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Autoritarismo Nosso de Cada Dia
Autoritarismo Nosso de Cada Dia
A ideia de fundação não deve ser concebida como referência a um fato situado no
passado longínquo (no extremo, o primeiro par de pés lusos que aqui pisou). Ela denota
o ato de instituição política do poder e da cidade, o marco de um trabalho sobre as
pressões naturais (alimentação, habitação, etc.) e os conflitos entre indivíduos e grupos,
com vistas à utilidade coletiva. Esse trabalho – a política – não se restringe a uma fração
de tempo; a fundação dá o fundo sempre presente da vida social e política no decurso
temporal. A “cidade”, explica Marilena, “não cessa de instituir-se e essa instituição
permanente define sua duração ou seu perecimento”. No interior da contínua tensão
entre forças conflitantes que caracteriza a dimensão histórica de uma formação social
(que jamais é dada por natureza), o equilíbrio determina a sua permanência, os
reequilíbrios engendram as mudanças de rumo, o atroz desequilíbrio abre o horizonte de
seu desaparecimento e transformação noutra coisa.
Com isso, podemos enfim identificar a marca maior do autoritarismo. É
autoritária a sociedade em que o poder, para exorcizar as tensões e eventuais mudanças
a que está submetida uma formação social histórica, de um lado, suspende o trabalho
político de mediação das inevitáveis desavenças (que se realiza pelo alargamento de
instituições comuns, como os direitos por exemplo) e, de outro, tem sanha de suprimir
os conflitos e arbitrar a vida social por meio da violência (haverá melhor exemplo que a
atual discussão sobre o “excludente de ilicitude”?). Se falamos em sociedade autoritária
brasileira, é porque o processo que culminou em nossa constituição como nação
alicerçou-se no constante recurso a formas violentas específicas de estruturação social;
se cabe continuar a falar de autoritarismo brasileiro, é porque a violência, em seu
sentido mais amplo, ainda viceja entre nós e dá o tom singular de nossa vida social,
justificando-se ideologicamente a partir de um mito fundador.
Não por acaso, muito do trabalho de Marilena nos anos 70 e 80 voltou-se à crítica
da ideologia, termo que para ela, longe de banalmente designar um ideário qualquer,
refere-se ao discurso que mobiliza um conjunto de imagens ou representações a fim de
justificar uma dada realidade. Nesse sentido, a sociedade brasileira, tal como é uma
formação social determinada, também é uma formação ideológica determinada. Sua
fundação exprime-se ideologicamente num mito fundador particular, aquele que nos é
inculcado desde sempre: o país gigante pela própria natureza, o povo ordeiro e cordial, a
alvissareira miscigenação. O mito funciona como solução imaginária dos conflitos e,
arraigado em cada um, sugere e autoriza as práticas violentas no interior de uma
sociedade que tende, por isso mesmo, a repetir indefinidamente, mesmo quando assume
formas novíssimas, uma vida social estruturada pela violência e na qual os conflitos são
mediados pela violência.
Uma obra de pensamento vale tanto mais quanto, em vez de respostas prontas, nos
ensina a formular e pensar problemas que são nossos. Pois aqui chegados,
reconhecemos o valor da reflexão filosófica de Marilena sobre o Brasil exatamente no
problema maior a que nos conduz: o problema da repetição. O autoritarismo persiste e
sempre revive porque, tenazmente determinado por nossa fundação, é capaz de com
incrível plasticidade, segundo nosso mito fundador, assumir formas novas para a cada
vez repetir a sua mesma essência profunda. Daí a pergunta crucial: como bloquear a
repetição?, já que, como ensinou Espinosa, de nada vale depor o tirano, se não
suprimimos as causas da tirania. Interrogação assustadora, desafio gigantesco, pois
exige renegar o que somos como nação e conseguir conceber a possibilidade de uma
refundação que evite a repetição autoritária no mesmo movimento em que aponte para a
construção de uma sociedade democrática, horizonte último de toda a obra de Marilena
Chaui.