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Resenha

DOI - http://dx.doi.org/10.1590/S1516-14982015000100011

O QUE É A PSICANÁLISE? SÁNDOR com o que é imóvel, transformado em


FERENCZI E SUA REPETIÇÃO NO pedra, impermeável, descolorido e sem
ARQUIVO PSICANALÍTICO vida. Quando, no entanto, por encontros
Arquivo e memória da experiência efetivos e singulares com o que é outro e
psicanalítica: Ferenczi antes de que, assim sendo, modifica radicalmente
Freud, depois de Lacan, de Joel o estatuto do mesmo, a psicanálise expe-
Birman. Rio de Janeiro: Contra Capa, rimenta, por assim dizer, uma crise de
2014, 160 p. evidências — crise daquilo que é tido
por certo e definido numa dada época ou
Luiz Paulo Leitão Martins período —, é preciso destituir as linhas
Univ. Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, RJ, Brasil rígidas do um e produzir em seu interior
uma abertura ao que é múltiplo. Da linha
Doutorando pelo Programa de Pós-
contínua à borda porosa, o deslocamento da
Graduação em Teoria Psicanalítica da
UFRJ. Bolsista da Capes. fronteira que constitui a modalidade da re-
lação da psicanálise com o exterior afirma
a produção de um espaço de intertextualidade
A recepção do pensamento de Sándor no campo do arquivo. É intertextual um
Ferenczi na história do movimento psica- discurso que comporta os diferentes fluxos
nalítico é marcada por uma descontinuidade de escrita e os muitos movimentos de uma
fundamental: ora suas construções no intensidade que é viva e dançante.
plano metapsicológico da teoria e suas Ferenczi, sua loucura psicótica, sua
intervenções no plano metodológico da terrível infantilidade, como foi interpreta-
clínica são negadas e excluídas para o do, podem enfim se aproximar. Entre o
arquivo morto, ora essas mesmas cons- mesmo e o outro, a psicanálise descobre a
truções e intervenções, metapsicológicas repetição de um texto, de um autor que
e metodológicas, são afirmadas e aceitas constitui uma verdadeira inscrição em seu
no arquivo vivo que constitui o campo de discurso. Ferenczi se torna arquivo vivo não
discursividade da psicanálise. por sua submissão ou obediência a uma
Quando se encontram no arquivo retórica do rigor, nem por sua adequação
morto, seus enunciados permanecem no a uma doutrina ou a um campo de dou-
lado de fora, no lado daquilo que por trinação de um discurso institucional,
sua exterioridade aponta para as linhas mas sim porque a repetição de um desejo de
rígidas e delimitadas do que está dentro. saber e a atualidade inapagável de seu traço
A experiência da psicanálise, por essa via, legitimam o seu eterno retorno. O que
é definida por uma linha plena e contínua; produz essa inversão? Quais são as linhas
tal qual um mineral cristalizado ou um de força que constituem a determinação
cadáver mórbido e enrijecido, identifica-se de um acontecimento e de sua repetição

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na história de um arquivo? A presença de A partir dessa formulação, podemos


problemas. interpretar duas proposições metodoló-
Pensar a psicanálise, se perguntar gicas de Ferenczi: a técnica ativa, e, mais
e buscar responder à pergunta o que é a adiante, a neocatarse. São formas distintas
psicanálise?, e fazer isso não a partir das que, no entanto, remetem a uma mes-
respostas dadas pelo cânone psicanalítico ma e única problemática, qual seja, a
de uma época, mas sim a partir de pro- participação do analista na experiência
blemas, formas de problematização de um de analisar. No primeiro caso, inventa-
campo de experiência, foi o que Ferenczi -se que o analista pode agir: interditar um
realizou, de modo que sua intervenção gozo autoerótico ou estimular fantasias e
aponta efetivamente para a inscrição de cenários de uma sexualidade inibida, com
uma diferença no arquivo. Foi ele quem a finalidade precisa de alcançar a materia-
mais do que qualquer outro, como disse lidade da pulsão condensada nos sintomas
Lacan, se perguntou insistentemente: o de um corpo libidinal e reconduzir essa
que significa psicanalisar? E, além disso, em economia do inconsciente para o campo
que consiste ocupar o lugar em questão, a da fala e da linguagem. Tanto numa atividade
posição de analista nessa tarefa? quanto noutra, utiliza-se de uma palavra
Que uma experiência seja psicanálise, ou de um gesto que intervém no aqui e
e que essa experiência seja empreendida agora da transferência, a fim de relançar a
por um psicanalista, não é uma coisa dada, análise para além da estagnação destrutiva
nem resolvida. A estranha inquietude de de uma compulsividade em direção aos
um campo que pretende fazer surgir a mecanismos de livre associação, reme-
singularidade de uma história e promover moração e elaboração. É a continuidade
a especificidade de um desejo aponta não do processo analítico que está em jogo.
para a burocratização de um sistema de A atualidade do enunciado de Ferenczi
formação e transmissão, nem para a pa- é decorrente de uma preocupação em
dronização de um manual de tratamento remeter sua alternativa metodológica aos
e de utilização técnica, mas sim para a desenvolvimentos da metapsicologia de
abertura de um encontro situado entre dois. Freud — a radicalidade de uma pulsão e
Se para Ferenczi a psicanálise tinha se a substituição da tópica do inconsciente
transformado numa experiência pedagógica, pela tópica do isso, a partir dos anos 1920.
na qual a distinção entre professor e aluno, O segundo caso, apesar de responder
mestre e discípulo, indicava o exercício à mesma formulação da análise mútua, é
assimétrico de poder e de autoridade entre bastante distinto. Com a ideia de neocatar-
analista e analisante, era preciso repensar se, Ferenczi retoma de maneira renovada
a modalidade de relação implicada nesse a problemática freudiana do trauma, para
encontro e as condições de possibilidade pensar de que modo uma forma específica
para que esse encontro seja uma psicaná- de sedução pode ser revivida sob trans-
lise. A noção de análise mútua é a resultante ferência e potencialmente resolvida em
dessa operação; para existir psicanálise é análise. Com a atualização na clínica da
preciso que o analista seja também anali- confusão de línguas entre o adulto e a criança,
sante e continue sua análise na experiência o mal-entendido entre a paixão e a ternura
de analisar. O desejo do analista deve estar pode ser dissolvido, e isso se o analista
implicado no tratamento. e o analisando terminam o processo de
análise numa simetria de posições. O fim

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de uma análise ou a sua finalidade natu- que ela é, mas reenviará essa questão a
ral descreveria a saída do analisante da algumas outras: quem? como? onde? quando?
posição masoquista de criança sábia, aquela Sua investigação teórica a propósito da
que sabe de uma catástrofe real a ser enco- problemática da experiência psicanalítica
berta e silenciada, para a posição normal na obra de Ferenczi, desenvolvida entre
do psiquismo, com a sua igualdade em os anos 1980 e 1990, e o desdobramento
relação ao analista, no caso dos homens, dessa investigação com a produção de dife-
e a resolução da inveja de ter ou não ter o rentes artigos e ensaios críticos, escritos no
pênis, no caso das mulheres. decorrer dos últimos 30 anos, constituem
Ora, essa ficção normativa Freud não pode a língua de sua dramatização. A escolha dos
aceitar. O fim da análise seria a outra face personagens e fantasmas, as máscaras e
de sua infinitude, uma mesma moeda os ornamentos utilizados, as narrativas
remeteria as duas à mesma condição. Tem contadas e a tessitura com que amarra os
fim a análise que permite a dissolução da diferentes nós, as formas de entrada e de
onipotência narcísica, seja da criança ou saída de um mesmo problema revelam sua
da mãe, e a entrada do sujeito no registro resposta, sua invenção.
da castração; não tem fim a análise que,
pela mesma via, permite a assunção da Recebida em 13/2/2015.
feminilidade diante das vicissitudes da Aprovada em 2/3/2015.
vida e dos caminhos e descaminhos do
Luiz Paulo Leitão Martins
existir. A intervenção da análise e o real lplmartins@gmail.com
dessa experiência se estendem e também
terminam por aí.
Esquecer Ferenczi é impossível. Não
no sentido de que a sua memória deve ser
resgatada como um modelo, como um tipo a
partir do qual regulamos nossa experiên-
cia. Ferenczi não deve ser esquecido, disse
Freud, porque a repetição daquilo que nele
difere é fundamental para a psicanálise.
Deve-se repetir não uma segunda ou terceira
vez, mas sim indefinidamente e à enésima
potência a primeira.
Este texto quer repetir um outro. Arqui-
vo e memória da experiência psicanalítica, de Joel
Birman, é uma análise da inscrição his-
tórica de acontecimentos em psicanálise.
Aborda-se a intertextualidade dos enunciados
e dos discursos de Ferenczi, Freud e Lacan
no arquivo psicanalítico a fim de produzir
um pensamento crítico e autoral a respeito
do ser da psicanálise e de sua experiência.
Se perguntarmos ao autor do livro o
que é a psicanálise? o que é a experiência
psicanalítica?, ele não nos responderá o

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