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Poucos discordarão que as turbulências que nos tornam cada vez mais
perplexos, inseguros e irados não são apenas os efeitos passageiros de mais uma
das inúmeras crises que de vez em quando abalam a acumulação de riquezas, nos
inquietam durante algum tempo, e depois se mostram até positivas para a
continuidade da estrutura social que conhecemos. Nos últimos vinte ou trinta anos
vêm se consolidando a convicção de vivemos mudanças profundas, que nos
encaminham para um padrão de sociabilidade que pode ser angustiante1. Não
obstante as divergências quanto aos conteúdos e ao sentido histórico, há consenso
no que diz respeito à identificação da reorganização da vida econômica em escala
mundial, que tem se mostrado muito heterogênea e rebelde às tentativas de controle
por parte de governos e outras coletividades organizadas2.
∗
Este texto é uma versão ligeiramente modificada de trabalho publicado em Travessias, nº 2/3-
2000/2001, Associação de Ciências Sociais e Humanas em Língua Portuguesa, Rio de Janeiro,
setembro de 2002.
1
Cfr., Bauman, 1999 e Sennet, 1999, como exemplos de tentativas de formulação racional para
questões desta natureza.
2
Também aqui os exemplos se multiplicam. A título de ilustração, cfr. Rosanvallon, 1995; Castel,
1997a, 1997b, 1997c; 1998; Lautier, 1999.
2
social3 – e aqui o outro fundador da moderna ciência social a ser relembrado
é Durkheim, que não se cansou de insistir sobre este ponto.
Proponho que o desequilíbrio no tratamento destas duas faces do trabalho
é prejudicial a uma compreensão adequada do tempo presente. É fora de dúvida
que por todo o lado o desemprego e a miséria alimentam os pesadelos de grandes
massas da população do mundo inteiro. Mas esta não é a única, e talvez nem
mesmo a principal, fonte da perplexidade, do medo e da raiva (substitutos
contemporâneos da atitude blasé, correspondente à fase “organizada” do
capitalismo moderno?) que compõem o clima emocional da atualidade. Este é
nutrido em boa parte pelas carências de integração sistêmica, às vezes disfarçadas
sob a forma de conservadorismo ou alienação nos comportamentos observados
(como parece ser o caso da defesa – e da prática – da competição irrestrita em
todos os domínios da vida social), outras vezes explicitadas discursivamente para
justificar práticas que podem ser, elas mesmas, disruptivas (como quando a
criminalidade organizada se defende apelando para a “crítica social”). Desta ótica,
pode-se dizer que estamos em pleno período de desconstrução do assalariamento,
um multifacetado processo de reorganização do trabalho que diz respeito a
praticamente todos os aspectos da estrutura social. É claro que esta afirmativa só
pode fazer sentido se considerarmos que o termo designa não a mera forma
contratual das relações de trabalho mas todo um regime de organização social da
produção. Porém, nesta acepção mais ampla (e mais forte), “assalariamento” corre o
risco de tornar-se uma expressão omnibus que, incluindo tudo, acaba por não
significar mais nada. Por isso, não é ocioso indicar os dois principais aspectos de
suas transformações que podem ser considerados significativos para a questão da
integração social.
3
Para uma análise de uma face desta questão que não será abordada nestas notas – a
desintegração das funções da escola enquanto promessa de integração econômica, forjada durante
os anos dourados do capitalismo, ver Gentili
4
Vinte anos atrás, J.S.Leite Lopes e eu mencionamos a existência de um processo conjugado de
obreirização-desobreirização para indicar a oscilação dos trabalhadores em um mercado segmentado
(“Introdução”, in J.S.Leite Lopes et allii: A Reprodução da Subordinação, Paz E Terra, S.Paulo, 1979).
Atualmente, com o galopante desemprego industrial que, além da economias centrais também atinge
3
cada vez mais dificuldades para se manter como referência central na
organização da existência de crescentes contingentes de trabalhadores5 . Além
disso, se autores como Claus Offe têm razão, a semelhança formal das relações de
trabalho na indústria e nos serviços – o contrato de trabalho assalariado – esconde
diferenças substantivas nos conteúdos das atividades realizadas, na formação da
auto-imagem dos trabalhadores e em sua visão de mundo, dificultando o
reconhecimento de que os serviços tornam-se cada vez mais uma condição da
produção industrial, não sendo mera conseqüência da expansão desta, como se
costumava pensar (Offe, 19... texto do curso). Assim, a terciarização parece ser um
fenômeno muito mais profundo do que a simples queda da participação da indústria
no emprego total. É desnecessário dizer que afirmar isto não implica tomar partido
em favor de modelos de sociedade “pós-industrial”, nem muito menos defender o fim
da subordinação do trabalho ao capital – um tipo de discussão que não interessa
aqui.
6
É desnecessário mencionar a imensa literatura latino-americana e européia sobre a exclusão social
e suas variantes, como a discussão americana sobre a “underclass” (Wacquant, 2001), Paugam
(1998), Véras (1999).
6
Entretanto, esta combinação virtuosa entre um desenvolvimento
técnico (“natural”, “espontâneo”, não intencional) cujo requisito é a crescente
proteção da capacidade de reprodução dos trabalhadores (“intencional”,
“consciente”), gerando ao mesmo tempo a expansão da produção de massa e uma
auto-imagem positiva da população trabalhadora, se volatiliza com as mencionadas
tendências à fragmentação social. Esvaziada de sua sustentação, a cultura do
trabalho que conhecemos tem cada vez menos condições de se reproduzir como um
sistema coerente e significativo de orientações de valor, capazes de organizar as
identidades e os conflitos de parcelas cada vez maiores da população de nossos
países – embora, sem dúvida, muitos de seus elementos continuem presentes
(Heloani, 1994; Pinto e Silva, 2000; Linhart, 2000; Rummert, 2000)
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