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O autoritarismo nosso de cada dia

Uma acusação frequentemente lançada à filosofia brasileira é que seria incapaz,


ou por índole ou por deliberado encastelamento, de debruçar-se sobre a nossa situação
como país e como povo, nossa vida nacional, em suma, sobre o que somos. Pelo
contrário, um dos aspectos mais fascinantes da obra de Marilena Chaui está
precisamente em ter ela conseguido, desde uma perspectiva filosófica e com o apoio da
melhor armadura fornecida pela história da filosofia, fazer do Brasil objeto de reflexão
e, em diálogo com a tradição interpretativa, inovar conceitualmente na compreensão do
país, sobretudo no tema fundamental que é o nosso persistente e redivivo autoritarismo.

Quando Marilena defende seu doutorado sobre Espinosa em 1971, o tema do


autoritarismo está na ordem do dia, após anos de ditadura e sob o impacto do AI-5.
Logo ela decide aprofundar e aclimatar as páginas da tese dedicadas ao problema da
tirania estudando o integralismo dos anos 30 e assim enfrentando o autoritarismo
presente em nossa sociedade. Ao longo de décadas, o tema ocupará uma parte
considerável de sua obra e, graças à perspectiva filosófica adotada, conhecerá três
inovações fundamentais em face da tradição.
Era corrente a ideia de que o autoritarismo constituísse uma sorte de destino
nacional acarretado pelas tão propaladas “deficiências” de nossa formação como país:
colonização voltada ao comércio internacional, transposição para cá das mazelas do
Estado lusitano, ausência de classes sociais bem definidas, mescla de raças, ignorância
alarmante, etc. Ora, avaliando o Brasil à luz de um modelo ideal de formação nacional e
constatando nossos desvios e atrasos, os estudiosos não puderam senão hipertrofiar o
papel do Estado como agente indutor da política, da economia, no limite constituinte da
própria sociedade brasileira. A primeira inovação de Marilena será a recusa dessa
“figuração hegeliana do Estado” que ela identifica tanto nos intérpretes autoritários
quanto nos democráticos, que por vias diversas acabam por justificar o fato autoritário:
os primeiros porque o autoritarismo seria desejável, os segundos porque seria inevitável.
Sob inspiração espinosana, ela se esforça em compreender o país positivamente, ou seja,
deixa de enfatizar o que lhe falta para interrogar o que ele é em sua singularidade,
conforme os seus elementos constituintes, e como daí o autoritarismo se origina.
A inversão da lupa analítica conduz diretamente à segunda inovação. Não sendo o
autoritarismo o produto exclusivo de um maligno Estado onipotente que impusesse sua
vontade sobre uma sociedade passiva, deve encontrar raízes no próprio corpo social que
determina o tipo de poder que o Estado exerce. Logo, em vez de autoritarismo, é mais
exato falar em sociedade autoritária, e sublinhar sua expressão num conjunto de
aspectos bem conhecidos nossos: as “revoluções” vindas de cima, a desigualdade e a
exclusão sociais, a cordialidade que não hesita em esfolar o próximo, a lei e o direito a
serviço da dominação, a cultura do doutor que pisoteia o ignorante. Em vez de um
regime (como o de 64), cabe identificar uma formação social autoritária determinada
que depende menos de um tirano que da cabeça e ação dos tiranetes, os muitos
brasileiros que são cada um autoritário no seu quintal e emprestam, como interessados
cortesãos, suas mãos, seus ouvidos, suas bocas ao tirano do momento.
A investigação das condições de possibilidade dessa característica marcante
produz uma terceira inovação conceitual, ainda na esteira de Espinosa. O autoritarismo
não é nem um destino inapelável (fruto de uma formação deficitária) nem uma
configuração política momentânea (imposta pela mão de ferro militar, por exemplo); ele
é efeito determinado de uma causa determinada que produz uma formação social
determinada e é por ela incessantemente reproduzido. A compreensão da singularidade
autoritária de nossa sociedade deve então ser buscada naquilo que, sempre presente, a
faz perseverar no que ela é, ou seja, sua causa, o ato de instituição de uma “cidade” (no
sentido amplo que os antigos atribuíam ao termo). Essa causa instituinte Marilena
denomina fundação.

A ideia de fundação não deve ser concebida como referência a um fato situado no
passado longínquo (no extremo, o primeiro par de pés lusos que aqui pisou). Ela denota
o ato de instituição política do poder e da cidade, o marco de um trabalho sobre as
pressões naturais (alimentação, habitação, etc.) e os conflitos entre indivíduos e grupos,
com vistas à utilidade coletiva. Esse trabalho – a política – não se restringe a uma fração
de tempo; a fundação dá o fundo sempre presente da vida social e política no decurso
temporal. A “cidade”, explica Marilena, “não cessa de instituir-se e essa instituição
permanente define sua duração ou seu perecimento”. No interior da contínua tensão
entre forças conflitantes que caracteriza a dimensão histórica de uma formação social
(que jamais é dada por natureza), o equilíbrio determina a sua permanência, os
reequilíbrios engendram as mudanças de rumo, o atroz desequilíbrio abre o horizonte de
seu desaparecimento e transformação noutra coisa.
Com isso, podemos enfim identificar a marca maior do autoritarismo. É
autoritária a sociedade em que o poder, para exorcizar as tensões e eventuais mudanças
a que está submetida uma formação social histórica, de um lado, suspende o trabalho
político de mediação das inevitáveis desavenças (que se realiza pelo alargamento de
instituições comuns, como os direitos por exemplo) e, de outro, tem sanha de suprimir
os conflitos e arbitrar a vida social por meio da violência (haverá melhor exemplo que a
atual discussão sobre o “excludente de ilicitude”?). Se falamos em sociedade autoritária
brasileira, é porque o processo que culminou em nossa constituição como nação
alicerçou-se no constante recurso a formas violentas específicas de estruturação social;
se cabe continuar a falar de autoritarismo brasileiro, é porque a violência, em seu
sentido mais amplo, ainda viceja entre nós e dá o tom singular de nossa vida social,
justificando-se ideologicamente a partir de um mito fundador.
Não por acaso, muito do trabalho de Marilena nos anos 70 e 80 voltou-se à crítica
da ideologia, termo que para ela, longe de banalmente designar um ideário qualquer,
refere-se ao discurso que mobiliza um conjunto de imagens ou representações a fim de
justificar uma dada realidade. Nesse sentido, a sociedade brasileira, tal como é uma
formação social determinada, também é uma formação ideológica determinada. Sua
fundação exprime-se ideologicamente num mito fundador particular, aquele que nos é
inculcado desde sempre: o país gigante pela própria natureza, o povo ordeiro e cordial, a
alvissareira miscigenação. O mito funciona como solução imaginária dos conflitos e,
arraigado em cada um, sugere e autoriza as práticas violentas no interior de uma
sociedade que tende, por isso mesmo, a repetir indefinidamente, mesmo quando assume
formas novíssimas, uma vida social estruturada pela violência e na qual os conflitos são
mediados pela violência.

Uma obra de pensamento vale tanto mais quanto, em vez de respostas prontas, nos
ensina a formular e pensar problemas que são nossos. Pois aqui chegados,
reconhecemos o valor da reflexão filosófica de Marilena sobre o Brasil exatamente no
problema maior a que nos conduz: o problema da repetição. O autoritarismo persiste e
sempre revive porque, tenazmente determinado por nossa fundação, é capaz de com
incrível plasticidade, segundo nosso mito fundador, assumir formas novas para a cada
vez repetir a sua mesma essência profunda. Daí a pergunta crucial: como bloquear a
repetição?, já que, como ensinou Espinosa, de nada vale depor o tirano, se não
suprimimos as causas da tirania. Interrogação assustadora, desafio gigantesco, pois
exige renegar o que somos como nação e conseguir conceber a possibilidade de uma
refundação que evite a repetição autoritária no mesmo movimento em que aponte para a
construção de uma sociedade democrática, horizonte último de toda a obra de Marilena
Chaui.

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