Você está na página 1de 2

Leia o trecho do livro “Todos os nomes” (1997), do escritor português José Saramago, o mais

importante escritor da literatura portuguesa contemporânea.

No cemitério, surge um pastor com suas cabras e inicia uma conversa com o Sr. José. Leia o
trecho sobre essa parte da narrativa:

[...] Qual é então a verdade do talhão de suicidas, perguntou o Sr. José, Que neste lugar nem
tudo é o que parece, É um cemitério, é o Cemitério Geral, É um labirinto, Os labirintos podem
ver-se de fora, Nem todos, este pertence aos invisíveis, Não compreendo, Por exemplo, a
pessoa que está aqui, disse o pastor tocando com a ponta do cajado no montículo de terra,
não é aquela que você julga. De repente, o chão pôs-se a oscilar debaixo dos pés do Sr. José, a
última pedra do tabuleiro, a sua derradeira certeza, a mulher desconhecida enfim encontrada,
tinha acabado de desaparecer, Quer dizer que esse número está enganado, perguntou a
tremer, Um número é um número, um número nunca engana, respondeu o pastor, se
levassem de cá este e o colocassem noutro sítio, mesmo que fosse no fim do mundo,
continuaria a ser o número que é, Não percebo, Já vai perceber, Por favor, a minha cabeça é
uma confusão, Nenhum dos corpos que estão aqui enterrados corresponde aos nomes que se
lêem nas placas de mármore, Não acredito, Digo-lho eu, E os números, Estão todos trocados,
Porquê, Porque alguém os muda antes de serem trazidas e colocadas as pedras com os nomes,
Quem é essa pessoa, Eu, Mas isso é um crime, protestou indignado o Sr. José, Não há
nenhuma lei que o diga, Vou denunciá-lo agora mesmo à administração do Cemitério, Lembre-
se de que jurou, Retiro o juramento, nesta situação não vale, Pode-se sempre pôr a palavra
boa sobre a má palavra, mas nem uma nem outra poderão ser retiradas, palavra é palavra,
juramento é juramento, A morte é sagrada, A vida é que é sagrada, senhor auxiliar de escrita,
pelo menos assim se diz, Mas tem de haver, em nome da decência, um mínimo de respeito por
quem morreu, vêm aqui as pessoas recordar os parentes e amigos, a meditar ou a rezar, a pôr
flores ou a chorar diante de um nome querido, e vai-se a ver, por culpa da malícia de um
pastor de ovelhas, o nome autêntico de quem ali está é outro, os restos mortais venerados não
são de quem se supõe, a morte, assim, é uma farsa, Não creio que haja maior respeito que
chorar por alguém que não se conheceu, Mas a morte, Quê, A morte deve ser respeitada,
Gostaria que me dissesse em que consiste, na sua opinião, o respeito pela morte, Acima de
tudo, não a profanar, A morte, como tal, não é profanável, Sabe muito bem que é de mortos
que estou a falar, não da morte em si mesma, Diga-me onde encontra aqui o menor indício de
profanação, Ter-lhes trocado os nomes não é uma profanação pequena, Compreendo que um
auxiliar de escrita da Conservatória do Registo Civil tenha dessas ideias acerca dos nomes. O
pastor interrompeu-se, fez sinal ao cão para que fosse buscar uma ovelha que se tresmalhara,
depois continuou, Ainda não lhe disse por que razão comecei a trocar as chapas em que estão
escritos os números das sepulturas, Duvido que me interesse sabê-lo, Duvido que não lhe
interesse, Diga lá, Se for certo, como é minha convicção, que as pessoas se suicidam porque
não querem ser encontradas, estas aqui, graças ao que chamou a malícia do pastor de ovelhas,
ficaram definitivamente livres de importunações, na verdade, nem eu próprio, mesmo que o
quisesse, seria capaz de lembrar-me dos sítios certos, a única coisa que sei é o que penso
quando passo diante de um desses mármores com o nome completo e as competentes datas
de nascimento e morte, Que pensa, Que é possível não vermos a mentira mesmo quando a
temos diante dos olhos. Já havia muito tempo que a neblina tinha desaparecido, podia-se
perceber agora como era grande o rebanho. O pastor fez com o cajado um movimento por
cima da cabeça, era uma ordem ao cão para que fosse reunir o gado. Disse o pastor, É a altura
de me ir embora com as ovelhas, não seja que comecem a aparecer os guias, já vejo luzes de
dois carros, mas aqueles não vêm para aqui, Eu ainda fico, disse o Sr. José, Está a pensar,
realmente, em ir denunciar-me, perguntou o pastor, Sou um homem de palavra, o que jurei,
está jurado, Tanto mais que com certeza o aconselhariam a calar-se, Porquê, Imagine o
trabalho que daria desenterrar toda esta gente, identificá-la, muitos deles não são mais do que
pó entre pó. As ovelhas já estavam reunidas, alguma, ainda atrasada, saltava agilmente por
cima das campas para fugir ao cão e juntar-se às irmãs. O pastor perguntou, Era amigo ou
parente da pessoa a quem veio visitar, Nem sequer a conhecia, E apesar disso vinha procurá-
la, Por não a conhecer é que a procurava, Vê como eu tinha razão quando lhe disse que não há
maior respeito que chorar por uma pessoa que não se conheceu, Adeus, Pode ser que ainda
venhamos a encontrar-nos alguma vez, Não creio, Nunca se sabe, Quem é você, Sou o pastor
destas ovelhas, Nada mais, Nada mais. Uma luz cintilou ao longe, Aquele está a vir para aqui,
disse o Sr. José, Assim parece, disse o pastor. Levando o cão à frente, o rebanho começou a
mover-se em direcção à ponte. Antes de desaparecer atrás das árvores da outra margem, o
pastor virou-se e fez um gesto de despedida. O Sr. José levantou também o braço. Via-se agora
melhor a luz intermitente do carro dos guias. De vez em quando desaparecia, escondida pelos
acidentes do terreno ou pelas construções irregulares do Cemitério, as torres, os obeliscos, as
pirâmides, depois reaparecia mais forte e mais próxima, e vinha depressa, sinal evidente de
que os acompanhantes não eram muitos. A intenção do Sr. José, quando dissera ao pastor, Eu
ainda fico, tinha sido apenas a de ficar sozinho durante uns minutos antes de meter pés ao
caminho. A única coisa que queria era pensar um pouco em si mesmo, achar a medida justa da
sua decepção, aceitá-la, pôr o espírito em paz, dizer de uma vez, Acabou-se, mas agora uma
outra ideia lhe aparecera. Aproximou-se duma sepultura e tomou a atitude de alguém que
estivesse a meditar profundamente na irremissível precariedade da existência, na vacuidade
de todos os sonhos e de todas as esperanças, na fragilidade absoluta das glórias mundanas e
divinas. Cismava com tanta concentração que nem deu mostras de ter-se apercebido da
chegada dos guias e da meia dúzia de pessoas, ou pouco mais, que acompanhavam o enterro.
Não se moveu durante todo o tempo que durou a abertura da cova, a descida do caixão, o
reenchimento do buraco, a formação do costumado montículo com a terra que tinha
sobejado. Não se moveu quando um dos guias espetou no lado da cabeceira a chapa metálica
negra com o número da sepultura a branco. Não se moveu quando o automóvel dos guias e o
carro fúnebre se afastaram, não se moveu durante os escassos dois minutos que os
acompanhantes ainda se conservaram ao pé da campa dizendo palavras inúteis e enxugando
alguma lágrima, não se moveu quando os dois automóveis em que tinham vindo se puseram
em marcha e atravessaram a ponte. Não se moveu enquanto não ficou só. Então foi retirar o
número que correspondia à mulher desconhecida e colocou-o na sepultura nova. Depois, o
número desta foi ocupar o lugar do outro. A troca estava feita, a verdade tinha-se tornado
mentira. Em todo o caso, bem poderá vir a suceder que o pastor, amanhã, encontrando ali
uma nova sepultura, leve, sem saber, o número falso que nela se vê para a sepultura da
mulher desconhecida, hipótese irónica em que a mentira, parecendo estar a repetir-se a si
mesma, tornaria a ser verdade. As obras do acaso são infinitas. O Sr. José foi para casa [...]
(Todos os nomes. São Paulo: Companhia das Letras, 1997. p. 239-43)

Você também pode gostar