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MARINI, Ruy Mauro. A crise do Desenvolvimentismo. In: CASTELO, Rodrigo (org).

Encruzilhadas da América Latina no século XXI. Rio de Janeiro: Pão e Rosas, 2010.
Até meados deste século, a teoria social produzida na América Latina era pensada, com raras
exceções, a partir da consideração de questões nacionais. Só se pode falar realmente do
surgimento de uma corrente estruturada e, em muitos aspectos, original de pensamento sobre a
região como tal a partir do Relatório Econômico da América Latina de 1949, divulgado pela
Comissão Econômica para América Latina (Cepal), das Nações Unidas, em 1950.
A importância da teorização que ali se inicia reside na novidade de algumas de suas abordagens e
na grande repercussão que alcançou, tanto acadêmica quanto politicamente, na generalidade de
nossos países. A análise das concepções cepalinas é, portanto, indispensável para quem deseja
conhecer a evolução do pensamento latino-americano moderno.
A teoria do desenvolvimento
Para compreender a CEPAL, seria útil considerar, primeiramente, a biografia intelectual de seus
expoentes, principalmente o argentino Raúl Prebisch (responsável direto pelo Relatório de
1949), seguido do brasileiro

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Celso Furtado e do chileno Aníbal Pinto; a eles se somam o também argentino Aldo Ferrer e o
mexicano Victor Urquidi. Como Prebisch – que foi diretor do Banco Central, sob o governo
Perón -, a maioria deles teve participação ativa na política de seus países. Sua formação foi, em
geral, keynesiana, e alguns mostraram apreciável domínio da economia política clássica,
particularmente Prebisch e Furtado. Suas incursões no campo do marxismo costumavam ser, no
entanto, infelizes.(1)
A questão fundamental a ser levantada refere-se à pergunta: o que é a CEPAL? No essencial,
constitui uma agência de divulgação da teoria do desenvolvimento que surgiu nos Estados
Unidos e na Europa, no final da Segunda Guerra Mundial. Essa teoria tinha, então, um propósito
definido: responder à inquietude e à inconformidade manifestadas pelas novas nações que
emergiam para uma vida independente, como resultado dos processos de descolonização, ao
perceberem as enormes desigualdades que caracterizavam as relações econômicas internacionais.
Confrontados com esta situação, os países capitalistas centrais se preocuparam em explicar e
justificar estas disparidades, que os beneficiavam de maneira gritante, ao mesmo tempo que
buscaram convencer os novos Estados de que, a eles, também se abriam possibilidades de
progresso e bem-estar. Sob a denominação genérica de teoria do desenvolvimento, as
formulações dos grandes centros nascem em órgãos governamentais ou instâncias associadas a
eles, difundem-se em universidades e centros de pesquisa e são repassadas a agências
internacionais.(2)
Neste sentido, se tratará, essencialmente, de construir um conceito de desenvolvimento
econômico, a partir da ideia de que este corresponde ao desdobramento do aparato produtivo,
segundo a conhecida classificação em três setores: primário, secundário e terciário. Para explicar
porque os países avançados são aqueles nos quais esse desdobramento foi plenamente realizado,
toma-se o processo de desenvolvimento econômico que teve lugar nos países capitalistas
avançados como um fenômeno de ordem geral e sustenta-se que a posição que eles ocupam no
contexto internacional corresponde ao estágio superior de um continuum evolutivo. As diferentes
economias que compõem o sistema internacional estariam localizadas em fases inferiores de um
mesmo processo, enquadradas em um esquema dual: desenvolvimento-subdesenvolvimento, que
posteriormente seria substituído por outro mais sofisticado.
Assim entendido, o conceito de subdesenvolvimento é idêntico ao da situação pré-industrial. O
subdesenvolvimento seria, pois, uma situação anterior ao pleno desenvolvimento econômico
(quando os desdobramentos setoriais já haviam sido concluídos), existindo entre os dois
momentos a chamada decolagem (take off, para utilizar a linguagem então em voga), no qual a
economia em questão já reuniria condições para iniciar um desenvolvimento autossustentável.
Recapitulando: a tese central da teoria do desenvolvimento é que o desenvolvimento econômico
representa um continuum, no qual o subdesenvolvimento constitui uma etapa inferior ao
desenvolvimento pleno. Este representaria, no entanto, algo acessível a todos os países que se
empenham em criar as condições adequadas para esse fim.
Um segundo aspecto a destacar na teoria do desenvolvimento é a sua insistência em que o
desenvolvimento econômico implica a modernização das condições econômicas, sociais,
institucionais e ideológicas do país; modernização, em última instância, correspondendo à
aproximação dessas condições aos padrões vigentes nos países capitalistas centrais. O processo
de modernização, além de trazer consigo a possibilidade de tensões e crises, se manifestaria,
durante certo tempo, mediante uma situação de dualidade estrutural, que oporia um setor
moderno ao setor tradicional da sociedade em questão. O tema da modernização e a noção de
dualismo estrutural inspiraram a maior parte da produção sociológica e antropológica daquele
período.(3)
Finalmente, um terceiro aspecto a considerar na teoria do desenvolvimento é sua projeção no
plano metodológico. Na medida em que desenvolvimento e subdesenvolvimento eram,
basicamente, a mesma coisa, ou seja, momentos constitutivos de uma mesma realidade: a
economia capitalista industrializada só poderia ser diferenciada por critérios quantitativos, os
únicos adequados para localizar uma economia neste ou naquele grau da escala evolutiva. Assim,
o subdesenvolvimento seria definido por meio de uma série de indicadores: produto real, grau de
industrialização, ingresso per capita, índices de alfabetização e escolaridade, taxas de
mortalidade e esperança de vida, etc., destinados a classificar as economias do sistema mundial e
registrar seu progresso no caminho ao desenvolvimento.
Os inconvenientes desta metodologia são evidentes. Por ser essencialmente descritiva, não
possui qualquer capacidade explicativa. O resultado acima é uma perfeita tautologia: uma
economia apresenta determinados indicadores porque é subdesenvolvida e é subdesenvolvida
porque apresenta estes indicadores. Girando em círculo, a análise não pode aspirar senão
estabelecer correlações verificáveis, que não jogam, por si, nenhuma luz sobre as questões
referentes à causa e efeito.
Como quer que seja, foi a partir da teoria do desenvolvimento que surgiu a CEPAL. Para
entender o motivo disso, devemos recorrer a uma linha de análise que tem a ver com o papel dos
Estados Unidos na construção do mundo pós-guerra. Deixaremos de lado aqui a consideração
sobre suas iniciativas no plano político, econômico e militar, para ocuparmos, tão só, do que ele
fez no plano ideológico.
Merece menção especial a criação de comissões econômicas regionais, subordinadas ao
Conselho Econômico e Social das Nações Unidas e sediadas na Europa, Ásia e Extremo Oriente
e América Latina; depois, mais duas foram criadas, para a África e a Ásia Ocidental. Seu
objetivo era estudar os problemas regionais e propor políticas de desenvolvimento. Na realidade,
a missão fundamental atribuída a essas comissões foi a de serem agências de elaboração e
difusão da teoria do desenvolvimento, no contexto da política de domesticação ideológica que os
grandes centros contrapuseram às demandas e pressões daquilo que viria a ser chamado de
Terceiro Mundo.
Dando início formalmente a seus trabalhos em 1948, em Santiago no Chile, a Cepal não se
esquiva da missão que lhe é confiada, mas, longe de se limitar à mera divulgação, assume o
papel de verdadeira criadora de ideologia, uma vez que tenta captar e explicar as especificidades
da América Latina. Essas especificidades, em comparação com os novos países que a
descolonização criou, eram indiscutíveis.
Na verdade, além de sua precoce independência política, a América Latina contava, então, com
um século de capitalismo, o que levou à formação de complexas estruturas de classe e Estados-
nação consolidados. Fato ainda mais importante, em muitos dos seus países a industrialização,
que começara entre as duas guerras mundiais, modificou as alianças de classe e converteu a
burguesia industrial em parte integrante do bloco dominante.
Ao contrário, portanto, das outras agências similares, a CEPAL, ao constituir-se, vincula-se à
realidade interna da América Latina e expressa as contradições de classe que a caracterizam,
inclusive as contradições interburguesas. Mais que isso, ela será instrumentalizada pela
burguesia industrial, tanto em função das lutas sociais e políticas internas, como dos conflitos
estabelecidos a nível da economia mundial. Isto fará com que a Cepal, partindo da teoria do
desenvolvimento, nos termos em que havia sido formulada nos grandes centros, introduza nela
modificações que representariam sua contribuição própria, original, e que farão do
desenvolvimentismo latino-americano um produto, sim, mas não uma simples cópia da teoria do
desenvolvimento.
 O desenvolvimentismo
A contribuição mais importante da Cepal é sua crítica à teoria clássica do comércio
internacional. Baseada no princípio das vantagens comparativas, esta teoria postula que cada país
deve especializar-se na produção de bens nos quais possa alcançar maior produtividade,
geralmente determinada pela fertilidade do solo, disponibilidade de recursos minerais, etc. Na
medida em que o faça, isto assegura ao país condições privilegiadas de concorrência no mercado
mundial, fazendo com que as transações ali realizadas sejam benéficas para todas as partes.
A Cepal afirmará que, de fato, não acontece assim. Por um lado, demonstrará empiricamente
que, a partir de 1870, observa-se no comércio internacional uma tendência permanente à
deterioração dos termos de troca em detrimento dos países exportadores de produtos primários.
Por outro lado, afirmará que essa tendência proporciona transferências de renda – na realidade,
transferências de valor, conceito que a Cepal não domina bem – implicando que os países
subdesenvolvidos, exportadores destes bens, sejam submetidos a um constante escoamento de
riqueza em favor dos países desenvolvidos, ou seja, uma descapitalização.
Para a Cepal, a deterioração dos termos de troca se deve ao fato do comércio mundial confrontar
países industrializados com países de economia primário-exportadora. Estes últimos, ao não
desenvolverem seu setor industrial ou manufatureiro, não estão aptos a produzir tecnologias e
meios de capital capazes de elevar sua produtividade do trabalho. Ao mesmo tempo, a
inexistência deste setor limita a expansão da oferta de trabalho, levando que se registre, no setor
primário, um excedente de força de trabalho, que dificulta à elevação da produtividade e reduz
seu preço (ou salário); isto resulta, também, na formação de uma mão de obra excedente no setor
de serviços, onde se gera os mesmos efeitos. Essa seria a razão dos baixos salários que se
verificam nas economias subdesenvolvidas, que tanto freiam o progresso técnico como não
permitem a expansão e dinamização do mercado interno.
Inversamente, os países desenvolvidos seriam aqueles que, a partir de um setor secundário
expansivo e de uma demanda dinâmica de mão-de-obra, apresentam salários elevados, que
induzem à introdução de inovações tecnológicas tendentes a reduzir a participação do trabalho na
produção e, portanto, o impacto dos salários nos custos. O aumento da produtividade dali
resultante não seria transferido de imediato aos preços dos bens que estes países exportam,
fazendo com que, no comércio internacional, esses preços se mantenham em níveis elevados.
Consequentemente, se favoreceria a transferência de riqueza da periferia subdesenvolvida ao
centro desenvolvido.
A verdade é que, captando corretamente o fenômeno empírico da deterioração dos termos de
troca, a Cepal o interpretou mal: cedo ou tarde, o aumento da produtividade e a consequente
redução dos custos têm que ser repassados aos preços, exceto se ocorrerem situações anormais
no comércio mundial, como aquelas que configuram situação de monopólio ou decorrentes de
guerras e catástrofes naturais. Além disso, e a Cepal não desconhecia, o desenvolvimento do
capitalismo nos países dependentes implicou, desde o início, a introdução de novas técnicas de
produção e o aumento da produtividade do trabalho. No entanto, o apontamento referente à
questão da remuneração da força de trabalho representou uma intuição formidável, ainda que mal
fundamentada, posto que não se tratava simplesmente de uma consequência da baixa
produtividade, como a vida se encarregaria de demonstrar.
Em todo caso, com seu esquema centro-periferia, isto é, ao tomar como ponto de partida
analítico a economia mundial e as relações que ali se desenvolvem entre economias nacionais, a
Cepal foi muito além da teoria do desenvolvimento e assegurou ao conjunto das suas teses uma
validade de princípio, até então privilégio exclusivo da teoria marxista do imperialismo. Na
verdade, a afirmação de Prebisch no sentido de que “o desenvolvimento econômico dos países
periféricos é mais uma etapa (…) no processo de desenvolvimento orgânico da economia
mundial”(4) faz recordar irresistivelmente Bukharin.(5) As limitações do pensamento cepalino são
um efeito do seu vínculo umbilical com a teoria do desenvolvimento, além de representarem um
custo derivado da posição de classe a partir da qual a Cepal realizou suas formulações.
É assim que, fiel à ideia de desenvolvimento econômico como um continuum, ela [Cepal] não
considerou o desenvolvimento e o subdesenvolvimento como fenômenos qualitativamente
distintos, marcados pelo antagonismo e a complementariedade – como fará, ao seu tempo, a
teoria da dependência – senão apenas como expressões quantitativamente diferenciadas do
processo histórico de acumulação de capital.(6) Isso implicava que, com base nas medidas
corretivas aplicadas ao comércio internacional e na implementação de uma política econômica
adequada, os países subdesenvolvidos veriam abertas as portas de acesso ao desenvolvimento
capitalista pleno, pondo fim à situação de dependência em que se encontravam. Esta tese: a do
desenvolvimento autônomo, constitui uma das marcas registradas do pensamento cepalino.
A demanda por uma política econômica voltada para superação do subdesenvolvimento
repousava sobre outro elemento-chave: a concepção do Estado como algo situado acima da
sociedade e capaz de dotar-se de uma racionalidade própria. Apoiada nisso, a Cepal saltava do
plano em que projetava suas análises econômicas, onde lidava com leis objetivas e identificava
interesses econômicos concorrentes, para uma visão idílica do mundo, tomado como campo de
relacionamento entre Estados projetados para substituir o confronto pela negociação e as leis
econômicas pelo desejo de cooperação.
Se a política econômica era o instrumento, o objetivo essencial a que ela deveria aspirar para
superar o subdesenvolvimento era, para a Cepal, a industrialização. Já vimos como, no seu
entender, esta seria capaz de promover uma melhor distribuição da força de trabalho entre os
setores produtivos; aumentaria os salários, viabilizando o mercado interno; e induziria o
progresso técnico e o aumento da produtividade do trabalho, pondo fim às transferências
internacionais de valor. A industrialização se realizaria mediante uma política deliberada de
substituição de importações de produtos manufaturados.
A fé que a Cepal depositava na industrialização, enquanto medida suficiente para superar o
subdesenvolvimento, estendia-se às virtudes que esta teria como alavanca para transformação
social. Admitindo que certas reformas eram necessárias no plano institucional e político, a Cepal
subestimava as medidas distributivas, inclusive a reforma agrária, exceto como disposição de
interesse secundário.(7) No pensamento da Cepal, que por isso mereceu a classificação de
“desenvolvimentista” que lhe foi atribuída, a industrialização assumia o papel de um deus ex
machine, suficiente por si mesma para garantir a correção dos desequilíbrios e desigualdades
sociais.
O desenvolvimentismo foi a ideologia da burguesia industrial latino-americana, em especial
aquela que – respondendo a um maior grau de industrialização e já compartilhando o poder do
Estado com a burguesia exportadora – tratava de ampliar seu espaço às custas desta, recorrendo à
aliança com o proletariado industrial e a classe média assalariada. Ao mesmo tempo
que acenava [provocava] para estes, com a expansão da oferta de empregos e maiores salários, o
desenvolvimentismo, ao criticar o esquema tradicional da divisão internacional do trabalho,
exigia dos grandes centros capitalistas o estabelecimento de um novo tipo de relações. No
entanto, embora rejeitando o modelo primário-exportador e abrindo fogo contra a classe
dominante, relutava em propor a reforma agrária como premissa do modelo industrial, dado que,
não passando a aliança social pelo campesinato (com a exceção do México), fazê-lo significaria
agravar inutilmente o conflito interburguês.
No decorrer dos anos 50, junto com o avanço da burguesia industrial, tanto nos países onde esta
já era forte – Argentina, Chile, Uruguai, Brasil, México – como nos demais, que aceleraram
então seu crescimento industrial, o desenvolvimentismo se converteu na ideologia dominante e
na matriz por excelência das políticas públicas. Não obstante, após uma década de expansão, a
economia latino-americana mergulha, nos anos 60, na crise e na estagnação, revelando
claramente as características perversas que havia assumido a industrialização. Isso não poderia
deixar de repercutir profundamente nos círculos cepalinos, dando origem a uma crise teórica de
grandes proporções.
 A crise do desenvolvimentismo
A crise econômica que, no início da década de 1960, atinge a maioria dos países latino-
americanos é, simultaneamente, uma crise de acumulação e de realização da produção. Ela se
manifesta, por um lado, no estrangulamento da capacidade de importar os elementos materiais
necessários ao desenvolvimento do processo de produção e, por outro, nas restrições encontradas
para realizar esta produção. Ambos fenômenos se devem ao fato de que a industrialização se deu
sobre a base da velha economia exportadora, ou seja, sem avançar com reformas estruturais
capazes de criar um espaço econômico propício ao crescimento industrial.
Nos países capitalistas avançados, a industrialização se deu de maneira orgânica, fazendo com
que o crescimento do setor de bens de consumo tenha gerado imediatamente como contrapartida
a expansão da oferta de bens de capital, sem os quais o processo teria sido bloqueado. Nos países
latino-americanos, a substituição de importações operou sobre a base de uma demanda
preexistente de bens de consumo e levou a que à obtenção de bens de capital repousasse
essencialmente na importação, formando um modo de reprodução industrial intrinsecamente
dependente do exterior. A continuidade de um processo posto nestes termos suporia o
crescimento constante da capacidade de importar e, portanto, uma massa crescente de divisas.
De onde vem essas divisas? Primeiramente, da exportação. Porém, uma vez que as velhas
estruturas produtivas haviam se mantido intocadas, as exportações continuavam a ser
constituídas por bens primários tradicionais, sujeitos à tendência secular da deterioração dos
termos de troca, diagnosticada pela Cepal. O setor manufatureiro não se preocupou em
conquistar mercados externos e destinava toda sua produção ao mercado interno, o que significa
dizer que continuava dependendo do setor primário exportador para obtenção das divisas
necessárias à aquisição dos bens intermediários e de capital que sua expansão demandava. Por
essa via, a indústria – que a Cepal anunciara como a alavanca do desenvolvimento autônomo –
não fazia senão impulsionar a reprodução ampliada da relação de dependência da América
Latina em relação ao mercado mundial, sem conduzi-la a uma efetiva superação.
A segunda fonte de divisas corresponde ao aporte de capitais externos, materializada nos
investimentos diretos, empréstimos, financiamentos e doações. Com receitas a título de
exportações relativamente estagnadas, a América Latina solicitará dos Estados Unidos uma
generosidade semelhante à expressa no Plano Marshall, concebido em favor da reconstrução
europeia e que implicara a mobilização de uma ajuda considerável, mediante empréstimos
públicos e doações governamentais. A última tentativa séria da América Latina neste sentido foi
a do presidente do Brasil, Juscelino Kubitschek, ao final dos anos 50, quando lançara a Operação
Panamericana, centrada na obtenção de créditos públicos. Porém, a OPA acabou sendo
suplantada pela iniciativa norte-americana da Aliança para o Progresso, ao início da década de
1960, a qual se caracterizava por seu marcante caráter assistencialista e pela ênfase que colocava
nos investimentos estrangeiros privados.
Tais investimentos haviam começado a penetrar o setor industrial latino-americano desde o
começo dos anos 50, ganhando forte impulso na segunda metade da década. Neste período, a
industrialização encontrara neles um suporte e um fator de aceleração. Concluído, no entanto, o
tempo de maturação destes investimentos, isto é, chegado o momento da obtenção real de lucros,
eles revelaram sua natureza contraditória: os lucros haviam sido obtidos no mercado nacional,
realizando-se, pois, em moeda nacional; porém, para fazer-se efetivos e, portanto, suscetíveis de
reintegração ao patrimônio da matriz estrangeira, deveriam poder converter-se em moeda
internacional, o que exigia divisas a serem subtraídas do montante realizado em transações
externas.(8) Em outras palavras, aquilo que servira para ampliar a capacidade de importação da
América Latina mostrava ser, agora, um fator de limitação.
Embora se contasse com um mercado interno em expansão, a entrada de capitais externos
superava as saídas, mascarando o problema. Mas o mercado interno logo encontraria seu limite.
As grandes migrações do campo para a cidade, que a manutenção das estruturas tradicionais de
produção provocava e que a industrialização incentivara, traduziram-se num rápido crescimento
da oferta de mão-de-obra urbana, que acabaria por descambar na direção do desemprego aberto
ou disfarçado. A causa da incapacidade da indústria de criar emprego residia – mais que no uso
de tecnologias inadequadas, como sustentado pela Cepal, uma vez que é inerente ao progresso
técnico economizar mão-de-obra – na brutal superexploração do trabalho que ali se praticava, a
qual era, por sua vez, possibilitada pela existência de uma força de trabalho redundante.
Combinando baixos salários com a prolongação da jornada e a intensificação do ritmo do
trabalho, o capital industrial mobilizava massas de trabalho substancialmente maiores que
aquelas que, em condições normais, correspondiam à soma do dinheiro destinado a pagá-las,
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 inabilitando-se, assim, de assimilar boa parte das novas forças de trabalho que se
incorporavam ao mercado. Pior ainda: acabava por criar uma distribuição de renda extremamente
perversa, que condenava a maioria da população a níveis de consumo miseráveis, muitas vezes
abaixo do padrão mínimo de subsistência. Com isso, restringia-se o mercado interno, limitava-se
a criação de áreas de investimento e desestimulava-se a introdução de novas técnicas de
produção. Para completar o quadro, a preservação da velha estrutura agrária e a concentração dos
investimentos na indústria provocaram um descompasso entre a oferta de alimentos e o
crescimento urbano, impulsionando a elevação dos preços agrícolas e desencadeando a inflação.
Não surpreende, pois, que a década de 50 tenha sido caracterizada por uma acentuada agudização
das lutas sociais. Estas tinham, como componentes novos, a emergência do campesinato
enquanto movimento social, uma classe trabalhadora renovada e crescente, e o surgimento de um
proletariado pobre nas cidades, dando origem às teorias sobre a marginalidade urbana. Ao
mesmo tempo, se adensava o tecido da classe média urbana e seus salários aceleravam, levando a
um rápido aumento da massa de estudantes e jovens profissionais cada vez mais insatisfeitos
com a falta de perspectivas apresentada pelo tipo de desenvolvimento comandado pela burguesia
industrial. Esses fatores convergem, ao longo deste período, para promover convulsões e crises
políticas, que se iniciam com a radicalização da Revolução Guatemalteca, sob o governo de
Jacobo Arbenz, e a Revolução Boliviana de 1952, seguem com o suicídio de Getúlio Vargas no
Brasil e a derrubada de Juan Domingo Perón na Argentina, continuam com o movimento
ferroviário no México e a Revolução Venezuelana de 1958 e culminam, em 1959, com a
Revolução Cubana.
Sensível a esta situação, a Cepal modifica, desde começos da década de 1960, suas projeções e,
retificando o enfoque meramente desenvolvimentista que lhe caracterizava, passa a dar mais
ênfase nas reformas estruturais e na distribuição de renda. Mas é muito tarde. Em um continente
conturbado, a Revolução Cubana sacudia os fundamentos da dominação norte-americana e
semeava o pânico entre as classes dominantes crioulas. Quando se abrem os ciclos das ditaduras
militares, o desenvolvimentismo cepalino entra definitivamente em crise.
Essa se faz visível com o afastamento de Prebisch, que, em 1963, troca a Cepal pela Unctad. Em
1965, Celso Furtado se dedica a demonstrar que a economia latino-americana tende
estruturalmente à estagnação: esta não seria, pois, causada por esta ou aquela política econômica
– o que absolvia a Cepal – mas resultaria da própria dinâmica das estruturas econômicas da
região, marcadas pelo selo do dualismo. Furtado resume assim suas teses:
tudo acontece como se a existência de um setor pré-capitalista semifeudal, junto a um setor
industrial que absorve uma tecnologia caracterizada por um coeficiente de capital em rápido
crescimento, originasse um padrão de distribuição de renda que tende a orientar a aplicação de
recursos produtivos, a fim de reduzir a eficiência econômica destes, e de concentrar ainda mais
receita, em um processo de causalidade circular.(10)
É por isso que:
[o] comportamento dos agentes que tomam decisões econômicas, os quais podem muito bem
reger-se por estritos critérios de racionalidade, tanto em função dos meios que utilizam como de
seus legítimos objetivos; encontram-se nas relações estruturais que delimitam o campo dentro do
qual são tomadas as decisões relevantes.(11)
Cabe assinalar que Furtado flexibiliza seu rígido modelo estruturalista, ao considerar também a
política exterior dos Estados Unidos e a ação das empresas multinacionais como fatores
negativos ao desenvolvimento latino-americano. Mais do que isso, em um rompante de
radicalização política, levanta a possibilidade de superar as determinações estruturais que havia
detectado em suas análises mediante a prática de um socialismo de corte nacional, estatal e
terceiro-mundista:
A substância ideológica do socialismo latino-americano será seguramente extraída da
consciência crítica de superar o subdesenvolvimento. Essa luta tem lugar dentro dos marcos
políticos nacionais, os quais delimitam os centros de decisão que comandam as atividades
econômicas, tanto em seus aspectos internos como nos externos (…)
A conjunção dessas duas ideias-força – a afirmação nacionalista e o desejo de superar o
subdesenvolvimento – constituem o núcleo do pensamento ideológico que, por caminhos
variados, está provocando a transformação de uma vasta comunidade de povos que constituem o
Terceiro Mundo.(12)
No mesmo ano de 1965, analisando o rumo que havia tomado a industrialização latino-
americana, Aníbal Pinto produz um texto de notável inteligência, no qual recorre amplamente à
contribuição de renomados marxistas, como Baran, Sweezy, Dobb, Bettelheim, Nove e Wright
Mills. Tomando como plano de fundo a dualidade estrutural, que configuraria dois polos:
capitalista e subdesenvolvido, o autor se propõe a “examinar se as condições estabelecidas (pelo
capitalismo, RMM) são propícias para a continuação do desenvolvimento e eventualmente para a
correção das suas contradições evidentes”.(13)
O ponto de partida de Pinto é a noção de que, na fase que a Cepal chama de “desenvolvimento
interno”, ou seja, a industrialização, a dualidade estrutural se modifica:
Por um lado (…) a separação entre os polos é menos nítida que no outro modelo (do
“desenvolvimento externo”, RMM) e não corresponde a uma simples dicotomia setorial. Dentro
de cada uma das atividades principais – primárias, secundárias e terciárias – se estabelece uma
espécie de ‘corte horizontal’, que divide as camadas modernas das tradicionais ou estagnadas.
Por outro lado, os desníveis entre ambos universos parecem ser com frequência muito mais
pronunciados (…).(14)
No entanto, embora Pinto vislumbre a possibilidade de trabalhar com um aparato mais
sofisticado, que introduza um corte horizontal nos dois polos da economia, se limitará quase
sempre ao esquema bipolar, induzido em boa medida pelo material empírico que dispõe. No
fundo, sua preocupação gira em torno da concentração do progresso técnico no polo capitalista e
no constrangimento que isso implica para o desenvolvimento do outro polo, as questões do
emprego que dali decorrem e o efeito negativo que ambos fatores exercem sobre a distribuição
de renda, inclusive no interior deste mesmo polo capitalista.
O resultado é a distorção e a perda de dinamismo da industrialização. Referindo-se à situação dos
países mais industrializados, Brasil e México, Pinto observa:
Os dois maiores países da América Latina compartilham uma característica fundamental: que em
ambos, tanto do ângulo do progresso técnico como da renda, uma parte importante de seus
sistemas e da sua população foi deixada de fora do desenvolvimento. No entanto, parece claro
que o progresso dessas economias no presente e sobretudo no futuro próximo depende
principalmente do que se chama genericamente de consumo de massa, ou seja, da existência e
ampliação do mercado para as indústrias dinâmicas, basicamente as de bens de consumo
duráveis e intermediárias e as de capital que as sustentam.
Colocando jornalisticamente o problema, pode-se dizer que estes países dependem de um
mercado de massas – porém, sem massas que, de fato, o sustentem e ampliem-no
progressivamente no futuro.(15)
Após apontar e descartar uma mudança revolucionária, ressaltou, porém, que “mesmo uma
estratégia mais ‘moderada’ poderia exigir reduções na concentração da propriedade”,(16) o que se
exemplifica pela reforma agrária, apelando o autor, na boa tradição cepalina, à intervenção do
Estado para solucionar o problema, concluindo:
(…) considerando o conjunto dos eventuais efeitos de uma estratégia que maneje tanto as fontes
de distribuição de renda como as de realocação do progresso técnico, caberia aludir a
possibilidade não descartável de que essa implicasse uma moderação do impulso do setor
capitalista, que tem sido o foco dinâmico do sistema nas últimas décadas.(17)
Posto nestes termos, pouco resta da confiança que depositara a Cepal nas virtudes intrínsecas do
desenvolvimento econômico capitalista para assegurar o progresso e a justiça social na América
Latina. O desencanto de Furtado o leva a radicalizar suas posições e a confiar ao socialismo a
tarefa de romper a tendência inata do capitalismo latino-americano à estagnação. Sob sua
aparente moderação, a conclusão de Pinto é igualmente desesperada: diante da face perversa
assumida pelo capitalismo latino-americano, cabe ao Estado restringir a expansão do setor
moderno, ou seja, atuar contra o próprio desenvolvimento econômico, nos termos que a Cepal
havia concebido.
A crise do desenvolvimentismo significou a perda da posição privilegiada que a Cepal alcançara
na sua primeira década de funcionamento, quando chegara a ser a agência ideológica por
excelência na América Latina. A partir da sua nova posição, como respeitável órgão técnico, ela
seguirá realizando estudos e produzindo relatórios da melhor qualidade. Porém, o processo do
pensamento latino-americano à deixa para trás, dando lugar a novas manifestações teóricas.

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