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Introdução:
Vontade de vida e Vontade de poder, dois conceitos aparentemente simples que se
desdobram em consequências filosóficas enormes. Mesmo que Nietzsche se refira à
Vontade de vida de Schopenhauer como uma mera palavra vazia, ela, enquanto
conceito, não é nada disso; se fosse, não precisaria ser atacada, nem teria inspirado o
próprio Nietzsche a reformulá-la. Mude ‘vida’ por ‘poder’ e veja toda uma nova forma
de ver a realidade e interpretar seus fenômenos surgir. Como numa notação
exponencial, o acréscimo de um único zero altera a extensão de um número de forma
dramática, transformando milhões em trilhões num piscar de olhos. Assim, pretendo
expor não só as diferenças técnicas entre esses conceitos centrais de ambos autores, mas
exercitar minha imaginação viajando dentro da visão de mundo produzida por elas, na
intenção de torná-las inteligíveis através de um certo tom poético, mesmo que
acompanhado do tom grave e fundamental da filosofia.
Porque a metafísica?
Mas, é possível perguntar: porque uma metafísica seria tão importante, tão urgente, à
ponto de ser formulada antes que a ciência alce seus mais altos voos na “superfície” dos
sentidos e do pensamento? Por que, de acordo com Schopenhauer, temos necessidade de
metafísica como de água ou comida. O espírito humano não consegue alcançar
equilíbrio sem antes encontrar e aderir respostas últimas para a sua existência, afim de
edificar uma ética, uma estética, uma política, uma epistemologia... hábitos, valores e
costumes que tornam a vida do indivíduo e da sociedade possível. Ninguém esperará
pelas últimas palavras da ciência para então organizar a vida e o mundo, pois assim a
maioria de nós morreria “na espera” ... Se é que essas últimas palavras sejam realmente
possíveis. Schopenhauer diz que não! Pois a ciência se mantém ferozmente nos
fenômenos, e os fenômenos nunca sequer tocarão no que realmente importa para nós,
animais metafísicos, que buscamos no eterno fundação para edificarmos nossa
existência pueril.
A vontade de vida:
E onde está o eterno? Na vontade que aparece para nós enquanto desejo, necessidade,
querer. Que em sua manifestação psicológica se dirige em direção às representações
(intuitivas), de acordo com a lei causal da motivação, para fazer a manutenção do
indivíduo e da espécie. Mas que em sua manifestação cósmica, não ruma à coisa
alguma, se não em direção a si, fazendo-se uma Vontade de Vontade, querer querente,
algo cego, sem finalidade. Mesmo em nós esse caráter vazio se expõe em nossa eterna
busca por renovada satisfação, pois a necessidade sempre retorna, “O desejo satisfeito
retorna ao fim da fila”. A vida, nessa chave, é uma busca incessante por renovada
satisfação, satisfação essa que é sempre provisória, negativa, e marcada por sofrimentos
antes e depois. A satisfação mesma é mera negação do sofrimento, um hiato entre uma
dor que termina e outra que logo começa não cobrindo os custos do investimento na
vida. Somos como Sísifo em sua jornada diária de levar sua pedra ao topo da montanha,
só para vê-la rolar do outro lado. Até mesmo fora de nós, na natureza, observamos a
auto discórdia, basta ligarmos a tv no Animal Planet, para vermos os animais lutando
entre si por território, domínio, alimentos, matando uns aos outros, devorando-se. E
claro! Não esqueçamos dos bastidores de nossa luminosa e organizada “Civilização”,
marcada por assassinatos em massa de bilhões de animais para alimentação e produção
de materiais diversos; destruição constante de florestas para construção de casas, criação
de gado, extração de madeira; extinções de várias espécies em decorrência das
alterações climáticas causadas pela industrialização; exploração de nossos iguais, para
que produzam excesso de riqueza e façam os trabalhos que consideramos “indignos”;
guerras comerciais, ideológicas, religiosas... A essência se pluraliza em fenômenos que
lutam entre si. A vontade se olha através do lago da aparência e percebe que sua
existência é um erro, pois seu ser consiste em nascer e viver sob a condição de se
devorar continuamente.
Ela é uma vontade de vida, de existência, que crava os dentes em si mesma para se
manter, pois não há nada fora dela para que se alimente. Sua manifestação fenomênica é
uma espécie de pecado original, algo que deve ser expiado, até que finalmente abra mão
da vida, de si mesma, rumo ao que é absolutamente oposto a ela mesma, aquilo que só
podemos chamar de nada. Pois algo fora da essência do mundo, ou seja, fora do que
somos e do que conhecermos, só pode ser caracterizado negativamente. Muitas
religiões, de acordo com Schopenhauer, são baseadas nessa culpa, expiação e libertação,
representando em suas escrituras esses “fatos” metafísicos através de alegorias. Arthur
chega a afirmar que sua filosofia é uma espécie de tradução filosófica daquilo que já
estava latente em muitas alegorias religiosas no capítulo 17 do tomo II do Mundo. Se vê
como alguém que trouxe à luz um conhecimento muito antigo, posto em prática na vida
dos santos, monges, ascetas, e adorado pelo povo comum que, também enraizados no
mundo, reconheceram nesses homens santos algo de sobrenatural digno de ser adorado.
A Vontade em Nietzsche
Continua nesta mesma passagem falando de pelo menos alguns fatores ignorados no
querer: como a sensação da qual se quer afastar-se, a sensação da qual se quer
aproximar-se, as próprias sensações das condições de afastar-se e aproximar-se, a
sensação muscular que as acompanha, o hábito de se por em movimento à proporção
que o “querer” se manifesta, um pensamento dominante, onde alguém manda e alguém
obedece dentro do próprio corpo. Enfim, uma pluralidade de processos que escapam
totalmente a mera definição de “vontade una e indivisível”. Algo realmente interessante
ocorre, mas não com a imediatez proposta por Schopenhauer, onde o ato de vontade e o
movimento corporal se encontram numa relação de identidade.
Antes do ato de vontade se exaurir em motricidade há um processo, segundo Nietzsche,
que envolve muitos fatores, não só sensações, mas também algo no interior de onde
emana à vontade – o corpo, seus órgãos e suas vicissitudes fisiopsicológicas ou
psicofisiológicas.
Aqui entram duas grandes influências, Lange e Ruggiero Giuseppe Boscovich2. Lange
com a interpretação de um sujeito psicofisiológico, não mais “transcendental”, e
Boscovitch com sua teoria de matéria como ponto inextenso capaz de atrair e expelir
através de uma dinâmica atuando à distância, em contraste à teoria mecanicista dos
movimentos atômicos e em oposição a ninguém mais ninguém menos que Sir Isaac
Newton. Newton, que não criou nenhuma hipótese sobre a gravidade, dizendo apenas
1
Friedrich Albert Lange (1828-1875) foi um filósofo e sociólogo alemão.
2
Ruđer Josip Bošković SJ (1711-1787), foi um padre jesuíta, físico, astrônomo, matemático, filósofo,
diplomata e poeta Dálmata. Nascido na República de Ragusa, posteriormente viveu na Inglaterra, França
e por fim na Itália.
que ela é algo inerente à matéria. Não aceitava que houvesse uma força atuando à
distância: na matéria, na massa, estava todo o segredo.
Concluindo:
Assim, a vontade de potência é a “origem” e a “meta” do conflito. Se assemelha com a
vontade de Schopenhauer ao menos em seu caráter insaciável; mas não busca a si
mesma para nada, produzindo unicamente sofrimento; ela busca a si por mais e mais
poder, excesso e grandiosidade.
O salto para compreende-la, e assim entender todos os fenômenos, está dentro de nós,
em nossos impulsos, na batalha diária dos diversos quereres que temos em nosso corpo.
Quando “olhamos” para dentro, livre de preconceitos, não podemos ver outra coisa que
não uma multiplicidade de demandas, organizadas em uma espécie de hierarquia, onde
umas tem direito a se manifestarem em ação e outras são “reprimidas”, condenadas a
trabalharem no subúrbio do corpo, com seu poder limitado pelos impulsos com
demandas superiores. O conflito entre esses impulsos e suas demandas estão presentes
em todos os homens, mesmo que as possíveis organizações variem largamente de
indivíduo para indivíduo e possam variar de cultura para cultura, que acabam
determinado certas organizações como “ideais”. Homem e mundo, natureza e cultura,
são, no fundo, a mesma coisa: impulsos buscando poder, dispostos numa determinada
hierarquia; na natureza reina uma organização mais perene, para nós que duramos tão
pouco, mas em nossa civilização, cultura, individualidade, percebemos uma alteração
mais veloz. Como numa espécie de concerto subjetivo e cósmico, cada músico
individual (impulso, vontade, energia) deseja ser o centro das atenções, e apenas pela
coerção, tirania do mais talentoso, poder, aceita ser subalterno em detrimento desses
outros, que brilham no centro dos holofotes como maestros, músicos principais, da
grande orquestra que é a vida e o universo.
Como dizia Heráclito:
De todas as coisas a guerra é o pai, de todas as coisas é senhor; a uns
mostrou deuses, a outros, homens; de uns fez escravos, de outros,
livres. (frag.53, p.85)
O que Nietzsche faz é estabelecer o motivo da guerra, o poder, como o pai de todas as
coisas. E como somos humanos, “presos” em nossa própria cabeça, enraizados no
mundo, só podemos entender esse poder atribuindo o nome de “vontade”, entendendo-o
analogamente. Vontade que é infinitamente mais esclarecedora do que a atribuição do
conceito de força, retirado da nossa experiência muscular. Nossa experiência subjetiva é
infinitamente mais rica, complexa e em acordo com os relatos históricos e as
descobertas científicas, por isso deve ser usada, até o fim, como ponto de partida para
entendermos os fenômenos físicos, químicos, orgânicos, animais, socias, religiosos e
políticos...; expressa de forma mais ampla o cosmos em sua batalha entre “constantes”,
impulsos, que se arranjam e rearranjam em torno dos vitoriosos e vencidos, em uma
hierarquia impermanente que gera em nós, que surgimos em um desses momentos de
ordem, os preconceitos decorrentes da fixação dos resultados da guerra; resultado que
ainda gera tensão e conflito entre os senhores e os escravos, os dominadores e os
dominados, necessitando de manutenção constante para contornar as indissolúveis
contradições internas, que espreitam como possibilidades também constantes de
destruir, inverter, reorganizar o cenário atual das coisas.
Referências
Arthur S, t. J. (2013). O mundo com vontade e como representação. São Paulo: Unesp.
Freud, S. (2011). FREUD - OBRAS COMPLETAS, V.12 - ENSAIOS DE METAPSICOLOGIA E
OUTROS TEXTOS. Rio de Janeiro: Companhia das Letras.
Immanuel K, t. V. (2005). Crítica da razão Pura. São Paulo: Nova Cultural.
Itaparica, A. L. (s.d.). DARWIN E NIETZSCHE: NATUREZA E MORALIDADE.
Itaparica, A. L. (s.d.). NIETZSCHE E BOSCOVICH Dinamismo e Vontade de Potência.
Lopes, R. (s.d.). O corpo como fio condutor.
Lopes, R. (s.d.). O modelo político dos impulsos em Nietzsche.
Nietzsche, F. W. (1884-1885). Fragmentos póstumos.
Nietzsche, F. W. (1885). Fragmento póstumo 36[31].
Nietzsche, F. W. (1992). Além do bem e do mal. São Paulo: Companhia das letras.
P., d. C. (1958). Manual de Filosofia. Porto Alegre: Livraria apostolado da imprensa.
Schopenhauer, A. (2015). O mundo como vontade e como representação. (J. Barbosa, Trad.)
São Paulo: Unesp