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UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA

Autorização Decreto nº 9237/86. DOU 18/07/96. Reconhecimento: Portaria 909/95, DOU 01/08-95.

DEPARTAMENTO DE EDUCAÇÃO
CAMPUS II – ALAGOINHAS
COLEGIADO DE LETRAS, LÍNGUA INGLESA E LITERATURAS.

Filipe de Cristo Almeida Pena1

A SOCIEDADE SOB OS OLHARES DO POEMA DE CAROLINA MARIA DE JESUS


E DA MÚSICA DE LAURYN HILL

Resumo: Esse artigo pretende analisar o poema “Humanidade” da escritora Carolina


Maria de Jesus e a música “Neurotic Society” da cantora Lauryn Hill, a fim de provocar
diálogos intertextuais entre as obras. Com efeito a evidenciar aproximações e
distanciamentos discursivos, bem como modos de representações da sociedade pós-
contemporânea, demonstrando que a relação entre literatura e música entre outras
coisas serve para humanizar.

Palavras-chave: Carolina Maria de Jesus; Lauryn Hill; Representação da Sociedade


Pós Contemporânea; Intertextualidade.

Abstract: This article intends to analyze the poem "Humanity" of the writer Carolina
Maria de Jesus and the song "Neurotic Society" of the singer Lauryn Hill, in order to
provoke intertextual dialogues between the works. In fact, it reveals discursive
approximations and distances, as well as modes of representations of post-
contemporary society, demonstrating that the relationship between literature and music
among other things serves to humanize.

Keywords: Carolina Maria de Jesus; Lauryn Hill; Representation of the Post-Modern


Society; Intertextuality.

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1. Apresentação das autoras

1.1 Carolina Maria de Jesus

Carolina Maria de Jesus foi uma escritora brasileira nascida em uma


comunidade rural de Minas Gerais. Costumava escrever poemas a partir
do seu cotidiano como catadora de lixo quando foi morar em uma favela
do Canindé, pertencente ao estado de São Paulo. Do lixão, recolhia
cadernos velhos onde fazia os seus registros.
Carolina não frequentou a escola com regularidade, passando apenas
um ano e meio de sua vida estudando, mas isso foi o suficiente para
deixar em sua bibliografia oito livros publicados, sendo quatro deles
póstumos. O primeiro, publicado em 1960, foi “Quarto de Despejo”. O
livro relata o dia a dia dos moradores da favela em que a escritora
morava e todos os problemas encontrados por lá, como a fome e a
violência, por exemplo.

1.2 Lauryn Hill

Lauryn Hill começou sua carreira no grupo de hip hop chamado The
Fugees. Começando a se destacar em algumas canções, a artista lança
seu primeiro disco solo em 1998, o “The Miseducation of Lauryn Hill”
paralelo a banda, e vê, logo após o lançamento, o reconhecimento da
obra. Alcançou o topo das paradas de sucesso internacionais e vendeu
18 milhões de cópias, além de conquistar cinco troféus no Grammy
Award, o maior e mais prestigioso prêmio da indústria musical
americana.

2. Diálogos intertextuais do poema “Humanidade” e da canção


“Neurotic Society”
Retirado do livro “Meu estranho diário”, em uma publicação póstuma de
1996, o poema “Humanidade” traz a grafia original da escritora Carolina
Maria de Jesus e é carregado das suas decepção e revolta. Nele, a
autora descreve com total insatisfação as características assumidas
pelos seres humanos.

Depôis de conhecer a humanidade


suas perversidades
suas ambições
Eu fui envelhecendo
E perdendo
as ilusões
o que predomina é a
maldade
porque a bondade:
Ninguem pratica
Humanidade ambiciosa
E gananciosa
Que quer ficar rica!

Quando eu morrer...
Não quero renascer
é horrivel, suportar a humanidade
Que tem aparência nobre
Que encobre
As pesimas qualidades

Notei que o ente humano


É perverso, é tirano
Egoista, interesseiros
Mas trata com cortêzia
Mas tudo é ipocresia
São rudes, e trapaceiros

(CAROLINA MARIA DE JESUS, 1996.) 

Na primeira estrofe, a escritora se mostra uma pessoa que experimentou


das perversidades e da usurpação praticada pelas pessoas ao seu
redor. Como consequência, foi se desgastando e perdendo as
esperanças nesse ambiente onde o que predomina é a maldade,
caracterizando a humanidade como ambiciosa e gananciosa.
Sempre inserindo elementos pessoais e do seu cotidiano, Carolina
registra a gentileza fingida da sociedade, sendo ela na verdade
perversa, tirana, egoísta e que busca apenas os seus próprios
interesses, contrariando a forma ética.
Souza (1994, p. 13) define ética como
um conjunto de princípios e valores que guiam e orientam as relações
humanas. Esses princípios devem ter características universais,
precisam ser válidos para todas as pessoas e para sempre.
Contrariando a definição supracitada e reforçando o que Carolina traz
em seu poema, “Neurotic Socity”, lançada em 2013, consiste em um
discurso das inversões de valores. Na faixa, Lauryn Hill faz duras críticas
a sociedade contemporânea.

“[...] Cold world kills softly, whole world runs savagely. [...] Quick fast,
the poison has entered the blood stream
Psychological master, consequences of tragedy
Mythological characters, men and women is parody
Superficial vanity, borderline insanity.
Out of order humanity, crime committed so passively. [...] Predisposed
to complacency, jealousy, and audacity. Contagious social gluttony,
stages of mass malignancy [...]”. (LAURYN HILL, 2013)

Com um tom de desabafo, a artista discute alguns elementos que


contribuem para uma sociedade caracterizada como desumana. “Cold
world kills softly, whole world runs savagely”, “The poison has entered
the blood stream”, são com essas frases que Hill preenche a primeira e
longa estrofe do seu hip hop. Aborda como tema inicial o homicídio, o
que acaba evidenciando o nível de insignificância que estamos tendo
sobre o outro em nosso convívio. Em outro trecho, Lauryn alerta às
pessoas desse “veneno” que está entrando nas nossas artérias e, cada
vez mais o homem está ficando fora de ordem, agindo com
desonestidade e tendo seu foco em suas posses e suas conquistas, não
se importando com o repartir, agindo de forma gananciosa.

“[...] Lifestyle of luxury at someone's expense. Sensitive children, used


up and sacrificed. [...] Robbing innocence, stealing inheritance
Quiet victims with no defense portrayed over dollars and cents. [...]”.
(LAURYN HILL, 2013)

As formas dessas atitudes incoerentes do homem ficam explícitas nos


trechos citados e no decorrer dos versos. A autora vai descrevendo as
diversas maneiras em que o ser humano tem desprezado o sentido de
humanidade. No trecho acima, aborda outro tema, fazendo referencia
clara à exploração e ao abuso infantil.
Outro ponto discutido como causador da desumanização é a vaidade. A
cantora recita
“[...] Superficial vanity, borderline insanity. [...] Ten thousand pictures
on Facebook, it's like the pot calling the kettle narcissist. [...] Never
confuse the head with the butt [...]”(LAURYN HILL, 2013)

A fim de apontar as causas dessa desordem social, Lauryn Hill traz em sua
abordagem aspectos que conversam com o poema da poetisa Carolina Maria:
ambas as obras procuram trazer pontos que caracterizam a situação atual da
sociedade. Com uma escrita mais circunscrita, Carolina aborda vivências que a
possibilitaram ter essa visão. É uma obra que explana o lado pessoal, trazendo
em suas abordagens algo sofrido. O que difere de Lauryn, onde a mesma
versa sobre o assunto por um olhar mais coletivo; o que, ainda assim, legitima
a questão.

3. Literatura e humanidade
Matura e Varela, no livro “A árvore do conhecimento” (2001), dizem
quais pontos são fundamentais para viver em um ambiente assaz social
(...) O amor, (…) a aceitação do outro junto de nós na convivência, é
o fundamento biológico do fenômeno social. Sem amor, sem
aceitação do outro junto a nós, não há socialização, e sem esta não
há humanidade. Qualquer coisa que destrua ou limite a aceitação do
outro, desde a competição até a posse da verdade, passando pela
certeza ideológica, destrói ou limita o conhecimento do fenômeno
social. Portanto, destrói também o ser humano. (MATURA e VARELA,
2001, p.269)

Relacionando a citação às obras apresentadas, podemos perceber o


distanciamento que há entre elas. Para isso, a literatura carrega consigo
uma importância apresentada por Antonio Candido, em “O direito à
literatura”. Ele revela-nos a ligação existente entre a literatura e a
humanidade; o papel indissociável dessa manifestação artística na
construção de uma formação cultural em um indivíduo e o quanto tal
elemento contribui para um novo olhar
“A literatura [...] é fator indispensável de humanização e, sendo assim,
confirma o homem na sua humanidade [...]. Entendo por
humanização o processo que confirma no homem aqueles traços que
reputamos essenciais, como o exercício da reflexão, a aquisição do
saber, a boa disposição para com o próximo, o afinamento das
emoções, a capacidade de penetrar nos problemas da vida, o senso
da beleza, a percepção da complexidade do mundo e dos seres, o
cultivo do humor. A literatura desenvolve em nós a quota de
humanidade na medida em que nos torna mais compreensivos e
abertos para a natureza, a sociedade, o semelhante. (2004, p.180)”
4. Considerações Finais
Vimos nesse artigo a sociedade sendo representada em dois diferentes
veículos, primeiro em um poema e, logo depois, em uma música. A
primeira representação exposta partiu de uma experiência particular da
escritora; já na segunda representação, houve uma apresentação de
fatos que, na visão cidadã da autora, originam a desordem e as atitudes
atrozes na sociedade.
A discussão sobre sociedade não é algo novo. Estudiosos como Karl
Marx, Émile Durkheim etc. já se preocuparam em analisar a relação do
indivíduo com ela. A teoria de Marx está voltada para as classes sociais,
embora a questão do indivíduo também seja pauta de suas discussões.
Isso fica claro quando Marx afirma que os seres humanos constroem
sua história, mas não da maneira que querem, pois existem situações
anteriores que condicionam o modo como ocorrem a construção.  Isso
nos explicaria os características assumidas por eles descritas pelas as
autoras?
Também foi apresentado como a literatura, sob o discurso de Antonio
Candido, contribui para a reparação dessa postura. Para ele, a literatura
nos devolve as características definidas outrora por sociólogos quando
se trata do comportamento humano em relação à sociedade.
Referências:

Site Geledes. http://www.geledes.org.br/negra-ex-catadora-e-favelada-


voce-conhece-escritora-mineira-lida-em-14-linguas/#gs.GOxn7rU
Acessado em 09/05/2017
Jornal GGN. http://jornalggn.com.br/noticia/a-discussao-sobre-a-
relacao-entre-os-individuos-e-a-sociedade Acessado em 12/05/217
MetroLyrics. http://www.metrolyrics.com/neurotic-society-compulsory-
mix-lyrics-lauryn-hill.html Acessado em 12/05/217
CANDIDO, Antonio - O direito à literatura In Vários Escritos. 2004
MARIA DE JESUS, Carolina. Meu Estranho diário. São Paulo. Ed.
Xamã, 2006.
MATURANA, H.; VARELA, F. A árvore do conhecimento: as bases
biológicas da compreensão humana. São Paulo: Palas Athena, 5ª. ed.,
2005.

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