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A ESTÉTICA POSSÍVEL DO CYBERPUNK NA HQ CANGAÇO OVERDRIVE

Lucas Bernardo Reis

Universidade Federal do Ceará, Fortaleza, Brasil

RESUMO

A relação imagética entre Cyberpunk e os quadrinhos não data de hoje. Desde o reflexo de
The Long Tomorrow (1975), de Moebius, em Blade Runner (1982), de Ridley Scott, a
ambientação de futuro com retoques de passado conformou a estética fragmentada e caótica
(HARVEY, 2012) da cidade pós- moderna nas obras do cinema e nas HQs. Assim,
propomos nesse artigo discussões sobre as características estéticas da Ficção Científica
Cyberpunk em um dos meios de comunicação onde é propagada. Privilegiando a linguagem
dos quadrinhos, questionamos a possibilidade de uma estética e linguagem própria do
Cyberpunk em Cangaço Overdrive (2018), HQ brasileira roteirizada pelo cearense Zé
Wellington, onde o estado do Ceará, situado no nordeste brasileiro, enfrenta sua maior seca
em séculos. Nesse cenário, uma terra esquecida pelo governo e dominada pelos interesses
dos conglomerados empresariais, apresenta o duelo entre um lendário cangaceiro e um
impiedoso coronel, que reanimados nesse futuro possível, retornam para definir as arestas
que deixaram no passado. Pretendemos perceber em que medida, como gênero da ficção
científica, o Cyberpunk apresenta, ou não, divergências quando transferido para outras
mídias e contextos culturais. A obra citada ganha relevância por se tratar de uma narrativa
em cordel, reflexionando acerca da estilização do gênero Cyberpunk nos quadrinhos,
embasados em Barbieri (2017), McCloud (2004) e Bakhtin (2014), as características
híbridas dos estudos culturais, como Ortiz (2000) e Canclini (1990), além de um diálogo
com as bases da ficção cyberpunk, onde encontram-se Lemos (2002), Amaral (2006) e
Londero (2011). Por tratar-se de uma pesquisa em progresso, centrada nas reflexões sobre
gênero textual e na estética dessa Ficção Científica na literatura, no cinema e nas histórias
em quadrinhos, o trabalho ainda não nos fornece resultados parciais, os quais pretendemos
construir a partir dessa discussão recortada nos campos do Cyberpunk e das HQs.

PALAVRAS-CHAVE: Cyberpunk; Cangaço Overdrive; Estética.

INTRODUÇÃO

O que define o Cyberpunk? Quais elementos narrativos e estéticos são


preponderantes para enquadrar um objeto como tal? Tais elementos são sempre iguais ou
alteram-se de acordo com a localização? Adaptam-se? Transforma-se? São eliminados?
Diante mais de dúvidas do que de certezas é que nasce a proposta desse artigo, inserido no
âmbito da pesquisa desenvolvida à nível de mestrado no Programa de Pós-graduação em
Comunicação da Universidade Federal do Ceará (PPGCOM/UFC), no qual procuramos
estudar o fenômeno Cyberpunk na linguagem do cinema e dos quadrinhos, enfatizando suas
questões narrativas e estéticas.
No ano de 1975 era lançada como parte integrante da revista americana Heavy
Metal, em duas partes, a história The Long Tomorrow, escrita por Dan O’Bannon e
desenhada por Jean Geraud, Moebius, onde são apresentadas através de uma paródia noir
“uma meticulosamente detalhada cidade futurista” (SAMMON, 2017, p. 83). Cinco anos
depois e influências à parte, as audiências americanas contavam com outra obra futurista,
agora no cinema, Blade Runner, do diretor britânico Ridley Scott que também apresentava
um ambiente noir numa cidade futurista superpopulosa e vigilante. Essa acabou tornando-se
padrão para o movimento literário que viria a surgir em 1984 com a publicação de
Neuromancer, nascia assim o Cyberpunk.
Ademais, nossa intenção não é retratar a gênese desse movimento, tampouco
apresentar as obras que contribuíram para manter seu reconhecimento ainda hoje. Na
verdade, pretendemos perceber o que emerge dele quando adaptado entre mídias, focando
nas características estéticas na linguagem dos quadrinhos e discutindo a possibilidade de
uma estética própria a partir das páginas de Cangaço Overdrive.
Ao longo da discussão, pretendemos perceber em que medida essas emergências são
ou não divergentes quando presentes em mídias e contextos culturais específicos, haja vista,
a HQ ser ambientada no sertão cearense e apresentar um formato narrativo peculiar com
literatura de cordel.

A HQ CANGAÇO OVERDRIVE

Uma terra esquecida pelo governo e dominada pelos interesses dos


conglomerados empresariais, apresenta o duelo entre um lendário
cangaceiro e um impiedoso coronel, que reanimados nesse futuro possível,
retornam para definir as arestas que deixaram no passado. Enquanto isso,
uma comunidade autogerida tenta manter a independência ao defender sua
terra de um ataque da polícia orquestrado por uma grande corporação.
(CANGAÇO OVERDRIVE, 2018).

Com esse enredo, os artistas Zé Wellington e Walter Geovani apresentam um Ceará


imerso em tecnologia avançada capaz de abrigar ciborgues, conexões neurais, hackers,
inteligência artificial e até ressurreições corporais mas com conflitos sociais típicos do
presente das metrópoles, que aqui são extrapolados para um futuro que não parece tão
distante de nós. O regionalismo da obra é retratada através da comunidade do Preá através
de um noir futurista, ou neo-noir, que contêm as obras produzidas após o ciclo da década de
1950 mantenedoras da mesma alienação, pessimismo, ambivalência moral e a desorientação
das obras clássicas (CONARD, 2007). De acordo com Zé Wellington,

a partir de uma história de deslocamento, imaginando um cangaceiro


reanimado num futuro distópico, Cangaço Overdrive quer mostrar como o
contraste social pode também tornar frágeis os limites entre bem e mal
(CARDIM, 2018).

Figura 1 – “Cangaço Overdrive” reúne a narrativa cyberpunk no interior do Ceará através do Cordel
Fonte: CANGAÇO OVERDRIVE. São Paulo: Draco, 2018.
A proposta da obra é peculiar e procura reunir em 70 páginas de quadrinhos, a
sensação de estar em contato com obras referência do movimento, como Neuromancer, de
William Gibson e Blade Runner, assim como do pernambucano Chico Science e do poeta
popular Patativa do Assaré. O ambiente cyberpunk da cidade superpopulosa em extrema
pobreza convivendo com os arranha-céus da população rica é transposta na obra para a
comunidade carente renegada pela atuação das grandes corporações e de pobreza extrema, o
que para o autor, transforma “o produto final é um legítimo cyberpunk, mas sem perder a
regionalidade” (CARDIM, 2018).

Também é destaque em Cangaço Overdrive, o banditismo social característico do


sertão nordestino entre meados do século XIX e XX, estendendo-se até a década de 1940
com a morte do cangaceiro Corisco. Tal bandistismo é representado pela figura de Cotiara,
cangaceiro ressuscitado após anos após seu desígnio final e que não compreende como e
porque retornou à vida. O autor demonstra a importância desse período histórico típico do
nordeste brasileiro ressaltando que

enquanto cruzavam um Nordeste esquecido pelo estado, Lampião e outros


cangaceiros famosos roubavam e aterrorizavam a população. Mesmo
assim, este período é lembrado com certo saudosismo, sendo o cangaceiro
uma das figuras culturais mais relacionadas à região da caatinga
(CARDIM, 2018).

É inserido nesse contexto que Cangaço Overdrive ganha importante relevância


quando se trata de pensar o Cyberpunk, na medida em que o movimento apresenta
características que já datam 40 anos e com o passar do tempo foram e são utilizadas por
autores em diversas linguagens e, acreditamos, que sofrem adaptações para localização à
região onde se inserem no momento. Dessa forma, elementos estéticos dos quadrinhos e do
próprio movimento mudariam ou eles continuariam presentes mesmo numa obra com
caráter regional? Eis a questão a ser discutida no decorrer do trabalho.
CANGACEIROS E CORDELISTAS
Fenômeno tipicamente nordestino, tem seu nome derivado da “canga”, que de
acordo com Doria (1981, p.24) era “o nome dado ao armamento do indivíduo que andava
de bacamarte passado sobre os ombros”. Assim, Carneiro destaca que convencionou-se
compreender o Cangaço como
a forma de banditismo própria da área do sertão do nordeste brasileiro e
caracterizada pela profusão de grupos criminosos a exercerem atividade
similares. Desde meados do século XIX, com apogeu durante a década de
1920 e ocaso (vinculado a morte do Cangaceiro Corisco) em 1940, vários
bandos organizados em torno de líderes hegemônicos e possuidores de
uma hierarquia específica, realizaram incursões armadas, assaltando
cidades e disseminando a violência pela região. Geralmente formados por
sertanejos de poucas posses, os grupos cangaceiros se relacionavam com a
sociedade e a população do sertão de forma ambígua. Estabeleciam
acordos de ajuda mútua com lideranças locais e famílias e, em prol destes,
eram conforme os interesses defendidos, simultaneamente opressores e
defensores de membros da população. Agiam inseridos em uma relação de
poder que os transcendia mas da qual eram engrenagem importante
(CARNEIRO, 2010, p.10).

O pesquisador cearense Rui Facó (1976) complementa o exceto anterior, destacando


as figuras do cangaceiro e do fanático, “pobres do campo que saiam de uma apatia
generalizada para as lutas que começavam a adquirir caráter social” (1976, p.37). Ainda que
a matriz do surgimento do cangaço não estivesse apenas na propriedade fundiária, como
também, “em todo o atraso econômico no isolamento do meio rural, no imobilismo social”
(1976, p.36), o autor aponta para o simplismo dos efeitos que causavam profundamente na
sociedade nordestina.
Carlos Alberto Doria (1981) apresenta o banditismo como um “modo de vida”
(1981, p.15) que “existe de forma latente durante um longo período, tornando-se mais
agudo por ocasião de uma seca prolongada, uma catástrofe natural; situação idêntica à
retratada em Cangaço Overdrive. O autor ressalta que a carreira no banditismo iniciava por
injustiça ou vingança e que não havia inimizade com “os poderosos em geral — não
combate a classe dominante —, mas apenas as autoridades e os opressores locais,
responsáveis diretos pelas injustiças (1981, p.15). Para ele,
o cangaço independente modelava-se à imagem e semelhança da ordem
patriarcal, consolidando a sua própria clientela, e constituindo-se inclusive
em forma de acesso a áreas de realização, não apenas econômica, até
então inatingíveis para a maioria da gente simples (DORIA, 1981, p.15).

Daqui também surge a figura do “cangaceiro-herói” (DORIA, 1981, p.37) que é


perpassada pelos produtores culturais ao longo das décadas, se modernizando e
apresentando o cangaceiro envolvidos como mazelas do mundo moderno (DORIA, 1981),
constatado por Cordeiro (2010) como uma apresentação desse cenário nordestino e seu
conhecimento por outras regiões do Brasil devendo muito mais às produções artísticas e
populares de que propriamente da historiografia da época. A literatura de cordel é uma das
principais linguagens responsáveis por essa difusão, onde
sua narrativa em versos conta histórias populares, frequentemente
baseadas em fatos contemporâneos, mas sempre pautadas pela
interferência criativa de seus autores quanto à forma e ao conteúdo. Sendo
assim, histórias esdruxulas coexistem com neologismos em pequenos
livretos versados de mais ou menos quinze páginas (CORDEIRO, 2010,
p.30).

Cordeiro (2010) também aponta que o cangaço é o tema mais recorrente dos cordéis
e que foram eles responsáveis pela narração de cangaceiros tidos como lendários na região,
como Lampião, Corisco e Antônio Silvino. Segundo ele,
boa parte das glorificações utópicas, e até mesmo sobrenaturais, do
Cangaço tiveram sua origem na literatura de cordel, sendo este um
elemento imprescindível para se compreender o enriquecimento do
imaginário nordestino acerca dos bandoleiros (CORDEIRO, 2010, p.34).

Tal literatura, de acordo com Kunz (2001) tem na temática religiosa um ciclo
importante, tendo a fé como resposta para seca e a penúria. A morte também é marca
recorrente dos cordelistas onde
não é tratada como o fim da vida, mas como a imagem inversa da vida.
Aos homens que não têm poder real sobre suas próprias vidas, o poeta
propõe um poder irreal sobre a morte (KUNZ, 2001, p.70).

Filho da oralidade, o cordel é, tradicionalmente, formado por uma “sextilha de seis


linhas de versos de sete sílabas” (CURRAN, 1973, p.24) e têm na voz e na performance,
que supõe a presença física de quem fala e de quem escuta (KUNZ, 2001), sua principal
forma de transmissão. A autora também destaca a versificação dos textos, realizados
no encontro entre recitante e ouvintes, na confluência das duas presenças.
[...] Uma literatura onde o texto é receptáculo da voz, e a palavra de vários
autores move-se entre tradição e criação, para contar um só herói, uma só
história (KUNZ, 2001, p.81).

Meio de transmissão das ideias do povo nordestino, o cordel transforma-se com o


passar dos anos e continua narrando as histórias do passado, presente e do futuro, como
lemos em Cangaço Overdrive. Como afirma Curran (1973, p.73), é ele que “representa a
cultura e pensamento de uma classe de indivíduos que de outra maneira nunca teriam
expresso seu pensamento”.

TÓPICOS SOBRE CYBERPUNK


Entendemos o cyberpunk como um movimento intrinsecamente ligado ao contexto
da década de 1980, onde, segundo De Kerckhove (1995), figuras como os yuppies1 foram
substituídos pelos cyberpunks e a cultura da velocidade e do consumismo (1995, p.188)
envolviam completamente as economias de mercado ocidentais. Em meio a proliferação
dos computadores pessoais, das conexões velozes e do fluxo de informações crescente
(KELLNER, 2001), escritores e o pensadores da nascente tecnologia da informação
perceberam um fértil campo para estudo e prática literária.

Em 1983 temos a gênese da palavra cyberpunk, pelo escritor norte-americano Bruce


Bethke, no conto homônimo publicado na revista Amazing Sciente Fiction Stories (NAYAR,
2010). Porém, é no ano de 1984, com Neuromancer, de William Gibson, que a relação entre
tecnologia da informação e um espaço permeado pelos processos de feedback e
retroalimentação da cibernética, ou seja, o ciberespaço, torna-se um possível fator de
mudança na ordem social. Assim,

o cyberpunk é um produto definitivo dos anos 80, embora suas raízes


estejam colocadas na tradição da FC moderna popular, tanto da época
dourada, mas mais profundamente da New Wave. Tudo isso unido à
cultura pop dos anos 80, seja o rock, a arte performática, a cultura hacker,
e todas as manifestações underground de arte (AMARAL, 2006, p. 73).

1
Em definição no dicionário Oxford, a palavra Yuppie é elaborada nos anos de 1980 como acrônimo de
Young urban professional. Pessoa jovem com um bom trabalho e um apreço à moda.
Nayar expande as considerações sobre os formadores do cyberpunk como uma
extensão dos conceitos da Ficção Científica:

ao adicionar elementos da contracultura como os vídeos de rock rock e o


hackerismo como temas que se misturam. Cyberpunk é a expressão
literária de ambos, uma inclinação tecnológica (e impulsionada)
contracultura e um ethos de pós-humanismo (2010, p.36, tradução nossa2).

Adiante, McCaferry (1994, p. 250, tradução nossa3) escreve que o prefixo Cyber
representa o estudo teórico do controle do processo eletrônico, mecânico e sistema
biológico, especialmente o fluxo de informações em cada sistema, enquanto o punk

tem suas raízes na línguagem anglo-americana e significa “miserável”,


inútil, “perdido” ou “mucle”. Adicionando, o termo punk denota um
movimento da juventude que começou no final dos anos de 1970 e que se
recusou a seguir as normas civis, surgindo antes do aprofundamento das
crises sociais e econômicas. (WIEMKER, [2007?], p.3, tradução nossa4).
No punk está a ironia da palavra ao pensarmos que o mesmo remonta à uma
oposição de atitudes que se dirigem do estilo de vida dominador do capitalismo em relação
ao caos ou a anarquia5. Ao mesmo tempo, o que nos causa grande fascínio é a dicotomia
apresentada por um mesmo capitalismo que torna-se propulsor da Ficção Científica e que
vê um de seus produtos voltando-se contra seu sistema a partir das ferramentas que tem
cedidas pelo pretenso inimigo6.

Landon (1997) e Amaral (2006) apresentam o cyber e o punk a partir do ato de


explorar o mundo cibernético e a contra- autoridade. Para o primeiro,

2
[...] while adding counter-cultural elements such as rock v ídeo and hacking as themes to mix. Cyberpunk is
the literary expression of both, a technologically minded (and propelled) counterculture and an ethos of
posthumanism.
3
The theorical study of control of process in electronic, mechanical, and biological systems, specially the flow
of information in such system
4
Has its roots in Anglo-American language and means “miserable, “worthless”, “waste” or “mucle”. Add, the
term ‘punk’ denotes a youth movement that began at ends of the 70’s and which refused civil norms, arising
before background of increasing economic and social crises.
5
“The word ‘punk’ also implies, generally speaking, an oppositional attitude towards dominant life-style and
capitalism, the rejection of borgeous norms, criticism of comsuption and a sort of preference of anarchy or
chaos” (WIEMKER, p.3)
6
“It’s ironic to think that if capitalism is responsible for the modern fantastic, then the modern fantastic is
more than happy to bit the hand that feeds it (McCARRON, 1995, p.272 apud AMARAL, 2004, p.4)
a parte do “cyber” do nome desse movimento reconhece o seu compromisso em
explorar as implicações de um mundo cibernético no qual a informação gerada
por computador e manipulada torna-se uma nova fundação da realidade. A parte
“punk” reconhece a sua atitude alienada e ás vezes cínica para com a autoridade e
o estabelecimento de todos os tipos (LANDON, 1997, p.160).

Já a segunda ressalta que


o cyber nos remete às origens filosóficas e também literárias do conceito,
enquanto o punk traz à tona o lado da contracultura, do protesto, do não
controle, do underground, da atitude dos hackers, da experiência empírica
das tribos urbanas ligadas à tecnologia (AMARAL 2006, p.74).
Partindo da união entre teoria e ficção, Kellner (2001) define cyber e punk
oferecendo mais pistas sobre as características temáticas. Segundo ele,

Cyber é grego; significa controle. Com ela foi formada a palavra


cibernética, indicativa de um sistema de controle altamente tecnológico
que combina computadores, novas tecnologias e realidades artificiais
como estratégia de manutenção e controle [...] O punk, [...] indica a
rispidez e a atitude da dura vida urbana [...] Como fenômeno subcultura,
cyberpunk [...] significa uma postura vanguardista incisiva em relação à
tecnologia e a cultura ávida de abraçar o novo e disposta a rebelar-se
contra as estruturas e as autoridades estabelecidas (KELLNER, 2001,
p.383 – grifo nosso).
Gomes, Londero e Araújo (2009, p.111) adicionam mais a significação do termo
que, além de um fato social é “um subgênero da Ficção Científica” em meio a um “mundo
globalizado e dominado pela desigualdade socioeconômica e, fundamentalmente,
tecnológica”. Amaral vê o termo cyberpunk

diretamente ligado às teorias contemporâneas da cibercultura, pois tanto o


cyberpunk é uma fonte para essas teorias, sendo estudado por diversos
autores, quanto, na contramão, as teorias fundamentam cultural e
socialmente esse tipo de ficção (AMARAL, 2006, p.41).
Amaral (2006) também defende que de um ramo da Ficção Científica, o cyberpunk
também integra uma subcultura, na medida em que apresenta um caráter “político e social”.
Como um de seus polos formadores, a prática literária cyberpunk surge da união de um
subgênero da Ficção Científica com as teorias da Cibercultura, a partir de autores como
William Gibson, Bruce Sterling, Neal Stephenson, Pat Cadigan, que escreviam sobre o
avanço da tecnologia, relações sociais destruídas ou ampliadas pela tecnologia, o desdém
com corpo humano, ideais pós-humanos, onde o ser humano encontra-se no limiar do real e
virtual e a ascensão dos ciborgues.

A partir de Neuromancer (1984), o cyberpunk flerta com o status de “literatura


séria”, tendo na dicotomia um importante fator de difusão como um subgênero da Ficção
Científica que vagueia entre o cult e o mainstream. O cenário do cyberpunk começa a sofrer
mudanças e caminhar para um pensamento unificado entre literatura e teoria, assumindo-se
como uma apresentação do material tecnológico da sociedade (AMARAL, 2006) e como
uma representação da ascendente sociedade da informação oitentista.

O trabalho de Gomes, Londero e Araújo (2009) aponta os principais personagens da


literatura cyberpunk, indo dos hackers à mercenários. Porém, é a figura do andarilho, como
“o pesquisador do infinito” (2009, p.115), a mais recorrente no subgênero e mais importante
para os autores. Esse acaba transposto das estradas desérticas empoeiradas para o
ciberespaço, em meio a uma aspiração medieval de vida eterna, onde o corpo humano é
desprezado para transformar-se em dados materiais, traço característico do ciberespaço.

Em contraponto, Nayar (2010) adiciona à figura dos hackers fator chave para o
entendimento da literatura cyberpunk, na medida em que através da popularização do
consumo de massa da alta tecnologia, os hackers atuam como larápios do saber que
distribuem o conhecimento dos sofisticados softwares distantes dos gigantes monopólios
das metrópoles7. Essa procura constante por informações, o controle e a disseminação da
informação8, assim como o contato constante com dados e a tecnologia invasiva
proporcionam a hiperestatização do indivíduo, levando à uma alienação ou a transformação
do mundo ao seu redor.

Essa ação está de acordo com o que destaca Kellner (2001, p.83), afirmando que os
cyberpunks mantêm sempre a seu favor “o uso descentralizado da tecnologia a serviço dos
indivíduos”, procurando através da estreita ligação entre o presente descrito e o presente

7
The key theme is the popularization and mass consumption of high-tech where hackers and vendors possess,
use, and distribute sophisticated software that was once the monopoly of giant corporations.
8
Central to all cyberpunk is the theme of information: its collection, control, and dissemination. This theme
seems natural in an informational age where the right kind of data is truly priceless or dangerous.
vivido, como se o mundo ao redor estivesse além das “representações literárias” dos autores
posteriores, mas como uma urgência de viver o cyberpunk como uma atitude e visão em
relação ao mundo contemporâneo e à sociedade de informação.

Para Susser (1992) é característica do cyberpunk a oposição entre os organismos


vivos e as máquinas, assim como a revolta e a melancolia do presente vivido em relação ao
porvir. Similar ao destacado por Heuser (2003), onde o primordial está na extrapolação do
ser humano, como visto na obra Neuromancer. Por fim, ainda podemos perceber o
movimento como uma atitude e um modelo de atuação próprio do século XXI,
apresentando o caráter ativista e libertador a ser perpetuado através das tecnologias, como
demonstra o pensamento de André Lemos:

a cultura cyberpunk não é somente uma corrente de Ficção Científica, mas um


fato sociológico irrefutável, uma mistura de esoterismo, programação de
computador, pirataria e Ficção Científica, influenciada pela contracultura
americana e pelos humores dos anos 80. [...] A atitude cyberpunk é, acima de
tudo, um comportamento irreverente e criativo frente às novas tecnologias digitais
(LEMOS, 2002, p.212)

QUADRINHOS SOBRE CYBERPUNK

Após a apresentação do eixos teóricos do trabalhos, a presenta seção objetiva


apresentar nossa análise e os resultados parciais da pesquisa. Em se tratando de cyberpunk
nas histórias em quadrinhos é caro em nossa análise que há uma disseminação estética de
conceitos e um âmbito político e social, por personagens como os hackers ou ciberativistas
e que em Cangaço Overdrive tem aderido a figura do cangaceiro como um fator de
transformação. Obras como The Long Tomorrow (1975) e Transmetropolitan (1997)
definem e refletem esteticamente o que vem a ser a representação do Cyberpunk com
arranha-céus, poluição visual, melancolia, neurose social e criminalidade.
Figura 2 – Transmetropolitan de Warren Ellis narra as aventura do jornalista futurista Spider
Jerusalem baseado no escritor gonzo Hunter S. Thompson.
Fonte: TRANSMETROPOLITAN. São Paulo: Panini Comics, 2010.

Figura 3 – The Long Tomorrow, de Dan O’Bannon e Moebius, tornaram-se referências para
obras posteriores, entre elas Blade Runner.
Fonte: THE LONG TOMORROW. Estados Unidos: HM Communications, Inc, 1975.

Entendemos os quadrinhos como uma linguagem híbrida que conta uma história
combinando imagens e textos, de maneira que, como afirma Barbieri, através dessa
linguagem podemos
contar histórias relativas a muitos gêneros, e o mesmo gênero de história
pode ser contado em muitas linguagens. Por outro lado, cada linguagem se
dirige a um conjunto de gêneros privilegiados (BARBIERI, 2017, p.178).

Assim, sua hibridez tanto pode ser perpassada para as temáticas que aborda e para a
forma que conta e Cangaço Overdrive procura narrar uma história cyberpunk ambientada
no nordeste brasileiro fugindo de um pensamento canônico desse movimento, tipicamente
urbanizado em metrópoles como Tóquio, Nova Iorque, Londres, ou outra cidade que na
América do Norte, Europa ou Ásia. Porém, cabe a nós especificar que a estética possível
que procuramos discutir nesse trabalho não foi definida através da produção brasileira, haja
vista, nossa demarcação entre quadrinhos cyberpunk e quadrinhos sobre cyberpunk.
A nomenclatura tende a ser refutada por acreditar tratar-se apenas de uma questão
textual e que não apresentaria desdobramentos apresentáveis nas obras. Porém, convêm
ressaltar a diferença entre ambas que reside justamente na forma como a produção é
desenvolvida. Quando falamos de quadrinhos cyberpunk pensamos em obras que adiram
em si o caráter do movimento em termos de plataforma e conteúdo, ou seja, uma obra
veiculada no ciberespaço, uma produção em formato de fanzine ou produzido por uma
inteligência artificial ou por algoritmos. Enfim, uma maneira não convencional à produção
das histórias em quadrinhos em nosso presente.
Ao falar de quadrinhos sobre cyberpunk temos em mente uma história em
quadrinhos convencional que aborda a temática do movimento como narrativa principal e, a
partir dela, passa a desenvolver sua história sem as características que pontuamos
anteriormente. É aqui que Cangaço Overdrive deve se enquadrar, na medida em que
constatamos representações comuns às histórias em quadrinhos de ação como, por exemplo:
vinhetas retratadas com poucos diálogos, ritmo gráfico padrão com linhas brancas
demarcando e separando temporalmente as ações, além da formatação tradicional das
vinhetas apresentado por Barbieri (2017) como sequências retangulares organizadas em
tiras horizontais. Esquema esse quebrável por vinhetas mais largas ou mais altas,
“rompendo a regularidade das tiras” (2017, p. 131); ou mais altas ou mais baixas
modificando a “regularidade da sucessão das tiras” (2017, p.131).
Figura 3 – Exemplo da página de Cangaço Overdrive divido em três tiras.
Fonte: CANGAÇO OVERDRIVE. São Paulo: Draco, 2018.
Ao que tudo indica, o Cyberpunk guarda características estéticas representativas ao
longo do tempo e que são adaptadas ao regionalismo de Cangaço Overdrive sem uma
sobreposição. Esse regionalismo tende a ser um reflexo da homogeneização global
apresentado por Hall (2006), o que ocasiona justamente o interesse pelo local. Como “as
sociedades da periferia têm estado sempre abertas às influências culturais ocidentais”, não é
estranho querer adaptar um contexto tão específico como o cangaço ao cyberpunk, pois, ao
mesmo tempo em que reforçam o local, destacam o global através do hibridismo.
Dessa forma, percebe-se que a geografia (ambiente espacial da cidade), as temáticas
(tecnologia, corporações, desigualdade social) e os personagens (hackers, ciberativistas) são
adaptados à uma realidade similar e pouco provável do cangaço e do interior nordestino em
seca. Assim, estão ali as mesmas desigualdades, as mesmas corporações e o banditismo
social aliado à tecnologia de ativistas e hackers.

REFERÊNCIAS

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