeto verdadeiro da libertação verdadeira e real. As
mulheres, nesse contexto, fazem parte direta e ativa no projeto de Deus de uma vida nova para a
humanidade. Longe de todos os preconceitos arcaicos e caducos das culturas antigas, as mulheres
são parte integrante do amor, da misericórdia, da libertação e do discipulado. Não era muito fácil
a uma mulher encontrar graça aos olhos de um homem, mas Maria encontrou graça aos olhos de
Deus (Lc 1,30)18.

4 Caná Jo 2,1-12

No relato joanino, encontramos um episódio que se passa no início da vida missionária de


Jesus. Era o terceiro dia quando houve um casamento em Caná da Galileia. O terceiro dia em
relação à sua chegada à Galileia e o encontro com Filipe e Natanael. O número três também é muito
importante para a tradição joanina por ser um número perfeito.
João afirma que quando Jesus e seus discípulos foram convidados, a mãe estava lá. No
aspecto sociológico e antropológico, Maria está lá onde o Filho vai chegar, ela está presente nos
lugares e ambientes onde os filhos precisam19.
Imaginemos uma festa familiar qualquer, as mulheres precisam antecipar muita coisa e
encaminhar trabalhos alguns dias antes do evento. Maria deveria ter ido antes para ajudar nos
preparativos. Num determinado momento da festa, pois o evangelista não nos indica com
precisão, faltou vinho. O responsável por toda a festa não estava atento às coisas principais da
mesma, especialmente do vinho.
Maria revela ter consciência de tudo o que se passava no ambiente da festa, mais que o
próprio mestre-sala, mas ao perceber a complicação e o desfecho triste da festa, ao constatar que
o vinho acabara (ὑστερήσαντος οἴνου – Jo 2,3), ela não se dirigiu ao mestre-sala, mas ao Filho,
dizendo-lhe: Eles não têm mais vinho. Maria se preocupa e se intromete nos assuntos dos outros,
pois são eles que não têm mais vinho. Há uma distância significativa entre Jesus, a mãe e os
discípulos com eles. O chefe de cerimônias parece não estar ligado na festa. Maria e o Filho eram

18 MAZZAROLO, I. Lucas, a Antropologia da Salvação, p. 60-61.


19 Num contexto hermenêutico, a mãe estava lá, pode ser entendido como as múltiplas formas em que Maria é
apresentada na História do Cristianismo. Maria está onde o povo não tem comida, onde não tem festa, onde não tem
paz, onde não tem saúde ou em outras incontáveis situações de necessidade. São os milhares de nomes e invocações
de Maria que mostram como ela está presente na vida dos seus filhos.

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convidados e nada tinham a ver com a organização e o embalo da festa. Se o vinho fosse bom, ruim,
suficiente ou escasso era uma questão para o anfitrião. O vinho não era um assunto para mulheres,
mas para os homens. Entrar nesse particular era meter-se em terreno alheio. O vinho era muito
escasso na Palestina e por isso uma bebida símbolo da alegria e da festa. Acabando o vinho,
acabava a alegria e a festa.
O organizador da festa e os convidados estão já com as taças vazias. Os garçons voltam da
sala buscando vinho, mas este acabou. Maria se dirige a Jesus com uma frase complexa: Eles não
têm mais vinho (Jo 2,3)! Essa expressão indica claramente uma separação entre Maria e Jesus e os
anfitriões. Tudo poderia ter sido considerado como a festa é deles, o problema é deles, a vergonha
é deles, mas não foi assim. Maria decide entrar no assunto e se envolver na solução do problema
deles. A festa não pode acabar na metade. Se eles não acordaram em tempo, vamos solucionar a
questão e depois vamos adverti-los.
Eles não têm mais vinho é uma questão crucial para a mariologia neotestamentária. Maria
está em todas as etapas da vida de Jesus, acompanha todas as etapas da vida dos discípulos depois
de Pentecostes e, até hoje, está em todos os momentos importantes da vida da Igreja,
especialmente quando falta vinho, isto é, falta saúde, moradia, afeto, compreensão, dignidade e
outras coisas. Ela e o Filho poderiam não se preocupar e retornar para casa no meio da festa, já
que o vinho tinha acabado, mas essa não é a proposta da mãe e do Filho:
Ela chama os serventes e ordena: enchei as talhas e fazei o que ele vos disser! Jesus soluciona
uma situação de penúria de vinho. Jesus se apresenta, aqui, como alguém que recupera a situação
antiga dos profetas dos pobres e necessitados. Ele é visto como o novo Elias (2Rs 4,1-37)20. É a
presença, a percepção e a decisão de Maria que contrasta com a atitude do chefe de cerimônias21.
A percepção, a sintonia, a intervenção (“intromissão”) de Maria nas situações dos outros. É a
presença da mãe nas múltiplas experiências e situações dos filhos, é a mãe que não quer que os
filhos passem necessidade. É ela que insiste na obediência ao Filho: fazei tudo o que ele vos disser!!!
Ela, na anunciação, depois de um longo tempo de discernimento, disse: Faça-se em mim,
conforme disseste! Em Caná ela vai dizer aos serventes: fazei tudo... Maria é a medianeira, a
embaixadora e a intercessora junto ao Filho.
A intervenção de Maria diante da falta de vinho pode ser interpretada como as suas
intervenções na história cristã das mais diferentes formas e circunstâncias e sempre onde as
pessoas estão, com suas situações peculiares: na cidade, no campo, com peregrinos, com crianças,
com adultos... Lourdes, Fátima, Guadalupe, Caravágio, Aparecida... Maria é a rainha da paz porque
não quer os conflitos e abomina a guerra.
Quando falta vinho, acaba a festa e aí entra o sofrimento, a dor, a guerra, a violência, a droga
destruindo os laços familiares, o absolutismo instituindo a violência e opressão, a corrupção
gerando fome e miséria. Por isso na caminhada cristã, os evangelhos de Lucas e de João ressaltam
a importância de Maria e, mais especificamente no relato da Caná, a intercessão ou a mediação de
Maria é fundamental. O único Mediador entre Deus e a humanidade é Cristo, o embaixador do Pai,

20 BOISMARD, M-E.; LAMOUILLE, A. L´Évangile de Jean, p. 104.


21 MAZZAROLO, I. Nem aqui, nem em Jerusalém, Evangelho de João, p. 89.

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o único que saiu do Pai e ninguém conhece o Pai senão o seu Filho Unigênito (Jo 1,18), mas a Mãe
pode conduzir-nos a Ele22.

5 A baixa mariologia

A baixa mariologia é a pintura que reveste a grande parte das mulheres de cada época. Maria
de Nazaré, a mulher, a mãe, a doméstica, a passadeira, lavadeira e outras profissões da baixa
sociedade revestem a baixa mariologia. Maria, como esposa de José e mãe de família é o rosto dos
milhões de mulheres ao longo da história da humanidade que se revestiu de sensibilidade, amor,
fidelidade e entrega total ao lar e à vida dos filhos.23
Maria de Nazaré como mãe do glutão, do beberrão, do anarquista não encontra nenhum
apelativo de exaltação. A conduta do Filho complicava a vida e a honra da mãe (Mc 3,20-21):
Os seus saíram para detê-lo, pois diziam: “Ele está fora de si”! “Enlouqueceu” (Mc 3,21)! Mas
quem levantava contra ele essas acusações eram os conservadores, os ficais da fé e as autoridades
religiosas. É fundamental intuir o papel da autoridade religiosa e da imprensa na vida de um
profeta: os escribas diziam que ele estava possuído por Beelzeboul; que era pelo poder do príncipe
dos demônios que ele expulsava demônios (Mc 3,22). Essas acusações pesavam muito forte na
imagem, no prestígio e no coração da mãe. Ver toda a “mídia” e autoridades contra o Filho era
sentir toda a hostilidade contra si própria. Maria tinha o coração partido pela dor e essas
acusações geravam perguntas e questionamentos. Ela acreditava no Filho, mas todas as
autoridades eram contra e faziam as acusações mais disparatadas possíveis. Nesse contexto se
situa a profecia de Simeão: “Ele foi posto para a queda e o reerguimento de muitos em Israel, e
como um sinal de contradição – a ti, uma espada traspassará a tua alma” (Lc 2,34-35)! Se a
memória funcionava, naquela hora, Maria estaria recordando a glória e a dor ao mesmo tempo.
Assim quando Jesus queria purificar a mente dos discípulos e queria saber de fato qual era
a imagem e compreensão que tinham dele e, lhes perguntou: Quem é o Filho do Homem (Mc 8,27-
30)? Eles responderam: uns dizem que é João Batista; outros Elias, outros algum dos profetas
ressuscitado. Essas eram as opiniões entre os amigos e simpatizantes, mas o que diziam os
inimigos? Nas caricaturas dos príncipes dos fariseus e chefes da sinagoga: Ele é um possesso do
pior dos demônios, conhecido como Beelzeboul, ele é um louco, um transgressor das tradições,
um transviado e anarquista (Mc 3,22).
Qual o lugar de Maria nessa “baixa cristologia”? Onde está o Filho do Altíssimo que deveria
herdar o trono de Davi? Pior de tudo, quem mais condenava eram as autoridades religiosas, os
sumos sacerdotes, os chefes do povo, os puritanos, os perfeitos e os donos da verdade. O lugar de
Maria e da mãe está no ostracismo silencioso e eterno.
Alargando os horizontes, podemos nos perguntar: Qual o paralelismo que pode ser traçado
hoje com a opinião de muitos curiais a respeito do papa Francisco? Da consciência social do povo?

22 O documento do Vaticano II, Lumen Gentium, n. 60, afirma que nosso único mediador é Cristo, pois ele se entregou
para resgatar a todos (cf. 1Tm 2,5-6) e “o papel maternal de Maria não faz nenhuma sombra, nem diminui em nada
esta mediação única de Jesus. A atuação salutar de Nossa Senhora junto aos seres humanos não provém de uma
necessidade objetiva qualquer, mas do puro beneplácito divino, fluindo da superabundância dos méritos de Cristo”.
23 MILITELLO, C. Il volto femminile dela storia – Madri e amanti, monache e ribelli. Nessa obra, a autora ressalta a
presença das mulheres na história da igreja, da vida das famílias e dos fatos importantes do quotidiano.

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Da força da Igreja como parâmetro da verdade do Evangelho? Em quem as pessoas acreditam?


Qual é o poder dos telejornais na formação das consciências públicas? As massas acreditam em
quem tem a verdade ou em quem fala mais alto? O povo, raramente, tem capacidade para perceber
o joio das Telenovelas? Das propagandas da moda? Dos líderes promíscuos em qualquer
instituição?
Depois da multiplicação dos pães, em terras pagãs, na Decápole (Jo 6,1-15), Jesus tenta
evangelizar as multidões, mas sofre novamente o assédio dos opositores e fiscais da fé. Ele busca
um diálogo com os opositores tentando dar um sentido ao sinal dos pães e inicia um discurso sobre
o pão da vida. Os judeus, que pediam um sinal do céu, mas não tinham entendido o sinal dos pães,
pediram a explicação. Então Jesus se apresenta como o pão vivo que desceu do céu. Eles retrucam:
“Não é ele, Jesus, o filho de José, cujo pai e mãe conhecemos?” (Da Mariazinha, a doméstica...? – Jo
6,42). Todos zombam do Filho e logo a mãe e o pai ficam envolvidos.

6 A tua mãe e os teus irmãos estão lá fora (Mc 3,31-32)

As confusões e paradoxos atingem os mais fortes e seguros. Maria e os parentes se vêm


envolvidos pelas calúnias e se obrigam a um afastamento da missão do Filho e irmão. Jesus
chamou os doze a fim de que estivessem com Ele e aprendessem d´Ele e pudessem ser enviados (Mc
3,14-15). Estar com Ele era uma condição essencial para aprender, conhecer e entender as lições
do Mestre. Como poderiam entender estando fora? Marcos nos apresenta essa tensão entre estar
dentro e estar fora24.
A mídia da época era formada por sacerdotes, sumos sacerdotes, escribas e fariseus. E quem
podia fazer frente a essa corporação? Nem Pilatos teve força suficiente para impor sua consciência
segundo o Direito Romano! Quem se opõe aos Meios de Comunicação credenciados pelo governo,
ainda hoje, perde o poder e a dignidade. Esses MCS endeusam Satã e condenam Deus. Essa já era
uma denúncia do profeta Isaías, no VIII século a.C, quando dizia que os poderosos chamam ao bem
mal e ao mal bem (Is 5,20).
A crise dos familiares de Jesus é breve e eles recuperam o sentido da verdade, descobrem
que foram vítimas da perfídia das autoridades e tomam a coragem de voltar: “Eles estão lá fora e
te procuram”! Nem a mãe está livre do medo, da tensão e das dúvidas. É difícil impor-se às
investidas do mal e da mídia perversa.
É importante pensar na Maria, mulher, mãe que participa da vida do Filho, mas por mais
que acredite nele, a força da autoridade gera medos, tensões e conflitos. Muitas mulheres, como
Maria, não sabem bem em quem acreditar. O profeta Isaías afirmava que é quase impossível uma
mãe abandonar o seu filho (Is 49,15) e, se ainda alguma assim fizer, Deus jamais abandona seus
filhos. Maria deve ter duvidado de muitas atitudes de ruptura e mudanças provocadas por Jesus.
Os anciãos, os sacerdotes e chefes do povo não aceitavam as transformações dos costumes antigos
e ritos arcaicos e as acusações contra ele pesavam muito no coração da mãe. Esse conflito se
expressa na execração que Jesus faz aos escribas e fariseus hipócritas (Mt 23,13-36).

24 MAZZAROLO, I. Evangelho de Marcos, estar ou não com Jesus, p. 126-127.

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Guardar em segredo tudo o que falavam do Filho, mas como metabolizar sem enlouquecer?
Como sintetizar sem condenar uma das partes? Ela é a mãe e pode ser constrangida a se afastar
um pouco para ver qual a decisão a tomar. Se é o caso de retornar junto ao Filho e conduzir os
irmãos ao retorno, ela é a protagonista do perdão, da compaixão e da reinclusão.

7 A alta mariologia

A alta mariologia se caracteriza por todos os títulos dados a Maria para exaltar a figura
privilegiada por Deus e a fidelidade ao seu “Faça-se em mim...”. O grito de Isabel: εὐλογημένη e
εὐλογημένος (Lc 1,42): bendita e bendito, isto é, bendita a mãe e bendito o Filho. Nada poderia ser
mais engrandecedor do que ouvir tamanha saudação depois de tanto medo, insegurança e dúvidas
oriundas da anunciação do Anjo. Maria participa de modo imediato do âmbito de privilégios
honoríficos:
Μακαρία ἡ πιστεύσασα – Bem-aventurada aquela que acreditou (Lc 1,45)

1. A agraciada ou cheia de graça


2. O Senhor está contigo
3. Conceberás e darás à luz um filho
4. Seu nome será Jesus (Yeoshoúa) – “Deus salva”
5. Ele será chamado Filho do Altíssimo
6. O Senhor dará a Ele o trono de Davi
7. Ele reinará na casa de Jacó
8. Seu Reino não terá fim

A visita dos Magos (Mt 2,1-12) pode não estar propriamente no quadro da mariologia, mas
por envolver uma visita de estranhos e deixarem presentes enigmáticos, podemos considerar
como um fato a projetar a alta mariologia. Os visitantes estrangeiros prestam culto e adoração ao
menino em sinal de reconhecimento da sua grandeza, ainda não manifestada ao mundo, mas
antecipada no gesto de sua visita. Herodes e a sua corte estavam apavorados com a pergunta
desses estranhos visitantes: “Onde está o recém-nascido, rei dos judeus. Vimos a sua estrela no
Oriente e viemos homenageá-lo” (Mt 2,2)? Ainda na narrativa mateana, os Magos deixam
presentes, os quais não são apenas presentes, mas sinais proféticos de uma missão messiânica.
Tudo isso ficava em segredo no coração de Maria, mas ela não deixava de sentir-se bem-
aventurada.
A alta mariologia se expressa de modo indelével nas orações, procissões, santuários, os
devocionais e as ladainhas:25

‒ A sem mancha concebida


‒ A santíssima
‒ Sacratíssima
‒ Assunta aos céus
‒ Rainha dos céus

25 Santa Mãe de Deus, Santa Virgem das virgens, Mãe da divina graça, Mãe puríssima, Mãe castíssima, Mãe intacta, Mãe
do Criador, Mãe do Salvador, Vaso espiritual, Vaso honorífico, Torre de marfim, Arca da aliança, Porta do Céu, Estrela
da manhã, Saúde dos enfermos, Refúgio dos pecadores, Consoladora dos aflitos, Rainha assunta ao Céu, Rainha da
família, Rainha da paz.

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Maria na Bíblia 43

‒ Imaculada
‒ Mãe do bom Conselho
‒ Espelho da perfeição
‒ A Corredentora
‒ A mãe do Immanuel, o qual saberá discernir e rejeitar o mal e escolher o bem (Is 7,14).
‒ A Arca do Novo Testamento, pois nela se cumprem todas as profecias.

Maria foi configurada, nos séculos subsequentes ao nascimento do cristianismo, como


aquela que permitiu a plenificação das profecias. Na apresentação no Templo, movido pelo
Espírito Santo, o velho Simeão, tomando o menino nas mãos, exclama:

29 Agora, Senhor, podes despedir em paz o teu servo, segundo a tua palavra;
30 porque os meus olhos já viram a tua salvação,
31 a qual preparaste diante de todos os povos:
32 luz para revelação aos gentios, e para glória do teu povo de Israel.
33 E estavam o pai e a mãe do menino admirados do que dele se dizia.
34 Simeão os abençoou e disse a Maria, mãe do menino: Eis que este menino está

destinado tanto para ruína como para levantamento de muitos em Israel e para
ser alvo de contradição
35 também uma espada traspassará a tua própria alma, para que se manifestem

os pensamentos de muitos corações (Lc 2,29-35).

Simeão exalta o Filho e nele a mãe, mas também profetiza sofrimento e dor. Se o Filho será
alvo de contradição, esse paradoxo faria parte da história da mãe. Mas, abraçando a parte suave e
gloriosa da profecia de Simeão, a mãe deve ter ficado orgulhosa, pois o filho dela seria a Salvação
preparada desde o pecado de Adão (Rm 5,12-14). Desta forma, o pecado de um só homem atingiu
toda a humanidade (Rm 5,12), mas é pela doação de um só, Jesus Cristo, que entra a graça e
justificação (Rm 5,17-19).
Simeão abençoa Maria e profetiza sobre o Filho e sobre ela mesma. Por isso Lucas sublinha
na sua narrativa: Maria, contudo, conservava cuidadosamente todos esses acontimentos e os
meditava em seu coração (Lc 2,19).
Ana (Lc 2,36-38), a mulher que ficou viúva aos oitenta e quatro anos, cheia do Espírito Santo,
não se cansava de falar que o menino seria a redenção de Jerusalém.
A infância do menino já era um grande orgulho para os pais, mas especialmente para a mãe.
Nenhuma impressão negativa. Só elogios, profecias, exaltação e engrandecimento. E, a constatação
dos pais e parentes era de que o menino crescia em estatura, sabedoria e graça (Lc 2,39-41). A alta
mariologia envolve e reveste as ladainhas de Nossa Senhora com um explendor inigualável. Ela
cumpre o seu papel cristão com justiça e mérito ao colocar ao lado do Filho a mãe que o gerou.

8 A aproximação entre a baixa e alta mariologia

O perigo da alta mariologia é de considerar Maria a inatingível, excelsa e alta demais, ainda
que isso seja verdadeiro e se esquece a mulher, a dolorosa, a resistente. Falar da Maria Assunta
aos céus em corpo e alma é um dado importantíssimo para a mariologia cristã, mas é preciso
lembrar aquela mulher de Nazaré, que recebe a visão do anjo, mas não descola a pó dos calçados
do chão.

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44 Congresso de Mariologia – PUCRS 2017

Paulo conserva muito silêncio a respeito de Maria em virtude de sua centralidade na


Cristologia e uma Cristologia do Crucificado e Ressuscitado que redimiu a humanidade com o seu
sangue e a sua cruz, mas não deixa de dizer que na plenitude dos tempos, Deus enviou o Seu Filho,
nascido de uma mulher, a qual estava sob o jugo da lei, para redimir a humanidade (Gl 4,4). Uma
mulher sob a lei colabora com o plano de Deus para redimir a humanidade. É a mulher de Nazaré
que gera o Unigênito do Pai (Jo 1,18). É a serva que diz: “Faça-se em mim, conforme a tua palavra”
(Lc 1,38).
No hino da kênôsis, Jesus é exaltado pelo Pai depois da Sua diaconia e do serviço até a morte
de cruz (Fl 2,5-11). Na Mariologia, a exaltação vem depois da humilhação e da prova de sua
fidelidade radical desde a concepção até o pé da cruz (Jo 19,25).
Os nomes de Maria? Porque tantas formas de invocação? A presença da mãe em cada nação,
em cada região, em cada lar. Os nomes que Maria recebeu ao longo da história ultrapassam os
1.10026. O que impressiona é que os nomes não são frutos da imaginação ou da fantasia, eles estão
sempre ligados a fatos, acontecimentos, situações ou manifestações como é o caso de Fátima,
Lourdes, Guadalupe, Aparecida...
A mulher está na vida do lar, da família, dos filhos. “A mãe estava lá” diz o evangelista nas
bodas de Caná (Jo 2,1). As invocações a Nossa Senhora revelam a presença da mãe na vida
concreta, na história de cada dia. A mãe está antes dos filhos, a mãe se antecipa às necessidades
dos filhos, a mãe percebe quando falta vinho, quando falta a alegria, quando há tristeza demais,
quando há o desamor. Em todos esses casos a mãe está lá.

9 O seguimento ao projeto do Filho

Lucas nos mostra, quer no Evangelho, quer no livro dos Atos, a presença de mulheres da alta
sociedade no seguimento de Jesus e na construção das igrejas de Paulo27. Maria, a partir da
conclusão do Quarto Evangelho, quando Jesus confia Sua mãe ao Discípulo Amado: “Eis aí a tua
mãe” (Jo 19,27) se transforma no Testamento da tradição oral da vida e dos fatos de Jesus. Ela,
mais do que ninguém, foi o receptáculo das palavras, dos ditos e fatos que envolveram Jesus ao
longo de sua missão. Ela guardou tudo na própria memória para ser gravado e escrito para as
gerações seguintes. Maria é a memória viva nas primeiras décadas da tradição oral do Novo
Testamento e, talvez, um filtro para afirmar a verdade e desqualificar a mentira a respeito de Jesus.
No quadro do discipulado de Jesus, podemos encontrar dois tipos de discípulos: (a) os que
são discípulos de direito que são os Doze; (b) e, paralelamente com estes, os outros Setenta e Dois
e a multidão que segue Jesus e nessa multidão algumas mulheres, em especial, que são as
discípulas de fato, pois elas preenchem de modo categórico todos os requisitos do seguimento28.
Ela é a mãe da Comunidade nascente, a arca da Nova Aliança. Maria e as outras mulheres
abrem um caminho para um matriarcado na Igreja desde o seu nascimento até hoje. As discípulas

26 MEGALE, N. B. 107 Invocações da Virgem Maria no Brasil. A autora apresenta nessa obra um estudo histórico,
folclórico e iconográfico das invocações de Maria, no Brasil.
27 CROSSAN, J. D.; REED, J. L. Em Busca de Paulo, p. 44.
28 LUCIO, M. C. A mulher, discípula e apóstola do Evangelho, p. 91.

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Maria na Bíblia 45

estão na mesma estrada do Mestre29. A instância do feminismo na igreja é também uma instância
ética em função da justiça e da equidade, numa postulação em favor da mulher. Na tradição
judaica, mulheres, crianças e escravos não faziam parte das estatísticas e do censo porque não
representavam entidades individuais. Esses eram apenas um coletivo anônimo, mas o cristianismo
resgatou na pedagogia de Jesus e depois nas igrejas cristãs, especialmente no âmbito paulino30.

10 Maria ao pé da cruz

Os zombadores e carnífices perguntavam de modo escarnecedor: “Onde está o teu Deus” (Sl
42,4.11; Sl 79,10; Sl 126,2). Qual seria o lugar antropológico da mãe nessa hora? Como poderia
estar uma mãe diante do filho crucificado? Qual seria a relação possível entre a anunciação e a
paixão? Onde estaria Deus, o Anjo, as Promessas e outras maravilhas de outrora? Já se passou um
longo tempo entre o anúncio e o momento atual. Como metabolizar tanta angústia, incerteza e
conflito? Um segredo estava nas entrelinhas de tudo: “O Espírito te cobrirá com a sua sombra (Lc
1,35).

Maria estava ali, de pé (ἵστημι): “Perto da cruz de Jesus, permaneciam de pé sua mãe, a irmã
de sua mãe (tia) Maria de Cléofas e Maria Madalena” (Jo 19,25). Nesse quadro está acentuada a
importância das mulheres no discipulado de Jesus e, quando as estruturas patriarcais relegavam
à mulher os últimos lugares, elas mostram a sua força de superação e resistência, muito bem
instruídas e conscientizadas por Jesus de sua missão. Coube a essas mulheres da primeira hora
estar mais próximas de Jesus caracterizando a superação de paradigmas e a inversão
escatológica31. Maria é o símbolo da força, da resistência, da superação.
Diante de todos os acontecimentos e de tantas imprecações, estar de pé é mais, muito mais
do que estar ali. A dor e a presença da morte não conseguiram suplantar a certeza da vida. Maria
e as outras Marias são, na narrativa de João, o sinal da vida, da superação e da presença do Espírito
Santo. Maria ao pé da cruz representa a fidelidade e a radicalidade do seguimento: da anunciação
à crucifixão; da maternidade à nova filiação do Discípulo que Jesus amava (Jo 19,27). Maria revela
fé na palavra do Anjo: o Espírito de cobrirá com a sua bênção e fidelidade à resposta que lhe deu:
Faça-se em mim segundo a Tua Palavra, mas tudo isso não era fácil e nem simples diante da forma
como todos os fatos se desenrolaram. Roma tinha lavado as mãos e os judeus tinham tudo para
alcançar seus objetivos.
O acompanhamento do Filho e todas as experiências da caminhada devem ter mostrado a
Maria que Deus estava com ela e com o Filho. A experiência de Deus ajudava, nessa hora, a estar
de pé, mesmo que tudo indicasse para ela estar prostrada e chorosa.
Aqui era a hora de recuperar a memória do Magnificat e saber que as coisas não
terminariam do modo tinham sido conduzidas pelos sumos sacerdotes e chefes dos judeus. A

29 MAZZAROLO, I. Lucas em João, uma nova leitura dos evangelhos, p. 188-189.


30 MAZZAROLO, I. O Apóstolo Paulo, o Grego, o Judeu e o Cristão, p. 206, citando DEWEY, J. “Feminist Readings, Gospel
Narrtive and Critical Theoriy”. BThB 4 (1992), 167.
31 MENDES, J. M. D. A Mulher, Discípula-Apóstola do Evangelho, p. 75.

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46 Congresso de Mariologia – PUCRS 2017

sentença de morte, segundo a lei deles (Jo 19,7) não seria capaz de reter a vida e vida em plenitude
no plano de Deus. Ou, como pergunta Paulo: Oh morte, onde está a tua vitória (1Cor 15,54-55)?
Maria pode e deve ser vista como a Mulher das Dores, do Sofrimento, da Humilhação, mas
não só, é também a excelsa, a gloriosa, a vitoriosa e a Rainha do Céu e da Terra.
Nesse momento da narrativa joanina, Jesus estabelece a continuidade confiando a mãe ao
Discípulo Amado (Jo 19,26-27). Esse representa o tipo de discípulo perfeito32. Maria, designada
por “mulher” representa a maternidade da igreja. Tanto a mãe (mulher) quanto o Discípulo Amado
estão próximos, ao pé da cruz indicando a proximidade, o entendimento e a continuidade da
missão. Na relação mãe–discípulo podemos destacar três tópicos ou modos de olhar a questão:

a) Uma visão antropológica: a mãe está onde está o Filho e vice-versa;


b) Uma visão teológica: o Discípulo assume o lugar do Filho e a Mãe a maternidade catequética e
evangelizadora;
c) Uma visão eclesiológica: Maria se torna a mãe da Igreja e o Discípulo Amado o arquétipo de
todos os discípulos33.

Referências

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de Deus no mistério de Cristo e da Igreja”).
CROSSAN, J. D.; REED, J. L. Em busca de Paulo: Como o apóstolo de Jesus opôs o Reino de Deus ao Império
Romano. São Paulo: Paulinas, 2007.
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MEGALE, Nilza Botelho. 107 invocações da Virgem Maria no Brasil, história, folclore e iconografia. Petrópolis:
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MENDES, Maria Julieta Dias. A mulher discípula-apóstola do Evangelho. In: Biblica, ano II, dez. 1994, p. 69-
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MILITELLO, Cettina, Il volto femminile dela storia – Madri e amanti, monache e ribelli: Dietro gli eventi dela
Chiesa c´era uma Donna. Monferrato: Piemme, 1995.

32 BOISMARD, M-E.; LAMOUILLE, A. Évangile de Jean, p. 439.


33 MAZZAROLO, I. Nem aqui, nem em Jerusalém, Evangelho de João, p. 296-297.

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