RESUMO
A relação imagética entre Cyberpunk e os quadrinhos não data de hoje. Desde o reflexo de
The Long Tomorrow (1975), de Moebius, em Blade Runner (1982), de Ridley Scott, a
ambientação de futuro com retoques de passado conformou a estética fragmentada e caótica
(HARVEY, 2012) da cidade pós- moderna nas obras do cinema e nas HQs. Assim,
propomos nesse artigo discussões sobre as características estéticas da Ficção Científica
Cyberpunk em um dos meios de comunicação onde é propagada. Privilegiando a linguagem
dos quadrinhos, questionamos a possibilidade de uma estética e linguagem própria do
Cyberpunk em Cangaço Overdrive (2018), HQ brasileira roteirizada pelo cearense Zé
Wellington, onde o estado do Ceará, situado no nordeste brasileiro, enfrenta sua maior seca
em séculos. Nesse cenário, uma terra esquecida pelo governo e dominada pelos interesses
dos conglomerados empresariais, apresenta o duelo entre um lendário cangaceiro e um
impiedoso coronel, que reanimados nesse futuro possível, retornam para definir as arestas
que deixaram no passado. Pretendemos perceber em que medida, como gênero da ficção
científica, o Cyberpunk apresenta, ou não, divergências quando transferido para outras
mídias e contextos culturais. A obra citada ganha relevância por se tratar de uma narrativa
em cordel, reflexionando acerca da estilização do gênero Cyberpunk nos quadrinhos,
embasados em Barbieri (2017), McCloud (2004) e Bakhtin (2014), as características
híbridas dos estudos culturais, como Ortiz (2000) e Canclini (1990), além de um diálogo
com as bases da ficção cyberpunk, onde encontram-se Lemos (2002), Amaral (2006) e
Londero (2011). Por tratar-se de uma pesquisa em progresso, centrada nas reflexões sobre
gênero textual e na estética dessa Ficção Científica na literatura, no cinema e nas histórias
em quadrinhos, o trabalho ainda não nos fornece resultados parciais, os quais pretendemos
construir a partir dessa discussão recortada nos campos do Cyberpunk e das HQs.
INTRODUÇÃO
A HQ CANGAÇO OVERDRIVE
Figura 1 – “Cangaço Overdrive” reúne a narrativa cyberpunk no interior do Ceará através do Cordel
Fonte: CANGAÇO OVERDRIVE. São Paulo: Draco, 2018.
A proposta da obra é peculiar e procura reunir em 70 páginas de quadrinhos, a
sensação de estar em contato com obras referência do movimento, como Neuromancer, de
William Gibson e Blade Runner, assim como do pernambucano Chico Science e do poeta
popular Patativa do Assaré. O ambiente cyberpunk da cidade superpopulosa em extrema
pobreza convivendo com os arranha-céus da população rica é transposta na obra para a
comunidade carente renegada pela atuação das grandes corporações e de pobreza extrema, o
que para o autor, transforma “o produto final é um legítimo cyberpunk, mas sem perder a
regionalidade” (CARDIM, 2018).
Cordeiro (2010) também aponta que o cangaço é o tema mais recorrente dos cordéis
e que foram eles responsáveis pela narração de cangaceiros tidos como lendários na região,
como Lampião, Corisco e Antônio Silvino. Segundo ele,
boa parte das glorificações utópicas, e até mesmo sobrenaturais, do
Cangaço tiveram sua origem na literatura de cordel, sendo este um
elemento imprescindível para se compreender o enriquecimento do
imaginário nordestino acerca dos bandoleiros (CORDEIRO, 2010, p.34).
Tal literatura, de acordo com Kunz (2001) tem na temática religiosa um ciclo
importante, tendo a fé como resposta para seca e a penúria. A morte também é marca
recorrente dos cordelistas onde
não é tratada como o fim da vida, mas como a imagem inversa da vida.
Aos homens que não têm poder real sobre suas próprias vidas, o poeta
propõe um poder irreal sobre a morte (KUNZ, 2001, p.70).
1
Em definição no dicionário Oxford, a palavra Yuppie é elaborada nos anos de 1980 como acrônimo de
Young urban professional. Pessoa jovem com um bom trabalho e um apreço à moda.
Nayar expande as considerações sobre os formadores do cyberpunk como uma
extensão dos conceitos da Ficção Científica:
Adiante, McCaferry (1994, p. 250, tradução nossa3) escreve que o prefixo Cyber
representa o estudo teórico do controle do processo eletrônico, mecânico e sistema
biológico, especialmente o fluxo de informações em cada sistema, enquanto o punk
2
[...] while adding counter-cultural elements such as rock v ídeo and hacking as themes to mix. Cyberpunk is
the literary expression of both, a technologically minded (and propelled) counterculture and an ethos of
posthumanism.
3
The theorical study of control of process in electronic, mechanical, and biological systems, specially the flow
of information in such system
4
Has its roots in Anglo-American language and means “miserable, “worthless”, “waste” or “mucle”. Add, the
term ‘punk’ denotes a youth movement that began at ends of the 70’s and which refused civil norms, arising
before background of increasing economic and social crises.
5
“The word ‘punk’ also implies, generally speaking, an oppositional attitude towards dominant life-style and
capitalism, the rejection of borgeous norms, criticism of comsuption and a sort of preference of anarchy or
chaos” (WIEMKER, p.3)
6
“It’s ironic to think that if capitalism is responsible for the modern fantastic, then the modern fantastic is
more than happy to bit the hand that feeds it (McCARRON, 1995, p.272 apud AMARAL, 2004, p.4)
a parte do “cyber” do nome desse movimento reconhece o seu compromisso em
explorar as implicações de um mundo cibernético no qual a informação gerada
por computador e manipulada torna-se uma nova fundação da realidade. A parte
“punk” reconhece a sua atitude alienada e ás vezes cínica para com a autoridade e
o estabelecimento de todos os tipos (LANDON, 1997, p.160).
Em contraponto, Nayar (2010) adiciona à figura dos hackers fator chave para o
entendimento da literatura cyberpunk, na medida em que através da popularização do
consumo de massa da alta tecnologia, os hackers atuam como larápios do saber que
distribuem o conhecimento dos sofisticados softwares distantes dos gigantes monopólios
das metrópoles7. Essa procura constante por informações, o controle e a disseminação da
informação8, assim como o contato constante com dados e a tecnologia invasiva
proporcionam a hiperestatização do indivíduo, levando à uma alienação ou a transformação
do mundo ao seu redor.
Essa ação está de acordo com o que destaca Kellner (2001, p.83), afirmando que os
cyberpunks mantêm sempre a seu favor “o uso descentralizado da tecnologia a serviço dos
indivíduos”, procurando através da estreita ligação entre o presente descrito e o presente
7
The key theme is the popularization and mass consumption of high-tech where hackers and vendors possess,
use, and distribute sophisticated software that was once the monopoly of giant corporations.
8
Central to all cyberpunk is the theme of information: its collection, control, and dissemination. This theme
seems natural in an informational age where the right kind of data is truly priceless or dangerous.
vivido, como se o mundo ao redor estivesse além das “representações literárias” dos autores
posteriores, mas como uma urgência de viver o cyberpunk como uma atitude e visão em
relação ao mundo contemporâneo e à sociedade de informação.
Figura 3 – The Long Tomorrow, de Dan O’Bannon e Moebius, tornaram-se referências para
obras posteriores, entre elas Blade Runner.
Fonte: THE LONG TOMORROW. Estados Unidos: HM Communications, Inc, 1975.
Entendemos os quadrinhos como uma linguagem híbrida que conta uma história
combinando imagens e textos, de maneira que, como afirma Barbieri, através dessa
linguagem podemos
contar histórias relativas a muitos gêneros, e o mesmo gênero de história
pode ser contado em muitas linguagens. Por outro lado, cada linguagem se
dirige a um conjunto de gêneros privilegiados (BARBIERI, 2017, p.178).
Assim, sua hibridez tanto pode ser perpassada para as temáticas que aborda e para a
forma que conta e Cangaço Overdrive procura narrar uma história cyberpunk ambientada
no nordeste brasileiro fugindo de um pensamento canônico desse movimento, tipicamente
urbanizado em metrópoles como Tóquio, Nova Iorque, Londres, ou outra cidade que na
América do Norte, Europa ou Ásia. Porém, cabe a nós especificar que a estética possível
que procuramos discutir nesse trabalho não foi definida através da produção brasileira, haja
vista, nossa demarcação entre quadrinhos cyberpunk e quadrinhos sobre cyberpunk.
A nomenclatura tende a ser refutada por acreditar tratar-se apenas de uma questão
textual e que não apresentaria desdobramentos apresentáveis nas obras. Porém, convêm
ressaltar a diferença entre ambas que reside justamente na forma como a produção é
desenvolvida. Quando falamos de quadrinhos cyberpunk pensamos em obras que adiram
em si o caráter do movimento em termos de plataforma e conteúdo, ou seja, uma obra
veiculada no ciberespaço, uma produção em formato de fanzine ou produzido por uma
inteligência artificial ou por algoritmos. Enfim, uma maneira não convencional à produção
das histórias em quadrinhos em nosso presente.
Ao falar de quadrinhos sobre cyberpunk temos em mente uma história em
quadrinhos convencional que aborda a temática do movimento como narrativa principal e, a
partir dela, passa a desenvolver sua história sem as características que pontuamos
anteriormente. É aqui que Cangaço Overdrive deve se enquadrar, na medida em que
constatamos representações comuns às histórias em quadrinhos de ação como, por exemplo:
vinhetas retratadas com poucos diálogos, ritmo gráfico padrão com linhas brancas
demarcando e separando temporalmente as ações, além da formatação tradicional das
vinhetas apresentado por Barbieri (2017) como sequências retangulares organizadas em
tiras horizontais. Esquema esse quebrável por vinhetas mais largas ou mais altas,
“rompendo a regularidade das tiras” (2017, p. 131); ou mais altas ou mais baixas
modificando a “regularidade da sucessão das tiras” (2017, p.131).
Figura 3 – Exemplo da página de Cangaço Overdrive divido em três tiras.
Fonte: CANGAÇO OVERDRIVE. São Paulo: Draco, 2018.
Ao que tudo indica, o Cyberpunk guarda características estéticas representativas ao
longo do tempo e que são adaptadas ao regionalismo de Cangaço Overdrive sem uma
sobreposição. Esse regionalismo tende a ser um reflexo da homogeneização global
apresentado por Hall (2006), o que ocasiona justamente o interesse pelo local. Como “as
sociedades da periferia têm estado sempre abertas às influências culturais ocidentais”, não é
estranho querer adaptar um contexto tão específico como o cangaço ao cyberpunk, pois, ao
mesmo tempo em que reforçam o local, destacam o global através do hibridismo.
Dessa forma, percebe-se que a geografia (ambiente espacial da cidade), as temáticas
(tecnologia, corporações, desigualdade social) e os personagens (hackers, ciberativistas) são
adaptados à uma realidade similar e pouco provável do cangaço e do interior nordestino em
seca. Assim, estão ali as mesmas desigualdades, as mesmas corporações e o banditismo
social aliado à tecnologia de ativistas e hackers.
REFERÊNCIAS
AMARAL, Adriana. Visões Perigosas: uma arque-genealogia do cyberpunk. Porto Alegre: Sulina,
2006 239 p.
BARBIERI, D. As linguagens dos quadrinhos. Trad. Thiago de Almeida Castor do Amaral.
São Paulo: Peirópolis, 2017.
FACÓ, Rui. Cangaceiros e fanáticos: gênese e lutas . 4.ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,
1976. 231 p.
HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. 8. ed. Rio de Janeiro, RJ: DP & A,
2006. 102 p.
HEUSER, Sabine. Virtual geographies. Cyberpunk at the intersection of the postmodern and
science fiction. Amsterdam: Rodopi, 2003.
KUNZ, Martine Suzanne. Cordel: a voz do verso. Fortaleza, CE: Museu do Ceará; Secretaria da
Cultura e Desporto, 2001.
LANDON, Brooks. Science Fiction after 1900. From the steam man to the stars. NY: Twayne
Publishers, 1997.
LEMOS, André. Cibercultura: tecnologia e vida social na cultura contemporânea. Porto Alegre:
Sulina, 2002.
McCAFFERY, Larry. Storming the reality studio. A casebook of cyberpunk and postmodern
fiction. London: Duke University Press, 1994.